livro contos selecionados 2012

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Coletânea dos contos vencedores do Concurso de contos Cidade de Araçatuba - 2012

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Page 1: Livro Contos Selecionados 2012

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Page 2: Livro Contos Selecionados 2012

Copyright © vários autoresEdição e revisão: Hélio Consolaro

Capa: Simone Leite GavaEditoração gráfica: Arlen Pontes

CTP e Impressão: Editora Somos - (18) 3636.7790

Secretaria Municipal da CulturaRua Anita Garibaldi, 75 - CEP 16010-280

Araçatuba - [email protected] - (18) 3636.1270

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índices para catálogo sistemático: 1. Contos : Coletâneas : Literatura brasileira 869.9308

Contos selecionados 2012. -- 1. ed. -- Araçatuba, SP : Editora Somos, 2012. Vários autores. “25º Concurso de Contos Cidade de Araçatuba”.

ISBN: 978-85-60886-55-5

1. Contos brasileiros - Coletâneas. 12-10979 CDD-869.9308

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Vários autores

Araçatuba, 2012

Contosselecionados

2012

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Prefácio

O tradicional Concurso de Contos Cidade de Araçatuba, mais uma vez nos presenteou com histórias surpreendentes e com a satisfa-ção de ler textos de abrangência territorial: desde 2011, além dos

contos regionais e de nível nacional, o concurso estendeu-se para as terras estrangeiras que têm como sua língua, a portuguesa. Em meio aos mais de seiscentos contos recebidos, entramos em contato com belas produções lite-rárias, pois desse concurso participaram excelentes escritores, o que mais eleva o evento araçatubense.

O trabalho de leitura e seleção de textos é árduo. Porém, para os que fazem da leitura um ato prazeroso, o contato com a diversidade regional, nacional e internacional passa a ser mais um processo de enriquecimento cultural.

Pela amplitude de vocabulário e abundância de construções para se escrever os pensamentos, a Língua Portuguesa é um rico instrumento de trabalho. Assim, dentro de seu universo vocabular, seu estilo, seu conheci-mento sobre as técnicas de se escrever um conto e o domínio da língua pá-tria, suas vivências, suas leituras de mundo e sua criatividade, cada autor colaborou com o sucesso deste concurso de 2012.

Os contos apresentados enfocaram ângulos diferenciados da expe-riência humana, sintetizando costumes, mitos, sentimentos; também di-versificando linguagens, lugares, tempo, situações, e, às vezes, até mesmo mexendo com as máscaras das tragédias, das comédias, dos dramas, ora apresentando-os como realmente são, ora manipulando-os ao bel-prazer do autor.

Os contos nacionais e estrangeiros apresentaram-se como o espera-do: uns surpreenderam pelo enredo, outros pela construção literária, outros pela simplicidade e infinitos fatores de fundo e forma.

Destacaram-se, porém, os contos regionais interioranos, mesclados

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de coisas da nossa terra, da nossa história. Concluímos que a nossa lite-ratura, antes chamada interiorana, caminha a extensos passos para uma produção que merece reconhecimento nacional.

E assim, entregamos a você, que aprecia a boa leitura, este livro que traz os contos premiados e outros selecionados entre os melhores. Espera-mos que esse ler seja um incentivo para que nossa cultura se expanda e se faça com a alegria de viver no mundo dos contos aqui apresentados.

Marilurdes Martins CampeziMembro da comissão julgadoraVencedora da 1.ª edição do concursoEscritora da Academia Araçatubense de Letras

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Índice

Categoria internacional

1.º lugar - IntermezzoLiliana S. Ribeiro - Leça da Palmeira – Portugal .............................................. 10

2.º lugar - HamelinMiguel Cruz Fernandes - Lisboa - Portugal ..................................................... 13

3.º lugar - Morder-me os sonhosValentina Silva Ferreira - Ilha da Madeira – Portugal ........................................ 22

a) Menção honrosa - A bola LolaAna Rita Santos Brandão – S. João da Madeira – Portugal .............................. 29

b) Menção honrosa - O peixe encantadoVictor Manuel Capela Batista - Barreiro – Portugal .......................................... 30

c) Menção honrosa - O saberDinis Reis Subtil Muacho - Avis – Portugal ...................................................... 35

d) Menção honrosa - O vale dos sentimentosUmoi Melo de Souza - Parede – Portugal ...................................................... 39

e) Menção honrosa - Uma dependência invulgarAntônio Carloto - Lousã – Portugal ................................................................. 46

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Categoria nacional

1.º lugar - A sesta Suzana Maggioni Bertuol - Farroupilha – RS .................................................. 54

2.º lugar - O amor no tempo da solidãoCláudia Albers Avóglio - Pirassununga – SP .................................................... 57

3.º lugar - O ovoSara Meinard Begname - Mariana – MG ........................................................ 60

a) Menção honrosa - A árvoreRafael Vieira da Cal - Cachambi – RJ ............................................................ 63

b) Menção honrosa - Duas cruzes Cândido Brasil - Cachoeirinha – RS ............................................................... 66

c) Menção honrosa - Em braileÉder Rodrigues - Belo Horizonte – MG ........................................................... 68

d) Menção honrosa - O lamento de IngridAlex Sens Fuziy - Delfim Moreira – MG .......................................................... 72

e) Menção honrosa - Passa azeite, se não racha!Arnaldo Devianna - Sete Lagoas – MG ........................................................... 77

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Categoria regional

1.º lugar - LussanviraFrancisco Carlos Pereira - Araçatuba-SP ........................................................ 83

2.º lugar - O beijo da serpenteRita Lavoyer – Araçatuba-SP ........................................................................ 87

3.º lugar - O loiro e o “Ouro Negro”Larissa Firmo Alves Marzinek - Araçatuba – SP ............................................. 94

a) Menção honrosa – IluminadosJúnior Viana – Araçatuba- SP ..................................................................... 101

b) Menção honrosa – IncondicionalLaís Simone Sandrigo - Birigui-SP................................................................ 104

c) Menção honrosa – O milagrePaulo Coelho - Araçatuba-SP ....................................................................... 111

d) Menção honrosa – Uma história de grilagem Ademar Bispo da Silva - Araçatuba-SP ....................................................... 116

e) Menção honrosa - Vidas MortasMarcelo Otávio de Souza - Birigui-SP ......................................................... 121

Contos da comissão julgadora

Tio LucasMário César Rodrigues – Araçatuba - SP ...................................................... 126

Um urso à minha mesaEmília Goulart – Araçatua - SP ..................................................................... 128

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Categoria

internacional

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Intermezzo

Liliana S. Ribeiro* - 1.º lugar – categoria internacionalLeça da Palmeira - Portugal

A vó? A neta entrou no quarto. Passos lentos e bicudos. Pousou a mão na pa-rede. Certificou-se de que o seu peso era mínimo. A janela entreaberta

deixava passar a luz do fim de tarde. A janela paralela à cama, ao lado, a mesa de cabeceira, um copo de água, um relógio. A cômoda em linha reta dispondo assi-metricamente os guarda-joias, um retrato e um candeeiro. A toda a volta, o papel de parede cinzento. Cheirava a naftalina e aquele cheiro trazia movimento como se avó andasse pelo corredor, de rosário no bolso a cumprir uma prece.

Avó?A neta chamou baixo.Mais uma vez pensou que ela tinha morrido. O corpo quieto, as pernas

estopadas por não se conseguirem mexer já.

Avó? Estás a ouvir-me?Os braços da avó saíam da dobra vincada do lençol amarelo. A neta sentou-

-se na beira da cama. Começou a entreter os dedos no casaco, fazendo crer a quem passava que estava ciente das mãos, ciente de que não queria assomar às suas as mãos da avó. Mas queria, queria muito. Conteve-se no gesto.

A neta observou aquele corpo ali despojado. Um movimento, uma respiração lenta e quase rala. A avó declinou a cabeça em direção à neta, foi um acento muito bre-ve. Uns espasmos de olhos que se mantiveram fechados. Não era quase nada já. Pouco se manifestava, não denunciava a dor. Era uma ideia que balouçava em si. Um pêndulo.

Os cabelos da avó surgiam brancos, de uma cor só. Era a velhice e o can-saço do pelo. A avó mantinha-se viva naquela cama há muito tempo e entretanto a neta já tinha dobrado a esquina para adolescência. O corpo crescia como uma plan-ta em busca do seu ar. O corpo maior que ela própria. Tratavam-na como mais velha

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e isso era coisa boa. Enganava os olhares de quem a via. Crescia como se corresse.

Avó, hoje comi peixe ao almoço. Um peixe gordo e com um olho caído para fora do prato. A mãe disse que se chamava dourada. Comi peixe dourado com um olho preto caído para fora do prato. Um olho preto e vivo. Como aquelas mulheres da televisão que olham acertadamente para o ecrã. A mãe diz que é maquilhagem. Um traço preto que rasga a visão e torna os olhos maiores do que o que são. Mulheres-peixes-douradas. Um dia vou ser como elas e ver de olhos grandes.

A avó respirava rasteira. As pálpebras pousadas. A neta encostou o ouvido ao seu peito. Ouviu-lhe o coração, deixou-se ficar. Sentiu o seu corpo aquecer, havia calor entre elas. Deixou-se ficar e roubar aquele afeto para si. O rio Tâmega entrava escuro no quarto, algum lodo. As duas, corpo contra corpo, protegendo-se para não se afundarem. À volta, as tardes quentes à beira-rio. Os trilhos repassa-dos. O sol alto, a casa no giestal muda e fechada. O terreiro, a cadeira vazia do marido onde a morte o apanhou sentado. Os filhos deixados à vida como se da vida fossem. Deus enorme cantando-lhe e fazendo as uvas amadurecer.

Um outro abraço, corpo contra corpo, passando a memória para não se afundarem.

Deixa a tua avó. Fazes peso.Disse a mãe passando no corredor. A mãe circunspeta, doméstica e confor-

mada. A mãe filha avisando a filha. A mãe sem maquilhagem.

A filha sentiu algum embaraço por ter sido apanhada desprevenida e cedida no peito da avó. O rio Tâmega esvaziou, algumas ervas definhavam juntamente com o pasto. A avó recolhia as cabras de volta à corte. O sol ao longe. O regresso à casa fria, sem mãe e sem pai. A casa sem comida. A avó pequena e criança de pés atados à cama para contrariar a fome e a morder os braços para calar os gritos. A avó saltando da janela, a correr pelos sobreiros, a avó do tamanho do grito a gritar a fome calada.

A neta deixou-se ficar. Peso vivo sobre peso morto.

Avó… ouço passos de noite. És tu pela casa? Eram passos breves e arrastados. Por vezes, assustavam-na. Mantinha-se

atenta para saber onde iam. Não gostava de ser surpreendida no escuro. Sentava-se

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na cama à escuta. Deveria ser a morte. A morte com avó ao colo, ou ao contrário. Se não fosse tão nova, talvez não se deixasse vencer com estes truques onomato-peicos. Havia algum medo e sobretudo respeito por esses passos serem a delicada anunciação de que a sua avó partiria. Queria ver a procissão passar. Estar preparada era o que melhor fazia. Horas sem conta de olhos pretos abertos no escuro.

As tias dizem que temos as mãos parecidas. Saíste à avó, estão sempre a dizer. Saíste à avó. Nem pai, nem mãe. De onde saí, avó? E como se volta ao lugar de onde se saiu se o lugar deixar de existir? Será que vou ser uma mulher-peixe--dourada sem olhos, avó?

Um declínio de cabeça como início da juventude. Nenhuma resposta. A cama oblíqua ao encontro delas. A neta com a vida por fazer.

Vai lá para fora. A mãe chegou à porta. Panelas suspensas na mão, pano da loiça em busto,

dedos torcidos ao detergente e à lixívia. Mãe sem maquilhagem, olho azul fora do prato. Talvez as coisas precisem de estar quietas para morrer.

As três, sucessivas, imóveis por breves momentos. A rapariga entre elas como um trecho menor desafinado.

A filha recolhia o gesto do peito, o coração trazido às mãos. Olhava as pálpebras pousadas, descobria-lhe os olhos por baixo. Olhos como berlindes para jogarem a infância. Ali, aquela mulher pausada e paciente era uma falsa trajetória. Um falso afeto, uma falsa salvação.

Um avô velho na infância é uma aproximação precoce à morte.

A mãe repassando no corredor.

A neta apertou a mão desenformada da avó. Um beijo à face e saiu pé ante pé com medo de chamar a morte. Sentia-se quieta por dentro, muito quieta.

*Liliana S. Ribeiro, Portugal , Leça da Palmeia, 33 anos, psicóloga, trabalha na Sociedade Portuguesa de Psicodrama. Dinamiza o blog: www.ascoisasimperfeitas.com. Já participou de várias antologias e participa de concursos literários. E-mail: [email protected]

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HamelinMiguel Cruz Fernandes* – 2.º lugar – categoria internacional Lisboa, Portugal

«Anno 1284 am dage Johannis et Pauli war der 26. Junii Dorch einen pi-per mit allerlei farve bekledet gewesen CXXX kinder verledet binnen Hamelen gebo[re]n to calvarie bi den koppen verloren»1

1 «No ano de 1284, no dia de São João e São Paulo, a 26 de junho, 130 crianças nascidas em Hamelin foram seduzidas por um flautista, vestido de todos os tipos de cor, e perderam-se no lugar da execução, perto de koppen.»

Manuscrito de Lüneburg, c. 1440-50

O comboio começou a abrandar. Um jovem de vinte anos ia sentado, numa das últimas carruagens, a ler um livro com aspeto notavelmente velho. À sua direita encontrava-se um senhor com o cabelo muito branco e os olhos

de um azul impressionantemente claro. Lia o jornal. À sua frente uma senhora de meia-idade, muito loira, que ia a dormir. O jovem destoava um pouco do ambiente, bem germânico, que o rodeava.

Chamava-se Afonso. Era moreno, magro e alto. Estava com um cachecol e dois ou três casacos vestidos. O livro que trazia era um volume dos contos dos irmãos Grimm, e durante a viagem já lera várias vezes o mesmo conto. Por vezes interrompia e contemplava a vista. Passava-se por paisagens deslumbrantes, na-quele comboio.

Ouviu-se o apito, e o comboio parou. Tinham chegado a Hamelin. Ao sair da estação, inseriu a mão direita no bolso e após remexer bastante, retirou um papel algo amachucado com uma morada escrita. Depois de ter perguntado a um polícia qual seria o melhor caminho para lá, seguiu as suas indicações.

Daí as uns minutos encontrava-se perante uma livraria com aspeto pito-resco. Uma porta de madeira velha, vidraças incrivelmente sujas, e um letreiro amarelado que dizia: “Antiquariat Peters”. Entrou, fazendo soar a campaínha de latão. A livraria, ou alfarrabista, não era muito grande, mas as paredes estavam cobertas de livros de alto a baixo, muitos deles visivelmente antigos. Havia também

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várias estantes altas e bem recheadas. Dentro da loja, estavam só três pessoas: um sujeito alto e macilento, encostado a uma estante a folhear um livro de História, um senhor baixinho, completamente calvo claramente à procura de

algo nas prateleiras do fundo, e o próprio alfarrabista, por detrás do balcão, com os seus óculos grossos na ponta do nariz a ler atentamente um volume de tamanho considerável com capa dura.

Afonso dirigiu-se precisamente a este último, o Sr. Peters. – Sr. Peters, como está? – disse Afonso – sabe quem sou eu? – O rapaz português que ligou há dias? – Ora nem mais. O Sr. Peters esboçou um sorriso bem grande, e estendeu o braço dando um

aperto de mão forte a Afonso. E Afonso, que nem conhecia bem o Sr. Peters, sentiu imediatamente uma grande simpatia pelo homem. Que cortesia, que amabilidade... O Sr. Peters devia ser com certeza uma pessoa fascinante. Devia saber muito: afinal, passava a vida a ler e a aconselhar livros, devia ser também muito paciente, e agora notava-se que era uma pessoa alegre, simpática, afável, bem ao contrário do que Afonso esperava. Ele preparava-se para enfrentar um homem sábio, sem dúvida, mas carrancudo, amargo. A verdade é que esta não era uma expectativa bem fundamentada, mas antes um preconceito errado sobre o povo alemão.

– Venha comigo. – disse Peters, e abriu uma portinhola que havia por detrás do balcão.

Entraram para uma sala pequena, escassamente mobilada, muitas pilhas de livros no chão, duas poltronas, e uma mesinha redonda.

– Esteja à vontade. – disse o alfarrabista – Quer tomar alguma coisa? – Ah, não se preocupe, Sr. Peters. Estou ótimo. – Muito bem... vamos já direitos ao assunto? Terei todo o gosto em ajudá-lo. – Oh muito obrigado, Sr. Peters – após uns breves instantes de silêncio,

para saber por onde começaria, Afonso iniciou a explicação do motivo da sua visita – Ahh... eu... o meu nome é Afonso, tenho uma paixão pela Literatura, e já consegui publicar alguns poemas em

jornais, mas o que é fato, é que não sou ainda... enfim... propriamente famoso no meu país. Recentemente, enquanto procurava inspiração, resolvi ler uns contos dos irmãos Grimm, e parei no famoso conto do flautista de Hamelin. Encantou-me a história. Achei-a muito curiosa... A versão que ouvira quando era pequeno era bastante mais inocente, e a original parece ser... Cruel, não é? Uma

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praga de ratazanas ataca a cidade de Hamelin, e surge um homem misterioso que promete salvar a cidade da praga por troca de uma certa quantia. Mas quando acaba de matar todas as ratazanas, graças àquela flauta mágica, os homens não pagam o prometido. Então, como vingança, leva todas as crianças para a montanha e nunca ninguém mais as vê. Bem.. exceto uma criança coxa que ficou para trás. O que também é terrível. É deixado um para trás.

– Não só um. Na história verdadeira, ficaram três crianças para trás, um coxo, um cego e um surdo-mudo. É impressionante. Mas não acha justo?

– Como? De modo nenhum. Como não lhe pagam uns quantos xelins, leva--lhes todas as crianças? Ainda por cima, com certeza, não precisava do dinheiro, já que era mágico...

– Ora, precisamente, não precisava do dinheiro! E por isso quis dar uma lição aos cidadãos. Uma lição que eles precisavam de receber.

– Mas as crianças! Que culpa tinham? – perguntou Afonso. – As crianças? Não se lembra do que lhes aconteceu? Ao chegarem à mon-

tanha, conduzidas pelo flautista e pelo som mágico da sua flauta, abriu-se uma rocha, e dentro da caverna surgiu uma paisagem maravilhosa, com prados verde-jantes, rios transparentes, um sol esplêndido. Fosse o que fosse aquilo, acho que aí ficaram melhor do que numa cidade habitada por hipócritas. – comentou o Sr. Peters – enfim... Mas com isto desviamo-nos do assunto. Interessou-se pelo conto, e depois?

– Depois... ora, esse interesse levou-me a querer reescrever o conto. E quando comecei a investigar sobre Hamelin e as raízes históricas do conto, tive a ideia, uma estupenda ideia,

de fazer uma viagem até cá, o cenário real aonde se teria passado o enredo original, para tentar imaginar melhor a cena toda.

– Muito interessante, a sua ideia. Mas... porque veio ter comigo? – Bem, como alfarrabista, pensei que talvez fosse a pessoa indicada para

me ajudar a conhecer a cidade – disse Afonso – e sobretudo, a montanha. Deve saber imenso...

Mas Peters não ligou ao elogio de Afonso: – A montanha... A montanha... Sabe, não sou a pessoa ideal para o ajudar.

Posso apenas dizer que em primeiro lugar, a história do flautista de Hamelin pode ter sido mais real do que pensa. Em segundo lugar, a montanha é um lugar temido nesta terra: terá dificuldade em arranjar guia. Finalmente, tenho a dizer-lhe que a

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cidade está muito diferente do que era no século treze. Para o que pretende, basta--lhe visitar a igreja. Não há muito mais da época. E a igreja é muito bonita.

– Muito obrigado. – Ah. Tenho um amigo que o poderá ajudar. Ele gosta muito de ler, como

eu, e sabe muito sobre as histórias e lendas da região. Com certeza saberá mais do que eu sobre o flautista. Chama-se Clemens Schulz. A morada... tem algum papel? – levantou-se e retirou um pedaço papel de dentro de um daqueles livros que enchiam a sala. – Aqui tem. – disse, escrevendo a morada no papel com uma caneta de tinta permanente, e entregando-o a Afonso.

– Muito obrigado. – agradeceu Afonso, levantando-se. – Ora essa – disse Peters, abrindo a porta – tenha cuidado, rapaz. Quando

tiver escrito o seu conto, envie para cá. Terei todo o gosto em lê-lo! – Muito agradecido, Sr. Peters. E com um aperto de mão, Afonso saiu da loja. Visitou de seguida a igreja. Era grande e bonita, mas simples. Um grande

órgão de tubos que impunha respeito. Tentou imaginar-se naquela igreja séculos atrás. Dia 26 de junho de 1284. Os adultos de Hamelin estariam assistindo ali à missa de S. Pedro e S. João, que seria, com certeza, um belíssima celebração, com incenso e canto gregoriano. Ainda se parecia sentir o ecoar do canto e do órgão naquelas paredes pétreas. Mas ao mesmo tempo que os adultos aí estavam, entra-va na cidade um sujeito alto e magro, com um sorriso no rosto, e vestido de uma maneira invulgar. Traria nas mãos uma pequena flauta. Talvez algumas crianças que estivessem a brincar na rua o tenham reconhecido imediatamente como sendo o flautista que os tinha libertado dos ratos... É então que ele eleva a flauta à boca e começa a soprar. Primeiro baixinho, e depois, gradualmente, cada vez mais alto. E tocaria uma música alegre, e ritmada. As crianças sentem-se irresistivelmente atraídas por aquele som poderoso e começam a correr e a saltitar atrás do flautista. Mas o encantamento era ainda superior ao dos ratos. Porque desta vez, nenhum adulto pôde ouvir o som mágico da flauta. Um desfile com cento e trinta crianças, a transpirar alegria, e a afastarem-se da cidade, em direção à montanha... E Afonso imaginou o que teriam sentido as pessoas ao saírem da igreja. O que teriam cho-rado amargamente as famílias. Que desgraça esta. Quanto tempo terá demorado a ganhar alguma alegria aquela cidade? Durante quanto tempo esteve de luto? Era uma história triste, mas não deixava de fascinar Afonso.

Seguidamente deu uma volta pela cidade, mas não se quis demorar muito.

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De alguns pontos via-se a montanha, não era demasiado alta, mas ostentava uma certa majestade, e parecia atraí-lo com alguma força. Dirigiu-se para a casa do amigo do alfarrabista, o Sr. Clemens Schulz.

Esta era uma pequena moradia, já um pouco isolada, e perto da floresta que antecedia a montanha. Daqui a montanha parecia mais grandiosa. Já começava a entardecer, e Afonso tinha dúvidas se partia para a montanha ainda naquela tarde, ou se esperava pelo dia

seguinte. Mas ele queria explorá-la. E esse desejo parecia estar a ganhar cada vez mais força. Parecia que havia um ímã a puxá-lo para lá, sentia uma ânsia de aventura crescente.

Bateu à porta e abriu-a um velhote francamente baixo, e gordo, meio-care-ca. Afonso imediatamente, com um sorriso, disse:

– Boa noite. Estive há pouco na livraria do seu amigo, o Sr. Peters, e ele falou-me de si. Disse-me que saberia com certeza de coisas sobre o famoso conto O Flautista de Hamelin.

– Disse? – perguntou Clemens, e soltou uma gargalhada – entre. Sei, sim. Sem dúvida, que este senhor era também uma pessoa encantadora, à se-

melhança do amigo Peters. Que terra extraordinária que era Hamelin. Afonso esta-va estupefato. Trazia mesmo uma ideia errada em relação aos alemães...

– Muito obrigado – disse Afonso. Clemens conduziu Afonso para uma pequena sala de estar muito acolhedo-

ra. Um sofá e uma poltrona voltados para uma lareira acesa. A sala estava escura, iluminada apenas pela luz quente do fogo. O crepitar da madeira era para Afonso, muito agradável.

– Sente-se, homem! – exclamou o velho Clemens – Tenho chá. Vai querer? – Pode ser, muito obrigado. – respondeu Afonso. – Temos a casa por nossa conta, por isso esteja à vontade! – disse Cle-

mens, entregando uma chávena de chá a Afonso – Quer açúcar? – Não muito obrigado, Sr. Clemens. – respondeu Afonso, um pouco surpre-

endido com toda aquela hospitalidade. – A minha mulher está fora, foi internada anteontem, imagine. – disse Cle-

mens, sentando-se – Mas o médico diz que não é grave, e que em princípio depois de amanhã estará cá em casa.

– Que chatice – comentou Afonso, sem saber bem o que haveria de repon-der.

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– Enfim, pergunte lá o que tem a perguntar! Então, Afonso contou todas as circunstâncias que o haviam levado até ali,

de forma semelhante à de como tinha contado a Peters. Chegando ao fim, Clemens comentou:

– Aquela flauta, rapaz, aquela flauta... o som que produzia devia ser ter-rivelmente... terrível! É inimaginável. Todos os ratos que o ouviram morreram. E todas as crianças que o ouviram ficaram profundamente afetadas. Só sobreviveu um cego, um coxo...

– E um surdo-mudo. – interrompeu Afonso. – Sabe o que lhes aconteceu? – Não. – Os três regressaram à cidade. O surdo-mudo cresceu e tornou-se o sa-

cristão da igreja. Foi sacristão até morrer, e morreu velho. Tinha seguido os outros por curiosidade, mas não tinha ouvido a flauta, de modo que continuou a sua vida, para a frente.

– E os outros dois? – perguntou Afonso. – Passado poucos meses desde o acontecimento, numa noite, o cego e o

coxo fugiram juntos das suas casas e dirigiram-se à montanha. O coxo conduziu o cego. Diz-se que a dada altura se separaram, e o cego perdeu-se, e nunca mais foi visto. – Clemens fez uma pausa e suspirou – Já o coxo, continuou a procurar a gru-ta e os companheiros durante anos e anos. Diz-se que viveu na montanha durante séculos, que a sua vontade inflexível e a sua esperança inestinguível o mantinham vivo. E há quem diga que ele ainda vive.

– Ninguém os foi lá procurar? Não houve buscas? – Não... Para as pessoas, a montanha tornou-se um local amaldiçoado.

Toda a espécie de lendas foram surgindo. Havia quem dissesse que se ouviam os risos e o canto das crianças, havia quem jurasse ter visto um velho coxo a vaguear por entre as rochas. Não. Uma sombra de morte cobriu esta montanha. Pouca gente se aventura a sair da estrada.

– Ainda hoje?

* Miguel José da Fontoura da Cruz Fernandes– A montanha deixou uma ferida demasiado profunda em Hamelin. E estas

feridas não se saram nem com séculos. Fez-se uma pausa. Afonso olhava pela janela, e via a montanha alta e bela.

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Tinha, de fato, algo de sinistro. E nesse momento, de forma singular, apoderou-se dele um desejo irreprimível de aventura, mais forte do que todos os anteriores. Foi como que instantâneo. E impelido por esse impulso, levantou-se e disse:

– Pois eu vou para lá. – Quando? – Agora. – afirmou resolutamente Afonso. – Mas já é tarde. – Eu sei. Mas quero mesmo ir. Ela chama-me. – disse, olhando mais uma

vez pela janela. – Não faça isso. – Clemens levantou-se, olhando à volta – Se quiser pode

dormir aqui. A casa é pequena, mas tenho espaço para si. – Agradeço-lhe muito, mas a minha decisão é final. Vou para lá já. – Não tem medo? – Não. Eu vim a Hamelin para isto. Só sairei de Hamelin depois de conhecer

a montanha. – Agasalhe-se bem, então. – fez uma pausa – admiro a sua coragem. – Boa noite, e muitíssimo obrigado. – Boa sorte. – disse o velho Clemens, olhando fixamente para Afonso e

franzindo a testa – que os santos o acompanhem. Afonso saiu da casa, deixando a chávena a meio, e iniciou a caminhada.

Rapidamente a estrada começou a subir, e a expedição a tornar-se cansativa. Mas o desejo que o guiava era mais forte que a sede, o cansaço e o frio. A noite estava fria, e havia pouco luar. As estrelas não se viam por causa das nuvens. À medida que ia ganhando cota, havia cada vez mais vento, e a estrada tornava-se mais inclinada.

A estrada estava rodeada de árvores, que rangiam sempre que surgia uma rajada mais forte. Mas Afonso não sentia medo e prosseguia. Não lhe parecia louco aquilo que estava a fazer. Ele era um aventureiro. Era um artista. Sabia apreciar a solidão e a escuridão.

Passaram horas de caminhada. Abriram-se um pouco as nuvens, deixando a lua espreitar. Era um espetáculo digno de se ver. Agora, já havia muito poucas árvores, e cada vez mais rochas salpicadas com arbustos e vegetação rasteira.

Começava também a notar-se que a aparência era um pouco enganadora quando vista da cidade: a montanha parecia mais alta do que era na realidade. Por não ser assim tão alta, talvez nem se devesse chamar montanha. Era, na opinião

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de Afonso antes um monte, um monte alto, mas a terminologia pouco importava. O que lhe importava mais era a beleza e a grandiosidade.

Começou a trepar rochas e a abrir caminho entre os arbustos. E cerca de uma hora depois, abrandou e pôs-se à procura de um local alto, onde se podesse sentar a contemplar a vista.

Na quietude do monte, completamente só, Afonso sentiu-se insignificante, dada a sua pequenez perante a imponência das rochas que se erguiam para o céu escuro. Ao fundo, no meio da escuridão, distinguiam-se as luzes da cidade de Ha-melin. Ali em cima, enfrentando o vento, Afonso quis subir ainda mais, e sentou-se sobre uma pedra muito elevada como que sobre o vazio. Sentou-se e contemplou. Nenhum pensamento inoportuno conseguiu interromper aqueles momentos de pura experiência estética. Não havia palavra para descrever tudo aquilo.

Um vento frio e cortante soprava fortemente, tentando derrubar Afonso, mas ele não sentiu nem um pouco a baixa temperatura. Repentinamente, o vento ces-sou. E caiu sobre a montanha um profundo silêncio. E Afonso quis ouvir o silêncio.

Podem ter passado minutos, talvez horas. Para Afonso, o tempo que passou foi algo indescritível. Por um lado pareceu-lhe um instante, por outro, pareceu-lhe ter passado a

eternidade inteira à frente. Muito lentamente, de forma gradual, a quietude foi-se diluindo, mas o sabor de perpetuidade manteve-se. Afonso demorou muito a aperceber-se. Um zumbido distante e contínuo, um som quase inaudível começou emergir do silêncio, e foi ganhando força, até envolver Afonso completamente. Era um som estranho. Agudo, semelhante a uma voz cristalina, mas ao mesmo tempo muito pouco humano. Entranhava-se na pedra e na vegetação, e fazia tudo vibrar vagarosamente. Trazia consigo uma poderosa nostalgia, transpirava amargura, mas paradoxalmente parecia ao mesmo tempo produzir uma alegria louca. Um miste-rioso gozo começou a apoderar-se de Afonso, à medida que o som se tornava mais percetível.

Quase sem notar, levantou-se e pôs-se de pé sobre a pedra. O seu olhar fixou o infinito. Agora ia além do horizonte, ultrapassava as nuvens e as estrelas, percorria o Universo inteiro, e prolongava-se indefinidamente. E o som continuou a crescer e a crescer. Era o som de uma flauta. Mas que flauta... Desceu a rocha e deixou-se conduzir por ele. Parecia estar a ser puxado cada vez com mais força, e docilmente correspondia. Desceu mais, e seguiu por entre as pedras e os arbustos. Começou a correr. Não sabia para onde se dirigia, mas não tinha dúvidas de que

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estava a ir para o destino certo. Foi então que, quando aquele singular ruído atingiu um auge de esplendor, Afonso estacou. O som desvaneceu-se instantaneamente. À sua frente erguia-se um fissura profunda na rocha.

Dentro dela era tudo trevas. Sem qualquer espécie de medo, Afonso mergulhou na escuridão. Encontra-

ra aquilo que procurava. Fez-se silêncio no monte. Lá em baixo, no limiar da cidade, Clemens olhava pela janela e via a mon-

tanha. Estava a sorrir, e notavam-se lágrimas nas bochechas. Virou-se de costas e coxeando, ele era coxo, foi-se deitar.

