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As metamorfoses das Políticas Públicas Armand Mattellart O perímetro do Estado-nação é sempre pertinente para pensar o desenvolvimento das tecnologias? Essa é a questão à qual tentam responder, ao longo dos anos 1970, muitos países industrializados que se apropriam da noção de sociedade da informação e formulam uma estratégia para chegar a ela. São anos em que o princípio da regulação parece intocável. Durante a década seguinte, marcada pela desregulamentação e pela privatização, uma questão de mesma natureza se coloca, mas dessa vez no nível do governo supranacional. As negociações entre os Estados Unidos e a União Européia sobre a liberalização dos sistemas audiovisuais e de telecomunicações ocupam o primeiro plano. O modelo político-administrativo A Computépolis japonesa Desde o início dos anos 1970, a estratégia formulada pelo Japão, visando responder ao desafio das novas tecnologias, converte-se no centro das atenções dos grandes países industriais. Em 1971, um plano elaborado pelo Japan Computer Usage Development Institute (Jacudi) fixa a "sociedade da informação" como "objetivo nacional para o ano 2000". Epicentro dessa política voluntarista: o MITI, super-ministério do comércio internacional e da indústria cuja principal missão é a de estimular as sinergias entre a pesquisa e a indústria, o setor público e os grandes grupos privados. Emergem desse plano os contornos da sociedade do futuro: um banco central de dados do Estado; sistemas médicos de atendimento à distância; um ensino programado e racionalmente administrado, capaz de desenvolver um "estado de espírito informático"; um sistema de prevenção e de luta contra a poluição; um sistema de informação para as pequenas e médias empresas; um centro de reciclagem de mão-de-obra. Como pano de fundo, o modelo Computépolis, a cidade inteiramente interconectada e equipada com terminais domésticos, com gestão automatizada dos fluxos do tráfego, uma rede de trilhos e veículos de dois lugares comandados por computador, hipermercados por assim dizer sem funcionários e com pagamento feito com cartões magnéticos, informatização do ar condicionado.

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As metamorfoses das Políticas Públicas

Armand Mattellart

O perímetro do Estado-nação é sempre pertinente para pensar o desenvolvimento das tecnologias? Essa é a questão à qual tentam responder, ao longo dos anos 1970, muitos países industrializados que se apropriam da noção de sociedade da informação e formulam uma estratégia para chegar a ela. São anos em que o princípio da regulação parece intocável. Durante a década seguinte, marcada pela desregulamentação e pela privatização, uma questão de mesma natureza se coloca, mas dessa vez no nível do governo supranacional. As negociações entre os Estados Unidos e a União Européia sobre a liberalização dos sistemas audiovisuais e de telecomunicações ocupam o primeiro plano.

O modelo político-administrativo A Computépolis japonesa

Desde o início dos anos 1970, a estratégia formulada pelo Japão, visando responder ao desafio das novas tecnologias, converte-se no centro das atenções dos grandes países industriais. Em 1971, um plano elaborado pelo Japan Computer Usage Development Institute (Jacudi) fixa a "sociedade da informação" como "objetivo nacional para o ano 2000". Epicentro dessa política voluntarista: o MITI, super-ministério do comércio internacional e da indústria cuja principal missão é a de estimular as sinergias entre a pesquisa e a indústria, o setor público e os grandes grupos privados. Emergem desse plano os contornos da sociedade do futuro: um banco central de dados do Estado; sistemas médicos de atendimento à distância; um ensino programado e racionalmente administrado, capaz de desenvolver um "estado de espírito informático"; um sistema de prevenção e de luta contra a poluição; um sistema de informação para as pequenas e médias empresas; um centro de reciclagem de mão-de-obra. Como pano de fundo, o modelo Computépolis, a cidade inteiramente interconectada e equipada com terminais domésticos, com gestão automatizada dos fluxos do tráfego, uma rede de trilhos e veículos de dois lugares comandados por computador, hipermercados por assim dizer sem funcionários e com pagamento feito com cartões magnéticos, informatização do ar condicionado.

Ponto de convergência dos bancos de dados e dos centros de documentação científica e técnica, se construiria, no centro de Tóquio, uma torre que deveria abrigar todos os "reservatórios de pensamento nacionais", fossem eles do Estado ou do setor privado. Esse "reservatório central do pensamento" teria por função não apenas alimentar o ensino e a pesquisa, mas também garantir, graças ao livre acesso à informação, o novo sistema de participação dos cidadãos. Um "batalhão da paz" informático é planejado com o fim de enquadrar a mobilização geral em torno da inovação técnica. Um cronograma esboça as quatro fases de uma história que se iniciou em 1945 e deve fazer do Japão a primeira sociedade informacional da história. Essas fases se interpenetram: o primeiro período (1945-1970) é marcado pela predominância da mega-ciência e pelo sujeito "país"; o segundo (1955-1980), pela "organização" e pela "empresa"; o terceiro (1970- 1990), pelos "serviços sociais" e pela "sociedade"; o último (1980-2000), pelos "particulares" e pelo "ser humano". O governo e as empresas privadas lançam projetos de experimentação

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social (Highly Interactive Optical Visual System Information - Hi-Ovis) em zonas residenciais, fora e perto de Tóquio, com o fim de testar as atitudes de famílias escolhidas (a maior parte delas com mulheres no lar) diante dessas tecnologias interativas.

O interesse do Japão pela sociedade da informação terá sua tradução nos discursos de acompanhamento que lhe são próprios. Os escritos do futurólogo Yoneji Masuda prometem uma sociedade na qual a criatividade intelectual toma a dianteira sobre o desejo de consumo material inculcado pela sociedade da abundância, em que a ética da autodisciplina é acompanhada por uma implicação social, em que os seres humanos e a natureza vivem em harmonia e em que o poder centralizado e a hierarquização dão lugar a uma "sociedade multicentrada" [Masuda, 1980]. Mas nos projetos Hi-Ovis, enquanto as mulheres são o principal alvo da prospecção dos usos possíveis dos artefatos, a equipe encarregada do acompanhamento e da avaliação da experimentação é composta unicamente por homens [Cronberg e Satlgregorio, 1981]. O que é no mínimo paradoxal para um projeto que inscreveu entre seus objetivos sociais a "restauração da subjetividade".

