martha o livro dos contos enfeiticados

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Livro De Contos

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O Livro Dos Contos Enfeitiçado

sMartha Argel

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Título: O Livro dos Contos Enfeitiçados 2006 Martha Argel Landy Livraria Editora e Distribuidora Ltda. Capa: Camila Mesquita Editora assistente: Vilma Maria da Silva Revisão: Cintia Barcellos LacerdaEditor: Antônio Daniel Abreu Editoração: Alpha Design I I 5585-9709Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)ARGEL, MarthaO livro dos contos enfeitiçados / Martha Argel — São Paulo : Landy Editora, 2006. (Coleção novos caminhos)1. Contos brasileiros I. Título06-4516 CDD-869. 93índices para catálogo sistemático:1. Contos: Literatura Brasileira 869. 93

Adriano SiqueiraCintia B. LacerdaFernando Molina

Giulia Moon

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este é para vocês, pelas baladas, risadas e parceria

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Introdução

Nas meigas non creo, pero haberlas, hailas.

Não creio em bruxas, mas que existem, existem.

Provérbio galego

Desde que surgiu como espécie, o ser humano tenta entender os fenômenos que ocorrem ao seu redor, procurando estabelecer as relações de causa e efeito capazes de explicar os acontecimentos que testemunha e que interferem em sua vida.

Quando tais relações não são evidentes, ou de tão complexas são rejeitadas pelo senso comum, surgem as explicações sobrenaturais. Evocam-se processos maravilhosos, míticos e mágicos como responsáveis por fatos de outra forma inexplicáveis, atribuídos a seres de outras dimensões — deuses, espíritos, demônios, fadas.

Às vezes, o ser responsável pelo ato mágico vive entre nós, na face da Terra, tão humano como nós mesmos, porém dotado de poderes indizíveis. Não há mitologia onde não apareçam essas pessoas especiais, com

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poderes desconhecidos. São as bruxas, as feiticeiras, os magos, os adivinhos, os xamãs, todos eles capazes de feitos assombrosos: encantamentos, feitiços, bruxedos, sortilégios, mágicas.

Detentores de conhecimentos secretos, que usam para o bem ou para o mal. Seres capazes de curar as doenças terríveis de seus semelhantes ou de infligir-lhes sofrimentos sem conta. Guardiões da espécie humana ou ameaça à comunidade. Não importa como sejam encarados. Eles nunca se enquadram perfeitamente na sociedade humana. São temidos, invejados, admirados ou odiados. Qualquer que seja o sentimento que despertem no próximo, o motivo é sempre o mesmo: o poder que não compartilham conosco, o resto da humanidade. A magia.

Um poder que está além da natureza. A capacidade de transgredir as regras da ciência, de tornar possíveis as impossibilidades.

Afinal, existe ou não a magia?Há quem acredite. Há quem negue com

veemência. E há quem diga que é como as bruxas: não interessa se cremos ou não, que ela existe, existe!

Quem pode saber se as bruxas, os feiticeiros e a magia são reais ou não? Talvez sejam frutos de nossa imaginação,

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cumprindo com eficiência o papel para o qual foram criados — explicar o que não tem explicação. Ou talvez estejam por aí incógnitos, protegidos por uma habilidade inata em ocultar sua real natureza. Quem sabe até estejam escancarados ao nosso redor, agindo às claras, muito mais protegidos pela descrença e pelo ceticismo do que por disfarces elaborados.

De qualquer forma, que tema fascinante para a ficção! Por sorte, para alguém que gosta de contar histórias, a realidade não é importante.

O importante é, justamente, enfeitiçar o seu público, fazer com que, por alguns instantes, as pessoas deixem de lado sua incredulidade, a hesitação em aceitar o fantástico. Enquanto durar essa suspensão da descrença, os contos enfeitiçados existirão em suas mentes. Será que são menos enfeitiçados por serem intangíveis? Ou será que justamente aí reside a sua magia?

M. A.

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Amarelo... Amarelo...

— Que timing horrível — pensei enquanto saía do cemitério, vestida de preto, em silêncio, os olhos baixos, com aquele ar ausente que se espera de pessoas que acabaram de perder um parente querido. E eu me esforçava em parecer bem ausente. Tinha motivos para isso. Perdera não um, mas dois parentes.

Pensando bem, nem era difícil fingir aquele ar de enterro. Tá certo que não era exatamente pela perda de meu irmão. A gente nunca se deu bem. Fazia anos que não trocávamos nem um telefonema. Também não era pela perda de minha cunhada, aquele bibelozinho que só vi no dia do casamento deles. Ah, e também no meu casamento, aliás finado casamento, uns três anos atrás. Como poderia eu esquecer, ela ficava ostentando aquele barrigão de um lado para o outro, como se fosse a única grávida do mundo.

Minha cara de velório vinha da preocupação com o que sobrara para mim. Trabalho. Dor de cabeça. A guarda de minha sobrinha. Era por uns poucos dias, é verdade, até que a tia italiana, uma irmã da mãe, viesse buscá-la, mas...

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Eles tinham que aprontar aquela palhaçada exatamente ontem! Atravessar a Avenida dos Bandeirantes em alta velocidade, com o sinal vermelho, de madrugada! E justo na hora em que duas carretas imensas apostavam corrida... Foi um milagre que Beatrix escapasse viva, e só com um galo na testa. No hospital garantiram que não havia nada de errado com ela. Precisaram de vinte e quatro horas para chegar a essa conclusão. Vinte e quatro horas que eu — eu, tão ocupada — tive de passar num quarto de hospital, como acompanhante de uma criança que jamais havia visto antes.

— Meu Deus, que timing simplesmente hor-rí-vel!

Beatrix ainda era muito novinha para entender direito o que acontecia. Alguém havia dito que papai e mamãe estavam passeando por aquele jardim bonito, e ela ia silenciosa a meu lado, depois de ouvir que não, ela não podia passear com eles porque eles estavam conversando umas coisas muito sérias. É isso que dá inventar mentira pra criança, depois tem que ir completando a mentira e a coisa vai crescendo, crescendo...

Eu disfarçava e examinava Beatrix com espanto, ciente do desconforto que me causava segurar aquela mão minúscula e

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conduzir minha sobrinha como se nunca houvesse feito outra coisa na vida. Eu, que nunca tinha feito isso! Eu, que tenho alergia a criança!

Não dava para negar que ela parecia uma bonequinha, vestida como estava com aquele vestidinho amarelo-ouro. Uma fita da mesma cor tentava pôr em ordem seus cabelos castanho-escuros, que caíam em cachos abundantes e longos. Longos cílios escuros enfeitavam os olhos azuis enormes, que acompanhavam pensativos o movi-mento dos sapatinhos amarelos à medida que caminhávamos em direção ao estacionamento.

Essa bonequinha, porém, tinha chegado no momento exato para atrapalhar completamente minha vida. Que tinha boas chances de mudar naquela noite. Quer dizer, caso eu conseguisse alguém para tomar conta da menina. Aquela noite era a noite da Festa.

Ajeitei Beatrix no banco de trás do carro. Enquanto eu colocava seu cinto de segurança e arrumava seu vestido, ela me olhou com aqueles olhos enormes e disse:

— Eu gosto de amarelo.Dei, portanto, um sorrisinho amarelo.

Que situação, meu Deus, manter uma conversação com uma criança de três anos! Uma perda de tempo.

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— Foi por isso que colocaram esse vestido bonito em você? — nada mau, estou conseguindo baixar o nível da conversa até ela.

Séria, ela balançou a cabeça.— Nããão. Ela não gosta de amarelo. Eu

é que gosto.Epa, conheço esse tom! O mesmo tom

idiota que eu uso para responder uma pergunta idiota. Irritada, fiz cara de “ah, bom!” e desisti de forçar minha natureza. Realmente, não gosto de crianças. Mas não deixei de achar interessante o fato de ter reconhecido nela alguma coisa minha. Ela era realmente minha sobrinha. Enrubesci, envergonhada com este pensamento.

Que que é isso, Valérie, orgulhosa, por ser... titia V.

Foi um alívio sair para o congestionamento e a agitação da Washington Luiz, depois da calma desconcertante do cemitério. Os sinais estavam todos malucos, talvez com algum problema de sincronismo, mudando de cor sem nenhum padrão lógico. O silêncio no carro estava enervante. Olhei pelo retrovisor. Beatrix parecia um anjinho, sentada, olhando para a frente com o pescoço esticado, como se estivesse atenta ao trânsito. Mas aquele tico de gente era tão

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baixinho! Devia estar vendo apenas postes e telhados.

Preciso comprar uma cadeirinha para ela, pensei, para me arrepender logo em seguida. Idiota, ela não vai ficar com você. Logo logo você se livra dela, graças a Deus.

O silêncio continuava me incomodando. Tentei fingir que estava sozinha no carro. Não deu certo. Pelo retrovisor continuava vendo aqueles cabelos castanhos e uns olhos azuis que, descobri com um arrepio, me perturbavam. O silêncio era insuportável.

— Vamos passar na sua casa e pegar seus brinquedos e umas roupas. Hoje você vai dormir na casa da tia — falei, fingindo animação.

Ela balançou a cabeça, concordando. Não perguntou por quê. Não perguntou pelos pais. Não fez um comentário. Menininha estranha.

É, pensei, suspirando, é mesmo minha sobrinha.

* * *

A empregada que abriu a porta estava toda arrumada, pelo visto só esperando nossa chegada para dar o fora. Não houve argumento que a convencesse a tomar conta da menina só por uma noite, só hoje.

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Não. Pago bem. Não. Por quê? Não trabalho de noite, meu marido não deixa. Mas só hoje! Não. Pago cem reais. Duzentos. Nem por todo o dinheiro do mundo. Por quê? Meu marido não gosta, já falei. De dia, largando às cinco, tudo bem, se a senhora quiser eu fico.

De dia não me interessa, já tenho minha faxineira.

Derrotada, acertei as contas com ela e paguei o que minha cunhada já não poderia pagar. Ela concordou em ficar um pouco mais para me ajudar a fazer as malas da menina. Ela gostava muito de Beatrix.

Separando as roupas de Beatrix, estranhei a quantidade de vestidos amarelos. Comentei isso com a empregada e recebi em troca um olhar meio torto.

— Ela gosta de amarelo. A senhora não sabia?

Tudo bem, estava acostumada a reações como essa. O quê, você não gosta de crianças? Cadê seu instinto maternal? Tia desnaturada, nem conhece sua sobrinha? Diabos, merda de sociedade machista! Homem pode tratar criança como se fosse uma peça de mobília, ou um arbusto na paisagem, ou ignorá-la como se não existisse. Mulher não, tem obrigação de gostar dos filhos dos outros, de nenê mijado, de criança com o nariz escorrendo, do

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moleque que acaba de derrubar guaraná no estofado.

Como Beatrix ia ficar comigo poucos dias, decidi levar só alguns vestidinhos, os que eu achasse mais bonitos. Não me preocupei com as cores e separei os mais engraçadinhos, para só depois perceber que eram todos amarelos. Os tons variavam. Uns, de tecido mais fino, tinham cor suave, quase um branco amarelado. Outros, de pano mais grosso, tinham cores fortes, como aquele ali, de linho, quase alaranjado. Cor estranha para uma criança. Mas não pude deixar de admitir que minha sobrinha, se é que havia sido ela quem escolhera os vestidos, tinha bom gosto. Um gosto parecido com o meu.

* * *

Antes de ir embora, algum instinto maternal há muito extinto ressuscitou dentro de mim e, por uns vinte minutos, interroguei impiedosamente a empregada acerca do mundo de Beatrix e de sua família. Talvez não tanto por preocupação com a criança, mas porque procurava alguma pista, alguma saída para meu dilema: que fazer com Beatrix hoje à noite, quando eu fosse à Festa? Quem ia tomar conta dela?

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Os resultados foram decepcionantes. A mãe de Beatrix, italiana, não tinha parentes no Brasil.

Também não tinha grandes amigas. Amizades superficiais no clube, conhecidas no cabeleireiro. Sua vida social era com os clientes, os sócios, os amigos de meu irmão e suas famílias, num contato sempre muito formal. Meu irmão era mal-humorado e fechado, vivendo só para o trabalho. Dá para imaginar porque se casou, para exibir uma esposa bonita e elegante nos coquetéis, e para isso tinha escolhido a mulher perfeita. Não tinha amigos, tinha negócios. Não ia a festas, fazia contatos. Eu, hein? Vida besta! Pra acabar como acabou.

Tampouco Beatrix tinha amigas. Não ia à escola. Não brincava na rua (mas também, hoje em dia, criança nenhuma brinca na rua, não é?). Era uma menina quieta e curiosa, que ficava horas trocando os vestidos de suas bonecas ou examinando as flores e as formigas no jardim. Sabendo o que iria encontrar, dei uma espiada nas bonecas e no jardim: roupas amarelas e rosas amarelas. Não vi as formigas, seriam também amarelas?

Um coisa, porém, me interessou, e muito. Já que não tinham ninguém para tomar conta dela, Beatrix acompanhava os pais em seus compromissos noturnos.

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Festas, jantares, concertos, vernissages, Beatrix sempre estava lá, até altas horas da madrugada, junto com papai e mamãe, comportada como uma lady. Uma lady curiosa, que olhava embaixo das toalhas e atrás das cadeiras, mas com graça e dignidade, sem atrapalhar ninguém e encantando a todos.

Um plano de emergência estava se formando em minha cabeça. Em último caso, não havendo outro recurso, Beatrix iria à Festa!

Quando nos despedimos da empregada, ela abraçou Beatrix com ternura.

— Cuida dela direitinho, ela é muito especial.

— É, sim. Eu sei — respondi àquele chavão sem pensar, mas a reação dela me surpreendeu.

— Não, não sabe — virou as costas e se afastou pela calçada, em direção ao ponto de ônibus.

* * *

Antes de ir para casa, passamos num shopping. É, eu sei que é uma tremenda falta de sensibilidade levar para fazer compras num shopping uma criança que acabou de enterrar os pais. Mas não tenho

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culpa se eles escolheram morrer bem na véspera da Festa. Além do mais, ela nem parecia estar se importando muito, e olhava maravilhada para todas as direções. Claro, todas as direções onde houvesse algo... amarelo.

Agora que tinha decidido levar minha sobrinha à Festa, eu estava quase alegre. Estava imaginando a cena: eu ia chegar, deslumbrante como sempre, num vestido preto minúsculo, com um salto altíssimo, levando Beatrix, com um lindo vestidinho cor-de-rosa, pela mão. Não, peraí. Bosta, salto altíssimo não, senão como é que vou alcançar a mão da menina? Saltinho. Merda, isso vai prejudicar meu visual, mas não tem jeito. Dane-se, já sou alta mesmo, um saltinho não é problema.

Numa loja de roupas para crianças, escolhi um vestidinho cor-de-rosa e branco, vaporoso, cheio de babados e com mangas fofinhas. Com meia-calça branca, sapatinhos cor-de-rosa e um laçarote rosa nos cabelos, Beatrix estava tão engraçadinha que impressionou as funcionárias. Duas ou três pessoas que passavam pelo corredor para-ram na porta da loja para olhar minha sobrinha. Minha sobrinha! Valérie, Valérie...

Beatrix se olhava no espelho, vaidosa, virando de um lado para outro para fazer a saia balançar. A menina era uma fonte

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constante de assombro. Achei que fosse fazer a maior cena e exigir um vestido amarelo, mas ela parecia perfeitamente feliz com aquele. Incrível, não?

Que bom que a trouxe ao shopping, pensei, mais para acalmar minha consciência por não estar desconsolada pela morte de meu irmão, ela parece tão contente...

* * *

Chegamos em casa pouco antes da hora do almoço. Raquel, minha faxineira, já havia aprontado a refeição. Ela se encantou com Beatrix.

— Que menina bonita, viçosa, dona Valéria — ela não se convencia de que agora eu era Valérie, em francês, mais elegante, mais artístico, mais sei lá.... Mas não a corrigi. Para dizer a verdade, nem me importei. Eu estava orgulhosa de minha sobrinha.

— E você precisa ver como ela fica no vestidinho que comprei pra ela — falei, toda animada, enquanto desembrulhava as compras. Raquel não estava chocada com minha alegria, um dia depois da morte de meu irmão. Ela me conhecia.

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Continuei falando enquanto tentava abrir o pacote do vestido, preso com metros de durex.

— Ela vai à festa comigo. Comprei um vestido cor-de-rosa lindo e sapa...

Esqueci o que estava dizendo quando tirei o vestido do meio dos papéis. Amarelo!

Igualzinho ao que tinha escolhido. Mas amarelo.

Amarelo clarinho, com enfeites brancos. Beatrix olhava o vestido, encantada.

— Mas dona Valéria, o vestido é amarelo.

— Não entendo, a gente escolheu um cor-de-rosa — olhei para Beatrix. — Não foi, Beatrix?

A criança parecia radiante e batia palmas.

— Eu gosto de amarelo! Eu gosto de amarelo!

Fiquei furiosa.— Aquelas incompetentes da loja

embrulharam o vestido errado. Mer... — engoli o palavrão, não queria falar coisas feias na frente de Beatrix. — Droga, eu com tanta coisa pra fazer à tarde e vou ter que voltar lá pra trocar essa porcaria.

— Mas dona Valéria, essa cor é tão bonita, orna tanto com os cabelos da

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menina. E ela gosta tanto, olha só a felicidade dela...

Beatrix continuava olhando embevecida para o vestido. Mas eu não ia me acalmar assim tão fácil. Odeio ser mal atendida em lojas. Abri a caixa do sapato. Amarelo. No mesmo tom do vestido. O embrulhinho da fita. Amarela, só um pouco mais escura. Fiquei mais enfurecida ainda. Isso não era engano! O pessoal da loja tinha era aprontado comigo, deviam todas estar se divertindo às minhas custas. Isso não ia ficar assim! Eu era capaz de desistir do cabeleireiro só para ir ao shopping rodar a baiana com aquelas irresponsáveis.

* * *

Comemos em silêncio. Eu estava espumando de raiva. Beatrix deve ter percebido. Comia quietinha, sem reclamar. Insensível, nem perguntei o que ela gostava de comer, mas ela devia estar achando bom, porque não fez nenhum comentário sobre a comida. Mas eu tinha certeza de que ela estava gostando das batatas-fritas e do suco de maracujá. Assim como tive certeza de que não era a eles que se referia quando, com muita seriedade, me disse:

— Tia, eu gosto de amarelo!

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Disse isso com tanta cerimônia que me arrepiei. Eu estava ficando preocupada. Comecei a imaginar se Beatrix era normal. Se essa obsessão pelo amarelo não seria um sintoma de algum problema mais sério, uma fixação, uma mania, sei lá.

Lembrei-me, com um arrepio, de alguém me contando que uma testemunha do acidente havia dito que, quando meu irmão atravessou a avenida, o semáforo estava amarelo para ele. Imaginei Beatrix no banco de trás, pescocinho esticado, olhando as luzes amarelas, feliz, sem saber que duas carretas iam mudar para sempre sua vida. Me imaginei no lugar dela. Me imaginei sobrevivendo ao acidente. Me imaginei para sempre neurótica com semáforos no amarelo...

Mas não, isso é bobagem, a menina nem sabe pra que serve um semáforo. A empregada disse que ela sempre gostou de amarelo. Daí a atenção quando anda de carro. Ela quer ver as luzes amarelas, só isso.

E ela tinha me chamado de tia. Pela primeira vez, ora vejam só...

* * *

Depois do almoço voltei ao shopping. Beatrix foi comigo. Confesso que, contra

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minha vontade, estava fascinada por ela. Ela me intrigava, e passei a suspeitar de que escondia algum mistério. Mas que mistério pode guardar uma criança de três anos?

A 23 de Maio estava miraculosamente livre. Eu estava com pressa e apertei fundo o acelerador, desviando com facilidade de um ou outro motorista mais lerdo. Sentada no banco de trás, o rostinho voltado para o vento que agitava seus cabelos, Beatrix era a própria felicidade.

— Eu gosto do seu carro, tia!Ufa, ela virou o disco! pensei com

alívio, notando que ela continuava me chamando de tia. Eu, tia! Estranho, mas isso me dava uma certa satisfação.

Na loja, como era de se esperar, ninguém sabia como aquilo tinha acontecido, foram pedidos milhões de desculpas e claro que nós vamos trocar o vestido, o sapato, a fita. A gerente olhava irritada para a vendedora confusa. Ao sair da loja, com um novo embrulho, que desta vez continha, com certeza, um vestido cor-de-rosa, ainda ouvi a moça se desculpando, perplexa.

— Mas, dona Neide, não dá pra enten-der, a gente nem tinha recebido esse modelo em amarelo...

De mãos dadas com Beatrix, que a meu lado acompanhava com seus passinhos

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miúdos os meus passos apressados, tomamos o elevador. Enquanto descíamos até o piso do estacionamento, olhei para minha sobrinha. Ela levantou aquela carinha adorável e me olhou sorrindo. Sorri para ela.

— Tia, eu gosto do seu carro.— Eu sei, querida, você já disse — acho

que eu realmente estava gostando dela. Bolas, uma criança é só uma criança. São todas iguais. Exceto Beatrix, e isso eu já ia descobrir.

As portas do elevador se abriram. Indo em direção ao lugar onde havia estacionado o carro, procurei-o com os olhos, como todo motorista paulistano costuma fazer, sempre com a vaga e desagradável impressão de que não vai encontrar seu carro no lugar onde o deixou.

Algo estava errado. Apertei com mais força a mãozinha quente de uma Beatrix saltitante de alegria.

Eu não via meu Vectra azul-escuro. Olhei ao redor. O código de cores e letras pintado nas colunas do estacionamento me dizia que eu estava no lugar certo, mas eu não via meu carro.

No lugar onde ele deveria estar havia outro Vectra.

Amarelo.Beatrix sorria.

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— Tia, eu gosto do seu carro! Seu carro é bonito! Eu gosto de amarelo!

* * *

Em casa, eu observava Beatrix dormindo no sofá, derrotada pela exaustão gerada pelo acidente, hospital, enterro e shopping, em combinação com vários copos de suco de maracujá.

Eu estava aterrorizada.Meu Deus, o que estava acontecendo?Especial, dissera a empregada. Ela

sabia. Eu é que não imaginava o quão especial ela era.

Beatrix gostava de amarelo. Seus vestidos eram amarelos. Mas não todos, provavelmente apenas os que ela achava bonitos. Lembra-se, Valérie, de que você escolheu só os que achava mais bonitos, e todos eram amarelos? Não me surpreendi muito ao abrir os pacotes e encontrar de novo um vestido amarelo, sapatos amarelos, uma fita amarela.

As roupas das bonecas. As rosas do jardim. Meu carro.

As luzes dos semáforos... Não era coincidência nem defeito que todas mudassem para o amarelo quando íamos passar. Era Beatrix, brincando com as luzes bonitas!

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Fiquei gelada de terror. O acidente que matou seus pais. Que dissera o motorista de uma das carretas? Que o sinal estava verde para ele. Que havia dito a testemunha? O sinal vermelho mudara para amarelo de um momento para outro. Amarelo. Fechei os olhos e imaginei a cena. A família voltando para casa de madrugada, depois da festa. Meu irmão e a mulher levemente alcoolizados e com os reflexos prejudicados. Beatrix, que deveria estar dormindo, mas que não estava, sentada no banco de trás, pescocinho esticado para poder ver as luzes bonitas. Não, vermelho é feio. Amarelo. O pai, alegrinho, desatento, seguiu em frente. Tampei o rosto com as mãos e chorei. Chorei por meu irmão e por minha cunhada. Pela responsável por suas mortes: um anjinho de olhos azuis e cabelos castanhos, que nem imaginava o que fizera.

* * *

Eu estava transtornada. Olhava para Beatrix com medo, com repugnância. O que era aquilo?

Minha sobrinha? Não, não podia ser. Um monstro. Alguma coisa que eu não entendia. Aquilo era um pesadelo.

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Não, não é possível, as coisas são o que são, ninguém muda as coisas só porque quer. Eu tinha que estar enganada.

Mas foi só ir até a janela e me certificar. Lá estava, parado na garagem, um reluzente Vectra amarelo-ouro. Com aquela chapa que eu havia escolhido, VAL e o ano de meu nascimento. Raquel, espantada, perguntara se eu tinha mudado de carro. Sim, disse, e desconversei. Que bom, a senhora desistiu de trocar o vestidinho. Sim. Se a senhora não precisa mais de mim vou indo, meus filhos já devem estar me esperando. Sim, pode ir. 30 Beatrix dormia no sofá, com aquele cabelo lindo espalhado pela almofada. Ajoelhei-me para olhá-la. Não, ela não era um monstro. Era especial, como havia dito a empregada. Ela estava certa. Antes eu não sabia. Agora, sim. Lembrei-me da ternura com que ela abraçara Beatrix. Não se sente tanto carinho assim por um monstro.

