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Lídia Jorge contista: a face menos visível de uma escritora maior

marlise Vaz Bridi$

Diante da tarefa de compor uma antologia de contos de Lídia Jorge, tenho de confessar uma tentação: a de propor à Editora a reunião de todos os seus contos. Aliás, de um modo geral, toda antologia aspira a ser obra completa, ao menos no gênero a que se dedica e no momento em que é concebida. Quero dizer com isso que preferia, com certeza, apresentar a reunião dos contos escritos até hoje por Lídia Jorge ao invés de ter de escolher entre eles para formar uma antologia. Claro está que isto só se dá por-que o conjunto é de excelência, ainda que a escritora portuguesa seja, sem dúvida, muito mais conhecida como romancista do que como contista.

Sua trajetória literária iniciou-se em 1980 com uma obra-pri-ma em duplo sentido: O dia dos prodígios, seu romance de estreia, é ainda hoje considerado um marco na ficção portuguesa contem-porânea. Se o romance tornou-se uma obra canônica para os que se debruçam sobre a literatura portuguesa surgida posteriormen-te à Revolução dos Cravos, sua autora, uma dezena de romances depois (marca atingida com a publicação de Os memoráveis, em 2014, seu 11º romance), é considerada uma das mais significativas ficcionistas de Portugal, dado o número impressionante de grandes

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Lídia Jorge

obras que assina. Para citar somente algumas, A costa dos murmúrios, de 1988, A manta do soldado, de 1998 (que, em Portugal, recebeu o nome de O vale da paixão) e A noite das mulheres cantoras, de 2011, são considerados títulos incontornáveis aos que se interessam pela literatura portuguesa contemporânea, sobretudo pelo fato de, com grande apuro de elaboração literária, enfrentar variadas questões da sociedade portuguesa que quase sempre é enforma-da por perspectivas menos visíveis a olho nu, o que coloca a auto-ra em lugar destacado no panorama da ficção das últimas três dé-cadas, tanto em Portugal como nos países que a traduziram e premiaram seguidas vezes.

É exatamente com esse pano de fundo, ou seja, como parte da obra de uma ficcionista de grandes romances, que se dá a recep-ção da obra de Lídia Jorge contista. Em contraste com a quanti-dade de romances de Lídia Jorge, os livros de contos, a rigor, são apenas três: Marido e outros contos, 1997; O belo adormecido, 2004; e Praça de Londres, 2008 – já que os contos do primeiro destes volu-mes foram publicados em volumes com outros títulos, mas se man-tendo, afinal, o mesmo. Por outro lado, os livros, eles próprios, são, de certa forma, antologias, posto que, pelas informações con-tidas nos volumes, ficamos sabendo que foram, na maioria dos ca-sos, primeiramente publicados em revistas, jornais e obras cole-tivas nacionais ou estrangeiras, antes de serem enfeixados nessas obras de Lídia Jorge.

Tal observação talvez fosse completamente impertinente se não fosse, entretanto, um fato aparentemente contraditório: cada um dos livros apresenta um eixo sutil que dá unidade aos textos e, ao mesmo tempo, o conjunto dos contos comunga intimamen-te com o todo de sua obra ficcional. Portanto, examinar os contos é, no mesmo compasso, ter em mira os romances da escritora, pois as estratégias narrativas de Lídia Jorge, ainda que respeitadas as

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diferenças que os gêneros impõem, têm sua marca e, no mínimo, são de interesse para a compreensão mais abrangente das duas faces de obra tão significativa. Nos romances, Lídia Jorge deixa entrever mundos inteiros (nem sempre plenamente articulados); nos contos, os mundos é que se insinuam nas pequenas coisas, para iluminar, num foco, o que talvez ninguém pudesse ver senão ali (não, ao menos, daquela maneira, a partir daquela visada). A arte – e não apenas a literária, obviamente – tem essa capacidade.