A noção de vulnerabilidade dos sistemas informatizados também veio à tona. Por meio dela se diz que o processamento de dados não pode ficar à mercê de capitais externos. Isso "poria em risco a independência econômica ". A parte de capital externo em uma empresa deverá ser inferior a cinqüenta por cento. O resultado mais patente da estratégia precoce do MITI é a entrada das firmas japonesas no domínio das memórias. Elas passam a se dedicar ao computador pessoal em 1978 e, em quatro anos, conseguem inverter a tendência que dava às empresas americanas um reinado praticamente solitário sobre o mercado interno. Elas também reforçam sua liderança mundial na eletrônica para grande público. O período em que se define um quadro institucional para atingir a sociedade da informação concorda com a aceleração da internacionalização e do deslocamento da produção das grandes empresas desse setor. Outra revelação: o engajamento do Japão nos objetivos educativos faz com que no ano 2000 esse país possa se vangloriar de ser o único a possuir televisões educativas de grande audiência. O relatório Nora-Minc, uma filosofia da crise deixando de lado o Japão, que foi amplamente poupado da recessão econômica, a idéia de crise se infiltra nos discursos dos grandes países industrializados sobre as estratégias de informatização. Mas, de modo paradoxal, a própria noção de crise só muito raramente é objeto de um tratamento aprofundado [Schiller, 1984]. O relatório de Simon Nora e Alain Minc sobre a informatização da sociedade, entregue ao presidente Giscard d'Estaing em janeiro de 1978, constitui uma dessas raras exceções que confirmam a regra da simples invocação ritual. Esse documento deve ser lido como eco aos diagnósticos preocupantes sobre o estado do mundo que circulam desde o início da década. Quer seja o do Clube de Roma sobre os "limites do crescimento", emitido às vésperas do "primeiro choque do petróleo" por economistas, ecologistas e especialistas em ciências políticas e em relações internacionais que explicam até que ponto o modelo de crescimento ocidental é autofágico, devorando homens, matérias-primas e recursos naturais, e portanto destinado à exaustão [Meadows, 1972]. Quer se trate do relatório sobre a "governabilidade" das democracias ocidentais, redigido por três especialistas das ciências sociais a pedido da Comissão Trilateral, espécie de estado-maior privado dos grandes países industriais, que alerta sobre os "limites potencialmente desejáveis à extensão indefinida da democracia política" [Crozier, Huntington e Watanuki, 1975]. No momento do início dos trabalhos do relatório francês, a ameaça de penúria energética já deu um rosto comum ao espectro da crise.

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Sobre as políticas de independência nacional

A abordagem do governo de Tóquio é oposta à reflexão feita no Canadá, cujo potencial industrial não tem, é claro, comparação com o poder do império nipônico. Em 1969, Otawa nomeia uma "telecomissão”. Após consultar vários organismos e particulares, cujas opiniões e diagnósticos são relatados em um pré-relatório de aproximadamente 8 mil páginas, um relatório final de 250 páginas é publicado em 1971. Seu título: Um universo sem distâncias / lnstant World. No ano seguinte aparece outro, mais explícito sobre a questão informática: Branching out. O documento fundador é prolixo sobre a filosofia da democracia descentralizada como quadro de uma política de apropriação nacional das redes: as "comunicações devem emanar do povo e devem ser estabelecidas pelo povo para servir ao povo". A invocação ao "direito de comunicar" acompanhará a implantação de televisões comunitárias a cabo assim como a experimentação do videotexto (projeto Telidon). A esperança governamental de fundar uma indústria nacional com essa tecnologia, contudo, não terá longa duração [Raboy, 1990; Sénécal 1995; Lacroix e Tremblay, 1997]. Em todas as latitudes, nos anos 1970, florescem as políticas de, independência nacional. A Índia aprende a lição da retirada brutal da IBM, que se recusa em 1978 a ceder uma parte de seu capital a parceiros indianos. Sem alterar o espírito da política industrial concebida sob Nehru - planificação e investimentos maciços no setor público, principal agente da auto-suficiência (self reliance) -, o Estado encoraja a participação de empresas estrangeiras

no quadro de um contrato de transferência de tecnologia. Essa estratégia governamental articula-se em torno de um ambicioso programa espacial que levará a índia à condição de potência no domínio. No Brasil, o governo militar, em nome da segurança nacional, mas também da defesa da identidade, incentiva a partir 1972 um auto desenvolvimento da indústria da informática. Quatro anos depois, toma-se a decisão de microcomputadores contando com o conhecimento das universidades e a transferência de tecnologia das empresas japonesas. Completada pela nacionalização do capital da indústria das telecomunicações, essa política de independência nacional também tem o seu aspecto militar (em 1981, a indústria armamentista exporta 2,4 bilhões de dólares) [Mattelart e Schmucler, 1983]. No Chile, o inglês Stafford Beer, especialista em organização empresarial e autor de The Brain of the Firm (1972), propõe ao governo do presidente socialista Salvador Allende (novembro de 1970-setembro de 1973) que ponha a engenharia cibernética a serviço da planificação criar uma indústria brasileira de global da produção das empresas nacionalizadas. Inicia-se um debate no meio da Unidade popular chilena em torno da eventualidade de um desvio tecnocrata. Muitos teóricos das ciências cognitivas de origem chilena estréiam suas atividades nesse programa de coordenação denominado Cybersyn. O golpe de Estado do general Pinochet põe fim brutalmente a essa experiência tão original quanto polêmica [Beer, 1975; De Cindio e De Michelis, lista 1980].

