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Os contos que Machado não aproveitou (1882-1884) Thomaz Pereira de AMORIM NETO 1 Resumo: O presente ensaio analisa 42 contos de Machado de Assis que não entraram na coletânea Histórias sem Data. Tentamos observar as variações de estilo do autor, bem como a recorrência de temas que seriam reaproveitados em outros contos, romances e crônicas. Palavras-chave: Machado de Assis, Literatura Brasileira, Conto, Editor-leitor, Literatura Comparada. Abstract: The present work analyses 42 Machado de Assis' short stories which were not selected for his Histórias sem Data (Timeless Histories) collection. We are attempting to observe the author's style variations and the recurrency of themes that would be further reused in other short stories, romances and novels. Keywords: Machado de Assis, Brazilian Literature, short story, reader-editor, Comparative Literature. Machado de Assis, entre 1882 e 1884, publicou nada mais, nada menos do que 42 contos. Essa produção quase ininterrupta espalhada em três periódicos (A Estação, Gazeta de Notícias e Gazeta Literária) teve, em Histórias sem data, 24 contos aproveitados. Os 18 não aproveitados pelo autor são o objeto da presente análise, em que tentaremos formular algumas hipóteses que expliquem o fato de o editor Machado de Assis não os ter escolhido para publicação em livro. O presente texto dialoga com outro ensaio produzido no âmbito da pesquisa financiada pela FAPERJ . 1 Professor Doutor de Literatura Comparada (UERJ CAPES/FAPERJ) CEP 20550-013, Rio de Janeiro/RJ, e-mail [email protected]. O presente ensaio constitui um dos resultados parciais do projeto de pós-doutoramento As escolhas de Machado de Assis: um estudo sobre o processo de seleção e escritura do contista Machado de Assis, financiado pela bolsa PNPD (CAPES/FAPERJ). Dialoga com outro ensaio de mesma origem: ―Reviravolta machadiana: Histórias sem data em perspectiva‖, no qual trabalhamos especificamente com o processo de sel eção dos 24 contos que compõem a coletânea em questão.

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Os contos que Machado não aproveitou (1882-1884)

Thomaz Pereira de AMORIM NETO1

Resumo: O presente ensaio analisa 42 contos de Machado de Assis que não entraram na

coletânea Histórias sem Data. Tentamos observar as variações de estilo do autor, bem

como a recorrência de temas que seriam reaproveitados em outros contos, romances e

crônicas.

Palavras-chave: Machado de Assis, Literatura Brasileira, Conto, Editor-leitor,

Literatura Comparada.

Abstract: The present work analyses 42 Machado de Assis' short stories which were not

selected for his Histórias sem Data (Timeless Histories) collection. We are attempting to

observe the author's style variations and the recurrency of themes that would be further

reused in other short stories, romances and novels.

Keywords: Machado de Assis, Brazilian Literature, short story, reader-editor,

Comparative Literature.

Machado de Assis, entre 1882 e 1884, publicou nada mais, nada menos do que

42 contos. Essa produção quase ininterrupta espalhada em três periódicos (A Estação,

Gazeta de Notícias e Gazeta Literária) teve, em Histórias sem data, 24 contos

aproveitados. Os 18 não aproveitados pelo autor são o objeto da presente análise, em

que tentaremos formular algumas hipóteses que expliquem o fato de o editor Machado

de Assis não os ter escolhido para publicação em livro. O presente texto dialoga com

outro ensaio produzido no âmbito da pesquisa financiada pela FAPERJ.

1 Professor Doutor de Literatura Comparada (UERJ – CAPES/FAPERJ) – CEP 20550-013, Rio de

Janeiro/RJ, e-mail – [email protected]. O presente ensaio constitui um dos resultados

parciais do projeto de pós-doutoramento As escolhas de Machado de Assis: um estudo sobre o

processo de seleção e escritura do contista Machado de Assis, financiado pela bolsa PNPD

(CAPES/FAPERJ). Dialoga com outro ensaio de mesma origem: ―Reviravolta machadiana: Histórias

sem data em perspectiva‖, no qual trabalhamos especificamente com o processo de seleção dos 24

contos que compõem a coletânea em questão.

Esses 18 contos apresentam algumas peculiaridades com relação aos contos

selecionados para o livro, e nossa análise pretende agrupá-los sob uma hipótese simples:

em Machado de Assis, os contos não selecionados costumam combinar-se entre si,

como uma espécie de laboratório de produção em que se percebem procedimentos,

alterações e obsessões que ora contribuem para os romances por ele publicados, ora para

os contos mais conhecidos do autor.

Dessa forma, continuamos a seguir o conselho machadiano que exige de cada

um de seus contos ―predicados de observação e estilo‖ (ASSIS, 2003, p. 13), com o

intuito de ver o autor como editor de si mesmo e entender os mecanismos dessa mesma

edição.

Os contos não selecionados: uma nota comparativa

A maioria dos contos que Machado deixou apenas nos periódicos foi publicada

n'A Estação, enquanto grande parte daqueles apresentados para compor Histórias sem

data estava nas páginas da Gazeta de Notícias. Num primeiro momento, o leitor pode

ser levado a crer que o autor de Memorial de Aires estivesse em pleno controle de sua

produção, mandando para os periódicos os contos conforme um determinado plano.

Caso o fosse, não teríamos contos publicados n'A Estação em Histórias sem data, e

vice-versa. De qualquer forma, o que nos chama a atenção de imediato é que houve uma

preferência do autor com relação ao que deixar para a posteridade (leia-se, coletar e

publicar em livro), e o que devia deixar para o limbo literário.

Há uma coisa que chama ainda mais a atenção quando colocamos os contos

selecionados lado a lado com aqueles que ficaram somente nas páginas dos periódicos:

enquanto os primeiros abundam em citações (por vezes comentadas pelo narrador e

apresentando certas deturpações), os não selecionados apresentam uma quase completa

ausência de citações. Temos epígrafes, como em ―Metafísica das rosas‖, temos

experimentações literárias, mas a presença de uma biblioteca imaginária é quase

inexistente nesses contos. Apesar disso, todos eles apresentam certa unidade; não

estamos falando aqui de unidades temáticas, mas de determinadas formas de narração

que Machado estaria experimentando. É nesse sentido que analisaremos os 18 contos

não selecionados; para nossa hipótese, eles não fazem um conjunto, mas conjuntos de

processos que rondam a mente do escritor e que serão reaproveitados com outras

roupagens (seja nos romances, seja em contos posteriores), constituindo, assim, um

verdadeiro laboratório para o autor.

