livro contos melhores 2014 edição final

140
Vários autores Araçatuba, 2014 Contos melhores 2014

Upload: helio-consolaro-consa

Post on 27-May-2015

1.643 views

Category:

Documents


44 download

TRANSCRIPT

Page 1: Livro contos melhores 2014 edição final

Vários autores

Araçatuba, 2014

Contosmelhores

2014

Page 2: Livro contos melhores 2014 edição final

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índices para catálogo sistemático: 1. Contos : Antologia : Literatura brasileira 869.9308

Copyright © vários autores

Editor: Hélio Consolaro

Revisora: Maria Rosa Dias

Capa e editoração gráfica: Celso NicoleteImpressão: Eko Gráfica - (18) 3636.7790

Secretaria Municipal da CulturaRua Anita Garibaldi, 75 - CEP 16010-280

Araçatuba - SP

[email protected] - (18) 3636.1270concursodecontos.blogspot.com

Contos melhores 2014. -- Araçatuba, SP : Editora Eko Gráfica, 2014.

ISBN: 978-85-68298-04-6

1. Contos brasileiros - Coletâneas.

14-08545 CDD-869.9308

Page 3: Livro contos melhores 2014 edição final

Prefácio

E ste livro é composto por partes, conforme as categorias do 27.º Concurso Internacional de Contos “Cidade de Araçatuba”: regionais, nacionais e inter-nacionais.

Quem escolheu os 24 contos (o livro tem 26, porque há dois da comissão julgadora) foram pessoas conhecidas por Araçatuba como escritores e professores de nossas universidades.

Se a comissão julgadora fosse outra, com certeza, teríamos outro resulta-do, porque, por mais que se adotem critérios objetivos de seleção, dificilmente se consegue se livrar da subjetividade. E em arte (e literatura é arte) a subjetividade é uma riqueza.

No certame, houve participação de escritores jovens e idosos (dois extre-mos: 19 e 70 anos); de iniciantes a gente com dezenas de livros publicados.

O concurso existe desde 1985, criado pelo primeiro secretário de Cultura de Araçatuba, Paulo Grobe, e já tem a credibilidade dos escritores brasileiros; e mais recentemente, do mundo lusófono. A Secretaria Municipal da Cultura, com o certame, no bojo da 6.ª Jornada de Literatura de Araçatuba, quer incentivar a escri-tura, estimular o surgimento de novos escritores, projetando Araçatuba no mundo literário.

Leia os textos, caro leitor, sem perder o exercício crítico, mas que a acidez não mate um escritor que ainda esteja no ninho. Publicar este livro (e entregá-lo a todos os presentes na noite de premiação) é uma forma de exercício literário, garantindo a visibilidade dos “contos melhores” do 27.º Concurso Internacional de Contos da “Cidade de Araçatuba”.

Boa leitura.

Hélio ConsolaroSecretário municipal de Cultura de Araçatuba-SP

Page 4: Livro contos melhores 2014 edição final
Page 5: Livro contos melhores 2014 edição final

Sumário

Prefácio .......................................................................................................... 3

Parte 1 – Contos melhores regionais

1.º colocado – Calçadão, alface e escolhasJean da Silva Oliveira – Araçatuba-SP ............................................................ 082.º colocado – A procissão Fernando Verga – Araçatuba-SP .................................................................... 103.º colocado – O colecionador de sonhosMário Bueno – Araçatuba-SP ......................................................................... 171.ª menção honrosa – Contratempos Isleide Cristina Sicarelli de Oliveira – Guararapes-SP ....................................... 212.ª menção honrosa – Leite quente com açúcarRita Lavoyer .................................................................................................. 263.ª menção honrosa – O louva-deusCaroline da Silva Rodrigues ........................................................................... 334.ª menção honrosa – A velhice do reiRodolfo Elias Minari – Valparaíso ................................................................... 365.ª menção honrosa – A luz na janelaOdair Maurício de Albuquerque – Penápolis-SP .............................................. 43

Parte 2 – Contos melhores nacionais

1.º colocado – 13600 Os olhos mais lindos que já me olharamJ.R. Bazilista – São Paulo-SP ......................................................................... 482.º colocado – Mas o homem era velho, já Paulo Henrique Pappen – Porto Alegre-RS...................................................... 533.º colocado – Pomo da discórdia Gérson Luiz Colombo – Canoas-RS ................................................................ 561.ª menção honrosa – Recado para MarluceÁlvaro Cardoso Gomes – São Sebastião-SP .................................................... 642.ª menção honrosa – CoquelucheDouglas MCT – São Paulo ............................................................................. 713.ª menção honrosa – O regresso do heróiPaulo Sério Marques – Sinop-MT ................................................................... 74

Page 6: Livro contos melhores 2014 edição final

4.ª menção honrosa – A Bovary do Largo das IdeiasRodrigo Machado Freire – Goiânia-GO ........................................................... 805.ª menção honrosa – A última vez que vi meu paiHenrique Bom – Nova Friburgo-RJ ................................................................. 84

Parte 3 – Contos melhores internacionais

1.º colocado – Ricochete Mônica Barroso Reis Simão- Fundão – Portugal.............................................. 892.º colocado – O giz na estradaJorge José Pires Figueiredo – Alverca – Portugal ............................................ 953.º colocado – A campanha do leiteFátima Bica .................................................................................................. 991.ª menção honrosa – O perfume de AbigailMarcus Filgueiras – brasileiro morando em Montividéu-Uruguai ..................... 1042.ª menção honrosa – A árvore que dava frutos de metal Maria de Fátima Esteves Martins – Coimbra – Portugal ................................. 1103.ª menção honrosa – Círculos da VidaDesirée Jung – brasileira morando no Canadá .............................................. 1124.ª menção honrosa – Gare do OrienteAl Cino Elyseu – Merceana – Portugal .......................................................... 1205.ª menção honrosa – O velho e o ventoSusana Luís Carvalho Machado – Santa Maria da Feira - Portugal ................. 125

Parte 4 – Contos da comissão julgadora

O mascate Marilurdes Martins Campezi ........................................................................ 130Uma noite de outonoEmília Goulart ............................................................................................. 134

Parte 5 – Anexos

Participantes da Comissão Julgadora ........................................................... 139

Cartaz de divulgação do concurso ................................................................ 140

Page 7: Livro contos melhores 2014 edição final

Parte 1Contos melhores

regionais

Page 8: Livro contos melhores 2014 edição final

8

Contos Melhores - 2014

Calçadão, alface e escolhasCategoria regional - 1.º colocado - Jean da Silva Oliveira – Araçatuba-SP*

Elis encarou seus olhos no espelho e viu que algo lhe faltava. O bairro Água Branca já abrira o portal para fazer nascer o sol, que preguiçosamente iniciava sua jornada de doze horas para, enfim, adormecer no Mão Divina, restituindo

a noite pingada de estrelas. Em gestos automáticos, ela lavou e depois pintou o rosto. Tomou café e seguiu pela Avenida dos Estados rumo ao centro como se máquina fosse. O que lhe fora tirado pelo tempo fazia falta existencialmente. E ela seguia em frente para tentar não pensar nisso. Som do trânsito, buzina, chão que passa, passa.

Mas como não pensar na infância que se esvai com o vir e ir do sol? Como não sentir saudade do tempo em que o mundo lhe dava colo e deixava para o futuro as obrigações das realizações pessoais e profissionais. A pequena Elis, com seus olhos de sonhadora, acelerava sua moto como se pudesse fugir de si mesma, da presença da ausência que sentia dos tempos de inocência e brincadeira na ladeira da rua Bahia, na Vila Mendonça. Hoje, é Calçadão, meta de vendas, falta de alguém para encostar a cabeça e, entre um namoro e outro, também poder chorar.