Simon Nora e Alain Minc aprofundam a noção com o propósito de definir o estado dos lugares e de propor uma terapêutica, reencontrando assim a doutrina sansimonista sobre a crise e o papel reorganizador atribuído à rede. "A informática crescente da sociedade", escrevem eles, "está no âmago da crise, ela pode agravá-Ia ou contribuir para sua solução." Ela revoluciona o "sistema nervoso das organizações e da sociedade por

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inteiro". O "novo modo global de regulação da sociedade" que ela ajudará a instaurar é capaz de debelar a perda do consenso social e fazer com que seja reencontrada a adesão dos cidadãos às regras do jogo social: "A reflexão sobre a informática e a sociedade reforça a convicção de que o equilíbrio das civilizações modernas se baseia em uma alquimia difícil: a dosagem entre um exercício cada vez mais vigoroso dos poderes reais do Estado e uma exuberância crescente da sociedade civil. A informática, para o melhor e para o pior, será um ingrediente importante dessa dosagem" [Nora e Minc, 1978, p. 5]. Os dois relatores modernizam o discurso redentor: uma vez que a telemática, neologismo inventado naquele momento para indicar a conexão entre as telecomunicações e a informática, pressagia modos mais brandos de gestão do consenso, ela abre caminho para a "recriação de uma ágora informacional". Pois a sociedade das redes coloca em causa "a longo prazo uma divisão elitista dos poderes, isto é, no fim das contas, dos saberes e das memórias". Mas essa será, prevêem os relatores, uma "sociedade aleatória", o "lugar de uma infinidade de conflitos descentralizados". Objeto de múltiplas rivalidades e de solução incerta, os valores da sociedade da informação clamam pelo "retorno ao centro dos desejos dos grupos autônomos, pela multiplicação ao infinito das comunicações laterais".

O processo de exteriorização da memória coletiva, acelerado pela digitalização, deve enfrentar o risco de monopolização dos bancos de dados estrangeiros: "O saber acabará por se modelar segundo os estoques de informação". Construir os próprios bancos de dados é um "imperativo de soberania". O desafio é claro: a IBM acaba de anunciar sua intenção de entrar no campo das comunicações por satélite [Nora e Minc, p. 13]. O "espírito do serviço público" deve guiar a resposta a esse desafio. Somente uma ação dos poderes públicos que regulamente as redes, lance satélites, crie bancos de dados pode "deixar uma margem de manobra a um modelo de sociedade original", um "novo modelo de crescimento".

Em 1978 é votada uma lei sobre a informática e as liberdades e é estabelecida uma Comissão ad hoc (CNIL) encarregada de zelar por sua aplicação. Essa criação só foi obtida após um debate nacional agitado sobre os perigos da informática que se seguiu à revelação do projeto, elaborado em 1973 pelo Ministério do Interior, é um sistema automatizado de arquivos administrativos e do repertório dos indivíduos (Safari) baseado na interconexão de 400 diferentes arquivos a partir de um "identificador único", o número de seguridade social [Vitalis, 1981]. No final de 1978, o governo nomeia uma comissão encarregada de estudar os fluxos transfronteiriços de dados como questão ao mesmo tempo de proteção dos dados nominais e dos "enfrentamentos da sociedade pós-industrial" no contexto de uma competição aumentada. Para o relator, já se esboçam "linhas de força" preocupantes. O maior risco sendo o cenário da "sociedade terminal": para os mais desfavorecidos, uma de outros lugares por causa do deslocamento por redes interpostas; Estados obrigados a aceitar que só têm em "seu território fragmentos esparsos de atividades planificadas em um nível supranacional" [Madec, 1980]. Essa consideração política precoce das redes transfronteiras fundará uma doutrina francesa em matéria de circulação dos fluxos. Contrariamente ao Reino Unido, à Bélgica ou aos países escandinavos, a França não cessará de se opor ao princípio do free flow of data defendido pelas autoridades americanas [Palmer e Tunstall, 1990]. Na seqüência da eleição presidencial de 1981, o governo socialista inaugura uma estratégia industrial que "confia na pesquisa científica e no progresso tecnológico como elementos motores para sair da crise" e procura "democratizar a informática" em vez de "informatizar a sociedade". A retórica então está mais ligada à demanda social que à oferta técnica. Quatro anos depois, a desregulamentação e o imperativo da concorrência exterior restabelecem o

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discurso pragmático sobre a modernização via informatização. Ainda resta que, como eles próprios admitiram, os especialistas americanos em infovias usarão com proveito o relatório Nora-Minc, traduzido pela editora do MIT e prefaciado por Daniel Bell, e seguirão a aventura do Minitel, um dos únicos projetos nos grandes países industrializados de instalação de um sistema interativo a ter apostado na massificação antes do nascimento da Internet [Bell, 1999, p. XXII].

Rumo ao modelo liberal concorrencial

Os Estados Unidos e o enfraquecimento da tutela estatal

A profusão de cenários antecipatórios que caracteriza a situação americana, contudo, não apressa a decisão quanto à escolha de uma política de acesso à sociedade da informação. O governo federal se apossa do dossiê das telecomunicações e põe em circulação o termo "sociedade da informação" praticamente na mesma época em que o Japão e, indício entre outros, as universidades americanas são os primeiros a desenvolver um campo de estudos voltado para o auxílio à decisão: a Communications Policy Research. Sua ótica é majoritariamente favorável a uma diminuição das regulamentações. Estas últimas sendo catalogadas como seqüelas de um debate, impregnado de ideologia e que remonta ao século XIX, sobre a distinção entre propriedade privada e propriedade social [Sola Pool, 1974].

Em 1970, o presidente Richard Nixon modifica o organograma de tomada de decisão governamental no domínio das tecnologias do cabo, da informática e do satélite. É criada uma instância de coordenação vinculada à Casa Branca, a Office of Telecommunications Policy (OTP), e sua direção é confiada a um especialista proveniente da Rand Corporation. Com a chegada à lua, os Estados Unidos encerraram a fase de inovação tecnológica da conquista espacial. A palavra de ordem passa a ser a aplicação da eletrônica às "necessidades sociais". Essa perspectiva inspira, no ano seguinte, o projeto de um sistema de redes nacionais formulado pela NASA a pedido dos conselheiros pessoais do presidente em um relatório intitulado precisamente Communications for Social Needs: Technological Opportunities: "Reconhece-se cada vez mais nos Estados Unidos que existe um conjunto de problemas nacionais que poderiam ser resolvidos por meio das telecomunicações". Áreas prioritárias: educação, saúde pública, sistema judiciário, serviço postal, dispositivo de alarme em caso de urgência política e de desastre. O Estado-providência ainda mantém toda a sua força. É pois lógico que o relatório ressalte as desigualdades escolares, mais especialmente a que atinge as crianças das minorias étnicas. O objetivo do novo sistema de teleducação é "instaurar atitudes que favoreçam o nascimento de um cidadão flexível que, como muitos já pressentiram, será o cidadão de que o século XXI precisará". As promessas feitas terão o mesmo teor: "No ano 2000 a separação entre a casa e a escola será em boa parte reduzida"; "os edifícios escolares deveriam ser apenas centrais de distribuição de programas educativos por via eletrônica, centros comunitários ou centros esportivos, laboratórios para a prática e locais de experimentação artística" [Mattelart, 1976]. Por seu lado, as grandes empresas de telecomunicações não predizem que o teletrabalho será o destino de mais de três quartos da população economicamente ativa?

