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MACHADO DE ASSIS CONTOS DE MACHADO DE ASSIS EDITORA IMPACTA 2012

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Aula 4 - treino de diagramação do curso

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MACHADO DE ASSIS

CONTOS DE MACHADO DE ASSIS

EDITORA IMPACTA2012

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MACHADO DE ASSIS

CONTOS DE MACHADO DE ASSIS

EDITORA IMPACTA2012

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Dedicatória

Orectis nihilla borrupis dolum ullanti ssitas eatqui dolorem. Et apernamus, nis audae volorro tem eliam ipsuntibusda volore modi quat pel experum illant ul-parum ut recesto rrovid ersperia dit etur?

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Sumário

Três tesouros perdidos 9Casada e viúva 13Felicidade pelo casamento 32Onda 67

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CONTOS DE MACHADO DE ASSIS

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Três tesouros perdidos

Texto Fonte:Páginas Recolhidas de Machado de Assis,Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson, 1938.Publicado originalmente em A Marmota, 1858.

Uma tarde, eram quatro horas, o Sr. X... voltava à sua casa para jantar. O apetite que levava não o fez reparar em um cabriolet que estava parado à sua porta. Entrou, subiu a escada, penetra na sala e... dá com os olhos em um homem que passeava a largos passos como agitado por uma interna aflição.

Cumprimentou-o polidamente; mas o homem lançou-se sobre ele e com uma voz alterada, diz-lhe:

— Senhor, eu sou F..., marido da senhora Dona E...

— Estimo muito conhecê-lo, responde o Sr. X...; mas não tenho a honra de conhecer a senhora Dona E...

— Não a conhece! Não a conhece! ... quer juntar a zombaria à infâmia?

— Senhor!...

E o Sr. X... deu um passo para ele.

— Alto lá!

O Sr. F... , tirando do bolso uma pistola, continuou:

— Ou o senhor há de deixar esta corte, ou vai morrer como um cão!

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CONTOS DE MACHADO DE ASSIS

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— Mas, senhor, disse o Sr. X., a quem a eloqüência do Sr. F... ti-nha produzido um certo efeito: que motivo tem o senhor...

— Que motivo! É boa! Pois não é um motivo andar o senhor fazendo a corte à minha mulher?

— A corte à sua mulher! não compreendo!

— Não compreende! oh! não me faça perder a estribeira.

— Creio que se engana...

— Enganar-me! É boa! ... mas eu o vi... sair duas vezes de minha casa...

— Sua casa!

— No Andaraí... por uma porta secreta... Vamos! ou...

— Mas, senhor, há de ser outro, que se pareça comigo...

— Não; não; é o senhor mesmo... como escapar-me este ar de tolo que ressalta de toda a sua cara? Vamos, ou deixar a cidade, ou morrer... Escolha!

Era um dilema. O Sr. X... compreendeu que estava metido entre um cavalo e uma pistola. Pois toda a sua paixão era ir a Minas, escolheu o cavalo.

Surgiu, porém, uma objeção.

— Mas, senhor, disse ele, os meus recursos...

— Os seus recursos! Ah! tudo previ... descanse... eu sou um ma-rido previdente.

E tirando da algibeira da casaca uma linda carteira de couro da Rússia, diz-lhe:

— Aqui tem dois contos de réis para os gastos da viagem; vamos,

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parta! parta imediatamente. Para onde vai?

— Para Minas.

— Oh! a pátria do Tiradentes! Deus o leve a salvamento... Per-dôo-lhe, mas não volte a esta corte... Boa viagem!

Dizendo isto, o Sr. F... desceu precipitadamente a escada, e en-trou no cabriolet, que desapareceu em uma nuvem de poeira.

O Sr. X... ficou por alguns instantes pensativo. Não podia acredi-tar nos seus olhos e ouvidos; pensava sonhar. Um engano trazia--lhe dois contos de réis, e a realização de um dos seus mais caros sonhos. Jantou tranqüilamente, e daí a uma hora partia para a terra de Gonzaga, deixando em sua casa apenas um moleque en-carregado de instruir, pelo espaço de oito dias, aos seus amigos sobre o seu destino.

No dia seguinte, pelas onze horas da manhã, voltava o Sr. F. para a sua chácara de Andaraí, pois tinha passado a noite fora.

Entrou, penetrou na sala, e indo deixar o chapéu sobre uma mesa, viu ali o seguinte bilhete:

— “ Meu caro esposo! Parto no paquete em companhia do teu amigo P... Vou para a Europa. Desculpa a má companhia, pois melhor não podia ser. — Tua E...”.

Desesperado, fora de si, o Sr. F... lança-se a um jornal que perto estava: o paquete tinha partido às 8 horas.

— Era P... que eu acreditava meu amigo... Ah! maldição! Ao me-nos não percamos os dois contos! Tornou a meter-se no cabriolet e dirigiu-se à casa do Sr. X..., subiu; apareceu o moleque.

— Teu senhor?

— Partiu para Minas.

O Sr. F... desmaiou.

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Quando deu acordo de si estava louco... louco varrido!

Hoje, quando alguém o visita, diz ele com um tom lastimoso:

— Perdi três tesouros a um tempo: uma mulher sem igual, um amigo a toda prova, e uma linda carteira cheia de encantadoras notas... que bem podiam aquecer-me as algibeiras!...

Neste último ponto, o doido tem razão, e parece ser um doido com juízo.

FIM

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Casada e viúva

Texto-fonte:Obra Completa, Machado de Assis, vol. II,Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.Publicado originalmente em Jornal das Famílias, novembro de 1864.

CAPÍTULO PRIMEIRO

No dia em que José de Meneses recebeu por mulher Eulália Mar-tins, diante do altar-mor da matriz do Sacramento, na presença das respectivas famílias, aumentou-se com mais um a lista dos casais felizes.

Era impossível amar-se mais do que se amavam aqueles dois. Nem me atrevo a descrevê-lo. Imagine-se a fusão de quatro pai-xões amorosas das que a fábula e a história nos dão conta e ter--se-á a medida do amor de José de Meneses por Eulália e de Eu-lália por José de Meneses.

As mulheres tinham inveja à mulher feliz, e os homens riam dos sentimentos, um tanto piegas, do apaixonado marido. Mas os dois filósofos do amor relevaram à humanidade as suas fraque-zas e resolveram protestar contra elas amando-se ainda mais.

Mal contava um mês de casado, sentiu José de Meneses, em seu egoísmo de noivo feliz, que devia fugir à companhia e ao rumor da cidade. Foi procurar uma chácara na Tijuca, e lá se encafuou com Eulália.

Ali viam correr os dias no mais perfeito descuido, respirando as auras puras da montanha, sem inveja dos maiores potentados da terra.

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Um ou outro escolhido conseguiu às vezes penetrar no santuário em que os dois viviam, e de cada vez que de lá saía vinha com a convicção mais profunda de que a felicidade não podia estar em outra parte senão no amor.

Acontecia, pois, que, se as mulheres invejavam Eulália e se os homens riam de José de Meneses, as mães, as mães previdentes, a espécie santa, no dizer de E. Augier, nem riam nem se deixavam dominar pelo sexto pecado mortal: pediam simplesmente a Deus que lhes deparasse às filhas um marido da estofa e da capacidade de José de Meneses.

Mas cumpre dizer, para inspirar amor a maridos tais como José de Meneses, era preciso mulheres tais como Eulália Martins. Eu-lália em alma e corpo era o que há de mais puro unido ao que há de mais belo. Tanto era um milagre de beleza carnal, como era um prodígio de doçura, de elevação e de sinceridade de senti-mentos. E, sejamos francos, tanta coisa junta não se encontra a cada passo.

Nenhuma nuvem sombreava o céu azul da existência do casal Meneses. Minto, de vez em quando, uma vez por semana apenas, e isto só depois de cinco meses de casados, Eulália derramava algumas lágrimas de impaciência por se demorar mais do que costumava o amante José de Meneses. Mas não passava isso de uma chuva de primavera, que, mal assomava o sol à porta, cessa-va para deixar aparecer as flores do sorriso e a verdura do amor. A explicação do marido já vinha sobreposse; mas ele não deixava de dá-la apesar dos protestos de Eulália; era sempre excesso de trabalho que pedia a presença dele na cidade até uma parte da noite.

Ano e meio viveram assim os dois, ignorados do resto do mun-do, ébrios da felicidade e da solidão.

A família tinha aumentado com uma filha no fim de dez me-ses. Todos que são pais sabem o que é esta felicidade suprema. Aqueles quase enlouqueceram. A criança era um mimo de graça angélica. Meneses via nela o riso de Eulália, Eulália achava que os olhos eram os de Meneses. E neste combate de galanteios pas-

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savam as horas e os dias.

Ora, uma noite, como o luar estivesse claro e a noite fresquíssi-ma, os dois, marido e mulher, deixaram a casa, onde a pequena ficara adormecida, e foram conversar junto ao portão, sentados em cadeiras de ferro e debaixo de uma viçosa latada, sub tegmine fagi.

Meia hora havia que ali estavam, lembrando o passado, sabore-ando o presente e construindo o futuro, quando parou um carro na estrada.

Voltaram os olhos e viram descer duas pessoas, um homem e uma mulher.

— Há de ser aqui, disse o homem olhando para a chácara de Meneses.

Neste momento o luar deu em cheio no rosto da mulher. Eulália exclamou:

— É Cristiana!

E correu para a recém-chegada.

Os dois novos personagens eram o Capitão Nogueira e Cristina Nogueira, mulher do capitão.

O encontro foi o mais cordial do mundo. Nogueira era já amigo de José de Meneses, cujo pai fora colega dele na escola militar, andando ambos a estudar engenharia. Isto quer dizer que No-gueira era já homem dos seus quarenta e seis anos.

Cristiana era uma moça de vinte e cinco anos, robusta, cora-da, uma dessas belezas da terra, muito apreciáveis, mesmo para quem goza uma das belezas do céu, como acontecia a José de Meneses.

Vinham de Minas, onde se haviam casado.

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Nogueira, cinco meses antes, saíra para aquela província a servi-ço do Estado e ali encontrou Cristiana, por quem se apaixonou e a quem soube inspirar uma estima respeitosa. Se eu dissesse amor, mentia, e eu tenho por timbre contar as coisas como as coisas são.

Cristiana, órfã de pai e mãe, vivia na companhia de um tio, ho-mem velho e impertinente, achacado de duas moléstias gravíssi-mas: um reumatismo crônico e uma saudade do regímen colo-nial. Devo explicar esta última enfermidade; ele não sentia que o Brasil se tivesse feito independente; sentia que, fazendo-se inde-pendente, não tivesse conservado a forma de governo absoluto. Gorou o ovo, dizia ele, logo depois de adotada a constituição. E protestando interiormente contra o que se fizera, retirou-se para Minas Gerais, donde nunca mais saiu. A esta ligeira notícia do tio de Cristiana acrescentarei que era rico como um Potosi e ava-rento como Harpagão.

Entrando na fazenda do tio de Cristiana e sentindo-se influído pela beleza desta, Nogueira aproveitou-se da doença política do fazendeiro para lisonjeá-la com umas fomentações de louvor do passado e indignação pelo presente. Em um servidor do Estado atual das coisas, achou o fazendeiro que era aquilo uma prova de rara independência, e o estratagema do capitão surtiu duas vantagens: o fazendeiro deu-lhe a sobrinha e mais um bom par de contos de réis. Nogueira, que só visava a primeira, achou-se felicíssimo por ter alcançado ambas. Ora, é certo que, sem as opi-niões forjadas no momento pelo capitão, o velho fazendeiro não tiraria à sua fortuna um ceitil que fosse.

Quanto a Cristiana, se não sentia pelo capitão um amor igual ou mesmo inferior ao que lhe inspirava, votava-lhe uma estima respeitosa. E o hábito, desde Aristóteles todos reconhecem isto, e o hábito, aumentando a estima de Cristiana, dava à vida domés-tica do Capitão Nogueira uma paz, uma tranqüilidade, um gozo brando, digno de tanta inveja como era o amor sempre violento do casal Meneses.

Voltando à corte, Cristiana esperava uma vida mais própria aos seus anos de moça do que a passada na fazenda mineira na com-

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panhia fastidiosa do reumático legitimista. Pouco que pudessem alcançar as suas ilusões, era já muito em comparação com o pas-sado.

Dadas todas estas explicações, continuo a minha história.

CAPÍTULO SEGUNDO

Deixo ao espírito do leitor ajuizar como seria o encontro de ami-gos que se não vêem há muito.

Cristiana e Eulália tinham muito que contar uma à outra, e, em sala à parte, ao pé do berço em que dormia a filha de José de Me-neses, deram largas à memória, ao espírito e ao coração. Quanto a Nogueira e José de Meneses, depois de narrada a história do respectivo casamento e suas esperanças de esposos, entraram, um na exposição das suas impressões de viagem, o outro na das impressões que deveria ter em uma viagem que projetava.

Passaram-se deste modo as horas até que o chá reuniu a todos quatro à roda da mesa de família. Esquecia-me dizer que No-gueira e Cristiana declararam desde o princípio que, tendo che-gado pouco havia, tencionavam demorar-se uns dias em casa de Meneses até que pudessem arranjar na cidade ou nos arrabaldes uma casa conveniente.

Meneses e Eulália ouviram isto, pode-se dizer que de coração alegre. Foi decretada a instalação dos dois viajantes. Tarde se le-vantaram da mesa, onde o prazer de se verem juntos os prendia insensivelmente. Guardaram o muito que ainda havia a dizer para os outros dias e recolheram-se.

— Conhecia José de Meneses? perguntou Nogueira a Cristiana ao retirar-se para os seus aposentos.

— Conhecia de casa de meu pai. Ele ia lá há oito anos.

— É uma bela alma!

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— E Eulália!

— Ambos! ambos! É um casal feliz!

— Como nós, acrescentou Cristiana abraçando o marido.

No dia seguinte, foram os dois maridos para a cidade, e ficaram as duas mulheres entregues aos seus corações.

De volta, disse Nogueira ter encontrado casa; mas era preciso arranjá-la, e foi marcado para os arranjos o prazo de oito dias.

Os seis primeiros dias deste prazo correram na maior alegria, na mais perfeita intimidade. Chegou-se a aventar a idéia de ficarem os quatro habitando juntos. Foi Meneses o autor da idéia. Mas Nogueira alegou ter necessidade de casa própria e especial, visto como esperava alguns parentes do Norte.

Enfim, no sétimo dia, isto é, na véspera de se separarem os dois casais, estava Cristiana passeando no jardim, à tardinha, em companhia de José de Meneses, que lhe dava o braço. Depois de trocarem muitas palavras sobre coisas totalmente indiferentes à nossa história, José de Meneses fixou o olhar na sua interlocutora e aventurou estas palavras:

— Não tem saudade do passado, Cristiana?

A moça estremeceu, abaixou os olhos e não respondeu.

José de Meneses insistiu. A resposta de Cristiana foi:

— Não sei; deixe-me!

E forcejou por tirar o braço do de José de Meneses; mas este re-teve-a.

— Que susto pueril! Onde quer ir? Meto-lhe medo?