A mente ainda procurava motivos para fixar-se na vida real quando a peque-na Elis se deu conta que já se posicionava atrás do balcão. O moço bonito da loja em frente já lhe dava o sorriso pontual. Gelo na porta do estômago. Dúvida se iria falar com ele ou esperar ele vir falar com ela. Atendimento. Mulheres que entram e saem da loja. Perguntas. Araras de roupas coloridas. Preços. Descontos. Vendas e nãos. Tudo como se sincronizado fosse. Vida que segue.

E o moço do outro lado da rua sorrindo. Tentação em uma manhã quente. Bochechas vermelhas, não necessariamente de vergonha. A menina dá lugar à mulher. Sorri de volta. Aceno tímido com as mãos. Vergonha, olhos baixos para o chão e cabelo jogado para trás da orelha. Crescer não é tão ruim assim.

A vida segue na rotina da loja até o horário do almoço. Elis, sentada no quartinho dos fundos, com o prato nas mãos, cala seus desejos com a boca cheia de feijão. Aonde será que está o moço bonito da loja de móveis? Ela queria estar rindo com ele no banco da praça. Tristeza. Saudade do que nunca teve. Arroz, feijão

Page 9: Livro contos melhores 2014 edição final

9

Contos Melhores - 2014

e salada. Vida igual ao alface. Sem gosto. Passa o tempo e é hora de voltar à rotina. Mulheres com suas pernas apres-

sadas, vendas, nãos, sorrisos e grosserias. Gerente que cobra, povo que não com-pra e a vida avermelhando como o chão do Calçadão quando o sol já se aproxima da sua habitual despedida.

Uma criança, distraída, deixa cair um pedaço de salgado no chão. Pompas surgem de todos os lados. Bicam, bicam, bicam. Um balé anárquico surge no Cal-çadão do centro de Araçatuba. Ao vencedor, as batatas! Ela se lembrou da frase, mas não do autor ou livro. Coisa da época de escola. Riu de si mesma, das pombas e da briga pela sobrevivência. As outras vendedoras e ela são como as pombas. De bicada a bicada, vencendo na vida.

Elis deixou a loja no final do expediente, sendo ela, agora, a dona das pernas apressadas. Seu pensamento quase engrenava quando foi interrompida por pas-sos rápidos de outras pessoas. Era o rapaz bonito da loja em frente. Convite para passear no shopping amanhã à noite. Gelo no estômago. Ela vai pensar. Amanhã responde. Ela segue em passos afoitos, mas para em frente a uma loja de sapatos. Preço alto. Prestação acima dos 30% do salário. Medo de comprar.

Elis, em sua moto, ruma para casa. Nenhum dos dois satisfeitos. Ela, lhe faltando algo, que ainda não sabe explicar. A moto, carente de aventuras. No máxi-mo, idas e vindas, e esperas longas no sol escaldante. Sem emoção para lembrar. O silêncio cúmplice entre menina e sua máquina é maior que as buzinas, as re-clamações sobre os semáforos demorados e o tilintar das estrelas que começam a pingar no céu.

Jogada no sofá, Elis sonha com o moço da loja, pensa nas pombas, no alface sem graça da vida. Falta algo. Sim, são eles, os sapatos. Aqueles sapatos vão lhe tirar o sono!

*Jean da Silva Oliveira, 38 anos, é jornalista, efetivo na Prefeitura Municipal de Araçatuba, articulista do jornal Folha da Região.

Page 10: Livro contos melhores 2014 edição final

10

Contos Melhores - 2014

A procissãoCategoria regional - 2.º colocado - Fernando Henrique Bonomi Verga– Araçatuba-SP*

Àquela época, gostava de sentar à sombra do barranco na encruzilhada que dava pra venda.Chegava por uma estrada de terra, empinada que doía as pernas. Minha avó, mais velha que aquele barranco, me levava de varinha

por conta disso. Mas eu gostava daquela sombra. O sol não passava de jeito ne-nhum. Tinha um pé de goiaba no topo do barranco, da vermelha, doce, sem bicho, e na encruzilhada sempre tem brisa. Gostava daquela sombra e da terra vermelha do chão. Da brisa e da goiaba vermelha.Gostava de comer goiaba à sombra fresca do barranco no chão de terra. A varinha não gostava da sombra, da terra, da brisa nem da goiaba. Minha avó não gostava de nada. Só da varinha e de moeda. Vi muita árvore perder varinha por eu gostar de ficar naquela sombra.

Depois de tantas surras aprendi que tudo era culpa do calção sujo. Eu mo-rava vizinho de uma mata, então comecei a pular a cerca do sítio e correraté lá para trocar o meu calção por um bem velho e sujo, depois saía pra brincar. O outro, que também era velho, mas um pouco mais limpo, ficava pendurado numa árvore. Minhas pernas já eram empoeiradas todos os dias, então a velha não notava dife-rença. Me sentiesperto quando percebi que ninguém reparava nas minhas pernas de terra. Quando consegui manter o calção mais limpo sem sujar, conquistei minha liberdade.Comia goiaba na minha sombra e voltava pra casa com as pernas de terra, mas com o calção do jeito que ela queria.

Naquele tempo a cidade ficava muito longe; nem sabia o que tinha lá. Fui uma vez de charrete levar queijo pra minha avó e perdi a conta das curvas. Quan-do cheguei lá entreguei o queijo, peguei as moedas e voltei. Saí cedo e cheguei anoitecendo em casa. Demorou pra eu voltar na cidade. Levava na venda, de vez em quando, mas era perto; nem precisava de charrete. Fazia questão de dar três viagens só pra andar pela estrada.

Quando ela ia pra cidade eu sempre chegava mais cedo na encruzilhada. Minha sombra engoiabada me esperava tranquila e soprava uma manta de poeira fresca pra eu deitar na terra. Quando a cabeça da velha saltava no topo da subida

Page 11: Livro contos melhores 2014 edição final

11

Contos Melhores - 2014

ao longe, eu corria pra cima do barranco. Espiava ela passar até o olho perder pra curva. Ela contava cada moeda até chegar em casa, repetindo a contavez após vez, conferindo os centavos sem respirar. Já tinha juntado sete sacos de moedas em casa. Ela nem aguentava carregar. Nem eu. Nem um saco eu conseguia levantar. Tinha poucas oportunidades pra tentar, por que não podia nem entrar no quarto dela. Mas, das vezes que tentei, sequer ergui do chão.

Eu nunca entendi o que ela fazia com essas moedas. Nunca comprava nada. Não tinha conta na venda. A luz era de lamparina. Lenha eu pegava na mata. Tinha sete vacas que davam leite de sobra pra fazer o queijo. Eu nem comia esse queijo, por que tudo virava moeda. Lá ninguém precisava da cidade. Só minha avó, que buscava cada vez mais moedas. A velha precisava delas e eu via isso em seus olhos.

Na estrada da venda viviam poucas pessoas. Duas famílias, eu e minha avó, um homem sozinho, outro viúvo, que era o dono da venda, uma mulher solitária e um velho vagabundo. Conhecia todos de tanto passar todo dia na estrada. O últi-mo era o dono da venda, onde eu buscava moedas pra minha avó.Quase nunca falava com as pessoas, mas sabia das histórias de todas elas. Cada um contava do seu jeito um causo ocorrido com o vizinho. Depois de trocar o calção e pegar a estrada,eu ia ouvindo conversa alheia e reparando nas coisas.

A primeira casa era a de uma mulher com sete filhos. Diziam que ela teve nove, mas os dois últimos desapareceram. Ninguém sabia o que tinha acontecido.O marido trabalhava na roça e as crianças sempre estavam chorando quando eu pas-sava. A casa era de pau, com um quintal entulhado, pomar abandonado, cheio de mato, mas com frutas. Num canto via-se um amontoado de terra que talvez tivesse sido uma horta. Não tinha uma flor, um vaso, um enfeite qualquer. A única beleza era a própria dona, que ficava na janela penteando os cabelos. Às vezes se voltava pra dentro pra se olhar no espelho. Não suava uma gota, mesmo naquele calor triste. Diziam que era por que não fazia nada, a não ser pentear os cabelos e se manter sem suar. Mas triste era ver as crianças chorando e chamando a mãe do lado de fora, pela janela. A impressão que dava toda vez que passava era que ela se trancava no quarto. As crianças não sentiam fome por que tinha fruta no pomar. Só tinha fruta no pomar por suor das próprias árvores.Aquelas árvores tinham pena daquelas crianças. De todas da estrada essas eram as únicas que davam frutas o ano inteiro. O marido chegava tarde e cansado e ainda cozinhava pra todo mundo, por que a mulher não gostava de suar no calor do fogão a lenha. Pela estrada eu

Page 12: Livro contos melhores 2014 edição final

12

Contos Melhores - 2014

ficava pensando o que ela fazia pra ficar gelada. Até o pau seco da cerca suava naquele sol.