O debate sobre a estratégia a ser adotada para construir a sociedade da informação só será decidido no final de um percurso pragmático e sinuoso que se estende por mais de uma década. Em 1969, o presidente democrata Lyndon B. Johnson colocou em ação a máquina judiciária contra as práticas anticoncorrenciais da IBM (a empresa controlava

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três quartos do mercado norte-americano de computadores). Em 1974, o sucessor de Nixon, Gerald Ford, empreende, por sua vez, uma campanha antitruste contra outro gigante, o das telecomunicações: American Telegraph and Telephone (ATT). A administração Carter (1976-1980) suprime a Office and Telecommunications Policy e cria em seu lugar uma agência colocada sob a autoridade do secretariado de Comércio, a National Telecommunications and Information Administration (NTIA). A razão dessas ações deve ser procurada no modo de regulação pressentido para o conjunto do sistema de comunicações. O novo Communication Act, com efeito, propõe a reformulação total das regras do jogo definidas pelo ato fundador de 1934. A idéia é acabar com o monopólio "natural" da ATT e, ao mesmo tempo, minar a filosofia que o legitima, a saber, que a preservação do interesse público exige uma rede única sob o controle de um organismo público regulador: a Federal Communications Commission (FCC). Essa medida, que reduz a esfera de competências da administração tutelar das telecomunicações, é similar a outra decisão, também tomada durante a presidência de Jimy Carter, em favor de um desengajamento progressivo da autoridade pública do domínio da aviação civil e dos transportes terrestres.

Os procedimentos antitruste contra o gigante das telecomunicações e o da informática têm como data limite janeiro de 1982, sob a presidência de Ronald Reagan. A ATT conserva seus laboratórios, continua responsável pelas comunicações a longa distância e pelo fornecimento de equipamento a seus clientes, mas deve se desfazer das 23 filiais que asseguram as comunicações telefônicas locais. O procedimento contra a IBM, por outro lado, não chega a lugar algum. A nova administração republicana abandona bruscamente treze anos de processos e se torna defensora da multinacional, e por isso é acusada pela Comunidade Européia (que detém 65% do parque dos supercomputadores) de ter uma posição abusiva. Por meio de algumas concessões, a posição da IBM será ratificada por Bruxelas dois anos depois.

A liberalização do conjunto do sistema de comunicações dos Estados Unidos sob a presidência de Ronald Reagan coexiste com o retorno, em uma posição forte, do Departamento de Defesa na inovação tecnológica, por meio da Strategic Defense Initiative (SDI), também chamada de "guerra nas estrelas". Lançado no dia 23 de março de 1983, esse projeto visava à construção de um sistema antimísseis baseado em satélites, capaz de interceptar o ataque inimigo em pleno ar. O programa propriamente dito de escudo eletrônico global, que provém da ficção científica, não dará certo. Deixado de lado, ele ficou para ser relançado em 2001 pelo presidente Bush. Em contrapartida, o conjunto de investimentos ajudará a dinamizar as aplicações militares da inteligência artificial. Seguindo a SDI, com efeito, foi lançada a Strategic Computing Initiative, como complemento vital do primeiro programa [Mosco, 1989]. Os japoneses acabavam de anunciar seu projeto de computador de quinta geração. Os americanos respondiam fazendo a DARPA (Defense Advanced Research Projects Agency) assumir o papel federativo desempenhado no Japão pelo superministério da Indústria. Os sistemas de comando, de controle, de comunicações e de informação, estabelecidos nesse quadro, serão testados na Guerra do Golfo.

A disseminação da noção de sociedade da informação

A referência à "sociedade da informação" impõe-se sub-repticiamente nos organismos internacionais. Em 1975, a Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico (OCDE), que agrupava naquele momento 24 países dentre os mais ricos, estréia a noção e apressa-se para requerer os serviços não apenas de Marc Porat, mas

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também de outros especialistas americanos. Como Ithiel de Sola Pool, líder da pesquisa sobre as políticas de liberalização dos sistemas de comunicação. Quatro anos depois, o conselho dos ministros da Comunidade Européia também adota a noção e a usa como palavra-chave de um programa experimental qüinqüenal (FAST - Forecasting and Assessment in the Field of Science and Technology) que se inicia no ano seguinte [Bjorn-Andersen et al., 1982]. O Centro de estudos sobre as sociedades transnacionais das Nações Unidas se debruça sobre o desequilíbrio dos fluxos entre fronteiras. A tese de um desenvolvimento "sem reservas nem coações" dos fluxos, defendida por Washington, não é isenta. O Bureau International du Travail (BIT) e as confederações sindicais manifestam sua inquietude em relação às implicações da informatização para o emprego [Jacobson, 1979; Rada, 1982].