Nisto parou ao portão um moleque com duas cartas para José de Meneses. Os dois passavam neste momento em frente do portão.

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O moleque fez entrega das cartas e retirou-se sem exigir resposta.

Meneses fez os seguintes raciocínios: — Lê-las imediatamente era dar lugar a que Cristiana se evadisse para o interior da casa; não sendo as cartas de grande urgência, visto que o portador não exigira resposta, não havia grande necessidade de lê-las imedia-tamente. Portanto guardou as cartas cuidadosamente para lê-las depois.

E de tudo isto conclui o leitor que Meneses tinha mais necessida-de de falar a Cristiana do que curiosidade de ler as cartas.

Acrescentarei, para não dar azo aos esmerilhadores de inverossi-milhanças, que Meneses conhecia muito bem o portador e sabia ou presumia saber de que tratavam as cartas em questão.

Guardadas as cartas, e sem tirar o braço a Cristiana, Meneses continuou o passeio e a conversação.

Cristiana estava confusa e trêmula. Durante alguns passos não trocaram uma palavra.

Finalmente, Meneses rompeu o silêncio perguntando a Cristia-na:

— Então, que me responde?

— Nada, murmurou a moça.

— Nada! exclamou Meneses. Nada! era então esse o amor que me tinha?

Cristiana levantou os olhos espantados para Meneses. Depois, procurando de novo tirar o braço do de Meneses, murmurou:

— Perdão, devo recolher-me.

Meneses reteve-a de novo.

— Ouça-me primeiro, disse. Não lhe quero fazer mal algum. Se

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me não ama, pode dizê-lo, não me zangarei; receberei essa con-fissão como o castigo do passo que dei, casando minha alma que se não achava solteira.

— Que estranha linguagem é essa? disse a moça. A que vem essa recordação de uma curta fase da nossa vida, de um puro brinco da adolescência?

— Fala de coração?

— Pois, como seria?

— Ah! não me faça crer que um perjúrio...

— Perjúrio!...

A moça sorriu-se com desdém. Depois continuou:

— Perjúrio é isto que faz. Perjúrio é trazer enganada a mais casta e a mais digna das mulheres, a mais digna, ouve? Mais digna do que eu, que ainda o ouço e lhe respondo.

E dizendo isto Cristiana tentou fugir.

— Onde vai? perguntou Meneses. Não vê que está agitada? Po-deria fazer nascer suspeitas. Demais, pouco tenho a dizer-lhe. É uma despedida. Nada mais, em nenhuma ocasião, ouvirá de minha boca. Supunha que através dos tempos e das adversidades tivesse conservado pura e inteira a lembrança de um passado que nos fez felizes. Vejo que me enganei. Nenhum dos caracteres su-periores que eu enxergava em seu coração tinha existência real. Eram simples criações do meu espírito demasiado crédulo. Hoje que se desfaz o encanto, e que eu posso ver toda a enormidade da fraqueza humana, deixe-me dizer-lhe, perdeu um coração e uma existência que não merecia. Saio-me com honra de um combate em que não havia igualdade de forças. Saio puro. E se no meio do desgosto em que me fica a alma, é-me lícito trazê-la à lembrança, será como um sonho esvaecido, sem objeto real na terra.

Estas palavras foram ditas em um tom sentimental e como que

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estudado para a ocasião.

Cristiana estava aturdida. Lembrava-se que em vida de seu pai, tinha ela quinze anos, houvera entre ela e José de Meneses um desses namoros de criança, sem conseqüência, em que o coração empenha-se menos que a fantasia.

Com que direito vinha hoje Meneses reivindicar um passado cuja lembrança, se alguma havia, era indiferente e sem alcance?

Estas reflexões pesaram no espírito de Cristiana. A moça expô--las em algumas palavras cortadas pela agitação em que se acha-va, e pelas interrupções dramáticas de Meneses.

Depois, como aparecesse Eulália à porta da casa, a conversa foi interrompida.

A presença de Eulália foi um alívio para o espírito de Cristiana. Mal a viu, correu para ela, e convidou-a a passear pelo jardim, antes que anoitecesse.

Se Eulália pudesse nunca suspeitar da fidelidade de seu mari-do, veria na agitação de Cristiana um motivo para indagações e atribulações. Mas a alma da moça era límpida e confiante, dessa confiança e limpidez que só dá o verdadeiro amor.

Deram as duas o braço, e dirigiram-se para uma alameda de ca-suarinas, situada na parte oposta àquela em que ficara passeando José de Meneses.

Este, perfeitamente senhor de si, continuou a passear como que entregue a suas reflexões. Seus passos, em aparência vagos e dis-traídos, procuravam a direção da alameda em que andavam as duas.

Depois de poucos minutos encontraram-se como que por acaso.

Meneses, que ia de cabeça baixa, simulou um ligeiro espanto e parou.

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As duas pararam igualmente.

Cristiana tinha a cara voltada para o lado. Eulália, com um divi-no sorriso, perguntou:

— Em que pensas, meu amor?

— Em nada.

— Não é possível, retorquiu Eulália.

— Penso em tudo.

— O que é tudo?

— Tudo? É o teu amor.

— Deveras?

E voltando-se para Cristiana, Eulália acrescentou:

— Olha, Cristiana, já viste um marido assim? É o rei dos mari-dos. Traz sempre na boca uma palavra amável para sua mulher. É assim que deve ser. Não esqueça nunca estes bons costumes, ouviu?

Estas palavras alegres e descuidosas foram ouvidas distraida-mente por Cristiana. Meneses tinha os olhos cravados na pobre moça.

— Eulália, disse ele, parece que D. Cristiana está triste.

Cristiana estremeceu.

Eulália voltou-se para a amiga e disse:

— Triste! Já assim me pareceu. É verdade, Cristiana? Estarás tris-te?

— Que idéia! Triste por quê?

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— Ora, pela conversa que há pouco tivemos, respondeu Mene-ses.

Cristiana fitou os olhos em Meneses. Não podia compreendê-lo e não adivinhava onde queria ir o marido de Eulália.

Meneses, com o maior sangue frio, acudiu à interrogação muda que as duas pareciam fazer.

— Eu contei a D. Cristiana o assunto da única novela que li em minha vida. Era um livro interessantíssimo. O assunto é simples, mas comovente. É uma série de torturas morais por que passa uma moça a quem esqueceu juramentos feitos na mocidade. Na vida real este fato é uma coisa mais que comum; mas tratado pelo romancista toma um tal caráter que chega a assustar o espírito mais refratário às impressões. A análise das atribulações da in-grata é feita por mão de mestre. O fim do romance é mais fraco. Há uma situação forçada... uma carta que aparece... Umas coi-sas... enfim, o melhor é o estudo profundo e demorado da alma da formosa perjura. D. Cristiana é muito impressível...

— Oh! meu Deus! exclamou Eulália. Só por isto?

Cristiana estava ofegante. Eulália, assustada por vê-la em tal es-tado, convidou-a a recolher-se. Meneses apressou-se a dar-lhe o braço e dirigiram-se os três para casa. Eulália entrou antes dos dois. Antes de pôr pé no primeiro degrau da escada de pedra que dava acesso à casa, Cristiana disse a Meneses, em voz baixa e concentrada:

— É um bárbaro!

Entraram todos. Era já noite. Cristiana reparou que a situação era falsa e tratou de desfazer os cuidados, ou porventura as más impressões que tivessem ficado a Eulália depois do desconchavo de Meneses. Foi a ela, com o sorriso nos lábios:

— Pois, deveras, disse ela, acreditaste que eu ficasse magoada com a história? Foi uma impressão que passou.

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Eulália não respondeu.

Este silêncio não agradou nem a Cristiana, nem a Meneses. Me-neses contava com a boa fé de Eulália, única explicação de ter adiantado aquela história tão fora de propósito. Mas o silêncio de Eulália teria a significação que lhe deram os dois? Parecia ter, mas não tinha. Eulália achou estranha a história e a comoção de Cristiana; mas, entre todas as explicações que lhe ocorressem, a infidelidade de Meneses seria a última, e ela nem passou da pri-meira. Sancta simplicitas!

A conversa continuou fria e indiferente até a chegada de No-gueira. Seriam então nove horas. Serviu-se o chá, depois do que, todos se recolheram. Na manhã seguinte, como disse acima, de-viam partir Nogueira e Cristiana.

A despedida foi como é sempre a despedida de pessoas que se es-timam. Cristiana fez os esforços maiores para que no espírito de Eulália não surgisse o menor desgosto; e Eulália, que não usava mal, mal não cuidou na história da noite anterior. Despediram--se todos com promessa jurada de se visitarem a miúdo.

CAPÍTULO TERCEIRO

Passaram-se quinze dias depois das cenas que narrei acima. Duran-te esse tempo nenhum dos personagens que nos ocupam tiveram ocasião de se falarem. Não obstante pensavam muito uns nos ou-tros, por saudade sincera, por temor do futuro e por frio cálculo de egoísmo, cada qual pensando segundo os seus sentimentos.

Cristiana refletia profundamente sobre a sua situação. A cena do jardim era para ela um prenúncio de infelicidade, cujo alcance não podia avaliar, mas que lhe pareciam inevitáveis. Entretanto, que ti-nha ela no passado? Um simples amor de criança, desses amores passageiros e sem conseqüências. Nada dava direito a Meneses para reivindicar juramentos firmados por corações extremamente juve-nis, sem consciência da gravidade das coisas. E demais, o casamento de ambos não invalidara esse passado invocado agora?

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Refletindo deste modo, Cristiana era levada às últimas conse-qüências. Ela estabelecia em seu espírito o seguinte dilema: ou a reivindicação do passado feita por Meneses era sincera ou não. No primeiro caso era a paixão concentrada que fazia irrupção no fim de tanto tempo, e Deus sabe onde poderiam ir os seus efeitos. No segundo caso, era simples cálculo de abjeta lascívia; mas então, se mudara a natureza dos sentimentos do marido de Eulália, não mudava a situação nem desapareciam as apreensões do futuro. Era preciso ter a alma profundamente mirrada para iludir daquele modo uma mulher virtuosa tentando contra a vir-tude de outra mulher.

Em honra de Cristiana devo acrescentar que os seus temores eram menos por ela que por Eulália. Estando segura de si, o que ela temia era que a felicidade de Eulália se anuviasse, e a pobre moça viesse a perder aquela paz do coração que a fazia invejada de todos.

Apreciando estes fatos à luz da razão prática, se julgarmos legí-timos os temores de Cristiana, julgaremos exagerada as propor-ções que ela dava ao ato de Meneses. O ato de Meneses reduz-se, afinal de contas, a um ato comum, praticado todos os dias, no meio da tolerância geral e até do aplauso de muitos. Certamente que isso não lhe dá virtude, mas tira-lhe o mérito da originalidade.

No meio das preocupações de Cristiana tomara lugar a carta a que Meneses aludira. Que carta seria essa? Alguma dessas confi-dências que o coração da adolescência facilmente traduz no pa-pel. Mas os termos dela? Em qualquer dos casos do dilema apre-sentado acima Meneses podia usar da carta, a que talvez faltasse a data e sobrassem expressões ambíguas para supô-la de feitura recente.

Nada disto escapava a Cristiana. E com tudo isto entristecia. No-gueira reparou na mudança que apresentava sua mulher e inter-rogou-a carinhosamente. Cristiana nada lhe quis confiar, porque uma leve esperança lhe fazia crer às vezes que a consciência de sua honra teria por prêmio a tranqüilidade e a felicidade. Mas o marido, não alcançando nada e vendo-a continuar na mesma tristeza, entristecia-se também e desesperava. Que podia desejar

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Cristiana? pensava ele. Na incerteza e na angústia da situação lembrou-se de ter com Eulália para que esta ou o informasse, ou, como mulher, alcançasse de Cristiana o segredo das suas con-centradas mágoas. Eulália marcou o dia em que iria à casa de Nogueira, e este saiu da chácara da Tijuca animado por algumas esperanças.

Ora, nesse dia apresentou-se pela primeira vez em casa de Cris-tiana o exemplar José de Meneses. Apareceu como a estátua do comendador. A pobre moça, ao vê-lo, ficou aterrada. Estava só. Não sabia que dizer quando à porta da sala assomou a figura mansa e pacífica de Meneses. Nem se levantou. Olhou-o fixa-mente e esperou.

Meneses parou à porta e disse com um sorriso nos lábios:

— Dá licença?

Depois, sem esperar resposta, dirigiu-se para Cristiana; esten-deu- lhe a mão e recebeu a dela fria e trêmula. Puxou cadeira e sentou-se ao pé dela familiarmente.

— Nogueira saiu? perguntou depois de alguns instantes, descal-çando as luvas.

— Saiu, murmurou a moça.

— Tanto melhor. Tenho então tempo para dizer-lhe duas pala-vras.

A moça fez um esforço e disse:

— Também eu tenho para dizer-lhe duas palavras.

— Ah! sim. Ora bem, cabe às damas a precedência. Sou todo ouvidos.

— Possui alguma carta minha?

— Possuo uma.

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— É um triste documento, porque, respondendo a sentimen-tos de outro tempo, se eram sentimentos dignos deste nome, de nada pode valer hoje. Todavia, desejo possuir esse escrito.

— Vejo que não tem hábito de argumentar. Se a carta em questão não vale nada, por que deseja possuí-la?

— É um capricho.

— Capricho, se existe algum é o de tratar por cima do ombro um amor sincero e ardente.

— Falemos de outra coisa.

— Não; falemos disto, que é essencial.

Cristiana levantou-se.

— Não posso ouvi-lo, disse ela.

Meneses segurou-lhe em uma das mãos e procurou retê-la. Houve uma pequena luta. Cristiana ia tocar a campainha que se achava sobre uma mesa, quando Meneses deixou-lhe a mão e levantou-se.

— Basta, disse ele; escusa de chamar seus fâmulos. Talvez que ache grande prazer em pô-los na confidência de um amor que não merece. Mas eu é que me não exponho ao ridículo depois de me expor à baixeza. É baixeza, sim; não devia mendigar para o coração o amor de quem não sabe compreender os grandes sentimentos. Paciência; fique com a sua traição; eu ficarei com o meu amor; mas procurarei esquecer o objeto dele para lembrar--me da minha dignidade.

Depois desta tirada dita em tom sentimental e lacrimoso, Me-neses encostou-se a uma cadeira como para não cair. Houve um silêncio entre os dois. Cristiana falou em primeiro lugar.

— Não tenho direito, nem dever, nem vontade de averiguar a ex-tensão e a sinceridade desse amor; mas deixe que eu lhe observe;

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o seu casamento e a felicidade que parece gozar nele protestam contra as alegações de hoje.

Meneses levantou a cabeça, e disse:

— Oh! não me exprobre o meu casamento! Que queria que eu fizesse quando uma pobre moça me caiu nos braços declarando amar-me com delírio? Apoderou-se de mim um sentimento de compaixão; foi todo o meu crime. Mas neste casamento não em-penhei tudo; dei a Eulália o meu nome e minha proteção; não lhe dei nem o meu coração nem o meu amor.

— Mas essa carta?

— A carta será para mim uma lembrança, nada mais; uma espé-cie de espectro do amor que existiu, e que me consolará no meio das minhas angústias.