Tinha um homem que morava sozinho numa casa que quase entrava na mata, vizinho da mulher que não suava. Eu tinha medo dele. A porta e as janelas estavam fechadas parecia que desde sempre; não tinha sinal de vida na frente da casa. Nunca passei por aquela cerca, mas dava pra ver umas coisas na parte do fundo. Parecia que era caçador, com couraças de tatu e cobra penduradas nas primeiras árvores da fronteira com a casa.Tinha arapucas e machados cravados em tocos soltos. Diziam que ele espancava as paredes e dava pra ouvir o ranger de seus dentes durante a noite, fazendo um barulho que aterrorizava os sete filhos da mulher que não suava. Era um homem sozinho e furioso. Diziam que só cessava quando saía de madrugada pra cortar lenha. Praguejava a cada machadada até a escuridão enfraquecer e depois corria pra mata. Ninguém se aproximava daquela casa.

Na outra borda da estrada tinha o sítio de uma família comum. Dava bem de frente pra casa da mulher que não suava. Um pai, uma mãe, uma menina e um menino.O pai trabalhava na roça, a mãe cuidava da casa, da horta, galinhas e porcos, os filhos se revezavam no auxílio à mãe e ao pai e brincavam no quintal após terminarem suas tarefas. A casa tinha jardim na frente, com grama podada, trepadeiras volumosas subindo a cerca bem cuidada, varanda com vasos e plantas floridas, janelas com cortinas e a melhor horta da estrada.Capricho da mãe. Quan-do o pai chegava da roça colocava uma cadeira bem na porteira do sítio para pitar o cigarro de palha. Diziam que ele observava a vizinha se penteando na janela. Que observava quando ela se olhava no espelho. Que observava sua pele lisa sem suor. Diziam que culpava o homem sozinho pelo sumiço dos dois filhos dela.Diziam que esses dois filhos também eram dele. Diziam que sua esposa não sorria. Diziam que ela rogava doenças pra vizinha.

Essas três casas ficavam perto da casa da minha avó. Ela não conversava quase nada comigo, mas soltava ao vento suas divagações sobre essas pessoas. A velha costuravaconversas de uma casa com a outra com precisão. O que para todo o resto eram suspeitas misteriosas para ela era fato consumado.

Mais à frente, depois de um trecho, morava um velho vagabundo, sem vi-zinho algum. A cerca quebrada do seu sítio mais criava espaço que dividia. Minha avó, que era das mais antigas daquela estrada, brigava com ele só de passar em frente ao casebre desconjuntado do velho. Ela dizia que ele nunca pegou numa

Page 13: Livro contos melhores 2014 edição final

13

Contos Melhores - 2014

enxada a vida inteira, que era um velho de mão lisa. Não tinha um calo na palma da mão. Que onde já se viu um velho que não tem calo. Dizia que lhe devia moedas. Dizia que casa de gente vagabunda era suja, que quintal de gente vagabunda era matagal, que comida de gente vagabunda era dada. De onde ele tirava comida eu não sabia, mas que minha avó não lhe dava queijo isso era verdade. O dono da venda nem entrar no estabelecimento deixava o velho. Dizia que nunca lhe pagou as pingas que bebeu, que nunca aceitou o emprego que ofereceu, que nunca agra-deceu um prato que comeu.

Mais à frente, uma curva depois do casebre do velho, tinha uma casa que ficava em cima do barranco, bem rente à estrada, rodeada por uma cerca sem por-teira. Em torno dela tinha um espinheiro que isolava até a porta da frente. Na janela, lá do alto, uma mulher solitária passava o dia a resmungar contra quem passava. Ela dizia pra mim que os queijos da minha avó eram podres. Que a família do pai que observava era mentirosa. Que o dono da venda era um miserável. Que o ve-lho vagabundo era vagabundo. Que o homem sozinho era um assassino.Naquelas bandas, era difícil alguma novidade acontecer. Quando acontecia, ela resmungava e botava defeito. Diziam que ela nunca gostou de ninguém, nem da própria mãe, a quem culpava por ter morrido sem deixar posses. Diziam que ela não sentia fome, de tão ruim que era.

Era a última casa antes da venda. Eu passava pela mulher solitária com um saco de queijo nas costas e a ouvia resmungando. Ficava imaginando o que ela fazia trancada naquela casa, sozinha. Devia ficar apodrecendo as coisas dos ou-tros. Me dava medo de pensar nela sentada no escuro pensando coisas ruins para as pessoas. Mas eu tinha medo também dos outros moradores da estrada. Todos pareciam empenhados em perpetuar uma maldição.

O dono da venda, diziam, negou comida à esposa moribunda por que não queria desperdiçar, já que ela ia morrer logo. Diziam que pediu ao padre uma novena pra ficar viúvo mais cedo, já que não tinha solução, pois estava gastando comida à toa.

Todos moravam na estrada que dava pra venda, pela qual eu passava todo dia pra brincar no barranco da encruzilhada que tinha um pé de goiaba vermelha e brisa fresca. A outra estrada que nascia na encruzilhada eu nunca pegava. Era muito fechada, com mata dos dois lados e barrancos altos. Só tinha casa há muita distância pra frente. Nunca vi ninguém pegar essa outra estrada. Às vezes, eu pensava que ninguém sabia que a gente morava ali. Naquele tempo, a gente vivia

Page 14: Livro contos melhores 2014 edição final

14

Contos Melhores - 2014

tão escondido que muitas coisas que viviam escondidasdos olhos do mundo se aproximavam da gente.

Num dia, aproveitei que minha avó foi mais cedo para cidade e corri pra brincar na encruzilhada. Pulei a cerca do sítio e fui pra mata. Chegando lá, não achei meu calção sujo. Olhei para os lados assustado pensando que o homem sozinho estava por ali. Mas não vi nem ouvi nada. Procurei por perto; talvez o vento tivesse derrubado. Não achei. Pensei comigo que essas coisas davam de sumir uma hora ou outra. Saí da mata e peguei a estrada com o calção mais limpo mes-mo. Era só tomar mais cuidado pra não levar uma surra da velha.

Passando pela casa da mulher que não suava vi as crianças felizes dançan-do ciranda em frente à janela vazia. Virei o pescoço para a casa do homem sozinho e vi portas e janelas abertas. Olhei para o outro lado da estrada e vi a esposa do pai que observava sorrindo. Que dia esquisito tinha amanhecido.

Continuei andando e, chegando à casa do velho vagabundo, vi duas enxa-das encostadas na cerca quebrada e um cavalo pastando no seu quintal cheio de mato. Que banquete para o cavalo. Quando fiz a curva, não ouvi nenhum resmungo. A mulher solitária não estava na janela e seu espinheiro tinha perdido todos os espinhos. Chegando na encruzilhada, subi no barranco pra pegar goiaba e vi a venda fechada.

Nunca tinha visto essa estrada mudar tanto, mexendo com coisas que pa-reciam permanentes. Do alto do pé de goiaba olhei para a outra estrada. Naquele dia ela parecia mais fechada, com uma sombra escura. O vento soprava contrário, batendo nas minhas costas e indo para essa estrada. Naquele dia a brisa fresca não fez graça no meu rosto nem poeira pra eu deitar. O vento empurrava para a estrada escurecida. Mesmo assim, acabei dormindo à sombra do barranco. Dormi na encruzilhada no dia mais estranho que já vira.