O debate sobre o free flow of information

Os anos 1960 podem ser considerados a apoteose do debate internacional sobre a doutrina liberal do free flow of information defendida pelo Departamento de Estado ame- rica no (ver capo 111).A entrada em cena do movimento dos países não alinhados confere a esse debate uma dimensão que ele não tinha quando o enfrentamento nas instâncias da comunidade internacional se resumia a uma oposição entre os Estados Unidos e a União Soviética. Os debates que ocorrem na Unesco dizem respeito ao reequilíbrio dos fluxos de informação por serem eles muito desproporcionais no sentido Norte/Sul. Os Estados do Sul defendem a necessidade de instaurar uma "Nova ordem da informação e da comunicação" (NOMIC). Uma reivindicação que, embora permita a muitos se livrar de sua responsabilidade na ausência de transparência e de liberdade de imprensa no terceiro mundo, não deixa de levantar um real problema ligado à amplidão. O relatório da Comissão para o estudo dos problemas das comunicações estabelecida pela Unesco e presidida pelo irlandês Sean McBride, prêmio Nobel da paz e co-fundador da Anistia Internacional, ateia fogo à pólvora [McBride, 1980]. Os Estados Unidos de Ronald Reagan e o Reino Unido de Margaret Thatcher usarão como pretexto a "politização" dos debates para fechar a porta do organismo internacional (respectivamente em 1985 e 1986), logo

seguidos por Singapura. Isso era desprezar a observação feita por Marc Porat em seu relatório oficial sobre a economia da informação: "A questão é totalmente política, não técnica" [Porat, 1978, p. 78].O certo é que a contestação geral do desequilíbrio dos fluxos e da doutrina do Departamento de Estado tem como efeito notório a aceleração, dentro do próprio establishment político, da reflexão sobre as implicações geoestratégicas da sociedade da informação. Em 1977, o Comitê das relações exteriores do Congresso organiza as primeiras audiências (hearings) sobre a "era da informação". A comissão, presidida pelo senador George McGovern, ouve responsáveis pela mídia, donos de empresa, universitários, líderes sindicais e, até mesmo, um antigo diretor da CIA. As audiências avalizam a definição da informação como "novo recurso nacional". Do relatório publicado sob o título The New World of Information Order destacam-se três questões que permanecem na ordem do dia: "Como se pode aumentar o fluxo da informação com o fim de melhorar o futuro de toda a humanidade sem desrespeitar a vida das pessoas privadas, o direito de propriedade dos dados e a segurança nacional? Como se pode, ou se poderia, conciliar o desejo do segundo e do terceiro mundos de controlar os setores de informação de suas próprias

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sociedades com a tentativa de permitir um livre fluxo da informação no mundo inteiro? Como o governo pode assegurar a segurança dos Estados Unidos e preservar seus interesses econômicos ao

mesmo tempo que ajuda a satisfazer as necessidades das nações em via de desenvolvimento, e ganhar sua cooperação? [Kroloff e Cohen, 1977].

Em 1980, depois de quatro anos de trabalhos, o Conselho da Europa adota uma "convenção para a proteção das pessoas diante do tratamento automatizado dos dados de caráter pessoal". Ela tem poder coercitivo. A inovação capital é que, em seu artigo primeiro, estabelece-se que cada um, "qualquer que seja sua nacionalidade ou residência", pode se prevalecer das garantias e dos direitos enunciados. No mesmo ano, por sua vez, a OCDE adota uma recomendação sobre os "fluxos transfronteiras de dados de caráter pessoal" que vai no mesmo sentido. Ambos os documentos pedem que cada Estado não edite regulamentações que, sob o pretexto de proteger a vida privada, se oporiam à livre circulação de dados nominativos. Vinte anos depois, a ambigüidade evidente dessa cláusula reacenderá a contenda euro-americana. A ocasião será criada com a entrada em vigor, em outubro de 1998, da Diretriz da União Européia sobre a proteção dos dados pessoais. As autoridades americanas e os global marketeers verão nela um entrave à constituição de bancos de dados e ao estabelecimento dos perfis dirigidos e "traçáveis", indispensáveis instrumentos de comércio eletrônico.

Em 1979, dois acontecimentos muito diferentes, a Conferência Administrativa Mundial do Rádio (WARC) e o projeto Interfuturos da OCDE, fazem pressentir a complexidade da questão da implantação das novas técnicas. A primeira volta a expor a questão da redistribuição das freqüências (monopolizadas desde o início do século pelas grandes potências marítimas). Organizada pela União Internacional das Telecomunicações, ela deixa entrever o deslocamento dos debates sobre a sociedade do futuro para organismos de competência técnica em detrimento de instituições com vocação cultural como a Unesco [Smythe, 1980]. O segundo acontecimento, que tem como objeto o estudo da "evolução futura das sociedades industriais avançadas em harmonia com a dos países em desenvolvi- mento", interroga-se sobre o "salto qualitativo decisivo" que significa desse ponto de vista a microeletrônica. O subtítulo é sugestivo sobre as incertezas que pavimentam o caminho rumo à sociedade da informação: Diante dos futuros: para um domínio do verossímil e para uma gestão do imprevisível [OCDE, 1979]. Em 1977, a IBM orquestrou sua primeira campanha publicitária em torno do advento da "era da informação".

A desregulamentação

Os operadores globais

Os anos 1984-1985 constituem um período de transição. Por um lado, ao abrir sem restrições o espaço mundial aos movimentos de capitais, a desregulamentação da esfera financeira mostra uma primeira imagem magistral das redes da economia global ao mesmo tempo que indica o risco de crise na ausência de mecanismos de regulação supranacionais. Por outro, o desmantelamento (divestiture) da ATT, efetivado no dia 10 de janeiro de 1984, desencadeia uma onda de choque mundial que precipita a liberalização das telecomunicações com base na mudança tecnológica (digitalização, redes de alta performance, optoeletrônica, aumento da capacidade das memórias e diminuição dos custos). Na Europa, o governo neoliberal da Inglaterra toma a dianteira ao privatizar a British Telecom em 1984. Obrigados a se dobrar à lei da concorrência, os

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serviços públicos das telecomunicações encaminham-se gradualmente para um estatuto que lhes permita operar fora de suas fronteiras. O processo se tomará irreversível em janeiro de 1998, data da entrada em vigor do acordo sobre a abertura dos mercados à concorrência assinado no ano anterior por 68 governos, depois de três anos de negociações no quadro da Organização Mundial do Comércio (OMC), sucessora do GATT. Fora o fato de que certos signatários se reservaram o direito de fixar um limite ao investimento das empresas estrangeiras (tal como o Brasil, o Canadá ou o Japão, por exemplo) no sistema nacional de telecomunicações, mais da metade dos 135 membros desse organismo comercial não haviam aderido a esse acordo até 2000. Ao contrário da União Internacional das Telecomunicações, que faz parte dos organismos especializados do sistema das Nações Unidas e em que cada país membro dispõe de um voto, no que diz respeito à OMC cada país está livre para aceitar acordos que são essencialmente elaborados pelos países da tríade cujos interesses são sobre-representados.