— Preciso da carta!

— Não!

Neste momento entrou precipitadamente na sala a mulher de Meneses. Vinha pálida e trêmula. Ao entrar trazia na mão duas cartas abertas. Não pôde deixar de dar um grito ao ver a atitude meio suplicante de Cristiana e o olhar terno de Meneses. Deu um grito e caiu sobre o sofá. Cristiana correu para ela.

Meneses, lívido como a morte, mas cheio de uma tranqüilida-de aparente, deu dois passos e apanhou as cartas que caíram da mão de Eulália. Leu-as rapidamente. Descompuseram-se-lhe as feições. Deixou Cristiana prestar os seus cuidados de mulher a Eulália e foi para a janela. Aí fez em tiras miúdas as duas cartas, e esperou, encostado à grade, que passasse a crise de sua mulher.

Eis aqui o que se passara.

Os leitores sabem que era aquele dia destinado à visita de Eulália a Cristina, visita de que só Nogueira tinha conhecimento.

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Eulália deixou que Meneses viesse para a cidade e mandou apron-tar um carro para ir à casa de Cristiana. Entretanto, assaltou-lhe uma idéia. Se seu marido voltasse para casa antes dela? Não que-ria causar-lhe impaciências ou cuidados, e arrependia-se de nada lhe ter dito com antecipação. Mas era forçoso partir. Enquanto se vestia ocorreu-lhe um meio. Deixar escritas duas linhas a Me-neses dando-lhe parte de que saíra, e dizendo-lhe para que fim. Redigiu a cartinha mentalmente e dirigiu-se para o gabinete de Meneses.

Sobre a mesa em que Meneses costumava trabalhar não havia papel. Devia haver na gaveta, mas a chave estava seguramente com ele. Ia saindo para ir ver papel a outra parte, quando viu junto da porta uma chave; era a da gaveta. Sem escrúpulo algum, travou da chave, abriu a gaveta e tirou um caderno de papel. Es-creveu algumas linhas em uma folha, e deixou a folha sobre a mesa debaixo de um pequeno globo de bronze. Guardou o resto do papel, e ia fechar a gaveta, quando reparou em duas cartinhas que, entre outras muitas, se distinguiam por um sobrescrito de letra trêmula e irregular, de caráter puramente feminino.

Olhou para a porta a ver se alguém espreitava a sua curiosidade e abriu as cartinhas, que, aliás, já se achavam descoladas. A pri-meira carta dizia assim:

Meu caro Meneses. Está tudo acabado. Lúcia contou-me tudo. Adeus; esquece-te de mim. — MARGARIDA.

A segunda carta era concebida nestes termos:

Meu caro Meneses. Está tudo acabado. Margarida contou-me tudo. Adeus; esquece-te de mim. — LÚCIA.

Como o leitor adivinha, estas cartas eram as duas que Meneses recebera na tarde em que andou passeando com Cristiana no jardim.

Eulália, lendo estas duas cartas, quase teve uma síncope. Pôde con-ter-se, e, aproveitando o carro que a esperava, foi buscar a Cristiana as consolações da amizade e os conselhos da prudência.

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Entrando em casa de Cristiana pôde ouvir as últimas palavras do diálogo entre esta e Meneses. Esta nova traição de seu marido quebrara-lhe a alma.

O resto desta simples história conta-se em duas palavras.

Cristiana conseguira acalmar o espírito de Eulália e inspirar-lhe sentimentos de perdão. Entretanto, contou-lhe tudo o que ocor-rera entre ela e Meneses, no presente e no passado.

Eulália mostrou ao princípio grandes desejos de separar-se de seu marido e ir viver com Cristiana; mas os conselhos desta, que, entre as razões de decoro que apresentou para que Eulália não tornasse pública a história das suas desgraças domésticas, alegou a existência de uma filha do casal, que cumpria educar e pro-teger, esses conselhos desviaram o espírito de Eulália dos seus primeiros projetos e fizeram-na resignada ao suplício.

Nogueira quase nada soube das ocorrências que acabo de narrar; mas soube quanto era suficiente para esfriar a amizade que sentia por Meneses.

Quanto a este, enfiado ao princípio com o desenlace das coisas, tomou de novo o ar descuidoso e aparentemente singelo com que tratava tudo. Depois de uma mal alinhavada explicação dada à mulher a respeito dos fatos que tão evidentemente o acusavam, começou de novo a tratá-la com as mesmas carícias e cuidados do tempo em que merecia a confiança de Eulália.

Nunca mais voltou ao casal Meneses a alegria franca e a plena satisfação dos primeiros dias. Os afagos de Meneses encontra-vam sua mulher fria e indiferente, e se alguma coisa mudava era o desprezo íntimo e crescente que Eulália votava a seu marido.

A pobre mãe, viúva da pior viuvez desta vida, que é aquela que anula o casamento conservando o cônjuge, só vivia para sua filha.

Dizer como acabaram ou como vão acabando as coisas não entra no plano deste escrito: o desenlace ainda é mais vulgar que o corpo da ação.

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Quanto ao que há de vulgar em tudo o que acabo de contar, sou eu o primeiro a reconhecê-lo. Mas que querem? Eu não pretendo senão esboçar quadros ou caracteres, conforme me ocorrem ou vou encontrando. É isto e nada mais.

FIM

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Felicidade pelo casamento

Texto-fonte:http://www2.uol.com.br/machadodeassis/Publicado originalmente em Jornal das Famílias, 1866.

I

Acontecimentos imprevistos obrigaram-me a deixar a província e estabelecer-me algum tempo na corte. Foi isto no ano de 185... Os acontecimentos a que me refiro eram relativos à minha famí-lia, cujo chefe já não existia. Tinha eu ordem de demorar-me um ano na corte, depois do que voltaria à província.

Devo referir uma circunstância de interesse para o caso. Um de meus tios tinha uma filha de vinte anos, talvez bonita, mas em quem eu não reparara nunca, e a quem tinha simples afeição de parente. Era do gosto do pai que nos casássemos, e não menos do gosto dela. Duas ou três vezes que me falaram nisso respondi secamente que desejava ficar solteiro; não instaram mais; mas a esperança nunca a perderam, nem o pai nem a filha.

A explicação da minha recusa e do desamor com que eu via a minha prima estava no meu gênio solitário e contemplativo. Até os quinze anos fui tido por idiota; dos quinze aos vinte chama-vam-me poeta; e, se as palavras eram diferentes, o sentido que a minha família lhes dava era o mesmo. Era pouco de ser estimado um moço que não comungava nos mesmos passatempos da casa e via correr as horas na leitura e nas digressões pelo mato.

Minha mãe era a única a quem tais instintos de isolamento não davam para rir nem para desamar. Era mãe. Muitas vezes, alta noite, quando os meus olhos se cansavam de percorrer as pá-ginas de Atalá ou Corina, abria-se a porta do gabinete e a sua

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figura meiga e veneranda, como a das santas, vinha distrair-me da cansada leitura. Cedia às suas instâncias e ia repousar.

Ora, é preciso dizer, para encaminhar o espírito do leitor nesta história, que dois anos antes do tempo em que começa, tinha eu tido uma fantasia amorosa. Fantasia amorosa digo eu e não minto. Não era amor; amor foi o que eu depois senti, verdadeiro, profundo, imortal.

Para mostrar a graduação dos meus sentimentos depois desse episódio, e até para melhor demonstrar a tese que serve de título a estas páginas, devo transcrever para aqui dois manuscritos ve-lhos. Cada um tem a sua data; o primeiro é uma lamentação, o segundo é uma resignação. Há um abismo entre ambos, como há um abismo entre aquele tempo e o tempo de hoje.

Eis o que, logo após a fantasia amorosa de que falei, veio achar--me a escrever minha adorada mãe.

* * *

Estou só. Ouço bater o mar que se quebra na praia a cinqüenta passos de mim. É o único rumor que nesta hora quebra o silêncio da noite. Fora desse sinto apenas o leve ruído da pena que corre no papel. Escrevo sem assunto e em busca de assunto. Que há de ser? Sobre a mesa tenho duas pilhas de livros. De um lado a Bíblia e Pascal, do outro Alfredo de Vigny e Lamartine. É obra do acaso e não parece: tal é o estado do meu espírito. Os três pri-meiros livros me chamam à contemplação ascética e às reflexões morais; os três últimos despertam os sentimentos do coração e levam meu espírito às mais elevadas regiões da fantasia.

Quero entranhar-me no mundo da reflexão e do estudo, mas o meu coração, solteiro talvez, talvez viúvo, pede-me versos ou imaginações. Triste alternativa, que para nenhuma resolução me guia! Este estado, tão comum nos que realmente se dividem en-tre sentir e pensar, é uma dor d’alma, é uma agonia do espírito.

De onde estou vejo o mar; a noite é clara e deixa ver as ondas que se vão quebrar à areia da praia. Uma vez solto onde irás tu, meu

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pensamento? Nem praias, nem ondas, nem barreiras, nem nada; tudo vences, de tudo zombas, eis-te aí livre, a correr, mar em fora, em busca de uma lembrança perdida, de uma esperança de-senganada. Lá chegas, lá entras, de lá voltas ermo, triste, mudo, como o túmulo do amor perdido e tão cruelmente desflorado!

Ânsia de amar, ânsia de ser feliz, que haverá no mundo que mais nos envelheça a alma e nos faça sentir as misérias da vida? Nem é outra a miséria: esta, sim; este ermo e estas aspirações; esta so-lidão e estas saudades; esta tão própria sede de uma água que não há tirá-la de nenhuma Noreb, eis a miséria, eis a dor, eis a tristeza, eis o aniquilamento do espírito e do coração.

Que é o presente em tais casos? O vácuo e o nada; no passado o luzir leve e indistinto quase de uma curta ventura que passou; no futuro a estrela da esperança cintilante e viva, como uma lâmpa-da eterna. De onde estamos, um ansiar sem tréguas, uns íntimos impulsos a ir buscar a felicidade remota e esquiva. Do passado ao futuro, do futuro ao passado, como este mar que invade estas praias agora, e amanhã irá beijar as areias opostas, tal é a vacila-ção do espírito, tal é a vida ilusória do meu coração.

* * *

Que me direis vós, meus livros? Queixas e consolações. Dais-me escrito o que eu tenho a falar no interior. Queixas de um sen-tir sem eco, consolações de uma esperança sem desfecho. Que havíeis de dizer mais? Nada é novo; o que é, já foi e há de vir a ser. Destas dores sentir-se-ão sempre e não deixarão de sentir-se. Círculo vicioso, problema sem solução!

Lembrei o Eclesiastes. Que me dirá esse tesouro de sabedoria?

— Todas as coisas têm seu tempo, e todas elas passam debaixo do céu segundo o termo que a cada uma foi prescrito.

Há tempo de nascer e de morrer.

Há tempo de plantar e tempo de colher.

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Há tempo de enfermar e tempo de sarar.

Há tempo de chorar e tempo de rir.

Há tempo de destruir e tempo de edificar.

Há tempo de afligir e tempo de se alegrar.

Há tempo de espalhar pedras e tempo de as ajuntar.

Há tempo de guerra e tempo de paz.

Assim fala o Eclesiastes. A cada coisa um tempo: eis tudo. Qual será o tempo desta coisa? Qual será o tempo daquela? Tal é a dúvida, tal é a incerteza.

Destruo agora; quando edificarei? Aflijo-me; quando me hei de alegrar? Semeio; quando hei de colher? Virá o tempo para isso... Quando? Não sei! A certeza é uma: a certeza do presente; a da destruição, a da aflição, a da plantação. O resto — mistério e abismo.

Não! Entre tantas incertezas, entre tantas ilusões, uma certeza há; há um tempo que há de vir, fatalmente, imperiosamente: o tempo de morrer. Nasci, morrerei. Oh, ciência humana! Entre a destruição e a edificação, entre a tristeza e a alegria, entre o semear e o colher, há o tempo que não é de uma nem de outra coisa, o tempo absoluto, o tempo que marca a todas as horas uma vida e uma morte, um vagido e uma agonia; o tempo do fim, infalível, fatal.

* * *

Do semear depende a colheita. Mas que terra é esta que tanto gasta em restituir o que se lhe confiou? Semeei. Dividi minha alma, esmigalhei a minha vida, e às mãos-cheias lancei os melho-res fragmentos a esmo, na terra úbera e no chão pedregoso. Foi preciso cantar, cantei: era dócil a imaginação e eu deixei-a correr à solta; foi preciso chorar, chorei; as lágrimas podiam comprar a ventura; foi preciso confiar, confiei; a confiança prepara o cora-

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ção e legitima os desejos. Mas ela, a planta desejada, por que se deteve no seio da terra?

* * *

Pareceu-me um dia vir surgindo verde, viçosa, como as esperan-ças de que eu então enchia a minha alma. Foi ilusão? Sonhava apenas? Foi realidade? Ela a sair e eu a fechar os olhos para a não ver logo, gozá-la toda, não vexá-la, não emurchecê-la com o meu hálito ou amofiná-la com o meu olhar sequioso. Quando os abri não a vi mais. Quebrou-a o vento. Foi simples ilusão de meu desejo? Não sei; sei que desaparecera.

* * *

Há tempo de guerra e de paz, diz o Eclesiastes.

E no meio da guerra é que melhor se apreciam os benefícios da paz.

Em peleja ando, incessante e ardente. Tréguas tenho tido; a paz não passou ainda de um sonho.

Os inimigos são aos centos. Luto pela dignidade, pela tranqüi-lidade, pela felicidade. Luto por essa paz benéfica, cujo tempo há de vir no tempo em que vier. O sangue esvai-se, a confiança esmorece, o valor fraqueia; mas a luta é necessária até o tempo da paz. Quando? Nada sei...

As páginas que deixo transcritas mostram bem o estado do meu espírito. Misturava-se à dor do afeto perdido uma certa ânsia de felicidade e de paz que aceitaria logo, ainda mesmo pelas mãos de outrem que não as da mulher sonhada.

O tempo trouxe a sua ação benéfica ao meu coração. Pouco de-pois, em uma noite de conforto, lançava eu ao papel as seguintes linhas:

Volta-se de um amor, escreve um humorista, como de um fogo de artifício: triste e aborrecido. Tal é em resumo a minha situ-ação. E feliz o homem que, após um sonho de longos dias, não

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traz no coração a mínima gota de fel. Pode olhar sobranceiro para as contingências da vida e não apreender-se de vãos terrores ou vergonhosas pusilanimidades.

É certo que as naturezas capazes de resistir ao choque das pai-xões humanas são inteiramente raras. O mundo regurgita de al-mas melindrosas, que, como a sensitiva dos campos, se contra-em e murcham ao menor contato. Sair salvo e rijo dos combates da vida é caso de rara superioridade. Esta glória, esta felicidade, ou esta honra, tive-a eu, que, nas mãos da mais vesga fatalidade, nada deixei do que recebi de puro e verdadeiramente perdurável.

A vida é um livro, no dizer de todos os poetas. Negro para uns, dourado para outros. Não o tenho negro; mas o parênteses que se me abriu no meio das melhores páginas, esse foi angustioso e sombrio.