Quando acordei, fiquei apavorado. Já era noite e minha avó já devia estar em casa. Isso significava que já tinha passado por ali e me visto deitado na terra com o calção mais limpo. Devia estar me esperando na porta com uma varinha na mão. Fiquei pensando por um breve instante numa maneira para me safar. Foi quando ouvi um barulho vindo da estrada que dava pra casa. Uma luz tremulante começava a projetar sombras nos barrancos. Ela estava chegando ao topo da subi-da. A velha devia estar muito brava pra vir atrás de mim uma hora daquelas.

Do outro lado da encruzilhada, pela estrada que nunca fui, uma escuri-dão profunda avançou e silenciou a noite. Pela estrada de casa, aquela penumbra

Page 15: Livro contos melhores 2014 edição final

15

Contos Melhores - 2014

tremulante se aproximava e outros sons começaram a surgir.Lamentos de dor, sofrimento, arrependimento. Corri para cima do barranco e ali me escondi. Fiquei espiando o que se aproximava, rezando para que não me visse e passasse adiante, seja lá o que fosse e qual fosse sua intenção.

No topo daquela subida surgiu uma mulher segurando uma tocha em uma das mãos, bem próxima ao rosto. Sua pele estava avermelhada e suando muito. Na outra mão levava um espelho. Ela tentava se olhar, mas seus olhos estavam costurados. Pelo andar pesado e relutante percebia-se que era puxada ou empur-rada, mas eu não via nada ao seu redor. Passou perante meus olhos e, dobrando a encruzilhada, seguiu pela estrada que nunca fui.

Não me movi, pois escutava lamentações vindo da estrada de casa. Mais uma figura apareceu no alto da subida. Um homem sem pele vinha em direção à encruzilhada. Ele caminhava com muita dificuldade, sangrando a cada passo, gemendo e chorando de arrependimento. Quando ele estava bem à minha frente, duas crianças vieram correndo e começaram a açoitá-lo, levando-o para a estrada que nunca fui.

Ouvi um barulho metálico, como se algo muito pesado martelasse o chão de terra. Cruzou a subida um homem envolto com uma roupa de ferro ardente como brasa. Ele se contorcia e gritava, desejando violentamente retirar aquela roupa. Parecia uma armadura em chamas, com um cadeado selando uma trava em suas costas. Foi-se pela estrada escura.

Ouvi um cavalo relinchando e algo rolou pela estrada, vindo do topo da subida. Rolou até parar embaixo dos meus olhos, aos pés do barranco. Era um velho com as mãos e os pés decepados. Quando o cavalo se aproximou, empurrou o velho para a estrada do outro lado da encruzilhada.

Essas aparições foram se apresentando para mim. Eu permaneci paralisa-do, com a respiração acelerada, mas tentando não fazer nenhum barulho. Um grito de dor petrificou minha alma, agudo como uma navalha. Uma mulher com o corpo encoberto de espinhos andava rumo à estrada onde nunca fui. Quando ela tentava retirá-los, eles entravam mais em sua carne.

Enquanto ela sumia na escuridão, ouvi cães latindo. Um homem estava sen-do arrastado pela língua por um grande cão, enquanto outros abriam-lhe a barriga com mordidas ferozes. Desapareceu pela estrada escura e silenciosa.

Pensei que tivesse acabado, mais ouvi barulho de algo sendo arrastado. Vinha de longe, misturado a gemidos de muito esforço. Surgiu uma velha de ca-

Page 16: Livro contos melhores 2014 edição final

16

Contos Melhores - 2014

beça baixa com sete cordas amarradas a seus pés. Na ponta de cada uma delas, um saco de moedas. Minha avó vinha em direção à encruzilhada e, assim como os outros, passaria rumo à estrada escura, para onde eu nunca tinha ido.

Quando se aproximou do barranco, olhou para cima e me encarou. No lugar de seus olhos havia duas moedas. Elas brilharam como seus olhos brilhavam ao contar cada centavo de sua coleção. Não segurava nenhuma varinha em suas mãos. Não disse nada, apenas me observou. Abaixou a cabeça e continuou sua lamentosa procissão rumo à estrada escura, arrastando toda a tristezado peso que acumulou durante a vida.

Naquele tempo, a gente vivia tão escondido que muitas coisas que viviam escondidas dos olhos do mundo se aproximavam da gente.

*Fernando Henrique Bononi Verga, 30 anos,é jornalista, secretário municipal de Comuni-cação Social da Prefeitura de Araçatuba-SP.

Page 17: Livro contos melhores 2014 edição final

17

Contos Melhores - 2014

O colecionador de sonhosCategoria regional - 3.º colocado - Mário Henrique Silveira Bueno – Araçatuba-SP*

Ofim do mês ainda estava longe, o orçamento, porém, já inspirava cuidados. Diante da gôndola do supermercado, Antonio olhava indeciso entre a cerveja na prateleira e o sabonete em sua mão. Era um homem de hábitos extrema-

mente controlados, mas, vez ou outra, se permitia a pequenas liberalidades, como tomar uma garrafa de cerveja importada ou começar um sabonete novo ao invés de usar a costumeira maçaroca de sobras, que os mais sovinas, ou de poucas posses, costumam fazer.

Seria cientista por vocação, mas os desmandos da vida, entretanto, o trans-formaram em um invisível funcionário da burocracia estatal, esquecido em algum almoxarifado bolorento e mal iluminado da cidade. Reservado e discreto, passaria por um sujeito qualquer em meio à multidão, um comum, não fosse um segredo que carregava guardado a sete chaves: construíra uma minúscula engenhoca me-cânica capaz de capturar sonhos.

É que Antonio possuía uma estranha e insana obsessão pelos sonhos e quereres alheios. Sua obsessão era tamanha que, nas horas vagas, havia constru-ído a máquina a fim de guardar para si todos os sonhos do mundo.

O aparelho, apesar de engenhoso, tinha o funcionamento bem simples. Bas-tava aproximá-lo das pessoas que ele capturava de suas falas, ou pensamentos, tudo aquilo que fosse relativo a sonhos. Por isso Antonio andava invariavelmente munido de seu apetrecho, escondido em bolsos de camisa para que, em qualquer situação, lhe fosse possível armazenar suas preciosidades oníricas.

Esgueirava-se sorrateiramente, como uma sombra, no ônibus, na padaria, na rua, no supermercado, em qualquer lugar onde estivesse, com o intuito de ga-rimpar nas conversas dos outros os desejos, as vontades e os sonhos.

A noite, já em casa, transferia o conteúdo da máquina para potes de vidros, que eram adicionados a outros milhares de potes que acumulara em vários anos. Somente a ele tinha sido reservado o poder de enxergar os sonhos nos transparen-tes recipientes, o que fazia com extremo prazer.

Page 18: Livro contos melhores 2014 edição final

18

Contos Melhores - 2014

O ato de observar lhe ensinara que havia dois tipos de sonhos: os sonhos que as pessoas sonham quando estão acordadas, e os sonhos que as pessoas sonham quando estão dormindo.

Os primeiros são os que falam dos desejos, das vontades e quereres, como os sonhos de consumo, sonhos de amor, liberdade, saúde, emprego, a casa pró-pria, filhos, uma vida mais simples, um carro, viagens, uma pequena horta, um jan-tar em Paris. Dessa espécie Antonio possuía guardados vários tipos, desde sonhos triviais até sonhos megalomaníacos.

Dos sonhos cuja natureza era daqueles sonhados por pessoas que sonham dormindo, havia alguns que eram razoavelmente comuns, como, por exemplo, so-nhar que se está voando livremente pelo ar e sonhar com animais. Havia também os sonhos que traziam pessoas e fatos já há muito tempo esquecidos, e os sonhos que propiciavam o encontro com familiares falecidos. Alguns retornavam ao útero materno, enquanto outros iam para guerra. Havia os que viajavam por alguma galá-xia perdida do universo em companhia de extraterrestres, e os que estouravam for-tunas nos cassinos de Los Angeles. Também havia os pesadelos e aqueles sonhos tumultuados, confusos, misturados um no outro, completamente fora de lógica e desprovidos de qualquer sentido. Por esses tinha especial apreço.