Preliminarmente, é importante recordar, na companhia de um dos mestres do conto do século XX, Julio Cortázar, que conto e romance, ainda que se aproximem pelo pertencimento de ambos ao modo narrativo, são de natureza diversa em sua constituição. Em seu famoso ensaio “Alguns aspectos do conto”, Cortázar esta-belece uma correlação entre a arte do romance com a do filme (enquanto cinema de arte), assim como a arte do conto, com a da fotografia. Em suas palavras, considera a arte do contista como a capacidade de construir uma narrativa que seja uma “síntese viva ao mesmo tempo que uma vida sintetizada, algo assim como um tremor de água dentro de um cristal, uma fugacidade numa per-manência”1, ou ainda, a arte (aparentada da fotografia) “de recor-tar um fragmento da realidade, fixando-lhe determinados limi-tes, mas de tal modo que esse recorte atue como uma explosão que abra de par em par uma realidade muito mais ampla, como uma visão dinâmica que transcende espiritualmente o campo abrangido”2.

Considero as agudas observações de Cortázar perfeitamente adequadas à Lídia Jorge. Em seus contos vislumbra-se, com exa-tidão, sua técnica de contista, em que todos os elementos consti-

1 Julio Cortázar, “Alguns aspectos do conto”, em Valise de cronópio, São Paulo: Pers-pectiva, 1974, p. 150-151.

2 Idem, Ibidem, p. 151.

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tutivos da narrativa são submetidos ao recorte realizado, de ma-neira que, ao vê-los engendrados no tecido da linguagem, o leitor pode aperceber-se de que o que ali se encontra aponta para além do enquadramento inicial.

O primeiro dos três volumes, Marido e outros contos, de acordo com o que revela a notícia sobre a origem dos textos, é inteira-mente composto por contos que já haviam sido previamente pu-blicados, até mesmo, no caso de “A instrumentalina”, em um vo-lume separado de 1992, veiculado pela mesma editora de seus romances. Os contos, vindos à luz entre 1988 e 1996, receberam publicações esparsas e traduções para outras línguas (como, de resto, ocorreu com frequência com os romances da autora) antes de serem reunidos em livro. Tais circunstâncias talvez tenham pro-duzido em alguns leitores (ou críticos) menos avisados a impres-são de que Marido e outros contos reunia matéria sem um eixo or-denador (o que, diga-se de passagem, nunca foi uma exigência do gênero, ainda que tenha ocorrido e ocorra muitas vezes em tem-pos antigos ou mais recentes). Contrariamente, no entanto, logo que a obra é examinada com maior cuidado, resulta num conjun-to coeso apesar da diversidade de tom que perpassa os contos in-dividualmente: seja na denúncia pujante do mal feito como em “marido”, seja nas dobras idílicas da memória de “A Instrumen-talina” – apenas para indicar dois dos contos –, a visão vertical e enraizada da condição humana é o que cimenta o todo. Cada his-tória tem suas raízes postas à mostra por sugestões delicadas e é vertida por uma arquitetura singular, que, cuidadosamente, se apropria dos recursos adequados à produção do sentido de indig-nação ou enlevo que as narrativas podem provocar.

Especificamente nos dois contos em questão – “marido” e “A instrumentalina” – seria muito fácil recorrer à mera estereotipia, que, nos dois casos, claramente se desenharia como previsível: ao

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mau marido, a punição; ao jovem insubmisso, a liberdade. Se nos dois exemplos as narrativas constroem a indignação e o enlevo diante dos destinos das personagens, não o fazem de maneira di-reta e acabada, não dão ao leitor a satisfação do que vem pronto e resolvido, mas se oferecem como algo por ser enfrentado, pois causas exteriores ou interiores não são necessariamente suficien-tes para esclarecer ou apaziguar as paixões. Nós, os leitores, so-mos convocados a participar da elaboração rigorosa do sentido verdadeiro ou abominável da vida, passo a passo.