Beatrix era especial. Eu ia ter de aprender a conviver com isso. Talvez algum dia entender. Mas não importava. Compreendendo-a ou não, ela era minha sobrinha. E, além do mais, em breve ela partiria. Só que isso começava a me incomodar.

* * *

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A Festa ia começar daí a umas poucas horas. Já era tarde para mudar meus planos. Estranha ou não, Beatrix teria de ir à festa comigo.

Depois que Beatrix acordou, ensaiei meu papel de mãe interina. Desconfiada, tocando em seu corpinho a contragosto, dei-lhe um belo banho e lavei-lhe o cabelo. Estava com os nervos à flor da pele, esperando que, a qualquer momento, ela dissesse “Gosto da toalha”, ou “Gosto do sabonete” e... puff! Amarelo! Mas não houve incidentes. Ela não parecia nem aí, brincando com a água da banheira e a esponja enquanto resmungava alguma música que só as crianças conhecem.

Estranho. Penteava os cabelos dela e percebia como era agradável a sensação de fazê-lo. Herança de nossos avós macacos, pensei, fascinada. Entre os primatas, cuidar da pelagem uns dos outros sempre foi um ato muito íntimo, que aumenta a união entre os membros da família. Pelo visto isso ainda funcionava.

Coloquei seu vestidinho, seus sapatos e o laço, e tomei distância para olhá-la. Não, definitivamente ela não era um monstro. Não era uma bruxa. Parecia mais uma fada, assim, vestida de amarelo. Estava linda. Satisfeita, deixei-a assistindo a um vídeo

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qualquer sobre algum pintor holandês, torcendo para que ela nem achasse um saco e nem tão lindo que merecesse ser amarelo.

Arrumei-me às pressas.— Nossa, o tempo voa, já são quase

dez horas!Olhei o resultado final no espelho.

Deslumbrante, é claro.E foi assim, deslumbrante, que apareci

na sala.Beatrix tirou os olhos da televisão e

ficou deslumbrada.— Tia, que bonito!Fiquei envaidecida. Beatrix tinha o

mesmo bom gosto que eu.— Gosto do seu vestido!— NÃÃÃO!Tarde demais. Eu teria de ir à Festa de

amarelo.

* * *

— Que gracinha sua sobrinha!— Que lindinha!— Parecida com você!No caminho havia me preocupado com

o que aconteceria se Beatrix achasse bonito o vestido de alguma convidada. Mas agora via, aliviada, não haver qualquer motivo para apreensão. Se o gosto de Beatrix era realmente parecido com o meu, ela deveria

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estar achando medonho aquele bando todo de mulheres ricas e bregas.

— Valérie! Você está deslumbrante de amarelo! Não sei porque sempre teimou em usar preto.

Ouvindo aquela voz que tanto conhecia, percebi que estava nervosa. Afinal, estava chegando a hora.

— Emygdio!— E que beleza de sobrinha —

continuou o homem que usava um terno perfeito, enquanto me abraçava. — Por que você a escondeu de nós todo esse tempo?

— Ela veio morar comigo hoje. Só por uns tempos. Os pais dela... morreram... on-tem... um acidente... — ora, ora, para meu espanto, a tristeza e o nó na garganta ao dizer isso eram verdadeiros.

— Oh, lamento muito. Meus pêsames — voz e face se entristeceram por segundos, para voltarem a brilhar quase imediatamente. Afinal, — ele era o dono da Festa. — Mas estou impaciente para ver sua obra. Bom, não só eu, acho que todos por aqui.

E olhou ao redor, triunfante. As pessoas mais próximas, que acompanhavam a cena, pegaram a deixa e pararam de fingir que não estavam atentas à nossa conversa, concordando com entusiasmo.

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Com um braço à volta de minha cintura, o anfitrião me carregou num tour pela Festa. Eu era a prova viva de seu faro infalível de caçador de talentos. Não sei quantas vezes ouvi-o contar, para esta e para aquela socialite, de que forma ele havia descoberto a então obscura Valérie de Guillemot numa obscura coletiva numa obscura galeria de arte paulistana. A arrogância, a vaidade, a frivolidade de Emygdio Paranhos de Assumpção me irritavam, mas sem ele eu ainda seria Valéria Rodrigues, e não “a mais nova queridinha do circuito cultural-chique da Paulicéia Desvairada”, como me definiu certa despeitada colunista social.

O fato é que ele, uma das estrelas mais brilhantes da sociedade paulistana, e com uma fortuna de primeira grandeza, me encomendou uma obra, às escuras. Tanta era a confiança que tinha em mim que, mesmo sem ver o trabalho, ele estava certo de que seria uma obra-prima, e dizia isso a todos. Na Festa, toda a sociedade paulistana descobriria, junto com ele, até onde chegava a genialidade de Valérie de Guillemot!

Isso tudo até que dava um certo medo. Eu sabia que meu trabalho era bom, todos os meus professores me diziam isso. Que eu tinha talento, sensibilidade. Que parecia dar

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vida ao material. Que conseguia resultados sempre perfeitos.

Claro que eu tinha de estar nervosa.Nem ousava sonhar com o que podia

acontecer se o meu trabalho caísse no agrado daquela platéia, rigorosamente selecionada não sei se pelo bom gosto, mas ao menos pelo saldo bancário. Bem, eu imaginava quais seriam os reflexos em meu saldo bancário, caso tivesse algumas obras minhas espalhadas por aí, pelas melhores salas de estar da cidade.

Estava nervosa, sim, mas adorando a festa, e aproveitava ao máximo a sensação de ser o centro das atenções.

Perto da meia-noite, percebi que Beatrix tinha sumido.

Fiquei preocupada, mas, afinal, a menina estava acostumada com festas de adultos. A empregada tinha dito que ela não era arteira. Pedi desculpas ao antiquário rico e com mau hálito que conversava comigo e saí à caça de Beatrix.

Com uma ansiedade estranha, passei à sala vizinha. Era espaçosa e estava apinhada de gente porque era onde a ação ia acontecer. Ali, protegida por veludo cinza, minha obra esperava o grande momento.

Fui em sua direção.Sensação de catástrofe. O veludo se

mexia.

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Lembrei da empregada dizendo “ela adora se enfiar embaixo das toalhas”.

Dois sapatinhos amarelos, por trás do pano.

Apressei-me, afastando as pessoas que me separavam do veludo.

Levantei uma ponta do veludo. A luz iluminou minha obra. Com a rapidez de um raio, Beatrix levantou os olhos e conseguiu, finalmente, o que queria — ver meu quadro.

— Tia, que lindo! Que lindo!

* * *

Amarelo... Amarelo...Semanas de trabalho... Toda minha

carreira... Um futuro luminoso...Saí aos tropeções de detrás da cortina

de veludo que encobria o enorme quadro, pendurado em posição de destaque numa parede repleta de outras pinturas. Arrastava Beatrix pelo braço, e ela soluçava, assustada com minha violência. Amarelo!

Minhas cores perfeitas! Perdidas! Substituídas por amarelos e amarelos e amarelos!

Meu Deus! E agora, que faço?Algo estava acontecendo com a

multidão, que se agitava. Meia-noite, claro, hora de abrir as cortinas. Aturdida, afastei-me do quadro, espremendo-me entre as

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pessoas e arrastando Beatrix comigo. Todos olhavam na direção de Emygdio Paranhos de Assumpção, que, parado na frente das cortinas de veludo cinza, fazia algum tipo de discurso.

Eu estava perdida. Via minha carreira indo embora privada abaixo, com a descarga.

Perdida. Eu estava perdida. Aquilo parecia um pesadelo. O nó que se formou em minha garganta ameaçava sufocar-me. Encostei na parede oposta à do quadro e comecei a chorar em silêncio. Minhas lindas cores!

Fechei os olhos, desesperada. Revi mentalmente o momento em que terminei de pintar e me sentei diante do quadro para contemplá-lo. Lindo. Perfeito. Como dizia aquele professor? O domínio mágico da cor. Lembrei-me de cada detalhe, cada pincelada, tinha todas elas estampadas na memória. Meu quadro perfeito. Minha obra-prima.

Beatrix estava ao meu lado acariciando minha mão com seus dedinhos rechonchudos. Eu chorava, mansamente, as lágrimas escorrendo, os olhos de verdade fechados e os olhos da memória acompanhando cada movimento, cada curva, cada toque que o pincel fizera para recobrir com tintas e cores a superfície

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virgem da tela. Em pensamento refiz o quadro, para sempre destruído. Minhas cores, minhas belas cores!

De repente, um silêncio total.Prendi a respiração. E agora. Céus!E então um murmúrio de admiração. E

palmas. Palmas. Palmas que não acabavam.Que acontecia? Prendi a respiração e

abri os olhos. Lá estava meu quadro perfeito. Ainda perfeito. Inacreditavelmente perfeito em suas cores. Em minhas cores.

E Beatrix apertando minha mão, me olhando, feliz.

A mágica das cores!Beatrix era minha sobrinha. Ela era

minha. E só com o tempo eu iria descobrir o quanto tínhamos em comum, o quanto compartilhávamos... além da mágica das cores.

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Eu detesto futebol

Queridas amigas, muito boa noite, mais uma vez estou aqui para lhes falar sobre momentos pouco conhecidos de nossa história. Hoje vou me dedicar a um tema que tem sido a causa de muitas das dores de cabeça matrimoniais de várias colegas nossas. Refiro-me a um de nossos grandes inimigos: o futebol.

Abordarei nesta palestra um episódio do qual poucas de nós se recordam e que a maioria sequer sabe que ocorreu. Durante algumas semanas, em princípios da década de 1970, a humanidade viu-se livre deste grande flagelo, mas essa foi uma experiência traumática, felizmente esquecida por quase todos. Claro que nós tivemos uma interferência mais do que direta tanto no sumiço do futebol quanto no fato de não restar qualquer lembrança do evento senão na memória das responsáveis, e nos arquivos que nós, incumbidas do registro de nossa história, com tanto zelo nos empenhamos em manter.

Quero agradecer a inestimável contribuição de nossa querida Nenúfar, por fazer chegar a nossas mãos o volume com a autobiografia de sua avó Açucena. Dele extraí o texto que lerei a seguir, e que

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constitui o documento mais completo que se conhece sobre o acontecimento em pauta.

Era setembro de 1971. O Jardim estava reunido, como fazíamos a cada dois meses, e desta vez na casa de Violeta. A reunião transcorria como sempre. Troca de receitas de carne ao forno e de encantamentos para livrar a casa dos demônios. As últimas fofocas da vida dos astros da televisão. Orquídea deu início a uma discussão muito animada sobre alguns capítulos de um seriado norte-americano que todas adorávamos, A Feiticeira, principalmente sobre a questão do que é mais conveniente, ter uma empregada normal ou bruxa. Houve comentários, a maioria deles desaprovadores, acerca de Rosa, que traumatizada pelo nome tão comum (ela mesma conhecia outras trinta e cinco Rosas!), resolveu batizar suas três filhas com os nomes de Poinsétia, Aspidistra e Calatéia. Amarílis e Hortênsia apresentaram um relato do Gran Sabbat de Lausanne, que transcorria muito bem até que algumas bruxas da Suécia ofereceram um drink viquingue que deixou todo mundo de pilequinho, o que resultou na evocação de umas criaturas que não dá nem para pensar sem corar de vergonha.

Na hora dos canapés com patê de cebola, preparados por Papoula e elogiados

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por todas, Alamanda fez um comentário casual e aparentemente inofensivo, que teria no entanto conseqüências assombrosas.

— Sabem de uma coisa? — disse, entre um canapé e um gole de refresco de abacaxi. — Eu detesto futebol.

Um silêncio instantâneo e total se fez na sala, enquanto todas digeríamos aquela informação.

Eu detesto futebol. Uma frase simples, três palavras banais, um significado enorme. O silêncio se prolongou, repleto de profundas ponderações. Petúnia foi a primeira a quebrá-lo.

— Eu também — concordou laconicamente, como era de seu feitio, enquanto esticava a mão e pegava um dos palitinhos com salsicha e picles que estavam espetados em um abacaxi revestido de papel alumínio.

Olhares de compreensão cruzaram toda a sala nos próximos e breves segundos, antes que começássemos, todas ao mesmo tempo, a desabafar mágoas há muito reprimidas. Foi um dilúvio de reclamações.

— Meu marido se preocupa mais com o campeonato brasileiro do que com os filhos — choramingou Glicínia. — No final de semana, em vez de levar as crianças ao Ibirapuera, ele reúne todos os amigos lá em

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casa e eles passam o dia inteiro discutindo futebol e tomando cerveja. E eu tenho que ficar fritando torresminho e mandiopã. Na segunda-feira ainda estou fedendo a gordura...

— Pois aquele traste que tenho em casa sai para jogar lá as peladas dele num campinho de várzea e volta que é um porco de imundo, vai entrando pela casa deixando um rastro por onde passa, senta no sofá e enlameia tudo, larga calção, camiseta, meia, Kichute sujo por tudo quanto é lado e eu é que tenho que limpar tudo enquanto ele fica lá sentado, ouvindo jogo no radinho portátil — reclamou Azaléia.

— O meu marido, então, vou te contar, viu, não me perde um jogo do Palmeiras — queixou-se Verbena. — Me vai pro estádio cedinho que é pra ficar provocando os corintianos. E só me volta tarde da noite, gritando “Parmera, Parmera” e incomo-dando a vizinhança, que depois vem reclamai” comigo. Tem vez que se mete em bafafá e me volta todo lanhado e eu é que tenho que fazer os curativos.

— E o meu, que fica treinando no quintal e pisoteia todos os meus canteiros? — era Calêndula quem se lamuriava. — Vocês precisam ver em que estado ele deixou a horta outro dia, acabou com minhas mudinhas de lúpulo! Não sobrou

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segurelha nem pra fazer um cataplasma contra olho gordo. E acertou uma bolada no único pezinho de digitalis que conseguiu florir, que dó, as florzinhas caíram todas...

— Já o meu encasquetou que o filho vai ser craque de futebol. O menino não tem nem seis meses de idade e ele sai comprando camiseta do Santos, chuteira, bola de capotão, mesa de futebol de botão, até uma trave semana passada ele trouxe. Precisa ver como o quarto do menino está atochado de porcaria. Outro dia, se não segurasse ele no portão, me carregava o nenê pro Pacaembu! — lastimou-se Genciana.

— Eu não me importo muito com o futebol — disse Miosótis numa voz que, embora pequena em meio àquela cacofonia de lamúrias, todas ouvimos por externar uma opinião tão inesperadamente discordante. O tumulto cessou no ato e as atenções se voltaram para nossa jovem amiga, que abaixou os olhos e corou de vergonha. Agora que tinha começado, ia ter de se explicar, e ela continuou, nervosa, torcendo as mãos no colo de tanta timidez. — É que... bom... tudo bem se ele quer jogar futebol, sabe, ele gosta, ele não é fanático, é saudável praticar um esporte, mas...

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— Mas... — ajudou Violeta, tão curiosa quanto todas nós por saber qual seria o mas.

— Mas é que... sabe, quando ele chega em casa depois do jogo, ele sempre... bom, vocês sabem. .. aquilo de casal, vocês sabem... — sim, todas sabíamos. — Quer dizer, não é que eu não goste, mas é que... ele podia pelo menos tomar um banho antes!

A algazarra se reavivou, alimentada pela indignação gerada por tantos e tão variados ressentimentos.

— Gostaria que o futebol sumisse da face da terra! — exclamou Prímula.

A voz aguda dela sempre se destacava nas freqüentes ocasiões em que balbúrdias como esta se formavam, e isso sempre nos irritou a todas. Mas desta vez suas palavras refletiam o desejo secreto de cada uma de nós. A discussão interrompeu-se de repente, enquanto a mesma idéia parecia brotar em todas as cabeças ao mesmo tempo.

Sorrisos maliciosos foram surgindo por todos os lados até que, como de costume, Alfazema sintetizou todas nossas idéias.

— Nós podemos arranjar isso, não?

* * *

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Alguns dias depois fizemos nosso sabá para a grande magia. Não posso descrever com detalhes a cerimônia, uma vez que, como já disse mais de uma vez, as páginas destas memórias não estão protegidas contra a leitura por não-iniciadas.

Mas posso dizer que tivemos muito trabalho para preparar tudo. Alguns dos elementos necessários só eram conhecidos em regiões que estavam por trás da Cortina de Ferro e com as quais nunca havíamos conseguimos estabelecer contato, por mais que tentássemos. Dessa vez não foi diferente. Por sorte pudemos contar com as bruxas da Alemanha Ocidental, da Áustria e da Grécia, que nos deram não só ajuda mas também apoio a nossa idéias. Afinal, a maldição do futebol não afligia apenas a nós, bruxas brasileiras...

Por fim conseguimos juntar todos os ingredientes, inclusive as flores de digitalis, apesar do pezinho de Calêndula ter sido destruído. Felizmente, por meio de uma combinação entre um encantamento de levitação e um sortilégio de ubiqüidade, Madressilva conseguiu dar um pulinho até Campos do Jordão, onde essa plantinha cresce que dá gosto, e trazer até mais do que era necessário.

O fato é que nos reunimos numa tarde de sábado, dezenove das vinte feiticeiras

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que formavam O Jardim. Só Ipoméia não pôde ir, porque estava no pronto-socorro com seu filho, que se acidentara numa corrida de carrinho de rolemã. Mas parece que não foi nada muito grave.

Havia as coisas de sempre, o espelho, as taças de metal dourado com água e vinho, um cristal branco, uma grande ametista e uma sodalita, turíbulos com incenso de benjoim e de sândalo, além de outros elementos que não posso mencionar aqui. Enquanto entoávamos a ladainha apropriada, Bonina proferia as palavras mágicas requeridas e conduzia o ritual que, em seu ponto alto, exigia que uma réplica da taça Jules Rimet fosse mergulhada repetidas vezes em uma poção fervente que continha extrato de napelo, folhas de álamo e uma mistura com proporções bem definidas de cicuta, potentilha, beladona e flores de digitalis secas e esfareladas, entre outros ingredientes.

Já era noite quando nos separamos e fomos para nossas casas. O Jardim voltaria a se reunir daí a dois meses.

* * *

Durante esses dois meses o futebol jamais existiu a não ser em nossas lembranças. Ninguém se lembrava de algo

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chamado futebol. Ele jamais havia feito parte da vida de ninguém, a não ser das nossas, que por tantos anos fomos suas vítimas para, por fim, nos tornarmos suas carrascas. Não tinha história, não tinha passado, não tinha presente. Não tinha e nunca teve existência, exceto por nossas tristes recordações.

Mas coisa alguma pode ser destruída sem que outra tome seu lugar. Nem mesmo a magia mais poderosa pode criar o nada. O vácuo é sempre preenchido por algo...

* * *

O sabá de novembro foi na casa de Camélia. Cheguei atrasada, quando todas as outras bruxas já haviam chegado, e nem bem pus os pés na sala tive a confirmação de meus temores. Não era só eu quem estava preocupada. Não era impressão minha. Não era bobagem, como tantas vezes havia tentado me convencer, sem sucesso. Era fato. Nosso feitiço não havia funcionado. Pelo menos não como pretendíamos.

Estavam todas em silêncio, comendo pasteizinhos de palmito e pizzinhas de bolacha cream cracker, com ar ausente. Nenhum suspirinho de prazer. Nenhum elogio. Mau sinal.

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Nenhum caderninho de receitas à vista. Ninguém estivera trocando invenções culinárias ou mágicas. Outro mau sinal.

Quando desembrulhei meu rocambole de geléia de morango, que estava lindo, modéstia à parte, não ouvi nenhum comentário de aprovação. Um péssimo sinal.

Naquele silêncio pesado, Alamanda esticou-se para pegar uma das empadinhas que Camélia acabava de trazer da cozinha. Deu uma mordida, um suspiro e uma opinião:

— Sabem, eu preferia com o futebol.O silêncio prosseguiu. Relutávamos em

concordar com ela e admitir que havíamos cometido um erro de cálculo. Um erro grosseiro. Até que Petúnia se expressou com sua costumeira economia de palavras.

— Eu também — e serviu-se de um sanduichinho de carne louca oferecido por nossa anfitriã.

Como em um déjà vu, nos entreolhamos por alguns segundos e então começamos todas a falar ao mesmo tempo, numa algaravia excitada, pondo para fora, por fim, mágoas e arrependimentos que há dois meses vinham crescendo dentro de nós sem encontrar forma de alívio. Depois de alguns minutos, o falatório se organizou por si próprio, em função da curiosidade que todas sentiam em conhecer os dramas

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pessoais de cada uma, irmanadas no mesmo sofrimento.

— Meu marido continua não dando atenção às crianças — afirmou Glicínia. — Ele continua se reunindo lá em casa com os amigos, ainda os mesmos, e eles ainda tomam cerveja e eu ainda tenho que fritar torresmo e mandiopã. Só que agora... — ela fungou, e estava perto das lágrimas —... agora eles fundaram uma Confraria do Charuto e ficam o tempo todo fumando, e jogam truco sem parar, até de madrugada. Charuto e truco às duas da manhã, pelo amor de Ceres!

— Vocês não imaginam o que aconteceu com o meu marido — era a vez de Azaléia se lamentar. — Eu achava que minha vida era ruim quando ele emporcalhava a casa, mas sem o futebol ela se transformou um inferno! Imaginem só, ele virou um maníaco por limpeza e arrumação e está me deixando ma-lu-ca! Me azucrina o dia todo, você molhou o banheiro, você não lavou o copo que usou, já deu banho no cachorro hoje? Recolha já os sapatos que largou na sala... Vou dizer para vocês, um inferno, um verdadeiro inferno. Outro dia quase me deixou surda de tanto gritar, só porque entrei do quintal com as mãos sujas de terra.

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— Pois o meu marido me está dum jeito que dá dó — Verbena estava inconformável. — Agora que ele não tem mais o Palmeiras, o coitadinho me perdeu o rumo. Na hora em que antes começava o jogo ele parece que fica perdido. Começa a me rondar e repete sem parar “tá fartando arguma coisa, tá fartando arguma coisa”. Então ele me segura pelos braços e pergunta “o quê? O quê? O que tá fartando?” Aí ele vira e sai pra fora e fica dando volta no quarteirão, desatinado, que nem um maluco. Coitadinho, o tempo todo que devia durar o jogo ele fica rodando o quarteirão e perguntando “o quê? O quê?”, judiação, cada vez que me passa na frente da janela da sala me dá uma dor no coração, coitadinho. Os vizinhos estão tudo pensando que ele ficou lelé da cuca.

— Pra mim, a emenda ficou pior que o soneto — atalhou Calêndula, indo no embalo das lamentações. — Antes o meu marido só destruía o jardim mas agora ele deu de se dedicar às artes, só que dentro de casa. Ele pinta, mas não pinta nas telas. Ele acha mais criativo pintar as paredes, o teto e até o assoalho. Tudo psicodélico! E ainda por cima resolveu também se dedicar à carpintaria e reformar os móveis. Todas as mesas e estantes da casa estão capengas,

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outro dia numa balançada da estante da sala a televisão quase caiu.

Genciana foi a próxima.— Nem me fale em emenda pior que o

soneto! Agora meu marido está treinando nosso filhinho pra ser lutador de boxe e carrega o moleque pra tudo quanto é luta, pode? O menino não tem mais chiqueirinho, tem um ringue, e quando o pai está em casa passa o tempo todo com umas luvinhas de boxe, que pra dizer a verdade são até bonitinhas, mas... boxe! Isis do céu, só de imaginar meu filhinho todo arrebentado, levando tabefe daqueles brutamontes! Pra depois virar um brucutu, que nem aqueles horrores que a gente vê no telecatch? Anteontem, não é que o diacho do homem me aparece com o Eder Jofre pra jantar?! Como ele gosta de luta-livre também, estou vendo a hora em que ele me traz o Ted Boy Marino sem avisar...

Algumas de nós arriscaram, timidamente, opinar que o Ted Boy Marino até que valia a pena, gerando assim uma discussão moderada, cautelosa, a meia voz.

— Eu também preferia como era antes —. fez-se ouvir, acima dos murmúrios, a voz envergonhada de Miosótis, que de novo ficou vermelha ao ver-se o centro das atenções. — Quer dizer. .. ele era tão... bem, vocês sabem, quer dizer, seria bem melhor

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se ele tomasse um banhinho antes, mas... era bacana, quer dizer, era...

— Era bom — ajudou Amarílis, atenciosa.

— É, era bom — concordou Miosótis, mais animadinha.

— Mas agora... ? — incentivou Violeta.— ...mas agora não faz a mínima dife-

rença. Ele era tão bonitão, tão atlético, tão parecido com o Tony Curtis... Ficou barrigudo, incrível como engordou nesses dois meses, e... bom, quer dizer, vocês sabem... parece que perdeu o interesse... bom, ele fica o domingo inteiro largado no sofá assistindo Sílvio Santos e Chacrinha... — de repente ela começou a soluçar. — Ele virou um inútil! E nas poucas vezes que tentou, ele... ele... — e desatou a chorar sem conseguir terminar a frase, o que, no en-tanto, não era necessário para que entendêssemos sua aflição.