Obviamente que, na prática, acontecia de um tipo de sonho invadir o espaço do outro, a ponto de confundirem-se, mas, na teoria de Antonio, eram somente aqueles dois os tipos que existiam.

Antonio chegava em casa, descarregava os sonhos, e contemplava extasia-do aquele quase sem fim de vidros enfileirados, maravilhado pela imensa capaci-dade do imaginário humano.

Sonhos seus, porém, não os tinha. Eram todos os dos outros.

Calhou certa vez, em sua ausência, de sua casa ser invadida por ladrões. Estes remexeram gavetas e abriram armários em busca de algo que pudesse ser furtado. bagunçaram tudo. A coleção de sonhos provocou nos ladrões um misto de espanto e incredulidade: quem seria maluco de guardar milhares de pequenos frascos, todos aparentemente vazios, organizados com tanto rigor e método?

Enfurecidos por não encontrarem nada de valor, os assaltantes acharam por bem trazer abaixo todos os armários que guardavam a coleção de Antonio e, com eles, todos os milhares de potes que armazenavam os sonhos.

Page 19: Livro contos melhores 2014 edição final

19

Contos Melhores - 2014

Em questão de minutos o local transformou-se em uma verdadeira cena de guerra. No chão formou-se uma espessa camada de vidros quebrados, tampas e restos de prateleiras, que os assaltantes também fizeram questão de quebrar.

Antonio, que chegou horas mais tarde, se deparou, perplexo, com a casa arrombada, revirada e toda sua coleção destruída. Sentiu o corpo estremecer e, em seguida, adormecer. Passou mal, teve ânsias e o estômago embrulhou. Então, sentiu sede. Uma sede que não se pode explicar. Sede que água não mata. Sentiu como se toda água do oceano tivesse invadido seu corpo, trazendo com ela tam-bém todo o seu sal, em um prenúncio do que estava por vir.

Em choque, andou em meio aquele caleidoscópio de vidros partidos, à pro-cura de qualquer sonho, qualquer um que, por ventura, tivesse sobrado. Entre um frasco quebrado e outro descobriu que não havia restado nenhum. A destruição ocasionada pelos assaltantes fez com que todos os sonhos simplesmente evapo-rassem de seus recipientes. Ele nunca havia pensado nessa possibilidade, mas sua intuição dizia agora que esse acontecimento iria trazer desdobramentos inimagi-náveis.

Os sonhos, efêmeros e voláteis, em forma de vapor, começaram a se reunir no céu e a formarem gigantescas nuvens negras, densas e opressoras, que foram aumentando exponencialmente a cada sonho que lhes era incorporado. Girando furiosamente, as grandes nuvens, não resistindo à força da sede de Antonio e aos ditames da natureza, desabaram em forma de água sobre a terra, em volume e velocidade nunca antes vistos. Chovia de tal forma que toda a cidade transbordou, sofrendo estragos de enormes proporções.

Não tendo para onde fugir, Antonio foi então levado de forma violenta pelas águas, tendo que lutar bravamente por sua sobrevivência. Resistiu por dois dias à enchente na copa de uma grande árvore, de onde via passar em turbilhões e en-xurradas os milhares de sonhos que havia acumulado anos a fio. Todo seu esforço havia se perdido e agora os sonhos de sua coleção estavam se transformando numa imponderável e cruel realidade, arrastando a tudo e a todos com impiedade.

No terceiro dia, com as águas ainda lambendo-lhe os pés, Antonio avistou um helicóptero que vasculhava a área em busca de sobreviventes. Com o pouco de forças que ainda tinha, arrancou a camisa e acenou desesperadamente para que fosse visto.

Em poucos minutos a cesta de resgate já estava a seu alcance. Com a ajuda do socorrista entrou na cesta, e, segundos depois, o helicóptero já partia rumo a um local seguro.

Page 20: Livro contos melhores 2014 edição final

20

Contos Melhores - 2014

Rapidamente a aeronave atingiu grande altitude. Antonio sentia-se relativa-mente seguro e protegido dentro do cesto quando algo inesperado aconteceu. Um forte estalo e o cabo de aço, que sustentava a cesta, se rompe. A cesta e seus dois ocupantes despencam no céu em direção à pequena porção de terra que acabava de se projetar. Tomado pela terrível sensação da queda livre, Antonio perde a res-piração. São quatro longos e torturantes segundos de desespero até o impacto no solo.

Um milésimo antes do impacto, porém, Antonio dá um pulo na cama e acorda com o coração disparado. Grito preso na garganta, levemente atordoado e confuso, ele percebe que está em seu quarto. Olha o relógio. São seis e meia da manhã. Respira fundo e aliviado. Alguns minutos depois, sai da cama e se prepara para mais um rotineiro dia de trabalho. Ao mirar o espelho não se reconhece como Antonio. Ele vê outra pessoa; vê, de fato, quem realmente é. Seu nome verdadeiro é Miguel, e já tinha perdido as contas de quantas vezes sonhara que era Antonio. Horas mais tarde, no supermercado, ele compra um sabonete novo.

*Mário Henrique Silveira Bueno, 42 anos, é fotógrafo artístico, já ganhou vários prêmios como artista plástico, Araçatuba-SP.

Page 21: Livro contos melhores 2014 edição final

21

Contos Melhores - 2014

Contratempos Categoria regional - 1.ª menção honrosa - Isleide Cristina Sicarelli de Oliveira – Guararapes-SP*

P ela janela, apenas um ínfimo foco de luz adentrava seu quarto. Com olhos semicerrados, via a luz também pelo meio. No fundo, buscava meios: de entender, aceitar, sobreviver.Na casa, não fosse o ruído do ventilador que girava incessante, o silêncio

seria rei. Aquele final de tarde era escaldante, candente. Mas seu coração estava frio, tão gélido que o fervor da temperatura ambiente não poderia afetar seu couro. Isso mesmo, a casca que a protegia, afinal, o próprio tempo a fez assim.

Durante anos se expôs a tudo: vento, chuva, sol. Contudo, pouco a pouco foi poluída, castigada, ficou demais para fora, agora só vivia para dentro: de casa, de si apenas. Só!

O que lhe restava naquele momento era pensar, reviver as poucas nuances de alegria que tivera, fazer das mesmas eternidade, ao menos em pensamento, já que a realidade tinha sido tão dura com aquela mulher que, um dia, fora tão mole: de coração, em atitudes. E a moleza do passado deixara reflexos: flacidez! Estam-pada na face, no pescoço, nos braços. Não tinha expressão. Afônica. Sem forças: físicas, emocionais.

Abriu um pouco mais os olhos, a claridade aumentou, ainda que dela, de seu interior, emanassem sombras, fora, nem os móveis pareciam circundá-la, tudo estava distante. Exceto o ventilador. Este girava, rodava , circulava , cada vez mais próximo. Para ela, uma metáfora da vida.

Em meio a calmaria e escuridão do espaço, foi interrompida por um grito. Era uma voz infantil. Havia por ali uma criança. Novos vizinhos? Não tinha certeza. Há tempos não se dirigia ao quintal, nem à calçada: estava sempre descalça. Na cama. Pés ao léu. Perdera-se no tempo, aliás, como dizia, “havia perdido seu tem-po”. E quanto tempo já se passara! Por isso, não lhe importavam mais os anos, meses, dia da semana, as horas... vivia os segundos, contava-os ora mentalmente, para evitar movimentações, ora em situações de maior disposição, momentos raros, por meio do toque dos dedos junto à madeira da cama: conseguia, assim,

Page 22: Livro contos melhores 2014 edição final

22

Contos Melhores - 2014

suportar o tempo. Era seu jeito de encarar a vida.Ouviu novamente a voz. Certificara-se de que era mesmo uma criança.