Por outro lado, os dois contos falam de uma época, de um mo-mento histórico marcado e o mesmo: o período salazarista. En-tretanto, como Lídia Jorge apontava desde sua primeira obra, O dia dos prodígios, nem mesmo o mais significativo acontecimento da História (recente de Portugal, a Revolução dos Cravos) foi re-cebida por todos da mesma forma. A opressão ou alguma felici-dade é vivenciada por diferentes homens e mulheres diferente-mente. E a História não é construída apenas por heróis anódinos, mas por seres humanos e suas vidas complexas, surpreendentes ou banais. Nesse sentido, Lídia Jorge não cede ao leitor despre-parado que não gosta de ser surpreendido senão pela surpresa convencional que reforce suas convicções e ideias prévias. As ou-tras narrativas de Marido e outros contos têm este mesmo arcabou-ço a sustentá-los: a mestria no manejo dos recursos da linguagem em que são elaborados e uma história finamente surpreendente para contar, ambos em perfeita adequação para a construção de sentidos insuspeitados.

A epifania que cada um dos contos pode oferecer está, por um lado, atada a mestria no manejo da forma e, por outro, na relevân-cia do recorte do que se conta: uma mulher que todos os dias reza em latim (obviamente decorado) pela volta do marido e que nem por isso angaria um desfecho positivo para si, poderá causar no

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leitor, mais que na personagem, uma epifania disfórica, em “O marido”; outra mulher que, muito antes de reencontrar o herói de sua infância, recorda o encantamento infantil é a porta para a epifania que se constrói num sentido positivo, da revelação de que não é preciso, para fazer valer a vida, senão de um vislumbre como o de um homem voando em sua bicicleta em direção ao fu-turo, em “A instrumentalina”.

Penso, em face do que já foi dito, que nem preciso destacar o porquê da minha dificuldade em selecionar os contos que deve-riam participar ou aqueles outros a serem deixados de lado para a constituição da presente antologia. A tônica dos outros contos é também fazer soar a nota que não foi propriamente escrita, como a blue note tão conhecida dos jazzistas (com quem tanta afinidade tinha o Cortázar). De Marido e outros contos, foram escolhidos com a dificuldade apontada, além de “marido” e “A instrumentalina”, outros dois contos: “A prova dos pássaros” e “O conto do nada-dor”. O primeiro, flagra um professor que tenta realizar uma ex-periência de alta relevância para si, mas é continuamente impe-dido por uma questão absolutamente prosaica; o outro, coloca a luz sobre moças e seus desejos, num momento em que, lidar com eles, sobretudo numa sociedade fechada como era a portuguesa do período, era uma perigosa revelação. Como se vê, em todos os casos há, portanto, a possibilidade de colher o significado da exis-tência em pequenas insignificâncias.

De maneira também contundente, o livro O belo adormecido tem por princípio aglutinador justamente o tema do desejo, que como apontam os versos de Caetano Veloso, nem sempre se sabe onde o colocar3. Dos seus seis contos, além do que dá nome ao volume,

3 A música de Caetano Veloso aqui aludida é “Pecado original”, cujos versos são: “A gente não sabe o lugar certo/De colocar o desejo”.

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selecionei “As três mulheres sagradas”, pois ambos permitem, por meio das narrativas, que se reflita acerca do tema, mas também sobre o desentranhar de situações do cotidiano e do ambiente contemporâneo. Antes de tudo, chama a atenção a evidente in-versão que o título do conto “O belo adormecido” realiza: não há como não reverberar nele (assim como no intitulado “A branca de neve”, de Praça de Londres) ecos das histórias tradicionais que, como se sabe na era pós-freudiana em que vivemos, nada tinham de ino-centes. Questões como as de identidade, gênero e sexualidade, mais ou menos explícitas, perpassam o conto que, pelo sedutor modo de narrar, também invertido, cria enigmas sobre enigmas que enredam o leitor, incapaz de desinteressar-se pelo possível desfecho da história que intriga a atriz narradora.