A angústia de Miosótis estragou de vez o clima de nossa reunião. Éramos um bando de bruxas abatidas e desanimadas. Nosso arrependimento pairava no ar como se fosse uma coisa palpável. No silêncio total, estava claro que cada uma de nós fazia seu mea culpa, procurando uma forma de remediar o terrível equívoco cometido.

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E foi outra vez Alfazema quem expressou o que todas queríamos dizer mas não tínhamos coragem.

— Então vamos ter de desfazer tudo!

* * *

E assim, tudo voltou exatamente ao que era.

Todo mundo, pelo mundo todo, se esqueceu de que, por aqueles dois meses, o futebol não havia existido. Como se nosso feitiço jamais tivesse sido feito.

Nossos maridos voltaram a ser exatamente os mesmos que eram antes. As reclamações voltaram a ser exatamente as mesmas de antes. Os problemas continuaram exatamente iguais, mas... é melhor o problema que nós já conhecemos do que novos problemas para os quais não estamos preparadas. Não, não estou sendo covarde ao dizer isso, apenas estou sendo prática.

Para nós, as bruxas que tentamos acabar com nossos problemas particulares acabando com o futebol, ficou a lição, dura e difícil, mas aprendida de maneira exemplar.

O problema não está no futebol.O problema na verdade jamais esteve

no futebol.

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O verdadeiro problema, afinal, são os homens e somos nós. Espécies diferentes, vivendo e movendo-se em mundos diferentes. Expectativas diferentes. E essa é uma verdade que não pode ser mudada.

Bem, é claro que, com um pouco de mágica, pode, sim. Mas quem gostaria disso? Quem quer isso? Onde estaria a graça? Afinal, foi por gostarmos tanto deles, de nossos homens, diferentes e incompreensíveis do jeito que são, que tentamos destruir o futebol, nosso inimigo, nosso rival. Nós os queríamos para nós porque os amávamos, mas não queríamos destruir sua essência. Que eles continuem do jeito que são. É por serem do jeito que são que os amamos. Sempre os amamos por serem diferentes e vamos continuar amando.

Mas eu ainda detesto futebol!

São Paulo, aos 14 de junho de 1974.

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O Verdadeiro poder

Por algum motivo as pessoas sempre acham que sou mais forte do que de fato sou. Não digo que seja uma pessoa normal, porque não é verdade. Sou uma bruxa, uma bruxa poderosa. Tenho poder. Sobre a vida, sobre a morte, sobre a forma das coisas e dos seres, sobre o tempo e o espaço. Esse tipo de poder.

Mas me sinto cansada. O poder e o tempo fazem isso com a gente. Já vivi umas tantas décadas, e de algum tempo para cá tenho sentido cada minuto e cada segundo dessa longa existência. Às vezes, distraída, creio ainda ser jovem, mas vejo meu reflexo e penso “não, você não pode se sentir assim, não com sua idade e com todas essas marcas e esse cansaço que lhe devolvem o olhar no espelho”, e o peso dos anos abate-se quase como uma força física, e por vezes meus joelhos chegam a se vergar, incapazes de sustentar tamanha carga.

Apesar de todo o meu poder, portanto, não sou forte.

Mas ninguém, dentre os que me são caros, ou entre os desafetos, ou mesmo os desconhecidos com quem troco uma palavra eventual na rua, pensa outra coisa de mim

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senão que sou uma fortaleza, sem dúvidas, sem hesitações e com uma capacidade infindável de absorver qualquer golpe que a vida possa me aplicar.

Talvez isso aconteça por ter aprendido, no correr desses muitos anos, a conviver com a dor, a resignar-me com o que terminou por parecer normal, a aceitar os golpes como inevitáveis. Talvez cause tal impressão por ter criado uma couraça, uma serenidade externa, uma máscara de confiança que esconde a tormenta cinza de tristezas e solidão que castiga, incessante, por dentro de mim.

Por ter vivido tanto, ter tanto poder, e ter usado esse poder, sou frágil e vulnerável como uma taça de cristal equilibrando-se no peitoril de uma janela aberta, por onde entram o sol e a brisa da manhã.

* * *

Eu o encontrei enquanto, desavisada, olhava a cidade de prédios cinzentos e pessoas apressadas. De repente senti alguém que, como eu, havia interrompido a correria paulistana para, do alto do viaduto, descobrir que existia toda uma cidade ao nosso redor.

Olhei-o, debruçado no parapeito também, um homem comum com olhos de

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dor, e quando ele me olhou de volta, vi em sua face que havia sentido, de imediato, o que eu era.

— Ela está morrendo — ele me disse, com a mais profunda convicção de que era a coisa certa a dizer, e que eu era a pessoa certa para ouvi-la. — Ajude-me.

Quando olhei em seus olhos, reconheci nele um igual, tão poderoso quanto eu, ou mais. Hesitei, pensando no quão inútil eu poderia ser a ele. Mas senti que não seria justo negar-lhe, senão a ajuda, ao menos uma tentativa.

— Leve-me a ela — respondi simplesmente, e li gratidão em seus olhos castanhos.

* * *

Liana, pálida e com a respiração agitada, tinha uma beleza etérea. Feições de boneca, boca delicada, olhos grandes que seguiram assustados meus movimentos enquanto rodeei sua cama, até por fim se fecharem em exaustão.

Ela estava morrendo, repetira Heitor, um pouco a cada dia, e não havia médico que conseguisse deter o que a estava levando embora. Não era qualquer doença conhecida. Era outra coisa, e ele sabia o que era.

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— O quê? — perguntei.— Procure você mesma, Samara —

respondeu ele com voz suave.Era do sobrenatural que falávamos.

Concordei com um aceno de cabeça e passei a procurar os indícios que pudessem revelar o que acontecia. Inalei com cuidado o ar. O quarto cheirava a um prenuncio de morte. O odor inconfundível que indica que Ela está vindo cobrar sua parte. Passei pelos pés da cama, e um calafrio percorreu meu corpo. Ele notou quando me detive de repente.

— Sentiu? — perguntou.Fechei os olhos e tracei com a mente o

contorno do que estava sentindo. Era como uma sombra que houvesse persistido depois que seu causador já se fora. Uma entidade estivera ali, aos pés da cama.

— Algo... um ser... esteve aqui, parado, imóvel.

Sabendo agora o que buscar, ainda de olhos fechados percorri o quarto com a mente. Senti por todo o aposento os mesmos vestígios, fracos exceto em dois pontos: o local onde me detivera e um ponto defronte à janela.

Abri os olhos. Heitor me olhava com intensidade. Expectativa, e o respeito que existe entre os iguais conscientes do valor um do outro

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— É por ali que ele entra — disse eu apontando a janela. “Entra”, e não “entrou”. Aquela criatura, o que quer que fosse, havia estado aqui mais de uma vez.

Afastando as cortinas que cobriam a janela, fechei os olhos uma vez mais e lancei minha mente na tarde morna de primavera, em busca das sombras que a criatura deixara. Tênues, os rastros estavam por toda parte, e não só da criatura que sentira aos pés da cama. Duas, três, duas dúzias, dezenas. Os vestígios de sombras se entrelaçavam numa rede apertada, rodeando a casa, o quarteirão.

Heitor estava a meu lado, agora, ofegante com minha descoberta, como se fosse ele próprio a fazê-la. Seu braço roçava de leve o meu.

— Demônios? — sussurrei, assustada.— Não sei — respondeu ele no mesmo

tom, olhando para mim, e quando ergui os olhos e olhei no fundo dos seus, um arrepio me percorreu. Empatia. Era como se ele olhasse através de mim, para minha alma, e nela reconhecesse a sua. Senti todo o poder que mantinha sob controle, e senti meu poder latejando, tentando ir ao encontro do dele. Ele prosseguiu. — O que quer que seja, está tirando dela a força da vida, matando-a aos poucos. Tentei deter esse... ente, e ele riu de meus esforços.

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— O que você tentou?— Construí uma mandala de energia ao

redor da cama, e a idéia era prendê-lo nos movimentos dela enquanto ela drenasse sua força, fazendo-o minguar até sumir. Montei guarda por dois dias, sem resultado, até que o sono por fim me venceu, e dormi por não mais que uns minutos. Quando acordei, senti sua presença ao redor de Liana. A mandala estava dobrada sobre si mesma, inútil, e Liana gemia. Lancei-me em sua dire-ção, tentando conjurar uma barreira contra entidades incorpóreas, mas fui atingido por uma onda de energia tão forte que me atirou através do quarto, de encontro à parede. Então a voz dele surgiu em minha cabeça, e ele riu, e me chamou de ingênuo e pretensioso, e perguntou se eu achava mesmo que os poderes que eu tenho me haviam sido dados a troco de nada.

Com essas palavras gelei. Eu reconhecia nelas não só esta situação, mas também toda minha vida.

— É verdade o que dizem, não é? Nós não podemos amar.

Heitor assentiu com a cabeça.— É o preço que pagamos. Eles, o que

quer que sejam, bebem o amor de nossos parceiros, esvaziam seu afeto e os afastam de nós.

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Com uma pontada de dor, reconheci nas palavras dele minha longa vida de solidão e desilusões. Mas eu nunca passara por nada parecido com o que via agora. Para mim, o amor terminava sempre em amargura, palavras ácidas e rompimento, ou sequer chegava a se concretizar. Nunca vira alguém ser drenado fisicamente como Liana estava sendo, e disse isso a Heitor.

— Liana é uma pessoa boa, a melhor pessoa que já conheci, e seu amor e sua devoção por mim são completos e totais. Não posso retribuir senão na mesma moeda, e eu a amo com toda minha força, e sempre a amarei. Estamos juntos há tantos anos, e eu a adoro hoje da mesma forma como a adorei no primeiro instante em que ela me olhou e me amou. Um amor tão profundo não pode ser extirpado de uma pessoa tão pura. Em vez dele, esse ser está lhe tomando a vida. Liana está morrendo pelo amor que sente por mim, Samara.

Sim, essa era a verdade, eu sabia, e senti uma vez mais, dentro de mim, a porta da oportunidade fechando-se. Tão poucas horas de convívio e eu já estava fascinada por aquele homem sereno, de olhos castanhos cálidos e sorriso triste. Admirava seu poder, a intensidade de suas emoções, a evidente honestidade de seus pensamentos e atos. Invejei Liana em seu leito, e foi

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inevitável desejar, por um instante, que não conseguíssemos salvá-la. O pensamento hediondo esteve em minha mente pelo mais breve dos momentos, e de imediato me arrependi dele, mas já não havia conserto possível. Eu havia desejado a morte dela, e me senti um verme, um abutre. A vergonha trouxe cor às minhas faces.

Será que ele leu minha mente? Será que ele me viu corando e adivinhou meus pensamentos?

Ele pousou a mão em minha face e fechei os olhos.

— Nós vamos salvá-la, Heitor. Vamos salvar o amor e a vida de Liana.

— Obrigado, Samara — e quando olhei nos olhos dele, vi amor e ternura e respeito ali. Senti uma sensação estranha na boca do estômago quando me dei conta de que o amor, a ternura e o respeito eram para mim.

Meu coração deu um salto, e um calor suave se espalhou por meu peito. Cumplicidade, parceria. Dividíamos algo. Naquele momento, aquela sensação tinha um valor inestimável.

Nem ele nem eu nunca havíamos trabalhado em conjunto. Teríamos de aprender à medida que as coisas fossem acontecendo. Contei-lhe o que sentira momentos atrás, quando tivera a impressão de que meu poder insistia em se unir ao

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dele, e juntos decidimos que talvez ali estivesse um caminho. Demos as mãos. Minhas mãos nas dele pareciam... certas. Pareciam estar em seu lugar correto.

Fechamos os olhos e simplesmente deixamos livres nossos poderes.

Então aconteceu uma coisa extraordinária. Eu o via em minha mente, um espectro de pura energia, dourado, radiante, enquanto via a mim própria em prata reluzente. Embora nossos corpos físicos estivessem imóveis, nossos espectros se aproximaram, cada vez mais, e ao se tocarem penetraram um no outro, juntando-se numa só massa cambiante onde ouro e prata não se fundiam mas se enovelavam um no outro, em espirais, ondas e camadas de movimento constante, cada qual man-tendo sua identidade, mas de tal forma entremeados que constituíam uma unidade indissolúvel.

Senti toda a extensão de sua imensa magia, e, coisa estranha, pela primeira vez senti toda a extensão de minha magia, e ela era muito mais vasta do que eu jamais pensara. Ou seria verdadeiro aquele velho e batido adágio, o todo é maior que a soma das partes) Teria essa peculiar união algum efeito amplificador em nossos poderes?

Mas não era, então, imprescindível entender se a combinação de nossos

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espectros apenas expandia a percepção que tínhamos deles, ou se de fato os magnificava. Qualquer especulação fi-losófica teria de esperar.

O que importava naquele momento era a urgência da ação, e o conhecimento de que tínhamos em mãos um poder tremendo, maior do que pudéssemos ter imaginado. Conseguiríamos lidar com ele? Teríamos o tempo necessário para aprender a controlá-lo? Seria suficiente para deter as criaturas horrendas que faziam Liana definhar dia após dia?

Apenas descobriríamos se tentássemos.

Fomos desajeitados a princípio, mas nossa destreza aumentava a cada momento. Juntos erguemos uma mandala de energia dez, cem vezes mais forte do que a que Heitor construíra. A mandala de energia é uma rede em que as malhas estão em movimento constante, formando figuras que nunca se repetem. A estrutura tem o poder de absorver a energia de seres incorpóreos que tentem cruzá-la, e essa energia se perde nos meandros da malha, de forma a enfraquecer mais e mais a criatura. Um ser que fique retido nas malhas da mandala pode se afastar, enfraquecido, mas se in-sistir em cruzá-la, e se ela for forte o suficiente, terá toda sua energia drenada, e

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terminará por desaparecer como a chama de um fósforo apagada por um sopro.

Quando terminamos nossa obra, ela reluzia aos olhos de nossas mentes, dourada aqui, prateada ali, bela e complexa como uma filigrana gigantesca. Frágil na aparência, mas sabíamos que era a coisa mais poderosa que tanto ele quanto eu já havíamos forjado em nossas vidas.

Ao abrirmos os olhos, nossas mãos se separaram, numa súbita timidez de quem foi pego fazendo algo proibido mas, ah, tão bom.

No mundo físico eu não via nossa mandala, mas eu sentia na pele sua presença, um formigar quase imperceptível que indicava a tremenda força nela contida.

Então senti um vento que gelou meu corpo. Não era um vento de ar em movimento, mas o fluxo de uma força em nada semelhante à minha ou à de Heitor.

Liana, Heitor e eu não estávamos mais sozinhos.

A criatura estava conosco ali no quarto. Eu podia sentir, com a mente, o contorno de sua massa.

Agora saberíamos se nossa mandala era eficiente ou não.

CRIANÇAS INGÊNUAS! PENSAM DETER-ME COM ESSE BRINQUEDINHO BRILHANTE? soou uma voz horrível, com a qualidade arrepiante de unhas

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arranhando um quadro negro. Uma gargalhada ressoou, e sem aviso a entidade se lançou contra a mandala.

Com um grito a criatura se desfez, e mesmo sem fechar os olhos vi sua energia negra escorrendo ao longo da filigrana dourada e prateada.

— Vencemos! — exclamei sem pensar, mas o grito de vitória se perdeu no fluxo que indicava a chegada de outra entidade.

SOU UMA LEGIÃO, E VOCÊS NÃO TÊM COMO ME VENCER! ela guinchou, atirando-se ato contínuo na mandala, dissolvendo-se como sua predecessora.

Outra criatura atravessou a janela e foi absorvida pela mandala, e em seguida outra, e mais outra, e mais, mais, mais. Antes de desaparecerem, todas gritavam desafios, e reiteravam a impossibilidade de uma vitória nossa.

Aos poucos o brilho dourado-prateado da mandala foi se apagando, toldado pela tremenda quantidade de energia negra que o sistema aprisionava. O medo ameaçava dominar-me. Heitor se aproximou e passou o braço por meus ombros, tão atemorizado como eu. Percebi que buscava algum conforto, por inútil que fosse, e o abracei. Ficamos os dois, amparando-nos mutuamente, enquanto as múltiplas manifestações daquela criatura que era uma

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multidão iam mais e mais saturando nossa barreira.

Até que mais nada se via da mandala antes tão brilhante. Ela colapsou, dobrando-se, não mais uma estrutura tridimensional. O próximo espectro teria caminho desimpedido até Liana.

A chegada da criatura seguinte demorou o que pareceu uma eternidade. Tensa, eu apertava as mandíbulas com tanta força que achei que meus dentes se partiriam.

Ela não veio em meio ao vento sobrenatural que acompanhara as outras.

Senti sua aproximação como o avanço da ondulação que uma pedra produz num lago de águas tranqüilas. Ela era muito maior que as anteriores.

Seus esforços quase me impressionaram, magos, uma voz de veludo sussurrou em minha mente, Foi uma boa diversão, mas como obstáculo seu artefato foi o mesmo que nada, e apenas serviu para esgotar minha paciência. Vou lhes dar algum tempo para se aterrorizarem, e então voltarei para pôr fim à brincadeira.

Com a mesma suavidade com que chegou, o ser se foi. Vasculhei o ambiente e somente encontrei os vestígios de sua passagem. Estávamos a sós. Apenas nós, os três humanos, no quarto, e nem do lado de

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fora consegui detectar as criaturas que durante... quanto tempo? Duas horas, dez?... estiveram rodeando e cercando a casa.

Fez-se uma estranha calmaria, como o re-fluxo do mar que se retira em preparação para a grande onda.

Eu tremia de medo. Minha mão por vontade própria pousou no braço de Heitor, e ele também tremia. Sem pensar caminhamos até o lado da cama, como se com nossa mera proximidade física pudéssemos proteger Liana.

Olhamo-nos por um breve instante, e de novo senti meu poder lutando para juntar-se ao dele. Sem trocar uma palavra fechamos os olhos e deixamos que nossos poderes se unissem. Não havia nada que a razão pudesse fazer. Quem sabe o instinto encontrasse algo.

De novo nossos espectros se enlearam e se enrodilharam um no outro, fios brilhantes serpenteando no vazio, um brilho dourado-prateado que preenchia toda a paisagem astral ao nosso redor.

Proteger Liana! um sussurro doloroso, não sei se saído de lábios ou se um mero pensamento, e não sei se meu ou do homem a meu lado, que eu já amava tanto e não poderia nunca ter. Um simples sussurro, mas tão resoluto que se infiltrou em mim, e

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em Heitor, e foi suficiente para indicar-nos o caminho.

De repente os filamentos tênues, dele e meus, encontraram um padrão definido de movimento, não mais a dança elegante de partículas etéreas soltas no espaço, e se coalesceram e se organizaram, e ao redor de nós três formou-se um muro de aparência tão sólida que parecia impossível não existir no mundo real.

Foi nesse momento que um pensamento surgiu como do nada em minha mente, uma inspiração súbita, uma revelação. Uma resposta e uma esperança.

É o amor de Liana que não pode ser destruído! É ele que pode protegê-la e salvá-la!

Com uma sensação de urgência, de não haver tempo a perder, minha mente tateou em busca do espírito de Liana, e encontrou-o, uma chama pequenina, hesitante, que lançava um tímido reflexo da cor do cobre e que parecia prestes a se extinguir.

Liana, sussurrei-lhe em pensamento, ajude-nos a salvá-la! Empreste-nos seu amor!

Não! gritou Heitor, aterrorizado, em mi-nha mente, Liana está fraca, e não vai resistir!

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É o corpo físico dela que está fraco, Heitor, mas o amor por você resiste, forte, e a mantém viva apesar dos ataques desse ser infernal. Ele pode atingi-la em seu físico, mas não em seu amor. Liana, você consegue? Libertar o amor que sente por Eleitor e permitir que o usemos? Minha dúvida era se ela, sem nenhum dom mágico, seria capaz de agir no plano astral.

— Sim — respondeu débil sua voz física, repetindo a seguir com mais vigor — Sim!

A chama bruxuleante agitou-se, e se fez mais forte, um pouco apenas, e sua luz trêmula refletiu-se no muro de ouro e prata de nossos poderes.

Senti quando Heitor estendeu a mão e pegou a de sua mulher. Também pousei a minha no braço dela, e meus dedos tocaram de leve os dedos dele. Senti um aperto no coração.

— Sinta todo seu amor, Liana — disse-lhe eu em voz alta, suavemente, como se a angústia não me consumisse.

Foi como uma explosão de luz. A chama expandiu-se, e chocou-se contra o muro, e refletiu-se no metal líquido dourado que era o espectro de Heitor, e o ouro ganhou vida, brilhou, e incorporou o tom avermelhado do cobre. O espectro de Heitor faiscava, exuberante, alimentado pelo amor

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de sua companheira como se fosse agora invencível.

Naquele instante senti a dor da solidão, e fraquejei. A porção prateada de nossa muralha empanou-se e perdeu o brilho.

Samara, escutei o sussurro mental dele, e tão suave que poderia ter sido produto de minha imaginação, eu te amo. Todo o brilho retornou a meu poder. Como duvidar da força que as palavras podem carregar dentro de si? E como duvidar da fonte do verdadeiro poder?

Nossa muralha brilhava, preciosa, e ainda a contemplávamos com fascínio, quando sentimos uma onda chocar-se contra ela. Uma pressão terrível, e soubemos que o ente havia retornado.

O medo cresceu em meu coração quando, com um guincho horrível que se prolongava, aumentando e diminuindo em intensidade, a entidade arremeteu contra nossas defesas, chocando-se uma e outra vez, e outra, e outra.

VOCÊS NÃO ME VENCERÃO! gritou, rascante. VOCÊS NÃO TÊM PODER PARA ME DETER!

Não sei por quanto tempo agüentamos as investidas da entidade, e seus gritos que tentavam minar-nos a determinação em proteger a vida de Liana.

De repente fez-se o silêncio, e cessaram os golpes. Uma pressão súbita se

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fez sentir do lado de fora da muralha. A criatura mudava de estratégia, e agora envolvia por completo a superfície externa da barreira formada por nossos espectros, e comprimia-se contra ela, apertando e apertando.

Liana gemeu e se contorceu. Finos ten-táculos negros infiltravam-se por entre frestas mínimas da barreira, e chegavam até ela, penetrando-lhe a pele.

— Liana! — gritou Heitor, aterrorizado, e o pânico corroeu sua concentração. Fendas cada vez maiores surgiram na muralha, dando passagem a tentáculos mais grossos, mais robustos, que iam em direção à mulher que se debatia na cama, como se atraídos por um ímã.

Não! gritei em minha mente, ao perceber que parte dos tentáculos se enrolava nos filamentos de ouro rubro, roubando-lhes brilho. O ser atacava também Heitor.

A muralha estava ruindo.Em desespero, tomei uma decisão

terrível. Decidi que não valeria a pena viver se falhasse em proteger o homem que se tornara tão caro a mim e a mulher que era a razão de sua vida. Deixei que fluísse para fora todo o sentimento que se acumulara dentro de mim.

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Foi como se a barreira subitamente explodisse em chamas prateadas, ofuscantes, um brilho tão intenso que seria capaz de cegar.

E então me abri. Deixei que a entidade negra me invadisse. Ofereci-me em sacrifício para salvar as outras duas vidas. A criatura me penetrou, rasgando-me, queimando-me, e pude sentir sua satisfação feroz, a euforia vitoriosa que irradiava.

Nãããão! rugiu Heitor, em desespero.Heitor, ame-me! gritei eu, tomada pela

dor.De imediato a torrente dourada de

Heitor fluiu em minha direção, e transformou-se em uma couraça ao tocar-me.

A criatura soltou um urro terrível e tentou retroceder, mas era tarde. Os papéis haviam se invertido. Alimentada pelo poder que recebia de Heitor, era eu quem agora a envolvia e penetrava, sugando suas forças. Senti o sabor nauseante de sua essência, amargo e pútrido, mas continuei absorvendo sua energia, e ela era incapaz de se libertar, e eu prosseguia, enfraquecendo-a. Envenenando-me, pois a essência do mal corrompe e destrói.

Não sei por quanto tempo continuei a drenar e drenar o ente. Não tinha consciência de nada além da criatura que se

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debatia impotente frente a meu ataque. Eu sabia que ela já não era ameaça para Heitor e Liana. Sentia-a cada vez mais fraca, mais frágil, e ao mesmo tempo tudo ia perdendo definição. Chegou o momento em que eu não sabia mais onde estava e o que fazia. Só tinha a idéia de que devia continuar fazendo aquilo, e continuar, e continuar... Não via mais nada, nem com os olhos da mente, nem com os da realidade. Não sabia se estava de pé ou caída.