* Miguel José da Fontoura da Cruz Fernandes nasceu em Lisboa, Portugal, 19 anos. Des-de pequeno estuda música, e também pinta e desenha. Há três ou quatro anos descobriu a escrita, e atualmente escreve contos. E-mail: [email protected]

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Morder-me os sonhos

Valentina Silva Ferreira* - 3.º lugar – categoria internacionalFunchal, Ilha da Madeira – Portugal

M aio de 2003 Todos me olham por debaixo de um ponto de interrogação. Como se fosse errado estar aqui, no funeral do meu marido. As pessoas dispõem-se à

volta do buraco. O padre soletra o que já sabe de cor, de outros funerais. Escondo--me por detrás dos óculos de sol. É a necessidade selvagem que sinto em fugir da verdade que se desenrola diante de mim. Por fim, ele desce pelas tábuas de madeira que dois homens controlam com a ajuda de cordas grossas. Jogam-lhe flores e, em pouco tempo, aquilo que era uma caixa da morte transforma-se num jardim colorido. Espero todos irem embora e permaneço, estática, diante da terra remexida que o guarda. Com cerimónia, dispo o meu dedo da aliança. Admiro-a, deixando os raios mornos de sol trespassarem a circunferência e dourarem o ouro. Num suspirar mais profundo jogo o anel e ele aterra, sem som, sem me doer o coração. Viro as costas e dirijo-me ao carro.

Maio de 1986Viro as costas e dirijo-me ao carro. A meio do caminho paro e engulo o

ar doce da Primavera. Arrisco um rodar dos calcanhares e alcanço o olhar dele, despedindo-me, apressadamente, com um olhar tímido, um gosto muito de ti joga-do ao vento. O menino de olhos verdes e coração na boca: a minha alma gémea.

Metade de mim chega a casa. O meu corpo desce do assento e corre esca-das acima. O coração e a cabeça ficam lá, com ele, com os reflexos pretos que os seus cabelos castanhos escondem, com as sardas que salpicam a sua pele branca, com a pulseira que eu roubei da loja e ofereci, cheia de emoção. Deito-me na cama e inspiro fundo. Estou apaixonada, irremediavelmente apaixonada. Encosto a cabe-ça à almofada e respiro o silêncio.

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Maio de 2003Encosto a cabeça à almofada e respiro o silêncio. As paredes são de um

cinzento desmaiado. A cama é coberta por um trapo castanho e a almofada não preenche a elevação do meu pescoço. Do teto pende uma lâmpada. A janela é demasiado alta para que eu possa entreter a vista com uma paisagem. Não tarda, o céu vestirá o seu vestido negro e, se não me engano, hoje a lua será redonda como um queijo. O corredor encontra-se mergulhado num sossego deprimente, uma calma que, de vez em quando, é engolida por um gemido que foge da boca de alguém. Ao terceiro suspiro encaro a minha parceira de cela e ela responde--me com um sorriso malicioso. São as Torres, diz. Franzo o sobrolho e ela, logo, tira a minha dúvida. As Torres são casadas. Sinto-me emudecer. Ajeito-me melhor à cama e encosto o ouvido ao cimento frio. Parece que a cena se desenrola no meu pescoço. Consigo desvendar todo o percurso das mãos de uma e a melodia prazerosa da boca da outra. Podia não conseguir ver e, muito menos, sentir, mas aprendia, agora, a ouvir e a separar cada sonância e a colocá-las ao lado de uma imagem. Mesmo encarcerada podia continuar a ver o mundo. Fecho os olhos e deixo a lágrima cair: a primeira vez é sempre emocionante.

Janeiro de 1995Fecho os olhos e deixo a lágrima cair: a primeira vez é sempre emocionan-

te. Ele posiciona os lábios no meu ombro, já despido, e provoca uma ebulição na minha pele. Encosto-me a ele, ao meu namorado de há nove anos, o meu menino de olhos verdes e sardas castanhas que é agora um jovem atraente. Ficamos abra-çados durante a eternidade de um minuto; eu engolindo a vergonha do próximo passo, ele controlando o vulcão que o seu baixo-ventre suporta. A minha pele não toca em mais nada a não ser o corpo dele. Os nossos pelos enlaçam-se; as nossas bocas colam-se; os nossos corações aninham-se, conhecedores antigos um do outro. Estamos nus e envolvidos numa seda de encantamento. Sem avisos, ele aperta o meu pequeno corpo e deslizamos, os dois, em direção a um lugar sagrado. Do lado de fora é possível ouvir os murmúrios de outras crianças: sons de pureza e ingenuidade. Aqui dentro, ecoam, embora quase surdos, os latidos da paixão. Ele força um caminho que será só seu daqui por diante. O céu ribomba luzes. Faz-se noite; uma noite permitida pelas nuvens quase pretas que cobrem o sol envergo-nhado de Inverno. As crianças, lá fora, gritam assustadas. Eu gemo sofridamente. A chuva derrama-se furiosamente. Finalmente, recebo um abraço meigo e mergulho

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a cabeça naquele peito que me conforta.

Maio de 2003Finalmente, recebo um abraço meigo e mergulho a cabeça naquele peito

que me conforta. Como estás, querida?, pergunta-me. Estou bem, mãe. Ela deixa--me encaixada no seu abraço por mais uns momentos e, depois, afasta o corpo para olhar no interior dos meus olhos. Tu não fizeste aquilo, diz-me serenamente. Empurro a cadeira velha e sento-me. Estou aqui, digo e aponto em volta. Ela encara-me com os dois olhos escuros. Coitada, envelheceu em tão pouco tempo. Afundo-me na cadeira e recebo um beijo na testa. Vai correr tudo bem, sussurra--me perto do ouvido.

Abril de 1995Vai correr tudo bem, sussurra-me perto do ouvido. Como podes ter tanta

certeza?, pergunto. Uma gravidez não é o fim do mundo, responde-me, com o semblante pouco carregado, o que significa que não diz aquilo só para me sosse-gar. Eu suspiro: um filho. Sinto-me demasiado pequena para suportar uma criança no meu ventre. E depois? As noites mal dormidas, o ser mãe, namorada, filha, es-tudante: o crescente número de papéis e funções. Serei capaz disso? Terei de ser. Sempre me ensinaram a assumir as responsabilidades pelos meus atos.

Maio de 2003 Sempre me ensinaram a assumir as responsabilidades pelos meus atos.

Sabe, Dr., não me resta muita coisa na vida. Sei que sou nova e que poderia refazer o meu futuro mas a verdade é que o destino traiu-me. Julguei que toda a minha vida tinha sido feita para acompanhar a vida do meu marido. Achei que o fato de nos termos conhecido muito novos e de termos namorado toda a nossa juventude só poderia querer dizer que éramos almas gémeas. Engulo uma saliva que sabe a vidro cortado. Depois engravidei e, mais uma vez, encarei isso como um sinal de que nada nos poderia separar. Fecho os olhos e sereno diante do escuro que me preenche a visão. E depois?, pergunta-me o advogado. Liberto-me do negro e respondo-lhe secamente. Depois aprendi que não existem almas gémeas. E, por isso, o matou?, questiona-me antes de eu levantar-me para ser levada pelo guarda até à minha cela. Sim, Dr., por isso o matei. Saio. Um homem bonito acompanha-me.

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Maio de 1995 Um homem bonito acompanha-me. O meu querido pai, vestido de cinzento

e com os olhos molhados de alegria, leva-me até ao altar, onde ele me espera. Não foi uma decisão fácil mas, depois do resultado da gravidez dar positivo, nada mais certo que casar. A igreja não está cheia: apenas a família e poucos amigos. Não estou nervosa pois sei, há muito tempo, que este seria o caminho a ser tomado, mais cedo ou mais tarde. O padre começa a missa. Eu entrego, discretamente, a minha mão à dele e ficamos assim durante toda a cerimónia. No momento exato, ele diz que sim, eu digo que sim e pedem que nos beijemos. Está um lindo dia de sol - o dia perfeito para receber a minha nova vida.

Junho de 2003 Está um lindo dia de sol - o dia perfeito para receber a minha nova vida. A

sala de audiências quase vazia não me mete medo. Sento-me, ao lado do advoga-do, e espero pelo juiz que, entretanto, chega. Fazem-me perguntas para as quais o advogado preparou-me. A acusação aponta-me o dedo com náusea e, diante de mim, desenrola-se uma cena dolorosa: os meus pais abraçados, amparando a tristeza um do outro; os meus sogros lambendo as lágrimas um do outro; os pais da outra soluçando no ombro um do outro. Sinto uma angústia escalar as minhas tripas e uma dor aguda instala-se no meu ventre.

Junho de 1995 Sinto uma angústia escalar as minhas tripas e uma dor aguda instala-se

no meu ventre. Leva-me ao hospital, suplico. Que tens?, pergunta-me ele. Uma dor, uma dor muito forte. Aqui, digo, apontando para a minha barriga. O rosto dele transforma-se em sufoco. Chegamos às urgênciase colocam-me numa ca-deira de rodas. A médica pede-me que abra as pernas. Sinto-me escorregar para fora do mundo. Fique connosco, oiço. Mas a voz é demasiado distante e só me apetece deixar-me levar por esta magia sonolenta que me embala os cabelos. Os meus olhos cedem. Deixo de ver pessoas estranhas e luzes fortes. Vejo a escuridão mesclada com sons de bebés. O meu filho está a nascer. Mas, depois, aquilo que surge no meio do manto negro que me cobre os olhos, deixa-me assustada: um bebé ainda em formação, quase sem pele, coberto por vasos sanguíneos, pequeno, tão pequeno que me cabe na ponta do dedo. Não quero!, grito. Não quero esse monstro. Ele desaparece ao mesmo tempo que o desprezo. O meu coração abran-

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da. Oiço, novamente, vozes que me trazem de volta à realidade.

Junho de 2003 Oiço, novamente, vozes que me trazem de volta à realidade. Matou o seu

marido? Responda! O advogado de acusação grita na minha cara e eu desperto da inércia. Sim, matei. Uma sinfonia de choro preenche a sala. E matou a senhorita Susi? Engulo em seco. Matei. As pessoas exaltam-se, chamam-me de assassina. O juiz pede meia hora de intervalo e, quando regressa, coloco-me em pé para ouvir a minha sentença: pena de morte. Sinto um sopro agitar os meus pelos. É a morte que me abraça uma vez mais. No entanto, respiro fundo e sorrio. Há muito tempo que não me sinto tão leve; leve e livre.

Junho de 1995Há muito tempo que não me sinto tão leve; leve e livre. Que sono restau-

rador. Ajeito o corpo à cama, suspiro e levo as mãos à barriga. O ambiente gela à minha volta. O meu filho. Aperto a barriga e tudo o que sinto é pele e carne e ar. Da minha garganta saem gritos de dor. Duas enfermeiras entram no quarto e seguram-me nos braços que tentam arrancar os tubos que se filtram nas minhas veias. A minha mãe entra logo em seguida, acompanhada pelo meu marido. É visível a tristeza nas suas caras. O meu filho?, pergunto. Ninguém responde e eu sei, instintivamente, o que aconteceu. Mergulho a cara na almofada e choro. Aquele sonho, aquele sonho do bebé-monstro que eu recusei. Ele morreu por minha causa. Sou uma assassina.

Junho de 2003 Sou uma assassina. Assassina da minha própria vida porque acreditei em

falsos contos de fada e em juras de amor eterno. Deito-me na cama e deslizo os olhos pelo teto. Acabou a dor misturada com a fúria, e a pena de mim própria e dos outros que vivem o mesmo. Acabou. Agora sou só eu. Sou eu que decido a minha vida. Decidi o caminho a partir do momento que eles tombaram, ensanguentados, aos meus pés. Acabou. Estou sozinha.

Setembro de 2000Estou sozinha. Deixei a depressão vencer o casamento e roubar-me o ho-

mem. Perder um filho, seja em que idade for, é a maior dor que se pode sustentar

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no coração. E mesmo sem conhecê-lo, sem experimentar o seu cheiro, tenho sau-dades. Saudades de tê-lo na minha barriga, saudades do que não tive depois disso, saudades do meu marido. A morte do meu filho trouxe a separação dos nossos sentimentos enquanto homem e mulher, como se ele tivesse levado todo o amor que guardávamos dentro de nós. Estou vazia.

Junho de 2003 Estou vazia, diz-me a minha mãe. Estamos abraçadas há mais de cinco

minutos. A cadeira engole o meu pai. Mãe, eu amo-te. Ela aperta-me com toda a sua dor. As lágrimas sufocam-me. Apesar de querer a liberdade da morte, corrói--me fazê-los sofrer. Pai, vem cá, peço. Ele levanta-se com dificuldade. O desgosto toldara-lhe os movimentos. Abraça-me, pai. Repito as palavras que disse à minha mãe e permanecemos em silêncio. O guarda chama-os. A minha mãe mostra-me um rosto deformado pelo tormento; o meu pai definha-se à medida que caminha para a porta. Lançam-me beijos no ar que eu recolho com as minhas mãos e guardo nos bolsos para mais tarde. A porta fecha-se atrás de mim e, finalmente, encaro a verdade.

Abril de 2003 A porta fecha-se atrás de mim e, finalmente, encaro a verdade. O rabo

branco do meu homem balança diante dos meus olhos e uma loira esbraceja por debaixo dele: ele, de meias, e com gorduras que eu nunca vira antes; ela, nem melhor nem pior que eu, talvez mais nova. O som da minha respiração moída pela surpresa desagradável desperta-os para a presença de mais alguém no quarto. Ele retira-se do aconchego dela e embrulha-se no lençol. Como se isso fosse cobrir a traição. Ela abre a boca e encolhe-se na cama. Eu não digo nada. Fecho os olhos e deixo o destino que sempre me enganara seguir o seu caminho.

Junho de 2003 Fecho os olhos e deixo o destino que sempre me enganara seguir o seu

caminho. Os homens apertam-me os pulsos e os tornozelos na cadeira forte da morte. Um médico coloca-me a seringa na veia mais saliente. O veneno penetra o meu sangue e eu sinto a respiração dizer que está na hora de ir descansar. O corpo pesa-me. Nos meus bolsos estão os beijos dos meus pais: vão comigo. No meu coração levo o meu filho. Na minha alma levo o peso de um destino: um destino

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que fez castelos de areia com a minha vida e, depois, destruiu-os com os pés.Eram grutas de medo que eu guardava no coração. Foi assim depois da morte dele. Na verdade, foi assim depois de o conhecer: um destino que me mordeu os sonhos.

Abril de 2003 Jonas corre, embrulhado no lençol até onde Bea permanece de olhos fecha-

dos. Desculpa, querida, desculpa. Ela abre as pestanas longas e encara o marido que se ajoelha diante de si. Querida, vamos voltar a ser felizes; vamos esquecer a morte do nosso filho; vamos começar de novo. Susi sente o peso das palavras esmagarem-na contra a cama. Ferida, levanta-se. Abre a sua mala e retira a arma que a sua profissão a obrigava a transportar. Vocês não vão ficar juntos!, grita, completamente nua - de roupa e de juízo. Susi, tem calma, diz Jonas. Calma?, tu prometeste que íamos ficar juntos. O dedo prime o gatilho e o chumbo voa na direção do peito de Jonas. Ele tomba instantaneamente. Bea leva as mãos à boca. Susi, envergando a cara de uma demente, encosta a arma ao coração e mata-se. Bea desliza para perto do marido e chora no seu ombro. Depois, com a frieza ca-raterística de quem está habituado a dores profundas, levanta-se, pega na arma, guarda-a na sua bolsa e sai.

Em breve, a polícia chegará e encontrará as suas impressões digitais por todo o quarto.

Valentina Silva Ferreira, Funchal, Ilha da Madeira, Portugal. Licenciou-se em Direito e tem mestrado em Ciências Jurídico-Criminais. Autora de Distúr-bio e A Morte é uma Serial Killer (Ed. Estronho). Começou na Revista Magazon. Participa em mais de vinte antologias portuguesas e brasileiras. E-mail: [email protected]

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A bola Lola

Ana Brandão* - menção honrosa – categoria internacionalSão João da Madeira- Portugal

E ra uma vez uma bola, que sonhava ser um quadrado, pois passava a vida a rolar, e nunca tombava de lado. Era uma vez uma bola, que queria ser triângulo, porque passava a vida a

procurar, e nunca encontrava um canto.Era uma vez uma bola, que gostava de ser rectângulo, para em comprimen-

to crescer, e nunca ter de se encolher.Pobre bola Lola, não conseguia parar de sonhar, andava com a cabeça à

roda, sempre a imaginar, em que figuras especiais, se podia transformar. Certo dia, Lola teve de ir à padaria, e pela estrada fora, girava tanto que até

corria. Mas que grande alegria. Afinal ser bola, também tem o que se lhe diga. Outro dia também, foi para a relva saltar, encontrou uma formiguinha, que

a pós a rebolar.Que maravilha é poder brincar todo o dia. E numa bela noite, em que voltara a sonhar, olhou para o céu estrelado e

viu algo redondo a brilhar. - Lola, para que queres tu mudar, se és linda como o Luar?

* Ana Brandão, economista e técnica oficial de contas, gosta de trocar os números pelas letras nas horas vagas. E é nas pequenas histórias que descobriu como escrever o cami-nho da felicidade. E-mail: [email protected]

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O Peixe Encantado

Vitor Batista* - menção honrosa – categoria internacionalBarreiro, Portugal

A prole descendente dos meus pais, além de mim, tem mais duas pessoas. Significa dizer, sem que para tal fosse necessário fazer qualquer referência, que somos três os filhos do antiquado casal Valadares, que sendo pessoas

cuja idade está na parte final dos setenta, têm a sua pouco pensante cabecinha situada na década de quarenta, do século passado.

Claro está que a vida que nós os três filhos fazemos, é uma enorme pre-ocupação para os pais, porque o nosso “modus vivendi” está totalmente fora dos padrões pelos quais balizam a sua sebastianista maneira de pensar.

Não percebem como, nem porque razão a minha irmã, por acaso a mais velha do grupo, vive com o pai dos seus três filhos sem serem casados. Também lhes custa imenso aceitar que sou casado, já em segundas núpcias, sem que em alguma das vezes eu tenha passado, mesmo que por perto, pela porta da igreja.

Quanto ao mais novo, que ainda está no princípio dos trinta, nem vale por falar nele ou do seu modo de vida com os pais, que o apelidam de sem-vergonha, de desmiolado, de perdido da noite e por aí fora. Ele vive com os nossos pais, porque ainda é um rapaz novo, naturalmente solteiro. De qualquer maneira, os velhos Valadares só o aceitam, ainda que com alguma frieza, porque é filho, pelo curso tirado e pelo seu bom emprego, o que quer dizer, de acordo com os arcaicos valores defendidos pela parentela Valadares.

A maldade e o vício chegam depois, quando entra em casa fora de horas e, pior um um pouco, quando ele sem aparente razão troca de namorada com a mesma facilida-de como uma outra qualquer pessoa troca de camisa, segundo os pais Valadares.

Aqui é que a porca torce o rabo! Contudo e sendo ele um rapaz novo, faz muito bem se agarrar todas as boas

oportunidades que lhe vão surgindo, pois, como é natural, para a bela idade que atravessa tem que aproveitar os prazeres que a vida lhe concede no dia a dia. Por

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essa razão e em geral, à conversa dos pais diz nada. Nunca discorda dos bolorentos e gastos conselhos que o velho Valadares

teima em emitir, mas são palavras que já não o incomodam. De qualquer modo nós até já conversamos sobre o assunto, na medida em que ele precisa ser mais cuidadoso em determinadas situações que se lhe deparam. Tem que retirar delas o proveito possível, mas deve ser bem mais comedido. Pode correr riscos, que não sendo bem medidos, acabam por dar razão à litania do pai Valadares, a quem a mãe, muito naturalamente, dá sempre o seu amém.

Tudo isto vem a propósito do miúdo, como eu muitas vezes me refiro ao meu irmão, ter ido à menos de um mês visitar o norte de África. E então, fez-se acompanhar de uma nova candidata a minha cunhada, que ele julgava já conhecer bem, por ser a empregada da loja de modas onde costuma comprar a roupa da excelente e conhecida marca que veste.

Contudo e pelo que me contou, quase tudo lhe correu mal durante a se-mana que por lá andou. A origem da maioria dos percalços e das desagradáveis ocorrências que marcaram a viagem, ficou a dever-se à sua acompanhante, neste momento já ex-candidata a cunhada da minha irmã. A madame, é um adequado apodo, entendeu ser ela a escolher o que deviam visitar durante o período da es-tadia no local.

O miúdo acedeu e só depois deu pelo tremendo erro que cometeu. Foram visitar a parte velha da cidade, lugar labiríntico e demasiado con-

fuso, onde é aconselhável entrar na companhia dum guia experimentado e bom conhecedor da zo-na, para evitar que as pessoas se percam naquele emaranhado de ruelas escuras e sujas. A decisão que ela tomou foi de tal maneira fortuita e inopinada, que além de se terem perdido no interior da medina, foram assaltados e despojados de todos os valores que tinham em posse.

Também foram ver os encantadores de serpentes, mas aqui por imposição do meu irmão, que desde criança sempre se deixou fascinar por aquele espetáculo. Ele ansiava por ver ao vivo as serpentes, os tocadores de flauta, ouvir a música encanta-da, enfim, queria ter o supremo gozo de ver as cobras a sairem das cestas, enfeitiça-das pela música tocada pelos seus hábeis encantadores. Só a determinada injunção do miúdo permi-tiu que pudesse assistir a um brilhante show. Aqui correu quase tudo bem. Só que ela conseguiu de tal maneira endrominar o meu irmão, que o convenceu a trazer uma serpente, bem como tudo o resto que seria necessário para encantar o animal, não podendo aqui confirmar-se qual, se o humano se o réptil.

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Por sorte, ao passarem na alfândega e quando lhes pediram para abrirem a cesta, esta estava vazia. A serpente tinha fugido. Foi o que lhes valeu, pois, por certo, teriam eles ficado encantados com o que aquilo que os esperava.

O miúdo está de novo sózinho. Mas, pelo que me apercebi, não lhe sai da ideia o divertimento que teve, a agradável sensação que sentiu ao ouvir a música do feitiço e ver as cobras a soerguerem-se vagarosamente, bailando. Era um sonho de criança!

Realizado!E de tal maneira assim foi que neste momento o miúdo, usando o mesmo

tipo de música, mas não sendo possuidor de serpentes, está tentando encantar dois peixes vermelhos de água fria, que tem num aquário lá em casa. Gasta várias horas ao dia tocando uma flauta igual à dos encantadores do norte de África, a tal que não ficou apreendida na alfândega, numa tentativa de os fazer saltar da água. Ele anda muito entusiasmado e já me disse que as coisas até nem estão a correr nada mal. Apenas precisa de dar um pouco mais de tempo, ao tempo.

Os pais Valadares é que não estão a gostar nada do que ele está a fazer e até já dizem que o preferiam ter como sempre foi, um sem vergonha e um perdido da noite.

Têm receio que possa vir a desmiolar! Entretanto, estão passados mais de dois anos desde quando o miúdo dei-

tou mãos à obra e começou o difícil trabalho de enfeitiçar os peixes, que ele bem viu fazer no norte de África, mas apenas com serpentes. Estive à conversa com o meu encantador irmão, para com ele trocar algumas impressões sobre o modo como estava a decorrer a sua já longa e bem avançada experiência. Queria saber como se estavam a comportar os peixes face à música que ele lhes dava todos os dias. De assarapantado, com o que comecei por escutar, a admirado, espantado e boquiaberto com as explicações que ele me fornecia com o passar dos dias, origi-naram as principais sensacões recolhidas durante a cavaqueira com o miúdo. Mas e acima de tudo, fiquei convencido que o mano caçu-la ainda vai ter pela frente, imenso, direi mesmo um enorme trabalho, para atingir os seus propósitos, porque é bem diferente o trabalho que é preciso desenvolver para as duas diferentes es-pécies animais. Muito mais difícil para os peixes.

Disse-me ainda o meu irmão, que os peixes já saltavam e voltavam a mer-gulhar com alguma facilidade, havendo até um deles que já ficava fora da água um razoável pedaço de tempo. Gostaria de adiantar aqui, e faço-o em nome do miúdo, que um dos peixes morreu, dado não ter suportado o tempo que era “obrigado” a passar fora de água, por força da música encantada que lhe era dada a ouvir. Na-

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turalmente, o miúdo sentiu um grande desgosto pela perda deste peixe. O outro peixe é um caso invulgar, direi mesmo raro, raríssimo. Basta-lhe

ouvir o soar das primeiras notas de música vindas da flauta encantada, para de imediato saltar do aquário para a mesa e aqui se bambolear a seu belprazer.

Posso entretanto acrescentar que passaram mais dois anos de intenso tra-balho do meu mágico irmão e que o tal peixe, o invulgar, já fica bastante mais tempo fora de água. E

que, por uma ou duas vezes, até já foi com ele ao café, seguindo-o sempre ao som da música de encantar serpentes africanas, entretanto adaptada para os peixes vermelhos de àgua fria.

O acesso ao café é fácil, por ficar mesmo ao lado da porta da casa dos pais, mas nem por isso deixa de ser relevante ver um peixe vermelho deslocar-se fora do seu habitat natural, visto ser grande e quase impensável o que a novidade encerra.

Mas o casal Valadares tinha razão quando não gostava de ver o filho mais novo sempre à volta, sempre agarrado aos peixes. Foi das poucas vezes que acer-taram sobre o que pensavam a respeito do filho. Com efeito, os nossos velhos pais temeram o que esteve para acontecer; o meu irmão quase amalucou. É a realidade!

Contudo, convém realçar que não era para menos. Ele gastou anos de tra-balho, anos de intensa labuta para enfeitiçar os peixes. Atingiu o objectivo que perseguia, conseguindo que o peixe que ficou vivo, o raro peixe, ao ouvir a música de encantar, logo saltasse do aquário para a mesa, saracoteando-se e bailando pronto para o acompanhar, para irem os dois fazer mais uma passeata, para sair de casa. Por isso não admira que ele, o miúdo, andasse sempre emproado e com razão, pois o peixe até já passava mais tempo fora do aquário que dentro de água.

Mas, quando menos se espera, aparecem as ocasiões propícias a determi-nados e inesperados sucessos. Foi o caso, o imprevisível aconteceu.

O peixe que o meu irmão tanto estimava e adorava, o seu fiel companheiro, o que restava do par inicial, também se passou. Morreu!

A situação, que parecia estar por ele, aparentemente, bem controlada, afinal apanhou-o de surpresa. O miúdo ficou arrasado com o acontecido. Nesta ocasião, pior coisa não havia que pudesse ocorrer. Ele ficou, sei lá, como que sem forças e sem ânimo ao ponto de estar de fato, um tudo nada passado de ideias.

Acima de tudo, porque o peixe teve uma morte inesperada e insólita. Foi para ele uma grande surpresa! Naquele dia, bem no pino do verão, o miúdo mais o seu companheiro peixe

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foram ao café, depois do almoço. O sol parecia queimar. Abrasava. Na volta, ao fazer o pequeno percurso que separava o café da casa do pai

Valadares, o peixe vermelho encontrou algumas dificuldades, por estar com imenso calor. Ele queria, precisava a todo o custo de se refrescar. E então, ao entrar em casa deu de caras com o seu velho aquário, que continuava no mesmo lugar e cheiinho de água. De imediato o vermelhusco se apercebeu e sentiu ter ali mesmo à mão de semear um bom lugar, talvez mesmo, o lugar ideal para suavizar o bem forte escaldão que apanhara.

Se nisso pensou melhor o fez! Então, já muito aflito, o peixe saltou para o interior daquele que sempre fora

o seu habitat, na ocasião um verdadeiro chamariz aquífero. Foi então que aconte-ceu o inopinado. O imprevisto!

O peixe vermelho, por andar constantemente na ramboia atrás do dono, sempre ao sabor da música enfeitiçada que o miúdo não se cansava de tocar, já estava pouco habituado ao meio aquático onde sempre vivera.

O meu irmão sentia um grande orgulho por todo aquele seu trabalho ter atingido o fim a que se propusera. Contudo e apesar de se mostrar bem feliz com o que fizera, o miúdo sempre considerou que era inevitável continuar, visto que um trabalho deste calibre, nunca está terminado. Palavras certas e justas, para uma re-alidade diferente.De fato, se por um lado o miúdo deu a tão falada continuidade ao seu trabalho, pelo outro deixou aliviar um pouco a segurança do seu dançarino, de maneira que algumas vezes ele próprio se esquecia dos incómodos que uma onda de calor podia provocar ao seu vermelhusco peixe. Uma verdade que se confirmou!

Com efeito, com a intenção única de arranjar um local bem mais fresco, de modo a que pudesse ficar bem melhor, o peixe raro e vermelho, deu um pincho para o interior do seu velho aquário, que lhe foi funesto. Inelutável mesmo.

Certo certo, é que o peixe encantado não resistiu a tanta água, acabando mesmo por morrer afogado. Foi uma tristeza! Foi uma pena!

Talvez porque um dia tal teria que acontecer. Talvez!Acontece, é a vida!

* Vitor Manuel Capela Batista, 62 anos, português de Barreiro, Portugal.Engenheiro químico, já foi radialista, possui atividades holísticas, participou de vários concursos literários, gosta de participar de coletâneas, foi premiado em 2011 por este concurso na mesma categoria, 2.º lugar. E-mail: [email protected]

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O Saber…

Dinis Muacho*- menção honrosa – categoria internacionalAvis - Portugal

U ma tasca como tantas outras. A venda da família Saboeiros é ao mesmo tempo tasca e venda. É um local rústico único. É único como todas as tas-cas e como todas as vendas existentes nas fortes planícies Transtaganas.

Pintada de um azulão forte da cor do céu limpo na pele exterior e de neve caiada na pele interior é assim a sua essência mais objectiva. O telhado é de telhas cerâmicas de canudo dos barros vermelhos do Redondo, de uma cor de fogo que se entranha na alma das gentes. Por baixo das telhas existe um ripado de madeira de pinheira mansa, que serve de teto falso, e abriga a casa do muito frio e do muito calor, meio--termo térmico não existe por estas bandas. Portas pequenas, uma para a venda, outra para a tasca e ainda outra para a habitação da família. Um portão grande de ferro com espigões rendilhados dá as boas-vindas a quem se assoma à torre de tijolo burro, altaneira, do forno da padaria, que fica nos fundos do quintal. Móveis pintados de amarelo muito clarinho servem de colo aos mais variados produtos que tanta falta fazem ao povo das redondezas. O pão acabado de cozer – a pedir tiborna de azête – em forno de lenha de sobro vende-se ali. Vende-se por senhas, as mulheres chegam a estar um dia à espera na bicha para apanharem um quarto de pão para alimentar oito bocas durante sete longos dias. O açúcar é igualmente racionado, apenas uma quarta de açúcar para uma casa inteira prenhe de gente.

A tasca é pois o local de eleição e socialização dos homens. Ali não faltam todo o tipo de pseudoeruditos, malteses, fadistas e até bêbados! Fica na parte baixa da velha aldeia, centro nevrálgico de conversas e ajuntamentos populares. Popu-lares sim, que os senhores da terra não se misturam com a arraia e criadagem, preferem ir até à vila beber chá ao Grémio ou ir a casa de parentes mais ou menos afastados. Na venda dos Saboeiros é um corrupio de homens, uns a bater o ás da cartada em cima das mesas com tampo de pedra, outros em amena cavaqueira, ouros encostados à ombreira para que a parede não caia! Venha de lá mais um copo de vinho e um bagaço, que o vinho é que instrói e o fado é que induca! É já

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um dizer antigo, logo fado e fadistas, bêbados e vinho, é algo que nunca falta. Pipas sempre cheias para os fregueses mais sequiosos. É um local em que as grossas paredes são confidentes dos segredos mais infames, dos boatos do amante desta e daquela, do filho que não é filho de fulano mas sim de sicrano… Elas é que sabem tudo, mas em seu claustro de fidelidade ouvem e calam. Os indivíduos cantam uns com os outros certas modas da região, ou então cantam à desgarrada, sempre à capela, muitas vezes ao som da concertina do Zé da Enxara ou do Joaquim Barto-lomeu. Desta maneira matam por momentos as agruras da vida difícil levada de sol a sol nos campos arroteados à força de braços e animais.