―O imortal‖, conto publicado em partes de julho a setembro de 1882, trabalha

com a história, aparentemente fantástica, de um homem que se tornara imortal ao beber

um elixir que, além de curá-lo de uma doença mortal, não permitiria que ele viesse a ser

acometido por qualquer outro mal, mantendo-se sempre jovem e robusto. A história

apresenta um problema inicial: é narrada pelo filho do tal imortal. Esse filho é descrito

da seguinte forma:

Médico homeopata, – a homeopatia começava a entrar nos domínios

da nossa civilização, – este Dr. Leão chegara à vila, dez ou doze dias

antes, provido de boas cartas de recomendação, pessoais e políticas.

Era um homem inteligente, de fino trato e coração benigno. (…)

Andava propagando o novo sistema. (ASSIS, 2008, vol. III, p. 64)

Dr. Leão não contava a história para qualquer homem com quem jantava, mas

para o Coronel Bertioga e o Tabelião João Linhares. Estando os três numa ―vila na

província fluminense‖, já temos dois escalões do poder representados nessas figuras. É

claro que Machado esconde o procedimento e interessa-se pelo espanto das duas

personagens:

Os dois ouvintes continuavam pasmados. A dúvida fora posta pelo

dono da casa, o Coronel Bertioga, e o tabelião ainda insistiu no caso,

mostrando ao médico a impossibilidade de ter o pai nascido em 1600.

Duzentos e cinquenta e cinco anos antes! dois séculos e meio! Era

impossível. Então, que idade tinha ele? e de que idade morreu o

pai?(ASSIS, 2008, Vol. III, p. 64)

O espanto leva a uma torrente de perguntas que, por desorganizadas, fazem

com que o Dr. Leão peça para que os dois representantes da vila parem com o espanto e

passem a prestar atenção no que ele iria contar. O leitor tende, então, a acompanhar a

história até seu desfecho. Mas há uma nova intromissão de um narrador onisciente

explicando o procedimento:

– ―Excitada a curiosidade, não foi difícil impor-lhes silêncio. A

família toda estava acomodada, os três eram sós na varanda, o

Dr. Leão contou enfim a vida do pai, nos termos em que o leitor

vai ver, se se der o trabalho de ler o segundo e os outros

capítulos‖ (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 65 – grifos nossos).

O procedimento lembra outros que já foram utilizados por Machado de Assis

durante sua carreira como contista. Em ―Confissões de uma viúva moça‖ (1869), por

exemplo, a narradora afirma algo similar para a leitora/amiga: acompanhe as cartas que

seriam enviadas semana a semana, constituindo-se em um folhetim que deveria ser

mostrado às amigas como prova de algo que não deverá mais acontecer a ninguém

(ASSIS, 2005, p. 133-4). Em ―O imortal‖, a ligeira diferença na sentença gera uma

segunda possibilidade: se o leitor ―se der o trabalho‖, lerá o segundo e os outros

capítulos, mas, se o leitor não o fizer e passar imediatamente ao final? Ou seja, a

dubiedade da proposta do narrador machadiano chama a atenção, pois aqui não se trata

de um compêndio moral que deve ser acompanhado semana a semana, mas de uma

narrativa que procura cativar o leitor.

Essa diferença é fundamental e esconde a armadilha mesma do conto: a escolha

do leitor fará com que ele ignore a intenção do narrador em prol do segundo (Dr. Leão),

que conta a história de seu pai nascido em 1600. No final da narrativa, reencontramos o

narrador machadiano, que esclarece as intenções do Dr. Leão:

– (…) Enfim um dia, como eu fizesse a alguns amigos uma exposição

do sistema homeopático, vi reluzir nos olhos de meu pai um fogo

desusado e extraordinário. Não me disse nada. De noite, vieram

chamar-me ao quarto dele. Achei-o moribundo; disse-me então, com a

língua trôpega, que o princípio homeopático fora para ele a

salvação. Similia similibus curantur. Bebera o resto do elixir, e

assim como a primeira metade lhe dera a vida, a segunda dava-lhe

a morte. E, dito isto, expirou. O coronel e o tabelião ficaram algum tempo calados, sem saber que

pensassem da famosa história; mas a seriedade do médico era tão

profunda, que não havia duvidar. Creram no caso, e creram também

definitivamente na homeopatia. Narrada a história a outras pessoas,

não faltou quem supusesse que o médico era louco; outros atribuíram-

lhe o intuito de tirar ao coronel e ao tabelião o desgosto manifestado

por ambos de não poderem viver eternamente, mostrando-lhes que a

morte é, enfim, um benefício. Mas a suspeita de que ele apenas quis

propagar a homeopatia entrou em alguns cérebros, e não era

inverossímil. Dou este problema aos estudiosos. Tal é o caso

extraordinário, que há anos, com outro nome, e por outras

palavras, contei a este bom povo, que provavelmente já os

esqueceu a ambos. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 78 – grifos nossos)

O princípio da homeopatia no conto é o princípio do phármakon

(NASCIMENTO, 2007, p. 21-42), ou seja, o mesmo utilizado para curar pode, se usado

repetidas vezes, matar ou prejudicar o paciente. Para o narrador machadiano, ao

contrário do Dr. Leão, não há nada que justifique o princípio da homeopatia, ou seja, ―O

imortal‖ é um conto que encena a discordância entre o narrador machadiano e o

narrador personagem. Enquanto o segundo deseja ―propagar a homeopatia‖, o primeiro

tenta justamente o contrário, contando a mesma história. Dessa forma, o princípio

homeopático Similia similibus curantur mostra-se para o autor de maneira diversa da

antiga problemática grega. Na história, a única questão que se levanta é a credulidade

dos notáveis da vila. Machado de Assis, dessa forma, utiliza o procedimento que vemos

pela primeira vez em ―Confissões de uma viúva moça‖ de maneira invertida: a

preocupação não é mais dar conselhos moralizadores, mas problematizar o princípio

homeopático de propagação de ideias.

Sobre as viúvas, parece que esse tipo se tornou verdadeira obsessão para

Machado de Assis nesse período. Dos contos não selecionados, em sete uma viúva entra

em cena. Na maioria dos casos, trata-se mesmo da personagem principal do conto. Em

dois deles, não o são, mas auxiliam na dinâmica narrativa. Verdadeira obsessão ou um

tipo feminino que abre margens para um melhor aproveitamento da análise de caracteres

empreendida por Machado de Assis? Uma viúva não é mais uma donzela que, protegida

pela família, não pode passear pela Corte e dialogar com os homens e, dependendo de

sua idade, ainda não haveria maturidade suficiente para adquirir certos trejeitos que são

considerados negativos. De fato, a maioria das viúvas desse período tem entre 21 e 30

anos de idade; vejamos, então, essas moças.