Nunca entendi o livro de Jó, como então. Só então calculei que a miséria depois da opulência era um mal maior do que a miséria desde o berço.

As lamentações do filho de Hus, não só as entendi como me ser-viram de exemplo. Vi-o maldizer a hora do nascimento e assisti à resignação com que se lhe iluminou a alma e com que ele acei-tou experiências do céu. Como ele amaldiçoei, e como ele me resignei. Aquelas páginas respiram consolações, aspirei nelas a tranqüilidade presente...

II

A viagem ao Rio de Janeiro tinha para mim um encanto; é que, em-bora perdesse os carinhos maternais e os passeios ao longo dos rios da minha província, vinha para uma capital desconhecida, onde, no meio da multidão, podia isolar-me e viver comigo e de mim. Os negócios de que vinha tratar dependiam de poucas relações, que eu inteiramente não estreitaria mais do que o necessário.

Fui morar em uma casa da Rua Direita com o meu criado João,

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caboclo do Norte, que me conhecia o gênio e sabia sujeitar-se às minhas preocupações.

A casa não era grande nem pequena; tinha duas salas, uma alco-va, e um gabinete. Não tinha jardim. Ao manifestar o meu des-peito por isso, acudiu João:

— Há jardins e passeios nos arredores, meu amo. Meu amo pode, sempre que quiser, ir passear pelo interior. E Petrópolis? Isso é coisa rica!

Consolei-me com a expectativa dos passeios.

Passei os primeiros dias a ver a cidade.

Vi muita gente boquiaberta diante das vidraças da Rua do Ouvi-dor, manifestando no olhar o mesmo entusiasmo que eu quando contemplava os meus rios e as minhas palmeiras. Lembrei-me com saudade das minhas antigas diversões, mas tive o espírito de não condenar aquela gente. Nem todos podem compreender os encantos da natureza, e a maioria dos espíritos só se nutrem de quinquilharias francesas. Agradeci a Deus não me ter feito assim. Não me detenho nas impressões que me causou a capital. Satisfiz a curiosidade e voltei aos meus hábitos e isolamento.

Dois meses se passaram sem novidade alguma. Iam bem os ne-gócios que me trouxeram ao Rio, e eu contava voltar à província dentro em poucos meses.

Durante este primeiro período fui à Tijuca duas vezes. Prepa-rava-me para ir a Petrópolis quando fui atacado de uma febre intermitente.

João chamou um médico da vizinhança, que me veio ver e con-seguiu pôr-me são.

O Magalhães era um belo velho. Ao vê-lo parecia-me estar diante de Abraão, tal era a sua fisionomia, e tal a moldura venerável de seus cabelos e barbas brancas.

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Sua presença, tanto como os remédios que me deu, serviu de curativo à minha doença.

Quando vinha visitar-me levava horas e horas em conversa, interrogando-me sobre as mil particularidades de minha vida, com um interesse tão sincero, que não me dava lugar a negativa alguma.

O doutor era um velho instruído e tinha viajado muito. Era um prazer conversar com ele. Não me contava cenas da vida de Pa-ris, nem aventuras de Hamburgo ou Baden-Baden. Falava-me do mar e da terra, mas no que o mar tem de mais solene e no que a terra tem de mais sagrado. O doutor pisara o solo da Lacedemô-nia e o solo de Roma, beijara o pó de Jerusalém, bebera a água do Jordão e rezara ao pé do Santo Sepulcro. Na terra grega foi acompanhado de Xenofonte, na terra romana de Tito Lívio, na terra santa de São Mateus e São João.

Eu ouvia as suas narrativas com um respeito e um recolhimento de poeta e de cristão. O velho falava com ar grave, mas afetuoso e ameno; contava as suas viagens sem pretensão, nem pedantismo. Aquela simplicidade dava-se comigo. Tal foi o motivo por que, terminada a moléstia, era eu já amigo do Magalhães.

Entrando em convalescença, julguei que era tempo de satisfazer as visitas do médico. Escrevi-lhe uma carta, incluí a quantia que julgava devida, e mandei pelo João à casa do doutor.

João voltou dizendo que o doutor, depois de hesitar, não quisera receber a carta, mas que se preparava para ir à minha casa.

E, com efeito, daí a pouco entrava-me em casa o Magalhães.

— Então quer brigar comigo? perguntou-me ele parando à por-ta. Fazem-se estas coisas entre amigos?

Minha resposta foi atirar-me aos braços do velho.

— Então! disse ele; já vai recuperando as cores da saúde. Está são...

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— Qual! respondi eu; ainda me sinto um pouco fraco...

— De certo, de certo. É que a doença o prostrou deveras. Mas agora vai indo pouco a pouco. Olha, por que não toma ares fora da cidade?

— Eu preparava-me para ir a Petrópolis quando caí doente. Irei agora.

— Ah! ingrato!

— Por quê?

— Mas tem razão. Eu ainda nada lhe disse de mim. Pois, meu amigo, se eu lhe oferecesse casa em Andaraí... deixaria de ir a Petrópolis?

— Oh! meu amigo!

— Isto não é responder.

— Sim, sim, aceito o seu favor...

No dia seguinte, um carro nos esperava à porta. Deixei a casa en-tregue ao meu caboclo, a quem dei ordem de ir à casa do doutor, em Andaraí, três vezes por semana.

Eu e o doutor entramos no carro e partimos.

A casa do doutor era situada em uma pequena eminência, onde, vista de longe, parecia uma garça pousada em uma elevação de relva.

No jardim e no interior tudo respirava o gosto e a arte, mas uma arte severa e um gosto discreto, que excluíam todas as superflui-dades sem valor para dar lugar a tudo o que entra nas preferên-cias dos espíritos cultivados.

No jardim algumas plantas exóticas e belas adornavam os can-teiros regulares e cuidados. Dois caramanchões elegantes e leves

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ornavam o centro do jardim, um de cada lado, passando entre ambos uma rua larga flanqueada de pequenas palmeiras.

— É aqui, disse-me o velho, que havemos de ler Teócrito e Vir-gílio.

A casa, mobiliada com elegância, era pequena; mas tudo muito bem distribuído, tudo confortável, de modo que as paredes ex-ternas tornavam-se os limites do mundo. Vivia-se ali.

O doutor possuía mil lembranças das suas viagens; cópias de te-las atribuídas aos grandes mestres de pintura, manuscritos, mo-edas, objetos de arte e de história, tudo ornava o gabinete parti-cular do doutor, nessa confusão discreta que resume a unidade na variedade.

Uma biblioteca das mais escolhidas chamava a atenção dos estu-diosos em um dos gabinetes mais retirados da casa.

— Agora que já viu isto tudo, deixe-me apresentá-lo a meu ir-mão.

E chamando um moleque mandou chamar o irmão. Daí a pouco vi entrar na sala em que nos achávamos um homem alto, menos velho que o doutor, mas cujas feições indicavam a mesma placi-dez de alma e qualidades do coração.

— Mano Bento, disse o doutor, aqui te apresento o sr.... É um amigo.

Bento recebeu-me com a maior cordialidade e dirigiu-me pala-vras da mais tocante benevolência.

Vi então que a palavra amigo era para os dois um sinal de distin-ção e que havia entre ambos a certeza de que quando um deles chamava amigo a um terceiro é que este o era e merecia a afeição do outro.

No mundo, de ordinário, não é assim. Hoje, mais ainda que ao tempo de Molière, é verdadeira e cabida a indignação de Alceste:

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Non, non, il n’est point d’âme un peu bien située

Qui veuille d’une estime ainsi prostituée.*

III

No fim de um mês de convalescença resolvi voltar para a cidade.

Que mês aquele!

O doutor saía de manhã e voltava à tarde para casa. Durante o dia ficávamos eu e o irmão do doutor, matávamos o tempo passeando ou conversando; Bento não era tão instruído como o doutor, mas tinha a mesma bondade e afabilidade, de modo que eu sempre ganhava com um ou com outro.

À tarde quando o doutor chegava punha-se o jantar à mesa; e depois íamos ler ou passear pelos arredores.

Ainda me lembro dos passeios que fizemos ao alto da Tijuca. Às sete horas da manhã vinham dizer-nos que os cavalos estavam prontos. O doutor, eu e Bento saíamos imediatamente. Um cria-do nos acompanhava levando uma pequena canastra. Chegan-do ao termo do passeio, o doutor escolhia um lugar favorável e mandava abrir a canastra.

— É uma refeição de preparo, dizia ele.

E, debaixo de uma árvore, às brisas frescas da montanha, comía-mos algumas frutas secas com vinho velho e pão.

Tendo resolvido voltar para a cidade, mesmo para adiantar os negócios que me traziam à corte, e que se achavam atrasados, dispus-me a dar parte disso aos meus hóspedes.

Era de manhã, voltava eu de um passeio à roda do jardim. Entrei pelo fundo. Na sala de visitas estavam o doutor e Bento. Ouvi-os conversar e pronunciar o meu nome. Não podiam pronunciá-

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-lo senão em sentido favorável. Picou-me a vaidade. Quis ouvir o meu elogio na boca daqueles dois amigos, tão recentes e tão completamente amigos.

— Mas que tem isto com...? perguntou Bento.

— Tem tudo, respondeu o doutor.

— Explica-me.

— Sou, como sabes, amigo desse moço...

— Também eu...

— Mas esta amizade é tão recente que ele ainda não tem tempo de nos conhecer. Pelas nossas conversas soube eu que ele possui uma fortuna muito regular. Obriguei-o a vir para aqui. Se Ângela vier agora para casa, parecerá que, contando com o coração e a mocidade de ambos, armo a fortuna do rapaz.

— Ele não pode pensar isso.

— Sei que é uma boa alma, mas é tão mau o mundo, pode fazer--lhe supor tanta coisa...

— Enfim, eu insisto, porque a pobre menina escreveu-me dizen-do que está com saudades da casa. A própria tia, sabendo disto, deseja que ela venha passar uns tempos conosco.

Nisto entrou na sala um moleque dizendo que o almoço estava na mesa.

Eu retirei-me ao meu quarto, onde o doutor e Bento me foram buscar.

À mesa, não me pude ter. Enquanto o doutor me deitava vinho no copo, disse-lhe sorrindo:

— Meu amigo, acho que faz mal em privar-se de uma felicidade que lhe deve ser grande.

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— Que felicidade?

— A de ter sua filha perto de si.

— Ah! exclamaram os dois.

— É sua filha D. Ângela, não?

— É, murmurou o doutor; mas como sabe?

— Fui indiscreto, e dou graças a Deus de tê-lo sido. Não, não sou capaz de supor-lhe uma alma tão baixa; conheço a elevação dos seus sentimentos... Demais, eu já tencionava ir-me agora.

— Já? perguntou Bento.

— É verdade.

— Ora, não!

— Mas os negócios?

— Ah!

Notei que ficaram tristes.

— Pois ficarei, disse eu; ficarei ainda alguns dias. Entretanto va-mos hoje buscar a filha desterrada.

Acabado o almoço mandou-se preparar o carro e fomos os três buscar a filha do doutor.

Ângela recebeu com verdadeira satisfação a notícia de que ia para casa de seu pai. Quem, ouvindo esta notícia, ficou logo car-rancudo e zangado, foi um rapaz que lá encontramos na sala, a conversar com a tia e a sobrinha. Era uma dessas fisionomias que não mentem nem enganam ninguém. Respirava frivolida-de a duas léguas de distância. Adivinhava-se, pela extrema afa-bilidade do começo e completa seriedade do fim da visita, que aquele coração namorava o dote de Ângela. Falo assim, não por

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ódio, como se poderá supor pelo correr desta história, mas por simples indução. Fisionomias daquelas não pertencem a homens que saibam amar, na verdadeira extensão desta palavra. Se não era o dote, eram os gozos dos sentidos, ou então simples vaidade, não faltando uma destas razões, e é essa a explicação plausível daquilo que eu já chamava namoro.

Os meus dois hóspedes conheciam o rapaz. Quando Ângela deu parte de pronta, despedimo-nos e o doutor ofereceu a casa ao namorado, mas com uma fria polidez.

Partimos.

Ângela, a quem fui apresentado como amigo da casa, era um daqueles espíritos afáveis para quem a intimidade seguia-se à primeira recepção. Era um tanto gárrula, e eu compreendia o en-canto do pai e do tio, ouvindo-a falar com tanta graça, e todavia sem indiscrição nem fadiga.

A mim, tratava-me ela como se fora um velho amigo, o que me obrigou a sair da minha taciturnidade habitual.

Enquanto o carro voltava a Andaraí e eu ouvia as mil confidên-cias de Ângela sobre os passatempos que tivera em casa de sua tia, estudava eu conversando ao mesmo tempo as relações entre este espírito e o rapaz de quem falei. Que curiosidade era a mi-nha? Seria simples curiosidade de quem estuda caracteres ou já algum interesse do coração? Não posso dizê-lo com franqueza, mas presumo, talvez orgulho meu, que era a primeira e não a segunda coisa.

Ora, o que eu concluía era que, na vivacidade e na meiguice de Ângela, é que se devia procurar a razão do amor do outro. Os homens medíocres caem facilmente neste engano de confundir com a paixão amorosa o que muitas vezes não passa de uma sim-ples feição do espírito da mulher. E este equívoco dá-se sempre com os espíritos medíocres, porque são os mais presunçosos e os que andam na plena convicção de conhecerem todos os escani-nhos do coração humano. Pouca que seja embora a prática que eu tenho do mundo, o pouco que tenho visto, e algo que tenho

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lido, o muito que tenho refletido, deu-me lugar a poder tirar esta conclusão.

Chegamos finalmente a Andaraí.

Ângela mostrava uma alegria infantil tornando a ver o jardim, a casa, a alcova em que dormia, o gabinete em que lia ou traba-lhava.

Dois dias depois da chegada de Ângela a Andaraí apareceu lá o sr. Azevedinho, que é o nome do rapaz que eu vira em casa da irmã do doutor.

Entrou saltitando e espanejando-se como passarinho que foge à gaiola. O doutor e o irmão receberam o visitante com afabilida-de, mas sem entusiasmo, o que é fácil de entender, atendendo-se a que a vulgaridade do sr. Azevedinho era a menos convidativa deste mundo.

Ângela recebeu-o com alegria infantil. Eu, que começara o meu estudo, não perdi ocasião de continuá-lo atentamente para ver se era eu quem me enganava.

Não era.

Azevedinho é que se enganava.

Mas, e é esta a singularidade do caso, mas por que motivo, ape-sar da convicção em que eu estava, entrou-me no espírito certo desgosto, em presença da intimidade de Ângela e Azevedinho?

Se ambos saíam a passear no jardim, não me podia eu conter, convidava o doutor a igual passeio, e seguindo os passos dos dois, não arredava deles os olhos atentos e perscrutadores.

Se se retiravam a uma janela para conversarem sobre coisas fú-teis e indiferentes, lá os seguia eu e tomava parte na conversação, tendo sobretudo um prazer especial em chamar exclusivamente a atenção de Ângela.

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Por que tudo isto?

Seria amor?

Era. Não posso negá-lo.