Todas as sextas-feiras e domingos é dia certo de o Ti Manel Maravilhas aparecer ali pela tasca para beber o seu copinho e por vezes ser chacota das más--línguas do costume. O velho Maravilhas desde novo que não era como os demais da sua geração. Já em cachopo gostava de falar com os velhos e de aprender as suas sábias lições de vida. Com eles aprendeu tudo: a afiar navalhas e machadas na pedra grossa de amolar, a fazer cestas e cadeiras de junca – que o junco não presta para isso – bem entrançadas, a fazer enxertias na altura das luas, e o regalo dos olhos de toda a gente eram os seus batatais semeados à manta, que davam as melhores batatas da aldeia. “Que maravilha”, diziam todos a respeito do cachopo feito homem desde muito novo, que tudo aprendera com primor. E por isso ficou o Manel “Maravilhas”. Aprendeu a ler com um velho que vivia num monte ali perto, que o ensinou também a escrever no pequeno quadrinho de xisto. Era como um pai para si, ensinara-lhe tudo, e o resto aprendeu sozinho. Aos sete anos já era zagal, depois foi ajuda de porqueiro, onde aprendeu também com os animais o valor e a noção de família. Quando as marrãs pariam era a sua maior alegria, batizava todos os quichos um a um, com nomes de tudo e mais alguma coisa. Os pais do Ti Maravilhas morreram novos, pelo que ficara órfão de mãe e pai com três e quatro anos respectivamente. Mas seguiu em frente, sempre quis saber mais e mais, não virou a cara à luta e ao saber. Como lhe dizia o mestre Chico da Pedreira “Rapaz, saber não ocupa lugar!” e esse era o seu lema, seguido à risca por influência desse velho que lhe ensinara a ler e a escrever, tantas vezes já a plenos pulmões da luz da candeia de azeite. Era pobre, comia uma pobre açorda de pão duro regada com um fio do néctar puro das oliveiras e alhos, e assim enganava a fome, sabe Deus! Quando era no tempo das boletas lá andava ao rabisco e metia mais alguma coisita no bucho, para além de couves e batatas! Cresceu e fez-se homem de barba feita! A melhor horta das redondezas era a do Maravilhas, que sempre humilde dizia que

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o seu saber era pouco, tudo o que sabia era por graça de Deus Nosso Senhor. Por não ser um homem alto, sempre que o arreliavam com isso na mangação respon-dia com uma espécie de verso que continha o nome de uma serra, que aprendera com o velho Chico da Pedreira. De serras sabia o nome de todas de cor e salteado, mas da que gostava mais era da serra de Maltim – que era perto da sua aldeia – e da serra do Marão… soava-lhe bem o nome! Dizia então aos galfarrões que o apoquentavam o adágio: “Olha lá, grande é o Marão e não dá palha nem dá pão!”. Com esta é que calava logo toda a maledicência. Cantava mal o fado mas era um exímio repentista de prosas de quarenta pontos. Um dos motes que mais lhe ouviam dizia: “Eu cá quero saber mais / Quero a todos e a ninguém / Lá por mor-rerem meus pais / Não deixo de ser alguém”. Levou uma vida pacata, casou com o seu único amor, de quem teve três filhos e duas filhas e ainda criou mais uma criança de berço que lhe deixaram aos portados do Monte da Figueira Negra numa noite de invernia, andava a sua Adelaide prenha da sua da última cachopita. Não pestanejou, “No prato onde comem cinco, hadem comer seis, sabem tanto de amor ao próximo como eu sei cantar o fado” arrematava muitas vezes, sobre os ricaços que haviam feito aquele belo serviço, qual roda dos enjeitados das gentes finas, talvez de uma filha que se envolvera com algum jovem ganhão que servia o pai! Já homem velho, depois dos filhos todos criados, sem nunca ter deixado de trabalhar nos trabalhos do campo, já que as oportunidades eram nulas para os pobres do seu país rico mas oprimido por ditadores, lá ia todas as sextas-Feiras e somingos religiosamente à tasca dos Saboeiros para umas desgarradas de poesia. Ao Ti Maravilhas até havia quem lhe chamasse o Borda D’Água das poesias, já que em mestria não ficava atrás do primor dos grandes bailarinos de fandango ribatejanos. Qualquer assunto era tema para longa conversa, servindo de conselheiro a muitos dos seus camaradas de confraternização, e aos novos até escrevia cartas por eles a alguma cachopa de que eles gostassem. Toda a gente se admirava de o homem toda a vida ter sabido e ainda saber de tanta coisa, e coisas tão distintas, mas alto lá que em política não se tocava! Só de pensar já doía, o país não deixava! “Ah filho duma real puta, que é mesmo um homem que sabe a valer”, dizia o Jaquim Morcela, que ouvira dizer mais ou menos o mesmo na telefonia acerca do Eusébio. Mas o que disseram ao Eusébio não era por malcriadagem, era sim o maior louvor em palavras que se podia dizer a alguém, dito por quem não sabia ler nem escrever. Só quem sabia fazer coisas fora do normal, quase como que fenômenos do Entron-camento, é que era merecedor de tal elogio (para alguns doutos era mera falta de

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educação). Num outro aforismo, o do amigo que não empata amigo, lá na tasca lan-

çava o mote: “Ora quem vai, vai / Ora quem está, está / Morreu-me mãe e pai / Não choro por eles já!”. Os Homens não choram e o Ti Manel Maravilhas já não tinha vida nem idade pra chorar, mas ao mesmo tempo que assacudia aqueles que não lhe interessavam, jamais esquecia a sua mãe e o seu pai que tão precocemente tinham partido deste mundo. Ele sabia que a família era o pilar da sociedade, era pois um homem muito à frente no seu tempo, e soube bem passar essa mensa-gem aos filhos e netos. Quem sabe, sabe e o Ti Maravilhas sabia, o que era o bem e o mal, a verdade, a honra, a seriedade, o valor da palavra dada. E para saber e discutir isto tudo e muito mais nunca precisou de se encharcar em vinho nem em bagaço. Bebia os seus tintinhos em púcaro de lata carcomida e quando se sentia já bem, mais não bebia. O saboeiro, dono da tasca e da venda é que ficava a perder com o negócio, era menos um bocado da pipa que esvaziava e menos uns tostões amealhados ao fim da noite. Mas era menos um bêbado que aturava, e o Ti Maravi-lhas era sempre pessoa que dava gosto ter na sua pequena taberna. Para bêbados já lhe bastavam o Finfas e o Tonel que dia sim, dia sim, eram clientes habituais da embriaguez. Depois de bem pingados estes dois armavam de tourada com uns e outros e o resultado era sempre o mesmo: o jogo do pouco tino!

Morreu velhinho o Ti Manel Maravilhas, mas ainda hoje nas estreitas e tortuosas ruas empedradas da velha aldeia, dizem que o saber da sua alma está perpetuado em cada esquina, em cada pedra, em cada parede. O saber de um homem que resistiu à guerra civil do país vizinho, à ditadura do seu próprio país, e viveu alguns dos anos de liberdade que se seguiram, prova de que quem sabe com humildade, e não guarda o saber só para si, faz crescer a humanidade, nem que seja a de uma pequena aldeia, que hoje chora de saudade este ser humano tão sábio e maravilhoso…

*Dinis Reis Subtil Muacho, 32 anos, mora em Avis-Portugal, tem um livro de poesia editado, é escritor premiado nacional e internacionalmente (poesia e prosa), alia a faceta literária à sua profissao de engenheiro mecatrônico. E-mail: [email protected]

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O Vale dos Sentimentos

Umoi Souza* - menção honrosa - categoria internacionalParede, Portugal

J anaína era nova, bela e sensível. Nascera numa família de pessoas nobres pela bondade dos seus corações. Morava num vale - uma vaidade da natu-reza que resolvera criar aquele local, longe de tudo o que pudesse ser feio

e desprezível, enchendo-o de uma beleza luxuriante com suas montanhas de um verde capaz de humilhar a mais bela das esmeraldas e de um sol sempre atento às necessidades da vegetação, igualmente, rica em alimentos para os moradores e pasto para o gado.

Janaína era feliz. Não conhecia o sentimento da tristeza ou do sofrimento, pois tudo o que a cercava fazia sentido, era belo e puro. Mesmo nos dias em que alguém seguia em viagem sem volta para o vale eterno.

Corria solta por esse pequeno paraíso e conhecia cada árvore, cada rocha e

cada nascente de águas claras e doces. Às vezes tinha a nítida impressão de que podia falar com as árvores, com os pássaros e com toda espécie de criatura viva ao seu redor, tamanha era sua cumplicidade natural com o que a cercava.

De vez em quando, atravessava todo o vale para ir à cabana do velho Man-du. Ele era como um avô, um professor de uma ciência simples chamada vida. Mas, acima de tudo, ele era seu amigo.

Junto a Mandu, passava horas ouvindo o velho sábio divagar sobre coisas de um mundo, tão distante quanto sua imaginação pudesse alcançar.

Mandu se divertia ao ver a expressão “cabulosa” , como ele chamava, es-tampada no rosto de Janaína, sempre que ele falava do mundo dos sonhos, o reino de Morfeu e os mundos além da nossa imaginação.

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Mandu falava a ela, com certa autoridade, que durante os sonhos, nossos

espíritos eram libertos da cela da realidade e viajavam livres como cavalos nas pradarias e velozes como a luz ou o pensamento para mundos desconhecidos e podiam brincar com outros espíritos em estrelas de outras dimensões, cortar os mares que cobriam a terra e vislumbrar toda a divindade existente em cada centímetro quadrado do imensurável universo. Mas, acima de tudo, podiam, na liberdade dos sonhos, enfrentar seus medos e seus temores, quer fossem de um remoto passado, do presente ou do inexorável futuro.

Certa vez Janaína perguntou a Mandu de onde vinha a chuva. Era frequente o vale ser lavado por uma chuva fina e, de vez em quando, salgada como água do mar.

Mandu olhou para os vivos olhos negros da pequena Janaína e, embora pudesse achar a pergunta ingênua, coçou a grisalha cabeça lhe perguntando sem rodeios:

- Quer mesmo saber a origem da chuva salgada, Janaína? A que ela, prontamente, respondeu que sim.

- Ouça com atenção. Disse Mandu, estranhamente sério. Do lado norte no nosso vale fica nossa maior montanha. Também cha-

mada de Guardiã. Por trás dela existe um mar tão bravio e selvagem em sua ondulação que nem mesmo as grandes criaturas marinhas se atrevem a explo-rar aquelas águas.

A chuva salgada que temos de vez em quando é o resultado da luta

entre o mar e nossa Guardiã. A constante tentativa do mar em atravessá-la faz com que o embate

entre suas rochas e as águas produza uma verdadeira explosão de água que é atirada tão alto que se torna capaz de ultrapassar os picos mais altos da nossa montanha protetora.

Mas o que poucos não sabem é que todo aquele que se banha nessa

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chuva experimenta o mesmo sentimento que no momento é trazido pela chu-va. Já vi grupos inteiros de pessoas começarem a chorar, inexplicavelmente, quando, juntos, resolveram se “lavar” nas águas da chuva. Não entenderam o porquê e apenas concordaram que todos sentiram exatamente a mesma coisa e resolveram não mais falar no assunto.

Outros já relataram que o banho da chuva os fez experimentar outros sentimentos: de alegria, tristeza, nostalgia entre outros.

Mas, não é sempre que a luta da Guardiã com o mar produz a chuva. É preciso que o mar liberte sua onda maior. Ela é gigante, desafiadora e esfome-ada. Sua fome é de sentimentos.

Ela se fortalece ao se alimentar dos sentimentos de quem é pego por ela. Ao se alimentar dos sentimentos de alguém a onda multiplica seu poder e isso faz com que ela use essa força adquirida para tentar ultrapassar a guardiã. Não conseguindo, explode e ultrapassa a muralha, caindo no vale em forma de chuva salgada. Os sentimentos experimentados por todos são o mesmo, rou-bado pela onda a alguém que partiu para a grande viagem em suas águas, dando, a onda, força e sentimento em mais um combate com a guardiã que, como uma mãe, tem nos protegido da fúria da grande onda. Apenas a chuva consegue, de vez em quando, passar e cair no vale.

- Mas porque as pessoas resolvem ir para perto desse mar tão bravio? Perguntou Janaína, num misto de curiosidade e certa ansiedade pela resposta.

- Janaína – continuou Mandu – mesmo o mais belo dos paraísos pode, em dado momento, representar uma prisão para quem tem o desejo de uma liberdade desconhecida. Pense comigo, pequena Janaína. O que é a liberdade? – é fazer o que se tem vontade. – Respondeu a menina.

- De certa forma sim – Atalhou Mandu. - E como uma pessoa sabe mesmo o que realmente deseja? Perguntou

Janaína.- Essa, minha cara, é a pergunta correta! Podemos perguntar a todo

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habitante do nosso vale o que é liberdade que teremos uma resposta diferente de cada um. Todavia, a essência do significado estará presente nas diferentes respostas.

Janaína coçou a cabeça fazendo uma careta que mostrava sua incapaci-dade em entender a filosofia de Mandú. Sabia que seu amigo estava filosofando e talvez, até, sabendo a verdade. E estava apenas provocando nela o despertar da mente para uma visão mais clara.

Pegando ingredientes para fazer pão, Mandu continuou, mas sorrindo ao sentir a euforia de Janaína ao vê-lo se preparar para fazer pão. Janaína adorava aqueles momentos de conversa com Mandu, que invariavelmente, terminavam em piquenique improvisado e comendo algum bolo, doce ou pão, feitos pelas mãos hábeis e dóceis de seu amigo.

Mas mesmo com os olhos brilhando pela promessa de pão, quis saber mais, ao mesmo tempo em que preparava lenha para o forno. Já sabia toda a “missa” do pão e já conhecia o seu “trabalho”. Não demorou muito para que toda a cabana fosse invadida pelo característico, quente e delicioso cheiro de pão no forno.

- Fala mais sobre a onda, Mandu – pediu Janaína, ao por, sobre a mesa,

manteiga, doce e leite, imaginando o sabor conhecido daquele pão. Mandu olhava com carinho a pequena Janaína. Comparava-a a uma peque-

na raposa órfã descobrindo, pela experiência, sua natureza experta.

- A onda, Janaína, nada mais é do que uma das formas de expressão do imenso mar. Seu poder destrutivo não é necessariamente a vontade do mar. Ela é apenas água em movimento com forças naturais que a impelem contra a rocha. A onda não quer vencer a rocha e a rocha não quer defender nada. Eles apenas existem e cumprem seu papel na ordem das coisas e “sabem” dessa for-ma porque “nasceram” onda e rocha. Exercem apenas seu direito a existência, atuando como deve ser.

- Mas se a montanha não existisse poderíamos ser mortos pela onda. Então ela nos guarda. E a onda faria uma coisa má ao inundar o vale. Disse

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Janaína, mexendo no fogo com um tição.

- Sim, você tem razão, mas não devemos nos esquecer de que o único desejo da onda é seguir seu caminho que tem, na guardiã, um obstáculo. Da mesma forma não é desejo da guardiã nos proteger de nada. Ela apenas vê na onda algo que a recorda da própria existência ao lhe trazer a consciência da sua força e majestade. Legitimam-se mutuamente pela própria natureza de existência. Para nós, que vivemos aqui, a montanha é um anjo protetor em constante sentinela. Uma atalaia que mira fundo o horizonte a espera que ela, a onda, volte em mais uma batalha.

Entre conversas sobre ondas, montanhas e mistérios, passaram o dia em mais um piquenique improvisado reforçando a amizade.

Longe do vale, bem longe dos olhos e da compreensão humana, um outro diálogo se realizava numa linguagem impossível à compreensão dos homens.

A onda falava com a montanha...

- Montanha, porque não me deixa passar? Tenho em minhas águas, sentimentos retirados de quem me alimentou e tenho que levá-los por esse caminho.

- Onda, minha amiga, se te deixo passar significa que não sou mais montanha, o vale não será mais vale e aquelas pequenas criaturas deixarão de me cultuar como protetora.

- Mas, ao não me deixar passar, montanha, meu destino de onda se

altera e volto a ser apenas água ordinária e sem poder. Aí tenho que voltar a me fortalecer através de outras criaturas humanas que sempre tenho que procurar, roubar-lhes os sentimentos, me tornar onda gigante e tentar, como sempre, seguir o caminho que me foi destinado e onde você se encontra, tam-bém cumprindo seu destino de montanha.

- Seu destino, onda, é passar e o meu é não permitir. Seja sensata e continue a tentar para continuar a existir, pois tentando, estarei também de-fendendo com minha existência e legitimando minha razão de ser montanha. Nossa luta, amiga, é o que nos fortalece e nos faz existir. Talvez estejamos, com

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essa conversa, descobrindo nossa verdadeira sina. A de se opor uma para a outra. Você não nasceu para atravessar o vale e eu não nasci para protegê-lo. Nós nascemos para nos complementar e garantir a existência pela perpétua batalha de luta que não pedimos para ter, mas que existe.

- Eu compreendo montanha. Volto agora para me fortalecer. Viajarei por continentes, ceifarei vidas e me alimentarei dos seus sentimentos. Tornar--me-ei onda gigante mais uma vez e meu poder será tão grande que até em sonhos alguém há de me temer. Continue aí montanha, mas saiba que voltarei.

- Vá, em paz, onda. Atravesse os continentes e se alimente de outras vidas. Ficarei de prontidão à espera da sua volta, pois assim o destino me confiou o poder de ser montanha.

Totalmente alheios a esse diálogo, Mandu e Janaína comiam pão fresco, filosofavam sobre chuvas salgadas e sentimentos.

A eufórica Janaína, debruçada na janela, olhava para a imponente monta-

nha e imaginava-se escalando-a, de mãos nuas, chegando até o seu topo, mirando o mar e gritando:

- Venha onda! Estou aqui e não temo você. Sou Janaína.

Ela veria a onda se aproximar e antes que essa batesse na montanha, Ja-naina, sorrindo, saltaria em suas águas revoltas, se fundindo à existência das águas revoltas e a conduzindo para longe dali, na tentativa de uma salvação permanente para o vale e, principalmente, para seu amigo Mandú.

Com seu poder, Janaína se tornaria a própria onda, mas não amedrontaria ninguém. Nem mesmo em sonho. Não mais ceifaria vidas e daria nova realidade à sua existência.

A montanha choraria. Não pela perda de Janaína, mas pelo fim do combate eterno.

Diminuiria e se nivelaria ao solo fértil do vale, se tornando, também, solo fér-til e abrindo uma janela por onde se poderia vislumbrar o mais azul e belo dos ma-

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res e sem ondas ameaçadoras. Apenas dando a todos os moradores o espetáculo diário do mais belo e sereno pôr do sol... A chuva salgada não voltaria a cair, jamais.

*Umoi Melo de Souza, 48 anos, brasileiro naturalizado português.Nasceu em Goiânia e se criou em Brasília. Hoje com dupla nacionalidade: brasileira e por-tuguesa. É licenciado em Animação Sociocultural pela Escola Superior de Educação Jean Piaget - Almada - Portugal e tem verdadeira paixão pela escrita de contos.E-mail: [email protected]

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Uma dependênciainvulgar

Antônio Carloto* - menção honrosa – categoria internacional Lousã, Portugal

-D iga-me lá então doutor, qual é o diagnóstico? O médico coçou a têmpora, ajustou os óculos de armação metálica, fo-lheou as análises e fixou os seus olhos cinzentos no paciente sentado

à sua frente.- Sr. Joel, seja sincero, quando me disse que gostava de beber o seu copito

de Vinho do Porto, estava a falar de que quantidades?Joel assumiu uma posição mais ereta na cadeira e entrelaçou as mãos no

colo para disfarçar as arreliadoras tremuras que o começavam a afligir logo pela manhã.

- Bem, como sabe doutor, o Vinho do Porto tem propriedades tônicas e nutritivas que combatem as astenias e as depressões e como me tenho sentido em baixo, pela manhã...

- Pela manhã...- Tomo dois ou três cálices.- Normais?- Hã...duplos.O médico coçou a testa.- E depois?- Ao almoço, claro está, como aperitivo, vai outro, bem fresquinho. Note que

durante a refeição acompanho com água, não gosto de outros vinhos e muito me-nos de cerveja. Tomo é depois um Branco seco com a sobremesa e se a conversa está boa mais um ou outro Tawny como digestivo. E ao jantar...

- Já percebi, Sr. Joel, e já agora, ao lanche, com um queijinho picante...- Nem sempre doutor, nem sempre...- Sr. Joel, os seus sintomas de desnutrição, dores abdominais, anemia,

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tremura nas mãos - Joel apertou mais firmemente as mãos entrelaçadas - são reforçados pelas análises: o senhor está com uma hepatite alcoólica com sérios riscos de descambar para uma cirrose. Vou-lhe receitar uns medicamentos mas o principal é o Senhor...

- Moderar o consumo? - alvitrou, esperançoso, Joel.- Não, cortar completamente. Para si, Sr. Joel Alfaiate, acabou-se o Vinho

do Porto. Para sempre. Quando voltou ao escritório, depois da consulta, vinha ainda abalado pela

sentença. Sentou-se à secretária ainda em transe – “Meu Deus, meu Deus, não vou conseguir, estou perdido!” Foi com grande esforço que abriu a pasta do relatório de contas em que estava a trabalhar. Dentro, alguém tinha colocado um cartão, desses oferecidos pelas beatas. De um lado estava a figura de São Onofre, padroeiro dos alcoólicos, com o corpo esquelético de eremita vestido apenas com os seus longos cabelos e barbas e uma tanga de ervas entrançadas. Do outro lado, uma oração:

Ó Santo Onofre, que pela fé, penitência e força de vontadevencestes o vício do álcool, concedei-me a força e a graçade resistir à tentação da bebida do Vinho do Porto.Livrai do vício, que é uma verdadeira doença, tambémos meus familiares e os meus amigos.Virgem Maria, mãe compassiva dos pecadores, socorrei-nos!Santo Onofre, rogai por nós!

Joel olhou desconfiado para os colegas nas secretárias vizinhas, tentando identificar o engraçadinho ou engraçadinhos. Pareciam, sem exceção, dedicar-se ao trabalho com mais concentração e zelo do que o habitual, prova segura de que estavam todos envolvidos. Ostensivamente, rasgou a oração para o balde do lixo mas não pôde impedir-se de a recitar mentalmente enquanto o fazia.

Quando chegou à hora do almoço avisou os colegas de que não se jun-taria a eles como habitualmente, pois tinha de ir tratar uns assuntos ao banco. Precisava de estar só para pensar como ia abdicar do Vinho do Porto, seu fiel companheiro desde os quinze anos e, por ironia, o seu ganha-pão, visto que traba-lhava numa empresa de exportação do Divino Néctar, sediada perto das suas caves

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de armazenamento e por essa via no local com maior concentração de álcool por metro quadrado do Mundo: Vila Nova de Gaia.

Escolheu para almoçar uma casa de petiscos na Baixa de Gaia que sa-bia não ser frequentada por ninguém conhecido. Sentou-se ao balcão e logo ao consultar a ementa veio-lhe a necessidade do aperitivo. Não resistiu - "É para a despedida", racionalizou - e pediu um Ruby fresquinho.

- O cavalheiro emprestar seu vinho para eu provar?O autor deste pedido descabido estava sentado à esquerda de Joel. Era

corpulento, trajava um fato completo algo fora de moda. mas o que o destacava, para além do sotaque britânico, era o seu penteado: um risco de lado a partir do qual se lançavam em sentido contrário dois volumosos cachos de cabelo negro encrespado.

- Era o que faltava! Peça um para si!Parecendo não ter ouvido a negativa de Joel, o "bife" deitou a manápula ao

cálice e bebeu-o de um trago. Não gostou pois cuspiu-o de imediato, bradando:- Mas este vinho ser fortificado! Toda minha vida lutar contra Vinho do Douro

fortificado. Que porcaria!Privado da sua dose, transido de cólera, Joel cometeu o erro de insultá-lo:- Que a filoxera e o oídio te consumam até à raiz, meu animal! Levou de imediato uma chapada monumental que o projetou do banco até

uma mesa onde duas empregadas da retrosaria da esquina tomavam tranquila-mente a sua bica. A confusão que se seguiu foi grande. Alguns clientes e empre-gados tentaram imobilizar o agressor mas este, ao mesmo tempo que batia em retirada, sacou do seu cinto e fê-lo voltear por cima da cabeça. O cinto parecia invulgarmente pesado e abriu-se imediatamente uma clareira. Escapou sem deixar rasto.

Quando voltou ao escritório, Joel vinha ainda mais alterado do que de manhã, depois da consulta: tinha o estômago vazio, pois como era natural, tinha perdido todo o apetite depois da agressão; a cabeça ainda lhe retinia com o estalo que tinha levado; mas sobretudo, todo o surrealismo da cena o atormentava. No entanto, o indivíduo era-lhe vagamente familiar...A figura, o sotaque britânico, o rejeitar a adição de aguardente vínica durante o processo de fermentação do Vinho do Porto, ou seja, a sua fortificação...

- O BARÃO DE FORRESTER! ERA O BARÃO DE FORRESTER! TENHO A CER-

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TEZA! SÓ PODIA SER ELE!E largou um violento murro no tampo da secretária.Os colegas tentaram acalmá-lo:- Epá, põe-te manso, olha o Borges!Mas tarde demais. O Patrão Borges emergiu do seu cubículo e, numa voz

autoritária, chamou-o:- Sr. Joel Alfaiate, chegue-se imediatamente ao meu gabinete que eu pre-

ciso de falar consigo!O Patrão Borges era um indivíduo com toda uma vida dedicada ao comércio

do Vinho do Porto. Com muitos poucos estudos, tinha começado por baixo, na estiva das pipas. À custa duma vontade férrea e de muita esperteza tinha subido até ao cargo de dirigente intermédio. Bem nutrido, de aspecto e feitio bonacheirão, sabia, no entanto, quando "pôr os pontos nos Is":

- Sr. Joel Alfaiate, não gosto de me meter na vida particular dos meus fun-cionários. Como sabe, eu também não sou nenhum "bebe água" mas tudo tem os seus limites. Não posso admitir que Vossa Excelência se encharque ao ponto de se meter à pancada na hora do almoço - não me contradiga porque ainda tem as marcas na cara - e de desatar aos berros e aos murros à secretária durante as horas de expediente. Mas ainda pior, é que tenha começado a ter alucinações e a imaginar encontros com senhores falecidos em meados do século XIX! O senhor é um contabilista, carago! Por definição deveria ser um ser desprovido de qualquer imaginação, quanto mais deste tipo! Ou se organiza ou vou ter de tomar medidas radicais. Como sabe, a legislação laboral tem vindo a flexibilizar-se...Estamos en-tendidos?

- Perfeitamente, pa… Sr. Borges.- Então vá para casa descansar, siga os conselhos do seu médico e amanhã

quero vê-lo em forma para trabalhar, fresco como uma alface.- Cá estarei, Sr. Borges.

Enquanto caminhava até ao seu modesto apartamento - tinha decidido prescindir do autocarro e ir a pé para desanuviar a cabeça - Joel começou a pôr em causa a sua sanidade mental. Não se sentia louco, mas só podia estar. Era a única explicação. De resto, os loucos não se tomam como loucos, funcionam com a sua própria lógica interna, distinta das outras pessoas. Por outro lado, ao admitir a hipótese de loucura, demonstrava a sua racionalidade…Arre!

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Ao passar pelo Café Vesúvio sentiu fome. Entrou e pediu uma tosta mista. Conhecedor dos seus hábitos, o empregado trouxe-lhe imediatamente um cálice duplo. Ainda teve um assomo de recusa, mas logo mudou de ideias - "Que se dane! Se calhar o meu problema é que ainda hoje não tomei uma única gota!" - De fato, por causa da consulta médica, tinha até prescindido da sua dose matinal. Antes de levar o copo à boca lançou um olhar receoso às mesas vizinhas. O Barão de Forrester não se encontrava à vista, mas na mesa ao lado, uma senhora de ar austero encarava-o fixamente. Estava trajada como uma professora reformada, tinha o cabelo apanhado num carrapito e aparentava uns 60 anos. Era miudinha de corpo, toda pele e osso, mas o olhar profundo, acentuado por umas olheiras bem marcadas emanava força e poder. Desta vez, Joel não foi apanhado de surpresa - o "incidente Forrester" tinha-o preparado. Compreendeu que agora tinha pela frente outra figura lendária da história do Vinho do Porto: nada mais, nada menos, que D. Antônia Adelaide Ferreira, a mítica "Ferreirinha". Foi ela que iniciou as hostilidades:

- Jovem, o seu rosto é-me familiar e isso desagrada-me. Faz-me lembrar o valdevinos do meu filho Antônio Bernardo. Foram as más companhias, mas so-bretudo o vinho que o perderam. Por favor não beba esse copo.

- Minha senhora, lamento desapontá-la mas isso é problema seu.E ia beber de qualquer maneira, não tivesse a Ferreirinha começado a cho-

rar. Chorava em silêncio, sem soluçar. Corriam grossas lágrimas pela sua face arre-panhada numa máscara de profunda dor. Isso era mais do que Joel podia suportar. Ele venerava a Senhora. Na parede da cabeceira da sua cama, onde outras pessoas tinham a imagem de Cristo, tinha ele o retrato de D. Antônia. Bateu em retirada desabrido, sem esperar pela tosta mista e sem pagar a conta. "Estou a ser perse-guido, estou a ser perseguido" - o seu coração bombava como se tivesse subido ao cimo da Torre dos Clérigos a correr - "mas não me vão vencer, não vão não!" E dirigiu-se à tasca mesmo por detrás do seu prédio. Antes de transpor as portas batentes do estabelecimento, controlou a clientela. Parecia seguro. Nada de figuras históricas do Douro, só três velhotes a jogarem ao dominó numa mesa de canto, partilhando uma garrafa. Foi ao balcão e pediu um Porto - desta vez é que ia ser.

- Lamento, amigo. A garrafa que tinha foi comprada por aqueles senhores.Joel virou-se e os três velhotes - só então reparou nas suas farfalhudas

suíças – voltaram-se para ele com um sorriso malandro e fizeram-lhe um brinde. Ser perseguido por gente já falecida era terrível, mas o assédio de figu-

ras publicitárias que nunca tinham tido existência corpórea era ainda pior. Só lhe

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restava uma hipótese, um último refúgio: a sua casa, o seu castelo. Para não ter de esperar pelo elevador, subiu pelas escadas até ao quarto andar, galgando os degraus dois a dois. Abriu a porta do apartamento e aguardou na soleira, arfando e apurando o ouvido. Parecia que finalmente estava em segurança e que ia poder descansar.

Só quando se aproximou da cozinha é que percebeu que estava engana-do. Dzinn, Dzinn! - era o ruído que de lá vinha. Nesta fase, Joel já estava por tudo e, aceitando o seu destino, foi ao encontro desta última assombração. Tendo o seu sentido da realidade muito anestesiado, quase não se surpreendeu com aquilo que viu: uma figura embuçada, vestida com uma capa de estudante português e um sombrero espanhol, dedicava-se a estilhaçar a coleção de Vintages de Joel. Metodicamente, pegava nas garrafas pelo gargalo e partia-as numa esquina do lavatório. Dava dó ver todo aquele precioso néctar, aquela mistura fina de verme-lhos granada e âmbar, escoar-se inexoravelmente por entre os cacos de vidro, em direção ao ralo. O sacrílego rapidamente acabou com a última garrafa.

- D. Sandeman...Por quê? A voz de Joel era um murmúrio queixoso.A figura voltou-se, ocultando o rosto com a capa, e justificou-se: - Durante muitos anos hesitei entre o Porto e o Xerez e, bueno, ganhou o

Xerez. Adios!E num ápice passou por Joel e desapareceu. Joel rendeu-se: de joelhos,

alçando os braços e o rosto para cima, exclamou desesperado: - São Onofre, maldito, ganhaste! Podes crer que nunca mais provarei uma

gota que seja de Vinho do Porto! Um pouco depois, num bar do outro lado da cidade, numa mesa larga,

juntavam-se personagens já nossos conhecidos. A presidir encontrava-se o Patrão Borges e à sua volta dispunham-se "Forrester", trajando agora umas calças de couro pretas e uma t-shirt dos Moonspell; "A Ferreirinha", de calças de ganga, camisa amarela, lenço garrido ao pescoço e cabelos soltos; os "Três Velhotes", já sem as suíças; e um último personagem, alto e esgalgado, que não poderia ser outro senão "Sandman" livrado da capa e do sombrero. O Patrão Borges distribuía maços de notas:

- Ora meus amigos, tal como combinado, meia "milena" para cada um. Sem dúvida que o mereceram a avaliar pelo que vi através das câmaras ocultas. O que eu me ri! Qual grupo de teatro amador, qual carapuça! São verdadeiros profis-sionais! Isto vendido à televisão seria sucesso garantido.