Em ―O programa‖, publicado n'A Estação entre dezembro de 1882 a março de

1883, apesar de as viúvas não serem o objeto de análise do autor, elas contam com um

bom espaço na narrativa. A história narra as desventuras de Romualdo, que,

influenciado pelo seu mestre-escola, deseja fazer um programa. Mas o que seria um

programa? O próprio mestre-escola esclarece a dúvida:

– Programa é o rol das coisas que se hão de fazer em certa ocasião;

por exemplo, nos espetáculos, é a lista do drama, do entremez, do

bailado, se há bailado, um passo a dois, ou coisa assim... É isso que se

chama programa. Pois eu entrei no mundo com um programa na mão;

não entrei assim à toa, como um preto fugido, ou pedreiro sem obra,

que não sabe aonde vai. Meu propósito era ser mestre de meninos,

ensinar alguma coisa pouca do que soubesse, dar a primeira forma ao

espírito do cidadão... Dar a primeira forma (entenderam?), dar a

primeira forma ao espírito do cidadão... (ASSIS, 2008, Vol III, p. 86)

Ou seja, o ―programa‖ é certa objetividade na vida, visando um determinado

alvo. O problema de Romualdo é que ele queria acertar múltiplos alvos ao mesmo

tempo: queria ser ministro, porque vira um ministro; queria ser um rico anfitrião, porque

vira uma festa em que havia um; queria casar-se, porque lera romances românticos com

finais felizes. Ele não acordara poeta como o fizera Luís Tinoco de ―Aurora sem dia‖,

mas tornara-se as três coisas imaginariamente, iniciando, assim, sua vida com alusões a

Shakespeare, Napoleão e Pitt; mas, de maneira diversa do procedimento de Histórias

sem data, essas alusões são somente exemplos, não adentrando a economia do conto em

si.

Como falávamos de viúvas, vamos a elas. Romualdo estava decidido a se

tornar uma espécie de Luís Tinoco. Se lembrarmos de ―Aurora sem dia‖, a ordem de

progressão era: literatura, política, amores. O programa de Romualdo misturava as

etapas; vieram juntas a literatura e uma primeira paixão, ―pessoa vulgar e sem graça‖,

produzindo uma poesia que era apenas ―lugar-comum‖ (Vol. III, 2009, p. 88). Após isso,

uma mocinha de quinze anos se apaixona por ele, mas ele a perde por completa falta de

esforço; o esforço de imaginar-se futuramente superara a ação de namorar a moça.

Enfim, ela casara com o promotor que ―tratara logo de cortejar a moça, e tão tenazmente

que ela em pouco tempo estava caída‖ (Vol. III, 2009, p. 92). Neste ponto, há uma

divergência com relação a ―Aurora sem dia‖. No conto mais antigo, a vivência de Luís

Tinoco tinha um ponto de realidade, seu padrinho, que o aconselhava a largar os sonhos;

em ―O programa‖, de maneira diversa, Machado insere Fernandes, um amigo que não

acreditava em si mesmo, mas nos devaneios de Romualdo. Acreditava de tal forma que

lhe arranjou a viúva e aceitou o convite do amigo para trabalhar como seu escrevente

(ASSIS, 2008, Vol. III, p. 93), de tal forma que tinha ―fé em todos os raios da estrela de

Romualdo: o conjugal, o forense, o político‖. Ao mesmo tempo em que a viúva aparece

na narrativa, aparece um cliente para o advogado Romualdo que, há pouco, abrira um

escritório na Corte. Para o rapaz, tudo estava arranjado: esses seriam os primeiros

passos para uma vida abastada e, com a repercussão de seu trabalho como advogado, a

garantia da carreira política. Porém,

Vieram buscar um artigo para a folha política; Romualdo, que o não

escrevera, mal pôde alinhar, à pressa, alguns conceitos chochos, a que

a folha adversa respondeu com muita superioridade. O Fernandes,

logo depois, lembrou-lhe que findava-lhe certo prazo no embargo da

obra nova; ele arrazoou nos autos, também às pressas, tão às pressas

que veio a perder a demanda. Que importa? A viúva era tudo.

Trezentos contos! Daí a dias, era o Romualdo convidado para um

baile. Não se descreve a alma com que ele saiu para essa festa, que

devia ser o início da bem-aventurança. Chegou; vinte minutos depois

soube que era o primeiro e último baile da viúva, que dali a dois

meses casava com um capitão-de-fragata. (ASSIS, 2008, Vol. III, p.

96)

Aqui, a viúva (que não recebe um nome) é vista apenas por seu valor

monetário. Para Romualdo, o casamento nada mais é do que a garantia de seu

―programa‖, mas o que mais importa é que o esforço é desperdiçado, como se pode

perceber, em sonhos de um futuro sem esforço. O que vemos, depois, é a derrocada de

Romualdo, que termina sem a esposa rica, sem o escritório, sem o amigo que se

esforçara em vão numa eleição. Romualdo, só, volta a seguir os passos de Luís Tinoco e

vai para a roça, mas seu programa ainda viceja na memória, levando-o a tentar a carreira

política por lá. Fracassa e troca de roça. Casa-se e, no espaço de cinco anos, tem seis

filhos. A partir daí, o esforço torna-se a sua vida, pois ―Seis filhos não se educam nem

se sustentam com seis vinténs‖ (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 99).

Já então ia em quarenta e cinco anos, estava todo grisalho, fisionomia

cansada; felizmente, gozava saúde, e ia trabalhando. Tinha dívidas, é

verdade, mas pagava-as, restringindo certa ordem de necessidades.

Aos cinqüenta anos estava alquebrado; educava os filhos; ele mesmo

ensinara-lhes as primeiras letras.

Vinha às vezes à corte e demorava-se pouco. Nos primeiros tempos,

mirava-a com pesar, com saudades, com uma certa esperança de

melhora. O programa reluzia-lhe aos olhos. Não podia passar pela

frente da casa onde tivera escritório, sem apertar-se-lhe o coração e

sentir uns ímpetos de mocidade. A Rua do Ouvidor, as lojas elegantes,

tudo lhe dava ares do outro tempo, e emprestavam-lhe alguma energia,

que ele levava para a roça. E então nos primeiros tempos, trabalhava

com uma lamparina de esperança no coração. Mas o azeite era pouco,

e a lamparina apagava-se depressa. Isso mesmo cessou com o tempo.

Já vinha à corte, fazia o que tinha de fazer, e voltava, frio, indiferente,

resignado. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 99)

O tempo passa e passa para todos. Romualdo, de maneira diversa de Luís

Tinoco, visitava periodicamente a Corte, lembrava-se de seus sonhos e resignava-se por

não ter conseguido algo no mundo. Poucos anos depois, Romualdo, aos 53 anos,

encontra-se com Fernandes. Os dois se cumprimentam, e o dono do ―programa‖ vê que

o amigo tornara-se rico em Curitiba. Fernandes explica-lhe que, por um lance de sorte,

vencera na vida. Cabe a Romualdo, ao retornar à roça, a simples reflexão:

– No entanto, ele não fez programa, dizia amargamente. E depois:

– Foi talvez o programa que me fez mal; se não pretendesse tanto...