Dentro de mim, até então oculto, dava sinal de vida esse germe abençoado que o Criador depôs no coração da criatura.

Digo até então, porque o primeiro sentimento que eu sentira por uma mulher e a que aludi nas primeiras páginas, não era absolu-tamente da natureza do amor que eu agora sentia.

Então, não era tanto o sentimento, como a virgindade do cora-ção, que dava alcance à felicidade que eu almejava e à dor que sentia. O sentimento que agora se apossara de mim era outro. Dava-me comoções novas, estranhas, celestes. De hora a hora eu sentia que se estreitava o laço moral que me devia prender àquela menina.

Levantei as mãos para o céu quando Azevedinho se despediu. Ele parecia feliz, e se, amando Ângela, tinha razão de sê-lo, devia ser bem oculta a conversação dos olhos de ambos que escapasse ao meu olhar perscrutador.

O que é certo é que eu levantei as mãos ao céu quando Azevedi-nho saiu.

Foram todos acompanhá-lo à porta, por cortesia. Aí, o desempe-nado rapaz montou no alazão em que viera e desceu garboso a estrada deitando aos ares saborosas fumaças de charuto.

IV

Ditos os últimos adeuses, entramos.

Eu dei o braço a Ângela, e procurei ver se ela apresentava aquela meia alegria e meia tristeza que era própria da ocasião.

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Nada disso.

Ângela, apenas voltamos costas à estrada, e atravessamos a rua que ia ter à porta da casa, encetou uma conversação sobre coisas que nada tinham, nem de longe, com Azevedinho.

A felicidade que isto me deu desviou-me da prudência com que eu sempre me houvera. Não me pude conter. Fitando nos belos olhos da moça um olhar que devia ser profundo e terno como o amor que eu já sentia, disse estas palavras:

— Oh! obrigado! obrigado!

Nisto chegamos à porta.

A moça, admirada ao ouvir aquele agradecimento e não com-preendendo a razão dele, olhou para mim admirada. Ia articular alguma coisa, mas eu deixando-a entrar fui voltear a casa e pro-curar o meu quarto.

Não sei por que, quando me achei só, senti que as lágrimas me rebentavam dos olhos.

Amava, eis a razão. Mas, sem a certeza de ser amado, por que me consideraria feliz?

Há duas razões para isto.

Uma prova a natureza, elevada do amor. Como tinha eu um ide-al, Ângela era o objeto em que o meu ideal tomava corpo. Basta-va tê-la encontrado, bastava amá-la e era feliz.

A outra razão era de egoísmo. Uma vez que ela não amasse o ou-tro, era o que eu pedia naquele instante. Que viesse a mim com a virgindade do coração, que estivesse pura do menor pensamento de amor que fosse, enfim, que eu pudesse ser o primeiro que lhe aspirasse o perfume das ilusões inocentes, tal era o meu desejo e a minha aspiração.

Duas horas estive encerrado no meu quarto. Preparava-me para

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sair e cheguei à janela. Ângela estava assentada debaixo de uma latada que havia ao lado da casa. Tinha na mão um livro aberto, mas via-se bem que não lia. Os olhos erravam do livro para o chão, com evidentes sinais de que lhe errava no espírito alguma coisa. Só no espírito? Não podia ser ainda no coração; era um primeiro sintoma; não era ainda o acontecimento da minha vida.

Procurei não fazer rumor algum e contemplá-la sem que ela me visse. Recuei, corri as cortinas e por uma fresta cravei os olhos na moça.

Correram assim alguns minutos.

Ângela fechou o livro e levantou-se.

Recuei mais e deixei as cortinas totalmente fechadas.

Quando voltei a espreitar a linda pensativa, vi que ela saía em direção da frente da casa, sem dúvida para entrar, visto que um mormaço de verão começava a aquecer o ar. Ao abrir o chape-linho de sol para resguardá-la do mormaço, levantou os olhos e deu comigo. Não pude recuar a tempo: ela sorriu-se e aproxi-mando-se da janela perguntou:

— Que faz aí?

Abri completamente as cortinas e debrucei-me à janela.

Minha resposta foi uma pergunta:

— Que fazia ali?

Ela não respondeu, baixou os olhos e calou-se.

Depois, voltando de novo para mim, disse:

— Vou para a sala. Papaizinho está lá?

— Não sei, respondi eu.

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— Até já.

E foi caminho.

Entrei.

Quis deitar-me no sofá e ler; cheguei mesmo a tirar um livro; mas não pude; não sei que ímã me atraía para fora.

Saí do quarto.

Ângela estava na sala, ao pé da janela, diante de um bastidor de bordar que lhe dera o tio no dia em que completou dezessete anos.

Aproximei-me dela.

— Ora viva, sr. misantropo...

— Misantropo?

A conversa começava assim às mil maravilhas. Peguei em uma cadeira, e fui sentar-me defronte de Ângela.

— Parece.

— Tenho razão para sê-lo.

— Que razão?

— É uma história longa. Se eu lhe contasse a minha vida ficava convencida de que não posso ser tão comunicativo como os ou-tros. E depois...

Parecia-me fácil declarar à menina os meus sentimentos; entre-tanto, tomava-me de um tal acanhamento e receio em presença dela, que não podia articular uma palavra positiva que fosse.

Nada mais disse.

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Deitei os olhos para o bastidor e vi que ela bordava um lenço.

Ficamos silenciosos alguns minutos. Depois, como fosse aquele silêncio embaraçoso, perguntei:

— Quem é aquele Azevedinho?

E firmando o olhar nela procurei descobrir a impressão que esta pergunta lhe produzira.

O que descobri foi que as faces se lhe tornavam vermelhas; levan-tou os olhos e respondeu-me:

— É um rapaz...

— Isso eu sei.

— É um rapaz lá do conhecimento de minha tia.

— Não entendeu a minha pergunta. Eu perguntava que opinião forma dele?

— Nenhuma: é um rapaz.

De risonho tomei-me sério. Que explicação tiraria daquela ver-melhidão e daquelas respostas evasivas?

Ângela continuou a bordar.

— Por que me faz essas perguntas? disse ela.

— Ah! por nada... por nada...

Havia em mim um pouco de despeito. Quis mostrar-lho franca-mente.

— Ora, por que há de tomar esse ar sério?

— Sério? Não vê que estou rindo?

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Devia ser muito amargo o riso que eu afetava, porque ela, reparando em mim, deixou de bordar, e pondo-me a mão no braço, disse:

— Oh! perdão! eu não disse por mal... estou brincando...

O tom destas palavras desarmou-me.

— Nem eu me zanguei, respondi.

Ângela continuou a falar, bordando:

— O Azevedinho ia lá por casa de minha tia, onde conheceu meu pai e meu tio. É um bom moço, conversa muito comigo, é muito meigo e alegre.

— Que lhe costuma ele dizer?

— Falsidades... Diz que sou bonita.

— Grande falsidade!

— Ah! também! exclamou ela sorrindo com uma graça e uma singeleza inimitáveis.

— Mas que lhe diz mais?

— Mais nada.

— Nada?

— Nada!

Ângela parecia dizer a custo esta palavra; estava mentindo. Com que fim? por que razão? Que fraco examinador era eu que não podia atinar com o motivo de todas aquelas reticências e evasivas?

Estas reflexões passaram-me pela cabeça em poucos minutos. Era preciso desviar-me do assunto do rapaz. Mas sobre que po-deria ser? Eu não tinha a ciência de entreter horas sobre coisas indiferentes, em conversa com uma pessoa que me não era in-

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diferente. Tomei um ar de amigo, e mais velho, e disse a Ângela com um tom paternal:

— Nunca amou, D. Ângela?

— Que pergunta! disse ela estremecendo.

— É uma pergunta como qualquer outra. Faça de conta que sou confessor. É simples curiosidade.

— Como quer que lhe responda?

— Dizendo a verdade...

— A verdade... é difícil.

— Então, é afirmativa. Amou. Ama ainda talvez. Se é correspondi-da, é feliz. Oh! nunca permita Deus que lhe suceda amar sem ser amada... ou pior, amar a quem ama a outro... a outra, quero dizer.

— Deve ser grande infelicidade essa...

— Oh! não imagina. É o maior dos suplícios. Consome-se o co-ração e o espírito, e envelhece-se dentro em pouco. E o que se se-gue depois? Vem a desconfiança de todos; nunca mais o coração repousa tranqüilo na fé do coração alheio.

— Oh! é triste!

— Deus a preserve disso. Vejo que nasceu para dar e receber a suprema felicidade. Deus a faça feliz... e ao seu amor.

E levantei-me.

— Onde vai? perguntou-me ela.

— Vou passear... Devo preparar-me para voltar à cidade. Não posso ficar aqui sempre.

— Não vá...

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•54•

E fez-me sentar de novo.

— Está assim mal conosco? Que mal fizemos nós?

— Oh! nenhum! preciso de tratar dos meus negócios.

— Não quero que vá.

Dizendo estas palavras, Ângela baixou os olhos e pôs-se a riscar maquinalmente com a agulha no lenço.

— Não quer? disse eu.

— É ousadia dizer que não quero; mas cuido que é o meio de fazê-lo ficar.

— Só por isso?

A moça não respondeu. Senti que me animava um raio de espe-rança. Olhei para Ângela, peguei-lhe na mão; ela não recuou. Ia dizer que a amava, mas a palavra não me podia sair dos lábios, aonde chegava ardente e trêmula.

Mas, como era preciso dizer alguma coisa, lancei os olhos para o bordado; vi que estava quase completa uma inicial. Era um F. — Estremeci, F. era a minha inicial.

— Para quem é este lenço?

Ângela com a outra mão cobriu rapidamente o bordado, dizen-do:

— Não seja curioso!

— É para mim, D. Ângela?

— E se fosse, era crime?

— Oh! não!

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•55•

Senti passos. Era o doutor que entrava.

Recuei a distância respeitosa e dirigi algumas palavras a Ângela sobre a excelência do bordado.

O doutor dirigiu-se a mim.

— Ora, bem podia esperá-lo, disse ele. Cuidei que estivesse en-cerrado, e não quis incomodá-lo.

— Estive aqui assistindo a este trabalho de D. Ângela.

— Ah! bordados!

Travou-se uma conversa geral até que veio a hora do jantar. Janta-mos, conversamos ainda, e recolhemo-nos às dez horas da noite.

À mesa do chá declarei eu ao doutor que iria à cidade, senão para ficar, ao menos para dar andamento aos meus negócios. O meu caboclo tinha-me trazido uma carta de minha mãe, vinda pelo último vapor, e na qual me pedia que concluísse os negócios e voltasse à província.

O doutor disse-me que fosse, mas que me não deixasse encantar pela cidade. Disse-lhe que em nenhuma parte encontrava o en-canto que tinha ali em casa dele. Valeu-me a resposta um olhar significativo de Ângela e esta resposta do tio Bento:

— Ora, ainda bem!

V

Entrando para o meu quarto levava o espírito ocupado de refle-xões contrárias, umas suaves, outras aflitivas.

Ao mesmo tempo que me parecia poder assenhorear-me do co-ração de Ângela, dizia-me, não sei que demônio invisível, que ela não podia ser minha porque já era de outro.

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•56•

Esta dúvida era pior que a certeza.

Se eu estivesse certo de que Ângela amava Azevedinho, sentiria, de certo; mas o amor, apenas começado, devia ceder ao orgulho; e a idéia de que não devia lutar com um homem que eu julgava moral-mente inferior a mim, acabaria por triunfar em meu espírito.

Deste modo uma paixão má, um defeito moral, traria a antiga fé ao meu coração.

Mas a incerteza, não; desde que eu entrevia uma probabilidade, uma esperança, acendia-se a paixão cada vez mais; e eu acabava por dispor-me a entrar nessa luta tenaz entre o homem e a fata-lidade dos sentimentos.

Mas poderia Ângela adivinhá-lo? Aquela moça, filha de um ho-mem sisudo, educada aos cuidados dele, mostrando ela própria certa elevação de sentimentos, e, até certo ponto, uma discrição de espírito, poderia amar a um rapazola vulgar, sem alma nem coração, frívolo como os divertimentos em que ele se comprazia?

Se por um lado isto me parecia impossível, por outro eu me re-cordava do muito que era e do pouco que vira; recordava-me do que comigo mesmo sucedera e desanimava com a idéia de que tão boa pérola fosse engastada em cobre azinhavrado e vulgar.

Nesta incerteza deitei-me e levei parte da noite sem poder con-ciliar o sono.

Uma coisa aumentou ainda a minha dúvida: era a inicial borda-da no lenço e a resposta que Ângela dera à pergunta que lhe fiz a meu respeito. Duas horas bastariam para que ela se deixasse impressionar por mim? Se assim fosse, temia que o sentimen-to que eu lhe tivesse inspirado fosse menos involuntário do que convinha, e doía-me não ter nela uma soma igual ao amor que eu já sentia.

Resolvi todas as suspeitas, todas as dúvidas, todas as reflexões tristes ou agradáveis que me inspirava a situação, e dormi sobre a madrugada.

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•57•

Dois dias depois fui à cidade.

João deu-me conta dos papéis e recados que lá tinham levado. Tomei um tílburi e andei dando as convenientes ordens para se ultimarem os negócios, visto que eram essas as ordens que eu recebera de minha mãe.

De volta a Andaraí, entrando no meu quarto, mudei de roupa e dispunha-me a escrever uma carta para o norte.

Abri a carteira e aí encontrei um lenço e o seguinte bilhete escrito em letra trêmula e incorreta:

Vai partir. Esta lembrança é... de uma amiga. Guarde-a e lembre--se eternamente de quem nunca o riscará da lembrança.

Ângela lendo esta carta senti palpitar-me o coração com força. Parecia querer saltar do peito onde não cabia. Era aquilo claro ou não? Ângela amava-me, Ângela era minha. Estas palavras não sei que anjo invisível mas dizia ao ouvido e ao coração.

Li e reli o bilhete; beijei-o; guardava-o, e ao mesmo tempo torna-va a tirá-lo para ter o prazer de lê-lo de novo.

Finalmente, passada a primeira comoção, nasceu o desejo de ver e falar a Ângela. Saí; era hora do jantar.

Era impossível falar a sós com Ângela. Meus olhos, porém, fala-ram por mim, como os dela falaram por ela.

Em toda a noite não houve ocasião de falar-lhe. O doutor, sem-pre amigo, cada vez mais amigo, empenhou-se comigo em uma daquelas práticas cordiais em que o coração e o espírito trazem entre si os sentimentos sinceros e as idéias puras.

No dia seguinte tive ocasião de falar a Ângela. Quando nos vi-mos a sós, um acanhamento invencível apoderou-se de nós am-bos. Depois de alguns minutos de silêncio Ângela perguntou-me timidamente:

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— Que achou no seu quarto?

— Oh! a felicidade! respondi eu.

E pegando na mão da moça que tremia, disse-lhe com voz igual-mente trêmula:

— Ângela, creio que me amas; eu também te amo, e como creio que se pode amar no... Diga-me? É certo que sou feliz? Sou amado?

— É... murmurou a moça deixando cair a cabeça sobre o meu ombro e ocultando assim o rosto corado pela comoção.