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- Pois, mas não vai mostrar as imagens a ninguém, pois não? É que dar uma chapada a alguém não é propriamente legal - perguntou "Forrester", algo assustado.

- Já para não falar da violação de domicílio - acrescentou "Sandman". - Meus amigos, não temam, dou-vos a minha palavra de honra que isto

não sai daqui. Eu próprio não tenho interesse em que se saiba - o Joel não me perdoaria e além do mais gosto muito do meu emprego. Só corri este risco para salvar o pobre rapaz. Quando há dias, o médico da empresa, que é meu amigo, me telefonou a dar conta do estado do Joel, percebi que os tratamentos comuns não iam resultar. Com aquele maluco do meu filho, só um tratamento de choque personalizado. Foi então que me lembrei de vocês...

- Mesmo assim - interveio "A Ferreirinha" - estou um bocado preocupada com o Joel, pareceu-me muito perturbado, não tem receio que ele cometa uma loucura?

- Está tudo controlado. Tenho homens no andar ao lado a vigiá-lo em permanência através das câmaras. Têm ordem para, durante duas semanas, o seguirem para todo o lado, mas, neste momento, posso garantir-vos que dorme que nem um anjo. E já agora, carago, o que é que os meus amigos bebem?

- Um Porto, claro! - foi a resposta em uníssimo.

Quando na manhã seguinte, Joel Alfaiate Borges saiu de casa e entrou no Café Vesúvio, não reparou no homem que o seguia discretamente e que entrou logo a seguir a ele. Sentou-se numa mesa distante e viu Joel recusar firmemente o Porto que o empregado, solícito, já lhe vinha trazendo.

- Chegue-me para lá esse veneno e traga-me antes um Madeira, mas do bom!

*Antônio Manuel Gouveia Carloto, 45 anos, moçambicano, mas vive em Portugal desde os 7 anos. Licenciado em Bioquímica. Escreve desde pequeno, mas para tal precisa normal-mente do estímulo de um concurso. E-mail: [email protected]

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Categoria

nacional

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A sesta

Suzana Maggioni Bertuol* - 1.º lugar – categoria nacionalFarroupilha-RS

S entada no degrau da escada de pedra, divertia-me a escutar, parecia uma serra motorizada cortando lenha. Os músculos da barriga subiam e des-ciam. A chaleira de ferro repousava ao lado da cuia. Se uma mosca parava

em seu rosto, o velho – como gostava de ser chamado – espantava-a, com um gesto bruto. Os pés cruzados davam acabamento às pernas finas. Finas, mas for-tes. Era ligeiro e hábil como poucos. A terra estendia-se para dentro das unhas quase nunca cortadas. Quebradas e sujas, confundiam-se com os calcanhares endurecidos. Os pés sacudiram-se, de novo, para espantar as moscas.

Era bom o verão, o calor alegrava o dia, mas trazia consigo aquelas no-jentas. De onde vinham? Voavam em torno do rosto, se descuidasse, no embalo da sesta, entrariam em sua boca. Um vento fresco sacudiu os galhos do grande cinamomo que sombreava a casa.

Virou para o lado o corpo deitado sobre as tábuas grossas do assoalho e, por alguns instantes, a serra cessou. Ajeitei-me de encontro às pedras da escada para diminuir a dor. Ainda repercutia o pesadelo, quantas vezes já tivera aquele sonho, sempre o mesmo. Homens furiosos e armados que o perseguiam - por que precisava matá-lo todas as noites? Acordei gritando, no momento em que suspen-deriam seu corpo no mesmo galho do cinamomo onde ele pendurava os bois nas carneadas.

Antes de deitar, rezava para não sonhar e de nada adiantava, anjos e santos dormiam também num céu distante e inalcançável.

Eram duras suas mãos, sentia o peso em cada palmada. Que tormento! Cansado do trabalho incessante do dia, não possuía, pelo menos, o direito de des-cansar?

- Chega de tanto grito, Verônica! Basta, é! – berrava, enquanto batia. - Dos sonhos, a culpa era deles! – se conseguisse falar, explicaria, mas a

voz trancava na garganta.

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Ele não sabia do sonho, nem tinha tempo para escutar, e em mim, as pa-lavras morriam antes de serem ditas. Vivíamos num mundo surdo de sentimentos, com muita coisa a fazer. Precisavam pagar a dívida, levantar cedo e trabalhar, a mãe voltava às onze e meia. Cuidando dos irmãos menores, ficava eu na casa, mantinha o fogo aceso para que a água estivesse fervendo quando chegasse e as camas arrumadas. Às vezes, colhia uma margarida branca e colocava numa garra-fa de vidro só para ela que, cansada, ao voltar, espalhava ordens e cheiros, e nada via. Então, no dia seguinte, desdobrava-me em lustrar o assoalho de madeira e estendia os lençóis bem esticados por sobre os colchões de palha cuidadosamente remexidos. Houve uma vez em que roubei uma rosa vermelha do jardim da Eulália. - Não era bonito fazer aquilo! - ela disse. Como podia saber de tudo, e, ao mesmo tempo, nada entender do que me era mais importante? Depois, chegava o velho. Jogava botas, gritos e gargalhadas no pátio - trabalharia até os quarenta e cinco no máximo, gostava de repetir. Por que o perseguiam tanto?

Aproximei-me devagar e olhei seu rosto duro, o bigode escuro e a barba por fazer, as sobrancelhas espessas e negras como as noites e os pesadelos. A pele morena começava a vincar pelas agruras do sol de todo dia. Uma mão cruzada por debaixo da cabeça apoiada na soleira da porta aberta, a outra mão liberta para espantar as moscas, um sorriso desenhado no rosto.

Deitei-me ao seu lado. Mais do que um homem a sestear, verdadeiromi-notauro - monstro forte e inatingível. Nos meus sonhos, indefeso contra os homens que o perseguiam.

Se estivesse acordado, não tomaria coragem, mas dormia um sono larga-do. Pensei que soubesse e por isso deitava-se ali, à espera, e então passei meus dedos entre os seus cabelos negros e lisos, penteados para trás. Ele sorriu mais. Da cozinha, vinham os resmungos da mãe passando roupa, murmurava baixinho. Um dia, largaria tudo, que a esperassem, faria bem feito, também ninguém ajudava em nada. E o pai roncava alto. Aproveitei... Beijei suas costas e depois seu rosto. Primeiro, beijos ligeiros e amedrontados. Como ele não se virou, nem me espantou com a mão livre, deixei meus lábios abandonados sobre sua pele queimada do sol, o cheiro de suor preso em minhas narinas.

As palmadas ensinaram-me a segurar só para mim o choro. E sonhei mui-tas outras noites. Às vezes, um touro enraivecido e bufante me perseguia. Noutras, caía num buraco infinito, caía e caía, sem nunca atingir o chão. A carroça descar-rilava e não adiantava gritar para os bois que a ninguém obedeciam. Rodopiavam

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rodas e seres para cair todos no precipício desgrenhado. Tentava eu segurar para que a carroça não descarrilasse. Entretanto, sendo apenas uma menina, meus braços não eram tão fortes e minhas mãos pequenas conseguiam apenas juntar-se para suplicar o carinho daqueles outros braços mais seguros e musculosos. Deixei--me ficar.

Numa estranha prece, supliquei que não me batesse mais.- Te amo, pai, te amo! – sussurrei baixinho, com medo que acordasse de

novo. Diante da noite escura, queria era falar do medo e da solidão, mas aprendi.

Antes que, adormecida, fosse tarde demais, colocava entre os dentes a borda do travesseiro e apertava-a.

Pressionei ainda com mais força os lábios e, pela última vez, passei a mão em seus cabelos.

Quando me afastei, pude ver o sorriso de paz, eternamente preso, em seu rosto enrugado pela lida, e percebi. Não eram moscas ao seu redor, e sim, borbo-letas.

A mais pequena e colorida pousava em seus cabelos brancos e preparava--se para alçar seu grande voo ao sabor do vento. Liberta do casulo, escrevia pelo ar seu destino.

* Suzana Maggioni Bertuol, nasceu em l970, em Caravaggieto, interior de Farroupilha,RS, onde vive até hoje. É agricultora, licenciada em História pela Universidade de Caxias do Sul e já conquistou vários prêmios literários locais e regionais.E-mail: [email protected]

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O amor no tempoda solidão

Cláudia Albers Avóglio* - 2.º lugar – categoria nacionalPirassununga-SP

Minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempes-tivas nem de grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite – Clarice Lispector

H erdei de meus pais as terras de Santa Clara. Os primeiros anos foram de arrebatamento e fartura. Calçava minhas botas, tomava meu chapéu de aba larga, montava o Negro e saía pela propriedade conferindo bois e rios,

cercanias e operários. Voltava afogueada para a casa grande e sentava na varanda com o olhar ao longe pensando no sacrifício dos velhos e na responsabilidade de manter o quinhão que me pertencia. Na juventude, não me faltaram pretendentes, uma vez que o dote era convidativo, mas, por um motivo ou outro, os casamentos foram sempre adiados e eu me tornei a senhora de Santa Clara, com rugas na face, cabelos grisalhos, andar cansado e olhar sempre, sempre, ao longe. Acompanha-va-me a solidão. Não a solidão da falta de gente ao meu lado, nem da saudade de meus pais, nem tampouco do isolamento que me impusera, mas, vivia comi-go aquela solidão de ter-me perdido de mim e em vão buscar pela minha alma. Esforçava-me sem euforia para preparar natais e aniversários e convidava primos distantes para encher de barulho os vazios daquela casa incrustada na serra.

Num desses natais, o primo Pedro deu-me de presente um computador portátil e passou horas ensinando seu funcionamento. Interessei-me pelo novo brinquedo e nos dias que se seguiram deixei botas, chapéus e rebenques de lado para descobrir-lhe os segredos. Por uma dessas artimanhas do destino, encontrei em Portugal um ramo de nossa família e depois de buscas soube que morava entre eles, meu primo Antônio. Consegui seu endereço e passamos a nos comunicar.

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Nossas conversas eletrônicas encapelavam as recordações dos dias da infância quando nadávamos nos rios e andávamos a cavalo. Sentia-me feliz com esse novo contato e com o sentimento virtual que começava a tomar conta da vacuidade dos meus dias. Povoei a carência que sentia do “faz-de-conta” e do “era uma vez” da juventude, e aquela fantasia do amor ainda possível alimentou minha alma sedenta.

No inverno de 2002, quando a geada pintava de branco os campos de Santa Clara, os bois mugiam soltos dos mourões e cercas, Antônio comunicou que me visitaria na primavera. Os dias seguintes foram de brilho na prataria e embele-zamento de Santa Clara. Mandei podar gramas, enfeitei os jardins, lavei o vestido vermelho e dei lustro nas gáspeas do par de sapatos de bico fino.

Quando as últimas flores do ipê caíram e o gramado da frente da casa ficou atapetado de amarelo, um táxi deixou Antônio no portão. Os primeiros momentos foram de embaraço, suores, mãos frias e corações palpitando. Eu velara na cozinha preparando o jantar, as velas, o vinho e a toalha branca para essa tão esperada intimidade. As palavras eram poucas. Depois do jantar, sentamo-nos na varanda. Ainda havia no ar um fio de inverno e as samambaias exalavam o aroma fresco dos rebentos. Foi Antônio quem quebrou o impasse:

— Que costuma fazer aqui em noites destas? Suspirei. O primo perceberia meu peito que subia no corpete do vestido e

nos meus olhos que brilhavam à luz do candeeiro próximo? Senti o corpo distender--se num desprendimento, um desejo mal escondido que me subia pelas pernas, pela barriga, pelo peito e brilhava no olhar.

A voz soou rouca, vinda de longe, de noites e noites como esta, na varanda. Então respondi: — Penso na vida. No que foi e no que podia ter sido e no que há de ser ainda. Eu vivo aqui para sempre e você, brevemente, volta para Portugal. Não escolhi nada e nem estou em situação de escolher. Agarro o que passa e quando consigo, são as coisas que vêm ter comigo e não eu que vou ter com elas. Percebe o que digo?

Antônio olhou-me na penumbra e senti que tinha pena. Sabia que o destino abandonara-me ali, embora fosse claro que eu merecia e aspirava a mais do que

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esse desterro. Vi que se comovia comigo. Em nossas conversas pelo computador eu lhe contara a história da vida e agora ele estava ali. Então, no silêncio que se se-guiu, pensei comigo: “Quantas vezes eu vestiria aquele vestido vermelho e aquele corpete que me segurava o peito pronto para saltar de alegria? Quantas vezes eu acenderia os castiçais das velas, quantas vezes mandaria as criadas se enfardarem de goma? Quantas vezes mais, eu iria buscar a garrafa de Porto ao armário da copa? Quantas vezes teria um homem civilizado com quem conversar numa noite plácida de estrelas na varanda da casa que herdara, como se herda uma prisão”?

Levantei-me e em pé, diante de Antonio, disse:

— Agarro o que passa e quando consigo. Nem imagina como estou feliz por estar aqui na Santa Clara, tão tarde, no outono de nossas vidas. Espero que fique pelo tempo que desejar. Boa noite!

Morcegos atravessavam a varanda em voos silenciosos atraídos pela luz do candeeiro. Os grilos gemiam no jardim e os gritos dos pássaros noturnos ecoavam na escuridão da mata. Entrei na casa e Antônio continuou sentado no cadeirão de junco, as pernas estendidas sobre a balaustrada da varanda, um cigarro aceso na escuridão da noite.

Quando saí do banheiro, vi que a luz do candeeiro da varanda enfraquecera. Entrei no meu quarto e fechei a porta suavemente. Procurei no ar indício, ainda que distante, do capim cortado. Não havia apelos do mato, nem da minha solidão. Só sinais de uma noite que se apagava, com cheiro intenso das vacas no cio, de suores em repouso, de um desejo de mulher. Ouvi passos caminhando no soalho e parando por um breve instante à porta do quarto do fundo. Pela luz do abajur vi a maçaneta girar sob o movimento de mão resoluta. Antônio respirou fundo e entrou de mansinho, como se fosse um ladrão.

*Claudia Albers Avóglio, membro efetivo e perpétuo da Academia Pirassununguense de Letras, Artes, Ciências e Educação – Cadeira 30. Formada em Letras, possui livros publicados e é detentora de vários prêmios literários, inclusive internacionais. E-mail: [email protected]

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O ovo

Sara Meynard* – 3.º lugar – categoria nacionalMariana-MG

E u estava lá, sentada na sala, no sofá vermelho. O sol nascia, e pequenos raios entravam pelo feixe da cortina. Eles exibiam a poeira do ar de cidade grande. As pessoas começavam a acordar e fazer seus barulhos. Escutava o

vizinho de cima andando, dando seus primeiros passos. Eu estava bem abaixo de sua cama, e logo ali havia seu banheiro, em cima de minha copa. Como quase toda pessoa de hoje, tinha seus hábitos. Levantava-se da cama, tossia uma ou duas vezes, bem alto. Dava passos pesados, até o banheiro, onde tomaria sua ducha e se aprontaria para o trabalho.

Eu fiquei pensando onde será que estavam os meus hábitos. Porque eu não os tinha. Porque eu simplesmente não poderia me levantar e ir trabalhar, em uma rotina confortável. Qual era minha dificuldade de adaptação? Minha dificuldade estava bem ali, no cômodo no fim do corredor. Havia uma mesa de madeira barata. E sobre a mesa, uma velha máquina de escrever, que me aguardava há semanas.

Acendi meu cigarro, enquanto ouvia a ducha do banheiro de cima ser liga-da. Há quanto tempo eu não tomava um banho? Não sabia. Não sabia nem que dia era, nem que horas eram, nem quanto eu dormia, ou qual foi a ultima vez que eu comera. Há muito tempo não sabia das minhas mais fúteis informações rotineiras.

Talvez tudo que fizesse fosse mesmo sentar no sofá vermelho e fumar cigar-ros, esperando ânimo para me sentar em frente à máquina, escrever duas páginas, rasgá-las e ir ver algum filme tolo na TV. Rotina? Não. O que eu tinha era punição.

Escrever é uma graça. Mas é quase um castigo. Escritores sofrem, e muito. Sofrem por perceberem demais, pensarem demais, e ainda serem judiados pelas palavras. Quando pior, são agraciados. Mas nada disso importava agora.

Foi quando parei de pensar nisso tudo, peguei nos meus pulsos finos, e me vendo frágil e cansada, decidi que deveria comer.

Apaguei o cigarro, e logo constatei que deveria comprar mais. Mais tarde talvez fosse à venda da esquina. Ou talvez pegasse o bonde para dar uma volta no

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centro, caminhar um pouco. Estão vendo? Perco o fio das coisas. Eu vivo através do pensamento.

Onde estávamos? Sim, fui até a cozinha. Nada de interessante, nada pa-recia apetitoso. Vi uma barata entrando no armário. Não me importei. Abri a porta da geladeira: precisava de algo forte, que me passasse uma força para viver. Foi quando avistei o ovo.

Sim. O ovo. O começo da vida, o embrião, o nascimento, a força. Era tudo. Era claro, vivo e forte. Oval, redondo, completo. Cheio. Mas o que eu faria? Que-braria o ovo e o comeria? Não seria cruel demais acabar com uma vida que está apensa começando? Que pelo menos se respeite o começo.

Foi quando percebi que falava completas bobagens. A vida já abandonara há muito aquele ovo, e ninguém mais se importaria. Ele ali, abandonado no apar-tamento. Com certeza estava completamente livre de culpa. Outros já fizeram o serviço por mim. A gora só faltava eu me aproveitar disso. E fingir que era uma inocente faminta e devoradora de assassinatos alheios.

Bom, decidida, peguei o ovo. O analisei, em toda sua forma. Perfeição. Suas curvas eram proporcionais, harmônicas, e a casca irritantemente livre de defeitos. Especialmente branca. Fechei a geladeira lentamente, e coloquei o ovo sobre a pia.

Sentei-me na cadeira e acendi meu último cigarro. Dali, via claramente o ovo. Ele olhava pra mim, desafiador. Era mais que eu. Era natureza perfeita. Era morto e parecia ingênuo.

No começo de tudo, as coisas parecem mesmo assim, ingênuas. Mas não devemos esquecer que é uma formação, um estágio de uma transformação maior. Nem sempre tão ingênua.

Não duvidava, portanto, da bondade do ovo, mas da sua veracidade. Mas de qualquer forma, estava com fome e iria devorá-lo. Justa causa.

Levantei-me, passos fortes - o vizinho de baixo me ouviria? Não importa, não saberia descrever meu próximo passo. De inconstante eu era imprevisível- e assim, com toda minha liberdade inconstante, adquiri novas forças e me senti no-vamente bem. Toquei no ovo, e delicadamente, deitei-o. Queria que pensasse que tivesse medo dele. Não queria dar medo; eu iria assustá-lo de uma só vez:

Abri a gaveta lentamente, aquela primeira gaveta. De lá puxei uma colher, em toda sua imperfeição de objeto e criação humana. E como imperfeição humana eu quebraria o ovo. Em um susto.

Em um golpe forte, bati com a colher no ovo. Senti toda sua inerência de co-

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meço. Toda sua incalculável reminiscência, que o atormentava. Suas inquietudes. Foi então que a casca se rompeu.

Mas eu não tinha coragem para prosseguir. Estava espantada com tudo que descobrira do ovo após feri-lo. Era difícil para mim. Era violar o trabalho árduo da natureza.

E não sabendo o que sairia dali, quebrei o ovo, e sua gema pulou, envolvida em sua clara, no chão. A casca ali na minha mão. Inútil. A gema, ainda forte, ainda extremamente ligada à clara, em uma relação que parecia inseparável. Em toda a inquestionável beleza do ovo, eu me calei. Seu nascimento na verdade acontecera ali. Antes fora proibido, mas eu o libertei usando meios estranhos a mim. Eu pro-vara a ele que posso rompê-lo. E fizera com que ele conhecesse o chão gélido da liberdade. Agora, eu tinha medo dele. Temia o ovo. Temia sua liberdade. Temia-me. Porque minha coragem me transbordava. O que seria do meu ovo interno agora?

* Sara Meynard Begname, 17 anos, morou, cresceu e conheceu as bibliotecas em Mariana,MG. Quando criança, tinha por mania escrever frases que não preenchiam as linhas, que deixavam no fim da folha um espaço que atraía o olhar: arquitetura do vazio. Depois da poesia, a prosa também ganhou forma. Atualmente, conclui o ensino médio e continua com a literatura. E-mail: [email protected]

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A árvore

Rafael Cal* – menção honrosa – categoria nacionalCachambi-RJ

M etáforas elaboradas não explicam sentimentos complexos, pensava. Era quente. O dia estava claro e o sol rebatia nos carros parados na rua, entrando pela janela entreaberta, causando um leve desconforto nos

olhos. Era novidade. Quente, claro, sol e desconforto sucediam a queda. Antes, ainda que fosse quente e claro, havia uma sombra delicada e o sol que rebatia nos carros na rua era barrado, entrando pela janela um balançar cadenciado.

Havia, em frente à janela, uma árvore. Com o tempo aprendera que era um flamboyant. Não que isso interessasse. Era uma árvore, isso bastava. Se era um ipê ou uma macieira era irrelevante. Sempre fora sua árvore.

Sempre esteve ali, oferecendo sombra como em um poema escrito sobre infância e nostalgia. Não que gostasse de sentar aos pés da árvore, recostar em seu tronco e receber a brisa suave no rosto, olhando pro céu entre a copa do flam-boyant. Isso era poesia. Gostava de estar na sala e não ter os olhos desconfortáveis enquanto lia Tchecov no sofá.

Não ser poesia não significou, em nenhum momento, desamor. Vivia uma intensa relação amorosa com aquele flamboyant. Todos os dias, chegava da rua e, ao entrar em casa, olhava pro alto, em direção à copa da árvore. Quando era criança, carregava alguns galhos. De manhãzinha, juntava os bonecos e construía fortes e trincheiras nas raízes, que levantavam um pouco a calçada. Mais tarde, pegava algumas sementes pelo chão e juntava em uma caixa, sem muito sentido. Achava engraçada a sujeira que a árvore fazia e podia ver o céu entre as folhas. É, talvez de alguma maneira, fosse poesia.

De certa forma, aquela quase poesia era também um prenuncio de tragédia. As raízes fortes iam aos poucos estourando a calçada e os canos em busca de água. As sementes ficavam espalhadas pela rua, assim como as flores. As cigarras sumiram. Havia cupins.

Um dia chegou o botânico. Nunca havia visto um botânico e nunca viu um

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depois disso. Se fosse teatro, diria que era uma solução dramatúrgica fraca do autor, colocar um botânico ali para explicar o inexplicável, como a empregada doméstica da novela das oito que faz uma pergunta a patroa, protagonista da história, pra que ela possa fazer uma cena tocante, que sirva de gancho para o capítulo seguinte e man-tenha a atenção do espectador. Não era preciso verbalizar a morte. Fez-se o silêncio.

Dias depois, acordou com a trilha sonora do corte. Foi até a janela e con-templou a coreografia. A luz do sol banhava o cenário e lá em baixo havia uma espécie de diretor. Não conseguiu pensar em nada.

Os dias seguiram angustiados. Era, sim, preciso verbalizar a morte, pensou. Pegou um caderninho que tinha guardado para essas ocasiões angustiadas. Co-meçou a escrever, nada que achasse gostável. Mas não estava interessado em ser lido, mas em botar pra fora a angústia. Ele sabia, ou achava que sabia, que escrever era uma forma de superar.

O que ele não sabia era que nada que escrevesse seria capaz de cobrir aquele buraco aberto. Que nada voltaria, ainda que inconscientemente achasse possível que tudo voltasse, em breve, a ser como era antes. O que não sabia é que há coisas que não se superam. Há coisas que não voltam. Não pelo que foram, mas pelo que deixaram de ser. Brincar com seus bonecos na raiz aparente do flam-boyant foi banal, mas foi. Não haveria mais aquela raiz para servir de trincheira na guerra imaginária. Não haveria sementes, galhos ou flores. Não haveria.

O acordar seria diferente, assim como a sesta. As tardes e os cafés-da--manhã também. Não haveria escaladas, podas, arte naturalista. Não poderia se casar embaixo da árvore. As folhas pequenas, não poderiam ser postas pra secar, trituradas, enroladas em um guardanapo de bar e posteriormente fumadas, em busca de algum estado alterado de consciência, numa tentativa juvenil de fazer haver alguma coisa. Não poderia construir uma casa na árvore, não naquela, pelo menos, e, se não naquela, em qual mais? Não importa, não poderia construir uma casa com a sua madeira nem tirar uma muda. Não seria possível, um dia, quando fosse avô, retirar um galho e fabricar uma espada de brinquedo para seus netos. Tampouco construir um arco e flecha. Não haveria a sombra e a poesia de olhar pro céu entre as folhas da árvore.

Os dias seriam claros e o sol rebateria nos carros parados na rua, entrando pela janela entreaberta, causando um leve desconforto nos olhos. Tchecov nunca mais seria o mesmo. Nem ele.

Metáforas simples também não explicam nada, pensou.

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* Rafael Vieira Cal mora em Cachambi-RJ, escreve pra teatro, sites e coletivos literários. Já teve colaborações publicadas nas revistas Carta Capital, Aguarrás e Desencontros, além de três textos montados no teatro. Atualmente, mantém o blogue fazendoumdrama.blogspot.com.br, é diretor artístico da Interferência Teatral e, nas horas vagas, é professor. E-mail: [email protected]

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Duas cruzes

Cândido Brasil* - menção honrosa – categoria nacional Cachoeirinha - RS

O sol tremeluzindo no horizonte desenha uma figura negra, que balança, con-forme o bafo do ar quente que sobe da terra. O fio horizontal que define o alcance da visão é um braseiro, cozinhando o azul do céu. Não há nuvens

no firmamento, só o astro rei jogando sobre a terra o seu calor. No pequeno povo-ado, chamado Cafundó, um lugar ermo, esquecido pelo tempo e mais ainda pelas autoridades, que só chegam por ali em época de eleição, tudo é seco. Açudes, san-gas, rios... Carcaças de gado estão espalhadas pelos campos e bandos de corvos produzem sombras andarengas pela terra seca.

Há meses que os habitantes deste lugar têm de buscar água de carroça no rio Mirim, que fica léguas de distância.

Nesta paisagem inóspita, na estrada batida, a sombra vem aproximando-se, negra, esquálida, de braços abertos como uma cruz, dançando no centro da via.

Na sombra da parede dum casebre, a velha moradora recostada num banco de madeira, observa, do alto dos seus oitenta e tantos verões abrasadores, o vulto que chega.

É uma mulher, trazendo às costas um bebê enrolado em panos para prote-ger do sol. Em cada mão um pedaço de pau, que serve como bengala, para apoiar--se e ter forças para seguir sua jornada em busca de água e salvação para o filho.

Depois de horas dançando sobre a estrada, enfim chega à sombra da casa. Não fala nada, desce a criança das costas e deita na terra.

A velha divide com o pequenino um gole de água do copo que segurava. Não há resposta da boca da criança. Os minutos envoltos em quietude, tempo em que ficam paradas as três figuras, parecem uma eternidade.

A mãe ajeita o filho nos panos, o coloca sobre as costas e sai novamente.É uma cruz negra na estrada, que vai andando, andando e pára. A velha força a visão, postada ao lado do seu casebre e enxerga a mulher

abaixando-se na beira da estrada e ali ficando.

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A tarde vai caindo e depois de horas agachada sob o sol abrasador, a mu-lher enfim levanta-se, segura seus dois pedaços de pau que servem de apoio e prossegue estrada afora.

Da beira do seu casebre a velha senhora fica observando a estrada, onde uma cruz negra vai andando rumo à linha do horizonte e atrás dela, na beira da estrada, junto a um montículo de pedras, uma cruz pequena de paus secos fica guardando o seu filho.

A velha vê duas cruzes: uma que vai e outra que fica.

Cândido Adalberto de Bastos Brasil, 53 anos, gaúcho de Cachoeirinha-RS, é empresário, curte a cultura gaúcha e gosta da poesia nativa. Possui livros publicados. Há muitos poe-mas de sua lavra postados na internet. E-mails: [email protected] / [email protected]

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Em braile

Éder Rodrigues* – menção honrosa – categoria nacionalBelo Horizonte-MG

Primeiro a palavra escolhe os cantosonde o significado não cicatriza.Depois, entregamos o corpo para ver se cura.

S e eu ainda lecionasse, talvez inventasse um dicionário de silêncios, só para tornar a palavra mais precisa na ponta dos dedos onde poema o toque. Lembro-me de quando ele chegou, escorando como se os vãos confessas-

sem a urgência que cerrava minhas vidraças. Jamais deduziria que tivesse vindo pelo anúncio que postei. Depois de anos lendo Clarice, comecei a desafiar a solidão com aulas avulsas sobre o sentido que contorna ou desaba romances. Chega uma hora na vida que a paisagem pesa e deixar a janela fechada não é só mania ou esquecimento. Relutei para criar um anúncio menos antigo que “REFORÇO ESCO-LAR”, mas por falta de modismos adequados, o que se espalhou pela vizinhança foi que eu, enfim, aceitava aulas particulares de qualquer matéria. No fundo era uma maneira até elegante de escrever com letra de forma que eu já tinha aposentado há anos e, me sentia tão sozinha, que esta foi a alternativa encontrada para adoçar as tardes que insistiam acreditar que valia a pena ser de novo.

O anúncio deve ter se espalhado por intermédio da piedade dos conheci-dos, das velhas diretoras que por verem minhas rugas como os estilhaços de um espelho próximo, perpetuaram aquele meu ensejo de forma digna, acredito. Seja como for, não deu certo o esforço pelos três longos meses de espera, até aquele dia em que já havia decidido tirar a placa do portão. Nunca poderei detalhar como ele chegou. Antes achava que o detalhe enriquecia as obras, mas ele insinuava que não minuciar os meios, às vezes, alivia o fim. Digo ele, porque não tenho forças para pronunciar o nome, nem sei se devo. Há palavras que se amolam a ponto de se eternizarem afiadas, tal como a barba dele no ensejo de quando chegou, ras-

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cunhando os sentidos que desde menino nunca leu. O trauma das lições tatuadas a giz acompanha a memória que se cansou antes de mim. Ainda assim, recordo que derramou o que bebia quando confirmou o endereço com a mesma fragilidade com que se intui um título. Era desses que perderia todo o recreio se uma escola houvesse ou se ele, um aluno fosse.

Na primeira aula foi logo dizendo que nunca tinha lido bilhete escrito à mão, nem guardanapo amassado em noite de bar. Falava devagar como se medis-se a distância das coisas. Olhava para onde eu não estava e adivinhava feições com o risco de quem se atreve. Alfinetou que não acreditava no sentido das palavras, mas no fundo gostava da silenciosa orgia delas. – “Pouca gente leu para mim.” Disse depois de atestar que provas de literatura o deixavam angustiado. Não pelo delírio da palavra, mas pela insistência da escola em diminuir os efeitos do silêncio com aquela dose insegura de questões e fichamentos. Tinha horas que ele parecia homem demais para ser menino, já outras, tinha meninices pelas sutilezas que não caberiam jamais num homem feito. Não deixei me levar pelo que ele ortografava com aquela sutileza de não me ver, até porque depois de uma vida usando guarda--pó, não era alguém sem a luz dos olhos que me faria pena. Antes de abrir o pre-sente, melhor desvencilhar dos ímpetos da surpresa. Talvez por isso começamos pela coincidência sempre duvidosa que se assemelha ao corpo quando arrepia sem prevenção: Clarice. Foi como leitura obrigatória da prova que lhe asseguraria a despedida final do médio ensino rumo à monótona academia que partimos do menos claro deles: A maçã no escuro.

No começo ouvia atento e parecia ir além da lonjura que a palavra al-cança. Fui esclarecendo as lacunas, iluminando contextos, tecendo comentários que luziam meus anos de especialista frente àqueles olhos que não seguiam os atalhos da luz. Confesso que principiei como uma canção tirada do piano só em notas de dó. Talvez por isso tenha se cansado rápido e feito uma criança que o sono engana, rezou: – Apenas leia. Não quero entender nada. Encerrei aquela aula ferida no orgulho que me outorgava quinquênios e aposentos. Teria dormido se achasse que não voltaria. Também teria acordado se aquele corpo não me coçasse a insônia com sopros de conturbado calão. Não adiantaram meu método, meus anos sem intervalos para dividir com alguém aquelas noites dormindo com Clarice, espantando as baratas do meu sonho. A boca dele luzia uma jovialidade invejável, principalmente quando contornava os pontos cardeais no cume onde parecia medir a temperatura das palavras e não o significado delas. Naquela primeira noite senti

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Clarice me tocando por dentro, mas quando acordei, era a trilha dos dedos dele que tinham passeado pelas minhas rugas.