Mas achou os filhos à porta da casa; viu-os correr a abraçá-lo e à mãe,

sentiu os olhos úmidos, e contentou-se com o que lhe coubera. E,

então, comparando ainda uma vez os sonhos e a realidade, lembrou-

lhe Schiller, que lera vinte e cinco anos antes, e repetiu com ele:

―Também eu nasci na Arcádia...‖ A mulher, não entendendo a frase,

perguntou-lhe se queria alguma coisa. Ele respondeu-lhe: — A tua

alegria e uma xícara de café. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 100)

Romualdo e Luís Tinoco se encontram novamente. Ambos na roça, mas

Romualdo, saudoso do ―programa‖, encontra na família a consolação necessária para

manter-se. Luís Tinoco encontra a redenção na roça, pois ―Com poucos anos mais estou

rico‖, segundo ele próprio afirma. Machado insere um ponto negro nesta versão da

história de um ambicioso: Tinoco entende que o esforço diário traz recompensas;

Romualdo entende que, para ter o mínimo, terá de se esforçar (ASSIS: 2003 [1873], p.

132).

O segundo conto em que temos uma viúva é ―Três consequências‖, publicado

originalmente em julho de 1883, em A Estação. O conto centra-se em D. Mariana Vaz,

uma viúva de 25 anos. Segundo o narrador, Mariana não contrairia novas núpcias, pois

―Moralmente estava casada. O casamento dela subsistia. Nunca seria infiel ao 'seu

Fernando'‖ (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 123). A fidelidade com relação ao marido morto

enfraquece no momento em que Mariana tem de ir à Corte com o propósito de abrandar

o luto, pois, como o marido morrera há um ano, já era hora de vestir cores além do

preto. Vejamos o impacto que a vida na Corte provocou em Mariana:

Na Rua do Ouvidor, onde a sua beleza era notada, correu logo que era

uma viúva recente e rica. Cerca de vinte corações palpitaram logo,

com a veemência própria do caso. Mas, que poderiam eles alcançar,

eles da rua, se os da própria roda da prima não alcançavam nada? Com

efeito, dois amigos do marido desta, rapazes da moda, fizeram a sua

roda à viúva, sem maior proveito. Na opinião da prima, se fosse um só

talvez domasse a fera; mas eram dois, e fizeram-na fugir. (ASSIS,

2008, Vol. III, p. 123)

O espetáculo da Rua do Ouvidor e a consciência de que era bela despertaram

novamente Mariana para o mundo. No caso de uma mulher ainda jovem e cobiçada, o

mundo significa um casamento. Mas sua beleza conquistava muitos admiradores, o que

tornava a viúva ainda resoluta na solidão. Ao voltar para a fazenda, é claro que a Corte

ainda rondava sua imaginação:

A vida agitada da corte perpassava no espírito da moça como um

espetáculo mágico. Ela via as damas que desciam ou subiam a Rua do

Ouvidor, as lojas, os rapazes, os bonds, os carros; via as lindas

chácaras dos arredores, onde a natureza se casava à civilização,

lembrava-se da sala de jantar da prima, ao rés-do-chão, dando para o

jardim, com dois rapazes à mesa, — os tais dois que a requestaram à

toa. E ficava triste, custava-lhe fechar os olhos. (ASSIS, 2008, Vol. III,

p. 124)

As saudades da Corte são, para Mariana, um novo suplício. No conto, somem

as alusões ao marido e entram em cena as investidas do juiz municipal, que possuía

gravatas ―semelhantes às da Rua do Ouvidor. Pareceu-lhe que sim, e durante os três dias

de ausência não pensou em outra coisa‖ (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 124).

O final do conto mostra como procedeu a troca da viúva:

Casaram-se três meses depois. A tia, experiente e filósofa, acreditou e

fez crer que, se Mariana não tem vindo em pessoa comprar os

vestidos, ainda agora estaria viúva; a Rua do Ouvidor e os teatros

restituíram-lhe a idéia matrimonial. Parece que era assim mesmo,

porque o jovem casal pouco tempo depois vendeu a fazenda e veio

para cá. Outra conseqüência da vinda à corte: — a tia ficou com os

vestidos. Que diabo fazia Mariana com tanto vestido escuro? Deu-os à

boa velha. Terceira e última conseqüência: um pecurrucho. Tudo por

ter vindo ao atrito da felicidade alheia. (ASSIS, 2008, Vol. III, p.

124 – grifos nossos)

Machado de Assis mostra, dessa maneira, como a volubilidade de uma mulher

pode mudar seus horizontes matrimoniais. Mariana estava decidida em permanecer no

luto; prova disso é a compra das roupas na Corte, que são ainda escuras depois do

primeiro ano de morte do esposo, mas esse mesmo fato – ir à Corte – a transformou,

pois o ―atrito da felicidade alheia‖ (o que, no conto, não é mostrado) fez com que

tivesse ideias de se mudar para o Rio com um homem que lembrava um que vira na

cidade. Dessa forma, o segundo marido de Mariana nada mais é do que um símbolo,

ainda que (para utilizar o repertório do autor) oblíquo, da cidade mais importante para o

autor de Quincas Borba.

Nossa próxima viúva será encontrada em outubro de 1883: trata-se da mãe de

Cecília Faria, que se interpõe entre o romance de Venâncio e a mocinha, em ―Vidros

quebrados‖. Diferente das outras viúvas, a viúva Faria apresenta seus 50 anos de idade

e, ainda assim, merece um breve comentário de Venâncio: ―Namorei-me ali de uma

moça de vinte, linda como o sol, filha da viúva Faria. A própria viúva, apesar dos

cinqüenta feitos, ainda mostrava o que tinha sido‖ (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 125 –

grifos nossos).

Venâncio rapidamente se apaixona por Cecília e, após quatro meses, envia

carta à viúva pedindo-lhe a mão da filha. Esta nega, pede desculpas, afirmando que

―Cecília não podia casar tão cedo, mas que, ainda podendo, ela tinha outros projetos, e

por isso sentia muito [...]‖ (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 125). A oposição da viúva vai-se

tornando cada vez mais veemente, e essa mesma oposição vai mudando a forma pela

qual Venâncio a via. Como a objeção da viúva tinha como modus operandi prender a

filha dentro de casa, Venâncio fez um acordo com uma das escravas da casa e pulava o

muro. Em certo dia – conta ele:

A viúva acordou com o barulho, foi à janela dos fundos, e viu-me

saltar o muro, fugindo. Supôs naturalmente que era um ladrão; mas no

dia seguinte, começou a desconfiar do caso, meteu a escrava em

confissão, e o demônio da negra pôs tudo em pratos limpos. A viúva

partiu para a filha:

– Cabeça-de-vento! peste! isto são coisas que se façam? foi isto que te

ensinei? Deixa estar; tu me pagas, tão duro como osso! Peste! peste!