A passagem ao estatuto concorrencial tem repercussões sobre o conjunto do sistema comunicacional. Há uma batalha para figurar entre os raros operadores globais, capazes de oferecer serviços de telecomunicações (telefone, transmissão de dados etc.), graças a uma rede dita sem costura. Seu campo de competência está sempre em expansão. As fusões-aquisições e as participações cruzadas imbricam cada vez mais as indústrias de conteúdo e os operadores dos canais de informação. De oferta em oferta, de concentração em concentração, de tecnologia em tecnologia, essas megaoperações de aproximação dos conteúdos e dos vetores se sucederão a tal ritmo que seria fastidioso enumerá-Ias [McChesney, 1997]. Apoteose da união das redes da "nova economia" e da "economia real": a compra, em janeiro de 2000, pela AOL, primeiro fornecedor mundial de acesso à Internet, do maior grupo mundial de multimídia, a Time-Warner. A ambição da AOL pode ser lida nas paredes de sua matriz: AOL everywhere, for everyone. Estar presente desde a produção do conteúdo até sua difusão, em todos os suportes existentes e por vir! A essa megafusão responderá, alguns meses depois, outra megafusão a partir do "campeão nacional" francês: Vivendi-Universal-Canal +.

A promessa das infovias

Em 1987, o Livro Verde sobre as telecomunicações dá o primeiro passo para o ajuste dos países membros da União Européia, tendo em vista a elaboração dos termos de uma política pública comum no domínio. O documento preconiza a abolição dos monopólios nacionais e esboça uma problemática das redes de informação como elemento da construção do mercado único. Durante a década seguinte, nada menos que três diretrizes balizarão o caminho rumo à liberalização, à plena concorrência e ao serviço universal.

Em 1993, os Estados Unidos lançam o programa de National Information Infrastructure. A União Européia logo a seguir. O Livro Branco apresentado no final do ano por Jacques Delors sobre o crescimento, a competitividade e o emprego oferece o quadro no qual deve ser pensada a resposta ao projeto americano de infovias. Emerge desse documento programático que enumera os "desafios" e traça as "pistas" para "entrar no século XX!" uma preocupação maior: o desemprego. Os relatórios sobre a sociedade da informação e as infowalfs elaborados pelas instâncias nacionais como o relatório Théry na França, a Information Society Initiative no Reino Unido ou o Info 2000 alemão revelam que a Europa está longe de falar a uma só voz. Por ocasião da formulação de uma estratégia de implantação de infovias, ressurgem em cada realidade as especificidades nacionais que remetem a configurações particulares de atores inscritos nos contextos institucionais, culturais, industriais e políticos diferentes (VedeI, 1996).

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Em março de 1994, o projeto americano de infovias se metamorfoseia em trampolim de uma estratégia mundial. AI Gore propõe a construção de uma Global Information Infrastructure (GIl). O local em que ele faz seu comunicado é sugestivo. Em Buenos Aires, capital de um país que escolheu a via neoliberal, e diante de um público de delegados da conferência plenária da União Internacional das Telecomunicações. Uma conferência colocada sob a égide do tema das telecomunicações e do desenvolvimento. Seu discurso inaugural inscreve-se em uma linha profética: "A GIl oferecerá uma comunicação instantânea à grande família humana [...]. Vejo nela uma nova era ateniense da democracia que será forjada nos fóruns que a GIl criará" [Gore, 1994]. O objetivo confesso dessa vasta cruzada é a abolição dos grandes desequilíbrios sociais. A desregulamentação dos sistemas nacionais de telecomunicações é uma condição prévia para se conseguir a oferta tecnológica. O vice-presidente democrata teve pouca inspiração ao citar o caso do México a título de ilustração dos grandes sucessos das políticas neoliberais de abertura dos mercados. Poucos meses após a reunião de Buenos Aires, o aluno mais brilhante das políticas de ajuste estrutural do Banco Mundial mergulha em uma crise financeira sem precedentes que chega à beira do colapso social, enquanto de Chiapas o movimento neozapatista cria um novo modelo de resistência à ordem neoliberal, apropriando-se da rede das redes. Também em 1994, a noção de "nova economia" aparece nos discursos oficiais.

O projeto americano da National Information Infrastructure

Durante a campanha presidencial de 1992, AI Gore, companheiro de chapa de Bill Clinton, introduz o tema das infovias, unindo-se assim aos industriais do Silicon Valley, tradicionalmente republicanos. No ano anterior, Robert Reich havia desenvolvido os fundamentos econômicos e políticos daquilo que se tornaria o projeto da National Information Infrastructure. Esse economista, futuro ministro do Trabalho no primeiro mandato do presidente Clinton, demonstra que, em uma economia globalizada, a venda de “serviços de manipulação de símbolos” não tem limites e que os Estados Unidos são os que estão melhor para ganhar essa aposta da engenharia da informação, obtendo sobre seus concorrentes uma vantagem competitiva essencial [Reich, 1991]. Com a condição, porém, de reduzir o déficit de “manipuladores de símbolos”. Desde sua posse, Clinton instala uma comissão: o Advisory Council on the National Information Infrastructure. Criação maciça de empregos qualificados e bem remunerados, reforma do sistema

educativo, acesso de todos à assistência médica e a políticas de saúde, reinvenção da democracia direta, essas são as promessas do projeto. Ora, o hiato entre o discurso sobre as próteses técnicas e a realidade de uma política social aumenta rapidamente. O objetivo central da assistência à saúde é revisado para baixo pelo abandono do canteiro reforma em profundidade do sistema de assistência médica. Abandono que pode suscitar somente o temor de ver os usos do telediagnóstico e da telemedicina reforçarem o caráter segregacionista do dispositivo posicionados da saúde. Quanto ao sistema educativo, o Estado renuncia a bloquear a crise que o afeta. Assim é atrasado um nivelamento das formações, que teria sido coerente com a hipótese do grande projeto tecnológico: construir a prosperidade e o crescimento do país diversificando as competências e as qualificações. Comentário de Robert Reich sobre essa aposta abortada: “É em parte por causa do déficit do orçamento, mas isso não foi provocado apenas pelo governo federal. Os governadores dos Estados e os governos locais também