A última coisa de que me lembro foi um sussurro, Samara! Samara!, e acho que era a voz de Heitor. Depois, nada.

Acordei no hospital, uma semana depois. Os médicos não sabiam o que havia acontecido comigo, mas o que quer que tivesse sido, não deixaria seqüelas, disseram. Ingênuos. Não há seqüelas visíveis, físicas. Um coração que sangra não é uma seqüela? Nem todos os ferimentos podem ser curados pela medicina.

Nunca mais vi Heitor.Quando acordei havia uma rosa

vermelha na mesa de cabeceira, com um bilhete dizendo Obrigado.

Desde então recebo, todos os meses, no último dia de cada mês, uma rosa, também vermelha, com um cartão que diz, simplesmente, Ainda. Sempre.

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Tenho de me satisfazer com essa certeza.

Sei o que sou. Uma bruxa poderosa, e o preço a pagar é alto. A dor da solidão.

Dou-me por feliz por ter ao menos as rosas vermelhas.

Ainda.Sempre.

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O Olho vermelho

O olho vermelho espreitava na escuridão. Aterrorizado, hipnotizado, imóvel, o rapaz não conseguia desviar seu próprio olhar do ponto pequenino que insistia em brilhar quando não deveria. Aquela luz somente devia se acender se algo se movesse no aposento. Ele estava sozinho. Não havia se mexido. Portanto ela não poderia estar acesa.

Impossível mas real. Irrefutável. Assustador.

Seu próprio quarto. Que terror maior existe do que aquele que se oculta em nosso refúgio mais íntimo, profanando nosso santuário?

De repente a pequena luz cor de sangue se apagou. Ele conteve a respiração. Talvez ela não voltasse a brilhar. Esperançoso, ele argumentou consigo mesmo, quem sabe foi um sonho, ou antes um pesadelo. E quem sabe seria aquele o fim do pesadelo, talvez ele estivesse dormindo enquanto se acreditava desperto. Essas coisas acontecem, não é? A gente sonha que acordou e que não consegue se mexer, que está paralisado e sequer pode levantar a mão que repousa sobre a coberta

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e, no entanto, tudo não passa de um sonho, tão real a ponto de tornar ainda mais incerto o já tênue limite entre a vigília e o sono.

A espera angustiante se prolongou. A luzinha persistia apagada, não pela primeira vez desde que se acendera por nenhum motivo aparente, longos minutos atrás. Ela se fora duas vezes, e duas vezes reaparecera. Ainda assim a esperança batia forte no peito dele. Quem sabe agora...

O pequenino ponto luminoso lhe havia sido apresentado com orgulho, uma quinzena atrás.

— O senhor pode ficar tranqüilo que a minha casa é muito segura, viu? Mandei instalar alarme em todos os cômodos. É aquela caixinha ali no canto, tá vendo? — e a velhinha cor-de-rosa que buscava inquilino para alugar o quarto dos fundos apontou para o sensor de movimento na quina da parede com o teto. — Olha só, quando alguém se mexe num cômodo, a luzinha acende. Quando eu saio e deixo a casa vazia, ligo o alarme. Se mexer qualquer coisa aqui dentro e a luzinha acender, o alarme dispara.

Conquistado pela simpatia da velhinha e pela promessa de segurança na temível cidade grande, o rapaz recém-chegado do interior ficou com o quarto. Além disso, o aluguel estava bom e o bairro o fazia sentir-

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se um pouco em casa. Diferente de outros bairros que percorrera na capital, o Ipiranga lembrava uma cidade pequena. Andando pelas ruas de paralelepípedos e casinhas velhas, ele até se sentia de volta a Porto Feliz, de onde viera há dias que pareciam meses. Só faltava o rio Tietê, largo, sujo e bonito.

O quarto dava vista para o quintal enorme, tão incomum em São Paulo. Meio malcuidado porque, nas palavras da senhoria, “os joelhos não agüentam mais”. Duas goiabeiras esgalhadas, um pé de limão-rosa e um grande quadrado de terra preta onde cresciam umas plantas que a velhinha lhe apresentou orgulhosa: alecrim, erva-doce, manjericão, menta e outras de cujo nome ele já não lembrava. Olhando pela janela ele matava a saudade da roça. Estava satisfeito por ter achado um lugar tão bom para morar.

Mas o que era para ser garantia de tranqüilidade acabou virando fonte de inquietação. A luz vermelha o impressionava. Mal entrava no quarto, seu olhar relanceava para o canto da parede. Lá estava ela, acionada pela própria entrada dele. Ele se deixava ficar imóvel. Um, dois, três e o ponto vermelho se apagava. Ele dava dois passos para jogar a pasta sobre a cama, virava-se depressa e pronto. Ali

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estava o olho de novo, observando cada movimento seu. Um, dois, três, sumia.

Ele começou a fazer testes, mexendo-se de diferentes formas. Descrevia um arco com o braço e nada acontecia, mas se agitasse os dois braços no ar ao mesmo tempo, a luz voltava à vida. Ficava imóvel no meio do quarto até que se apagasse de novo e então dava um passo para o lado. O olho brilhava. Um passo mais lento. Acendia. Mais lento ainda. Ah, nada. Um segundo passo, a luz ganhava vida. Teria de ser mais lento. Ah, assim, devagar, bem devagar era possível.

Colocou-se um objetivo, e após uma semana ainda não o havia atingido: atravessar todo o cômodo sem disparar o aparelho. Mas nunca tinha a calma suficiente, nunca conseguia os movimentos lentos e suaves necessários para enganar o sensor. Era como um exercício de autocontrole, dizia para si mesmo, mas na verdade morria de vergonha do que estava fazendo. Se a dona da casa soubesse, que pensaria? Ele imaginava a velhinha cor-de-rosa abrindo a porta de surpresa e pilhando-o numa posição ridícula, impossível de justificar. Mas ela nunca, jamais naqueles quinze dias em que ele morava ali, entrara no aposento durante a presença dele. Nem mesmo batera à porta.

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E então, noites atrás, num daqueles momentos em que a mente voa e alcança os limites de possibilidades e probabilidades, ocorrera-lhe o pensamento perturbador. Imaginou-se em meio à madrugada silenciosa e escura, deitado na cama, desperto, olhos abertos fixos no negro nada a sua frente e então, sem qualquer movimento e sem provocação da parte dele, plim!, o olho encarnado voltando à vida. Como reagiria se acontecesse? Que explicação se daria? Mau funcionamento? Delírio? A velhinha cor-de-rosa entrando inadvertida e silenciosa, talvez para pedir em seguida, “me leve a um hospital que me deu uma dor aqui no peito”?

Uma vez alojada em seu cérebro, a idéia não lhe deu mais sossego. No fim da tarde, voltando do trabalho, ele já entrava tenso no quarto, olhando de soslaio o artefato agourento, antecipando o momento em que, higiene feita, roupa separada para o dia seguinte, ele se deitaria, apagaria a luz e lá ficaria, assombrado pelo olho que a qualquer momento poderia brilhar no escuro.

Que pensaria ele se aquilo acontecesse? Que faria diante do inexplicável?

Por mais que repetisse a si mesmo que era bobagem, que seu receio não tinha

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qualquer fundamento, que aquilo não ia acontecer nunca porque simplesmente não podia acontecer, a obsessão não o largava. Ele demorava acordado e só adormecia depois de vencido pelo cansaço de um dia inteiro de trabalho intenso. Acordava inquieto antes do amanhecer e não mais conciliava o sono. Já ia exausto para o emprego. Cochilava pelos cantos. Por enquanto, ninguém tinha reparado, mas não ia dar para disfarçar muito tempo mais.

O maldito sensor estava acabando com seus nervos.

A ansiedade da espera o matava.Até que por fim aconteceu, nessa noite

em que ele estava, como de costume, deitado, quieto e de olhos arregalados na escuridão, fixos no canto onde sabia estar a causa de sua aflição e tormento.

O pesadelo se fez real. De repente, a pequena luz vermelha brilhou no escuro. Sem aviso, sem motivo.

Ele não se movera antes, e tampouco depois que o olho se acendeu. Ficou petrificado pelo susto. Até sentiu um alívio paradoxal: seu medo não fora, afinal, infundado.

É um mau contato, daqui a pouco apaga c...

Como se lesse seu pensamento, a luzinha desapareceu.

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Aliviado, ele inspirou longamente. Antes que soltasse o ar, porém, a luz acendeu de novo, e com ela voltou seu terror.

No fundo, no fundo, ele não acreditava em mau contato algum. Nem em delírio. Estava acordado, e muito bem acordado, desde que tivera de ir ao banheiro descarregar a bexiga, quase meia hora atrás. E com certeza a velhinha cor-de-rosa não entrara inadvertida, pois em absoluto a porta se abrira. Não havia explicação lógica, a não ser que ele estivesse perdendo a razão.

Ele estava enlouquecendo! Não seria a mais assustadora das explicações?

De novo o ponto luminoso se extinguiu e de novo, a despeito dele mesmo, a esperança o invadiu. Fugaz esperança, porque daí a pouco a luz estava de volta.

Agora pela terceira vez se apagara, e foi nesse momento que ele passou a duvidar, fervorosamente e contra qualquer evidência, de estar de fato acordado. Sim, ele estivera dormindo. Ele estivera sonhando. Ele não estava ficando maluco!

Então ouviu o ruído, um leve murmúrio. Algo roçando com suavidade no carpete do quarto, e de novo a luz ganhou vida.

Impossível, mas... havia alguém ali dentro com ele!

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O ruído repetiu-se mais perto da cama. Sonho ou realidade, aquilo aumentou seu terror.

Então, no negrume absoluto que preenchia o quarto, sentiu um toque em seu rosto, um contato tênue, delicado como as asas de uma borboleta. Um cheiro antigo atingiu suas narinas, terra, pó, bolor... o cheiro da solidão e do esquecimento.

Dentro dele, algo reagiu. Ele precisava fazer alguma coisa. Saindo de repente do estupor que o mantivera paralisado, estendeu o braço num movimento súbito e acendeu a luz da mesa de cabeceira.

A claridade inundou o ambiente e dissipou a escuridão. Mas não toda.

Uma grande massa de trevas persistiu, impenetrável, debruçando-se sobre ele, bloqueando seu campo de visão, densa, profunda e infinitamente apavorante, respirando-lhe no rosto um bafo fétido de porão abandonado.

O que era aquilo ?!Dominado pelo terror, quis gritar, mas

a imensidão negra precipitou-se sobre ele sufocando-o, impedindo que qualquer som saísse de sua boca. Ele tentou se debater mas a hedionda sombra viva o envolveu por completo, aprisionou-o e impediu qualquer movimento.

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Em segundos o monstro de trevas tinha o rapaz totalmente à sua mercê. Comprimindo-se contra toda a superfície de seu corpo, penetrou-o com milhares e milhares de minúsculas agulhas tênues e impalpáveis, que sugaram com avidez até a última gota da vida que até então o animara.

À medida que era drenado, o corpo já inerte foi murchando e encolhendo, até restar só uma múmia ressequida e retorcida, em que mal se reconheciam os traços do que fora um ser humano.

A massa de trevas abriu a janela e saiu para o quintal, carregando consigo os restos de sua presa. Ela tinha um bom destino para aquela carcaça sem vida.

No quarto agora vazio, o olho vermelho do alarme apagou-se, como se, exausto de tantas emoções, tivesse por fim adormecido.

* * *

No meio da manhã, como de hábito, a velhinha cor-de-rosa saiu para a calçada, vassoura em punho, e logo apareceu o vizinho puxando conversa.

— O, dona Jurema, a senhora sempre com essa vassoura aí, varrendo. Um dia ainda sai voando...

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Ele riu com gosto e ela acompanhou. A piada era velha entre eles.

— E o inquilino novo?— Ah, seu Manoel, foi embora —

respondeu ela com voz pesarosa. — Hoje cedinho apareceu na sala com as malas feitas e disse que ia voltar para a terra dele.

— Puxa, mas a senhora não dá sorte, nenhum pára mais de quinze dias... — admirou-se o vizinho.

— Pois é, seu Manoel, para o senhor ver. Mas não tem problema, não. Vai um, vem outro, inquilino por aí tá cheio.

— A senhora precisava era de arranjar uma companhia mais firme, que não lhe deixasse na mão. A senhora não tem medo de ficar assim sozinha, na sua idade? Afinal tem tanta gente ruim por aí...

Ela deu um sorriso discreto, cheio de satisfação e algo malicioso.

— Ah, não, seu Manoel, eu não tenho medo nenhum, não. Eu tenho como me defender.

— Pois é, o sistema de alarme que a senhora instalou é uma beleza, né? Deve lhe dar muita tranqüilidade.

— O sistema de alarme? Ah, sim, sim... — concordou ela, distraída, enquanto esfregava na calçada primeiro um pé, depois o outro, para limpar da sola dos sapatos a

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terra preta da antiga horta, onde hoje suas ervas mágicas cresciam tão bem adubadas.

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Final feliz

Era uma vez...Não, de fato não é muito criativo, mas

vá lá...Era uma vez uma princesa que, tendo

já alcançado a avançada idade de dezessete anos sem ter encontrado um príncipe disponível, começava a se preocupar com seu futuro. Por conseguinte, deliberou fazer uma visitinha à real quiromante.

— Rá! — exclamou a adivinha, extasiada. — Vislumbro em seu futuro um casamento! Contemplo em seu futuro sessenta e cinco anos de felicidade! — ergueu a vista para a princesa e, ao examinar com os olhos a real herdeira, sua face antes iluminada pela esperança do porvir avistado assumiu involuntariamente uma expressão de desalento. — E vejo também que Vossa Alteza vai precisar consultar-se com o Bruxo da Mata para conseguir semelhantes prodígios.

Mais que depressa, a princesa marcou uma hora com o bruxo, que impôs um adiantamento, pago sem demora, diga-se de passagem, equivalente a um terço do Produto Interno Bruto anual do reino. Uma ninharia, na verdade, pois afinal, o reino

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daquela princesa não era lá muito grande. A renda per capita era baixa, as indústrias poucas, a economia informal muito mais desenvolvida que a formal, &c, &c...

No passado, os Bruxos da Mata eram comuns. Com ocorrência restrita à Mata Atlântica, podiam ser encontrados do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul. À medida que a mata ia sumindo, contudo, a população de Bruxos da Mata diminuía, as filas de clientes cresciam e os preços aumentavam.

Por essa época, as filas eram bem, bem grandes. Uma coisa espantosa. Não obstante a presteza da princesa em reservar para si um horário de atendimento, quando enfim chegou o dia, contava já ela com dezenove anos. Sua preocupação com o futuro, como bem se pode imaginar, aumentara de maneira notável, uma vez que sua situação matrimonial prosseguia inalterada. Exatamente na hora estipulada, encontrou-se ela diante da porta de entrada das instalações onde o mago atendia.

O consultório havia sido decorado à moda antiga. Por fora, a porta abria-se no meio das portentosas raízes tabulares duma figueira secular. Por dentro, a iluminação indireta, dissimulada com astúcia, dava toda a impressão de que os raios solares, suavizados por camadas e camadas de

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folhagem, insinuavam-se através de fendas por entre as raízes. É escusado dizer que por certo não existiam fendas genuínas entre as raízes, pois que fendas genuínas teriam permitido a entrada da chuva torrencial que desabava lá fora. As paredes, irregulares, estavam salpicadas de cogumelos coloridos, que pareciam brotar por si nos pontos mais úmidos. A princesa observou, criticamente, que aquele ali do canto era uma Amanita mascaria, espécie européia inexistente na Mata Atlântica. Com discrição, a perspicaz moça confirmou suas suspeitas ao constatar, com um cutucão, ser o fungo de matéria plástica.

Para combinar com a decoração do consultório, o próprio Bruxo da Mata fazia o gênero antiquado, com cabelos longos e as clássicas barbas brancas, a túnica de seda índigo de gola chinesa e chegando-lhe à altura dos tornozelos. Ele próprio havia atendido a porta, numa conduta calculada para ter exatamente o efeito que teve sobre a princesa, que sentiu uma cálida e bem-vinda sensação de aconchego e familiaridade. Deve-se admitir que o resultado final desta pequena e inocente encenação ficava bastante prejudicado por estarem os olhos do bruxo o tempo todo pregados no monitor de um notebook, que flutuava a sua frente perfeitamente

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nivelado, sem dúvida à custa de algum encantamento habilidoso.

O Bruxo da Mata consultava, na ficha da princesa, sua condição contábil. Tal ânsia tinha a jovem por encontrar remédio para seu coração aflito que nem uma palavra havia ainda escapado dos lábios do ancião e ela já se adiantava e lhe entregava um cheque administrativo no valor de seu débito, meros 0,67 Produtos Internos Brutos. Mais rápido havia sido ele, esticando a mão para pegar o cheque antes mesmo que ela o tirasse da bolsa; afinal, prever o futuro era canja para um mago de primeira como ele. Num zás-trás desapareceu o cheque, ido sem sombra de dúvida para alguma conta corrente bem segura. E sem recibo.

Sem por um segundo sequer desviar a mirada da tela do computador, onde já estava a confirmação quanto aos fundos do cheque, o Bruxo da Mata convidou a princesa a passar para outro aposento, onde duas confortáveis poltronas de couro, bem legítimo, aguardavam consulente e consultor. Saindo de alto-falantes ocultos, o som ambiente estéreo reproduzia o entardecer na floresta, com o monótono canto das cigarras atenuado, de modo a não irritar o ouvinte.

— Vossa Alteza aceita um chocolate? — ofereceu o Bruxo estendendo-lhe uma caixa

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de bom-bons, sem olhar e sem deixar de consultar com muita atenção o notebook que obedientemente o precedera da porta do consultório à poltrona.

— Não, obrigada — declinou com deli-cadeza a princesa, que estava de regime. Ela era, para usar uma expressão suave, assim meio rechonchuda.

— Não se importa que eu coma durante a consulta, Alteza? Não consigo ficar sem chocolate por muito tempo.

— O senhor não é gordo...— Mágica, minha filha, mágica — já

engolido o bombom de avelã, o Bruxo continuava a analisar as informações que surgiam na tela de seu computador. — Pelo que vejo em sua ficha, Vossa Alteza é a princesa... bem, sendo nosso assunto confidencial, vou chamá-la de Princesa 3592, preservando sua privacidade.

A Princesa 3592 graciosamente agradeceu inclinando a cabeça, movimento que, estivesse o mago olhando nessa direção, ter-lhe-ia proporcionado um ângulo inédito para apreciar a impressionante nariganga que ocupava à moça o centro da face. Mas ele continuava olhando para o computador.

— Vossa Alteza tem hoje dezenove anos, é donzela e herdará, no momento apropriado, o trono do reino, digamos, X,

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cuja dívida externa não é das maiores — o Bruxo chamou novas informações à tela. — Situação interna estável, inflação de dez por cento ao ano, boa previdência social, dis-tribuição de renda aceitável, escolaridade e saúde adequadas, poluição ainda preocupante...

— Mas já está sendo combatida — interrompeu a princesa enquanto inalava um medicamento para a sinusite que desde o início da adolescência a atormentava.

— Obrigado, isto não constava. Programas de combate à erosão em andamento... Homessa! Problemas com drogas?

— Pois é, o cartel, o senhor sabe como é... — desculpou-se a princesa, ajeitando seus óculos robustos, imitação de tartaruga e bem fora de moda, e que mal acomodavam as lentes grossas.

— Hum... É, seu reino parece estar em situação razoável, considerando que a crise mundial campeia. Não entendo por que Vossa Alteza... — a despeito de si, o Bruxo interrompeu-se, embaraçado, no instante em que levantou os olhos e encarou a princesa de frente por primeira vez. Não era mesmo difícil entender o porquê da persistente solteirice da real herdeira. Mas o Bruxo não havia chegado onde chegou sem adquirir um excelente jogo de cintura. Tão

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rapidamente recuperou-se de seu estupor momentâneo que é possível que a princesa nem se tenha dado conta do ocorrido.

— Bem, vejamos — retomou ele, num tom prático e decidido. — Por onde começar? Ah, sim. Há quanto tempo Vossa Alteza usa aparelho nos dentes?

— Desde os quatorze.O Bruxo disse umas palavras mágicas,

algo como “Opalinas em sizígia!”, e os resultados foram imediatos.

— Pronto, não precisa mais dele. Suponho que este... hum... vestido tenha sido feito pela mesma costureira que vestia sua avó quando ela tinha sua idade.

Impossibilitada de falar, por um acesso súbito de bronquite, a princesa fez que sim com a cabeça.

— Armadillidium et Tolypeutes! Eis aqui uma carta de apresentação a um renomado estilista, especialista em princesas desatualizadas, que será seu consultor em moda. Agora, esse seu cabelo... Fitoplâncton hipolimnêtico!

Do nada surgiram um cabeleireiro e um ajudante de cabeleireiro, que passaram a cuidar dos cabelos da Princesa 3592, emaranhados, ressecados, opacos, sem nenhum corte mas cheios de pontas duplas, enquanto a consulta prosseguia.

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— Para a bronquite, a sinusite e... acho que Vossa Alteza tem também rinite, não? Schoeniophylax phryganophila!, hora marcada com um excelente alergologista. Na sua miopia, eu mesmo posso dar um jeito, sendo oftalmologista formado, com pós-doutorado em microcirurgia.

Lento e teatral, o Bruxo se levantou, ergueu os braços e disse, com voz trovejante:

— Malacostraca policíclicos de drenagens endorréicas!

Com a mesma rapidez com que apareceram, a mesa de operações e a complicada aparelhagem desapareceram, deixando a princesa estupefata com um par de óculos, feios e agora inúteis, nas mãos.

— Agora, vamos cuidar de seus, hã, pezinhos. Dermatobia hominis!

Um homenzinho magro, de óculos redondinhos, surgiu, ajoelhou-se em frente à princesa 3592 e, com abundantes pedidos de desculpas, retirou um dos enormes sapatos masculinos que ela era obrigada a utilizar, já que em lugar nenhum de seu reino encontrava modelos femininos grandes o suficiente para acomodar seus pés. O sapateiro passou a manobrar com habilidade uma fita métrica, descrevendo o pé da jovem através de incontáveis

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medidas, anotadas em uma caderneta de capa vermelha.

— Ele é magnífico, o maior especialista do mundo em sapatos para princesas de pés grandes.

Vossa Alteza receberá sapatinhos novos em seu castelo, daqui a dois dias, junto com a conta que, devo alertá-la, será proporcional ao tamanho do seu pé — comentou o mago, assim que o sapateiro, renovando seus rogos de perdão, repôs o sapato da princesa e literalmente sumiu.

— Continuemos, porém. Graptozoa incertae sedis! — um calhamaço de papéis se materializou no ar, em frente à princesa. — Aí tem os endereços de um ótimo spa, uma badalada academia de ginástica (mas não esqueça de passar antes nesta loja de assessórios para aeróbica e comprar as malhas mais sexies que houver), um cirurgião plástico de renome internacional (esse nariz...), uma requintada professora de etiqueta, que ensina a caminhar com elegância, a melhor esteticista do hemisfério ocidental, que atende em domicílio em qualquer ponto do mundo. Tudo já com matrícula, hora marcada, inscrição, o que seja, como pode ver pelos recibos de paga-mento e comprovantes anexados... Em seguida estão listados os cento e cinqüenta lugares mais freqüentados por príncipes

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solteiros em todos os reinos do continente. Vossa Alteza já tem entrada livre em todos, por mais exclusivos, e acredite que isto me custou boa parte dos honorários que acabo de receber.

A Princesa 3592, do reino X, estava abismada. Levantou-se, livrando-se das mãos do cabeleireiro e do ajudante de cabeleireiro, que finalizavam uma permanente, e deu dois passos em direção ao Bruxo. Ao sair do estado de quase transe em que entrara, emitiu bem no nariz do Bruxo da Mata um “Oh!” dramático e atirou-se a seus pés, agradecida, implorando que ele pedisse qualquer coisa, qualquer coisa, jurando que ela seria sua eterna devedora, &c.

De olho no relógio, o Bruxo pacientemente segurou-a pelos ombros, ergueu-a e disse, em tom paternal:

— Minha querida, princesas não se atiram, agradecidas, aos pés de ninguém, nem imploram a ninguém que lhes peça qualquer coisa, nem juram que são eternas devedoras. Vossa Alteza não me deve nada, pois já me pagou a consulta. Mas veja aqui, simpatizei com Vossa Alteza, e por isso vou lhe dar dois presentinhos. Promeristema quiescente! Pronto, acabo de matriculá-la na disciplina Arrogância para Princesas I. Saindo daqui, corra, que Madame Neopelma,

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pertencente a uma afamada linhagem nobre, a espera para a primeira aula, no Instituto de Nobiliociências da Universidade de seu reino. E ainda... Tthycythara lanceolata! — o Bruxo retirou um frasquinho do bolso da túnica. — Tome, esta é uma poçãozinha mágica para perfumar e refrescar seu hálito, sem o quê nenhum príncipe irá beijá-la. Agora, se Vossa Alteza der licencinha de ir andando, o próximo cliente está para chegar.