A preta apanhou uma sova que não lhes digo nada: ficou em sangue.

Que a tal mulherzinha era das arábias! (ASSIS, 2008, Vol. III, p.

126 – grifos nossos)

Enquanto a viúva não cede aos interesses de Venâncio, a sua imagem para ele

vai-se transformando. Ela é descrita inicialmente como uma mulher bela e, em paralelo

com a filha, um anjo mais velho. Nesse momento do conto, torna-se uma ―mulherzinha

das arábias‖, e a beleza tornara-se impetuosidade, a qual se transforma num plano:

colocar a filha num convento. Venâncio não se opõe a isso, pois poderia retirar a amada

por meio da justiça:

Tudo correu bem. Vocês não imaginam o furor da viúva, quando as

freiras lhe mandaram dizer que Cecília tinha sido tirada por justiça.

Correu à casa do desembargador, exigiu a filha, por bem ou por mal;

era sua, ninguém tinha o direito de lhe botar a mão. (…) Cecília foi

chamada à sala, e não fraqueou: declarou que, ainda que o céu lhe

caísse em cima, não cedia nada. A mãe saiu como uma cobra.

(ASSIS, 2008, Vol. III, p. 126-7 – grifos nossos)

A descrição atinge o ponto moral mais baixo. A retórica machadiana, aqui,

busca demonstrar como a visão de Venâncio pretende pintar a viúva em cores mais

escuras do que realmente são (procedimento usado posteriormente e com maiores

requintes em Dom Casmurro, como sabemos). Aqui, porém, Machado de Assis tenta um

procedimento que irá repetir-se nos contos: a inserção de um personagem que coloca a

visão do protagonista em perspectiva. Esse procedimento faz com que o leitor reveja

aquilo que estava a acompanhar na narrativa, espécie de quebra da linearidade da

descrição. Esse recurso possibilita uma brusca parada no contexto da narrativa. Vejamos

a cena:

Marcamos o dia do casamento. Meu pai, que estava então em Santos,

deu-me por carta o seu consentimento, mas acrescentou que, antes de

casar, fosse vê-lo; podia ser até que ele viesse comigo. Fui a Santos.

Meu pai era um bom velho, muito amigo dos filhos, e muito sisudo

também. No dia seguinte ao da minha chegada, fez-me um longo

interrogatório acerca da família da noiva. Depois confessou que

desaprovava o meu procedimento.

– Andaste mal, Venâncio; nunca se deve desgostar uma mãe...

– Mas se ela não queria?

– Havia de querer, se fosses com bons modos e alguns empenhos.

Devias falar a pessoa de tua amizade e da amizade da família. Esse

mesmo desembargador podia fazer muito. O que acontece é que

vais casar contra a vontade da tua sogra, separas a mãe da filha, e

ensinaste a tua mulher a desobedecer. Enfim, Deus te faça feliz. Ela

é bonita? (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 127 – grifos nossos)

Venâncio, até esse momento, poderia ser interpretado como um jovem

apaixonado que lutara pelo seu amor. A partir de sua descrição da conversa que tivera

com o pai, a situação muda. O autor coloca uma nota de desconfiança no que o jovem

fizera. Para o pai, ele separou da mãe a filha, não realçou o caráter de aliança familiar

do casamento e, sobretudo, ensinou a mulher a desobedecer. Com isso, cabe ao leitor

perguntar: se a mocinha desobedeceu a mãe, por que não desobedeceria o contrato

nupcial? A partir daí, o leitor machadiano recebe a confirmação: Venâncio se ausenta

por dois meses, Cecília não reata com a mãe, mas desobedece ao noivo, casando-se com

o filho viúvo do juiz que a abrigara. A indignação final de Venâncio revela que ele ainda

não aprendera a lição:

– (…) Realmente, se os casamentos não fossem talhados no céu, como

se explicaria que uma moça, de casamento pronto, vendo pela

primeira vez outro sujeito, casasse com ele, assim de pé para mão? É o

que lhes digo. São coisas arranjadas por Deus. (ASSIS, 2008, Vol. III,

p. 127)

Nesse ponto, o leitor recorda-se do que o pai dissera e pode responder

mentalmente à pergunta do velho Venâncio. Ao se opor à viúva e ao denegrir sua

imagem para a pretendida, ele acabou por denegrir a sua própria imagem (mostrando-se

como uma pessoa que não respeita a hierarquia familiar) e, ainda pior, ensinou à jovem

Cecília a desobedecer. Não assumir seu quinhão de culpa, nesse caso, é não aprender,

mesmo que isso seja dito claramente.

A quarta viúva dá título ao conto e trabalha com outro tema que se repete

nessas narrativas não selecionadas pelo autor para compor coletâneas. ―A viúva do

Sobral‖ explora o tema do triângulo amoroso, o mesmo que atinge sua expressão maior

na obra machadiana em Esaú e Jacó. Aparentemente, Machado de Assis inicia um longo

trabalho com o tema, pois os contos ―Incorrigível‖ e ―O caso de Romualdo‖ trabalham

com a mesma questão. Em cada um deles, há o triângulo: dois homens e uma mulher no

primeiro e no terceiro; duas mulheres e um homem no segundo. Aparentemente,

Machado realiza uma espécie de estudo ficcional do tema.

―A viúva do Sobral‖ é o conto que narra a história de dois homens que veem

D.ª Candinha Sobral como

(…) bonita, afável, dispondo de uns olhos que os dois concordaram

em achar singulares. Os olhos, porém, eram o menos. O mais era a

reputação de mau gênio que esta moça trazia. Disseram que ela matara

o marido com desgostos, caprichos, exigências; que era um espírito

absoluto, absorvente, capaz de deitar fogo aos quatro cantos de um

império para aquecer uma xícara de chá. E, como sempre acontece,

ambos acharam que, a despeito das maneiras, lia-se-lhe isso mesmo no

rosto; Cesário não gostara de um certo jeito da boca, e o Brandão

notara-lhe nas narinas o indício da teima e da perversidade.(ASSIS,

2008, Vol. III, p. 154)

Pouco tempo depois, um deles resolve que conquistará a viúva, apesar de ser

avesso ao casamento e ter notado as narinas perversas. A convivência, porém, abrandou

os ânimos de Brandão. Tal qual em ―Ex cathedra‖ a convivência é mostrada como uma

espécie de amenizadora das avaliações das personagens. Ou seja, Cesário e Brandão

tiveram nada menos do que uma primeira impressão que, aos poucos, foi decaindo e

tornando-se outra: primeiramente, um ―mistério‖; depois, uma paixão. Cesário, por seu

turno, apaixonou-se por empréstimo:

– E não te parece esplêndida? perguntou o Brandão.