VI

Dois dias depois estavam ultimados os negócios que me tinham trazido à corte, e eu devia voltar no próximo vapor.

Durante esse tempo Azevedinho foi uma só vez a Andaraí; apesar do espírito brincalhão e alegre, Ângela não pôde recebê-lo com a afabilidade do costume. Isto deu que pensar ao rapaz. Olhou para mim um tanto desconfiado e saiu com a cabeça baixa.

Como estivessem ultimados os negócios fui à cidade para as úl-timas ordens. Estiveram em minha casa o caboclo e mais dois sujeitos. Despachei as visitas e fui escrever algumas cartas que mandei ao seu destino por João.

Esperava o criado e a resposta de algumas cartas, quando ouvi bater palmas. Era Azevedinho. Fi-lo entrar e perguntei ao que vinha.

O rapaz estava sério.

— Venho para uma explicação.

— Sobre...— Sobre as suas pretensões acerca da filha do Magalhães.

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Sorri-me.

— É intimação?

— Não, de modo nenhum; sou incapaz de fazer uma intimação que seria grosseira e mal cabida. Desejo uma explicação cordial e franca...

— Não sei que lhe hei de dizer.

— Diga que gosta dela.

— Perdão; mas por que dever lhe hei de dizer isso? ou antes, diga-me com que direito mo pergunta?

— Eu digo: amo-a.

— Ah!

— Muito...

Fixei o olhar no rapaz para ver se a expressão do rosto indicava o que dizia. Ou fosse prevenção, ou realidade, achei que aquele amor era dos dentes para fora.

— Mas ela? perguntei eu.

— Ela não sei se ama. Devo acreditar que sim; posto que nunca tivéssemos explicações a respeito. Mas a sua resposta?

— A minha resposta é pouca coisa: dar-me-ia por feliz se fosse amado por ela.

— Mas é?

— Dar-me-ia por feliz se fosse amado por ela...

— Não quer ser franco, já vejo.

— Não posso dizer mais. Para que nos ocuparemos a respeito de uma pessoa a cuja família devo obséquios, e que é, portanto, já

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parte de minha família?

— Tem razão.

E, despedindo-se de mim, saiu.

Acompanhei-o à porta e voltei para a sala pensando na franque-za com que aquele rapaz viera saber de mim se podia contar com o coração da moça. E por que viria? Teria arras para isso? Nova dúvida assaltou o meu espírito, e eu voltei para Andaraí mais triste do que saíra.

Ângela notou isso; perguntou-me o que tinha. Então falei-lhe francamente. Perguntei-lhe, na plena confiança do amor, se nun-ca tivera para Azevedinho um sintoma de afeto, um penhor que o autorizasse a deitar para ela olhos amorosos.

Respondeu-me que nunca o amara nem lhe dera lugar a fazer--lhe nascer esperanças de amor.

Pareceu-me que Ângela era sincera; acreditei.

Depois conversamos de nós. Perguntei-lhe se estava certa do sentimento que eu lhe inspirava; se aquilo não era uma simples fantasia, em que o coração não tomava parte.

A pergunta indicava a dúvida, e a dúvida não se desfazia só com a simples resposta, uma vez que Ângela quisesse mentir.

Mas eu não contava com as palavras simplesmente. Contava com o resto, com o tom das palavras, com a luz dos olhos. Olhei para ela fixamente e esperei a resposta.

— Oh! disse ela, acredito que este amor é verdadeiro. Sinto que é isto, porque nunca felicidade tamanha me abriu ao coração as comoções do presente e as esperanças do futuro.

E dizendo isto, os olhos úmidos de lágrimas de ventura, como chuva de primavera, abriram-se para fazer penetrar o meu olhar até o mais fundo do coração.

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Era sincera.

Ângela continuou:

— E acredita que foi simplesmente daquele primeiro dia, o do bordado, que eu comecei a amá-lo? Não, foi desde que cheguei à casa. Foi um sentimento que nasceu em mim repentinamente: é verdadeiro, não?

Esta pergunta era feita com uma graça adorável.

Minha resposta foi um beijo, o primeiro, mas um beijo respeito-so, casto, onde resumi todas as aspirações e todos os sentimentos do meu coração.

VII

Aproximava-se o dia da partida.

Eu estava decidido a pedir Ângela em casamento. Contava com a aquiescência do pai e o agrado do tio.

O meu projeto era ir buscar o consentimento de minha mãe e voltar depois.

Ângela, a quem comuniquei isso, disse-me que não me separasse dela; que era melhor escrever à minha mãe; que ela mesma escre-veria, e bem assim o pai, diante do que minha mãe não recusaria.

Não pude recusar este conselho.

Mas era preciso aproveitar tempo. Tratei de falar na primeira ocasião ao amigo doutor.

Uma tarde estávamos conversando no gabinete em que ele lia, e tratávamos exatamente da minha futura (1).

— Não pretende voltar mais ao Rio de Janeiro?

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— Pretendo.

— É promessa formal?

— Olhe lá!

— Com certeza.

— Sabe que sou seu amigo?

— Oh! sei, sim!

— Ora bem!

— Sei que é amigo e vou pedir-lhe mais uma prova de amizade e confiança.

— Qual é? Quer a lua? disse-me o velho sorrindo. Olhe, não des-confie; é pura brincadeira.

— O meu pedido...

E parei.

— Ah! disse o velho, creio que não é tão fácil assim...

— Doutor, continuei eu, amo sua filha...

— Ah!

Esta exclamação era fingida; percebi-o logo.

— E quer?

— E peço-lha para minha mulher.

— Ângela já me contou tudo.

— Ah! exclamei eu por minha vez.

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— Tudo. Sei que se amam. E como negar aquilo que se lhes deve? Em meus braços, meu filho!

Abracei o velho na doce expansão da felicidade que ele me aca-bava de dar.

Saímos do gabinete.

Ao entrar na sala encontramos três pessoas: Ângela, o tio Bento e Azevedinho.

O doutor foi ao encontro do último, que se levantou.

— Não contava com a sua visita.

— Vinha falar-lhe em um negócio sério.

— Em particular?

— Devia ser, mas creio que não há aqui ninguém estranho à fa-mília...

— Decerto que não.

E dizendo isto o velho olhou sorrindo para mim.

— Penso, continuou o rapaz, que também o sr.... é da família... pela amizade.

— É, respondeu o doutor, com sinais visíveis de aborrecimento e desconfiança.

Que quereria Azevedinho? Viria expor-se à negativa? Não es-perei muito tempo. O rapaz, erguendo a voz, para que todos o ouvissem, disse:

— Sr. doutor, amo D. Ângela, e desejo recebê-la por minha mu-lher. Consente?

O velho ficara calado alguns segundos.

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•64•

Depois, dirigindo-se à filha, disse:

— Ângela, tens dois pedidos de casamento. Acabo de os ouvir com diferença de poucos minutos.

E referiu o que eu lhe tinha dito.

Ângela, consultada, não hesitou. Declarou que seria minha mulher.

Azevedinho ficou pálido de enfiado.

— Sinto... ia dizendo o doutor.

— Oh! não há nada a desculpar. É simples: o meu rival foi mais feliz do que eu...

Despediu-se e saiu.

Restava concluir-se o meu casamento.

Eu e Ângela rimos muito do logro de Azevedinho. Era um prazer cruel que eu tinha em rir da desgraça alheia naquele momento. Como não sentiria eu se o desenganado fosse eu? A diferença está que Azevedinho não sentia nada, e perdeu a conquista como perderia uma pequena aposta.

Soube-o positivamente pouco depois.

No fim de dois meses o meu rival vencido acedera aos velhos pe-didos de uma tia que possuía, ao lado de uma fortuna avultada, a mania de acreditar-se capaz de apaixonar um homem.

Tinha ela quarenta e cinco anos e era feia. O rapaz achou-a de uma beleza deliciosa e concluiu o casamento.

A fortuna que a tia, sua esposa então, conservara acumulada, passou para as mãos de Azevedinho, e saiu das mãos dele como um feixe de foguetes incendiados. Em poucos meses Azevedinho viu-se obrigado a pôr termo aos seus caprichos, a fim de salvar alguma coisa e trabalhar para viver o resto da vida.

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Consta-me que se tomou um bom homem.

Quanto a mim, resolvido o casamento, tratei de escrever a mi-nha mãe, pedindo o seu consentimento. Ângela quis a todo custo acrescentar estas palavras:

Perdi minha mãe. Quer substituí-la? — Ângela

Veio a resposta daí a um mês. Minha mãe deu o consentimento, mas pedia instantemente que eu fosse, depois de unido, viver na província.

Daí a poucos dias unia-me eu em matrimônio a Ângela de Ma-galhães.

VIII

Desde o primeiro dia do meu casamento abriram-se-me na vida horizontes novos. Todo o sentimento de reserva e de misantro-pia que caracterizava os primeiros anos da minha mocidade de-saparecia. Era feliz, completamente feliz. Amava e era amado.

Quando se tratou de irmos para a província surgiu uma dificuldade: partir era deixar os dois velhos tão meus amigos, o pai e o tio de mi-nha mulher; ficar era não acudir ao reclamo de minha mãe.

Cortou-se a dificuldade facilmente. Os dois velhos resolveram partir também.

Em chegando a este desenlace a narrativa perde o interesse para os que são levados pela curiosidade de acompanhar uma intriga amorosa.

Cuido mesmo que nestas páginas pouco interesse haverá; mas eu narro, não invento.

Direi pouco mais.

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•66•

Há cinco anos que tenho a felicidade de possuir Ângela por mu-lher; e cada dia descubro-lhe mais suas qualidades.

Ela é para meu lar doméstico:

A luz,

A vida,

A alma,

A paz,

A esperança,

E a felicidade!

Procurei por tanto tempo a felicidade na solidão; é errado; achei--a no casamento, no ajuntamento moral de duas vontades, dois pensamentos e dois corações.

Feliz doença aquela que me levou à casa do Magalhães!

Hoje tenho mais um membro na família: é um filho que possui nos olhos a bondade, a viveza e a ternura dos olhos de sua mãe.

Ditosa criança!

Deu-lhe Deus a felicidade de nascer daquela que é, ao lado de minha mãe, a santa querida da minha religião dos cânticos.

FIM

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CONTOS DE MACHADO DE ASSIS

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Onda

Texto-fonte:http://www2.uol.com.br/machadodeassis/Publicado originalmente em Jornal das Famílias, 1867.

(*)

Na pia chamara-se Aurora; Onda era o nome que lhe deram nos salões.

Por quê? A culpa era dela e de Shakespeare; dela, que o mereceu; de Shakespeare, que o aplicou à instabilidade dos corações femi-ninos.

Tinha um coração capaz de abrigar seiscentos cavaleiros em dia de temporal, e até sem temporal. Batessem-lhe à porta, que a hospitaleira castelã abria sem maior indagação. Dava ao pere-grino água para os pés, pão alvo e vinho puro para o estômago, leito macio e aquecido para o corpo. Mas, depois disto, fechava--se muito bem fechada em sua alcova, e, rezando a Deus pela paz dos viajantes alojados, dormia tranqüila em seu leito solitário.

De tais facilidades em dar asilo a uns, mesmo quando outros ain-da estavam sob o teto hospitaleiro, é que lhe nasceu a denomina-ção que serve de título a estas páginas.

Pérfida como a onda, disse um dia um dos enganados, vendo-a passar em um carro e indo parar à porta do Wallerstein.

O nome pegou.

Ora, vejamos, em minha imparcialidade de historiador, se esta denominação lhe quadrava.

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Coitadinha! não precisava muito tempo para ler-lhe nos olhos, adivinhar-lhe os gestos, traduzir-lhe nos sorrisos, a vivacidade, a dissimulação, a afabilidade que constituem o tipo da moça na-moradeira.

Via-se que ela conhecia a fundo esta arte de atrair e prender os corações e as vontades com um simples volver de olhos, um sim-ples meneio de leque.

Dera-lhe Deus uma beleza que era a sua base de operações. Não é que a beleza seja absolutamente necessária. Sei de alguém que reconheceu uma mulher cujas feições examinadas, uma por uma, não tinham traço algum de beleza; mas que sabia mover uns olhos que Deus lhe deu e de que ela, seja dito em honra da verdade, fazia um mau uso. Tão mau, que este alguém em ques-tão, depois de se apaixonar por eles, achou-se um dia sem cora-ção e sem futuro...

Se era assim com aquela, o que não seria com esta, que, além de um par de olhos vivíssimos, formosíssimos, eloqüentíssimos, possuía as verdadeiras formas de beleza feminina?

Onda sabia que tinha os olhos bonitos: volvia-os a cada momen-to; sabia que possuía mãos de princesa: concertava os cabelos de minuto a minuto; sabia que possuía uns dentes e uma boca divinos: sorria a propósito de cada coisa; sabia que os seus pés eram dos mais perfeitos: procurava não sujar o vestido quando descia do carro.

De modo que, amigos ou estranhos, pobres ou ricos, poetas ou prosas, velhos ou moços, todas as criaturas que pertenciam ao sexo do autor e do leitor destas linhas, ficavam fascinados, pre-sos, apaixonados.

Ela cuidava extremamente de pôr em relevo a sua beleza me-diante os inventos da arte. Era assinante dos melhores jornais de modas e freguesa das melhores casas de novidades elegan-tes. Distinga-se porém: a minha heroína era casquilha para ser namoradeira, o que é alguma coisa diferente da casquilha por casquilhice. Se me é lícito aplicar uma fórmula séria, direi que

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há entre as duas espécies a diferença que vai do princípio de arte pela arte ao princípio de arte pela moral.

Onda sabia que o espírito do homem deixa-se prender facilmen-te pelos atrativos artificiais juntos aos atrativos naturais, e não deixava de aumentar pela cifra da elegância a unidade da beleza com que a natureza a dotara.

Acrescente-se a isto, que Onda possuía um gosto apuradíssimo. Mesmo na escolha dos mais simples trajares revelava-se nela a discrição, o acerto, a boa mão, para usar de uma expressão po-pular.

Ora, não se resiste facilmente a quem reúne tantos predicados; e se a simples presença bastava para prender, o que não era quan-do aquela boca se abria, como uma taça de mel do Himeto, e destilava, não digo palavras, gotas de pura ambrosia do céu?

Assim que, naquelas guerras de amor, a presença era o primeiro ataque, a palavra a batalha campal. Ninguém saía delas são e sal-vo; saía-se ferido, e, o que é mais, sem esperanças de chegar a co-ronel. O tempo dava alguma confiança aos que se enamoravam dela em virtude de uma reflexão que lhes parecia justa; e era que nem toda a vida Onda faria de sua beleza uma simples rede para passatempo. Esta esperança fortificava as coragens e inspirava as constâncias. O próprio tempo os ia desenganando até a hora em que se deu o episódio que vou narrar em poucas palavras.

No momento em que Onda, completando vinte e cinco anos, pareceu chegar à idade razoável de passar do capricho ao amor sério e digno, apareceu na intimidade da família desta misteriosa donzela um rapaz, que meses antes chegara de uma longa viagem à Europa à custa de um tio desembargador.