A Princesa 3592, do Reino X, saiu em-polgada, passou na Universidade e assistiu a uma brilhante aula de Arrogância para Princesas. Ah, finalmente sua vida iria mudar! Daqui pra frente, tudo seria diferente, e ela seria uma nova princesa.

Infelizmente, de imediato pouca coisa mais pôde aproveitar de tudo aquilo que o Bruxo da Mata lhe havia receitado. Ao chegar em casa soube, chocada, da morte súbita do pai (com quem não se dava, aliás), o que de uma hora para a outra a transformara em Rainha, senhora e soberana de um reino dominado pela burocracia e com documentação desatualizada e irregular. Para salvar o país da ruína, casou-se às pressas com o herdeiro do trono de um reino credor, um príncipe gordo, careca e asmático, rabugento, mas com uma cabeça

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excepcional para os negócios, que saneou as finanças do reino X em dois anos e morreu em três. Só então a ex-princesa, agora rainha, viúva e rica, mas ainda na flor da idade, começou a se tratar. Largou o reino na mão de um regente, os três filhos nas de uma babá e caiu na estrada. Seguiu ao pé da letra todas as recomendações do Bruxo e virou um tremendo avião. Nunca mais se casou, mas morreu feliz, aos oitenta e sete anos, depois de ter farreado por exatos sessenta e cinco anos.

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O Livro dos ContosEnfeitiçados

A porta de madeira escura era imensa, antiga como os séculos. Pedro se deteve diante dela e engoliu em seco. Seus olhos subiram, acompanhando os desenhos que lhe revestiam a superfície, espirais, ramos contorcidos, estranhos pendões de flores, aqui e ali um animalzinho espreitando por entre as folhas palmadas. O olhar dele chegou ao alto, fixando-se na placa de bronze onde grandes letras em relevo anunciavam BIBLIOTECA.

Aposto que você não tem coragem. A voz de Melina soou, cheia de desprezo, em sua memória. Olhando pra trás, viu a figura da colega lá longe, quase no fim do corredor, os braços cruzados reiterando o desafio.

Tenho coragem sim, ele afirmou para si mesmo, ignorando o leve tremor de ansiedade que sacudia seu corpo. Não podia se demorar, dispunha de pouco tempo. Levou a mão à maçaneta de metal polido e abriu a porta devagar, prendendo a respi-ração na expectativa do que encontraria lá dentro.

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Nunca estivera ali antes. Estudava naquela escola havia apenas dois meses. Já tinha ouvido histórias terríveis a respeito da biblioteca. Na verdade, havia histórias horripilantes a respeito de qualquer lugar da escola, mas as histórias sobre a biblioteca eram as piores. Para que serviria uma sala enorme cheia de livros, afinal? Para esconder horrores entre os volumes e embaixo das estantes, é claro!

Ele deu dois passos tímidos para dentro da sala, examinando ressabiado o ambiente enorme. Sombrio.

A sua direita, a cadeira por trás da escrivaninha da bibliotecária estava vazia. Não era coincidência. Ele e Melina esperaram quase duas horas no corredor, escondidos detrás de uma coluna, até que a mulher saísse para ir ao banheiro. Não havia mais ninguém na biblioteca. Ninguém entrara ou saíra enquanto durou a vigília. Na verdade, nunca havia ninguém na biblioteca além da bibliotecária.

Ele tinha de ser rápido. Passando pela sala de leitura, dezenas de mesas enfileiradas que provavelmente não eram usadas há séculos, ele estacou entre as duas colunas que delimitavam a passagem para a vasta área ocupada pelas prateleiras. Elas se estendiam a sua frente, linhas para-lelas que sumiam na distância, os

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corredores entre elas abrindo-se num desafio evidente: entre se tiver coragem.

De novo engoliu em seco. Olhou para os dois lados. Eram dezenas de corredores. Apenas um lhe interessava. Ele foi para a direita e contou-os à medida que avançava. Parou no oitavo. Era aquele. Se não parecia mais assustador que os demais é porque todos eram assustadores.

Pedro enveredou pelo corredor. De cada lado, estantes altíssimas repletas de livros do chão ao teto. Quanto mais penetrava no coração da biblioteca, mais densa se tornava a escuridão. Lá dentro a noite é eterna, diziam os alunos da escola.

Ele estava preparado. Quando já não conseguia ver nada a sua frente, tirou do bolso uma vela e uma caixa de fósforos. Acendeu a vela, e o som do fósforo sendo riscado lhe pareceu forte demais. A luz amarelada da vela iluminava as lombadas dos livros à direita e à esquerda, mas não chegava a atingir o final do corredor.

Respirando depressa, o coração pulsando na garganta, ele seguiu em frente por uma eternidade, até finalmente ver a parede que fechava o corredor ao fundo. Estava perto de seu alvo.

O que buscava estava por ali, numa das prateleiras mais altas, ele não sabia se à esquerda ou à direita. Esticando o pescoço,

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erguendo a vela o mais alto que podia, e agüentando quieto o ardor da cera derretida que escorria por seus dedos, procurou com os olhos até encontrar os dois livros enormes de encadernação vermelha e dourada, muito maiores que os outros. Estavam lá em cima, fora de seu alcance, mas isso não era problema.

Com cuidado, pousou a vela no chão e abriu espaço em cada uma das prateleiras mais baixas, tirando alguns livros e depositando-os no chão. Usou as prateleiras como degraus e subiu até alcançar os livros gigantescos. Equilibrando-se daquele jeito, e tendo que se segurar com uma mão, seria impossível tirá-los do lugar, mas não eram eles o que buscava. O que queria estava por trás deles.

Ele removeu dois ou três livros menores, vizinhos aos dois gigantes, e colocou-os de lado. Através do espaço, enfiou a mão e tateou por trás dos livros vermelhos. Sim, havia algo ali!

Sem muita dificuldade retirou um volume pequeno, que enfiou apressado por dentro da camisa para poder descer. Toda a operação tinha demorado mais do que calculara. Agora precisava sair dali o mais rápido possível, antes que a bibliotecária retornasse e o pegasse em flagrante

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tentando roubar uma obra da biblioteca. Aquela obra.

O caminho de volta foi mais fácil. A luz tênue da sala de leitura o guiava. Ele apagou a vela e correu em silêncio até o início do corredor. De lá lançou um olhar cauteloso em direção à escrivaninha da bibliotecária. Ainda vazia.

Estava atravessando a sala de leitura quando a porta se abriu. Num reflexo rápido se abaixou, escondendo-se por trás das mesas. Ouviu os passos de alguém que entrava. Só poderia ser a bibliotecária. Ele jamais conseguiria sair da biblioteca com o livro!

— Espere aqui, mocinha, que já lhe trago o livro que quer.

E para piorar, ela não estava sozinha.— Sim, senhora.Aquela era a voz de Melina!Assim que os passos da mulher se

perderam entre as estantes, Pedro se levantou e olhou em silêncio para Melina, abismado com a coragem dela.

Ela lhe fez um gesto exagerado com as mãos, para que ele fosse embora, enquanto ordenava, apenas com os lábios, vai logo!

Pedro não se fez de rogado. Saiu correndo, atravessou a porta e só parou quando chegou à coluna atrás da qual tinham se ocultado antes. Longos minutos

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passaram até que Melina se juntasse a ele, já ralhando.

— Por que você demorou tanto lá dentro? Quando vi que você não tinha saído e que ela estava voltando, tive que inventar uma desculpa... E agora eu vou ter que ler isso aqui... — com uma careta ela mostrou um exemplar de Tempestades na África, de M. Tulane.

— Você não precisa ler — ele murmurou, sentindo-se culpado por ela ter de enfrentar, muito antes do necessário, o livro mais odiado por todos os alunos do último ano.

Melina fez um muxoxo.— Como se a bruxa da biblioteca não

fosse me fazer uma verdadeira sabatina quando eu for devolver. E a culpa é sua. Você devia ter sido mais rápido e ter saído antes dela voltar.

— Desculpa, é que eu não... — disse ele, envergonhado.

— Tá, tá, tudo bem. E aí, achou o livro? — ela atalhou, ansiosa.

Só então Pedro se deu conta de que em momento algum confirmara ter pegado o livro certo.

Com a respiração suspensa, tirou de dentro da blusa o pequeno volume encadernado em couro negro e leu o título, em letras desbotadas na capa.

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— O Livro dos contos enfeitiçados — sussurrou ele para Melina. — Viu como era verdade? Ele existe.

— Isso é o que está na capa. Não quer dizer que seja enfeitiçado como eles dizem.

Havia um brilho estranho nos olhos dela ao dizer isso. Ele teve um pressentimento ruim, ao perceber o que a colega estava a ponto de pedir.

— Eu não vou ler o livro — alertou.Um sorriso lento e inquietante surgiu

nos lábios dela.— Você não quer me provar que é

verdade? Que o livro é mágico?Um tremor percorreu o corpo de Pedro.

Por mais que tentasse, não conseguia desviar seus olhos do olhar fixo de Melina.

Ele se sentiu muito, muito assustado. Não queria estar ali, naquele corredor sombrio e frio, mal iluminado por lâmpadas tão fracas e distantes umas das outras. Através dos vidros sujos das janelas altas via-se lá fora só a escuridão da noite que já caíra. Ele devia ter voltado para casa há horas. Sua mãe devia estar preocupada e furiosa.

Devagar, fez que não com a cabeça. Ele não ia ler. Ele acreditava no poder terrível daquele livro e nada, nada no mundo o faria ler uma linha que fosse. A simples idéia o enchia de terror.

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Ainda preso ao olhos de Melina ele viu como aos poucos a expressão dela se transformava, suave, acolhedora. De repente ele se sentiu bem, ali ao lado dela. Não importava o quão solitário e desolado fosse o corredor. A sensação de calor e segurança que sua amiga transmitia era reconfortante. Nada de mau poderia acontecer-lhe enquanto estivesse ali com ela.

— Leia o livro, Pedro, e prove que estou errada — ela sussurrou, baixinho, numa voz que o envolveu como o abraço de sua mãe.

Reconfortado pelas palavras dela, ele baixou os olhos para o livro que segurava. Passou a mão pela capa e abriu-o. Em algum lugar de sua mente ele tinha a vaga impressão de que não deveria fazer aquilo. Folheou as primeiras páginas, em branco, até chegar na folha de rosto, onde o famoso título aparecia em letras floreadas.

O Livro dos contos enfeitiçadosEnquanto virava ainda mais uma folha,

ele tinha somente uma tênue consciência de que estava a ponto de fazer exatamente aquilo que, nas últimas semanas, enchera-o do mais puro terror.

* * *

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Recém-chegado à escola, a história assustadora do Livro dos contos enfeitiçados foi um dos primeiros segredos que Pedro ouviu, contado por colegas de vozes sussurrantes, cujo deleite com o assombro dele era óbvio.

Era um livro amaldiçoado, diziam, em cujas páginas estavam registrados os medos de todas as pessoas que já o tinham lido. O livro em si tinha aparência bem comum, um volume de capa negra que não chamava a atenção de ninguém. Pequeno, não precisava ser grande uma vez que a maioria dos leitores leria um único conto — seu pior pesadelo. Para cada pessoa o livro era diferente, e ela só encontraria ali aquilo que mais a aterrorizava, como se o livro se reescrevesse a cada novo leitor.

Ler seu pesadelo mais íntimo nas páginas de um livro é espantoso, mas não seria suficiente para tornar tão temida aquela obra.

O que havia de mais aterrorizante no Livro dos contos enfeitiçados é que qualquer pessoa que o lesse seria capturada por ele e ficaria por toda a eternidade presa dentro de sua própria história de terror, incapaz de escapar das coisas medonhas que mais temia. Só feiticeiros poderosos seriam capa-zes de ler o livro sem ficarem aprisionados, e só eles poderiam ler todos os contos,

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todas as histórias das pessoas presas dentro dele.

O Livro dos contos enfeitiçados estava escondido na biblioteca, sob a guarda da bibliotecária. Ela negava categoricamente sua existência, mas não permitia a ninguém sequer chegar perto do lugar onde todo mundo sabia que ele estava. Todo ano, porém, um ou outro aluno mais curioso e decidido conseguia driblar sua vigilância e encontrar o livro. Nenhum deles jamais voltou a ser visto. Estavam todos para sempre prisioneiros de seus medos.

Depois de ouvir a história, Pedro não conseguiu mais tirá-la da cabeça. Imagine só, passar toda a eternidade aterrorizado! Daí em diante, todas as noites, sonhava que estava lendo o tal livro, sonhava com cenas horríveis, monstros perseguindo-o, gente morta sentando-se a seu lado na sala de aula, lugares escuros e tenebrosos povoados por ratazanas gigantescas que o atacavam sem que ele tivesse para onde fugir. Acordava apavorado, suando frio, e não voltava mais a dormir pelo resto da noite.

Já fazia algumas semanas que ele não conseguia pensar noutra coisa, quando conheceu Melina. Ficaram amigos, e logo Pedro lhe confessou como tinha se impressionado.

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— Bobagem, O Livro dos contos enfeitiçados não existe — ela debochou dele. — É só uma lenda que os veteranos inventaram para assustar novatos como você.

— Mas os alunos desapareceram.— Você já encontrou alguém que tenha

conhecido de verdade algum aluno desaparecido?

— E as histórias que eles contam? Do menino que tinha medo de ficar cego e teve os olhos arrancados? A garota que vai ficar pra sempre correndo no meio da rodovia movimentada, fugindo pra não ser atropelada? E o que tinha medo de altura e foi condenado a cair eternamente num abismo sem fundo?

— Se ninguém nunca escapou do livro, quem é que contou essas histórias?

Ele ficou em silêncio, confuso, sem uma resposta convincente.

— É tudo besteira — ela continuou, perante o silêncio dele.

— Não é — insistiu ele, contrariado.Um brilho de malícia iluminou os olhos

de Melina.— Então prova.— Como assim?— Me traz o livro e me prova que ele

existe — ela sorriu, o sorriso zombeteiro com o qual ele agora deveria estar

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acostumado, mas que ainda o fazia sentir-se pouco à vontade.

— Isso é impossível, Melina, a bibliotecária...

— Não é impossível. Eu sei como dá pra entrar e pegar o livro sem ela perceber.

— Eu não vou fazer isso — afirmou ele, categórico. O que ela estava propondo se chamava roubo.

Ela deu uma risada sarcástica.— Você está com medo. Aposto que

você não tem coragem.— Não estou com medo. Eu só não

quero roubar nada.— Você não vai roubar. Você vai pegar

o livro, vai me trazer, provar que ele existe e depois a gente vai devolver.

De alguma forma ela o convenceu. Foi dela o plano de invadir a biblioteca quando a bibliotecária saísse para ir ao banheiro. A ele coube descobrir, indagando aos colegas, a localização exata do livro.

Agora O Livro dos contos enfeitiçados estava ali em suas mãos. Ele virou mais uma página. A segurança transmitida por Melina fraquejou por um instante, e ele quase desistiu de ir adiante, mas continuou. Já tinha começado a ler quando se deu conta, horrorizado, do que fazia.

Tarde demais.O mundo se desfez ao seu redor.

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* * *

— Pedro querido, acorda, já é quase meio-dia.

Ele abriu os olhos, zonzo de sono, e descobriu-se em seu quarto, deitado na sua cama. Demorou dois ou três segundos para que se desse conta de que não estava no corredor da escola. O espanto rapidamente deu lugar ao alívio, quando lhe ocorreu que sua aventura assustadora com O Livro dos contos enfeitiçados tinha sido apenas um sonho.

— Pedro?— Oi, mãe, bom dia — ele disse, e se

espreguiçou, relaxado, feliz por ter despertado daquele sonho ruim, daquele pesadelo.

— Você não esqueceu que dia é hoje, não é?

Ele ficou confuso. Não fazia a mínima idéia do que ela estava falando.

— Não acredito, Pedro, você esqueceu mesmo. Feliz aniversário, meu bem!

Seu aniversário? Como ele podia ter esquecido? Claro que se lembrava!

— Puxa, obrigado, mãe. Eu não esqueci, não, eu só tava meio atrapalhado porque tive um sonho horrível...

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— Não pense mais nisso, querido. Agora vista-se depressa e vamos lá para baixo. Tenho uma surpresa. Um almoço de aniversário. Fiz pra você uma receita deliciosa. Algo que você adora — ela se levantou e saiu do quarto.

Enquanto se vestia, ele chegou à conclusão de que, para estar tão ansiosa, a mãe devia ter feito algo muito especial. Ele podia apostar que era camarão na moranga!

Desceu correndo as escadas, estranhando que o cheiro que sentia não era de camarão. Era... carne assada?

— FELIZ ANIVERSÁRIO! — seus pais e os dois irmãos o receberam com festa, reunidos ao redor da mesa de jantar. Bem no centro, uma travessa com algo cujo formato lhe parecia familiar. Examinando com mais atenção, ele sentiu náusea ao reconhecer aquilo... Não, não, podia ser!

— Viu, querido, como eu disse, fiz pra você comer algo que você adora!

Apesar da pele do resto do corpo ter sido retirada, ela tinha sido mantida na cabeça, incluindo as orelhas. Na boca, como para tornar ainda pior uma piada horrenda, uma bolinha colorida.

Pedro reconheceu, na travessa, o corpo de Tommy, o labrador que era seu melhor amigo quase desde que ele nascera.

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— Vamos comer! — gritou seu pai. — Coma! Coma! Você adorava ele!

Quando sua família avançou sobre o cachorro assado e o esquartejou, brigando pelos pedaços de carne, ele deu um grito de terror e tudo escureceu ao seu redor.

* * *

— Pedro? Pedro, você tá bem? — a voz de Melina parecia vir de longe.

Ele abriu os olhos. Estava caído no piso do corredor que levava à biblioteca. O Livro dos contos enfeitiçados estava a seu lado.

— Melina?— Você caiu de repente, como se

tivesse desmaiado. Tá tudo bem?— Eu tive um sonho horrível... — ele fez

menção de se levantar.— Deixa que eu te ajudo — ela o tocou

no braço, e imediatamente começou a gritar, histérica.

A mão dela estava pegando fogo.— Melina! — ele a pegou pelo braço, e

o ponto onde a tocou também irrompeu em chamas.

Ela urrava de forma horrível enquanto as chamas se espalhavam por seu corpo. Os gritos atraíram gente. Professores e alunos apareceram avançando pelo corredor.

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— Ajudem a Melina! Ajudem a Melina! — ele gritou, puxando um dos professores pela manga.

Imediatamente o professor foi envolto pelo fogo e começou a urrar.

Horrorizado, Pedro tentou se afastar da multidão que se formou à volta deles. Duas ou três pessoas o tocaram, e também começaram a arder.

O horror de tudo aquilo era mais do que ele podia suportar.

— NÃÃÃÃÂÃ...Gritando alucinado, ele correu e se

jogou pela janela mais próxima, e uma chuva de fragmentos de vidro acompanhou-o na queda de vários andares que garantia uma morte certa.

* * *

— ...ÃÃÃÃÃO! — gritando, Pedro acor-dou do pesadelo horrível que acabava de ter. Sentou-se na cama, chorando como uma criança e chamando por sua mãe.

Ficou ali um bom tempo, mas ninguém apareceu. Com uma sensação ruim no estômago, ele se levantou e abriu a porta do quarto.

— Mãe? — chamou, mais uma vez. Nenhuma resposta. Ele estava sozinho em

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casa. A sensação ruim se transformou em uma bola de chumbo alojada no estômago.

Ele desceu a escada devagar e quando chegou à metade teve vontade de vomitar. Dali podia ver parte da sala. Até onde a vista chegava, o carpete estava vermelho de sangue e pedaços de corpos. Havia uma perna calçando um tênis. O tênis de seu irmão mais novo.

— Tem mais um ali! — gritou alguém fora de seu campo de visão.

Alguém havia notado sua presença. Só podiam ser os responsáveis pelo massacre de sua família. Num ato reflexo, deu meia volta e correu escada acima, com a idéia de trancar-se num do quartos e de lá telefonar para a polícia.

Mas sua fuga foi interrompida pela dor terrível de garras poderosas cravando-se fundo na carne de suas costas. Pedro gritou quando se sentiu puxado para trás. Ao ter o braço esquerdo arrancado na altura do cotovelo, a dor e o pânico foram tão intensos que ele perdeu os sentidos.

* * *

No profundo silêncio do corredor sombrio, Melina abaixou-se e recolheu do piso dois objetos. Um deles era um estranho bulbo, uma raiz esbranquiçada, ressequida e

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retorcida, de formato incrivelmente semelhante a um diminuto ser humano. Um curioso detalhe vegetal permitia até mesmo atribuir-lhe o sexo masculino.

O outro era o pequeno livro de capa preta, que Melina afagou com carinho, antes de abrir e folhear. Em suas mãos, o número de páginas pareceu multiplicar-se. Quanto mais folheava, mais páginas pareciam surgir. Impossível caberem tantas num volume tão pequeno, a não ser, claro, por mágica. Dezenas de contos passaram rápidos sob seus dedos até chegar o último.

Ela o leu atenta. Ao terminar, foi para a biblioteca. A bibliotecária não estava em seu posto.

— Gala, onde você está? — chamou, enquanto colocava na pilha dos livros devolvidos o exemplar de Tempestades na África, a obra que ela mesma escrevera, tantas décadas atrás. Ela era muito mais velha do que aparentava.

— Estou aqui, professora, espere que já vou — soou a resposta, de dentro das entranhas da biblioteca. Gala apareceu daí a pouco. — Seu amiguinho fez uma bagunça, deu trabalho pôr tudo em ordem. Tem cera de vela por tudo que é canto. Espero que tenha valido a pena...

— Veja por você mesma — Melina lhe entregou o livro. — Acho que finalmente

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posso dar por terminado O Livro dos contos enfeitiçados.

Enquanto a mulher lia o conto, Melina penetrou nas profundezas da biblioteca, indo até um armário, oculto nas trevas do fundo do corredor mais distante. Abrindo-o, colocou a raiz junto com dezenas de outras.

— Adeus, “Pedro”, você foi ótimo enquanto durou — disse, em tom brincalhão.

Fechou o armário de novo e retornou para junto da bibliotecária.

Gala terminou de ler o conto e olhou Melina com admiração.

— Maravilhoso! Eu nunca esperaria que o pior pesadelo dele fosse ficar preso no livro, vivendo para sempre os pesadelos dos outros leitores. Belíssima metaliteratura, professora. Uma visão inusitada e espetacular. Parabéns.

— Obrigada — respondeu Melina, sem ocultar a satisfação. — Eu realmente teria preferido usar gente de verdade em vez de homúnculos de mandrágora. Todo o trabalho que dá para animá-los, fazê-los crescer até o tamanho humano, dotá-los de emoções, criar uma história e uma vida para eles, e no fim eles sempre voltam a ser meros tubérculos inertes. É meio frustrante, sabe? Mas tendo em vista que a diretora me proibiu de colocar os nossos alunos no livro, paciência, fazer o quê. Bom, o importante é

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que daqui pra frente mais nenhum estudante vai se recusar a ler Tempestades na África.

— Sim, especialmente quando a alternativa for ler O Livro dos contos enfeitiçados.

— Ah, não vejo a hora de dar a notícia a eles!

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Sofia

l

O sol filtrava-se, oblíquo e persistente, entre as nuvens escuras, e dava mais vida ao verde da grama e às azaléias e hibiscos floridos. No fim da tarde de sábado, parecia que a praça tentava impregnar-se ao máximo da energia luminosa, como se soubesse que chegava ao fim a breve trégua da chuva naquele inverno especialmente úmido.

Sofia correu os olhos pelas nuvens carregadas que se acumulavam. Sem muita vontade, levantou-se. Hora de voltar para casa, onde não haveria ninguém a sua espera. Prometeu a si mesma não se deixar abater só por estar sozinha no dia de seu aniversário de vinte e cinco anos. Ela tentava se convencer de que não tinha fi-cado muito desapontada por seus pais terem decidido viajar.

— De qualquer forma, Sofia, você nunca ligou muito para essa história de aniversário, não é? E sua mãe está tão feliz por ter ganhado da empresa a viagem... É só um fim de semana, prometo que depois

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vamos os três naquele restaurante italiano que você adora.

Sofia aceitou a proposta do pai com entusiasmo fingido. A mãe estava empolgada com a viagem, não ia ser ela a estragar tudo.

Assim, passaria seu aniversário sozinha, sem os pais e sem os amigos que poderia ter se não fosse tão tímida, tão introvertida.

— Perdão, você deixou isto ali no banco... Ela se virou, assustada com a mão que lhe tocava o braço, e deu de cara com um homem estendendo-lhe uma sombrinha. Sua sombrinha.