Cantarolava algo estranho, desconhecido. Perfeito! Um encontro entre díspares. E passou a se atentar à voz, aos dizeres. Gradualmente, foi invadida por uma sen-sação de curiosidade, a imaginação voltara a aflorar: surgiam-lhe rostos, gestos, movimentos. Junto ao giro do ventilador, os pensamentos também giravam. E foi assim que a cabeça também girou. Os pés giraram. Com muito esforço, levantou--se. Aproximou-se da vidraça. Encostou seu rosto nela. Suavemente, afastou-se aos poucos. Foi ao centro do quarto. Soltou os longos cabelos: grisalhos. Também o corpo. Agora, de olhos plenamente fechados, inexplicavelmente deixava girar sua-vemente toda sua estrutura. Dançava, a seu modo, ao som da criança que cantava lá fora. Parecia-lhe um remédio: um sopro de vida. E nos rodopios também se recordara do baile de formatura, quando girou nos braços do rapaz que tanto admi-rara na sala e, somente naquela noite, havia sido por ele notada e convidada para dançar a primeira valsa de sua vida. Tempo perdido. Lembrou-se da roda gigante, de quando girou com o primeiro namorado. Lembrou-se dos giros que realizava no trabalho, das rodas com suas crianças. Ainda que não tivesse filhos, educou tantos pequenos, sem gerá-los, ela os girou. Ofereceu-lhes novos círculos. Fez rodas, cantigas, rodopiou... mas chegou o momento de cessar. Era tempo.

Em mente, guardara o conceito de que o relógio sempre gira e mostra a hora de parar. O relógio sempre girou em uma sintonia que ela não pôde conter. Nem voltar os ponteiros. Mas com seu ventilador era diferente: a mulher se fizera capaz. Movimentos! Talvez, giros contrários. Escolhia o sentido do vento. O relógio... ah, o relógio... sempre na mesma direção: para o fim. Ou o começo: diferente! Mas apenas para quem pode desfrutar do tempo. Por isso, preferira, por anos, olhar para o ventilador, com ou sem interrupções. Abolira de sua casa o relógio.

E a música continuava, era a voz da criança, e ela também seguia na ca-dência: vagarosamente, gozando de pouco equilíbrio, girava em ternos contornos .

Num momento súbito, resolveu, embora tendo apresentado dificuldades, abrir a janela. E assim a luz adentrou seu quarto. Acima do muro, avistara uma joia. Hipnotizada, parou. No jardim do vizinho havia um pé de girassol. Percebeu então que nele também girava sua única flor, tão devagar, tão sem pressa, e, meu Deus, tinha luz! Ao som da voz da criança, o girassol parecia dançar, girar lentamente, sorrir para a velha. E assim como o girassol, seus lábios foram se movimentando, a face sofria para esboçar um leve, breve sorriso. Ela não podia ver suas rugas,

Page 23: Livro contos melhores 2014 edição final

23

Contos Melhores - 2014

as marcas do tempo. Também não tinha mais espelhos. E era melhor não tê-los. Por isso, pouco a pouco sorriu. Mas a voz da criança cessou. Os pensamentos no passado também se encerraram ali. A viagem acabara. Contudo, ainda havia a flor, o girassol, e ele girava, lentamente...

Por horas, ficou naquela janela, contemplando a flor gigante, amarela. Era como o sol, mas não queimava sua pele, seu couro. Era como as rodas da vida das quais participou, e não sentia medo que o giro dourado cessasse, pois o movimento era lento, e, naquele instante, parecia lhe haver ainda muito tempo. “Tempo? Oh, meu Deus!”.

Mas os giros do ponteiro do relógio, ainda que não tivesse o maldito marca-dor cronológico em sua casa, eram rápidos, ligeiros, fugazes: era de novo o tempo, seu grande inimigo. Ela não tinha relógios, mas os mesmos existiam e não podia detê-los.

Ao cair da noite, já não era possível avistar a imagem da flor com a mesma magia que invadira o peito daquela mulher diante do primeiro encontro: sua liber-tação! Há muito esperou chegar esse momento.

Escuridão: ela também a acompanhara. Por anos. Iria voltar à cama, o ventilador continuaria a girar. Por ela, seu giro poderia ser controlado, ritmado, de acordo com os sentidos que desejasse. Quem dera pudesse fazer o mesmo com o relógio...

Iria deitar-se à espera de, quem sabe, mais um dia. Desejou que o venti-lador tivesse movimentos tão passivos como os do girassol, pois assim poderia pensar na luz. Traria ao menos sua imagem. E assim o fez. E, com seus giros, foi novamente cerrando os olhos. Viajou . Porém, não eram mais lembranças, agora tinha sonhos. Eram sonhos com cor. Abandonara a escuridão. Tudo estava amarelo, dourado: era a luz. Por tanto tempo a buscara... E assim adormeceu. Agora tudo era claro, como ela: Clarice.

Na manhã seguinte, o silêncio invadira aquela casa, parecia superior aos outros dias. O ventilador não mais girava. Havia acabado a energia? Pela fresta da janela, nem um frágil foco de raio do sol. Nem penumbra. O dia ia se passando, as horas: o tempo. Não havia sol. Nuvens escuras ofuscavam a possibilidade de luz. No quarto, a escuridão também imperava. Sem sons, sem giros. Lá fora, um grito: pueril!

- Mãe, o girassol caiu! Está murcho, acho que morreu. Que droga! E vai chover...

Page 24: Livro contos melhores 2014 edição final

24

Contos Melhores - 2014

– Calma, menina! Vão nascer outros. São como as pessoas: nascem, vivem, mas depois morrem. Passam! Nada é para sempre. Para tudo há um tempo. Aliás, anda porque o tempo também mudou...

– Ah! Não queria que o tempo passasse! Não queria que chegasse a hora de ir à escola! Não queria ter que parar de brincar! Para isso que devem viver as crianças. Não queria que o girassol morresse. Eu só queria brincar. Não podia cho-ver! Mãe, ele era tão bonito, tão amarelinho, parecia feito de luz, parecia mesmo com o sol...

– Chega, menina! Deixe de conversa fiada. Está tentando me enrolar para ganhar tempo e não fazer o que precisa!

– Mas a senhora não disse que o tempo passa? Como ganhar tempo? O tempo a gente só perde...

– Ah, moleca! !Pare com suas enrolações. É hora de tomar banho, de se arrumar para ir à escola. E eu também preciso trabalhar. Meu serviço me espera, meus alunos me esperam. Também vou à escola.

Na casa ao lado, na casa da velha, a única irmã, mais nova, chegara e avis-tara o corpo estendido na cama, pensou em chamá-la: “Clari...”. Tudo estava rijo, finalmente, literalmente, sem vida. Não pareceu surpresa. Já era esperada sua hora há algum tempo. Apenas precisava tomar as providências necessárias, burocracias para o sepultamento. Não a visitara há dias, a pedido da própria enferma. Ela que fora clara, Dona Clarice, estava como sua casa: escura. Clarice não mais reluziria. Nem se houvesse flores, nem mesmo com o girassol. Clarice não tinha mais tempo.

No quarto, sobre um criado- mudo, a irmã ainda avistou um caderno velho com algumas anotações: devaneios, lembranças registradas pela mulher sem luz. De relance, viu no final da página aberta: “Eu odeio relógios. Não consigo controlá--los. Eu odeio o tempo: ele sempre me controlou”. E respirou fundo. Embora um pouco abatida, estava com pressa. Precisava tomar atitudes, formalidades da vida. Teria de avisar os poucos parentes que tinham, talvez alguns conhecidos da faleci-da e, naquele momento, estava preocupada com o almoço que ainda não fizera. O bisneto viria almoçar em sua casa após a saída da escola. O marido também che-garia para o almoço. E a casa nem tinha sido varrida. Naquele dia, não deu tempo.