Antes de pisar o reino da nova Diana já Ernesto (é o nome do herói) sabia com quem ia lidar. Meia dúzia de logrados tiveram cuidado de instruí-lo da alcunha e das qualidades da moça.

Ernesto, depois de ouvir as narrações e as imprecações de todos, puxou uma fumaça, e brandindo um chicotinho de junco, olhou

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para os seis e disse-lhes:

— Não quero argüi-los de fraqueza ou inépcia; mas façamos uma aposta: o que perdem se eu conseguir domar essa gentil pantera?

— Ora! exclamaram em coro os seis ministros decaídos.

— Isso não é responder.

Um dos interlocutores respondeu:

— Mas é impossível domá-la! disse um que era poeta.

— Impossível? exclamou Ernesto. Meus amigos, se Penélope não tivesse pressentimento de que, mais tarde ou mais cedo, Ulisses lhe apareceria em casa, não fiaria tanto, e em vez de sustentar a tantos pretendentes, sustentaria apenas um, o que era mais acer-tado, no duplo ponto de vista da economia e do coração. Onda, como lhe chamam, espera sem dúvida Ulisses que sou eu, e os vai iludindo até que eu apareça para entrar na posse do direito que a natureza me conferiu. Esta é a verdade...

Cada qual dos seis pretendentes desenganados tinha consciência de ter feito os últimos esforços, consciência em que entrava um tanto de fatuidade; mas tinham isso, e foi por isso que, quando Ernesto acabou de falar, responderam todos com a mais estron-dosa gargalhada.

A fatuidade falara em primeiro lugar no espírito de Ernesto; a gargalhada ofendeu-lhe o amor-próprio; insistiu, já sério, ou an-tes com aquele riso especial que em nossa língua se exprime tão bem pelo riso amarelo; depois de dez minutos de renhida discus-são, assentou-se que, no caso de vitória, Ernesto teria direito às seguintes prendas:

Um jantar no Hotel de Europa.

Um cavalo.

Um mês de verão em Petrópolis.

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Uma assinatura do Teatro Lírico.

Um milheiro de charutos de Havana.

Saldar todos os credores.

Um manuscrito de Voltaire.

Esta última aposta era do poeta que se gabava de possuir muitos manuscritos de homens célebres, e que, declarando o que perde-ria, teve cuidado de fazer observar que perderia mais que todos.

No caso em que Ernesto fosse derrotado pagaria aos outros, co-letivamente, um lauto banquete.

Nisto despediram-se.

Ernesto estava compenetrado da situação. Perder era correr-se de vergonha, sobretudo depois do tom em que falara e da confiança que mostrava ter em si. Outras razões aduzia ainda: ganhar era, não só envergonhar a tantos, como ainda entrar de cabeça alta na posse de uma mulher formosa e de uma fortuna regular.

Já por esta reflexão fica o leitor instruído de que Ernesto não era homem de dar uma polegada de si ao ideal. Uns através dos olhos da mulher queriam ver a alma; Ernesto enxergou simplesmente uma bolsa recheada. Este modo de traficar a própria pessoa não é nenhuma descoberta, nem eu me dou por Arquimedes. Aponto simplesmente mais este traço do nosso herói.

Ora, o nosso herói, pesadas as coisas, ficou determinado a entrar em combate.

“Qu’allait-il faire dans cette galère?” * perguntaria Geronte.

O caso é que foi.

A primeira coisa que Ernesto resolveu no seu espírito foi não ceder um palmo ao encanto de Onda. Era o melhor meio para operar melhor. Estando a frio podia calcular, e calcular era, pelo

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menos, criar as mesmas vantagens da inimiga.

Não nos demoremos, leitor, com as primeiras cenas deste namo-ro, que nos não adiantam nada. Saltemos uns vinte dias e che-guemos a uma tarde de junho em que Onda, em companhia de duas amigas, espera a visita de Ernesto.

Depois de certa espera anuncia-se a chegada do herói. Onda re-cebe-o com o melhor dos seus sorrisos.

Ernesto, contente de si, cumprimentou o mais graciosamente que podia a bela e as amigas, e depois, com uma graça que pro-curava ser natural, assentou-se na cadeira que Onda lhe indicara com um gesto.

Até este dia Ernesto tinha procedido muito elementarmente: fa-zia um louvor à beleza de Onda entre dois suspiros que magoa-vam à força de parecerem magoados. Era, na opinião de Ernesto, o primeiro meio, o mais natural, o mais próprio. O que é certo é que, depois de alguns dias, Onda lhe parecera decidida a aceitá--lo. Mas não seria fingimento? dizia consigo Ernesto; e concluin-do pela afirmativa, procurou empregar todas as suas armas, de maneira que não só pudesse aferir a sinceridade dos sentimentos da moça, mas ainda inspirar-lhe sentimentos verdadeiramente sinceros e profundos.

Ora, eis aqui como ele estreou a conversa:

— Já sei que está com saudades de mim?

— Ande lá, respondeu Onda, ainda bem que é o primeiro a fazer o capítulo da própria acusação.

— Sou criminoso.

— Talvez, não... Mas sabe por que tive saudades?

— Porque não venho aqui há cinco dias.

— Bem. E por que não veio?

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Dizendo isto Onda cravou em Ernesto um desses olhares que, procurando animar uma resposta, deixam o espírito em perple-xidade e confusão.

Ernesto esteve dois minutos sem responder, mas também sem desviar os seus olhos dos olhos da moça.

É que aquele olhar era de fogo grego que Onda guardara para a ocasião oportuna. Depois de uma ausência de cinco dias, pare-cendo que a presa se escapava, cumpria prendê-la de modo que não lhe desse mais ocasião de tão longos esquecimentos.

Esse olhar era tudo. Derrubaram-se os projetos de Ernesto: vi-nha com a intenção de experimentar o ciúme da moça, trazia já redigida a mentira que servia de arma, mas tudo se lhe esqueceu, tudo se inutilizou.

Sem desviar os olhos de Onda, Ernesto balbuciou estas palavras:

— Estive doente...

— Doente? Com efeito, está pálido.

Ernesto lançou rapidamente os olhos para um espelho e reparou que estava realmente pálido.

Mas esta palidez não resultava de moléstia alguma, ou antes re-sultava de uma moléstia que só agora se manifestava em toda a sua ação.

Onda estava segura de seu triunfo. Via o efeito que produzia no espírito de Ernesto e comprazia-se nessa vitória que tão volun-tariamente adiara. O essencial era convencer a Ernesto que ela o amava. Ora, o tom das suas palavras, a magia do seu olhar, faziam entrar no espírito do moço esta convicção.

Depois de duas horas de conversa, em que o tempo pareceu cor-rer mais rapidamente do que costumava, para Ernesto entende--se, Onda estendeu graciosamente a mão esquerda para Ernesto e perguntou-lhe:

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— Vai ao Teatro Lírico?

— Oh! com certeza!

Ernesto não se pôde furtar a um desejo de tomar alguma coisa do tesouro que se lhe oferecia. Levou a mão de Onda aos lábios e imprimiu-lhe um beijo apaixonado.

— Deste beijo, pensava Ernesto, pode nascer a minha ventura. Talvez até hoje ninguém ousasse a isto.

E na verdade, Onda pareceu estremecer sentindo os lábios do moço na pele alva e fina da sua mão de princesa.

Quanto às duas amigas, essas voltaram o rosto e não puderam esconder um sorriso, ao ver a figura de Ernesto e a graça cortesã com que ele se curvou e beijou a mão de Onda.

Ernesto saiu com os sentidos exaltados, o coração palpitante, as idéias confusas; estava definitivamente namorado, e, o que é mais, pensava ele, tinha agarrado a bela fugitiva.

À noite foi ao Teatro Lírico. Charton, que então fazia as delícias do público fluminense, cantava nesse dia uma das suas melhores criações. O teatro estava cheio; todos aplaudiam a artista com sincero entusiasmo; nessa noite não cantava a competidora de Charton, a Emmy Lagrua; e, como é sabido, os freqüentadores do teatro tinham-se dividido em dois partidos extremados, fo-gosos, mais fogosos e extremados que os partidos episcopais no concílio de Nicéa. *

Só Ernesto não se filiava a nenhum partido; o único objeto de partido para ele fulgia em um camarote da 2ª ordem. Onda esta-va esplêndida nessa noite. De sua cadeira Ernesto assestava qua-se constantemente o seu binóculo contra o camarote. Onda, que acompanhava todos os gestos e movimentos de Ernesto, fitava o olhar nos vidros do binóculo do moço e deixava errar nos lábios um sorriso fascinador.

Ernesto sabia que o sorriso era para ele, e subia proporcio-

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nalmente ao sétimo céu.

Mas seria Ernesto o único cortesão da beleza de Onda que se achava no teatro? Outros havia que, de diversos pontos da sala, como outros tantos observadores astronômicos, estudavam a marcha e a beleza daquele planeta. No fim do primeiro ato con-venceram-se todos de que havia na sala um preferido.

— Quem será? foi a primeira pergunta que cada qual fez a si.

E a resposta mental que para eles mesmos deram a esta pergunta foi:

— É natural que ele vá ao camarote.

E todos, caminhando por vias diversas e separadamente, chegaram quase ao mesmo tempo a um mesmo ponto: o camarote de Onda.

Eram três. Ernesto completava o número de quatro. Foi o último que entrou, radiante e feliz.

Quando entrou viu os três competidores, que ele já conhecia, conversando alegremente com a esquiva dama.

Por que alegremente?

Onda, ao primeiro que apareceu e que a censurara com meias palavras, respondeu:

— Pelo indiferente, ri-se; pelo escolhido... sente-se.

O pretendente sentiu bater-lhe o coração violentamente.

A tia de Onda, que se achava no camarote, não ouviu a conversa, nem que ouvisse lhe prestaria atenção.

Casquilhice.

Ao segundo despeitado Onda respondeu com um olhar signifi-cativo, como aquele que abatera Ernesto; ao terceiro poupou os olhos para poder falar a mão graciosa cujos músculos pareciam

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outros tantos fios elétricos.

De modo que, supondo-se cada qual mais feliz que o outro, en-chia-se de certa vaidade e olhava com sincera compaixão para os outros.

E mais que todos Ernesto, que entrou no camarote com aquela confiança de quem sabe que causa uma grande satisfação, tão grande como seria grande o aborrecimento que os outros cau-sariam.

E nenhum, depois de meia hora de conversação, mudava de pa-recer. Onda sabia conservar no espírito de cada um a convicção da sua preferência: uma palavra ambígua, um meneio de leque, um olhar, um gesto, tudo lhe eram armas para combater a dúvida e afirmar a fé no coração dos seus adoradores.

O resto da noite passou-se do mesmo modo, repetindo-se as visi-tas e confirmando cada um no espírito do outro a opinião de que era néscio e importuno.

No fim do espetáculo foi Ernesto que teve a honra de acompa-nhar Onda ao carro. Ia de cabeça alta, lançando um olhar de des-dém para todos, e dirigindo-se freqüentemente a Onda, que lhe respondia com suma graça e volubilidade.

Junto aos últimos degraus da escada da porta lateral que dá para a Rua dos Ciganos estavam os seis amigos da aposta, risonhos e interrogativos.

Ernesto viu-os, cumprimentou-os levemente e dirigiu-se para a porta. Um dos outros competidores trazia a velha tia de Onda e apressou-se a descartar-se dela fazendo-a entrar na carruagem. Depois, Ernesto conduziu a moça, fê-la entrar e ia dizer duas pa-lavras de despedida quando sentiu que lhe ficara na mão o lenço de cambraia da formosa Onda.

Antes que o menor sinal de admiração a comprometesse, Onda estendeu a mão a Ernesto e disse-lhe com voz doce e insinuante:

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— Até amanhã!

— Até amanhã!

A tia também repetiu, entre dois bocejos, as duas palavras:

— Até amanhã!

Mas Ernesto já ali não estava. Beijar o lenço, metê-lo na algibeira do paletó e correr para os amigos que o esperavam à porta do teatro, foi uma e a mesma coisa.

— Bravo! bravo! repetiram em coro os amigos.

Ernesto não sabia que dizer. Olhava para todos com um sorriso quase alvar, tal era o estado em que o deixara a inesperada ven-tura da dádiva do lenço.

— É minha! pensava ele.

— Então ganhaste a aposta? perguntaram os outros.

— Não sei: esperem. Quero declarar-lhes a vitória completa no dia em que puder apelar para o reconhecimento da igreja.

— Ah! ah! então casas-te?

— Por que não? Oh! meus amigos, mais tarde ou mais cedo hei de acabar por aí. Sinto em mim a bossa conjugal. Ninguém foge à sina. Ora, se há de ser com outra, por que não há de ser com esta? Não lhes disse eu que era o Ulisses desta Penélope? Verão se acertei. O que é certo é que, como o pai de Telêmaco, tive meus naufrágios, e no fim de tantas atribulações aguardo a felicidade doméstica. Trato agora de flechar os pretendentes. Meus caros, a confiança e a coragem são tudo. Chénier tem razão :

................ Ami, reprends courage,

Toujours le ciel glacé ne souffle point l’orage.

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Le ciel, d’un jour à l’autre, est humide ou serein. *

Esta conversa já tinha lugar na rua. Uma parte da noite, em casa de um dos amigos, onde foram todos tomar chá, Ernesto conti-nuou no mesmo falar de segurança, e nos outros, apesar da pró-pria experiência, foi desaparecendo a dúvida para dar lugar a um convencimento que não era isento de despeito.

No dia seguinte Ernesto foi à casa de Onda e voltou de lá mais do que encantado. A noite é boa conselheira; antes de conciliar o sono, Ernesto refletira que a presença do lenço em sua mão poderia ser fortuita, e com este pensamento diminuíram-se-lhe umas boas braças do castelo que ele já construíra em seu espírito. Mas tão feliz era que se enganou na sua presunção. Quando, para sondar a verdade das coisas, disse a Onda que esta deixara cair por descuido o lenço, ela olhou-o fixamente e disse-lhe:

— Lenço é apartamento. Vamos experimentar se nos havemos de separar.

Era positivo.

Ernesto ficou fora de si.

Nessa noite chegando à casa resolveu escrever à moça mostran-do-lhe o estado da sua alma.

Deu ordem para que o não incomodassem; mandou fazer café, acendeu um charuto, leu e releu Propércio e Millevoye, e depois de duas horas de incubação intelectual redigiu o seguinte mani-festo do coração:

Minha prezada Senhora. — Uma palavra sua vai ser para mim a condenação ou a salvação. Meu coração chegou ao estado de só admitir estas soluções extremas.

Bem sei quão grande é a minha ousadia. Bem sei que pretender o seu amor é aspirar às estrelas do céu, à luz divina da glória eter-na; sou talvez indigno de receber das suas mãos a coroa do meu supremo martírio. E se, no meio desta ventura, posso discernir

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estas coisas, é preciso que o amor que lhe consagro tome propor-ções tais que me não seja possível conservar no fundo da minha mediocridade.

Amo-a; não cuide, porém, que este amor, semelhante ao amor comum dos homens, fosse apenas o resultado de uma fantasia e a conclusão de um cálculo. Vão. Este amor é caso de vida e de morte; é um desses afetos em que a alma se empenha toda e do qual não pode sair sã e salva.