Voltou uma semana depois. Continuei no velho esquema, sem perceber o livro que escorria dos olhos dele e fazia do corpo uma dessas lições que ninguém decora. Expliquei do meu jeito o duplo sentido de algumas palavras enquanto quase imóvel, ele parecia rumá-las para onde quisesse. O som lhe embriagava os dedos grossos, coisa que a falta do olhar escondia. O lábio perdido era um atalho para esquecer o literal do mundo. Não esboçou qualquer reação quando o toquei semio-ticamente distante e ele virou o rosto impaciente como se visse: – “Você só sabe ler dessa forma, como se entendesse?” Foi como um dia me advertiu para desespero do meu antiquário de castigos. Pedi para ir embora como se forjasse um intervalo entre os abismos de quem sente o toque, mesmo sem ter sido tocado.

Achei que nunca mais viria. Porém chegou um dia antes da hora, quando eu ainda inventava notícias e cobria meu sexo com o jornal. Sentou-se e pediu que eu lesse só o final. Palavra nenhuma trouxe. Primeiro a superfície dos dedos, depois a temperatura da palavra, como se o ilegível de nós fosse lido sem as lentes que a morte aumenta. Tudo sem significados, sem prévias ao entendimento. De tanto ler com as certezas, as claricidências de errar-me no escuro dos dedos com que cegamente me lia, foi minha primeira palavra e a última dele. Ler era um exercício do corpo todo. Dentro e fora. No fundo e pela superfície. Terminamos e depois que se foi, embriaguei-me de copos d’água. Com os olhos cerrados e com a imagem dele me toquei até o fim.

Depois daquele dia, nunca mais voltou. O corpo não é nada didático. En-gana os sentidos e pontua de um jeito que faz a palavra escorrer feito gozo impos-sível no lábio dos que se vão. Sigo os toques dele tentando me deixar legível a mim mesmo, mas escorrego nas incertezas, no escuro que se preza intocável no fundo das maçãs. Por vezes, repito insistente o nome de Clarice, como se esquecesse o abismo que a morte labia na imaginada presença dele. Quando os poros alfabetam meu desejo no cume dos seis minúsculos pontilhos, sinto-me sendo folheado de trás pra frente, como um deus aprendendo a ler-se.

Fecho os olhos agora para imaginá-lo vendo e a campainha dispara com os alunos de uniforme branco me trazendo sopa e algumas gotas. Se ainda lem-brasse a placa que o trouxe, talvez pregasse no inventário desse último quarto e quem sabe ele viesse para ler-me neste resto de tempo que ainda guardo como recreio.

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* Éder Rodrigues é poeta, ficcionista e dramaturgo com trabalhos publi-cados no Brasil e no exterior. Como contista recebeu o Prêmio Josué Guimarães de Literatura em 2009 e o Prêmio José Cândido Carvalho em 2008. Possui um destacado trabalho de produção e difusão da literatura, atuando como escritor e coordenador de projetos culturais. Possui o título de mestre na área de dra-maturgia pela Universidade Federal de Minas Gerais, é ator, diretor e professor universitário. E-mail: [email protected]

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O lamento de Ingrid

Alex Sens Fuziy * - menção honrosa – categoria nacional – Delfim Moreira - MG

“A julgar por nossos desejos inconscientes, nós mesmos não passamos de um bando de assassinos.” Sigmund Freud

E m parte porque estavam no norte de Bergen, hospedados numa pequena casa de madeira de noventa anos que lembrava vagamente a do compositor norue-guês Edvard Grieg, em parte porque terminar de escrever um romance num

país estrangeiro dava aquela deliciosa sensação ilusória de sucesso, às nove horas da noite os Müller decidiram comemorar com drinques e música clássica. Enquanto Ingrid apanhava mirtilos e framboesas dos amentos que flanqueavam o terreno da casa para preparar duas taças de clericot, Ernesto levou o gramofone do quarto para a varanda, pôs um disco com a melhor seleção dramática de Grieg e escolheu uma das duas cadeiras mais confortáveis antes que a esposa chegasse com as bebidas. Também não quis esperar para ouvir a música e depois de espiá-la atravessando o gramado com uma pequena cesta de frutas vermelhas, fechou os olhos e sorriu.

Antes de voltar para dentro da casa, Ingrid pôde ver o sorriso entre os balaús-tres. Na cozinha, abriu uma garrafa de seu Riesling francês preferido, encheu duas taças até a metade, mergulhou nelas os mirtilos e em seguida as framboesas. Com o cabo de uma faca, apertou suavemente as frutas e viu com prazer os tons sanguí-neos se rompendo no álcool como fiapos de fogo. Na varanda, Ernesto arrastou sua cadeira. Ela imaginou o corpo do marido aberto e deformado no jardim após cair lá de cima, enquanto ele vislumbrava a mulher asfixiada por um escapamento de gás.

Tudo isso aconteceu às nove horas e oito minutos, mas sete minutos depois, quando o sol ainda se punha na Noruega atrás de grandes nuvens que pareciam suflê de laranja, Ingrid ainda sorvia seu clericot em goles epicuristas e a taça de Ernesto estava no chão, com as frutas esparramadas como coágulos de sangue, o vinho derramado formando uma pequena poça na madeira e o escritor inerte, a cabeça tombada, os braços ligeiramente tortos e a mancha da morte vazada em

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seus olhinhos olivares entreabertos. Do gramofone se desprendia a doce e curiosa “I Dovregubbens hall”.Embora Ingrid não tivesse virado a cabeça para ver o marido quando a taça

explodiu no chão, ela sabia o que havia acontecido. A despeito da música, o silêncio – silêncio humano, cujas raízes são sempre ruidosas enquanto há um coração ba-tendo e pulmões inchando – era tão frágil que caso fosse tocado, se fecharia num grito, como o movimento nástico de uma flor. Por isso permaneceu imóvel, sentindo cada gota da bebida e chupando as framboesas que nadavam no vinho como se fossem balas. Seus olhos haviam pousado além do murete que dividia os terrenos, na ponta de Flatøy, a ilha onde estavam, e diante da qual passava uma grande em-barcação que ela desejou por um segundo que a tirasse dali – que a levasse para o calor de uma lareira e a empanturrasse com pão de nozes, Jarlsberg e mole rojo.

“I Dovregubbens hall” começou sua lenta ascensão ao mesmo tempo em que o sol desaparecia por completo. Com mais nuvens, o céu acendrado aumentou a sensação de frio que parecia trespassar as tranças de lã do suéter de Ingrid. Eram 21h17 quando ela se permitiu um longo e satisfeito suspiro seguido do primeiro olhar sobre o marido morto.

Nem morto Ernesto parecia relaxado. Foi com muito desagrado que Ingrid viu que seu maxilar continuava saliente. Como psicanalista, ela acreditava que o prognatismo mandibular do marido era mais um desejo inconsciente de estar à frente dos outros – embora sua barriga tratada à base de Malzbier já fizesse isso – do que uma desordem genética desfigurativa. Era como se aquilo lhe desse um ar de sabedoria, mas Ingrid não entendia como. Assim como não entendia aquela es-tranha obsessão por Hemingway, ainda que tivessem o mesmo nome, mas isso não justificava o uso das calças largas, da barba branca ou o estilo literário semelhante que ela tanto invejava. Talvez fosse outro desejo inconsciente – e Ingrid desejou, conscientemente, que ele também tivesse uma espingarda.

Ela voltou os olhos para aquele início de noite e lembrou – como se tivesse esquecido alguma vez – do romance do marido. Eles haviam alugado aquela casi-nha porque lembrava a de Grieg, mas também porque pareceu o melhor lugar para terminarem seus livros, no silencioso frio da ilha, além de ela cometer seu primeiro e último crime. Naquela quinta-feira ele escreveu as últimas oito páginas do seu romance sobre uma pianista que se isola numa floresta depois de enlouquecer, enquanto ela escreveu as últimas três páginas de uma novela para crianças. Eram confusos os seus sentimentos sobre o próprio livro, afinal uma psicanalista não

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deveria escrever livros risíveis para um público que abominava enquanto o marido conseguia espancar maravilhosas narrativas em sua velha Royal – idêntica a de Hemingway. Esta era outra característica que Ingrid detestava no marido: o gosto irritante pela máquina de escrever. Enquanto ela digitava quarenta palavras por minuto, Ernesto podia escrever um longo parágrafo como se metralhasse o objeto.

Ingrid virou o resto do clericot e mastigou todas as frutas de uma vez. Preci-sava se acalmar. Ainda tinha de voltar para o escritório ocupado pelo marido egoísta e terminar seu plano. O efeito dos três últimos goles de vinho foi rápido, de repente seus braços estavam mais pesados e o resto do Riesling na cozinha pareceu tenta-dor. Apesar do frio, sentia-se leve e quente como um prato raso de sopa.

Era bem verdade que ela também tinha terminado seu romance estúpido sobre cachorros falantes que planejam fugir de um canil, que havia sido um traba-lho belicoso encarar aquele enredo por uma quantia de dinheiro que não comprava nem a porta de uma doceria de luxo no coração de Paris, mas não estava satisfeita, por isso daria seguimento ao plano. Para isso precisava levantar, mas sentia-se so-nolenta. E começou a questionar o próprio talento quando sentiu o silêncio inchar.

Assim como o livro era ruim, e sua vontade de escrevê-lo tivesse tido a mesma intensidade emocional de um passeio de barco numa banheira de hidro-massagem, ela não podia negar que as últimas páginas eram as melhores que escrevera em toda a sua vida – e isso incluía seus seis livros sobre psicanálise na arte enquanto estética. Era inegável o poder criativo que aquele lugar lhe desper-tava, por isso podia apreciar, conforme seus humores mais ácidos de apreciação, aquelas três últimas páginas. Porque não poderia escrever daquele jeito em sua própria casa. Não quando o vizinho de quase setenta anos com mal de Parkinson gostava de usar o antigo cortador de gramas movido à gasolina a cada cinco dias. O pior de tudo era o barulho da máquina, uma terrível oscilação sonora que parecia uma extensão do problema motor e neuronal do dono. Mas Ingrid sorriu ao lembrar--se das vezes em que sua bradicinesia, uma lentidão anormal dos movimentos, o impedia de atormentá-la.

Então ela colocou a taça no chão e fechou os olhos para ouvir a intensa ascensão da música. Logo o sorriso desapareceu porque a lembrança do outro vizinho encobriu a composição de Grieg. Lembrou-se de quantas tardes perdera em seu escritório ouvindo a filha mais nova dos Holst brincar na cama elástica que ganhara nas férias. Muito próxima da piscina e da cerca que separava as casas, a cama elástica era usada por quase duas horas de forma ininterrupta. Ingrid tentava

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fechar parágrafos impossíveis ao som da menina se jogando na lona como se propositalmente. Tchucunti. Tchucunti. Tchucunti. Tchucunti. Tchucunti. Tchucunti. Tchucunti. Sua imaginação involuntária geralmente fazia Talita cair na piscina de-pois de abrir o crânio na quina de granito ou ser dilacerada pelas pontas de aço inoxidável da cerca, embora os tchucuntis continuassem ecoando em sua mente como um anátema.

Tchucunti. Tchucunti. Tchucunti. Tchucunti. Tchucunti. Tchucunti. Tchucunti.Ingrid pegou a taça outra vez e arremessou-a sobre o jardim. Ouviu o som

de vidro se espatifando, o eco parou. Novamente afundou na música de seu com-positor preferido, agora mais grave, mais potente, prestes a explodir o gramofone.

Quando o eco da cama elástica começou a voltar em ondas muito sutis mis-turadas aos acordes da música, decidiu que era hora de entrar. Tanto porque estava mais frio como porque já escurecia e precisava terminar o que havia planejado.

A casa estava misteriosamente quente. Abriu a porta com um último sorriso para Ernesto e entrou. Quando visitou a casa pela primeira vez, na quarta-feira, Ingrid praguejou sobre o carpete branco que recobria todo o chão do segundo andar. Era estranho e pouco prático um carpete tão claro. Mas agora, tirando os sapatos e se dirigindo ao escritório, agradeceu pelo calor nos pés e pela quietude dos seus passos.

O escritório ficava num pequeno quarto que lembrava um depósito. Tinha o teto baixo e uma lucarna redonda sob a qual Ingrid sentou diante da máquina de escrever de Ernesto. Lá estavam no carpete as marcas dos pés do marido, cinco horas escrevendo sem mudar de posição. E lá estava a máquina sem nenhuma folha, pois o bloco com o romance datilografado havia sido simetricamente arruma-do. “O lamento de Ingrid” fora escrito à mão no centro da primeira folha, e abaixo do título havia um traço feito com grafite. Seu nome no título não era o verdadeiro problema, ela sabia que o marido não tivera aquela ideia, mas que a “pegara em-prestado” de uma das composições de Grieg; o verdadeiro problema fora o dislate da justificativa: “É uma homenagem para uma linda mulher”. Asco. Ela sentiu a boca amarga. Até para inventar uma desculpa ele tinha de recorrer a um filme de Julia Roberts, chamando-a indiretamente de prostituta.

Seus olhos brilharam ao encontrar o pedaço de grafite. Lá fora, “I Dovregub-bens hall” ia para os momentos finais, acelerada e intensa como seu único pensa-mento. Oscilou sobre aquelas centenas de folhas marcadas pela odiosa criatividade do marido, saboreando com alguma náusea o que mais a irritava. Não eram só os pelos das mãos e dos braços, que a certa distância faziam com que o marido

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parecesse sujo – de modo que qualquer um pudesse sentir vergonha por ela. Mas a mania de limpar os dentes com fio dental como se dançasse uma dancinha particular, agitando as mãos para frente e para trás, e em seguida fazendo aqueles ruídos irritantes com a língua para tirar os últimos pedaços de casca de pipoca. Ou quando batia a porta e culpava o vento. Ou quando tomava o café da manhã com o prato afastado, sujando a mesa com migalhas de pão que não recolhia. Ou quando mexia demais na comida antes de colocá-la no prato não para ver o que era, mas para averiguar se ela havia colocado pedaços de pimentão no ensopado, ou temperado a salada com cominho, ou encharcado qualquer prato simples com seu azeite preferido de trufa branca.

Num suspiro mais entediado que conformado, Ingrid pegou o grafite. Sentiu uma pontada no estômago ao lembrar de que naquela manhã, quando faziam com-pras no centro de Bergen, Ernesto havia confundido uma garrafa de água Voss com um vidro de perfume, dizendo em alto e bom som que nunca vira uma fragrância tão barata. Por sorte, ninguém entendia a língua deles. Mas isso não diminuiu o calor que subira em seu rosto, fazendo com que fugisse do marido antes que ele confundisse pedaços de Brie com alguma sobremesa coberta de açúcar refinado.

Ernesto tinha outra mania: assinar os originais dos seus romances com aquele pedaço de grafite. E como Ingrid o tinha em mãos, o que ela fez foi colocar o próprio nome sobre o traço cinza, planejando publicar o romance que dedicaria ao tão saudoso marido.

Porque o carpete do escritório abafava o som dos passos, e porque Ingrid estava tão nauseada com o veneno que tomara quando Ernesto trocou as taças de clericot, ela não ouviu o marido entrar nem o viu parado às suas costas.

O corpo caiu pesado ao lado da escrivaninha, empurrando a cadeira e as pernas de Ernesto. Antes de afundar na escuridão, ela viu o marido balançar a ca-beça e pegar o grafite. Com ele, desenhou o contorno do corpo no carpete, e quan-do na varanda a música acelerou nos instrumentos de percussão para finalmente estilhaçar-se, bem ao lado da cabeça escreveu a palavra “fim”.

* Alex Sens Fuziy (Florianópolis/SC, 1988), mora em Delfim Moreira--MG. É escritor por ofício e prazer, eventualmente revisor e preparador de tex-tos, leitor e cinéfilo contumaz. Eventualmente, colabora com sites de literatura e de jornalismo cultural, além de ser colunista das revistas Bula e Acesso Total. Escreve em seu site http://alexsensfuziy.com

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Passa azeite, senão racha!

Arnaldo Devianna* - menção honrosa – categoria nacional Sete Lagoas - MG

T al fato aconteceu num tempo roto, quase esquecido da lembrança daque-les que o presenciaram. Mas costurou um desfecho providente, serviçal de nosso irresponsável preconceito.João Palpitoso, com o tal negócio da jardineira a transportar a peonada para

a capital, havia conseguido alguma prosperidade que culminou na compra de um velho jipe, daqueles modelos usados na 2ª guerra. Depois de uma boa reforma, ficou uma beleza. Só vendo! Um luxo só!

E num dado dia, sábado de feira, resolveu juntar os mais chegados (Rei e Zé da Noite) para uma volta; coisa de rapazes solteiros. Entusiasmados, tomaram o rumo da Rua do Morcego, ali perto, depois da ponte. Na dita, havia uma birosca feia, mas que vendia a melhor branquinha desse mundo. Mercadoria de grande importância para a noite gélida que nascia. “Vai que na festa não tivesse fartura... Quem confia na panela alheia dorme sem ceia!” Decidiram, de comum acordo, por adquirir uma boa água que passarinho não bebia. “E quanto a não haver comida, deixe está...” – pensaram.

Mas de dentro da tal bodega, surge quem: Mané de Isato. Sim! O temível Mané, famoso pela habilidade marcial. Não existia macho em Vai-Quem-Sabe ca-paz de enfrentá-lo numa briga. Até então, só se tinha notícia de uma luta perdida: o boi Corisco conseguira derrubá-lo numa primeira leva. Mas na revanche, Mané levou a melhor!... Imagine um homem de mãos nuas vencendo um touro assassino. Tal feito ganhou nota em jornais de Montes Claros, Diamantina e Conceição do Mato Dentro. E só serviu para incendiar de vez a fama do açougueiro.

O sujeito tinha o humor vacilante do cão: podia ser ignorante e brigador; mas por outro lado, um bom amigo. O certo é que ele não tolerava conversa atra-vessada e nem levava desaforo para casa. Mexer errado ou bater o pé era perda de tempo... O bruto topava qualquer um. Aliás, podia juntar uma corja!... E sua arma mortal era a cabeçada. Usava aquele enorme globo (achatado de baiano e duro

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como aroeira), que seu pescoço custava a separar-lhe do corpo musculoso, que nem um cabrito bravo. Bastava um único golpe para encerrar-se o banzé.

Pois sim, foi justamente esse Mané de Isato que descansou o braço no marco da porta da birosca, e depois de um tempo minguado a admirar a beleza do automóvel, acenou com seu sotaque nordestino:

- Oh, Palpitoso! Tarde!- Tarde! – responderam os dois, cismados. Aquilo não cheirava bem. E o Zé

da Noite que sumira no interior da venda?!...- Os cabras estão indo onde assim, com esses panos limpos?! – indagou,

referindo aos trajes “de ver Deus no domingo” dos interlocutores.João sorriu aquele seu sorriso mais amarelo enquanto sondava o semblante

de Rei. Nisso, surgia finalmente o Zé também na porta do botequim com a enco-menda debaixo do braço, embrulhada numa folha de jornal. Naquele momento, arrependeram-se da idéia da cachaça. Estavam agora numa sinuca de bico: Caso mentissem sobre o destino e o Mané descobrisse... Era confusão na certa. E isso não seria muito difícil de acontecer. Eta povo fofoqueiro aquele!... Ainda mais se o tal fuxico acendesse um sururu medonho envolvendo o afamado Mané. A notícia correria como risco de pólvora... Viria gente de longe, a galope, para assistir o es-petáculo. Bom, já que não tinha jeito, entregaram os pontos:

- Ah, nós estamos indo ali na Caveira, numa reza de terço e um leilão besta!- O quê, Leilão! Bom demais, sô! Vou com vocês! – divertiu-se. Sem pedir

licença, já foi tomando lugar no assento traseiro do carro. – E se duvidar, dá “inté” para ver umas moças!... – acrescentou animado, com ares de boa intenção.

Assim, temerosos, partiram; inclusive o barulho do motor, posto em funcio-namento, parecia gargalhar da sorte deles. Nas calçadas de Vai-Quem-Sabe, de mau agouro, tinha gente até fazendo sinal da cruz ao avistá-lo. O varão cultivava mesmo uma má fama assombrosa!

E se foram pela estrada de terra estreita ao sabor do destino. No fundo, os três temiam uma encrenca. Caso houvesse briga, o Mané iria arrasar tudo. Pelo menos, tinham o consolo de que talvez lutasse ao lado deles... E se o dono da festa não gostasse do conviva sem convite?...

Naquela confusão toda, acabaram chegando atrasados. As contas do rosá-rio já haviam passado do meio. O povoado da Caveira era um lugar à toa, com uma pequena capela em honra a São Sebastião, uns poucos casebres de pau-a-pique. A maioria do povo da redondeza com bócio por causa da água do córrego homô-

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nimo. Gente pobre, da roça, fraca mesmo. Num terreiro, ao lado de uma cruz, fora armada uma pequena cobertura de capim, piso de terra batida com boa varrição e um palco de madeira.

E Mané já desceu animado e ajuntou-se (surpreendentemente) ao coro da reza.- Rei, o que vamos fazer?!- Preocupe-se não, Palpitoso. Mané é boa praça! Mais: Ele nunca procura

encrenca... E se ninguém mexer torto, não haverá salseiro. E “tá” com a gente, “tá” com Deus! Fique tranqüilo, sô!

- Será?!...- Pior se não “trazemos” o homem... Brigadista, e dos “bão” que é! Pegava

mal!... Imagine se ele descobre tamanha desfeita?!- Tem razão! Deixemos isso de lado! – sugeriu, correndo as mãos pela roupa

para expulsar a poeira - Vamos dar uma conferida nas “moça”! – Palpitoso sorriu então aquele seu sorriso mais safado.

Zé da noite, por sua vez, anuiu com um curto movimento de cabeça, elevan-do o copo de bebida clara para um brinde solitário.

Depois da ladainha, Mané de Isato, mais uma vez sem pedir ordem de ninguém, agarrou as ofertas e começou a gritar o leilão: Ora era um leitãzinho, ora um chapéu, uma garrafa térmica, e assim foi. E vai daqui, vai acolá!... “E dá-lhe uma, dá-lhe duas!...” Até repente ele cantou para turma, denotando (zombeteiro) as características singulares de cada conviva.

Quando um peãozinho fraco dava um lance, ele retrucava de mofa: - Lambari num pinica!... Lambari num pinica!... – e a audiência caía na garga-

lhada. O ofendido não se importava, pois quem era doido para encará-lo num arranca--rabo?! Ficava por isso mesmo... Depois da brincadeira, a oferta era aceita de bom grado.

A partir de então, muitos levantavam a mão num lance só para ouvir de novo a frase-feita do leiloeiro ou o improviso da rima que se seguiria. Mais risos e caçoadas...

A tríade não acreditava em seus olhos. Quem diria: o temível Mané de Isato num bom astral daquele. Fez uma bagunça danada, animou a festa, acabou venden-do tudo a bom preço e povo todo folgazão, satisfeito. Fora um sucesso estrondoso.

Para finalizar, Mané pegou a última prenda, pôs debaixo do braço, e anun-ciou risonho e festivo:

- Essa aqui gente é o meu quinhão! - Ninguém atinou. As risadas do público o acompanharam até que, num local retirado, a beira de uma fogueira para comba-ter a friagem, o viram assentado descascando o abacaxi de “paga”. Agradecidos,

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os festeiros levaram um prato de comida bem calculado. E ele ficou dali, plácido, deliciando-se com o calor das labaredas, bochechando o dente com quentão, en-quanto seus ouvidos libavam os primeiros acordes da sanfona do forró. E o arrasta--chinela animado evolucionava-se numa coreografia típica, recheada de sorrisos, abraços e muita alegria.

A noite, apesar de fria, estava linda: o céu sem nuvens desnudavam o manto de estrelas a ornar a lua. O imenso disco de prata parecia sorrir para os habitantes da terra. Do camarote celeste assistia ao show de música e dança.

Mas a festança (tempos idos) foi interrompida de forma abrupta pelos gritos desesperados de algumas mulheres. Uma terrível briga iniciara-se. Tudo por que uma moça negou um bailado e um dedo de prosa. Aí, o sujeito (achando um desa-foro) quis tirá-la na marra... Primeiro vieram os tapas e beliscões da menina que resistia ao insulto. Em seguida, dois machos entraram para acudir e o pau quebrou num efeito dominó! Puseram abaixo a tal cobertura de palha, a mesa de comes e bebes, os enfeites... O lugar virou uma bola de poeira, socos, gravatas e pontapés.

Mané de Isato, que terminava o prato de tropeiro com arroz, lambia os dedos. Afastado que estava, limitou-se a observar o ronca-ferro sem maior entusiasmo.

Palpitoso, Rei e Zé da Noite, entraram no quebra-quebra com jeito (e de mesquinharia), só para o Mané vir em socorro e fazer exibição (pois o que que-riam era ver uma justa bonita). Logo, experimentavam o maior aperto: Davam um murro e tomavam quatro, cinco... Os olhares atarantados clamavam pela ajuda da cabeçada atômica de Isato. E este por sua vez, contrariando todas as previsões e apostas, continuava de cócoras à beira do fogo, de onde assistia a tudo. Dali, não puderam ouvir seu grito:

“Gente, se precisar de mim aí nesse enguiço, é só chamar!” – prontificou--se, enquanto fazia um cigarrinho de palha, já com o sentido numa brasa perdida (vizinha da botina esquerda) para servir-lhe de isqueiro. Em pouco, soltava abun-dantes e prazerosas baforadas...

A briga embrenhou-se numa praça de guerra: a moita de gente disforme contorcia-se revolucionária sobre o piso batido. Uma nuvem densa de terra e fu-maça, providencialmente, escondera a Rainha Lua, poupando-a de tal selvageria.

De pronto, a festa acabou-se em destroços...

- - -- Oh, Mané! Mas “ocê”, hein?! Nem pra dar uma ajuda no esbregue! – pro-

testou João Palpitoso.

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- Isso mesmo, moço! Nós lá nos arrebentando e “ocê” aqui... “Quentando” fogo! – protestou Rei.

Os três estavam sujos, rasgados, esfoladuras desencontradas, ponta de osso à mostra, titubeantes.

- Ah! – introduziu o Mané - Eu achei que “ocês” davam conta sozinhos. E aliás, ninguém me ofendeu aqui... Pelo contrário, trouxeram comida, bebida, doce... Fui muito bem tratado.

- Pois é, mas vamos embora logo. Vai que um desses “filho-de-uma-égua” foi buscar o “berro”.

E foram-se então, sujos, arretados. Antes, molharam a boca com a branqui-nha especial que descansava debaixo do banco do motorista. Do Zé da Noite ainda vinha algo mal cheiroso a empestear o carro. E para completar, o porco matou a sede com vários goles da aguardente. Desgraça pouca era bobagem!...

Daquela noite, daquela confusão toda, restou-lhes a lição: Fizeram pouco do Mané e foi logo ele quem melhor se comportou.

Na viagem de volta, depois de conferir nossas esfoladuras com uma lanter-na, o açougueiro sugeriu: “Passa azeite, se não racha!”

E o infeliz do Zé da Noite, já bêbado de tudo. Gostou tanto do conselho que veio o restante da viagem a repeti-lo, que nem um papagaio, naquele sotaque lastimável de língua inchada: “Passa azeite, se não racha!” “Passa azeite, se não racha!” Oscilante, em tempo de cair do jipe e provocar uma tragédia maior.

Pior: O tremulento desceu em Vai-Quem-Sabe e continuou a ladainha pelos becos e ladeiras do lugar pelo resto da madrugada: “Passa azeite, se não racha!” E ainda contou toda a história... E a carocha esparramou-se de boca em boca, de janela em janela, sempre acompanhada de bocas de riso. E cada vez a versão mudava, com os mais absurdos e maldosos contornos. Povinho ordinário aquele!...

Tanto foi que esse negócio virou uma gíria ou uma piada pronta. Palpitoso e Rei, a chacota do momento. “Antes, tivéssemos ido para perto da fogueira também! Mas não!...” – lamentaram-se. Já era tarde...

Agora, por um bom tempo, era só um deles pisar na rua para os moleques iniciarem a caçoada lasciva: “Passa azeite, se não racha!...”

*Arnaldo Pereira da Silva Júnior, Sete Lagoas-MG, advogado, não possui livros publicados. E-mail: [email protected]

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Categoria

regional

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Lussanvira

Francisco Carlos Pereira *– 1.º lugar -categoria regionalAraçatuba-SP

C omo se chama um caminho que nem é mais caminho? Um nada. Uma desesperança, mas que ainda serve de passagem, nem que seja das lem-branças. O fantasma de uma união, feito casamento desfeito. Um nó. Mas

naquele tempo tinha nome, destes bem estranhos. Era o tronco da Lussanvira. Pois este era o nome do lugarejo último ponto da estrada de ferro, antes de se pinchar para dentro do Mato Grosso. Uma razão, mas não uma origem.

Diz que era junção de vários nomes, várias entidades formando uma só. Coisas de santíssimas trindades, que somente os doutores da lei é que entendem. Mas foi pra homenagear os que traçaram este rumo. Não os que o fizeram, os que o traçaram. Pois é, naquele tempo era um caminho de ferro que ligava os confins dos emboabas até a barranca do rio Paraná, donde se atravessava por balsa as riquezas e as pessoas para o outro lado - Jupiá. O caminho se alongava mesmo era no meio das matas, porque aquilo tudo não era como hoje se vê. Quando muito, sementes de cidades, das quais nem todas vingaram. Culpa, muita vez, da sezão.

Aquilo, meu senhor, eram terras da malária. Diz o povo que por obra de um mosquito, que antes do homem era senhor daquelas matas. Deu-se o caso dos valentes se meterem, sabe lá por qual necessidade, no meio dos domínios da pra-ga. Ela, impiedosa, não perdoava nem os saguis que por ali montavam algazarra. Tamanha era a febre que era comum os pequenos se apincharem das árvores se contorcendo no chão. Mas parava. O mal dava uma trégua por uns dias, mas vol-tava ainda mais pernicioso. Era o impaludismo. Se voltasse no terceiro dia, a morte era quase certa. Se por misericórdia de Deus, aparecesse somente no quarto o vivente se salvava. Crendice? Qual nada! Era certeiro.

Vá o homem se meter com as forças da natureza. Mas o progresso era preciso, então dá-lhe sublastros, lastros, dormentes e trilhos, e a estrada de ferro rompendo os sertões à custa de muitas vidas, alimentando as febres e tudo quanto

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era doença brava daquela época. A pior, com certeza, a malária. O tal mal expulsou a estrada de ferro, que foi se alongar em outro leito, procurando caminho mais tranquilo, de resto, como é do querer de todo mundo.

Naqueles dias, assim como se lê na sagrada escritura, enquanto esperava o gole de São Tomé, com a guampa de tereré nas mãos, eu olhava a mãe estendendo nossas poucas roupas no varal. As brancas, carinhosamente, descansavam sobre a grama. Era para quarar ao sol, ela dizia. Quando a erva findou de encorpar, deitei mais água, e sorvi um gole profundo, feito dó de peito ao contrário. Mãe, entremen-tes, me olhava, aproximava.

— Que “ai-jesus” é esse?— Nada não mãe. Penso de ir embora.Ela nem me disse nada. O silêncio de minha mãe, como de todas as mães,

chegava a ser um mistério. Era um silêncio sabedor de muitas coisas, que nem valiam a pena falar. Não que fossem tonteiras. Não era isso. Era mais como sabe-doria que se cala, pois requer os arranhões da experiência para entender. Ela parou olhando ao longe, os campos, as plantações, as criações, e depois voltou para sua lida. Eu, de volta a minha bebida amarga, ainda sem saber se era concordância ou discordância.

Ela veio em minha direção, caminho natural para os afazeres da cozinha. Ao passar por mim disse: Vai.

Era uma oração, um verbo, uma ordem carregada de acídia. Aquele mesmo sentimento que tinha percebido em meu irmão. Era um dia como esse, pouco definido entre o sol e as nuvens pardoentas. Lidava ele com os burros, os dois que ainda restavam, e nos serviam no transporte e no trabalho.