O conto “As três mulheres sagradas” é outro exemplar do tra-tamento dado por Lídia Jorge à temática complexa do desejo por sociedades cada vez mais permissivas e inadequadas em relação aos valores (e desvalores) que lhe deveriam servir de base. Cons-truído a partir de uma impactante cena de violência, o conto de-senvolve-se numa lenta revelação, em que o sagrado do título aca-ba por redundar em radical e dolorosa contradição interna. mais uma vez, a perspectiva da narradora e sua peregrinação em busca do sentido são centrais, por indicarem, em última instância, como as meras vontades e crenças individuais são insuficientes como ex-plicação para o sentido perdido, a não ser que, como se pode vis-lumbrar na denúncia implícita à narrativa, a encontremos num plano maior: a violência contra uma mulher é a violência contra todas as mulheres e é, muitas vezes, cometida por elas mesmas, ou com sua anuência.

Por fim, de Praça de Londres, foram escolhidos o próprio “Praça de Londres” que dá título ao volume, “Branca de neve” e “Perfu-me”. Ambientados no espaço urbano, de uma sociedade que já se

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vai desgarrando das particularidades nacionais para, em alguns momentos, mostrar-se parecida por todas as partes do mundo, ni-veladas por hábitos de consumo semelhantes e feições culturais esboroadas na mesmice dos grandes centros. Nem por isso as pes-soas (feitas personagens, ou as personagens feitas pessoas) deixam de ser nitidamente captadas pela paleta precisa de Lídia Jorge.

Em “Praça de Londres”, a imaginação de uma mulher, diante de um acontecimento banal do dia a dia, (ou seja, um homem mais velho com uma menina pequena) cresce desproporcionalmente beirando ao paroxismo e ao delírio diante do que lhe parece con-figurar um crime hediondo. No conto “Branca de Neve”, os sete anões são pequenos marginais que a personagem narradora, por sua alienação em grande parte provocada pelo seu enquadramen-to no mundo dos bem-sucedidos profissionalmente, não conse-gue identificar. E, por fim, “Perfume”, baseado no filme “Yol”, di-rigido por Yilmaz Güney, a quem a escritora dedica o conto, em que um menino é praticamente criado por uma babá, após ficar com o pai, muito ausente, depois da separação tumultuada dos pais, que resulta no afastamento da mãe.

Se os motivos narrativos, como se pode ver, são aparentemen-te simples, mais uma vez destaca-se a qualidade da construção das narrativas pela precisão da linguagem, pela escolha do ponto de vista que amplifica ambiguidades e sugestões, pelo fino desenho das personagens e dos ambientes e, sobretudo, pela articulação entre a subjetividade do mundo ficcional como objetivação do mundo real. Se tais qualidades de Lídia Jorge não são exclusivi-dade de seus contos, sem dúvida eles são uma oportunidade pri-vilegiada para verificar o “tremor de água dentro de um cristal”4 que cada uma dessas narrativas podem produzir.

4 Julio Cortázar, op. cit., p.150-151.

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Antologia de Contos

Os contos que não foram contemplados para constar dessa an-tologia, entretanto, não são menos instigantes e seriam inteira-mente apropriados para compor a antologia que ora se apresen-ta ou qualquer outra antologia dos contos de Lídia Jorge. Ao dizer isso, reafirmo o prazer com que os li e, compartilhando tal prazer, sugiro que também o façam. Ainda mais, aspiro que outras mui-tas narrativas desta grande escritora portuguesa, quer sejam con-cebidas na forma de romances, quer na de contos, surjam para continuar a provocar seus leitores, pois, quanto mais nos demora-mos diante das grandes obras, mais vemos os detalhes que apon-tam a grandiosidade do todo. Termos a oportunidade de conviver com a escrita por todos os aspectos tão bem arquitetada resultará certamente numa visão mais complexa e reveladora da própria hu-manidade. Não é pouca coisa.

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