Havia tanta coisa para fazer. Precisava, também, lutar contra o tempo.A menina da casa vizinha saiu a caminho da escola. Atrasada. Porém, não

se preocupava. Caminhava. Seus passos eram leves. Ela ainda era livre. Nunca vira a velha Clarice. Não sabia de sua existência, eram duas estranhas. Embora

Page 25: Livro contos melhores 2014 edição final

25

Contos Melhores - 2014

possuíssem tantas coisas em comum. Não iria ao seu velório, seu enterro. Para ela, ainda que o girassol também tivesse morrido, outros nasceriam, assim como a velha vizinha anônima, haveria outras “Clarices”.

A tarde avançava nublada, mas o sol voltaria, pois como dissera a mãe da menina da casa ao lado,” na vida tudo passa, muda, acaba”. Por isso, não tinha pressa! Para ela, para a menina da casa ao lado, ainda haveria tempo. Mesmo que também não o apreciasse, ele, por enquanto, não a incomodava freneticamente. Tampouco conhecia sua plurissignificação. Na prática, acabara de iniciar sua traje-tória: para a vida. Ao contrário da velha Clarice, que também seguira: para a morte.

E caminhou. Sem medos. Apenas contratempos.

*Isleide Cristina Sicarelli de Oliveira, 35 anos, professora, Guararapes-SP.

Page 26: Livro contos melhores 2014 edição final

26

Contos Melhores - 2014

Leite com açúcarCategoria regional - 2.ª menção honrosa - Rita Lavoyer – Araçatuba-SP*

Melissa é uma criança admirável. Consegue projetar histórias com cená-rios cinematográficos, servindo-se apenas de gestos e palavras. Com seus doze anos de pura magia e encanto, dá vida ao inanimado. Escalaram-na,

mais uma vez, para o teste. Chegara-lhe a hora de mostrar que o papel ajustava--se a ela. Nenhuma candidata, que por ventura houvesse, poderia tomá-lo. Me-lissa, convicta, adentrou o palco improvisado: uma simples sala, mas que, com sua genialidade poderia ser transformada. Ela a iluminaria com sua luz e cada canto seria o que quisesse que fosse. Recursos faziam-se desnecessários àquela eminente artista mirim que, com primor, representava os fatos, enrijando os bas-tidores. Sabia que havia pessoas que se escondiam de seus olhos para melhor observá-la, avaliá-la para a atribuição do papel, talvez, para testá-la ou espicaçá--la. Nada disso a abalaria, desempenharia com perfeição o monólogo e ganharia o que pretendia daqueles observadores. Dar-lhes-ia as respostas que quisessem, contando-as. Genial! Algumas vezes, fora surpreendida com os seus olhos negros parados no tempo. Como fixava-se longamente em um ponto sem mexer o globo ocular impressionava quem a assistia. Magnífica!

– Mamãe e eu éramos unidas, não tínhamos ninguém por nós. Era filha única, como eu. Mamãe trazia mágoas da vovó, acho, desde a sua infância, por isso estavam, mãe e filha, dolorosamente presentes uma na vida da outra. Viviam bem quando cada uma ficava em sua casa. Papai... eu não o conheci. Não me falavam sobre ele, somente que morreu antes de eu nascer, mas não acreditava nessa his-tória. Não havia segredos entre mim e mamãe. Acreditava. Mas havia! Havia uma caixa onde ela guardava o seu vestido de noiva. Tinha vontade de pegá-lo para ver como era o seu corte, o seu modelo. Deveria ser justo, marcando a silhueta que mamãe apresentava numa foto onde um dia eu a vi, somente... Nunca vi outra foto dela!

Enquanto ela declamava a história, sendo observada por profissionais da-quela arte de encenar, movimentava suas mãozinhas frágeis, projetando no ar, com a suavidade de seus gestos, as imagens de sua personagem. Dramática Melissa!

Page 27: Livro contos melhores 2014 edição final

27

Contos Melhores - 2014

– Pelo pouco que mamãe me deixou ver, percebi que o vestido era de mangas longas. A renda, já amarelada, era rústica. Trazia um formato de rosas e, no miolinho, algumas imitações de pérolas, descascadas. Bordado simples. Queria tanto ver aquele vestido! Prová-lo sempre foi a minha vontade, mas como? Mamãe o trazia trancado! Disse-me que daria azar, - A encenação seguia perfeita e a sala ia ganhando espectadores-analisadores. – Confessei-lhe, certa vez, um sonho: que o meu vestido de noiva teria babadinhos na barra e um decote-princesa. Queria que as mangas fossem compridas, porque deixam o vestido mais elegante. Sur-preendeu-me ela gritar comigo! Disse-me que o cortaria se eu chegasse com um em casa! Insistiu que aquilo não era assunto pra mim! Percebendo-me com medo dela, preparou-me o leite quente com açúcar e eu me acalmei. Aprendeu com minha avó que leite quente com açúcar tira medo de criança. Cada gole quente dentro de mim alivia-me muito.

Com a voz na medida exata para o enredo e sem sorriso algum, transmuta-va-se para que sua fisionomia alcançasse o estágio de atriz profissional cujo texto e palco foram, espontaneamente, programados por ela. Era daquela transmutação que os holofotes não podiam se desfocalizar. Os peritos, ali presentes, não paravam de anotar em seus relatórios a análise da destreza daquela expoente. Brilhante, Melissa!

– Após um dia atrás do outro em nossas vidas rotineiras, o dia da vovó fa-lecer chegou. Mamãe não chorou. Eu a vi escolhendo a roupa para enterrá-la. Ela passeava com as mãos sobre as peças que estavam penduradas no guarda-roupa. Senti que ela abraçava as roupas da vovó querendo ter em seus braços um corpo que já não poderia vesti-las. Suas mãos tentavam enxergar uma roupa que melhor se adequasse àquela ocasião da vovó. Ocasião! Foi como eu ouvi mamãe dizer! Separou uma blusa estampada, muito velha, e uma saia que não combinava com nada. Deixou o conjunto desornado sobre a cama. Arrancou as roupas que vovó vestia e começou a limpá-la com toalhas ensaboadas. Usou o sabonete preferi-do da vovó. Perguntei-lhe se queria que eu a ajudasse. Respondeu-me com um “não” isento de qualquer sentimento. Foi uma cena chocante vê-la limpando o corpo da vovó. Era o seu último banho. Vi muita pele esparramada sobre a cama. O corpo dela era muito estranho, as partes que o compunham pareciam não se encaixarem umas nas outras, aquele pescoço torto... Morreu nas mãos da minha mãe, estávamos juntas naquele dia, na casa dela. Era muito doente e a sua saúde piorara muito. Sentei-me no pé da cama e observei que as unhas dos pés da vovó

Page 28: Livro contos melhores 2014 edição final

28

Contos Melhores - 2014

não eram cuidadas, suas pernas estavam roxas, como o pescoço. Ainda bem que mamãe desconfiou que eu não teria coragem de ajudá-la na tarefa e pediu que me retirasse, mas que mantivesse silêncio absoluto e as luzes apagadas. Pela primeira vez vi uma mulher nua! Meu corpo, não minh’alma, careceu imediato: leite quente com açúcar! Necessitava repor minhas energias. Preparei-o como mamãe fazia para me acalmar quando eu sentia medo.

O público mantinha-se controlado. Aquele papel seria exclusivamente dela! – Trocou-a e tomou outras providências, também sozinha. Vi minha avó

tão feia naquelas roupas velhas que a minha mãe escolheu para aquela ocasião! Senti raiva da minha mãe naquele momento, parecia que se vingava, aproveitando--se porque vovó não podia mais se defender dos ataques que ela lhe provocava. Sempre as vi assim: atracavam-se verbalmente quando estavam juntas. Vovó tinha muitas amigas, mas passamos a noite sozinhas com ela. Dois homens da funerária encarregaram-se de tudo. Não sei exatamente o que a minha mãe resolveu com eles. Fiquei pensando em como eu faria aquele serviço com a minha mãe se ela partisse. Fui lendo-lhe a anatomia, ansiando aquele corpo nu sobre a cama e eu limpando-o. A enterraria com o vestido de noiva. Não lhe serviria, certamente, mas daria um jeito. Vê-lo por completo já me satisfaria. Confessei isso à vovó certa vez...