— Olha estes animais — Não era um convite para ver, mas para enxergar.— Que tem?— Tem razão de ter esse nome mesmo — retorquiu ele, pausando para

passar a mão na crina dos bichos. São pobres diabos que trabalham de sol a sol, por conta de pouca comida, aliás, mato e água.

— Que tem? — Eu, já desinteressado pelo rumo da conversa.— Que tem que eles, ainda que possam, não se desembestam por este

mundo e se vão daqui.Procurei o olhar do meu irmão, e encontrei-o lá, perdido num horizonte

donde não se via nada, mas que parecia a espera da coisa mais importantes do mundo. Ele tinha destas coisas. Uma palavra carregada de raiva, mas sempre uma

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ação contida.— São como nós. Bem que eu ia responder alguma coisa, para não interromper esse monó-

logo intercalado. Mas já vinha nosso pai nos chamando para o serviço. Tínhamos que arrancar alguns tocos em umas terras próximas dali. Deixar nosso terreiro, pra cuidar dos de outros que podiam pagar. Era assim. Meu irmão passou por mim e disse: “Vamos”.

Na hora não tive entendimento, mas na mesma noite daquele dia, meu irmão se foi. Preparou uma beberagem com o veneno destinado às formigas, e no dia seguinte já tinha partido para dentro da terra que queria deixar. Era um modo de dizer adeus, e nunca partir. Era lá o jeito dele. Tal qual o asno de Buridan, que impossibilitado de escolher entre os dois feixes de feno, deixou-se morrer de fome.

O corpo enterramos ali bem próximo dos dormentes abandonados. Foi aí que entendi. Alterar um caminho pode ser coisa de vida ou morte. Até mesmo uma estrada de ferro. E os que não tomam às rédeas de suas mudanças, perecem ou mudam à força do querer de outros.

Depois que os parentes e os poucos vizinhos despediram-se deixando seus pesares, nem houve conversa. Pai e mãe já não choravam mais, a morte era cor-riqueira naquelas bandas. A malária, como dizia. Ela mesma já tinha me levado embora outros irmãos e conhecidos. Era assim e ponto. Quando não há o que dizer, é melhor calar. Fomos cada qual para os nossos afazeres, agora assombrados por mais um montinho de terra.

A vida é assim. Uma planta franca, regada de desesperança, esperando um chuvisco de alegrias. Elas vinham também. Naqueles momentos em que se ouvia lá longe o apito da composição, em seu andar marchado, lento, rapidamente a meninada acorria aos trilhos para acenar aos que passavam. Não era raro que recolhíamos presentes lançados sabe-se lá por quem, uma bolacha, um pão, de algum sabedor das dificuldades daquelas paragens, ou mesmo por que próximo do fim da linha, já não se achava serventia para aquilo. Vinha lento, mas sumia célere na próxima curva dos trilhos. Nós nos voltávamos para o que se havia de fazer.

Até que um dia silenciou-se por completo. Houve rumores sim, mas quem é que haverá de crer, que um caminho deixaria de ser aquilo para o qual foi criado. O ser necessita da forma e da substância, a primeira foi sendo comida pelo colonião e a segunda foi ascendendo para memória, já vizinha do esquecimento. O caminho voltou às costas para o seu destino e se foi. Acho que foi esta a minha cisma, sabe-

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doria das charadas que os antigos nos contavam. O burro sabendo o que o homem não sabe. Os vivos andando, e os mortos cantando.

Lembro que algum barulho ou movimento me tirou destas lembranças. Logo o pai chegaria ao casebre trazendo quem sabe a notícia de algum outro ser-viço para fazer amanhã. Outros tocos a desencravar para dar lugar às pastagens dos bois. Resoluto, fui ao quartinho, pus toda minha vida num saco e abracei minha mãe, ensaiando uma despedida.

— Eu vou.Parti apenas com um sujeito e um verbo. Uma oração.Atrás um antigo caminho. Lussanvira.

*Francisco Carlos Pereira mora em Araçatuba desde 2000, fiscal de renda, não possui livros publicados. E-mail: [email protected]

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O beijo da serpente

Rita Lavoyer* – 2.º lugar – categoria regional

J acobson tocava a sua harpa serenamente no alto da torre. Através de uma abertura assistia à paisagem do mundo. Era belo o mancebo que, imberbe, se apresentava músico para o universo. Sua musicalidade ecoava por entre

os sons do movimento do vento. De quem herdara tanta beleza e quem lhe teria dado o instrumento, confinando tamanho talento entre paredes? Quando a música cessava, ela forçava seu rastejar adentrando a mata.

Era claro o dia, ele apareceu tangendo com seus dedos de brisa sua harpa, soltando ao tempo seus poemas em notas. Eles repercutiam um estímulo de marcha na serpente que vibrava ante a harmonia daquele som. Chegou rastejando e se pôs de cabeça erguida querendo alçar o seu corpo longilíneo para alcançar o mais alto do seu desejo. Mantinha-se ereta apoiando-se no pedestal de sua cauda enrolada e desenhava uma silhueta sedutora na dança que fazia para chamar a atenção do músico, sibilando. Sua língua bífida tateava a atmosfera sedutora que ansiava produzir. Por quê?

– Há tempo, vejo-te por aqui. O que pretendes, senhora cobra? – Oh, tuas melodias vibram-me o corpo e hipnotizam os meus olhos sempre

abertos. Agradam-me deveras. Quero que saibas: tocam-me a alma– Tens uma alma? Por que eu acreditaria em uma cobra?– Há muito me encantas. Quem és e qual o teu nome, meu querido? _ Meu nome é Jacobson. Quem achas que sou?_ Certamente és um anjo. Vives nas alturas, meu querido anjo!– Não sou o teu anjo, cobra! Mas muito me admira saber que aprecias

as minhas canções. É dom celeste, entendes? Ninguém me ensinou. Quando eu começo a sentir alguma coisa que não sei nomear, dedilho as notas e o sentimento passa.

– E o que um anjo sabe sobre sentimentos? Anjo sente dor? – Sei que há os bons, puros, próprios dos anjos. – E como sabes distinguir os bons dos maus sentimentos, se os dos anjos,

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como dizes, são somente os bons? É por isso que tocas, por que te confundes com o que se passa em ti?

– Não, senhora cobra! Toco por que me foi dado este dom. Preciso aprovei-tá-lo a contento da criação. Não vens ouvir-me? Faço-te, pois, o bem.

– Hum...não ouço, sinto vibrações. Queria ficar ao teu lado, apreciando-te enquanto tocas. Se me fazes o bem estando distante, juntos seria melhor ainda.

– Não seria má ideia ter uma companhia por aqui. Mas se não ouves, como dialogas comigo? Estranho... Vivo tão só. Ninguém vem visitar-me. Sinto-me exclu-ído do plano das entidades, só porque nasci com uma anomalia. Percebes que não tenho asas? Se eu as tivesse, voaria pelo espaço abençoando todas as criaturas que amam.

– As asas não te seriam um fardo? Sentiste alguma vez uma ardência den-tro de ti? Aquela que se sobrepões à lucidez? Não gostarias de ser um anjo da paixão, para unir os apaixonados, ajudando-os a decifrarem a língua um do outro, para, depois, se fortalecerem no amor? Do contrário, não perderias o teu tempo e a tua razão?

– Perguntas demais, confundindo-me! Não sei o que é esta ardência a que te referes, mas... Só sei tocar este instrumento, presente de batismo. Quem quereria a companhia de um anjo que só sabe tocar harpa? Nem amigos tenho. Aceitarias um anjo por amigo?

– Queres-me tua amiga?! Gostaria de voar para alcançar-te. Bater à cabe-ceira da tua cama, reanimar-te nas madrugadas febris, pois tocas nas madrugadas também, já rastejei até aqui muitas vezes, vibrando com as tuas notas à luz do luar. Sentes que alguma coisa corre dentro de ti, por isso tocas melancolias enquanto a brisa do luar te lambe a testa. Estás sempre nu neste período. Serpentes causam medo, fazemos relação com o demônio. Devoramos os que nos afrontam. Somos o símbolo do pecado. Não temes as serpentes? Eu sou má! Quando toco a minha boca...

– Sim, eu as temo! Mas me pareces tão leal! Não és uma serpente. Vem ao encontro das minhas canções quando eu as toco. Se eu souber que virás, tocá-las--ei ainda melhor. És diferente aos meus olhos.

–Toca uma das tuas canções. Quero dançar para ti, vibrando.O que pretendia? Aceitando aquela ordem, o anjo provocava com os dedos

movimentos delirantes nas cordas do seu objeto de trabalho. A serpente se con-torcia num êxtase incontido, arrastando sobre o solo parte do seu corpo. Saltava

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do chão, escancarando a sua boca, cumprindo o dever de mostrar ao mundo as suas presas por onde escorria, abundante, a sua substância, umedecendo aquela superfície sobre a qual demarcava terreno. A sua língua degustava, de longe, a rubra cor da face do anjo.

– Preciso recolher-me agora, permites-me, senhora? – O movimento da minha dança te constrange?Sem resposta, a serpente ficou observando o clarão que ele deixou em seu

lugar. O que promovia tanta claridade que lhe ofuscava os olhos? Alguns dias se passaram contaminados pelo silêncio massacrante que o anjo deixou. Não apare-cera, deixando aquele réptil incitado. Ela bailava seu corpo e silvava, fazendo pingar sobre o solo o seu veneno mortal. Insatisfeita por não ser ouvida e vista, debatia--se tentando transpor aquela construção, deixando em cada ataque obsessivo a marca da sua existência. Travou uma luta com aquelas pedras sobre pedras. Não podendo mais, rendeu-se àquela compulsão. Por que tamanha entrega? Quando pressentia o último suspiro, a sua fosseta captou uma nota musical chamando-a para a ressurreição.

– Senhora cobra, estás ai? Senti a tua falta, única presença que me alegra-va o dia. Fiquei imensamente triste por não ter-te diante dos meus olhos. Fugiste? Sabia que não te teria por amiga, por isso adoeci. Uma parte do meu corpo tornou--se estranha. Orei muito sobre as escrituras para conseguir livrar-me da fadiga que me atormentava. Preciso de ti, do teu bailado no ar, como de uma santa.

– Meu anjo, não saí daqui desde a última vez que tocaste. Entreguei-me ao fim. As tuas canções são o meu pretexto. Mas és tu o meu motivo. Estive presente. Os teus olhos não enxergam a raiz do teu império? Não foi dado a mim o dom de voar. Encontras-te nas alturas, eu ao rés do chão. Queria eu ter nascido um anjo, para deixar de conviver com espécies tão vis como as que me rodeiam.

– Não gostas dos teus iguais, por isso queres fugir de ti? Não desejas que os tire do mundo, mas que te livre do mal. Tens bondade, eu sei!

– A minha ira é sincera, e eu não fujo de mim, mas do meu estado de réptil. Escalar esta parede seria em vão. Poderia rastejar sobre o teu corpo liso, me es-forçaria ao máximo, mas não conseguiria mudar minha condição, o que me seria muito prazeroso, sentir o calor da tua escultura.

– Sentia alguma coisa diferente. Os meus lábios tremiam. Nunca, antes, havia sentido isso. O exterior queria corromper-me o interior. Travei-me em luta.

– Achas que foste acometido pelo medo de ficar só?

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– Então, eu tive medo de perder-te? Escondi-me, igualmente o meu talento musical. Não sei quanto tempo é destinado a um anjo, mas quero que saibas que não poderia sair desta existência sem ter te conhecido, incomparável senhora.

– Precisas ser desejado com o fogo da paixão, esta que te faz levantar nas madrugadas e prostrares nu nesta abertura, mas que não sabes nomear. Eu o te-nho. Acreditas que uma serpente pode desejar um anjo? Estou fraca. Tua ausência levou-me a vontade de viver. Agora, a delitescência proporcionada por tua revela-ção obriga-me demais retribuí-lo.

– Desejas a mim, um anjo? Somos de espécies totalmente diferentes. O que me dizes é nada mais do que uma fantasia bizarra. Mas... As cobras são vivas, inteligentes, sagazes. A senhora é muito boa. Confesso-te que começo a conhecer o medo. Despertas em mim aquela ardência a que te referiste. Mudaste o meu ritmo. Sei o quanto podemos, quando queremos. Queres a mim, não? Oh, divaguei num desejo incontido de ser amado, o que eu nunca fui. Vê! Não estou num templo. Estou quase nas nuvens. A mim nem preces, quanto mais oferendas.

– Estás carente. Toque uma música, meu anjo. Irei retribuí-lo agora.Novamente, obedecendo à ordem, notas jorravam das alturas compondo

um maquinismo que fazia funcionar um bailado de fricção na terra. O que se passa-va oculto lá em cima para que ele se deixasse induzir pelos impulsos da serpente, projetando uma correspondência entre terra e céu?

– O que farias comigo se eu te permitisse?– O que queres que eu te faça, farei. Serei a tua serva. – Não te quero serva. Vou recolher-me agora. Sinto-me mal. Outra vez

aquelas aflições me invadem.– Sim, meu senhor! Recolhe-te. Faze penitências, cumpre os teus desíg-

nios, eleva-te. Quanto mais alto te mostras, mais ainda te desejo. – Preciso ir e não quero. Despertas em mim um sabor diferente do ar da

vida. Tuas cores vibrantes me atraem. Apesar de me vires anjo, não tenho potencial para tanto. Quero-te, sim, como companhia enquanto toco solitário aqui em cima, acredite! O teu rastejar me fascina. Descer não posso. Tenho certeza que conse-guirás subir. Podes!

– Encontras-te em uma altura além da minha capacidade. Rastejar é a mi-nha condição. Não tentes descer. Somente asas me permitiriam chegar a ti.

– Podes tanto quanto queres. Não te deprecies, minha querida. O resulta-do do que desejas está na confiança que deves ter no teu potencial. Pois o tens.

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Conheço-te minha senhora. Tua presença e as lembranças de ti alteram-me o raciocínio. As sensações que me atormentam as noites têm o teu nome, Rainha dos Anjos. O caminho que escolheres para segui-lo, vendo nele a luz, ali estará a tua verdade, e ela te libertará. Eu te espero, dividirei contigo a altura que me foi concebida. Emprestar-te-ei os meus olhos para que, através deles, vejas o que corre pelo universo.

– Desperta em ti a paixão. Falas parecendo ter propriedades sobre o as-sunto. Começas a conhecer outros sentimentos, meu senhor. És uma entidade. Promove um milagre. Leva-me a ti.

– Terás as asas que quiseres ter, se acreditares que conseguiras tê-las. De-seja-as com força e promove a tua metamorfose. Chegarás. Vem, eu preciso de ti!

– Senhor, meu anjo, desejar-me colocaria a tua essência à prova. Apesar de as tuas palavras serem claras e seguras, pareces estar sob o domínio da fantasia.

– Senhora, o desejo desconhece proibições. Serás minha tanto quanto a fé é do meu Senhor. Conhecer a verdade é descobrir o sentido da vida. Advogo por ela.

– Falas em fé?! Acredito que a tens em demasia. Rio ao mesmo tempo em que me atormento. Vejo-te criança e falas como gigante, embriagando-me.

– O que fazes de mim? És, pois, a minha sombra. Andas ao meu encalço. Se aí embaixo eu estivesse, lamber-te-ia os pés, posto que não os tem, todo o teu corpo esguio, por compensação.

Aqueles impulsos, por ambos questionados, dominaram a situação, e as motivações celestiais conseguiram transformar o biotipo da serpente. Quanto e até onde a crença pode arrastar o crente? Teve a sua temperatura alterada, des-pertando sensações incríveis naquele réptil ao ponto de não mais sentir as suas presas, devido ao grande esforço de pensamento que fizera para que chegasse à transformação que a levasse ao sagrado. O seu veneno parou de pingar. Melodias, as melhores até então nunca ouvidas pela natureza, eram ensaiadas pelo anjo, para celebrar a conquista que ambos tanto almejavam. Não tendo medo algum de se entregarem àquele encantamento, a serpente transcendeu e as suas asas apareceram um dia, enquanto o sol namorava o horizonte. Entorpecida naquela realidade, ela tremia a sua nova fragilidade.

– Percebes, meu senhor, que passo por transformações? Conseguiste pro-mover o teu milagre. Chegarei até ti para depositar em tua boca o meu beijo, em seguida arrancar-te a puríssima virgindade.

– Rainha dos Anjos, foste audaz. Estive contigo, vibrei no mesmo plano, por

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isso conseguiste tão belo feito. Sobe. A altura te espera. Traze-me uma pedra que brilhe. Ela pesará sobre a nossa história. Serás o meu Anjo Custódio.

Não questionando aquele pedido, saiu à procura da pedra e lapidou-a. Num esforço incrível, forçou uma subida e caiu na primeira tentativa.

– Não faças desta pedra um obstáculo. Terás que subir com ela, senhora. – Para colocar na tua boca o meu beijo, esta pedra não será pretexto para

desistência, mas tão somente outro motivo para a minha estada na altura. Concentrada no seu objetivo, abocanhou a pedra, forçou outra subida, e

quando chegava no alto faltaram-lhe as forças. Jacobson agarrou-a, deixando cair a sua harpa, que foi batendo nas paredes daquela fortaleza, chegando esfacelada no chão. O anjo sentiu a perda do seu bem precioso, mas não deixou que a sua aflição atrapalhasse aquela apoteose.

– Disse que conseguirias, serpente! Atravessa o umbral da eternidade agora. – Meu senhor, me chamas serpente? Fiz-me diferente para alcançar-te.

Não me vês também um anjo? É grande a claridade aqui, quase machuca a minha visão. Trouxeste-me ao teu patamar, acreditando em mim o que eu não supunha existir. Na minha fraqueza fizeste-me forte. Aqui está a pedra que pediste. Nesta altura em que te encontras, há mais aberturas por onde podes ver outros lados do mundo! Julgava apenas uma. Tocavas nestas outras fendas também, quando não tocavas para mim?

– Todas as aberturas são queridas. Conseguiste esta. A claridade é o teu ponto de vista. Do mundo que vieste não vias a vida girar?

– Não! Via apenas a vida subir e ganhei esta passagem. Tudo o que mais desejo é beijar-te. Subi aqui para isso, meu senhor.

– Não! Primeiro promove a realização dos sonhos que me ensinastes a so-nhar. Passeia sobre o meu corpo sem saíres dele. Arranca-me a virgindade, dá-me o prazer de conhecer a tua paixão neste nosso delírio.

– Não sabes nada sobre prazer, meu anjo. És ainda uma criança e eu te tra-rei à vida. Quererás, depois deste momento, ser o anjo da paixão como te propus. Vejo-te tão igual a mim. Tens o corpo tão quente quanto o seio que amamenta a criação.

Ele esquivava a sua boca das investidas dela. Naquele momento de entrega mútua, a serpente gemeu revelações de amor e os corpos se entrelaçaram. Não dava mais e ambos se pediam. Jacobson saboreou a boca da serpente cravando lhe as suas presas mortais, injetando nela o seu prazer, arrancando-lhe a língua.

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Transmudando-se ao seu estágio primeiro de víbora, Jacobson condena-a, tentan-do emparedá-la no poço interno, para juntar-se aos muitos restos de outras vítimas suas.

– Ficarás eternamente lá, na raiz do meu império, arrastando-te sobre os restos dos teus iguais, por castigo, por teres traído a tua espécie, amando, cobra idiota! Concretizaste-me anjo a partir da tua visão ilusória. Soubesses de ti, terias entendido o meu nome. Faço o que fiz para honrar a minha raça. Não traio. Eu cumpro com propriedade, por experiência. Com esta pedra pura que me trouxeste, aumentarei este monumento que tanto vislumbraste. Respondo tuas perguntas?

O que a serpente desejava dizer naquele momento?Cessado o seu trabalho, ele jogou-se do alto e saiu rastejando. Adentrou o

seu berço e desapareceu sem olhar para trás, como sempre faz. Sem ter atingido o solo interno da torre, a serpente jogou-se para alcançá-lo, mas o seu corpo alado de ilusões plainou no clarão das alturas. Ali, permaneceu buscando uma canção, até o tempo de enxergar Jacobson lá embaixo, entregue ao pé daquela fortaleza. Ela o supôs velando.

Caindo, porém, em si, a queda dela foi evidente. E como pedra, um réptil sobrepôs-se ao outro.

*Rita de Cássia Zuim Lavoyer mora em Araçatuba-SP, é formada em Letras, escritora com vários livros, militante contra a prática do bullying. E-mail: [email protected] . Seu blog: http://ritalavoyer.blogspot.com

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O Loiro e o “Ouro Negro”

Larissa Alves* – 3.º lugar – categoria regionalAraçatuba-SP

O uve-se um grito: - Pega essa! Loiro, presta atenção! Pega de canhota e toca baixinho! O menino franzino teve um segundo de dúvida e correu para atender a

ordem do companheiro. Viu Pretinhos receber bem a sua passada e perder o gol... Puxa! Quase! Era para ter sido um gol lindo... Ficou olhando ainda o menino chutar o chão com a chuteira remendada e gasta. E enquanto a bola ia deixando os limites do jogo ficou olhando para o estranho ritual de virar o boné de lado e beijar o dorso da mão - três vezes: dizia que era pra espantar o azar.

Pensou naquele apelido. Pretinhos era ruivo, de sardas e tudo o mais... E o apelido esdrúxulo ganhara quando, aos três anos, descera a rua gritando: eu vi os pretinhos da pretinha da D.ª Jocê! Eu vi, eu vi.

Bem, a pretinha da Dª. Jocê cansou do emprego de doméstica e das indis-crições da molecada e, em um belo dia de sol, botou o pé na estrada: ia ser cantora de rádio lá na capital. A meninada ficara triste... Mais ainda o marido da patroa.

Loiro pensou no próprio apelido: ainda não se acostumara e, às vezes, es-quecia-se de responder. Já não estava mais na escola perto da igreja dos patos. Mudara de lá e ia se acostumando no seu primeiro ano na escola nova, que era pú-blica e mais perto de casa. Nova escola, novos companheiros e novo apelido: Loiro.

Antes, era o Gato, por conta de uma mancha de cabelo preto, logo acima da orelha, que se destacava nos cabelos loiros muito claros. De xampus a bonés, a mãe havia tentado de tudo antes de reconhecer que teria que conviver com aquela diferença. Quando alguém lhe perguntava, brincava, dizendo que nunca perderia o filho em uma multidão. “Não tem graça, não tem graça”. A criança saía repetindo enquanto se afastava dos curiosos. É, estava feliz por terem mudado o apelido.

Agora tinha que se acostumar ao novo, que soava mais como um nome de guerra e que recebera logo nos primeiros jogos da turminha. Os meninos estranha-ram no começo, um menino alto e franzino, de olhos cor de mel, cabelos muito cla-

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ros, de um loiro quase suíço e que trazia de um lado da cabeça uma mancha preta de cabelos lisos e arrepiados, formada por alguma estranha norma da natureza.

O corte de cabelo que a necessidade de ir ao barbeiro mais barato da ci-dade lhe impunha, aumentava o efeito da diferença. Mas tudo bem. Assim que a novidade passou, Loiro foi esquecido pelos outros de sua sala, misturando-se aos demais e o novo apelido veio naturalmente, gritado pelo capitão do time no primeiro jogo e repetido pelos outros dali em diante.

Levantou-se e limpou o pó vermelho da calça desbotada. Era a terceira vez em que era derrubado por Cojó. Olhou feio para o piá, sentindo que o sangue co-meçava a lhe esquentar, deixando as bochechas vermelhas destacando-se na pele muito clara. Não gostava de briga, mas também não fugia da necessidade. Dava um boi para não entrar e uma boiada para não sair - não entendia muito bem o que ouvia o tio dizer nos domingos à tarde, mas gostava de repetir. Coçou a cabeça e aprumou as costas e o queixo. Queria passar indignação.

Encarou firme para o guri, estufou o peito. Era magro, mas tinha boa es-tatura e os ombros largos junto com a camiseta grande, criavam uma figura que impunha respeito. Por um segundo, pareceu que o outro ia encarar e Loiro respirou forte, esperando pelo movimento do adversário, mas Cojó olhou de soslaio, com o olho direito e depois com o esquerdo, passou pelo garoto à sua frente, uma vez e meia seu tamanho, e de canto ainda pôde perceber o olhar belicoso dos outros jogadores do timinho visitante.

Todos esperavam sua reação e ele percebeu que estava em desvantagem. No fim... Desistiu de suas intenções, fingiu uma torção e saiu mancando com o pé errado.

Loiro ficou vendo seu agressor atravessar o campinho esburacado, colocar--se atrás da enxada que marcava o escanteio e sentar-se na pedra caiada. Suspirou sabendo que não adiantava pressionar o Zé da Garrafa, o juiz daquele campeonato. Ele não conseguiria colocar uma linha na agulha, não enxergava os nomes dos ônibus e pedia a bênção para o dentista da ladeira das viúvas, quando ia à igreja.

Além disso, só era juiz porque ninguém o queria no time. Suspirou de novo, às vezes, a tranquilidade vale mais do que a justiça, pensou. Sem falar que estavam empatados até agora, sem nenhum gol. Colocou a cabeça no lugar e viu qual era seu verdadeiro desafio ali. Ele viera para jogar futebol e era isso o que iria fazer.

Loiro pensava que as pessoas brigavam muito, e por coisas muito pequenas criavam feridas muito grandes, com suas palavras grosseiras e sua falta de con-

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trole. Ajeitou a camiseta muito grande e alongou os braços atrás das costas. Era só um joguinho com a meninada, não valia à pena brigar.

Olhou à sua volta. Tudo estava parado à espera da substituição. Reparou que o pessoal já não estava tão beligerante. O zero a zero, sem grandes lances e sem uma briga feia fazia o jogo perder a graça. O pessoal tentava convencer o garoto ofendido a voltar para a sua posição. Ele não vai encrencar... É só você maneirar um pouco... Tudo bem, sabemos que foi sem querer... E blá, blé, bló...

Loiro também pegara leve porque Cojó era filho do professor de gramática e, apesar de ser menor do que o resto da classe, costumava soltar ameaças vela-das e ninguém queria tirar zero na prova.

Era bom sentir-se grandão... Mas sabia que ser menor tinha suas vanta-gens. O maior não podia bater e o menor não podia apanhar... O menor sempre tinha febre e ganhava o último pedaço do bolo do domingo... O menor não tinha que acompanhar a avó à missa, porque, afinal, era muito pequeno... O menor não tinha que ir pra escola nem fazer lição de casa. Mas, afinal, por que é que a gente crescia mesmo?

Sacudiu a cabeça para esvaziar os pensamentos. Isso porque, às vezes, fi-cava tonto de tanto pensar e por que o pessoalzinho já estava voltando para o jogo.

Cojó também veio, já não mancava mais, mas alisava o joelho como se hou-vesse uma lembrança, uma cicatriz de guerra ali. Olhou para Loiro sem, no entanto, sustentar seu olhar. Loiro fez um sinal com a mão dizendo ao menino que deixasse para lá. E ficou olhando enquanto o menino avançava lentamente.

Colocou-se em sua posição e olhou para o lado, olhou o campinho marcado com instrumentos estranhos, enxada, cordinha de varal, mais poeira do que grama e as traves que estavam enferrujadas e em que em uma faltava a rede (por isso sempre sorteavam o lado do campo com uma moeda), olhou para os companhei-ros, acabara de entrar para o clubinho e ainda não podia dar sua palavra por eles, não os conhecia o suficiente ainda, mas em um jogo de futebol você conhece as pessoas de uma forma melhor do que vivendo ao seu lado por anos. Por fim, con-centrou-se no garoto ao seu lado, tinha que marcar o menino das chuteiras novas.

Olhou bem para elas. Olhou o garoto de roupas limpas, o único ali que não estava coberto pela poeira vermelha. Estudavam na mesma escola pública, mas ele era o filho do dono da farmácia e todo o timinho comentara quando ele chegou ali com chuteiras brilhantes e novinhas. Era a inveja geral. Já fazia algum tempo que todos eles descobriram que elas não viriam pelo Papai Noel (como acontece com

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todas as crianças que crescem um dia). Este menino sempre aparecia com algo de novo nos encontros e brinca-

deiras da turminha, mas não era sovina, sempre dividia os brinquedos com todos, e foi então que os outros meninos repararam que o menino limpinho era mesmo um tremendo azarão. Nunca pegava na bola, nunca acertava um passe, perdia a marcação e era tão ruim, que os meninos do outro time raramente perdiam tempo com ele, nem falta ele sofria. Foi com muita generosidade, assim, que substituíram a frustração pela compaixão e decidiram unanimemente que um menino com tão pouco talento tinha que ter alguma compensação. E renovaram sua fé na justiça divina.

Reparou de novo nas chuteiras do outro e olhou para os próprios pés. O “conguinha” azul, desbotado e coberto de poeira aguentava firme mais um semes-tre, embora mostrando que, como todos os anteriores, iria abrir e rasgar bem em cima do dedinho. Ter uma chuteira garantia uma enorme vantagem competitiva (se estivesse nos pés certos) O “conguinha” calçava praticamente todos do time e todo mundo concordava: de conga não dava pra correr atrás da bola e, se estava correndo, não dava pra parar.

Loiro tinha um sapato novo, preto e engraxado, cujo solado ainda estava novinho, que era o sapato de domingo, mas fazia andar devagar porque a fivela incomodava e marcava o peito do pé. Um dia pedira ao pai, que era sapateiro, para retirá-la, mas ele lhe explicou que o sapato seria danificado. Por isso, depois da bronca que levara uma vez da “Baba” por ter ousado ir à missa de conga, decidiu que caminhar quatorze quadras não era um sofrimento tão grande assim, além do alívio de tirá-los depois.

Lembrou-se da bronca de um mês atrás. Outra bronca que ainda lhe doía na lembrança. Pensou em como tudo era injusto e em como um sonho se desfaz em menos de um dia.

O tio veio para o feriado, lá do norte do estado, trazendo notícias dos seus outros dois irmãos. Ele e o irmão caçula gostavam de ouvir, mas sempre pensavam na sorte dos outros. Para eles, dentro da sua perspectiva, no internamento da mãe, quando a família teve que ajudar com as crianças enquanto o pai ia com a espo-sa para resolver os aspectos burocráticos da hospitalização, dois de seus irmãos tinham ido com a parte rica da família. Rica na perspectiva de seus 11 anos. Da mesma forma que ele pensava que era rico seu tio. Quando ficasse adulto, iria ver que um gerente de banco estava mais pra classe média. De qualquer forma, o tio

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sempre trazia presentes e doces. E quando ia embora, costumava deixar um troca-do para cada um e a vontade em cada um de seguir junto com ele.

Bem, esse tio foi o mais próximo de papai Noel que o Loiro conhecera e trouxera desta vez o par mais brilhante, a chuteira mais perfeita, um par de kichu-tes.

Tudo ficou para depois. Os doces, as notícias, o café com bolo que a avó tinha feito.

A criança abriu a caixa devagar, curtindo a sensação gostosa, prolongan-do ao máximo o prazer, como quando deixava o chocolate derreter em sua boca. Sentiu a textura, colocou os cordões, aproximou o rosto para sentir o cheiro do brim e da borracha nova. Um perfume de que ele se lembraria muitos anos depois, porque cada sonho tem o seu perfume e nunca se esquece o perfume de um sonho realizado.

Era sábado e o menino já fizera a lição. Almoçou rápido, comeu a partida de abóbora refogada que a avó colocara no seu prato. Não brigou, quando viu o caçula usando seu chaveiro da sorte e olhou pelo menos cem vezes para o relógio da sala esperando a hora de poder sair para a rua.

Quando a avó deu a permissão, já estava com a mão na maçaneta da porta de trás (porque pela frente só as visitas), trazia nos pés o ouro negro.

Loiro viu a turminha reunida na esquina. Caminhou devagar, pois ainda provava a sensação da chuteira nos pés. Quando chegou perto, parou e ficou es-perando, de braços cruzados e um sorriso misterioso. Os meninos olharam, seus companheiros perceberam rápido, chegaram perto e logo formaram um pequeno círculo e se formou o zum-zum-zum...

Loiro começou a explicar:- É, ganhei hoje. Foi, foi daquele meu tio. Pode ver: é nova mesmo! Olha as

travas e sente o cheiro.Passada a emoção da novidade e combinada a brincadeira, Loiro correu

para os fundos da casa da avó e, debaixo da casa e de perto das gaiolas tirou o carrinho de rolimãs.