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querem efetuar menos investimentos do que seria necessário. Os Estados gastam, por exemplo, mais em construção e manutenção de prisões que com o ensino superior” [Reich, 1997, p. 69]. Quanto à participatory democracy para um interactive citizen, ela se reduz principalmente aos artifícios de uma política de comunicação baseada na difusão de sites para o "cidadão

interativo", a começar pelo da Casa Branca, que informa esse cidadão das políticas oficiais. Despido assim de seus adornos sociais, ainda resta o registro das orientações econômicas: uma "guinada histórica para nosso comércio", as infovias tornam-se "essenciais à competitividade e ao poderio econômico dos Estados Unidos", segundo o presidente.

O relatório Bangemann sobre A Europa e a sociedade da informação planetária (global society of information), publicado em maio de 1994, pretende ser uma adaptação à nova situação. Preparado por um grupo de especialistas provenientes da indústria das telecomunicações e do audiovisual, o documento preconiza uma liberalização rápida das telecomunicações, aumentando os ganhos de produtividade, o desenvolvimento das inovações tecnológicas e o pluralismo cultural. O documento enfatiza que "quando os produtos forem mais facilmente acessíveis aos consumidores, as possibilidades de expressar a diversidade das culturas e das línguas que abundam na Europa serão multiplicadas". Ele deplora a existência de obstáculos a essa plena circulação (e, portanto, à liberdade de expressão) pressupostos pelos freios à concorrência, tal como as políticas de restrições aos produtos culturais (cotas, propriedade intelectual). O espírito desse relatório é totalmente diferente do que animava o Livro Branco apresentado por J. Delors alguns meses antes. Este último, com efeito, havia indicado a importância do Estado e das políticas públicas.

No final de fevereiro de 1995, os países mais ricos, no G 7, ratificam em Bruxelas o conceito de global society of information, ao mesmo tempo que reiteram solene- mente sua vontade de chegar o mais rápido possível à liberalização dos mercados das telecomunicações. Essa reunião de cúpula é a primeira consagrada a esse tema. Nela, AI Gore pronuncia um discurso sobre a "Promessa de uma Nova Ordem Mundial da Informação". Para construir as infra-estruturas informacionais, recorre-se à iniciativa do setor privado e às virtudes do mercado. Mais de cinqüenta responsáveis das grandes empresas eletrônicas e aeroespaciais da Europa, dos Estados Unidos e do Japão foram convidados para essa reunião histórica. Nenhum dos representantes da sociedade civil teve qualquer associação com ela. A conclusão final, entretanto, ousa se colocar sob a efígie do "enriquecimento humano" (human enrichment).

Em julho de 1997, o presidente Clinton expõe a doutrina de Washington sobre o comércio eletrônico: os governos devem respeitar a natureza original desse meio e aceitar que a concorrência global e as escolhas do consumidor definem as regras do jogo do mercado digitalizado. Em dezembro, sai um novo relatório Bangemann sobre a convergência das telecomunicações, das mídias e das tecnologias da informação. O tom interrogativo que o redator desse Livro Verde adota voluntariamente ao apresentar três opções (adaptação das regulamentações existentes, regime regulamentar mais brando apenas para os novos serviços, reforma completa) esconde manifestamente uma argumentação que só faz acentuar as propostas muito liberais do relatório precedente sobre a sociedade global da informação: a convergência tecnológica põe em causa os princípios subjacentes às diferenças de tratamento regulamentar ao mesmo tempo entre os setores e os Estados-membros; o "meio ambiente global" não pode aceitar uma regulamentação excessiva ou inapropriada; o desafio lançado por uma sociedade da informação construída na

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abundância a uma regulamentação fundada na penúria é indissociável do desafio da mundialização. Em suma, o excesso de regras não se casa bem com a necessidade geoeconômica. Entretanto, não será essa opção mínima que os membros da União adotarão no final do debate sobre esse relatório. Um consenso será forjado em tomo da simples adaptação das regulamentações existentes.

Em março de 2000, na cúpula econômica e social européia de Lisboa, a União Européia se propõe como objetivo estratégico "tomar-se a economia do conheci- mento mais competitiva e mais dinâmica". A definição da missão dos sistemas educativos é evasiva: adaptar-se "tanto às necessidades da sociedade do conhecimento como à necessidade de aumentar o nível de emprego e de melhorar sua qualidade". Ainda nada sobre os conteúdos e sobre os usos, salvo se se considerar que há uma menção explícita à necessidade de os professores se transformarem em usuários da Internet. Assim como a constituição da Europa social permanece limitada a prescrições mínimas, a Europa da educação não é consensual. As políticas educacionais, a exemplo das políticas sociais, continuam a ser responsabilidade dos Estados-membros. A subordinação às políticas econômicas de curto prazo, pontuadas por uma série de encontros (liberalização dos mercados de capitais em 1990, mercado único em 1992, moeda única em 1997, depois 1999), está estruturalmente inscrita na "Constituição da Europa". Único poder político realmente europeu: o Banco Central. Daí o vazio criado pela ausência de uma política clara de longo prazo [Fitoussi et al., 2000]. Indústrias culturais e convergência A abertura, em 1986, do oitavo ciclo das negociações comerciais multilaterais, no seio do GATT (acordo geral sobre as tarifas aduaneiras e o comércio, limita a questão do intercâmbio cultural somente ao perímetro europeu, no qual o confinavam até então as políticas comunitárias de harmonização dos sistemas publicitários e audiovisuais. Durante esse novo ciclo, batizado de Uruguay Round, a cultura e a comunicação são oficialmente integradas nas nomenclaturas do GATT sob a rubrica "serviços", e tratadas como tais. A ratificação desse organismo técnico como local de prescrição política no domínio manifesta-se na ocasião das negociações entre os Estados Unidos e a União Européia em torno da aplicação da livre-troca às indústrias culturais. O braço de ferro é concluído em Bruxelas em dezembro de 1993 com a adoção da tese da "exceção cultural" (expressão que será abandonada seis anos depois, por pressão francesa, em benefício da de "diversidade cultural"): a cultura escapa ao tratamento livre-cambista. O