O desconforto súbito que a atacou tinha menos a ver com o flagrante de tola distração que com os olhos cor de mel e o sorriso bonito que apontavam em sua direção.

— O... brigada — o rosto dela ficou vermelho. Ele ia achar que ela era uma idiota mas, bem, o constrangimento não ia durar muito. Cumprida a missão, o moço se despediria agora e nunca mais aqueles olhos e aquele sorriso voltariam a sua vida. -— Eu tenho mesmo uma cabeça de vento.

Ela pegou a sombrinha que ele lhe entregava.

— Acontece, eu perco guarda-chuvas o tempo todo — e ele sorriu.

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Ela sorriu de volta.— Obrigada — repetiu, pondo com

aquela palavra um ponto final no episódio ao mesmo tempo delicioso e desconfortável.

— De nada — ele respondeu, como esperado. Mas em vez de dar adeus e ir-se embora para nunca mais, continuou olhando-a e sorrindo com o rosto inteiro, emoldurado pelo cabelo castanho-claro. Afinal, os olhos dele eram cor de mel ou esverdeados?

— Que foi? — encabulada, ela deu uma risada nervosa e sentiu o rosto pegar fogo.

— Estou pensando que talvez eu devesse te acompanhar por algum tempo e garantir que você não vai perder a sombrinha de novo, afinal... — ele encolheu os ombros e ergueu as mãos com as palmas para cima —... tive tanto trabalho pra te devolver ela que ia ser chato desperdiçar o esforço.

E seu sorriso ficou ainda mais luminoso, como se fosse possível.

A respiração de Sofia falhou por um instante. Aquilo era uma cantada? Puxa, esse cara bonitão tinha reparado nela, há quanto tempo não acontecia? Que presente de aniversário!

— Eu posso te acompanhar? — ele insistiu. — Quer dizer, se não for um abuso...

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Vamos lá, Sofia, não banque a idiota. Claro que o moço bonito pode te acompanhar. Não até a tua casa, mas pelo menos umas quadras.

Ela sorriu de volta.— Não, não é abuso nenhum.— Que bom. Um sol desses combina

com boa companhia.Os passos deles entraram em ritmo

com naturalidade. Como se fizessem isso há muito tempo. Como se não fossem se separar daí a poucos instantes.

— Você vem sempre aqui? — perguntou Sofia, tentando disfarçar sua timidez.

— A esta praça? Não, eu moro do outro lado da cidade, tinha um compromisso por aqui e aproveitei pra passear. E você? Vem com freqüência? É uma praça bonita — ele olhou ao redor, para os gramados e canteiros bem cuidados.

— Só nos fins de semana. Eu sou secretária, durante a semana trabalho o dia inteiro.

— E você mora aqui perto?— Eu... — enquanto ela hesitava em

revelar ao desconhecido charmoso que morava a poucas quadras dali, nuvens escuras de repente engoliram o sol, e um trovão ameaçador estremeceu o ar. Providencial.

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— A qualquer momento começa a chover — disse o homem, e pegou Sofia pelo braço. — Vem, vamos entrar aqui. Essa sua sombrinha não vai ser suficiente pra nós dois.

Nós dois? Sem dar chance a protestos, ele a puxou para dentro de um café, bem na hora em que o aguaceiro desabou. A salvo, viram um verdadeiro muro de água se formar de repente entre eles e o resto do mundo.

— Puxa, por pouco. Acho que estamos presos aqui — ele a olhou, e estava claro que aquilo não lhe parecia ruim. — Espero que você não tenha nenhum compromisso urgente...

Ela sacudiu a cabeça em negativa. Limpar o banheiro estava longe de ser um compromisso urgente.

— Que bom. E já que a gente tá aqui, posso te convidar pra um café?

Um café com aquele bonitão no solitário dia de seu aniversário ou dar uma desculpa e enfrentar o temporal debaixo de uma sombrinha vagabunda?

— Claro, por que não?Ele escolheu uma mesa no fundo, e

puxou a cadeira para ela se sentar. Cavalheiro perfeito, pediu à garçonete um café expresso para si e um cappuccino para Sofia, com uma porção de pão de queijo.

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— Duas — corrigiu-se. — Tão cedo essa chuva não passa.

— Deve ser a frente fria que falaram na tevê ontem. Frio e chuva é uma combinação horrível aqui em São Paulo.

— Mas tão bem acompanhado me parece ótima — ele sorriu e ela sentiu-se enrubescer outra vez. — Tem certeza de que não precisa avisar ninguém de que tá tudo bem? Seu namorado, marido, sei lá. Pode usar meu celular, se quiser.

Impossível, mas ela sentiu o rosto ainda mais afogueado.

— Não, ninguém. Mas obrigada por oferecer.

— De nada, é um prazer. Aliás, é um prazer estar aqui com você.

Aquilo estava ficando desconfortável. Ela não podia mais fingir que não percebia o interesse dele. Quer dizer, ele estava interessado, não estava? Não tinha como interpretar mal os galanteios dele, tinha? Ela respirou fundo, juntou coragem e encarou de frente.

— Por que você está fazendo isso?— Isso o quê? — sorriso.— Você está me cantando?— Sim, estou.— Por quê?— Por que não? Algum problema?

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A garçonete chegou com os pedidos, interrompendo uma conversa que se tornava cada vez mais embaraçosa para ela.

— Não, nenhum problema, só não gosto que... que... — Sofia disse depois que a moça se foi, e encolheu os ombros, sem completar a frase “...me façam de idiota”. Experiências anteriores.

Ele ficou sério de repente. Estendeu o braço por cima da mesa e cobriu a mão dela com a sua.

— Escuta, eu só disse que gosto da sua companhia e te convidei pra tomar um café. Acho que não fiz nada de errado e garanto que não pretendo fazer. Se quiser, eu até juro.

Ela tirou a mão de debaixo da dele e, para disfarçar o constrangimento, desviou a atenção para seu cappuccino.

— Desculpa, você está sendo gentil e eu fui grosseira.

Ele riu, pegou um pão de queijo e tomou um gole de café.

— Tudo bem. Qualquer garota bonita e simpática tem o direito de ficar de pé atrás com um recém-conhecido que esquece de se apresentar. Muito prazer. Fabrício.

— Sofia — ela apertou a mão que ele lhe estendia. Bonita e simpática?

— Come um pão de queijo. Pão de queijo combina com chuva.

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Sofia sorriu e aceitou, agradecida pela chance de disfarçar o embaraço.

Num impulso decidiu que toda aquela prevenção era excessiva. Ele não tinha mesmo feito nada errado. Ele estava interessado nela e, pra ser sincera, ela também o achava interessante. Que tal, dona Sofia, pelo menos uma vez na vida relaxar e deixar as coisas acontecerem? Se for adiante, ótimo, mas se não der em nada, que importa, você está sozinha e desencanada, e pior não vai ficar.

— E você, trabalha com quê? — ela perguntou, levando a xícara aos lábios.

— Sou professor.Hum, ter um professor com um sorriso

daqueles... Será que alguma aluna conseguia prestar atenção na aula?

— E dá aula de quê?— Bom, várias coisas, História,

Filosofia... e algo que chamo de Auto-Descoberta.

— Tipo auto-ajuda? — ela não conseguiu evitar uma careta.

— Não, nada disso — os olhos dele de repente se fixaram nos dela. — Eu ajudo as pessoas a descobrirem... coisas... sobre elas mesmas. Coisas que elas jamais desconfiaram.

Algo na resposta inquietou Sofia. Ou talvez fosse o olhar dele. Bobagem, ela

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pensou, você ainda tá procurando pêlo em ovo.

— Você disse que tinha um compromisso por aqui, veio dar alguma aula? — ela perguntou, tentando achar normal o olhar intenso que ele ainda mantinha.

— Na verdade... — ele se interrompeu e tomou um gole de café — ...vim me encontrar com você.

Alarmada, Sofia quase derrubou a xícara. O que era aquilo?

— Co...mo assim, me encontrar? A gente acabou de se conhecer, como...

— Eu a conheço há muito tempo, Sofia Vasconcelos, e vim lhe dar um presente por seu aniversário de vinte e cinco anos.

Ela estava assustada. De repente desejou sair dali e ir embora, perder-se na chuva e nunca mais rever aquele homem que dizia coisas estranhas e sabia tanto sobre ela.

Tentou levantar-se, mas não conseguiu. O olhar dele a paralisava, penetrava por seus olhos e parecia chegar-lhe à alma, anulando suas forças e impedindo qualquer reação.

E então o ambiente começou a dançar ao redor dela. Tudo se movia, as paredes se afastavam e se aproximavam, como se pulsassem. Mesas, cadeiras, o chão, subiam

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e desciam, numa ondulação sinuosa e inquieta. Nada se mantinha no lugar, apenas o homem diante dela e seu olhar implacável. O que estava acontecendo?

— Você aceitou o alimento que ofereci. De livre vontade se sujeitou a meu poder. Prometo honrar sua confiança. Sua vontade é a minha, mas não lhe imporei nada que traga dano a você ou a quem for. Prometo respeitar o poder que me concedeu — ele murmurava como se orasse. — Peço-lhe perdão, desde já, pelo que terei de fazer.

Sofia estava assustada.— O quê...? Não! — tentou mexer-se e

não conseguiu.— Que seus sentidos a abandonem...

agora! Um torvelinho negro envolveu Sofia e

engoliu sua consciência. Tudo se apagou.

2

Ela flutuava, mergulhada em águas negras. A escuridão total era cálida, confortável. Convidativa, sair dali pra quê?

De alguma forma sabia que estava muito abaixo da superfície e que sob ela as águas se perdiam numa profundeza sem fim. Também sabia que, por mais acolhedor

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que o refúgio aquático parecesse, ela precisava escapar dele ou seria aprisionada para sempre no imenso mar negro. Resis-tindo à vontade de afundar no abismo, Sofia nadou para a superfície. Era difícil mover-se no líquido viscoso, que lhe prendia os membros e reduzia seus movimentos a uma câmara lenta. Quanto mais subia, mais custoso era o progresso. As forças falhavam, os músculos doíam, e ela já ia perdendo as esperanças quando de repente sua cabeça rompeu a superfície.

No mesmo instante a ilusão se desfez. Ela se descobriu em um aposento às escuras, pés e mãos amarrados à cama em que estava deitada. Não via nada e não podia se mexer. Assustada, quis gritar, mas uma mordaça tampava-lhe a boca. Ela se debateu, sem conseguir se soltar. As cordas e a mordaça estavam firmes. A vontade de chorar trancou sua garganta, e por alguns instantes não pôde respirar. A muito custo se acalmou, e a respiração voltou a um ritmo quase normal. Não conseguiria nada desesperando-se.

Que teria acontecido? Que lugar era este? Aquele homem, Fabrício, devia ter drogado seu cappuccino e a seqüestrara. Mais cedo ou mais tarde ele voltaria a aparecer. Ela tinha que se controlar e pensar com clareza, para tentar escapar daquela

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situação horrível. Não havia alternativa senão esperar, na escuridão, com os nervos à flor da pele.

O tempo escoou, viscoso como as águas negras do delírio de instantes atrás.

Ela não fazia idéia de quanto tempo havia passado quando finalmente ouviu um barulho de chave na fechadura e uma porta se abriu. A luz de fora ofuscou seus olhos e emoldurou uma silhueta na porta. Fabrício, seu captor. O corpo dela se retesou enquanto Fabrício, sem dizer uma palavra, se aproximou. A luz por trás dele não deixava Sofia ver-lhe o rosto, mas ela bem imaginava suas intenções. Deviam ser as piores possíveis.

Ela queria gritar, espernear, sair correndo. Imobilizada pelas amarras, o máximo que podia fazer era controlar a respiração, estar alerta e vigiar os movimentos do homem que a aprisionara. Ele acendeu uma luz de cabeceira e Sofia viu-lhe a face. Onde esperava ver uma expressão faminta, ansiosa, não viu nada. O rosto dele estava neutro. Vazio.

Ele se sentou na cama, ao lado de Sofia.

— Você tem idéia do que quero fazer com você? — sussurrou, tocando a face dela.

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Num movimento lento, a mão deslizou, acariciando o pescoço por um instante, e em seguida continuou descendo pelo corpo dela, afagando-a por cima da roupa até se deter sobre um dos seios. Os dedos exploraram a carne macia e delicada, e então apertaram. Pega de surpresa, Sofia gritou dentro da mordaça. Lágrimas de dor e de humilhação brotaram de seus olhos.

Fabrício se debruçou por cima de seu corpo imobilizado e indefeso, apertando-a de encontro ao colchão. Seus lábios tocaram a orelha dela, enquanto ela sentia a mão dele descendo por seu corpo até tocar, por cima do jeans, suas partes íntimas. Um espasmo de terror sacudiu-a, mas ela estava bem presa pelas cordas e pelo peso dele. A mão entre suas pernas começou a se mover de forma ritmada e obscena, e ele a apertava com força contra ela, como se quisesse atravessar o tecido da calça. Doía.

A respiração em sua orelha era ofegante, asquerosa.

— Prazer e dor, está ouvindo, Sofia? As coisas que vou fazer com você... Quero te ver gemendo e chorando, até você não saber se está suplicando para que eu pare ou implorando por mais.

Sofia estava aterrorizada. Ele tinha parecido tão gentil, tão tranqüilo, quando se conheceram, como podia ter mudado tanto?

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Como pudera um animal daqueles se esconder tão bem detrás de uma aparência de equilíbrio e civilidade? Ele era um maníaco, um tarado. Como podia ser que ela não tivesse percebido?

A língua dele lambeu cada dobra e curva da orelha dela.

— Seu corpo está a minha mercê, posso fazer o que bem entender. E quando eu terminar, você vai ter nojo de si mesma.

Ele mudou de posição e ficou a cavaleiro sobre Sofia, seu quadril pressionando o dela. Suas mãos envolveram os seios dela e apertaram. Mais uma vez ela gemeu.

— Você não gosta de dor, Sofia? Pois vou te ensinar a gostar.

Ele apertou de novo. Sofia fechou os olhos e gritou dentro da mordaça. Algo inesperado aconteceu então. Dentro de si ela sentiu brotar de repente uma tremenda energia, que se condensou em algo que, para ela, era como se fosse uma bola muito brilhante, que foi aumentando de tamanho e aumentando, até por fim explodir, uma explosão muda de energia e luz, que a deixou desorientada e zonza.

Abriu os olhos ao perceber, confusa, que Fabrício não estava mais sobre ela. Estava caído do outro lado do aposento. Apoiando-se na parede, ele ficou de joelhos.

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— O que foi que você fez? — perguntou ele, numa voz rouca e excitada.

Ele perguntava a ela? Mas ela não tinha feito nada!

Ele se ergueu e veio até ela, cambaleante. Com uma mão segurou-lhe o rosto e apertou até que doesse.

— Não sei o que foi aquilo, mas você continua amarrada e eu ainda posso fazer com você o que eu quiser — ele aproximou o rosto do dela e sussurrou. — Essas cordas, elas são minhas amigas. Enquanto elas estiverem aí, você é minha.

Ele se endireitou e deu um tapa no rosto dela.

Ultrajada, ofendida, Sofia se encheu de raiva, e mais uma vez sentiu aquela energia inexplicável que se acumulava dentro de si. Ainda sem entender o que era aquilo, ela sabia, no entanto, o que ia acontecer. Intuitivamente, quando soube que a explosão era iminente, concentrou-se nas cordas que a sujeitavam. Um brilho ofuscante encheu sua mente, e ela se maravilhou ao constatar que estava livre. A explosão de energia havia rompido as cordas.

Vendo que Sofia se soltara, Fabrício deu um urro e se jogou sobre ela. Sofia, porém, não hesitou em usar sua misteriosa habilidade recém-descoberta. Com

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espantosa facilidade conjurou uma esfera compacta de energia, que ao explodir jogou-o longe outra vez.

Com dificuldade, ela se levantou e ficou de pé no meio do quarto, pronta para se defender de um novo ataque de seu captor. Enquanto o via pôr-se em pé, concluiu que a melhor estratégia seria atacar primeiro. Empolgada com o estranho poder que descobrira em si mesma, reuniu uma vez mais sua energia. Aquilo era cada vez mais fácil.

Adivinhando-lhe a intenção, Fabrício ergueu as mãos com as palmas voltadas para ela, num gesto de conciliação.

— Não faz isso, Sofia, não gaste sua força à toa! Pára! Desculpa, desculpa! Você tem que ouvir minha explicação! — gritou.

Tarde demais.Sofia lançou contra ele outra esfera de

energia. Mas agora, em vez de derrubá-lo, a energia rebotou de volta e acertou Sofia em cheio, jogando-a com violência para trás, sobre a cama. Apesar do colchão amortecer o impacto, ela ficou zonza. Um cansaço extremo a dominou, mas ela não podia baixar a guarda. Precisava pôr-se de pé, pre-cisava se proteger. Não podia permitir que Fabrício a dominasse de novo!

— Fica quieta, Sofia, por favor! Preciso te contar algo, me ouve! — e a mão dele

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traçou no ar uma série de movimentos sinuosos.

De repente o corpo de Sofia deixou de obedecer-lhe. Por mais que tentasse, não conseguia se mexer. Deitada, imobilizada, tentou usar o poder recém-descoberto, mas não conseguiu reunir energia alguma.

Fabrício veio até ela, mas deteve-se a uma certa distância e não tentou tocá-la. De novo ergueu a mão num gesto apaziguador.

— Calma, eu não vou te atacar de novo, ok? Desculpa ter mandado a tua energia de volta. Se eu não fizesse isso, podia ter morrido. Você é muito mais forte que eu. Me perdoa pelas coisas horríveis que fiz. Eu juro, juro pela minha alma, juro pelo que você quiser, que não vou mais encostar um dedo em você sem seu consentimento, tá bem?

Ele deu um passo para trás e olhou-a em silêncio, inseguro, esperando sua reação. A respiração de Sofia estava pesada.

— Não chega perto de mim — disse ela.— Não vou chegar — garantiu ele, mais

que depressa.— Por que é que eu não consigo me

mexer? Que que você está fazendo comigo?— Se prometer que vai ficar quieta, que

não vai me atacar nem sair correndo, eu te solto. Você gastou muita energia, se não descansar é capaz de perder os sentidos.

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— Puxa, que comovente a sua preocupação. Pra alguém que nem cinco minutos atrás estava adorando me humilhar...

— Eu odiei fazer aquilo, Sofia, você precisa acreditar em mim. Eu tinha que te convencer de que você estava em perigo. Era o jeito mais rápido de despertar o seu poder.

— Como é que é? Que maluquice é essa?

— Escuta, acho horrível te prender desse jeito. Posso te soltar? Você promete que fica quieta até recuperar as forças? Eu faço um chá pra você.

— Tá, me solta. Eu fico quieta se você ficar longe de mim. E eu não quero chá, eu quero saber que merda está acontecendo — disse ela, com uma rispidez que em absoluto era típica dela.

Ele concordou com um gesto de cabeça, e outra vez sua mão fez dois ou três gestos no ar. Na mesma hora Sofia se viu livre.

— Como você faz isso? — perguntou, sentando-se devagar. Ela estava meio tonta.

— É melhor você perguntar como nós fazemos isso. Eu sou um bruxo. E você também é bruxa — ao ver a expressão dela, de total incredulidade, ele se deteve e revirou os olhos para cima, suspirando. — E

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já vi que vou gastar horas tentando te convencer disso!

3

Sozinha enquanto Fabrício preparava o chá, Sofia olhou a seu redor. Apesar dele protestar que ela devia ficar deitada, repousando, ela insistiu em sair daquele maldito quarto, até que ele concordou e a ajudou a ir para a sala, instalando-a numa poltrona confortável. Estavam obviamente na casa dele. As estantes carregadas de livros e a mesa de jantar coberta de papéis e anotações indicavam que ele era de fato professor.

Vindo da cozinha, Fabrício lhe entregou uma caneca fumegante, e garantiu que a bebida iria ajudá-la a recuperar as forças. Sentou-se o mais longe possível dela. Dava para notar sua ansiedade para contar a história toda, mas ele esperou, paciente, que ela tomasse bem a metade da infusão quente e saborosa.

— Você se sente melhor? — perguntou, solícito e preocupado.

— Sim — ela respondeu, surpresa com a rapidez com que melhorava. —A tontura passou, e já não estou tão cansada.

— Que bom.— Ok, agora vai falando. Que história é

essa de bruxas?

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— É como eu disse. Eu sou bruxo e você é bruxa.

— Ridículo. Bruxas não existem.— Tá, tudo bem. Você tem razão. Então

o que foram aquelas explosões de energia que você criou não faz nem quinze minutos?

Ela abriu a boca e fechou de novo sem saber o que dizer. Hesitou antes de admitir.

— Não sei.— E como você acha que consegui te

dominar, lá no café e agora há pouco?Ela não respondeu. Não tinha

argumentos. Não tinha explicações.— Você é uma bruxa, assim como eu —

ele repetiu.— Se eu sou uma bruxa, como é que

em vinte e cinco anos de vida nunca me aconteceu nada de sobrenatural? Ou eu virei bruxa assim de repente? Abracadabra, joelho de cabra, e puff! Com vocês, a bruxinha Sofia!

— Você é bruxa desde que nasceu, mas seus poderes ficaram adormecidos até agora. Eu...

— Na boa, Fabrício... — ela o interrom-peu — ...se eu fosse você eu não saía por aí contando essa história ri-dí-cu-la. Você vai acabar tomando um processo da J. K. Rowling por plagiar o Harry Potter.

— Por favor, Sofia, acredite, é a mais pura verdade.

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— Ahã, tá. Ele suspirou.— Sofia... acho que seu chá esfriou —

disse, apontando o dedo para a caneca na mão dela. — Quer que eu dê uma esquentadinha?

— Não, obrigada, está bom assim. E não mude de assun... ai! Ei, o quê...?!

A caneca havia esquentado de repente, queimando sua mão. Assustada, ela a soltou e, em vez de se espatifar no chão, o objeto agora flutuava no ar a sua frente. Nem uma gota de chá tinha caído.

— Desculpa, acho que esquentei demais. Ainda bem que fui mais rápido que a lei da gravidade. Pode pegar, acho que agora a temperatura está boa.

A caneca subiu até a altura das mãos de Sofia, que a pegou, boquiaberta.

— Quer que eu repita, Sofia? Nós... somos... bruxos. Nós temos poderes. Eu uso os meus faz tempo, e hoje te ajudei a descobrir os seus. Qual parte você não entendeu? Se quiser, posso repetir de novo até ficar claro.

— Mas como...? Não é possível... Eu sou uma br... — balbuciou ela, tentando assimilar a novidade. — Mas como aconteceu? Como foi que meus poderes apareceram, assim de uma hora pra outra?

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— Acontece com muitos de nós. Os poderes só despertam numa emergência, quando são necessários.

— E hoje...?— Eu criei essa emergência.— Eu podia ter passado minha vida

toda sem descobrir isso? Que sou uma bruxa?

— Sim. Acontece muito. Quer um exemplo? Tem um bem perto de você. Seus pais.

— O quê? — aquilo ia ficando cada vez mais esquisito. — Meus pais são bruxos?

— Sim. Mas eles não sabem disso. Sofia revirou os olhos para cima.— Ufa, que alívio, por um instante

achei que você ia me dizer que meus pais de verdade tinham sido mortos por um feiticeiro pérfido, e que fui criada por pais adotivos que nunca souberam de nada.

— Sofia, não faça piada, essa é a minha história — disse Fabrício, com voz sombria.

— Hein? — ela se sobressaltou.— Te enganei — ele disse, e sorriu.De repente ela achou o sorriso dele

muito bonito, e se lembrou da primeira vez em que ele lhe falou. Relembrou a forma como tinham se conhecido.

— Não foi por acaso que a gente se encontrou na praça hoje, não é?

Page 138: Martha O Livro Dos Contos Enfeiticados

— Não.— Você tinha planejado tudo?— Sim.— Falar comigo na praça, me

seqüestrar, bancar o maníaco sexual... Quer dizer, você estava fingindo, né?

— Estava. Mil desculpas, de novo. E sim, eu planejei tudo.

— Até a sombrinha esquecida? — ela ergueu as sobrancelhas.

— Não, isso foi coincidência. Eu teria arranjado outra desculpa — ele sorriu. — Bom, acho que teria ido falar com você mesmo que não fosse quem eu estava procurando.

Sofia gostou daquilo, mas ela tinha um objetivo e não ia se distrair.

— De onde você me conhece? E como sabe tanto sobre mim? Meu aniversário, o que eu sou... E por que o interesse em despertar meus... poderes?

— Eu sempre soube quem você era... e o que você é.

— Sempre desde quando?— Desde que você nasceu.— Ah, nem vem, isso não é possível —

ela franziu o cenho, cética.Ele a olhou em silêncio por um

instante. Levantou-se e pegou algo no caos da mesa de jantar. Um envelope. Estendeu-o para Sofia.