Tinham passado a semana terminando de incrementar: novos rolimãs (é que o ajudante da oficina estava de férias e ficou mais fácil para os meninos conse-guirem os recursos... Da maneira alternativa que sempre faziam, mas sem precisar fugir às pressas do dono que agora não podia vigiar tão bem o armazém detrás). Além disso, Loiro tinha reforçado a parte da frente e o carrinho ganhara novo ali-

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nhamento. Era a hora de ver quem era o melhor.Todos se colocaram em posição. Diferente do futebol, ali era cada um por si,

embora, às vezes, tinham seus pares, com quem dividiam o carrinho, os esforços e a glória. Loiro estava sempre sozinho, seu irmão caçula ficava na calçada torcendo. Tinham tirado a sorte no palitinho e depois das três corridas que completavam toda a prova, Loiro ficara em segundo lugar.

A corrida funcionava assim. Em um primeiro momento, todos os carrinhos tinham que ser inspecionados, ali todos eram iguais e não valia a ajuda de adultos. Subiam até a ladeira entre a rua da Igreja e a rua da casa da mangueira, porque era a mais íngreme e não tinha muito movimento (bom, naquele tempo, a cidade inteira não tinha). Eram oito corredores, por isso formavam duas linhas de quatro carros e sorteavam no palito quem ficava na frente e quem iria para trás. Faziam três corridas, na primeira, quatro eram eliminados, na segunda, dois, e na última corriam apenas os que ficaram e tinha-se um ganhador.

Loiro passou por todas, teve a sorte de largar na linha de frente, mas no meio da descida da última corrida, alguma coisa fez o carrinho pular e isso deixou uma vantagem para Vadinho chegar na sua frente e ser o vencedor desta vez.

Isso não seria realmente grande coisa se fosse visto do ponto de vista de um adulto, pois as crianças repetiam essas corridas quase todos os dias, mas perder sempre deixa um gosto amargo na boca. E não importa quantos anos você tenha, principalmente se for um menino, mesmo que seja um grande menino ou um menino grande, vai doer.

Não muito satisfeito e ante o fim das luzes da tarde, juntou seu orgulho, o resto de vaidade e o carrinho que precisaria de novos reparos e entrou na casa da avó, batendo o portão que não fechava direito, atrás de si.

Estava cansado e frustrado por não ter o primeiro lugar, mesmo assim, não tinha noção do desastre que estava por vir. Não teve nem tempo para se preparar, pois quando abriu a porta e entrou na cozinha, a avó mal passou os olhos por ele, já levantou e sacudiu as mãos com água e sabão, e o Loiro só percebeu a dimensão do desastre quando ela arregalou os olhos até colocá-los quase para fora do rosto e começou a gritar:

- O que aconteceu com o seu tênis novo?!?!?! E no meio de uma torrente de palavras, em que se misturavam duas línguas e que batiam e voltavam contra o estado de choque do menino, ele ficou ali parado, segurando ainda a porta dos fundos, sujo e suado, sem entender direito o que acontecia.

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A avó não parava de gritar e de sacudir as mãos, o sabão caindo por toda a parte e o menino tentando se recuperar do susto. Só então, Loiro olhou para seus pés e o que fora um momento de sonho, virou em uma coisa preta, suja, deforma-da, e com a sola totalmente gasta, mostrando a parte de uma unha do pé esquerdo.

Só então, Loiro percebeu o preço de ter um freio eficiente e o cheiro de bor-racha. E as orgulhosas marcas no chão da ladeira foi o que restou para consolá-lo.

Olhou de novo para o kichutes: olhou bem, levantou um pouco o pé e virou. Desligou a voz da avó que repetia alguma coisa sobre ser responsável e cuidadoso, e praguejava na sua língua natal, “será que não entendia como era difícil comprar as coisas, e blá, blé, bló...”, pensou com alívio, que guardara o conguinha... Sen-timental, talvez...

E uma emoção deliciosa veio com a lembrança do espanto dos meninos quando haviam visto as chuteiras novas e as marcas no chão que pareciam marcas de um carro.

Isso, esta lembrança, ninguém poderia tirar dele, ninguém, nunca!Todos têm seus momentos de glória, ele teve um domingo inteiro.

*Larissa Firmo Alves Marzinek está em Araçatuba há menos de dois anos, procedência de Curitiba-PR. Professora de Filosofia do Direito, possui artigos publicados nas áreas de Direito e Administração. Escrever textos literários é passatempo.E-mail: [email protected]

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Iluminados

Júnior Viana* – menção honrosa – categoria regionalAraçatuba-SP

C aminhavam pelas ruas, desvairados, olhando para os próprios dedos, aper-tadores insones daqueles objetos estranhos e reluzentes. Pareciam per-didos, alienados, expostos ao devir e, ao mesmo tempo, distantes de seu

próprio eu. Aliás, não se podia perceber ao certo onde firmavam seus olhos, se firmavam em algo, algum lugar ou coisa. Na verdade, pareciam nada olhar. Seus dedos? Seria um grau de autismo não condizente com suas outras posturas, apa-rentemente naturais. Aquele objeto estranho? O que de tão importante aquilo lhes mostrava? Sim, deviam olhar para o nada. Mas, como olhar para o nada olhando para algo? Cabeças vazias... Típicas daqueles dias desprovidos de descanso, dos quais mal se espera o fim para enfim, olhar para o nada. Mas ainda não era o fim, pelo menos do dia. Não! Restavam ainda algumas horas de trabalho, ou de estudo, ou do que for, para depois, aí sim, chegar o tão aclamado descanso.

Continuavam a andar, com pequenos lances de olhar para os lados, como

os de quem foge. Fuga? Seria a cena realmente uma fuga? Mas de quem fugiam? Às vezes de seu próprio eu... De sua própria realidade... Ou daquela que os cerca. Fugidios ou não, prosseguiam. Mas para qual rumo? Não se sabe... Afinal, prosse-guiam ou seguiam? Prosseguir leva a entender continuidade, e essa possibilidade os olhares desatentos anulavam, visto a aparência de um nada interior. Já seguir, é mais provável, ao se levar em consideração o fato de que quem nada tem, a algo segue. E, se seguem, é porque admiram. Contudo, ainda não se sabe.

Seus passos se entrecruzavam aleatoriamente, como folhas secas soltas em meio a redemoinhos. Ora... Passos vazios... Como suas cabeças! Pisavam fir-mes sobre o nada acima do chão. Pisavam leves sobre o tudo abaixo de seus pés. Era como se flutuassem entremeio à complexidade existencial e à banalidade funcional do ser. Ser... O quê? Como sacos vazios, acima de nossas cabeças e

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cheios de nada. Estampados por marcas, produzidos em escala e arrastados pelas alças quando cheios daquilo que nada lhes restará. Vagos... Vazios... Vagantes... Viajantes solitários, enfiados em meio à massa... Que os arrasta... E os oprime, e os espreme, e os deprime.

Rimas... Poesia! Ainda existe... Arte? Seguem rumo à luz. Mas não há túnel. Há apenas o fim. E quanto à luz, está

em suas mãos. E continuam a olhar para ela, permeando aquele objeto estranho. Seus dedos, já não bastam o de uma mão. A necessidade é tão violenta que ambas se colidem em gestos ásperos e velozes, apertando vorazmente aquilo escondido e reluzente entre as brechas de seus dedos. O olhar atento, incólume, sacro, insosso. Destemperado, já não vê mais nada. Tudo é nada! Importa apenas o que lhe está às mãos e já nem vê quem lhe estende, à frente, a mão.

Os olhares fixos, cada um em sua luz, não se cruzam. Olhos nos olhos... Ainda existem outros além dos meus? “Eu me basto”, diz o livro – “seja você mes-mo”. Em meio à autossustentações e afirmações, prevalece a luz. Siga-a! Ela é o grande guia. Nada mais o é! O outro já não há, a não ser por tropeços involuntários, incomodantes, afinal não há mais toque. Tocar em outro como eu? Não... Remoto demais para nossa realidade. Basta a luz, a mais nada! O toque sobre ela... É ela quem me diz o que é ou não é, mesmo sendo eu o seu “não”.

O outro, mesmo já não sendo, ainda o é, pelo menos para si. E se cada um é para si, tem de se conformar com o outro. A isso, um dia, chamou-se convivência. Assim, alucinados pela luz, convivem ou tentam. Mas não se tocam! Mesmo juntos. Entre olhadelas e grunhidos permanecem fixos na luz. É como um coro silencioso, no qual todos fazem o mesmo, sem, portanto, aparentemente fazer algo. Perma-necem. Ou perecem, um a um, lado a lado. Comparsas e opositores. Rumo a ela, rumo à luz. Cada um na sua, ou para a sua.

Logo ali, na mesa do bar, quatro luzes se confundem em meio a oito mãos que as esmagam, mas não se tocam, senão aos pares. Conversa, não há. Pelo menos por palavras proferidas. Mas quem sabe, pela luz. Parece que elas se comu-nicam. Algo estranho, pois não há vida ali. Então, como essa “palavra de dois”, esse diálogo? Só se levarmos em consideração a função morfológica do A, negando o vínculo entre o Di e o Logos. Aí sim, um não-dois, mas um. O um luminoso e não vital. Virtual. Mas longe da possível explicação do “all” de toda, como uma espécie de virtude total. Longe disso... O um da luz escurecedora do Di que nos faz um. Um esse, não de único, mas de unidos, dependentes concomitantemente. O um

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proveniente da somatória do eu, com o tu, com o ele, rumo ao nós. O um que une e aquece a frieza de tentarmos permanecer um.

Ora, naquela mesa não há som. Apenas o uníssono toque de quarenta de-dos sobre as quatro luzes difusoras. Olhos para o centro, para baixo. Olhos não nos olhos.

Isso não há. Pai, mãe, filho e filha, a velha e antiga única família, unida e desunida pela luz. Mostram-se apenas os eus desconexos dos seus, mas sem os nossos. Apenas um de cada vez, e ao mesmo tempo. Uma única mesa, quatro entes separados pela luz sedutora de olhares. Olhares para o centro. O centro da mesa. O centro das mãos aos pares. O centro da luz de cada um. O centro de seu próprio eu já distante. Distante de si e do outro. Distante da luz. Diante do túnel, sem luz, que leva a escuridão do desconhecer de quem sou.

Mas o que seria um? Caberia aqui relação com a palavra humanidade, na qual tomamos o Hum, como os dos talões de cheque, somados à unidade? Seria a humanidade uma somatória de Uns em unidade, juntos ao H que proíbe a inclusão de algo antes do próprio um? Seríamos então os primeiros, únicos e imutáveis? À nossa frente nada mais existiria, nem mesmo a luz? Seríamos os mais valorosos e infalsificáveis? Sim... A luz não exerceria mais poder sobre nós. Nossos olhos novamente se olhariam, nossas mãos se tocariam, pronunciaríamos palavras uns aos outros. Seríamos um, final e unicamente, um!

A luz já cansa meus olhos, mesmo atrás das falsas lentes de descanso. Meus dedos já desgastados procuram uma forma de findar essas palavras. Meus grunhidos de cansaço e sono ecoam pela sala. Aqui, apenas eu. Eu e a luz sob o som do silêncio e do apalpar de meus dez dedos. Cá estou, diante da luz, prostrado ante a ela. Olho para o centro da mesa. Não emito palavras. Vejo o mundo e ao mesmo tempo nada vejo. Apenas a luz e minhas mãos se digladiando sob ela. O si-lêncio me invade, ao tempo do finalizar de minhas palavras insones sob a luz da luz.

Silêncio... Luz... Eu... Palavras... Um... Meus dedos... Um... Um... ? ... ? ...

* Deusdedt Viana da Cruz Júnior mora em Araçatuba, é músico, produtor cultural, gosta da arte em todas as linguagens, jovem de 31 anos, bacharel em comunicação social, editor de revista, com livro publicado.E-mail: [email protected]

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Incondicional

Laís Simone Sandrigo*- menção honrosa – categoria regionalBirigui-SP

C heguei eufórico da escola naquela tarde. Nossa professora, a senhora He-lena, havia passado um dever de casa um pouco diferente e eu estava ansioso para contar a mamãe e pedir sua ajuda com o trabalho.Deixei minha mochila sob o sofá, ao lado de Catarina, minha irmã mais

nova, que assistia a seu desenho favorito na TV. Caminhei até a cozinha, onde ma-mãe mexia alguma mistura na panela, e o aroma da comida se espalhava por todo o cômodo, fazendo meu estômago dar pontapés desesperados. Cerquei sua cintura com meus braços e recostei a bochecha em suas costas, apertando-a levemente.

– Olá David – ouvi sua voz macia assim que ela tocou uma de minhas mãos – Como foi seu dia, querido? – soltei seu corpo, e me sentei em uma das cadeiras, relaxando as pernas que doíam devido ao longo caminho que fazia a pé do colégio até em casa.

– Legal, mamãe... – batia meus dedos na mesa em um ritmo frenético, esperando que ela fizesse mais alguma pergunta.

– Nenhuma novidade? Você devolveu o livro da biblioteca? Eu o coloquei na sua mochila. Ah, aliás, quando será a próxima reunião de pais? Preciso saber, David. Você esqueceu-se de avisar sobre a última, e sabe que eu não gosto de perder as reuniões...

Sorri sem saber por qual questão começar, mas ela parecia tão entretida com o jantar que eu resolvi responder a todas as perguntas com um “sim”, e final-mente contar sobre meu projeto.

– Mãe, tenho que plantar e cuidar de um feijão.– Um feijão, David? Pra quê? Isso é coisa de jardim de infância, e não de

um garoto de quase onze anos.– Faz parte de um projeto de ciências. Acho que vai ser divertido. Nós te-

remos que anotar sua evolução todos os dias e depois levá-lo para que a senhora Helena veja como ficou.

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– Tudo bem, querido. Mais tarde eu te ajudo com isso. Agora vá para seu quarto, tome um banho, e venha jantar. Não queremos que seu pai brigue conosco, não é? – senti a voz dela estremecida, e assenti com a cabeça, calado.

Eu sabia o quanto ela temia meu pai, e o quanto nós todos tentávamos nos empenhar para nunca aborrecê-lo, mas nem sempre dava certo. Às vezes, ele chegava tão bêbado que se trancava no quarto com mamãe, e eu podia escutá-la chorando enquanto implorava-lhe para não machucá-la. Nós nunca comentávamos sobre isso no dia seguinte ou em qualquer outro momento, mantendo o medo escondido embaixo de uma camada de acomodações e mentiras. Eu temia que ao dizer algo ou tentar defendê-la, só piorasse as coisas, e não queria ser culpado por mais sofrimento. Então, me comportava sempre bem e seguia as ordens de mamãe para nunca deixá-lo irritado.

Voltei à cozinha depois de um tempo, com os cabelos ainda molhados e cheirando a morango, graças ao xampu que eu costumava “pegar emprestado” de minha irmãzinha. Ela tinha apenas quatro anos, mas era bem esperta pra uma garota com tão pouca idade.

Catarina, que estava encolhida em uma das cadeiras, esticou os braços em minha direção, assim que me viu entrar no cômodo. Abri um sorriso afável, obser-vando-a por alguns instantes. Eu tinha que concordar quando todos os conhecidos e familiares comentavam sobre o quanto ela e mamãe se pareciam. Nossa mãe era pequena, com uma estrutura tão frágil que ao abraçá-la era possível sentir cada osso de seu corpo. Mas ela não tinha uma aparência doente ou algo do tipo. Era bonita, tinha as maçãs do rosto sempre bem avermelhadas e olhos castanhos, exatamente na mesma tonalidade que seus cabelos. Esses, por sua vez, caíam em fios retos na altura dos ombros, e estavam sempre bem cuidados e com um cheiro bom de algum tipo de flor.

Minha irmã era igualzinha a mamãe, bem magra também, de olhos escuros e grandes, e com os cabelos da mesma cor, porém mais curtos.

As duas possuíam até mesmo características psicológicas muito parecidas. Eram amorosas, delicadas, e acima de tudo, muito persistentes. Nunca desistiam se acreditavam numa remota chance, que fosse, de algo dar certo. Nossa mãe luta-va tanto para seu casamento durar quanto Catarina lutava para ganhar uma Barbie nova no Natal. E eu admirava essa qualidade nelas, apesar de não ter certeza se queria que as coisas entre meus pais continuassem da mesma forma.

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Sentei-me na cadeira, observando clinicamente o prato sob a mesa, logo a minha frente. Nessa noite tínhamos arroz, feijão, e bife acebolado. Fiz careta, reti-rando algumas rodelas de cebola frita e colocando-as no canto do prato. Mamãe mantinha-se fiel à ideia de que um dia eu fosse aceitar aqueles alimentos, e sorrir ao final da refeição. Eu poderia até sorrir, mas sem comer aquilo.

Quando estava na minha terceira colherada, ouvi a porta da sala se abrir e depois fechar-se com força, causando um barulho alto que fez minha irmã arrega-lar os olhos. Mamãe estava de joelhos sob o chão, em frente à Catarina, tentando fazê-la comer alguma coisa.

– De novo dando comida a essa garota? – ouvi a voz grave de meu pai.Olhei-o com o canto dos olhos, estava parado na porta da cozinha, com

as mãos nos bolsos, e um semblante cansado. Mas eu sabia que tinha mais que cansaço ali. Muito mais.

– Ah... É você Fernando – disse mamãe, sem nem levantar os olhos para vê-lo, continuando com sua tarefa de alimentar minha irmã.

– Ela esta grandinha demais para isso, não acha Lorena? – podia sentir o tom insinuante em sua voz, esperando alguma brecha para começarem mais uma briga sem sentido.

– O jantar está servido, caso queira comer agora – ela disse, ignorando o comentário.

Continuei mastigando minha comida, um pouco mais rápido para que ter-minasse logo e pudesse subir até meu quarto. A presença dele me deixava inquieto, ainda mais se eles começassem a discutir.

Observei-o andar até a geladeira, sem dizer qualquer outra palavra, e pegar uma das dezenas de latas de cerveja que colocara ali. Abriu-a, tossindo seco em seguida, e voltando até a porta novamente.

– Você deveria comer algo... – Mamãe tentou ser dócil, tomando cuidado com as palavras.

– Fecha essa boca! – disse áspero, e dirigiu-se até a sala, jogando-se na poltrona de couro marrom.

Depois que terminei o jantar, deixei o prato e os talheres na pia, e decidi ir o mais rápido possível para meu quarto. Fechei a porta, e subi na cama, sentando--me em posição de índio. Os pensamentos submersos em como faria meu dever

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de casa. Não queria esperar para isso. Queria começar já, naquele exato momento.Lembrei-me de um potinho de plástico de Danone que eu usava para

guardar insetos mortos. Uma antiga coleção que eu costumava ter. Não foi difícil encontrá-lo, e depois de jogar todos os insetos – que moravam ali – no lixo, lavei--o no banheiro e o trouxe de volta para o quarto, deixando-o sob o criado mudo. Então, mesmo não querendo voltar à cozinha, decidi descer novamente as escadas e procurar por um feijão e algodão.

Não vi meu pai ao passar pela sala, mas assim que entrei na cozinha depa-rei com mamãe debruçada sob a mesa, a cabeça escondida em baixo dos braços. Eu sabia que ela estava chorando. Mais uma vez.

– Mamãe? – chamei-a.Ela deu um salto para trás com o corpo, espantada.– Ah David – tentou limpar os olhos com as mãos – Está tudo bem, filho –

afirmou com a voz baixa, e nós sabíamos que não estava.– Onde está Catarina? – perguntei um pouco aflito, lembrando-me que da

última vez que a vira ela estava ali jantando com minha mãe.– Já está dormindo, querido. Não se preocupe com isso. Porque você ainda

está acordado, aliás? – suas palavras saíram um pouco mais claras, sem o timbre choroso.

– Vim buscar algodão e feijão para o meu trabalho... Cadê o pai? – lembrei dele, por fim. Rezando mentalmente para que estivesse dormindo também.

– Ele precisou sair. Ligação urgente de um amigo – seu olhar estava fixo em algum ponto da cozinha, distante e frio.

Ela não acreditava naquilo. Tão pouco eu acreditaria. Podia até não ser gente grande, e ela podia inventar qualquer história, mas eu sabia a verdade sobre ele, sobre o casamento deles, e sobre tudo que acontecia naquela casa. Eu sabia perfeitamente que os hematomas que apareciam no corpo dela não eram causados por quedas ou acidentes domésticos. Sabia que ele passava noites foras e não era por causa do trabalho. Sabia que ele a fazia chorar, e sabia que ele preferia estar em qualquer bar da cidade do que ali, em nossa casa. E sinceramente, eu preferia que estivesse longe mesmo.

Passou as mãos pelos olhos, secando algumas lágrimas presas nos cílios, e forçou um sorriso para mim. Parecia buscar forças em algum lugar dentro de si

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para levantar-se, e demorou longos segundos para que conseguisse. Então, cami-nhou até o armário e pegou um pequeno grão no saco de feijões. Colocou-o na palma de minha mão, e disse:

– Pronto, filho. Tem algodão no armário do banheiro, em um pote lilás. Pode pegar um pedaço, e depois suba para seu quarto.

Agradeci e assenti com a cabeça. Ela acariciou meus cabelos por um ins-tante, fazendo com que eu me sentisse mais calmo e relaxado, apesar de ainda temer pelo seu bem estar. Não conseguia entender como alguém, nesse mundo todo, poderia fazer mal a ela.

Caminhei até o banheiro e achei o que precisava bem onde ela tinha dito. Enchi uma das mãos com o algodão, fechando-a em seguida. Quando estava no último degrau da escada, ouvi a porta da sala bater-se novamente.

Eu deveria continuar andando, chegar ao meu quarto, e ignorar tudo que poderia acontecer ali. Mas naquela noite, queria certificar-me de que ele não a machucaria.

Observei entre os vãos de madeira da escada, sua sombra adentrar a co-zinha, e berrar alguma palavra sem nexo. Estremeci. Não conseguia escutar a voz de minha mãe. Talvez ela estivesse quieta, ou talvez falasse baixo para ele não se alterar mais ainda. De todo o modo, fiz uma prece mentalmente para que papai do céu cuidasse dela.

Fechei os olhos com força, tentando me concentrar, mas fui interrompido por mais gritos e xingamentos. Dessa vez ouvi sua voz. Aflita, desesperada, implo-rando por misericórdia.

– Onde está? Eu a deixei aqui! – ouvi a porta da geladeira se fechar com tanta força que meu corpo deu um salto para trás, sem sair do lugar.

Ele deveria estar procurando alguma de suas bebidas, e como sempre, jogava a culpa em sua mulher. Tudo que dava errado, em qualquer circunstância ou lugar, era culpa de minha mãe. Até mesmo quando estava sóbrio tinha a incrível capacidade de humilhá-la o tempo todo, especialmente na frente de outras pes-soas, como se isso o tornasse melhor ou mais poderoso. Para mim só o tornava mais estúpido.

– Eu já disse que não sei – respondeu ela alterada, mas ainda assim pon-derando cada palavra que saia de sua boca.

– Você mexeu nas minhas coisas mais uma vez. Tenho certeza!

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– Fale baixo, por favor, Fernando. E não, eu não mexi em nada.– Quem você pensa que é para dizer como eu devo falar?Comprimi os dedos, apertando o algodão que tinha em mãos, buscando

forças para continuar quieto.– As crianças estão dormindo – afirmou ela, buscando alguma compaixão.– Não faz diferença, Lorena. Agora me diga onde está a garrafa que eu

deixei aqui.– Não sei.– Você é uma vadia imprestável mesmo! – sua voz ficou ainda mais alta,

quase em um berro. Aquelas palavras fizeram algo dentro de mim se contorcer, e doía bem mais que ralar o joelho caindo de bicicleta.

Ouvi um barulho de madeira se chocando contra o chão, e em seguida, ela gritou assustada. Então eu não pude mais controlar meu corpo para permanecer parado, apenas escutando tudo. Ignorei todo o medo e sensatez, e desci os degraus em uma velocidade quase mágica, chegando à porta da cozinha dois segundos depois.

Uma das cadeiras estava jogada, de pernas pra cima, ao lado de minha mãe. Papai tinha os olhos vermelhos, e desviaram para me encarar assim que apareci diante a porta. Observou-me por uma fração de segundos sem dizer nada, e depois começou a andar em minha direção, desviando do meu corpo e indo até a sala.

Soltei um suspiro de alivio, e corri até mamãe que estendeu os braços para mim, abraçando-me fortemente. Senti o calor e a proteção que só sentia quando estava assim, seguro em seu colo. Podia escutar seu coração bater acelerado, e então ela deixou um soluço escapar, molhando minha camiseta com suas lágrimas.

– Eu te amo, mamãe – disse em um sussurro, esperando que ela compre-endesse.

Apertou-me mais ainda, respirando fundo, e o seu “também” saiu choroso, mas não importava. Tudo que eu queria era que ela estivesse protegida, e eu estaria ali para cuidar, amparar, e curar as feridas que meu pai abria noite após noite. Eu nunca a abandonaria, e ela precisava de alguma forma tomar consciência disso. Se os super-heróis das histórias salvavam o mundo, eu queria ser o super-herói da minha casa, para salvar mamãe e minha irmã de todo o mal que pudesse existir.

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Mesmo sem saber o que nos aguardava no dia seguinte, ou na próxima semana, ou daqui um mês. Mesmo sem saber o quanto ela ainda iria chorar e o quanto eu teria que ser forte. Mas se precisasse, eu seria. Tiraria coragem de luga-res desconhecidos só pra mostrar que poderíamos superar tudo juntos.

Ali, abraçados em uma noite dolorosa e escura, fixei meus olhos em um ponto da parede, tentando encontrar uma luz no fim do túnel. Um vislumbre de fe-licidade que deveria existir, e eu sabia que merecíamos. Sem respostas imediatas, respirei fundo, sentindo seu perfume doce, e tendo a certeza de que a escuridão não iria durar para sempre.

Éramos uma família.Eu, ela e Catarina.

*Laís Simone Sandrigo, Birigui-SP, 20 anos, cursa Publicidade e Propaganda.Apaixonada por romances, gosta de escrever. E-mail: [email protected]

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O milagre

Paulo Coelho* – menção honrosa - categoria regionalAraçatuba-SP

E m um recanto do sertão conhecido por Veneno, existe o povoado do Mata Mata. De não mais que 30 casebres, incrustados em lugar horroroso e mi-serável; perdido por Deus e esquecido das autoridades.Casinha aqui, outra ali. Economia de subsistência, da terra quase infértil.Paragem de povo triste, sem eira nem beira, maltratado e sem perspectivas.

Conformados e confortados pela ignorância. Plebe feia de dar dó.Em um belo dia triste, surgiu no Mata Mata, viajante desorientado buscando

o arraial do Guariba, buscando indicação do atalho certo, resolveu pedir informe no barraco à beira da estrada.

- Ô de casa! Ô de casa!Dona Joaninha dos Piolhos, que estava em sua rede, realizando a “sesta”

pós-almoço, teve um sobressalto:- Oi, tô indo! E coçando os cabelos desgrenhados, rumou ao vestíbulo do lar.- Diga, moço?- Senhora sabe dizer a estrada pro Guariba?- Sim, sinhô, segue reto até a estrada fazê pé de galinha, lá pega o dedo da

esquerda (apontava ao tempo que dizia em direção à direita).O viajante agradeceu, e compadecido da condição lascada de Joaninha,

resolveu lhe fazer um agrado.Minha senhora, tenho aqui no embornal três ovos que catei na caminhada,

vou dar a você. Os opacos olhos de Joaninha sorriram.- Deus lhe pague! Mal o viajante deu as costas correu para cozinha e guardou com todo cari-

nho os ovos no fundo do saco de arroz. Voltou à rede, mas no resto da tarde foi impossível voltar a dormir, em sua

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cabeça agora além dos piolhos se passavam os três ovos, sonhou acordada com eles até o fim da tarde.

Na boca da noite, chega a casa seu Chico das Lacraias, esposo de Joani-nha, e é recebido com euforia pela mulher:

- Chico! Hoje um galego passô aqui e deu de presente três ovo!- Num diga! (Chico se enchendo de alegria).- Digo sim, verdade, oi cá (enquanto levantava triunfante o ovo com as

mãos).- Acredito não, mulhé, tempão num como ovo! Faiz que vou comê dois.Neste momento, a felicidade se fez desavença:- Como assim come dois? (questionou Joaninha já suspeitosa).Com um ar de autoridade justifica Chico: - Oxente, sô! Carpi o dia inteiro, mereço comê pelo menos dois!!- Não, não! Eu ganhei os ovo, eu como dois!- História é essa, mulhé?- Os ovo são meu, Eu vô come dois.- Cê fica deitada dia intero, eu na roça, eu como dois.E Joaninha já muito azucrinada retrucou:- Eu como todos três!- Como assim?- Eu como todos três! Eu ganhei os três e como todos três!- Não mesmo!- Eu como todos três!A disputa tornou-se violenta com empurrões de lado a lado e a piolhenta

que não era de fugir de briga, impeliu Chico com força, que se estatelou no chão da cozinha, Chico em um impulso de raiva se levantou agarrado em um pedaço de lenha, e desferiu com desmedida força um único golpe na fronte da infeliz. Joani-nha soltou um berro aterrorizante e foi ao chão desacordada. Chico das Lacraias se desesperou:

- Matei a mulhé! Pela porta observou que os vizinhos vinham ao socorro de Joaninha, tão

rápido quanto pode empregou fuga dali.Seu Bastião Medalha e Mané Comprido que haviam escutado o pavoroso

grito rumaram para a casa e encontraram o corpo, tentaram em vão reanimá-lo, mas Joaninha estava em estado comatoso, mais gente foi chegando e após várias

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vezes auscultarem o peito, e tentarem sentir os pulsos chegaram à infeliz conclu-são: Joaninha dos Piolhos estava morta!

Óbito confirmado, deu-se início aos preparativos do velório. Foram arriadas as redes do quarto e retiradas as cortinas que faziam as divisórias dos cômodos, aumentando assim a capacidade de lotação do barraco, foi trazida da cozinha uma velha mesa e posicionada no centro do grande cômodo, onde acomodaram a de-funta, por fim dispuseram as poucas cadeiras pelos cantos, aos pés do corpo foram reservadas três cadeiras para os rezadores.

As notícias correm rápido no Mata Mata, de desgraça então nem se fala e logo toda população confluía em direção ao velório. Cada família que chegava era uma comoção só.

A sentinela constituía-se de um ritual regido em seus pormenores: algumas mulheres chorando, outras fuxicando nos cantos, as crianças eram mantidas na cozinha do lado de fora do casebre, e os homens solvendo doses de cachaça e discutindo sobre o ocorrido.

Mané Comprido era o mais revoltado, Já encachaçado amaldiçoava Chico das Lacraias:

- Vou pegá esse desgraçado, onde se viu? Batê em mulhé? Mais vou pegá ele e mostra o que é cabra homi de verdade.

Com a noite caindo foram espalhadas velas por todo o casebre, e já com este clima mais nuvioso chegaram os rezadores, que completariam a cerimônia, gente muito respeitada na comunidade, eram eles Seu Reginaldo Mata Junta, Seu Rubão e Zizinho Perneta. Este último foi carregado da carroça e acomodado na ca-deira do centro, devido a uma deficiência física adquirida ainda na infância, quando por curiosidade verteu um tacho de água fervente sobre suas pernas, por pouco não morreu, e depois de meses com as pernas enfaixadas feito múmia e litros de bálsamo feitos por Tabajara Curandeiro se restabeleceu, mas teve como sequela as pernas grudadas, ao contrário de que todos arrazoavam levou uma vida normal, se tornou artesão, casou-se com Ermelinda Babosa e teve onze filhos.

Rezadores acomodados deram início as preces, tudo corria nos conformes, e até a rede que serviria de esquife à finada já havia sido separada.

Já na madrugada, Seu Zizinho começou a ter uma inquietação, como que pressentindo o que estava por vir, uma sensação de medo começou a apoderar- se do pobre coitado, começou a ter impressão que a defunta vez enquanto ajeitava pequenos movimentos, o forte odor de suor e aguardente misturado ao cheiro das

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velas, e o ambiente um tanto sombrio acentuavam o pavor de Zizinho, foi quando ele resolveu confidenciar seu medo aos outros rezadores.

- Tem coisa errada, seu Rubão, tem coisa muito errada aqui, eu quero ir embora.