Desde que a vi, senti que o meu coração tinha encontrado o seu ideal; onde há aí beleza mais admirável, mais rara, mais comple-ta? A antigüidade tinha repartido os diversos modos da beleza nas deusas que inventou. Mas nesta que o meu coração faz glória de amar reúne-se tudo: a majestade de Juno, o recato de Hebe, a beleza de Ciprina, o aspecto virginal das três Graças.

A um coração de poeta, posto que de gênio não o seja eu, tal reunião de encantos não podia passar despercebida; vê-la, foi tornar-se cativo, e cativo desse cativeiro mágico que tem o dom de fazer beijar os ferros e amar a condição. É que cativar-me as-sim, é libertar-me, é deixar os laços da matéria, é remontar-me à pura região dos gozos desconhecidos.

Em tal estado, a afirmativa ou a negativa é uma sentença de vida ou de morte. Nas suas mãos está fazer de mim um venturoso ou um desgraçado.

Talvez fora melhor que isto que aqui lhe digo no papel fosse expresso de viva voz; mas eu não sei se teria coragem de falar. Longe de seus olhos sinto-me menos acanhado, mais livre, mais próprio para exprimir o estado do meu coração.

Aguardo a sua sentença. - Ernesto.

Apesar de certa incongruência e da aparente afetação desta carta, Ernesto releu-a contente, admirando o belo estilo que até ali não descobrira em si.

Fechou a carta e arranjou meio de fazê-la chegar secretamente às

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mãos de Onda.

A moça respondeu verbalmente que, no dia seguinte, no sarau que se dava em casa de um tio dela, se entenderia com Ernesto.

Ernesto recebeu com alguma amargura esta resposta. Todavia sempre esperançado preparou-se para o sarau, e lá foi ter.

Antes de ir passou pelos olhos, durante o dia, a cópia da carta com que ficara, e a cada período que lia parecia-lhe que Onda não era capaz de resistir.

Não quis ir cedo. Pareceu-lhe melhor fazer-se esperar e fazer nascer da impaciência uma resposta mais pronta. Só às onze ho-ras compareceu ao sarau.

Dançava-se uma polca.

Onda e um cavalheiro (exatamente um dos pretendentes do Tea-tro Lírico) faziam as delícias dos apreciadores da polca.

Ernesto, com o coração aos pulos, esperou, encostado a um por-tal, que a dança acabasse.

E posto que dali a dez minutos a polca se tivesse acabado, tal era a impaciência de Ernesto, que lhe pareceu um século. É que não era só a impaciência, era já o ciúme de vê-la nos braços de outro.

Terminada a polca, Onda, contra as previsões de Ernesto, foi percorrer alguns salões pelo braço do cavalheiro.

Que significava aquilo? Ernesto ficou algum tempo perplexo. Fi-nalmente refletiu que, tendo chegado poucos minutos antes, não podia a moça saber logo da sua presença.

Devia ir falar-lhe.

Dava alguns passos quando um dos amigos da aposta acercou-se dele e pediu-lhe novas do namoro.

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Ernesto, procurando sorrir, disse que mais tarde poderia dizer alguma coisa.

— Os outros estão aqui, disse o amigo.

— Todos? perguntou Ernesto.

— Todos.

— Bem, até logo.

E dizendo isto, Ernesto foi-se em procura da mulher que o pren-dia.

Atravessando uma sala viu dirigir-se para ele o par que procu-rava. Deteve-se. E para aparentar indiferença e acaso foi a um espelho e aí fingiu consertar os cabelos, com a mão, ao de leve.

Ficava assim de costas para os dois e podia ver no reflexo do es-pelho se ela reparava nele ou não.

Ora, o que ele viu foi a moça trocar com o cavalheiro um olhar de ternura, e este arrancar-lhe das mãos, que apenas opuseram fraca e doce resistência, uma pequena flor que ela tirara do ramalhete.

Ernesto enfiou.

Após a comoção da cena que acabava de presenciar, outra como-ção o tomou: foi a vista do rosto pálido com que ficou.

Os dois passaram.

Ernesto deixou-se cair em um sofá.

Quase a ganhar a batalha, no momento da vitória decisiva, en-contrava-se repentinamente no mesmo ponto em que começara as lutas.

Quando passou a primeira comoção veio-lhe à lembrança a carta que escrevera e cuja resposta ia buscar. Mas devia pedi-la depois

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do que presenciara? E não era a sua posição uma posição ridí-cula?

Pensando em tudo isto, Ernesto levantou-se e passeou à toa por todas as salas e corredores.

Dançava-se, cantava-se, tocava-se; ele nada via, nada ouvia; via o ridículo e o desdém. Supunha ter metido uma lança em África e descobria agora que era tão medíocre como os outros.

Nestas reflexões amargas andava, quando, ao passar por uma das salas, ouviu a voz de Onda.

A voz partia do vão de uma janela.

Ernesto escondeu-se no vão da janela contígua e procurou co-brir-se entre as cortinas para não ser visto se alguém passasse.

Depois prestou o ouvido à conversação e procurou distinguir as vozes. Não havia voz de homem. Além de Onda, havia uma voz de mulher. Falavam o nome dele. Redobrou de atenção.

— Como és feliz! dizia a voz desconhecida.

— Feliz?

— Ou antes ardilosa!

— Por que ardilosa? Tenho eu culpa que sejam todos os homens de uma mediocridade de espírito incomparável? Divirto-me, nada mais.

— Oh! mas esse, o Ernesto, não é tão medíocre assim...

— Mais que os outros. Tem o que os outros não tinham ou não pareciam ter: a vaidade de agradar por seus encantos.

— Pois este?...

— É o que te digo. Acreditarás tu que foi só depois de muitos

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dias que me resolvi a prendê-lo como todos? Ao princípio afeta-va uma indiferença sem igual: parecia alheio a mim, e entretanto eu sabia que ardia por figurar entre os meus adoradores. Hoje é o pior de todos. Se visses a carta que me escreveu!

— Ah! escreveu-te...

— Oh! um regimento de tolices, sem pés nem cabeça, umas coisas já muito velhas e batidas, declarando-me que da minha decisão dependia a felicidade ou a condenação dele. Quer fazer supor que morre se eu responder que não o aceito em meu cora-ção. Que tal?

— Pensei que este meio já se não usava.

— Usa-se, usa-se...

— Mas dize-me cá; não gostas de alguém?

— Por ora, não.

— Mas deveras ninguém te inspirou ainda amor?

— Não. Que queres? Fui educada com o recato maior deste mun-do; entrando na convivência das outras, e nas distrações nos bai-les, não pude logo ao principio tomar afeição alguma. Foi tempo esse que gastei em duas coisas: em ler e observar. Ora, da leitu-ra adquiri idéias talvez um pouco absurdas, mas enfim adquiri, e fora das quais não compreendo o amor. Gosto de amar e ser amada por inspiração, e com verdadeira paixão. Até aqui nada tenho visto além de uns amores vulgares que não contentam o coração.

— E sabes se algum dia encontrarás?

— Talvez... quem sabe?

— Ah! maliciosa! Aí anda coisa!

— Qual!

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— Quem sabe se este último, este de hoje, o da flor?...

Nisto passava um grupo. As vozes calaram-se e Ernesto foi obri-gado a coser-se mais com a janela e a cobrir-se com a cortina.

O rapaz suava ouvindo aquelas coisas a seu respeito. Sentia o efeito que se sente ao acordar de um sonho em que se parece estar no cimo de uma montanha, quando realmente se está a três ou quatro palmos do chão.

Não era bem o amor dele que se ressentia; era mais o amor-pró-prio ferido naquelas palavras com que era tratado.

Depois de uma batalha tão renhida e cuidada, reparava ele que não passara de um joguete aos manejos de uma dama ardilosa e namoradeira.

Quando pôde de novo ouvir a conversa que, aliás, lhe chegava entrecortada e incompleta, já as duas moças tratavam de outro ponto da questão.

— Mas o que pretendes fazer? perguntou a desconhecida.

— É conforme o modo por que ele me falar. Talvez o receba com uma secura tal que ele nunca mais se lembre de mim.

— Não tens pena de perdê-lo?

— Ora, rei morto, rei posto.

— Dize antes: reis mortos, reis postos!

Riram ambas, ambas se beijaram, e dando o braço uma à outra saíram dali como dois anjinhos que acabavam de pedir a Deus por uma alma condenada.

Ernesto, apenas sentiu que elas já estavam longe, saiu do seu es-conderijo.

Que iria fazer? Esteve alguns instantes sem tomar determinação

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alguma. Ainda não tinha falado a Onda; o melhor meio que lhe pareceu era dirigir-se à moça, cumprimentá-la e não tocar no assunto da carta. Depois, se ela viesse de si ao assunto, falar con-forme o tom das suas palavras e procurar fugir ao ridículo e à afronta.

Tendo tomado esta resolução, Ernesto caminhou para o salão em busca de Onda. Tocava-se o sinal de uma quadrilha. Ernesto dirigiu-se para Onda com um sangue frio afetado e fez-lhe, o mais gracioso e indiferente que pôde, um cumprimento. Depois convidou-a a dançar.

— E se eu tiver par? perguntou a moça, um pouco admirada da discordância que notava entre a carta e aqueles modos.

— Paciência; esperarei.

— É tão resignado assim?

— Por que não?

Mas os olhos de Onda, com que Ernesto não contava, iam fazen-do já o efeito do costume, de modo que a indiferença com que ele viera determinado começou a dar lugar a uma ternura misturada com humildade. Onda respondeu:

— Pois quero dar-lhe uma prova de amizade. Vou roer a corda ao par.

— Oh! isso!

— Por que não? Está dito: vamos dançar.

E, levantando-se, aceitou o braço de Ernesto, que nada pôde res-ponder a estas palavras, tão estranho lhe pareceu aquele proce-dimento.

Formou-se a quadrilha e ambos dançaram, tendo exatamente por vis-à-vis a companheira de Onda e um dos rapazes da aposta com Ernesto.

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É inútil dizer que nenhum cavalheiro alegou a falta de Onda, vis-to que ela não tinha realmente par aceito para a quadrilha.

Durante a dança os ressentimentos de Ernesto foram desapare-cendo cada vez mais. No fim estava quase como na hora em que escreveu a carta.

Terminada a quadrilha foram os dois para o pequeno terraço da casa.

A noite era das mais belas. Esta circunstância serviu de tema para as primeiras palavras de Ernesto, a quem ocorreram no momento as palavras de uma situação de romance que ele lera alguns dias antes.

Enquanto a conversa não passou dessas banalidades, Onda mos-trou-se amável a mais não ser. Mas Ernesto, iludido por essas aparências, tendo esquecido perfeitamente a conversa da janela, ousou falar bruscamente na carta e pedir uma resposta.

Da primeira vez Onda não respondeu.

Ernesto insistiu na exigência.

Onda convidou-o a levá-la ao salão,

— Mas a carta?

— A carta? disse ela. Que carta?

— A que eu lhe mandei.

— Ah! ainda não li. Tive tanta coisa em que cuidar ontem.

Ernesto enfiou deveras.

— Não leu?

— Não li.

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Ernesto não se pôde ter, e referiu a conversa que ouvira entre Onda e sua amiga. Depois de ouvir a narração que Ernesto mati-zou de pontos de admiração, Onda contentou-se em responder:

— Foi sonho!

Ernesto não disse palavra ouvindo isto.

Houve entre ambos um momento de silêncio.

Onda encetou conversa sobre coisas diversas. Ernesto mal res-pondia por monossílabos.

Enfim, Onda pediu a Ernesto que a conduzisse ao salão. Ernesto deu-lhe o braço e disse-lhe que também não se demoraria no baile.

— Mas irá em minha casa amanhã, sim?

— Para quê? Para ouvir a leitura...

E cortou subitamente o que ia dizer.

Mas Onda adivinhou.

— Ora, disse ela. Não falemos mais nisso. Vá, que eu gosto de sua companhia.

Ernesto levou Onda ao salão e saiu sem despedir-se de ninguém.

Estava humilhado.

No dia seguinte, os seis amigos de Ernesto receberam o seguinte bilhete:

Perdi a aposta. Estão convidados a jantar hoje no Hotel de Euro-pa às cinco horas. Enterro o amor. - Ernesto.

Às cinco horas os sete amigos estavam à roda de uma mesa em uma das salas particulares do Hotel de Europa.

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— Com que, perdeste? disse um.

— Não te dizíamos nós! acrescentava outro.

— Aprendeste à tua custa, acudia o terceiro.

— Não serás tolo em outra ocasião, observou filosoficamente o quarto.

— São as lides que formam cavalheiros: isto é de um poeta, citava o poeta da reunião.

— O que te vale é que não pareces ter perdido muita coisa do coração neste negócio, dizia o último.

— É verdade, respondia Ernesto, dizes muito bem. Perdi, mas salvei o coração. Meu amor-próprio não deixou de ressentir-se com isto; mas juro que fiz o que era humanamente possível. É que realmente a rapariga é insensível. Pois, olha, posso afirmar que eu conheço o nome aos bois...

Toda a conversa foi por este teor.

E era de ver a alegria sincera com que Ernesto abriu a carteira, no fim do jantar, para saldar a vistosa conta que o caixeiro lhe apresentara.

Devo dizer que o jantar que serviu de funeral ao amor de Ernesto foi dos mais escolhidos.

Duas palavras, em forma de epílogo, para fechar este ligeiro epi-sódio.

Onda prosseguiu nos seus amores fáceis, dando a todos os mes-mos desenganos que custaram a Ernesto... um jantar.

Mas enfim, se os namoros passavam, também passava o tempo, e um dia, estando ao espelho, Onda viu que a primeira ruga se lhe desenhava no rosto. Tinha ela então trinta e três anos. A ruga era

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prematura, mas, fosse ou não, existia, e esta descoberta deu sério cuidado à moça.

Esperar o amor que sonhara pelos romances era arriscar-se, visto que à primeira ruga sucederiam outra e outras.

Era preciso achar marido.

Lançou as vistas a lista dos seus adoradores, já muito diminuída, não porque lhe faltasse a beleza, mas porque lhe sobrava traves-sura para os arredar.

Entre esses adoradores havia um que pela terceira vez depositava o coração aos pés da bela namoradeira. Da primeira vez era um simples tenente de cavalaria; da segunda era capitão; agora era já major.

Onda resolveu que lhe cumpria assentar praça ao lado do major.

Daí a um mês anunciava-se o seu casamento. O major abençoou a sua insistência e recebeu em matrimônio a esquiva donzela.

Daí para cá Onda tem-se mostrado fiel às armas.

Quando Ernesto e os outros souberam disto fizeram muitos epi-gramas, alguns desconsolados e sensaborões.

Mas a rapariga casou-se.

Ernesto no fim de dois anos vingou-se de tudo procurando mu-lher e encontrando uma das mais modestas deste mundo. Os dois casais são felizes; o leitor não menos por ter chegado ao fim deste episódio sem derramar uma lágrima, e eu tanto como o leitor, por ter pingado o ponto final a este escrito, cujo assunto principal é um desvio do espírito das mulheres.

FIM