Page 139: Martha O Livro Dos Contos Enfeiticados

— Se eu disser mais alguma coisa sem provas, você vai me acusar de novo de estar copiando uma escritora qualquer por aí...

Sofia tirou uma foto de dentro do envelope. Uma foto que conhecia.

— Mas este é o meu batizado! Como você conseguiu esta foto?

— Nada de mais, foi só pedir para o fotógrafo. Olha bem, Sofia, veja as pessoas que estão aí.

Ela examinou os rostos, a maioria deles muito familiares: ela própria, irreconhecível na versão bebê gorducho, papai, mamãe e seus padrinhos, muito mais jovens do que hoje, as duas tias, um dos tios, dois primos hoje já quarentões, o padre e... Ela olhou mais de perto. Ergueu os olhos para o rosto do homem de pé a sua frente e voltou a olhar a foto, espantada

— M-mas... não pode ser! Essa foto tem quase vinte e cinco anos, e tem um cara aqui igualzinho a você. Não pode ser você, você não é muito mais velho que eu, devia ser uma criança nessa época. E o seu pai?

— Sou eu na foto, Sofia. Eu sou, hã, um pouco mais velho do que aparento.

— Não, é impossível. Não me enrola di-zendo que é bem conservado. Não é nada disso. Você está exatamente igual. Você não envelheceu nem um dia desde que essa foto foi feita.

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— Agora você acredita que eu te conheço há muito tempo?

— Deus do céu... — murmurou Sofia, sem conseguir tirar os olhos da foto.

Fabrício se ajoelhou diante dela, tirou a foto de seus dedos e segurou-lhe as mãos.

— Sofia, eu tenho algo pra te contar. Promete que presta atenção?

Impressionada com a seriedade dele, ela fez que sim com a cabeça.

— Por mais estranho que pareça — continuou ele — tudo o que vou lhe dizer é absolutamente verdadeiro, ok?

— Tá bem.— Nós não somos os únicos bruxos que

existem. No mundo todo há outros como nós, e formamos uma comunidade liderada pelos mais poderosos entre nós, que chamamos de Sábios. São eles que estabelecem as leis e controlam a co-munidade, para evitar que qualquer bruxo prejudique alguém com seus poderes.

Sofia estava outra vez com cara de quem não acreditava numa palavra.

— Você tem certeza de que não anda lendo demais os liv...

Ele a interrompeu com um gesto.— Pára. Não vem com essa de novo.

Você já ouviu falar da ficção copiando a realidade? Pois foi o que aconteceu. Por

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sorte, a maioria das pessoas acha que é tudo invenção literária.

Sofia arregalou os olhos.— Posso continuar? — ele perguntou,

suavizando o tom da voz.Ela fez que sim.— Quando você nasceu, minha querida,

os Sábios tiveram uma visão. Por vinte e cinco anos você teria uma vida normal, sem poderes, alheia a sua verdadeira natureza. Ninguém, nem mesmo você, suspeitaria de nada. Ao cumprir um quarto de século, seus poderes despertariam, e você estaria destinada a cumprir uma missão.

— Missão, eu?— Sim.— Que missão?— Evitar que um grande mal atinja a

humanidade.— Você está me gozando.— Não.— Eu tenho a missão de salvar a

humanidade.— Bom, não sei se esse grande mal

chegaria a pôr em risco a humanidade, mas...

— E que grande mal é esse? Desculpe, mas se me disser que o nome dele não pode ser pronunciado, vou ser obrigada a rir na sua cara.

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Por fim a paciência de Fabrício se esgotou. Levantando-se, segurou Sofia pelos braços e a ergueu a sua frente.

— Quer parar com isso, Sofia? — ele a sacudiu com força. — Pela última vez, isso não é brincadeira! Se não me levar a sério, você não chega viva ao final do dia!

— Me solta, Fabrício! — gritou Sofia, as-sustada. — Você está me ameaçando?

— Desculpe — ele murmurou ao soltá-la, constrangido. — Não, não estou te ameaçando. Estou te alertando para o perigo que você corre.

— Você me assustou.— Desculpa, Sofia. Mas isto é sério,

mortalmente sério.Ele a tomou pelas mãos de novo e a fez

sentar-se a seu lado no sofá.— O nome dela é Olympia de Montreuil.

Ela é uma bruxa antiga, e há centenas de anos foi vaticinado que algum dia poderia alcançar um poder jamais igualado por outro bruxo. Ela está destinada a gerar um filho, que será seu amante, e juntos trarão o caos à humanidade. Surgiria, porém, alguém com a capacidade de impedi-la. Há séculos Olympia espera a vinda dessa pessoa, para destruí-la antes que tenha chance de agir. Você, Sofia, é essa pessoa. E o poder que hoje despertou dentro de você é tão grande que a essa altura Olympia já sabe que

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finalmente surgiu a pessoa que pode derrotá-la.

Sofia o olhou por alguns instantes, indecisa. Acreditava nele ou não? Resolveu acreditar. Pelo menos por enquanto, para ver onde é que a coisa ia parar.

— Tá, mas sabendo que mais cedo ou mais tarde eu ia aparecer, por que é que ela já não teve esse filho que vai ser... ugh, o amante dela?

— Pelo que se sabe, ela vem tentando há muito tempo, mas não consegue.

— Agora, se todos sabem que Olympia é tão perigosa, por que até agora não deram um jeito nela?

— Não foi por falta de tentar, mas ela é esperta, e durante séculos tem conseguido se esconder. Ela já foi localizada várias vezes, mas sempre consegue escapar de novo.

— Se ela é tão esperta assim, por que é que não tentou me achar e me destruir antes que meus poderes despertassem? Ia ser muito mais fácil.

— Sim, seria, mas aí ela não poderia absorver os seus poderes. Ela não quer só te destruir, ela quer te usar para ficar mais forte ainda. É provável que Olympia já saiba quem você é. Talvez ela só esteja esperando o momento certo para te desafiar.

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De repente Sofia foi assaltada pela dúvida. Talvez tudo aquilo fosse mesmo verdade. No que sua vida tinha se transformado?

— Meu Deus, não é possível, tem algo muito errado nessa história. Eu não sou a pessoa que você está procurando. Eu nunca na vida dei sequer um tapa em alguém, você acha que eu vou entrar numa briga com uma feiticeira centenária, poderosíssima e ainda por cima levar a melhor? Sério, alguém cometeu um engano monstruoso!

— Não há engano, Sofia. Os Sábios não se enganam nas visões do futuro.

— Se é uma visão do futuro, a gente não precisa se preocupar, já que vai acontecer de qualquer jeito... — disse Sofia, procurando alívio na idéia.

— Não é bem assim. A visão mostra um futuro provável. Depende de nós se ele vai se realizar ou não.

A esperança dela se desfez rápido.— Você sempre soube o que eu era, o

que aconteceria comigo, e nunca tentou me avisar, me preparar...

— Seria um risco transgredir o caminho traçado pela profecia. Olympia reagiria, e sem os seus poderes não teríamos como nos defender.

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— Mas você poderia ter despertado meus poderes antes... — ela insistiu.

— Eles não estavam prontos para ser despertados, Sofia, e sem seus poderes plenos, você não poderia enfrentar a Olympia.

Ela se sentiu sufocar pela angústia ante o estranho rumo tomado por sua vida.

— Eu não vou conseguir, não adianta, eu vou estragar tudo. Encontre outra pessoa.

— Não, Sofia, você não vai estragar nada. Você é a pessoa certa, sei disso desde que você nasceu. Quando chegar a hora você vai saber o que fazer, como soube quando eu a ameacei. O poder está dentro de você, nunca se esqueça disso.

Lágrimas escorreram pelo rosto de Sofia. Fabrício envolveu-a nos braços. Em vez de tranqüilizá-la, a demonstração de carinho fez seu choro sair ainda mais sentido. Fabrício a aconchegou mais e apoiou o rosto no alto da cabeça dela, beijando os cabelos macios que recendiam a camomila.

— Chore o quanto quiser, Sofia, que isso faz bem. Mas não se sinta desamparada, por que você não está. Estou aqui pra te ajudar, e não vou sair do seu lado nem por um instante, está ouvindo? Eu não vou te deixar sozinha.

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— Você promete? — disse ela, a face afundada no peito dele e com voz esperançosa.

Ele afagou o cabelo dela.— Claro que prometo, querida. Mais do

que isso, é a minha missão. Não fui enviado até você só para despertar seus poderes e jogar você na batalha. Eu fui mandado para lutar ao seu lado. Nós estamos juntos nessa.

— Você é um dos Sábios?— Quem me dera... — ele deu um

sorrisinho breve.— Por que você não mudou nesse

tempo todo? Quantos anos você tem? Você também é antigo, como a Olympia?

— Não, nem sou tão velho assim. Eu só parei de envelhecer no dia em que você nasceu. Desde esse dia nossas vidas estão entrelaçadas. E agora que já ajudei a despertar seus poderes, vou continuar a envelhecer, como qualquer pessoa normal.

Aos poucos os soluços dela se acalmaram. O rosto ainda se enterrava no peito dele e as mãos continuavam crispadas, agarradas à camisa dele, mas os dedos já não se cerravam com tanta força. Sua respiração se acalmou, e ela percebeu que gostava de sentir aqueles braços a seu redor. Ele, por sua vez, estava encantado em perceber o quão bem seus corpos se

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encaixavam. Pareciam ter sido feitos para estarem juntos.

Bem que a gente podia ficar assim pra sempre! Sem que soubessem, o mesmo pensamento cruzou a mente de ambos ao mesmo tempo! Para sempre seria impossível, mas eles continuaram abraçados ali no sofá por um longo tempo.

4

Passava da meia-noite quando Sofia e Fabrício chegaram à casa dela, um sobrado antigo mas bem conservado, numa das raras ruas tranqüilas que sobreviviam na Lapa. Tinha sido difícil convencer Sofia a voltar para casa. Ela queria fugir, esconder-se.

— Eu nem sei que poderes são esses que você diz que eu tenho, como é que vou usá-los? Ou controlá-los? Vamos pra algum lugar bem longe, a Olympia não vai nos achar e aí, com tempo, você me ensina tudo sobre eles e a gente volta quando eu souber usá-los.

— Não, Sofia, quanto mais tempo passar, mais tempo ela vai ter pra se preparar.

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— Mas você disse que há séculos ela está esperando que eu apareça, você acha que uns dias, umas semanas vão fazer diferença?

— Não é bem assim. Antes ela não sabia o que teria de enfrentar. Quando os seus poderes despertaram, ela sentiu a mudança no balanço de forças do Universo. Ela aprendeu muito sobre você, e vai continuar aprendendo. Ela vai usar todas as informações que conseguir e vai arquitetar a melhor maneira de te derrotar. Temos que agir agora, enquanto ela ainda não sabe bem o que você é. É a única forma de pegá-la de surpresa.

— E por que eu tenho que voltar pra casa?

— É o lugar mais fácil pra ela te achar. Lembre-se de que ela já deve saber que você mora lá.

Sofia estremeceu, e olhou Fabrício dentro dos olhos

— É como me atirar direto na boca do lobo.

Ele a abraçou e beijou o alto de sua cabeça.

— Não é não, querida. Nós vamos é pegar o inimigo de surpresa. E vamos derrotá-lo.

O carinho do abraço dele a convencera. Agora estavam diante da casa escura,

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envoltos no quase-silêncio da noite urbana, cheio dos ruídos abafados do trânsito distante, cães latindo e televisores insones. A lua cheia brilhava no centro do céu, ofuscada pela iluminação viária.

Enquanto procurava na bolsa a chave do portão, Sofia foi tomada por uma sensação estranha. Algo estava errado. Muito errado. Alarmada, ela olhou para Fabrício, numa pergunta muda.

— Também senti — sussurrou ele. — Tem alguma coisa acontecendo.

— Sofia, Sofia, vem cá, menina!Eles se viraram, assustados. O

chamado viera da calçada em frente, a meia voz, como se a pessoa tentasse ser discreta. Sob a luz de néon da rua, uma mulher gesticulava, chamando-os. Uns cinqüenta anos, permanente loira e batom forte. Ca-saco de lã verde contrastando com o xadrez vermelho e preto da saia. Os brincos de pérolas falsas deviam ter sido elegantes décadas atrás.

— Quem é? — perguntou Fabrício.— É a dona Marlene. Vizinha antiga.— Nossa, ela acha que vai aonde,

numa festa dos anos setenta?Apesar da situação, Sofia riu.— O incrível é que ela sempre está

bem acompanhada. Uns caras lindos, eu bem que precisava ter umas aulas com ela.

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— Não precisava, não — atalhou ele, seco, pegando-a pela mão para cruzar a rua.

Ei, isso foi ciúmes? surpreendeu-se ela, mas não teve chance de saborear a novidade. A vizinha estava aflita.

— Sofia, ainda bem que você apareceu. Estava quase chamando a polícia...

— Que foi, dona Marlene?— Entrou gente na sua casa. Faz uma

hora mais ou menos, eu estava espiando a rua e vi um vulto na janela da sala.

Sofia olhou assustada para Fabrício, e ele assentiu com a cabeça. Não era coincidência. Olympia de Montreuil estava no encalço dela.

— Quantas pessoas eram? — ele perguntou.

— Eu só vi uma.— E ainda está lá dentro?— Não sei, mas não vi ninguém saindo.— Que que a gente faz, Fabrício? —

perguntou Sofia, cada vez mais assustada.— Quem é o moço, querida? Acho que

não o conheço — atalhou a vizinha.Sofia fez uma rápida apresentação.

Dona Marlene e Fabrício apertaram-se as mãos e Sofia não deixou de perceber o flerte no olhar da vizinha. Não era surpresa alguma.

O que a surpreendeu foi sua própria reação. Ciúmes. Ocorreu-lhe que talvez

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estivesse se apaixonando por Fabrício. Que coisa. Horas atrás ela lamentava a solidão no dia de seu aniversário. De repente, ela é uma bruxa poderosa com uma missão impossível, e de quebra cai um bonitão no seu colo. Quem ia pensar...

— Acho que a gente devia chamar a polícia — sugeriu, voltando a atenção para o que era de fato importante.

— Não, nada de polícia. A gente pode resolver isso sozinho — Fabrício se apressou em dizer, e olhou Sofia de um modo claro: a polícia não devia se meter em assuntos de bruxos. — Eu vou lá ver o que está acontecendo. Você fica aqui, que é mais seguro.

— Nada disso, se você for eu vou também. Não vou deixar você entrar lá sozinho.

Ele a olhou com expressão séria.— Tem algo que eu possa dizer pra te

fazer mudar de idéia?Ela ergueu o queixo, decidida.— Não.Ele deu um sorriso que traía o orgulho

pela coragem dela.— Tenham cuidado! — recomendou

dona Marlene num sussurro que poderia ser ouvido na esquina, enquanto eles cruzavam a rua.

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O portão e a porta de entrada estavam trancados a chave, como ela os deixara ao sair naquela mesma tarde, que já parecia séculos distante no passado. Nenhum sinal de arrombamento. Entraram na casa com cautela, e Sofia correu os olhos pela sala.

— Não tem nada fora do lugar. Quem sabe ela se enganou... — disse, hesitante.

— Olympia esteve aqui. Mas já foi embora — afirmou Fabrício com convicção.

Sofia viu que ele tinha os olhos fechados.

— Como você sabe? — sussurrou.Ele a olhou e segurou sua mão, num

gesto que já era familiar aos dois.— Feche os olhos e sinta. Ela fez o que

ele pedia.— Eu não...— Relaxe, solte sua consciência, deixe

a mente percorrer a casa — ele murmurou, soltando-lhe a mão.

Sem ter certeza de ter entendido, Sofia imaginou que, mesmo de olhos fechados, ainda via ao seu redor. Tateou a sala com a mente. Num primeiro instante, teve a consciência de que ali não havia ninguém além deles. Mais confiante, explorou mentalmente o resto da casa e confirmou que estavam a sós.

— Não tem mais ninguém aqui — disse, maravilhada por descobrir o novo sentido.

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— Agora concentre-se, sinta a energia ao seu redor, tente ver com os olhos da mente o mundo imaterial que nos cerca.

Mais uma vez ela obedeceu. De repente sua mente mergulhou numa escuridão que nada tinha a ver com os olhos fechados, e ela soltou um grito assustado. A escuridão invisível preenchia toda a sala e sufocava-a, densa, pesada.

— Fixe a mente no que está sentindo e abra os olhos.

Quando Sofia abriu os olhos, a escuridão continuou lá, sobreposta ao cenário familiar da sala de estar. Uma aura sombria, no movimento constante de torvelinhos que pareciam estrangular os objetos, e de gigantescas línguas obscenas que tudo lambiam. Ela gritou de novo quando uma onda deslizou, viscosa, fria, por sua perna acima. Ela tentou se desviar e afastá-la com um tapa, mas sua mão atravessou, inócua, a língua de escuridão que acompanhou o movimento da perna.

— O que é isso? — perguntou, enojada.— É a marca da presença de Olympia.

Ela serve de espiã para a dona, e a essa altura nossa inimiga já sabe que você voltou pra casa... Ei, onde você vai?

Sofia correu para a escada, que subiu de dois em dois degraus. Ele foi atrás. Não a deixaria sozinha e desprotegida nem por um

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instante. Tão pouco tempo e ela já era tão importante para ele. E não apenas por causa da profecia.

Encontrou-a no andar de cima, parada à porta de um dos quartos. O quarto dela. Ali, a marca da presença de Olympia estava muito mais intensa e sufocante que na sala.

Lágrimas marejavam os olhos de Sofia. Indiferente às línguas negras contorcendo-se a seu redor, ela tremia, mais de indignação que de medo. Era inaceitável que aquela criatura perversa tivesse violentado sua intimidade de forma tão descarada. Como ela ousara?

Fabrício se aproximou por trás dela e pousou as mãos em seus ombros, tentando de alguma forma confortá-la.

— Essa presença é repugnante, tem como fazer ela sumir?

Fabrício se surpreendeu. O que ela propunha era exatamente o que devia ser feito. E ele achando que ela estava em pânico. Não podia estar mais enganado. A voz dela não deixava lugar a dúvida. Sofia estava furiosa, e sabia que a batalha contra Olympia começava naquele preciso instante. Ela não fugiria com o rabo entre as pernas. Ela queria lutar!

Ele a fez virar-se e encará-lo.— Você pode fazer isso. Chame a si

toda essa aura negra, e absorva-a com seu

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poder. Mas esteja alerta, pois quando a presença de Olympia estiver dentro de você, vai tentar te dominar. Não permita, contra-ataque e seja você a conquistá-la. Quando você a derrotar, toda essa força se tornará sua, e vai te deixar mais forte do que antes.

— E se eu perder? — a pergunta soou trêmula.

Ele balançou a cabeça numa negativa.— Você não vai perder. Você é mais

forte que Olympia, e é seu destino derrotá-la.

— Mas e se eu não conseguir dominar a presença? — ela insistiu.

— Você tem que dominá-la... ou será o início da vitória de Olympia.

Sofia se intimidou.— Eu não vou conseguir, Fabrício. Faça

você. Você sabe muito mais do que eu.Fabrício pousou a mão no rosto dela,

com ternura.— Essa batalha é sua, Sofia. Você é

capaz. Você é capaz de tudo, só não descobriu isso ainda. Use sua intuição e saberá controlar seu poder.

— Você acha? — ela mordeu o lábio, nem um pouco convencida.

— Não. Eu tenho certeza.— Que que eu preciso fazer? — apesar

do medo, ela levaria adiante a batalha. Ele a admirou ainda mais por isso.

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— Abra a consciência e deixe a presença entrar em você. Não vai ser difícil, elas estão ansiosas para te invadir — ele apontou as línguas de escuridão que a cercavam, acariciando-a agitadas.

Sofia notou que faziam isso só com ela, parecendo evitar Fabrício. Ela se arrepiou ao imaginar aquela substância repulsiva penetrando em seu corpo e sua mente.

— E então, que vai acontecer?— A presença vai tentar absorver a sua

vontade. Domine-a, não deixe que ela assuma a vantagem nem por um instante. Ataque em vez de se defender. Quando a tiver dominada, envolva-a por completo e esmague-a. Concentre-se em absorver sua energia, tomá-la para si, e enfraqueça-a cada vez mais, até ela desaparecer totalmente.

— Isso é loucura, Fabrício — Sofia sussurrou, aflita. — Não vou saber fazer isso.

—Vai saber, sim! — afirmou ele, agarrando-a pelos braços, alarmado com a possibilidade de ela recuar, acovardada — Faça, Sofia, você é capaz!

Ela engoliu um soluço e concordou com um gesto de cabeça. Num impulso, Fabrício pousou um beijo suave nos lábios dela. Então deu um sorriso tenso e a soltou.

— Vai lá e acaba com ela.

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Sofia fechou os olhos, e sua mente continuou vendo a escuridão sobrenatural que revoluteava a seu redor, como um exército inquieto sitiando a fortaleza inimiga. Sentiu na pele o toque dos tentáculos, suave mas ameaçador. E ela teria de abrir-se àqueles miasmas asquerosos? Um calafrio percorreu seu corpo. Vencendo a repulsa, ela tentou, cautelosa, seguir as instruções dele. Rela-xou, visualizou o que seria sua mente e imaginou uma fenda estreita abrindo-se em sua superfície.

A resposta veio imediata, assustadora. A presença negra desabou como uma avalanche sobre a fresta aberta, abrindo caminho com seu próprio peso e seu imenso volume, forçando passagem, pondo abaixo qualquer resistência que lhe fizesse frente.

Sofia quase entrou em pânico, mas recuperou-se rápido. Firmou-se mentalmente e retesou sua vontade antes que a onda de trevas a tragasse por completo. Ao ser atingida pelo primeiro im-pacto, não obedeceu ao instinto de recuar e retrair-se, mas reagiu de imediato e contra-atacou. Viu a si mesma como uma grande massa brilhante, que se expandiu em meio ao negrume, faiscante, aumentando mais e mais à medida que transmutava e absorvia a matéria negra, tomando-a para si.

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Incrível, ela de fato podia fazer aquilo! Encorajada, Sofia arremeteu contra a presença com mais vigor, engolindo a escuridão, fortalecendo-se ainda mais.

De repente não havia mais nada ao seu redor. A princípio acreditou ter destruído o inimigo e vencido a batalha, mas então viu, à distância na paisagem mental, que a negra presença de Olympia se recolhera e agora a espreitava de longe. Viu a presença começar a se contrair e a encolher, compactando-se até formar uma esfera pequena e densa de escuridão. Devagar no início, e então cada vez mais rápido, a esfera passou a girar sobre si mesma, até atingir uma velocidade atordoante.

Girando velozmente, a esfera se lançou de repente sobre Sofia, que só se deu conta de ter sido atingida quando o projétil já se alojara no meio da massa brilhante de sua consciência, causando-lhe uma dor profunda. Sempre girando, a esfera negra a devorava por dentro, como um ácido, consumindo-a como ela antes havia consumido a escuridão.

Domine-a, não deixe que ela assuma a vantagem nem por um instante. Ataque em vez de se defender. Ela recordou o conselho de Fabrício.

Seguindo uma inspiração, reacomodou e retraiu sua massa, criando em torno da

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esfera rodopiante uma grande bolha de vácuo. A esfera continuou a girar, desnorteada em meio ao vazio. E então Sofia contraiu de repente a massa de sua consciência, precipitando-se contra a esfera negra, comprimindo-a e estrangulando-a, e ao mesmo tempo drenando sua energia com avidez. Ante a violência do ataque, a presença não teve como defender-se. Em segundos, nada mais restava da escuridão maligna

Quando abriu os olhos, Sofia estava ajoelhada no meio do quarto, e Fabrício a amparava em seus braços. A cabeça dela latejava.

— Não sobrou nem um vestígio da marca de Olympia — disse ele, com evidente orgulho. — Você está bem?

— A cabeça dói e parece que passei por um moedor de carne. Eu acabei com ela?

— Com a marca da presença dela, sim. Você consegue se levantar?

Ele a ajudou a ficar em pé. Sofia fechou os olhos e vasculhou a casa com a mente. Limpa.

— Eu ganhei mesmo! — seus olhos sorridentes brilharam na direção de Fabrício.

— Você ainda tinha alguma dúvida? — ele acariciou os cabelos dela. — Foi só a

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primeira batalha, Sofia, mas você venceu. E vai vencer as outras. Nós vamos vencer.

Lembrando-se do breve beijo trocado antes do confronto, Sofia se aninhou contra o corpo dele, e ele a abraçou. O abraço se prolongou, tão bom quanto um sonho.

— Sofia, preciso te dizer uma coisa — o sonho se esfumou com o tom grave na voz de Fabrício.

Alarmada, ela se afastou de seus braços para poder ver-lhe o rosto. Ele continuou.