consenso entre os parceiros da União foi obtido in extremis, pois alguns deles questionavam não apenas a eficiência mas também o próprio princípio de tais medidas. Além disso, no interior dos próprios países mais favoráveis à exceção cultural, como a França, a posição governamental entrou em confronto com as estratégias dos grandes grupos ou "líderes nacionais" multimídia, desejosos de atingir o tamanho crítico no mercado mundial e, portanto, adversários de todas as formas de protecionismo, por temor às represálias. A delegação americana fracassa em deixar fora da lei os sistemas de auxílio nacionais à produção e à difusão audiovisual assim como as medidas tomadas paralelamente pela Comunidade em 1989 na adoção da Diretriz da televisão sem fronteiras. O Departamento de Estado aprende a lição de seu fracasso e ajusta sua posição contornando o obstáculo ao procurar não separar a discussão sobre o audiovisual da que se refere às transformações tecnológicas em curso. Procurar-se-á

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que as medidas restritivas referentes aos produtos audiovisuais não se estendam aos novos serviços de comunicação e se difundirá a tese segundo a qual a convergência numérica obriga a fusão dos regimes regulamentares aplicáveis ao audiovisual e os das telecomunicações, a submeter os dois a uma norma simplificada ditada peIas "forças do mercado". Serão utilizadas todas as tribunas em que se discute a questão genérica da liberalização em termos de investimento para opor-se à tese da regulação pública no domínio cultural. Exemplo: as negociações que ocorreram entre 1995 e 1998 no quadro da OCDE, que agrupa os 29 países mais ricos, relativas ao projeto de Acordo Multilateral sobre os Investimentos (AMI). Ao propor a liberação dos investimentos privados internacionais, quaisquer que eles fossem, das limitações instituídas pelas políticas nacionais nos países-alvo, o acordo procurava anular toda regulamentação privilegiando os investimentos culturais europeus.

Sem por isso reduzir a questão da regulamentação das trocas culturais à equação técnica, é preciso reconhecer que a interpenetração crescente dos vetores da comunicação força a retirada das barreiras ao debate. Como prova disso há as controvérsias sobre o direito de propriedade intelectual, primeira

riqueza da sociedade da informação, do qual depende própria definição das noções de criação e de autor. Há o risco de que se veja – com o desenvolvimento da Internet e dos outros serviços on-line e em nome da liberalização total dos fluxos – a noção de direito autoral, definida internacionalmente pela Convenção de Berna em 1886, segundo a qual o criador é o único dono de sua obra, direitos cabem a ele ou a seus herdeiros até setenta anos após sua morte, apagar-se em proveito da concepção anglo-saxã de copyright, ou seu correspondente na era do on-line, a "licença convencionada", em que o criador cede seus direitos a um produtor que dispõe deles como bem entender, recortando ou desviando a obra de seu uso original. Ao reconhecer o princípio de propriedade intelectual inalienável, pelo viés da proteção do direito moral do autor, a União Européia ratificou em 1996 a primeira concepção em um Livro Verde sobre "Os direitos de autores e os direitos aparentados na sociedade da informação" e uma Diretriz editada no ano seguinte. Ainda resta o complexo problema do estabelecimento do dispositivo institucional que assegura o direito e o poder dos criadores de controlar as suas obras, de guardar, qualquer que seja o caminho, um direito sobre a sua difusão.

Construir um espaço de valores implicaria no mínimo que os parceiros partilhassem uma concepção mais ou menos comum das responsabilidades do poder público. Ora, está claro, por exemplo, que o liberalismo de rosto humano da "sociedade de mercado" preconizado pelo partido neotrabalhista britânico e sua "terceira via" se acomoda mal à idéia de política pública. Uma vez que o indivíduo é promovido a eixo da auto-regulação, o sistema educacional não é mais a fábrica que tende a reforçar as desigualdades sociais que devem ser remediadas, mas o local em que o indivíduo flexível constrói sua "empregabilidade" no quadro da competitividade escolar. O local em que, no presente caso, ele se torna o único responsável por seu eventual desemprego. Esse é o pragmatismo social-liberal que, na cúpula européia de Lisboa em março de 2000, dominada pelo eixo Londres- Berlim-Madri, prevaleceu especialmente na visão estritamente instrumental dos Estados da União sobre as missões dos sistemas educacionais e dos professores na passagem para a "sociedade do conhecimento".

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Entretanto, não faltam exortações que insistem na urgência de se "estimular ativamente a aquisição de conhecimentos e de competências" com o fim de "transformar a sociedade da informação emergente em uma sociedade do saber". No relatório final encomendado pela Comissão Européia a um "grupo de especialistas de alto nível", exteriores à instituição, sobre a "sociedade européia da informação para todos", publicado em 1997, lê- se especialmente sob a rubrica "Estabelecer uma rede educativa": "No que diz respeito à educação, um esforço importante se impõe tendo em vista conectar as escolas européias dotando-as de equipamentos em tecnologias da informação e da comunicação e dando-lhes um acesso preferencial, promover o desenvolvimento e a fabricação de programas de educação e de formação multimídia, assim como formar (ou reciclar) os professores e associá-los ao estudo e ao desenvolvimento desses programas. Tudo isso exigirá um esforço coordenado, para o qual instituições públicas e privadas fornecerão recursos e conteúdos. Uma vez que existe o risco de certas regiões irem mais rápido que outras, um processo intra-europeu de aprendizado e de diminuição dos atrasos deverá ser estabelecido" (Comissão Européia, 1997).

MATTELART, A. As metamorfoses das políticas públicas. In: ________. História da sociedade da informação. São Paulo: Loyola, 2002. 197p. p.107-138