- Deixa disso, home, não tô vendo nada de errado.- Mais eu acho que a finada se mexeu, eu vou embora.Mas foi pressionado a ficar por Mata Junta:- Pode fazer desfeita dessa não, cê tá aqui pra encomendá a finada, deixa

de história!Zizinho se conformou com a situação, voltou a orar, mas agora de olhos

fechados.Alheia a tudo e a todos, Joaninha começava a emergir do profundo sono,

gosto de sangue na boca, têmporas doloridas, tomando consciência, porém ainda desorientada.

O povoado inteiro ainda se concentrava no casebre, quando Joaninha em um movimento lento retraiu os braços e apoiou as plantas das mãos sobre a mesa, e iniciou com vagaroso movimento a alçar o tronco. Tão moroso quanto pavoroso, o movimento foi acompanhado por todos os presentes, ninguém teve a capacidade de se mover, jaziam todos petrificados, presenciavam algo surreal como que se estivessem em um sonho em preto e branco acompanhavam a cena em silêncio. Os segundos pareciam horas. Joaninha continuava a se alinhar, ascende à mesa, olhos ainda fechados, tentava se localizar, se entender. No silêncio ouviu-se a voz de Mané Comprido:

- Me caguei todo!Dos Piolhos havia terminado o movimento, finalmente sentada, de olhos

ainda cerrados, cabelos desgrenhados, sangue seco nas comissuras da boca, vieram-lhe finalmente à mente: “os ovos”, arregalou os olhos e fitando os três rezadores aos seus pés disparou com grito medonho:

-Eu como todos três!Do transe fez se o pavor, a desesperação, enfim o “estouro da boiada” fora

uns poucos que desmaiaram, todos desejavam escapar da tenebrosa arapuca que o destino lhes havia unido.

O populacho desembestado com corpos trêmulos e pelos arrepiados con-fluiu para as duas rotas de fuga: as portas do barraco, mas os átrios não comporta-vam tamanha vazão, teve gente que empreendeu fuga pelas janelas, mas era povo

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demais pra pouco buraco, então, sob tanta pressão o casebre fraquejou, as tábuas foram levadas “no peito” pelos desesperados. Uma vez fora do circo de horror, cada um desempenhava escapada da melhor forma que suas pernas vacilantes lhes permitiam. Na deslavada carreira, foram deixados para trás velhos e crianças, era cada um por si.

O grosso da horda a evadida morro acima pela estrada que ia pro Guariba entre eles estava Mata Junta que, durante a fuga, teve sua consciência pesada: Zizinho, ninguém ajudou o Zizinho.

Apresentou presença de espírito, parou e voltando-se à turma em fuga co-meçou a gritar:

-Gente, temo que voltá, a ”bicha” vai comê o coitado do Zizinho! Mas ninguém cessava a fuga, até mesmo filhos do Perneta cruzaram em

correria. Mata Junta fixou olhar nos desgarrados que vinham morro acima e sob a luz do luar foi então que, no meio do bando que subia, vislumbrou algo incrível; em velocidade espantosa, ultrapassando a todos a largas pernadas era Zizinho Perneta que gritava:

- “Volta correr, as perna despregou”. Mata Junta ainda estático acompanhou com os olhos sua passada por ele,

marcha firme, de fazer inveja a atleta de ofício, agora já transpunha os líderes da macabra maratona.

Desaparecendo do campo de visão ainda pode se ouvir:- “Volta a correr, as perna despregou!”

* Paulo Roberto Barros Coelho mora em Araçatuba, 36 anos, cirurgião dentista, tem o hábito de escrever, mas ainda não pensou em publicar livro.E-mail: [email protected]

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Uma história de grilagem

Ademar Bispo – menção honrosa – categoria regionalAraçatuba-SP

A inda é noite alta, pode-se ouvir o cricri dos grilos e o coaxar dos sapos, mas Acácio não consegue dormir. Levanta-se e vai para fora, para o terreno em frente ao rancho de pau-a-pique. Está cheio de tocos, dos coqueiros,

cortados para a construção da moradia. As folhas formaram a cobertura. Ele está com um mau pressentimento, de vez em quando tem visões ou sonhos que se transformam em realidade. Com um dos pés sobre um toco, o cachorro Tarzan ao seu lado, ele pica o fumo para o cigarro de palha. Estavam ali para proteger aquela “posse”. Eram terras ocupadas por quem chegava primeiro, geralmente terras sem donos ou sem documentos. O posseiro, quase sempre um fazendeiro, pagava para que as defendessem dos grileiros.

Os grileiros, usando capangas, invadiam estas terras e advogados inescru-pulosos falsificavam escrituras que colocavam em caixas com grilos, para que eles comessem alguns pedaços do documento e suas fezes as deixassem amarelecidas com aparência de antigas. Daí a origem do nome grileiros. Acácio conhecia esta técnica, era usada muito no seu estado de origem, no sul da Bahia, nas terras do cacau. Lá os coronéis do cacau, contratavam advogados e compravam os donos dos cartórios, para fazerem o famoso “caxixe”, e ficarem com as terras dos peque-nos proprietários.

Acácio não era do sul da Bahia, nasceu em Juazeiro, lá no alto, divisa com Petrolina. Já com o fumo picado passa a palha nos lábios para umedecer e enrolar o cigarro. Junto com a primeira tragada vem as lembranças de sua infância, ven-dendo cocada na orla de Juazeiro. Lembra-se do dia que Zé Bexiga, moleque mau, tomou-lhe os doces, mas seu irmão, Aurindo, mais velho, mais forte, viu e pegou Zé Bexiga. Aurindo segurou o moleque e ele encheu-lhe a boca de areia e tapou--lhe o nariz. Tinha de comer a areia senão morria afogado. Eram oito irmãos, cinco homens e três mulheres, a mãe não tinha condições de criar a todos e deu alguns para os parentes. Foi morar com tio Chico, no sítio, na beira do rio, ajudava o tio a

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levar os bodes para vender na feira. O tio ensinou-o a nadar... Amarrava uma corda na sua cintura e jogava-o no rio, quando estava bebendo água puxava. Na terceira vez saiu nadando.

Com dezessete anos, no dia do Natal, ele, seu primo Emílio e um amigo apanharam o vapor em Juazeiro. Dormindo em redes e comendo paçoca de carne seca com rapadura foram até Pirapora, em Minas Gerais. Ali se separaram e Acá-cio fez o percurso a pé até o interior de São Paulo, parando em várias fazendas, trabalhando uns tempos e seguindo seu caminho quando já tinha um dinheirinho.

Um estalar de galho o faz voltar à realidade. Observa, está escuro, tenta ouvir mais algum barulho... Nada. Deve ter sido alguma paca ou outro animal, Tar-zan nem se mexeu, permanece deitado ao seu lado, com a cabeça sobre as patas dianteiras. Ouve é o ronco de Mané Vitor dentro da cabana. Todos dormem. São seis, com ele, mas conhecer mesmo só Mané Vitor, que é vizinho na cidade. É um amigo, boa pessoa, mas muito medroso. Tem o paraguaio Solano, sisudo, quieto, de pouca conversa, passa o tempo todo azeitando a carabina e amolando as duas facas que traz na cintura. Ribeiro vive rindo, ri de tudo, é maldoso, ri das maldades que faz. Gosta de judiar dos animais. Um dia disse que ia cortar o rabo de Tarzan. Acácio meteu-lhe o parabélum no nariz e disse-lhe que lhe estourava os miolos... Saiu rindo.

Todos gostam de Joaquim, rapaz novo, 18 anos. Educado, respeitador, é sim sinhô pra cá... É sim sinhô pra lá, muito obediente. Tem namorada na cidade. Quer juntar um dinheiro para casarem, não participa do jogo de pife-pafe, econo-miza cada tostão. É o melhor atirador de todos. Joaquim não sabe ler nem escrever, Acácio também não, mas diz que o filho vai estudar, vai ser doutor, se não for um neto ou uma neta será.

O outro do grupo é Crescêncio, negro enorme, forte feito um touro, negro dos lábios finos, mas com um nariz achatado do tamanho de um jerimum. Feio que só a peste, com uma cicatriz que vai do lóbulo da orelha direita até o queixo. Na venda de Lurdinha, um caixeiro viajante disse que foi uma mulher, na zona de Uberaba, que fez a cicatriz. Crescêncio comeu a mulher e disse que não ia pagar. Não se sabe de onde que surgiu uma navalha com um elástico na mão da rapariga, ela lançou a navalha para cortar-lhe a garganta. Ele conseguiu desviar, mas não o suficiente. Deu-lhe um soco, no meio da cara, verdadeiro coice de mula e ela caiu morta com a face afundada. Fugiu, amasiou-se com uma velha que cuidou dele até ficar bom. Não se sabia mais nada dele e nem o que aconteceu com a velha.

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Agora o barulho não é de animal, seu ouvido treinado consegue distinguir o pisado de gente do de animal. Tarzan ergue-se, as orelhas em pé. Ele também pressentiu a movimentação. Acácio vai retrocedendo para o rancho, segurando Tarzan pela coleira, não quer que ele rosne ou dê um latido. Estava certo quanto ao seu pressentimento. Tinha chegado a hora, não sentia medo, não tinha medo de nada. Só um dia sentiu medo. Foi numa ocasião que sonhou que o filho estava muito doente. Naquela ocasião, levantou-se de madrugada, calçou a bota, pegou o revólver, chamou Solano e disse para ele tomar conta do pessoal porque ia para a cidade. Ao chegar numa encruzilhada viu um vulto esconder-se atrás de uma árvore. Pensou numa tocaia, tirou o revólver e gritou:

- Saia daí! Já te vi! A pessoa saiu gritando:- Seu Acácio, não atire, é Expedito, vim atrás do senhor e graças a Deus

encontro o senhor aqui, porque não sabia que caminho seguir mais. - O que vem fazer aqui?

- Sua mulher, dona Flora, pediu para vir avisar que seu filho está muito mal, precisa levar para outra cidade.

Respondeu:

- Isto eu já sabia.- Sabia como?- Sabia, sabia, vamos logo senão perdemos a jardineira.Quando os médicos os chamaram na sala e disseram:- Voltem, levem o menino para morrer em casa porque não podemos fazer

mais nada. Ele sentiu medo, muito medo, as pernas amoleceram, as mãos começaram

a tremer. Ficou mudo, não sabia o que dizer... O que fazer... No trem, olhava fixo para o nada, seus olhos estavam secos, o choro da mulher estava irritando-o. Não sabia rezar, no seu modo grosseiro pediu a Deus que salvasse o menino. Foi Deus que colocou seu Cassiano no seu caminho. Com três ramos de arruda, o bom ve-lhinho tirou o catarro do peito do menino e mandou a febre para o inferno.

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Entrou no rancho, acordou os homens, em silêncio. - Os grileiros estão aí, queriam nos pegar dormindo, vamos tomar posição

e fazer-lhes uma surpresa.Ribeiro olhou por uma fresta e falou, rindo: -São nove ou dez, mas burros, porque estão vindo, todos, pela frente.Crescêncio falou: - Melhor assim, é mais fácil para acertar, nem precisa fazer pontaria.Os grileiros se aproximavam, certos de que pegariam todos desprevenidos.

Um deles trazia uma tocha acesa, provavelmente iriam colocar fogo no teto e espe-rar que saíssem um por um pela porta, para fugirem do fogo.

Acácio olhou e falou: -Filho de uma égua, olha quem os está chefiando.. É o zóio torto, vejam,

aquele que até pagou uma pinga pra nós no boteco da Lurdinha. Passou a dar as ordens:- Joaquim, o cabra da tocha é seu. Solano pega o primeiro da esquerda e

Crescêncio o primeiro da direita, eu acerto o zarolho e Ribeiro atira nos do meio.Mané Vitor acordou, esbaforido, assustado. - O que está acontecendo? O que foi?Alguém falou: - Os homens chegaram, acorda cabra.Mané Vitor começou a gritar: - Tô com dor de barriga, tô com dor de barriga. E queria plantar bananeira

no meio do barraco. Acácio falou para Joaquim escolher a hora que devia atirar, ele daria o pri-

meiro tiro, depois os outros iriam atirar. O tirombaço de Joaquim pegou no peito do cabra, que rodopiou e caiu de

lado com a tocha acessa em cima. Todos começaram a atirar. Foi um tiroteio que até Lurdinha, que morava a

cinco léguas de distância, acordou com o barulho. Solano gritou: - As balas estão acabando, não vou morrer aqui dentro não. Vou lambê-los

com minha faca. O paraguaio abriu a porta e pulou para detrás dos tocos de coqueiro, pulava

feito macaco de um para o outro, com uma faca na mão e o revólver na outra. Acá-cio também saiu, o parabélum numa mão e o punhal na outra. Mas foi Crescêncio

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que fez os homens correrem. Quando viram aquele negro enorme, correr para cima deles, de peito aberto, atirando feito um louco e dizendo:

- Tenho o corpo fechado, Padim Padre Cícero me benzeu....Eles debanda-ram.

O cabra da tocha ficou, o zarolho também e Solano também cumpriu sua missão, deu um tiro de misericórdia no cabra que ainda agonizava.

O barulho do tiroteio deu lugar a um silêncio mortal, os pássaros estavam quietos, os besouros não zumbiam, uma ou outra folha das árvores caia fazendo acrobacias. A fumaça ainda permanecia no ar. Os homens se olhavam, só Ribeiro sorria.

No barraco, o silêncio era quebrado pelo choramingo de Mané Vitor, com a bunda para cima, todo cagado.

*Ademar Bispo da Silva, Araçatuba-SP, professor por formação, bancário aposentado pelo Banco do Brasil, nasceu em Mirandópolis. E-mail: [email protected]

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Vidas Mortas

Marcelo Souza* – menção honrosa - categoria regionalBirigui-SP

A única gota d’água que aquela terra recebera nos últimos meses, foram as lágrimas dos seus olhos. Lágrimas de tristeza, de sofrimento. Lágrimas de não sei o quê. Seus últimos anos foram marcados por muito trabalho. Muito

trabalhou, muito plantou, mas, a chuva não veio e as lágrimas que jorraram dos seus olhos, apesar de não terem sido poucas, não foram suficientes para molhar a terra dura e seca do lugar.

Ao olhar em volta, teve a certeza, de que, mais uma vez, tudo estava perdi-do. Não houve uma semente sequer que não sucumbira diante da estiagem. Nada brotou, nada cresceu, nada floresceu. Tudo simplesmente se perdeu, inclusive a esperança, que apesar de ser molhada com o suor do seu trabalho e com as lágri-mas de esperança, também não brotou, sucumbindo à seca.

Ajoelhado sobre a terra dura e seca, como se fosse fazer uma oração, cho-ra. Chora a falta de água, a falta de comida, a falta de esperança. Chora a falta de fé. Fé que se foi junto com a esperança de dias melhores. Com a esperança de um futuro melhor para ele, e para a sua família.

À sua volta só há tristeza e desolação, não há qualquer resquício de vida, até os carcarás foram embora, voaram para longe em busca de comida. Neste momento tenta se lembrar de quando vira pela última vez um teiú, ou um pássaro qualquer, mas, não consegue, sabe que os que não morreram de fome ou sede, também deixaram aquele local para tentarem sobreviver.

De onde ele está, consegue ver os filhos brincando, alheios a tudo, brin-cando diante da casa de taipa, coberta de folhas de palmeiras. Brincam com o cachorro Abelha, um vira-lata tão magro, mas tão magro que sequer aguenta com

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o peso da própria cabeça e com seus brinquedos improvisados, feitos de madeira, barro e restos de quaisquer coisas que pudessem encontrar. Estão felizes.

Correm, gritam, sorriem. Os meninos, três, estão magros e barrigudos. Suas roupas velhas se resumem a um calção e uma camisa, todos muito castigados pelo tempo, velhos que só, mais velhos até que eles mesmos. Mas estão felizes, afinal, nada conhecem além da miséria em que se encontram.

Quanto a ele, apesar de ter nascido e crescido naquele lugar, está cansado. Cansado de viver. Cansado de sonhar.

Sonhar com a chuva no momento certo. Sonhar com uma verde e bela plantação. Sonhar com fartura na mesa. Sonhar com uma vida melhor que nunca veio. Só ficou nos seus melhores sonhos. Aqueles do passado, de quando ainda conseguia sonhar. Para ele, tudo se perdeu. Os sonhos, a esperança, a vida. Não há mais razão para lutar, não ali. Não mais.

Por muito tempo viveu de sonho e reza. E como rezou. Toda a noite rezava, implorava para que a chuva viesse no tempo certo, trazendo consigo força e saú-de para sua lavoura. Que viesse trazer água para seus animais, água para a sua família. Água limpa e saudável. Mas, apesar de tanta reza a chuva não veio. Nada molhou, nada brotou, nada viveu, tudo se perdeu.

Sabia que a falta da chuva não era culpa de Deus ou da sua falta de fé, afinal, apesar de todas as dificuldades que passou, comida à mesa nunca faltou, a Providencia Divina sempre se fez presente, mas, agora, estava muito cansado, muito triste, muito infeliz. Não queria mais esperar. Não queria mais perder. Não aceitava mais perder. Não queria mais viver na miséria. Queria mudar sua vida, não só a sua, mas a vida de toda sua família.

Por isso tomara uma decisão. No entanto, o que poderia lhe trazer esperan-ças, naquele momento trazia-lhe somente medo e insegurança. Sabia das agruras em que vivia, mas as incertezas do futuro o amedrontavam. Ajoelhado na terra firme e seca, olhou para o céu e viu somente o sol brilhando forte, onipotente, não viu uma nuvem sequer, nenhuma brisa soprou o seu rosto, sentiu somente um mormaço, um calor quase que insuportável. Um calor que destruía aos poucos sua

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vida, um calor que destruiu por completo suas esperanças. Por isso, iria embora. Deixaria todo aquele sofrimento para trás. Deixaria aquela vida cheia de privações e provações.

Deixaria para sempre seu lar. O único lugar que conhecera como lar em toda a sua vida. Onde estavam as suas raízes, a sua vida. Mas sabia também que se demorasse muito tempo ali, suas raízes ficariam fracas e secas, e também sucum-biriam diante da seca. Como sua plantação, como seus animais.

As incertezas quanto ao seu futuro o incomodavam. Várias perguntas sem respostas povoavam a sua mente, deixando-o muito apreensivo.

Como seria o seu futuro? O que o esperava nessa nova etapa de sua vida? Mais sofrimentos? Mais privações? Mais provações?

A verdade, era ele queria somente uma coisa: dar uma vida melhor para seus filhos, para sua esposa e para si mesmo. E esta mudança poderia ser o inicio de tudo. Poderia!? Talvez!? Nada era certo. O presente, o futuro. Nada. Mas, ele tinha que começar de alguma maneira. Força e vontade de trabalhar nunca lhe faltaram. Nunca.

Vendo os restos dos animais mortos pela seca que estavam à sua vol-ta, mortos pela falta de comida, velhas carcaças espalhadas pela terra sem vida, transformando o local em um cemitério aberto no meio do nada. Vendo as árvores secas, sem vida e restos secos da vegetação que completavam a triste paisagem, rezou. Pediu proteção a Deus, ao “Padim Cíço” e chorou novamente. Chorou por aqueles que já haviam partido daquele lugar, por aqueles que ficariam ali a sofrer, a rezar, a plantar sonhos e esperanças, sabendo que nunca hão de colher qualquer um dos dois. Chorou por ele e por sua família. Chorou por sua vida.

Depois, apoiou as mãos no chão e beijou aquela terra morta, demonstrando todo seu amor por ela. Se despedindo para sempre daquele chão feio e ao mesmo tempo, para ele, tão belo.

Ao se levantar, viu sua mulher, que, na porta de casa, observava a tudo, num silêncio impassível. Ao perceber que ele a vira, ela entrou. Ele sabia que ela também sofria com todas as incertezas e privações em que viviam, mas nada dizia, nunca, simplesmente aceitava “seu destino”, em silêncio.

Olhou à sua volta pela última vez, procurando absorver cada detalhe, cada sensação daquele lugar, mesmo as mais desagradáveis para que não as esque-

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cesse jamais, pois sabia que dificilmente voltaria ali e que logo, tudo aquilo não passaria de lembranças. Somente lembranças.

Lembranças do que foi. Lembranças do que poderia ter sido.

Após esta “cerimônia”, foi até seus filhos, beijou-os um a um e os abraçou juntos, tornando-se um só corpo, um só coração, uma só vida. Sua mulher foi até eles participando do grande e terno abraço. Agora, não eram mais cinco pessoas, cinco vidas, mas um só corpo, unidos pelo amor mútuo. Depois disso, entraram to-dos na casa simples, onde, após se lavarem na água suja e barrenta, fizeram a últi-ma refeição antes da partida: caldo de feijão, farinha e mandioca. De barriga cheia, rezaram com fé, e foram dormir, afinal, antes mesmo de o sol nascer, partiriam dali, para sempre, em busca de uma vida nova, em busca de novas oportunidades, encontrando, talvez, a tão sonhada felicidade.

*Marcelo Otávio de Souza, 37 anos, atualmente mora na cidade de Birigui, onde trabalha como funcionário público. E-mail: [email protected]. Amante das letras, usa seu tempo livre para descrever a sua visão de mundo em vários gêneros literários. www.recantodasletras.com.br/autores/marcsouz.

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Contoscomissão julgadora

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Tio Lucas

Mário César Rodrigues* – Araçatuba-SP – membro da comissão julgadorado 25.º Concurso Internacional de Contos Cidade de Araçatuba.

E le me deixou no início da Paulista, ao lado do Belas Artes. Já estava acos-tumada a ficar sozinha. Tio Lucas recebera um chamado urgente, de um cliente antigo, fiel, não podia fazê-lo esperar. Pedi que me deixasse, fizesse

a corrida, depois voltasse para me apanhar.Era uma quinta-feira. Eu estava em São Paulo para o casamento da prima

Adelaide. Na sexta.O tempo estava encoberto, um pouco frio, mas, na esquina da Paulista com

a Consolação, qualquer luz tem sabor de futuro. De solução. Um poeta me disse que a Paulista, vista da Consolação, margeada pelos edifícios, faz-se uma vulva aberta para céu, uma vagina parideira de promessas. Uma fotografia indispensável a quem tem o hábito de sonhar.

Tio Lucas estava separado da Madalena havia apenas dois meses. Ele me contou que nos últimos anos conversavam pouco e sorriam menos.

Disse-me de Madalena e se calou. Como se o fato de me falar o levasse a rever seus desacertos no casamento. Alguns assuntos escolhemos para pensar. Outros tomam conta de nós e deles não conseguimos fugir. São mais fortes. Fica-mos absortos, alheados, abstraídos, com o olhar vago. O cérebro se vê tão ocupado que nos abandona.

No calçamento do canteiro central da avenida, um corpo de modelo passou exibindo toda a sua graça, seu jeito espetacular de caminhar, de se ter como se fos-se uma obra-prima de anjos artesãos. Virei-me para o canteiro, empurrei as rodas até o meio-fio. Eu e mais uma centena de vítimas olhávamos para uma mulher que devia tudo a Deus. Pernas, joelhos, quadril, peitos, nariz, cabelos perfeitos.

Eu nos via vítimas de acidentes genéticos, antropológicos, culturais, climáti-cos e, no meu caso, automobilístico. Quando percebi, uma lágrima já estava pronta.

Deus nos trata como se fôssemos um. Que eu seja feliz com a felicidade dela. Que o seu prazer de ver tudo possível seja meu. Que outra razão teria Deus

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para dar tudo a uns e tirar tanto de outros? Prefiro acreditar que Deus não tira, apenas dá. Mas não pode – ou ainda não pôde – dar tudo a todos. Provavelmente também sofra minha falta de felicidade. Talvez perceba seus próprios limites nos meus.

Difícil imaginar que Deus sofra. Mas também não é fácil entender que po-deria e não quis evitar que eu perdesse minhas pernas. Só porque alguém mostrou os olhos pro céu, estava feliz, no volante, contra o vento, quando trouxe os olhos pra esquina, eu já estava no chão.

Quando retomei o controle dos meus pensamentos, já se havia passado uma hora. Lembrei-me de que gostaria de ver um filme. Comprei um jornal para ler a respeito das estreias.

Um senhor me perguntou se eu queria ajuda para atravessar a Bela Cintra. Fiz que não e agradeci.

Tio Lucas encostou o carro antes da banca, pegou-me nos braços, pôs-me no banco traseiro. Disse-me que vira Madalena com um namorado, no aeroporto. Permaneceu alguns instantes em silêncio, apoiando-se no carro, olhando para o chão. Depois, voltou para guardar minha cadeira no porta-malas.

Um ônibus fez o vento que levou algumas folhas do meu jornal para a ave-nida. Tio Lucas correu atrás das folhas, abaixou-se para apanhá-las. Um para--choque bateu contra a sua cabeça. Que bateu contra o para-choque do táxi. Ouvi as pancadas. Barulhos graves e breves. Vazios.

*Mário César Rodrigues é professor de Literatura, escritor, dramaturgo,membro da Academia Araçatubense de Letras.

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Um urso à minha mesa

Emília Goulart* – Araçatua-SP – membro da comissão julgadorado 25.º Concurso Internacional de Contos Cidade de Araçatuba

A li existe um muro. Quando digo isso, as pessoas riem, zombam de mim. — É! De fato, ali existe um muro- repetem.

Elas têm razão, evito discutir, elas falam daquele que quase todas as casas têm. O muro do fundo, que as separam dos vizinhos, de concreto.

O que elas não entendem é que além daquele tem outro. Não sei mais o que faço, aquele muro me atrai. Estou sempre sobre o muro de concreto observando-o. Apesar de invisível, ele também é concreto.

Outro dia, estando sozinho, fui provar a mim mesmo que o muro invisível existe. Saltei para o outro lado e lá estava ele, toquei-o, queria ter a certeza de que não era uma alucinação. Cheguei mesmo a tentar, de um modo súbito, arrancar um pedacinho de concreto e logo senti uma pressão, os dois muros foram se juntando, comprimindo, concreto e abstrato se fundiram. Senti que eles se abraçavam e eu ali, imóvel entre aquele abraço, me senti filho acolhido, protegido, porém, proteção em exagero sufoca. Abaixei para me livrar daquele abraço antes de ser transfor-mado em fragmentos. Meu maior receio no momento foi ser transformado em um terceiro muro. Enquanto os muros, no mais absoluto silêncio, trocavam insultos. Ninguém os podia ouvir. Eu sim!

Mesmo sentindo as minhas pernas trêmulas, saltei novamente o muro. Es-tava livre, nunca meu quintal me pareceu tão grande. Naquele momento jurei que não tornaria a provocar aquela situação. Afinal, o que era aquilo? Nunca ouvi falar de algo igual, qualquer semelhança com fantasmas estava fora de cogitação. Fan-tasmas são intocáveis, eu o toquei. Foi isso, eu toquei aquele muro, eu senti a frieza

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mórbida daquela estrutura invisível oculta por trás de um muro sólido. Fui bem discreto, apesar do medo que me afligia, imediatamente percebi

que aquele era um segredo entre mim e os muros. Revelar estava fora dos pla-nos, seria, sem dúvida, tomado por louco, quem sabe até me internariam em um sanatório.

Todavia, conviver com aquilo seria difícil, não é o tipo de coisa que dá para ignorar, teria que enfrentar a situação e voltar lá, querendo ou não, aqueles muros faziam parte da minha vida, afinal nasci naquela casa. Desvendar aquele mistério era um desafio que eu precisava enfrentar.

Depois de algumas horas entre subidas e descidas do muro de concreto, observando detalhadamente o muro invisível, que me convidava a entrar por uma porta estranha de sorriso enigmático, não se abrindo totalmente, apenas o suficien-te para que um lenço branco se mostrasse. Tive certeza de que precisava voltar, mas faltava-me coragem. Decidi.

Convidei meu irmão, relutante a princípio, desconfiando da história, mas em solidariedade ao irmão mais novo, acabou aceitando o convite. Difícil mesmo para ele era entender como e quando surgiu aquele outro muro, longe da vista dos moradores e tão próximos. Eu já passara pela fase das indagações e não lhe dava ouvidos.

Tornei a saltar o muro, desta vez, acompanhado de meu irmão. Acompa-nhado não é bem o termo certo, na verdade, ele foi sequestrado por mim, pois usei segredos que só irmãos conhecem para chantageá-lo e forçá-lo a embarcar naquela aventura. Pressenti o perigo ao ver Diogo, meu irmão, tatear à procura do muro invisível. Tão poucas vezes estive ali e já era o dono da situação. Guardava dele um dos seus segredos, se tocado ele reagiria.

Tarde demais para avisar, já havíamos penetrado o território invisível da-quele mistério que nos convidava, arrastando-nos. Nesse momento, duas mãos surgiram, estavam geladas e trêmulas, nada de estranho para mim, pois dentro daqueles muros revestidos de cimento, não poderia ser diferente. As mãos come-çaram a nos afagar e logo nos vimos diante de nossa mãe que estava desapareci-da. Mesmo feliz com o reencontro, não foi possível conter o comentário uníssono:

— Isto quer dizer que ficaremos aqui muitos anos.— A eternidade? — perguntou Diogo.

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O incrédulo, que até bem poucos minutos não se manifestara.— O que é a eternidade? — balbuciou o muro.Segurei forte, afastando de mim as mãos que me acariciavam:— Agora quero saber, que historia é essa? Vai me deixar passar por louco,

ou vai nos explicar? - ela soltou minhas mãos, senti-me aliviado.—Assim como vocês, estou aqui por curiosidade. Desde que seu pai le-

vantou este muro eu tentava entender o porquê, e acabei aqui dentro. Talvez ele me tivesse tirado, mas logo depois ele morreu. A certeza de que me libertaria desapareceu. A única coisa que eu sei foi revelada pelo próprio muro, que a me ver mergulhada em grande tristeza disse:

— Um outro tem que entrar para que você saia. Vou me tornar visível para o seu filho mais jovem e assim atraí-lo.

O muro, tomando a palavra disse:— Não contava que entrassem os dois. Agora ficarão, para que ela saia.

Muros invisíveis cumprem o que prometem.Tranquilizou-nos a promessa de que ela olharia como estava a casa e vol-

taria.Por algum tempo ficamos imóveis, depois começamos a nos desesperar.

A cada minuto a certeza de que ela não voltaria nos apavorava, e toda vez que tentávamos sair, luzes cadentes como estrelas iluminavam o interior do muro, pos-sibilitando-nos enxergarmos várias portas sem que nenhuma delas nos indicasse a saída.

Nunca fui assombrado por portas que se abrem e fecham sem nenhum auxilio, vi muitas, mas estas eram especiais, um vaivém sem fim, e quando batiam o eco se tornava insuportável e o muro invisível, que se tornou o nosso casulo, estremecia.

Por um bom tempo, paramos as tentativas, ficamos inertes, qualquer inves-tida para tentarmos escapar dali era um suplício. Estávamos enjaulados, ou melhor, emparedados.

Diogo balançava a cabeça de um lado para outro, e foi assim que ganhou todas as características de urso. Do meu irmão restavam a voz e o firme propósito de sair dali.

Tentamos juntos, muitas vezes, a cada tentativa meu irmão se tornava mais urso. Eu fui o responsável por aquela metamorfose, ver meu irmão se transforman-

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do foi assustador. Comecei a temer a hora em que o urso cansado e com fome me devorasse.

As luzes voltaram a piscar, saltei para fora pela primeira porta que surgiu, mas entre aquele vaivém fiquei preso por alguns segundos ou minutos, o tempo já não importa quando a eternidade se prenuncia assustadora. Senti o urso rasgando minha roupa, suas garras ferindo minha pele na tentativa de me segurar, seguir comigo ou me devorar, pois eu era o único alimento à vista.

Alguém me viu debatendo e socorreu-me, puxando.—O que você estava fazendo do lado do vizinho?Calei-me, há coisas que não adianta contar, eles jamais vão acreditar que o

Diogo está dentro do muro invisível e que agora é um urso. Falei com mamãe que precisávamos tirar o Diogo de lá. Ela disse que não acha isso possível, pois papai morreu sem revelar o segredo.

Eu sei como entrar e como sair do muro, mas, como tirar um urso de lá eu não sei.

Mamãe arrumou uma coleira enorme, me entregou e disse:— Não temos escolha, boa sorte.Tirá-lo do muro até que não foi difícil, mas como explicar que um urso

senta-se e come conosco à mesa?

* Emília Goulart dos Santos – Araçatuba - é escritora, com livros publicados,membro do Grupo Experimental da Academia Araçatubense de Letras.

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