– Não, isso não; mais bonita do que a princípio, é verdade; fez-me

melhor impressão; esplêndida é demais.

Quinze dias depois, viu-a o Cesário em casa de terceiro, e pareceu-lhe

que ainda era melhor. Daí começou a freqüentar a casa, a pretexto de

acompanhar o outro, e ajudá-lo, mas realmente porque começava a

olhá-la com olhos menos desinteressados. Já aturava com paciência as

longas confissões do amigo; chegava mesmo a procurá-las.

D. Candinha percebeu, em pouco tempo, que em vez de um, tinha

dois adoradores. Não era motivo de pôr luto ou deitar fogo à casa;

parece mesmo que era caso de vestir galas; e a rigor, se alguma

falha havia, era que eles fossem dois, e não três ou quatro. Para

conservar os dois, D. Candinha usou de um velho processo: dividindo

com o segundo as esperanças do primeiro, e ambos ficavam

entusiasmados. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 158 – grifos nossos)

A viúva, enquanto elemento de mediação entre os rapazes, cultivava a paixão

de ambos. Para o leitor, fica claro que a primeira impressão dos dois acerca dos

caprichos de D.ª Candinha era exata. O narrador machadiano coloca os dois

pretendentes em pé de igualdade: para a viúva, Brandão era o menor dos homens, mas

era melhor do que nada. ―O Cesário sempre é outra coisa, mas também não há de ser tão

fácil guiar. Se o Brandão não fosse tão comum! É ainda mais comum que o outro‖

(ASSIS, 2008, Vol. III, p. 158). Ou seja, o leitor é informado da superioridade da viúva;

é ela quem comanda as ações e diverte-se com isso. Os dois rapazes, como era de se

esperar, começam a sentir ciúmes um do outro, mas a viúva tudo nega e continua com o

mesmo procedimento. Cesário, então, decide enviar cartas, que a viúva não lê, pois, já

que os dois homens são comuns, não se faz necessária a leitura (e, por parte do narrador,

a escrita) de uma carta que dizia ―as mesmas coisas de todas as cartas de igual gênero‖

(ASSIS, 2008, Vol. III, p. 159).

Eis que surge, então, um terceiro pretendente: um viúvo médico que ―entrou a

cortejar a viúva‖. Cesário e Brandão não eram médicos, e, dentro de quatro meses, a

viúva estava casada. Tanto Cesário quanto Brandão culparam um ao outro,

impossibilitados de ver novamente a viúva com maus olhos (porque apaixonados), o

que permite que o narrador machadiano chame a atenção para essa circunstância ao

leitor: ―O triste é que ambos começaram por não gostar da mesma mulher, como o leitor

sabe, se se lembra do que leu‖ (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 160).

Nossa próxima viúva machadiana é D.ª Leocádia, de ―Incorrigível‖. Esta

senhora era acometida por ―um composto de curiosidades terrenas e muita devoção‖.

Esse composto era formado por disputas com outras viúvas e pela inveja. A inveja dela

fazia com que disputasse tudo com outras mulheres (pretendentes, vestidos, etc.),

fazendo com que D.ª Leocádia fosse conhecida por todas e objeto de comentários em

qualquer local. Para fugir disso, a senhora rumava à igreja, em busca de paz. Entretanto,

A missa demorava-se; mas o ódio, o despeito, os interesses

mesquinhos trabalhavam antes dela, e o coração de D. Leocádia foi

perdendo a paz. Ela recordou tudo, tudo, as palavras que a outra

dissera o mal causado, as raivas engolidas, e o clangor da guerra

acordou todas as fibras daquele organismo. (ASSIS, 1884, p. 105)

Dessa forma, as disputas de D.ª Leocádia eram nada mais, nada menos do que

caprichos para alimentar ―o coração‖, que sangrava ―aos golpes de uma unha invisível‖

(ASSIS: 1884, p. 105). Dessa forma, D.ª Leocádia é um dos exemplares de Machado

que são movidos pela oscilação entre duas características irreconciliáveis: a devoção e

as curiosidades terrenas.

Em ―O caso do Romualdo‖, a disputa toma um contorno mais abrangente.

Romualdo não disputa somente com outro homem, mas com o homem preferido do

moribundo marido de D.ª Carlota. A narrativa se inicia com o marido da moça ainda

vivo, e revela uma grande antipatia entre a futura viúva e Romualdo, que é declarada à

amiga de Carlota, a viúva Maria Soares. Ou seja, Machado encena, aqui, quase um

quadrilátero amoroso, mas a morte de Vieira muda todo o drama que o leitor

acompanha. Carlota acredita que Romualdo esteja apaixonado por ela, o que é

confirmado pelo narrador. Seu marido almeja uma carreira política e viaja com este para

o Ceará, dando-lhe um belo almoço de despedida, e Maria Soares percebe que a moça

está com a razão. Ao se despedirem, Romualdo faz com que o escrevente – Andrade,

também apaixonado por Carlota, mas muito mais tímido do que o primeiro –

acompanhe a esposa para resolver todas as questões financeiras. Mas,

D. Maria Soares desconfiou previamente do amor do Andrade. Era um

dos seus princípios desconfiar dos corações de vinte e cinco a trinta e

quatro anos. Antes de ver nada, suspeitou que o Andrade amava a

amiga, e só — tratou de ver se a amiga lhe correspondia. Não viu

nada; mas concluiu alguma coisa. Então considerou que esse coração

abandonado, tiritando de frio na rua, podia ela recebê-lo, agasalhá-lo,

dar-lhe o principal lugar, numa palavra, casar com ele. (ASSIS, 2008,

Vol. III, p. 174)

Machado pinta a viúva em tons negativos, algo que não fizera na época de sua

produção anterior a 1880, pois, como afirma Jailson Crestani, ―A ficção machadiana

publicada no Jornal das Famílias não visa exatamente a negação das tendências

vigentes‖ (CRESTANI, 2009, p. 141). Aqui, o abismo se torna cada vez mais claro. Ao

recorrer novamente à figura da viúva, o autor começa a analisar intenções e incoerências

nas decisões de suas personagens. Dessa forma, a atitude posterior de Romualdo

garante-lhe uma virada na disputa.

Durante a estadia no Ceará, Vieira adoece gravemente e decide retornar com o

amigo para a Corte. D.ª Maria Soares já está investindo em Andrade, e Carlota, que

recebera notícias via Romualdo, encontra-se preocupada com o retorno do marido. Este

morre na viagem, mas, antes disso, faz com que Romualdo prometa:

– Diga à minha mulher que a última prova de amor que lhe peço é que

não se case...

– Sim... sim...

– Mas, se ela, a todo o transe entender que se deve casar, peça-lhe que

a escolha do marido recaia no Andrade, meu amigo e companheiro,

e...