— A marca da presença de Olympia não é recente. Ela esteve aqui hoje, sim, mas já havia estado antes. Bem antes dos seus poderes despertarem — os olhos de Sofia se arregalaram de espanto. Ele continuou. — Ela deve conhecer você muito melhor do que tínhamos imaginado. Ela sabe como você é, como pensa, e deve ter estudado suas reações.

— Meu Deus, Fabrício! Então como vou poder surpreendê-la? — disse ela, assustada.

Ele pousou a mão no rosto dela, cheio de carinho.

— Surpreendendo a si própria, Sofia — murmurou.

Estavam de frente um para o outro, seus corpos quase se tocando. Ela ficou nas pontas dos pés, envolveu a face de Fabrício

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com as mãos e beijou-o. Um beijo intenso, cheio de emoções e significados. Passado um instante de surpresa, ele a abraçou e retribuiu com a mesma intensidade. O beijo foi longo e apaixonado. Separaram-se re-lutantes, olhando-se com a mesma sensação de culpa. Não era hora de começar um romance. Sofia deu uma risadinha, sem jeito.

— Bom, você disse que eu tinha que surpreender a mim mesma, não disse?

Ele abriu a boca, mas não chegou a dizer nada.

— Sofia? Fabrício? Está tudo em ordem? — o quase-sussurro indiscreto de dona Marlene ressoou no andar de baixo.

Eles se entreolharam. O clima de romance desaparecera de repente.

— Vamos descer e mandar ela embora. Não quero que esteja por aqui quando Olympia voltar — disse Fabrício, preocupado.

Quando, não se, notou Sofia, e um pensamento assustador lhe ocorreu.

— Meu Deus, que sorte meus pais estarem fora quando Olympia invadiu a casa!

Fabrício olhou-a de lado enquanto a puxava pela mão rumo à escada.

— Não, Sofia. Não foi coincidência eles viajarem justo no dia do seu aniversário de

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vinte e cinco anos. Os Sábios queriam que eles estivessem a salvo.

A revelação deixou Sofia atordoada, pelas implicações que trazia. A idéia de que toda sua vida, desde o nascimento, tivesse sido controlada e manipulada por profecias e feiticeiros era assustadora. Ela ainda estava assombrada quando chegaram ao térreo.

Com um estrondo ensurdecedor, Fabrício foi arrancado de seu lado por uma força invisível. Ela o viu cair do outro lado da sala, e ficar imóvel. Parecia inconsciente.

— Fabrício! — ela correu até ele.— Espero que você não crie caso e me

deixe absorver seu poder. Esperei por isso vinte e cinco anos, Sofia, e minha paciência acabou.

Ela se virou rápido ao ouvir a voz de dona Marlene. Mas não era dona Marlene quem estava junto aporta de entrada. A jovem esguia e bonita, de cabelos negros e olhar triunfante, só poderia ser Olympia de Montreuil.

5

— O que você fez com a dona Marlene? — gritou Sofia, temendo o pior.

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— O que eu fiz com a velhota? Eu cuidei muito bem daquela aparência ridícula durante todos esses anos — a voz se transformou aos poucos, e já não era a de dona Marlene. Era sonora, bonita e fria como aço. — Mas agora posso aposentá-la.

Sofia por fim entendeu. Seus temores estavam se concretizando.

— Você me vigiou a minha vida toda! — exclamou, horrorizada ao descobrir o mal que sempre estivera a seu lado.

Olympia deu uma risada cruel.— Apavorada, pequena Sofia? Ah, mas

eu posso entender, sua rotina mudou tanto hoje, não? E vai mudar ainda mais...

Ela estendeu a mão num gesto abrupto, e foi como se uma manta pesada envolvesse Sofia de repente, imobilizando-a. Uma pressão terrível oprimiu seu peito. Por mais que tentasse, ela não conseguia respirar.

— ...afinal, este é seu último dia de vida! Sofia tentava respirar, sem sucesso. Sufocada, seu desespero crescia.

— Pobre Sofia, nem teve oportunidade de aprender a usar seus poderes — debochou Olympia, com uma gargalhada perversa.

Mas claro, seus poderes! Em meio àquele pesadelo, ela havia se esquecido. Não, ela não se deixaria derrotar, de forma

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alguma. Use sua intuição, havia dito Fabrício. Sabia que tinha agora uma força imensa. Fechando os olhos, concentrou a energia como fizera antes, ao sentir-se ameaçada. A absorção da presença de Olympia aumentara tanto sua energia que Sofia tinha até dificuldade em contê-la. Tateou mentalmente a força que a prendia e visualizou-a como uma muralha a seu redor. Então liberou a energia de uma só vez. Ela atingiu a muralha com violência, consumindo-a avidamente, absorvendo-a e fortalecendo-se mais ainda, enquanto o poder de Olympia se enfraquecia. A pressão afrouxou de repente, e uma golfada de ar penetrou nos pulmões de Sofia. Ela estava livre!

Frustrada, Olympia soltou um guincho que não parecia humano.

Sofia intuiu que não podia perder tempo e procurou se proteger. Imaginou sua força formando uma redoma impenetrável e cintilante em torno de si. Bem a tempo. Olympia projetou contra ela uma carga tremenda de poder, que se chocou contra a barreira, numa explosão brilhante. O poder de Olympia e a barreira de Sofia anularam-se um ao outro, evanescendo no ar. Sofia escapou ilesa.

— Estou impressionada, mocinha. Quando destruiu a marca da minha

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presença, achei que tinha sido sorte de principiante, mas vejo que não. Você tem mais poder do que eu imaginava. Não vejo a hora de tomá-lo para mim. E você é rápida, ou seu professor é muito bom... — ela olhou para Fabrício, que voltava a si — ...além de ser apetitoso. Ele é bom na cama?

Sofia corou. Não costumava discutir sua quase inexistente vida sexual, e não ia abrir uma exceção para a bruxa malvada que pretendia acabar com ela. Além disso, sua única experiência na cama com Fabrício tinha sido uma encenação assustadora. A risada cruel de Olympia soou de novo.

— A bobona tímida de sempre, coisa feia pensar em sexo... — ela olhou Sofia com atenção. — Me diz a verdade, foram só seus poderes que ele despertou ou foi algo mais?

Sofia continuou calada.— Querida, acho melhor você

responder a minhas perguntas ou o menino bonito aqui é quem vai pagar... — Olympia lançou um gesto na direção de Fabrício. O corpo dele se convulsionou, como se tivesse levado um choque, e ele urrou de dor.

— Fabrício! — Sofia gritou, angustiada. Ataque em vez de se defender, de novo as palavras de Fabrício passaram por sua mente. Estava a ponto de, mais uma vez, atacar com sua energia concentrada, quando Olympia estendeu a mão na direção

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de Fabrício. Sofia sentiu que algo começou a fluir entre ambos. Um fluxo se estabeleceu. O que era aquilo?

— Não tente me atacar. Criei um vínculo entre nós dois, e se você me atingir vai atingir também o seu amiguinho.

Tateando com sua mente, Sofia sentiu os finos tentáculos negros da marca de Olympia que se infiltravam pelo corpo de Fabrício, onde se ramificavam e se mesclavam à energia dele, numa união indissolúvel. O rosto dele contorcia-se de dor.

— Não lance sua energia contra mim. Ele é muito mais frágil que eu, isso o matará.

— Você é covarde, Olympia.— E você aprendeu depressa a ser

valente, mocinha. Ele deve ser mesmo um bom professor. Depois de acabar com você, vou me divertir bastante com ele. Pena que ele não vai se divertir. Ah, e ele vai ser útil também. Para manter minha juventude não tem nada melhor que a força vital de homens saudáveis e fortes como ele.

— Não deixa ela te chantagear, Sofia — interveio Fabrício com voz tensa e entrecortada. — Eu não tenho a mínima importância, você sabe tudo o que está em jogo.

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— Deixa ele em paz, Olympia — Sofia parecia não tê-lo ouvido. — Ele não tem nada a ver com a profecia. A batalha é entre nós duas.

Por um instante Olympia não disse nada, parecendo absorta. Seus olhos examinaram a fisionomia de Sofia, sua linguagem corporal, o muito que o olhar dela revelava, em especial o medo e a preocupação com o que podia acontecer a Fabrício.

— Você o ama, não é, pequena Sofia? — perguntou com voz suave e os olhos brilhando de malícia.

— Não é da sua conta — outra vez Sofia ruborizou-se.

Um sorriso sarcástico, desagradável, surgiu devagar nos lábios de Olympia

— Ah, mas isto é bem melhor do que eu imaginava. Está enganada, Sofia. Ele tem tudo a ver com a profecia.

Ela foi até Fabrício, que agora estava sentado, as costas apoiadas à parede, e varreu o corpo dele com o olhar. Tinha no rosto uma expressão de aprovação.

— Segundo a profecia, terei um filho que depois se tornará meu consorte, e juntos alcançaremos um poder incalculável. Venho tentando ter essa criança há séculos, em vão. Mas ela não será gerada por

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qualquer pai. Diga uma coisa, Fabrício, você tem filhos?

Ele ficou em silêncio, respirando pesado. A dor provocada pelo vínculo com Olympia estava evidente em sua expressão.

— Responda, rapaz! — exclamou Olympia, e com um gesto inesperado, acertou Sofia com um golpe de energia que a derrubou ao chão.

Sofia gritou, encolhendo-se de dor e envolvendo com os braços o estômago, atingido por Olympia.

— Crianças, aprendam. Quando eu fizer uma pergunta a um de vocês, é melhor responder ou o outro vai sofrer.

— Não, bruxa, eu não tenho filhos — Fabrício respondeu entre os dentes cerrados.

Olympia sorriu uma vez mais.— Excelente! — disse ela, ajoelhando-

se ao lado do rapaz. Pôs a mão sobre a cabeça dele, que imediatamente ficou imóvel, olhos vidrados. Já não dava mostras de sentir dor e parecia não respirar.

— O que você fez com ele? — perguntou Sofia, alarmada.

— Não se preocupe, ele não está morto, longe de mim fazer qualquer coisa que possa danificá-lo. Ele está em animação suspensa, eu só quero ter uma conversinha a sós com você. Sabe, tem alguns detalhes

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da profecia que eu preciso te contar — pondo a mão no rosto dele, ela o afagou, e continuou o carinho pescoço abaixo, até chegar no peito. Seus dedos passearam de um lado para outro, acariciando através da roupa a musculatura peitoral rija e firme. — O pai de meu filho deverá ser um bruxo. E meu filho, meu primeiro filho, será também o primeiro dele. Nossos poderes combinados alimentarão a criança em meu ventre. Infelizmente, o pai não será tão poderoso quanto eu, e não sobreviverá às necessidades vorazes de meu bebê. Mas fazer o quê, é a vida, não?

Ela se levantou, foi na direção de Sofia e olhou-a nos olhos.

— Agora, o mais interessante: esse bruxo deverá ser o consorte de minha pior inimiga. No caso, você. Não é fascinante? — e ela deu um sorriso doce e totalmente falso. —Você não faz idéia, menina, de como eu estava preocupada com o seu recato estúpido. Eu duvidava que você conseguiria um... reprodutor para mim. Cheguei a pensar que teria de me dar ao trabalho de eu mesma conseguir um namorado bruxo para você, antes de matá-la — ela lançou um olhar para Fabrício. — Mas confesso que você fez um trabalho excelente. Claro que os Sábios deram uma ajuda, mas não posso negar que a espera valeu a pena.

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Sofia arregalou os olhos. Aquilo tudo parecia um pesadelo. Olympia prosseguiu.

— Sabe o que vou fazer agora? Primeiro vou te destruir e tomar sua força. Em seguida vou assumir a sua aparência. Como Sofia, vou despertar Fabrício e contar-lhe, exultante, de que jeito derrotei a bruxa malvada e cumpri a profecia. Então, loucos de felicidade, faremos amor, dias e dias de sexo incansável e delicioso. Ele parece ser muito bom para isso. Pena que você nunca vai poder experimentar, não é, mocinha? Bem, quando eu tiver a certeza de ter concebido, vou revelar a ele quem sou, e contar-lhe que sua doce Sofia, com quem ele acreditava estar tendo uma relação tão maravilhosa, está na verdade morta e acabada. Então vou alimentar minha criança com a força vital do pai, que vai murchar e encolher como uma uva-passa até não sobrar mais nada dele. Coitadinho, pode imaginar como vai sofrer em seus mo-mentos finais? Eu vou vencer, querida Sofia, e a profecia jamais se cumprirá. Bem, pode dizer adeus a seu amor, ao mundo... e à vida!

Só então Sofia percebeu a densa escuridão que se acumulara a seu redor enquanto Olympia falava. Antes que reagisse, as trevas se abateram sobre ela e envolveram-lhe o corpo, braços e pernas.

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Finos tentáculos forçaram caminho para dentro dela, penetrando em sua pele com a ardência de milhares de agulhadas simultâneas. Ela se debatia, tentando em vão livrar-se da escuridão viscosa e repugnante, e lágrimas de dor encheram seus olhos.

Ela sentia os tentáculos arrastando-se por baixo de sua pele, enfiando-se mais e mais fundo por entre as fibras de sua musculatura, alcançando o tutano dos ossos. Os tentáculos que entravam por suas narinas, pela boca escancarada num grito de desespero que não saía, pelos olhos que ardiam como fogo tinham um objetivo claro: apossar-se de seu cérebro, tomar conta de suas ações e anular sua vontade.

O ataque foi tão súbito que Sofia não conseguiu esboçar uma reação. Paralisada, sem saber o que fazer, não pôde impedir a invasão aterrorizante.

— Preste atenção, Sofia, porque vou começar a absorver seus poderes... — a voz de Olympia soou vitoriosa em seus ouvidos.

A dor se tornou insuportável. Havia dor por todo seu corpo, na ponta de cada tentáculo infiltrado. Era como se sua pele, seus músculos, seus órgãos estivessem sendo arrancados. O que Olympia estava roubando dela era tão parte de seu corpo quanto o esqueleto ou as vísceras. Sofia

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podia sentir sua energia minguando. Ela sabia que, se não reagisse naquele momento, podia de fato dar adeus a Fabrício, ao mundo e a sua vida.

Em meio à dor, surgiu uma inspiração. Algo que Fabrício fizera. Ela sem dúvida também seria capaz. Tão, tão simples, mas podia dar certo.

A esperança lhe deu forças, e ela se concentrou. Você não vai me derrotar, sua bruxa!, prometeu em pensamento.

Sofia fixou o olhar num grande vaso de cerâmica verde que estava no aparador por trás de Olympia. Sua mãe adorava a peça pesada e volumosa, que ela achava um horror. Ignorando a dor e deixando-se guiar pelo instinto, reuniu a energia que pôde e se concentrou no vaso. Ele se mexeu. Funcionava! Com a confiança fortalecida, ela se concentrou ainda mais. O vaso se elevou no ar. Ela o impulsionou com a força mental e ele voou através da sala.

Ele acertou em cheio a cabeça de Olympia, que deu um grito abafado e caiu ao chão, atordoada. O ataque surpresa tirou sua concentração, e ela perdeu o controle sobre Sofia.

A dor diminuiu até quase sumir. Sem perder tempo, Sofia se concentrou nos tentáculos dentro de si, agora inertes, e com seu poder reabsorveu a energia que haviam

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roubado dela. Eles agora eram seus. De imediato ela os usou num contra-ataque. Seguiu através deles para dentro de Olympia e ramificou seu próprio poder pelo corpo da inimiga, numa teia intrincada de filamentos iridescentes como diamantes que, alastrando-se rapidamente, passaram a drenar a força dela.

Olympia urrou, contorcendo-se no chão. Desespero e dor deformaram as feições antes bonitas. Mãos crispadas agarraram as roupas, como se tentassem arrancá-las, enquanto espasmos percorriam seu corpo. Sofia se angustiou, sabendo exatamente o horror pelo qual ela passava, mas não permitiu à compaixão interferir. Era seu dever eliminar para sempre a ameaça que Olympia de Montreuil representava à humanidade.

— Se me matar ele morre também! — gritou Olympia de repente, numa voz estrangulada pela dor.

Pega de surpresa, Sofia vacilou, e momentaneamente deixou de drenar o poder da inimiga, que de imediato tirou proveito da hesitação.

— Poupe-me e eu o liberto.Sofia sabia que Olympia já não podia

fazer-lhe mal, embora seu poder não estivesse esgotado de todo. Mas ela bem podia ter algum truque reservado. Por outro

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lado, era a vida de Fabrício que estava em jogo. Ela tomou uma decisão.

— Liberte-o. Eu não vou acabar com você.

— Jure. Jure que vai me deixar ir embora se eu o libertar.

Sofia sequer pensou.— Juro. E juro também matá-la se

tentar me enganar.A determinação estava clara na voz de

Sofia, Olympia acenou a cabeça em concordância e fechou os olhos. Daí a pouco um tremor percorreu o corpo de Fabrício e ele voltou a respirar, convulsivamente.

— Fabrício! Você está bem?Ele arfava. Piscou os olhos várias vezes

e focou-os em Sofia. Então, com um movimento brusco estendeu a mão na direção dela. De imediato Sofia percebeu o que estava por vir. Quase por instinto conjurou um escudo protetor. Bem a tempo. A esfera de energia lançada por Fabrício explodiu contra ela, inofensiva.

Incrédula, Sofia viu que ele se preparava para outro ataque, e no mesmo instante entendeu o que acontecia. Fabrício estava sendo usado por Olympia!

— Ele não vai parar, a menos que você o mate — afirmou Olympia, vitoriosa.

Fabrício atacou de novo, mas desta vez Sofia estava preparada. Ao aparar a esfera,

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desviou a energia contra Olympia, que nem teve tempo de gritar, e tombou sem sentidos.

Com Olympia fora de ação, Sofia pôde voltar sua atenção para Fabrício. Imobilizou-o facilmente — incrível o poder que tinha agora — e impediu que voltasse a atacá-la. Ele se debateu, mas não podia fazer nada. Olympia estava blefando, não pode ser verdade, Sofia murmurou para si mesma. Sem saber muito bem o que estava fazendo, imaginou sua consciência se projetando para dentro da mente dele. Parecia o lugar óbvio para procurar o que quer que fosse que o mantinha preso a Olympia.

Não se enganara. Lá estavam os finos tentáculos do poder de Olympia, por toda parte. Com precisão cirúrgica, absorveu-os um por um. Quando já não podia detectar um resquício sequer da presença da inimiga, retirou-se da mente de Fabrício e libertou-o de seu controle. Manteve-se alerta, porém, pronta para se defender caso tivesse falhado.

Fabrício sorriu para ela e Sofia soube que tudo tinha terminado. Havia vencido.

6

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Enquanto Olympia estava inconsciente, Sofia descobriu que Fabrício nunca soubera que teria sido o pai do filho-consorte da bruxa. A novidade deixou-o assombrado.

— Talvez os próprios Sábios não soubessem. Talvez eles não tivessem como saber que nos apaixonaríamos um pelo outro.

— E você está apaixonado por mim?Ele respondeu com um beijo que não

deixou a menor sombra de dúvida.— Você vai ser a mãe do meu primeiro

filho. E de qualquer outro que vier depois.— E o que a profecia diz dele? Do nosso

primeiro filho?— Nada. Ele vai ser nosso filho e ponto

final. Provavelmente será bruxo como nós. Mas ele não vai nascer com nenhuma grande batalha agendada, não se preocupe. A profecia termina com a gente.

Agora, de mãos dadas, como se não quisessem nunca mais se separar, Sofia e Fabrício vigiavam Olympia voltando lentamente a si. Ela gemeu e se agitou, no limiar da consciência.

— Que que eu faço agora? — a pergunta, feita em voz alta, era tanto para Fabrício quanto para ela mesma.

— Olympia não tem mais nenhum poder mágico, só a força vital de qualquer ser humano normal. Se você tirar mais

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energia dela, ela morre — disse Fabrício num tom neutro, sem sentimento. — Seria uma solução definitiva para o problema.

Sofia olhou para a mulher estendida a seus pés e estremeceu. Não podia imaginar-se tirando-lhe a vida. Matar alguém era impensável, mesmo que esse alguém fosse um perigo para outras pessoas. Além do mais, ela tinha feito um juramento. Ainda tentou se convencer de que a sugestão de Fabrício fazia sentido, mas não conseguiu. Ele ficaria desapontado com sua fraqueza. Desviou o olhar para ele, envergonhada, e viu que ele a observava com atenção.

— Não posso matá-la — disse baixinho, triste por decepcioná-lo.

— Que bom — e um sorriso se abriu no rosto dele.

Ela arregalou os olhos, espantada. Ele continuou.

— Se pudesse, não seria quem a profecia previu. E não seria a mulher que eu amo.

Um misto de alívio e orgulho a invadiu. Ela sorriu quando a mão dele apertou a sua brevemente, um gesto tranqüilizador. Trocaram um olhar de perfeito entendimento.

— Não acho certo matá-la, Fabrício. Mas também acho que ela deve ser

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castigada. Ela queria fazer tanta coisa ruim...

— Se quiser, tenho uma idéia — o sorriso dele agora era travesso. Ele parecia um menino.

Ela o ouviu com atenção. Ponderou brevemente a proposta. E desta vez aceitou.

Seguindo as breves instruções dele, fechou os olhos e deixou a imagem de dona Marlene invadir sua mente e tomar corpo até se tornar quase sólida. Projetou-a, junto com seu poder, para dentro do corpo inerte de Olympia, fazendo com que a matéria etérea da imagem se fundisse de forma irreversível ao resto de energia que mantinha viva a bruxa. Quando abriu os olhos, era a figura familiar e extravagante da ex-vizinha que tinha diante de si. Não demorou muito e ela recobrou a consciência. A primeira coisa que fez foi fuzilar Sofia com o olhar.

Sofia foi até ela e ajudou-a a ficar de pé.

— Vem cá — disse, levando-a ao hall de entrada, onde havia um espelho. — Veja só.

Olympia viu no espelho a forma de dona Marlene e soltou um uivo de terror. Havia compreendido que, sem seus poderes, estava irremediavelmente presa àquele corpo.

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Fabrício se postou a sua frente, de braços cruzados.

— Quando se recuperar do choque, levo você pra sua casa. Você continua em paz a sua vida. Se não incomodar mais a gente, também não vamos te incomodar. Nunca mais.

— Vocês não podem fazer isso! É crueldade — ela reclamou, com a voz de dona Marlene. — Como vou viver com essa aparência? Como vou conseguir meus meninos bonitos e a energia que me mantém viva?

— Você não tem mais poderes. Não precisa mais de meninos bonitos, e pode muito bem se manter viva à base de arroz com feijão e de um bom frango assado de padaria aos domingos. Acabou, Olympia... quer dizer, dona Marlene. Daqui pra frente, trate de aproveitar a vida, porque você vai envelhecer e morrer como qualquer pessoa normal.

Dona Marlene gritou, xingou e prague-jou, até Fabrício decidir que, se ela tinha disposição suficiente para dizer tanta barbaridade, já podia ir para casa. Pegou-a pelo braço e levou-a embora.

Vendo-se sozinha, Sofia desabou no sofá, exausta. Ficou ouvindo os gritos e impropérios da mulher se distanciando. De repente, a voz histérica se calou. Sem ânimo

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de se erguer, ela esperou a volta de Fabrício para saber o que tinha acontecido.

Ao voltar, ele também se deixou cair no sofá e abraçou-a.

— A dona Marlene ficou quieta de repente... — ela disse, enquanto se aconchegava nos braços dele.

Fabrício olhou-a e deu um sorriso.— Faringite súbita. Logo você vai ver

como os poderes da gente podem ser úteis...

Ela também sorriu. Ele achou que nunca tinha visto um sorriso mais lindo em sua vida, e a beijou. Depois do primeiro beijo vieram outros, as mãos se tornaram atrevidas e em breve havia muita pele exposta e roupas espalhadas por toda a sala.

Fabrício percebeu quando ela deu uma risada.

— Que foi? — perguntou.— Não sabia que você tinha tanta

pressa de fazer seu primeiro bebê.— E não tenho! — negou ele,

surpreendido.— Mas eu tenho, afinal não quero

colocar em risco o destino da raça humana.— Você derrotou a Olympia, não existe

mais risco, Sofia.— Como não? Afinal, a dona Marlene

ainda está por aí.

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— Dona Marlene?! — estranhou ele. — Mas isso não tem o menor cabimento!

— Claro que tem. Eu vi os olhares que ela te deu. E os homens são uns tontos, se ela tentar te seduzir com certeza você cai como um patinho.

O tom dela quase o enganou. Uma piscadinha e o sorriso maroto estragaram tudo.

— Sua bruxa! — ele exclamou, rindo.— Sim.Diante do sorriso dela, não havia nada

a fazer senão beijá-la de novo.Em algum momento daquela mesma

noite, a ameaça que rondava a humanidade foi definitivamente eliminada.

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Digitalização/Revisão: Yuna

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