Romualdo não entendeu essa preocupação da última hora, nem

provavelmente o leitor, nem eu – e o melhor, em tal caso, é contar e

ouvir a coisa sem pedir explicação. Foi o que ele fez; ouviu, disse que

sim, e poucas horas depois, expirava o Vieira. No dia seguinte, entrava

o vapor no porto, trazendo a Carlota um cadáver, em vez do marido

que daqui partira. Imaginem a dor da pobre moça, que aliás receava

isso mesmo, desde a última carta de Romualdo. (ASSIS, 2008, Vol III,

p. 175-6)

O narrador passa, então, a contar as angústias da personagem, pois, sem o

marido, o caminho estava aberto, mas a promessa a um moribundo tinha grande peso

moral. Romualdo, então, decide contar tudo a Carlota, sem pormenores, mesmo com a

visita repentina de Andrade, seu rival. A fórmula tem efeito, a imagem de Romualdo

muda na mente da moça:

Carlota fez um gesto de resignação; depois perguntou-lhe se na volta

do Norte.

– Na volta.

– Daqui a quatro meses?

– Não posso afirmar nada.

Romualdo saiu; Carlota ficou pensativa algum tempo.

– Singular homem! – pensou ela. – Achei-lhe a mão fria e,

entretanto... (ASSIS, 2008, Vol III, p. 180 – grifos nossos)

Apesar de a mão continuar fria, fato que distanciava Carlota, Romualdo não era

mais um homem ―desagradável‖, mas singular. A decisão de Romualdo mostrou-se

acertada, tanto que D.ª Maria Soares percebera que os dois estavam prestes a iniciar

namoro. Mesmo tendo conquistado Andrade, a viúva mais antiga começa a cercar

Romualdo de ―especiais atenções‖. Machado, aqui, pede que o leitor se lembre das

primeiras impressões que ele descrevera das duas: Carlota achava Romualdo

desagradável, mas, como vimos, isto mudara por conta de seu comportamento frente ao

último desejo de Vieira; D.ª Maria Soares queria tão somente um casamento vantajoso

para sua gastança. É claro que as duas viúvas começaram a disputar o mesmo homem.

Andrade, por sua vez, disputava somente a viúva mais velha, e Romualdo parecia estar

um tanto alheio a tudo:

A luta que então começou teve diferentes fases, e durou cerca de cinco

meses mais. Carlota, no meio dela, sentiu que alguma coisa batia no

coração de Romualdo. As duas viúvas em breve descobriram as

baterias; Romualdo solicitado por ambas, não se demorou na escolha;

mas o desejo do morto? No fim de cinco meses as duas viúvas

estavam brigadas, para sempre; e no fim de mais três (custa-me dizê-

lo, mas é verdade), no fim de mais três meses, Romualdo e Carlota

iam meditar juntos e unidos sobre a desvantagem de morrer primeiro.

(ASSIS, 2008, Vol. III, p. 180)

Numa contradição em termos, o cumprimento da promessa de Romualdo

serviu para mostrar a Carlota que ele era o pretendente maior, o que culminou em seu

casamento, contrariando, por sua vez, a aceitação do marido tão estimado. Essas

contradições são, em suma, aquilo com que Machado está trabalhando

ininterruptamente: a contradição como meio operacional tanto da narrativa quanto da

análise de caracteres. Em todos os contos desse período, em maior ou menor grau, o

tema é retomado. Vejamos, então, com que outras formas de contradição o autor

trabalha.

A eterna rede de contradições machadianas

A contradição é um dado que une todos os contos não selecionados desse

período. Parece que Machado de Assis está desenvolvendo um longo estudo ficcional

sobre o tema. O autor cerca o problema com todos os recursos de que dispõe. Não se

trata mais de colocar a contradição humana somente em personagens periféricos; ela

toma mesmo a centralidade das narrativas desse período. Como vimos inicialmente,

quase não existem alusões a autores e a outros temas; dos 18 contos, apenas 4 fazem

alusões e discussões propriamente literárias. Há um conto, todavia, em que a

contradição e a alusão literária aparecem: trata-se de ―Metafísica das rosas‖.

O conto, da mesma forma que ―A igreja do Diabo‖ (selecionado para a

coletânea de 1884), trabalha com uma deturpação da Bíblia. Machado de Assis repetirá

esse procedimento mais algumas vezes ao longo de sua carreira de contista, sendo que a

maioria desses contos integra coletâneas preparadas pelo autor2. Trata-se de uma

paródia do início do ―Gênesis‖, a narrativa que fundamenta a premência do homem na

escala de importância divina. O autor subverte o sistema, colocando as rosas como os

organismos para os quais Deus (ou o Jardineiro) criou o mundo. Tendo isso em vista, o

narrador tem de adequar a criação do homem para que as rosas continuem a exercer o

seu papel de principais criaturas do mundo:

– (…) Vou criar um ente à minha imagem que vos servirá,

contemplará e viverá milhares e milhares de sóis para que vos sirva e

2 Referimo-nos a ―Sermão do Diabo‖, da coletânea Páginas recolhidas (1900), e ―Na Arca – três

capítulos inéditos do Gênesis‖, de Papéis Avulsos (1882).

ame.

E, dizendo isto, tomou de um velho tronco de palmeira e de um facão.

No alto do tronco abriu duas fendas iguais aos seus olhos divinos,

mais abaixo outra igual à boca; recortou as orelhas, alisou o nariz,

abriu-lhe os braços, as pernas, as espáduas. E, tendo feito o vulto,

soprou-lhe em cima e ficou um homem. E então lançou mão de um

tronco de laranjeira, rasgou os olhos e a boca, contornou os braços e

as pernas e soprou-lhe também em cima, e ficou uma mulher.

E como o homem e a mulher adorassem o Jardineiro, ele disse-lhes:

– Criei-vos para o único fim de amardes e servirdes as Rosas, sob

pena de morte e abominação, porque eu sou o Jardineiro e elas são as

senhoras da terra, donas de tudo o que existe: o sol e a chuva, o dia e a

noite, o orvalho e os ventos, os besouros, os colibris, as andorinhas, as

plantas todas, grandes e pequenas, e as flores, e as sementes das flores,

as formigas, as borboletas, as cigarras os filhos das cigarras. (ASSIS,

2008, Vol. III, p. 1297)

A realidade passa a ser colocada, então, sob a ótica das rosas, que têm nos

homens uma espécie de curadores de sua beleza. Se todo o mundo foi criado em redor

da beleza das rosas, há algo que soa um tanto contraditório: por que as rosas tinham de

permanecer nos jardins? Por que, como as cigarras, as formigas, as borboletas e os

homens, as rosas não poderiam movimentar-se livremente pelo mundo? Notando isso, o

narrador machadiano mantém-se no mesmo tom:

Mas, como as Rosas parecessem enfaradas da glória que tinham no

jardim, disseram os filhos dos homens às filhas das mulheres:

Façamos outras grandes festas que as alegrem. Ouvindo isto, o

Jardineiro disse-lhes: – Não; colhei-as primeiro, levai-as depois a um

lugar de delícias que vos indicarei. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1297)

Ao colher uma rosa, ela começa a morrer, mas a narrativa indica que os

homens as levavam a um lugar ―misterioso e remoto‖, onde todos os filhos dos homens

e todas as filhas das mulheres as adoram prostradas no chão, ou seja, levavam as rosas a

uma igreja. Não há igrejas para as rosas, mas elas habitam as igrejas dos homens. Mas

que fim levam as rosas? Segundo seu próprio ―Gênesis‖, o narrador explica que, à noite,

o Jardineiro pega as rosas e as leva para os céus, tornando-as estrelas. Dessa forma, o

narrador machadiano resolve as questões, exceto uma: se o Jardineiro pega um regador,

ele, para o leitor, não é Deus, mas um homem. E como conciliar sua grandeza na visão

das rosas e sua supremacia? Machado não resolve a questão, deixa-a em aberto.

―Metafísica das rosas‖ encena, dessa forma, a maior das contradições: trata-se

da contradição narrativa que depende somente da visão de realidade, que é o primeiro

passo de qualquer material narrado. Vejamos mais um exemplo para que possamos

entender o empreendimento do autor com relação à contradição.

Em julho de 1883, o autor publica o conto ―Questões de Maridos‖, no

periódico A Estação. O conto trata de duas irmãs que se casaram no mesmo dia. Luísa

elogiava o marido e era extremamente apaixonada, tudo confirmado nas cartas que

enviava à mulher do narrador do conto. A irmã, Marcelina, estava desgostosa e triste,

pois o marido parecia-lhe frio: ―não correspondia ao meu sonho de marido‖ (ASSIS,

2008, Vol. III, p. 120), escreveu. As cartas das duas sobrinhas seguem o mesmo ritmo,

Luísa radiante e Marcelina triste e grávida. É exatamente nesse ponto que o tio mostra a

contradição das sobrinhas. Ele conclui as leituras e volta à afirmação do início do conto

―O subjetivo... o subjetivo...‖; todos pedem-lhe explicações e prontamente a ouvem:

– Está explicado, ou adivinhado, pelo menos. Comparados os dois

maridos, o melhor, o mais terno, o mais fiel, era justamente o de

Marcelina; o de Luísa era apenas um bandoleiro agradável, às vezes

seco. Mas, um e outro, ao passarem pelo espírito das mulheres,

mudavam de todo. Luísa, pouco exigente, achava o Candinho um

arcanjo; Marcelina, coração insaciável, não achava no marido a soma

de ternura adequada à sua natureza... O subjetivo... o subjetivo...

(ASSIS, 2008, Vol. III, p. 122)

A explicação deixa claro o caráter contraditório do conto: deve-se entender,

antes de mais nada, que Marcelina e Luísa não são iguais, apesar de irmãs, e, mais

ainda, não são as típicas donzelas românticas. Elas são contraditoriamente implicadas

em seus sonhos; por isso o marido de uma, que é ―bandoleiro‖, é visto como homem

muito melhor do que o da outra, pois esta não tinha ambições. O marido de Marcelina,

que passa pelo crivo de uma mulher muito mais exigente, é visto de maneira contrária,

pois não a trai, dá-lhe um filho e não passa, aos olhos da esposa, de um homem menor,

vulgar.

Todos os contos desse período que não estão selecionados apresentam

contradições que são estudadas pelo narrador machadiano. Em ―Letra vencida‖, temos a

relação da imagem com o tempo, que tudo muda, mudando até mesmo algo que é dito

como destinado a todo o sempre: numa palavra, amor. ―A ideia do Ezequiel Maia‖ é

centrado na contradição entre imaginação e ação, como se houvesse um abismo entre a

visão subjetiva e a visão social, abismo que só pode ser enxergado por alguém

considerado louco (o próprio Ezequiel Maia). Ou seja, Machado está, sistematicamente,

tentando analisar as contradições humanas a fim de tecer uma narrativa em que o

fenômeno seja o elemento fundamental da narrativa. Se o leitor, nesse ponto, pensou em

Quincas Borba, romance publicado em 1891, não errou de todo, mas o que estamos

vendo é que o autor inicia em 1884 um longo experimento acerca do tema.

Considerações finais

Os contos não selecionados por Machado de Assis para compor Histórias sem

data revelam algumas particularidades acerca do escritor. Em um primeiro momento,

vemos que determinadas abordagens e personagens rondavam a mente do escritor no

mesmo período em que ele desenvolveu alguns de seus contos mais conhecidos.

Mesmo após Memórias póstumas de Brás Cubas, romance que funda a

segunda fase (ou fase madura) do escritor, vemos que ele ainda está experimentando

abordagens e formas diversas para lidar com um mesmo material temático. Ao vermos

os contos como uma espécie de laboratório de experimentação ficcional, podemos

perceber também que alguns deles se inter-relacionam, seja por conta de uma fixação

por determinado tipo, seja pelo procedimento adotado pelo escritor.

A cada período estudado, deparamos com um Machado diferente, que reordena

seu narrador e seu estilo segundo toda uma gama de preocupações diversas. Talvez seja

isto que torne Machado de Assis um autor tão reverenciado pelas gerações. Talvez o

entendimento da contradição enquanto elemento estrutural de sua narrativa tenha uma

progressão sistemática em momentos futuros, mas, ao que tudo indica, o autor pensava

os temas e abordagens de maneira orgânica, relacionando conto e romance numa

unidade de sentido para sua obra.

Referências Bibliográficas:

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______. ―Incorrigível‖. In. A Estação. Rio de Janeiro, 30 de dezembro de 1884.

______. Histórias da meia-noite. Rio de Janeiro: Garnier, 2003 (1873).

______. Histórias sem data. Rio de Janeiro: Garnier, 2003 (1884).

______. Histórias sem data. Edição preparada por Marta de Senna. São Paulo: Martins Fontes,

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______. Obra completa em quatro volumes. Volumes 2 e 3. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,

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CRESTANI, Jaison Luís. Machado de Assis no Jornal das Famílias. São Paulo:

Nankin/Edusp, 2009.

NASCIMENTO, Dulcileide Virginio do. A téchne mágica de Medéia no Canto terceiro de Os

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Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

ROCHA, João Cezar de Castro (org.). Contos de Machado de Assis – Volume 1: Música e

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______. (org.). Contos de Machado de Assis – Volume 3: Filosofia. Rio de Janeiro: Record,

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______. (org.). Contos de Machado de Assis – Volume 6: Desrazão. Rio de Janeiro: Record,

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