Movimentaram-se, apreensivos, os que analisavam, com afinco, aquela ex-planação.Nada poderia passar-lhes despercebido. Ela acrescentara o: “confessei isso à vovó certa vez...” que, até então, não constava declarado. Ah, Melissa...

– Não sei se não aguentei, mas dormi e ela me acordou para levarmos a vovó. Os homens já tinham chegado e precisavam fechar o caixão. Nenhum vizinho? – perguntava-me! Será que eles não estranharam o silêncio na casa? Queria tanto gritar para que me ouvissem! Mas não era possível, mamãe pediu--me muito silêncio... eu o-be-de-ci... Dei um beijo na vovó. Meus lábios não queriam se desgrudar daquela pele gelada e endurecida. Vovó estava inchada, o rosto deformado. Havia um lenço no pescoço dela. Senti uma vontade enorme que ela voltasse. Solucei tão alto que fui repreendida por minha mãe, que nem sei se chorou ou não, porque eu dormi e não a ajudei a velar vovó. Nunca mais a veria. Ela contava muitas histórias pra mim, queria que eu as aprendesse, porque contar histórias desenvolve habilidades, afirmava-me. Algumas eu tinha que repetir várias vezes para ela certificar-se de que eu estava contando certinho, sem pular nenhum detalhe. Ralhava, sempre me corrigia, depois me servia leite quente com açúcar, incentivando-me: “Terás que aprender a contar!”

Page 29: Livro contos melhores 2014 edição final

29

Contos Melhores - 2014

Aprendera bem com a avó. As palavras a impregnaram:– “Deves saber que és competente. A melhor! Se disto te conscientizares

farás com que os outros te vejam como tu queres ser vista” – Ah! Vovó, cheia de “tus” e “tes”... usadora e abusadora da segunda pessoa, bem... abusadora não, pois era oriunda de Portugal. Eu era a sua “Mel”... – Sentiu saudosa ternura por ela. Murmurou: “– Vovó...” – Os homens levaram-na. Mamãe trancou a porta da casa da vovó e saímos. Entramos naquele carro. Não podíamos ir ali, mas fomos porque vovó só tinha a nós duas naquele momento, e a funerária. Era apertado. Os homens foram no banco da frente. Eu fiquei apertadinha entre o caixão e a parede dura e fria daquele carro, como o coração da minha mãe: duro e frio. O caixão era feio, simples e pobre. Vovó não era rica, mas aquele caixão não combinava com ela. A madeira de caixão fino brilha, tem pegadores do lado onde muitos se agarram para levar o morto para o cemitério. Reparava quando ia aos velórios com vovó. Talvez tenha sido por isso que mamãe comprou um caixão vagabundo, sem brilho na madeira e com pegadores míseros nas laterais, porque não tinha ninguém para admirar o brilho da madeira, muito menos se agarrar ao caixão da minha avó para levá-la à cova. Mel...

Transfigurara-se. Os músculos ativos de sua emoção permitiam-se diálo-gos. Não era a Melissa, mas a atriz; ou não era a atriz, e sim a neta? Não recebeu aplausos, sabiam, pois, estarem distante do desfecho. Astuciosa menina!

– Os amigos dela, embora velhos, talvez se agarrariam às alças na tentativa de trazê-la de volta, alguns deles sabiam que ela passara mal os últimos dias, mas mamãe não os avisou. Quis muito, dentro daquele carro de funerária, que um deles se arriscasse, trazendo-a de volta... Os olhos frios e pobres da minha mãe, fixados em mim, contrariavam minha vontade oculta! A saudade que eu já sentia dela ra-chava meu peito e sem demora um soluço seguido de lágrimas escapou-me! Sen-tia que faltava-me um pedaço, mas os meus restos seguiam com ela! Lembrei-me de quando me confessava coisas, fazendo-me prometer que não revelaria à minha mãe! Era segredo nosso, havia lhe prometido, embora isso me aborrecesse, porque não havia segredos entre mim e mamãe! Mas não podia quebrar a confiança que vovó me depositara. Ficaria de mal de mim, não me permitiria visitá-la e não me contaria mais histórias, ao ponto de eu as decorar. Eu a queria viva e ser a sua “Mel”. No coração da minha mãe ela, há muito, já tinha morrido! Sabia que ela não amava minha avó!

Nasce da atriz uma menina em lágrimas que se agiganta com sua força

Page 30: Livro contos melhores 2014 edição final

30

Contos Melhores - 2014

criativa, permeando naquela sala o envoltório sedutor a que ela se propôs exibir! – Há três dias enterramos vovó e não saí mais. Não vieram à nossa casa

perguntar por que eu faltei às aulas. Sonhei com este momento. Não vou sentir as roupas dela no armário. Não tenho dúvidas: será enterrada com o vestido de noiva! Fiz todo o ritual, limpei o corpo da mamãe com toalhas e usei sabonetes cheirosos. Tantos anos morando nesta casa e não tinha percebido o quanto o vestido estava no alto. Mamãe o alcançava subindo na cadeira. Providenciei o necessário para subir, destranquei a parte de cima do armário e toquei a caixa. Uma sensação indescritível transcorreu o meu corpo. Não sei dizer o que era. Só sei que toquei a caixa onde habitava um sonho de noiva. Cada batida do meu coração arrebentava--me o peito e eu pude sentir mamãe entre os panos. Observei-a deitada. Os cortes daqueles tecidos acomodavam os meus imutáveis sonhos. Trouxe a caixa para baixo e a abri. Estava amarelado. Era godê de tecido fino, leve e com uma fita de cetim azul claro embaixo do busto. Era muito largo aquele vestido com manchas escuras. A renda compunha apenas o busto e as mangas. Por que não era de cor-po justo como o imaginava? As manchas seriam de vinho? Havia um papel escrito junto com o vestido na caixa.

Novamente a menina se apresenta. Era o foco de olhares atentos dos que mantinham mãos ocupadas em relatórios.

– Não! As manchas não eram de vinho, eram de sangue, por isso o vestido não era justo, havia razões para o sangue, mas precisava ser naquela ocasião? E agora, não tínhamos ninguém por nós! O que será de mim? O que será de mim?

A sala, iluminada pelas imaginações de Melissa, silenciou-se. Com suas mãozinhas, pequenas e frágeis, tampa o rosto e limpa as lágrimas que lhe escor-rem na face. A mulher adiantou-se ao centro daquele palco improvisado.

– Melissa, como você a encontrou? Foi apenas para conhecer o vestido com o qual sua mãe se casou que você fez aquilo? Havia outra razão além do vestido?

– Encontrou?! Doutora, eu só queria ver o vestido, depois vesti-la. Também não sabia que tinha aquele papel dentro da caixa... Ela não se casou! Eu não sabia que ela não tinha se casado. Nunca me disse nada, só que o meu pai tinha morrido.

– Melissa, você já nos historiou esses fatos, sem inverter um parágrafo do que já havia falado... Somente acrescentando, desta vez, o que “confessou à sua avó”!

– “A polícia já terminou a perícia, Melissa!” - “ O que estava escrito no papel que encontrou junto com o vestido? - “ O psiquiatra a aguarda, Melissa!”.

Page 31: Livro contos melhores 2014 edição final

31

Contos Melhores - 2014

Também já repetiram as perguntas um monte de vezes, doutora!– E você não tem mais nenhuma lembrança da ocorrência, além dessa

história que você repete há meses?– Doutora, eu pensei que mamãe não gostasse da vovó e eu a odiei nesses

três últimos dias. Queria a vovó de volta e também queria a minha mãe, as queria unidas, mas me incomodou a forma com que ela fez vovó partir. Vovó sempre me pedia segredo quando me contava sobre o aborto que mamãe tentou fazer antes do casamento. Ela sempre me dizia que mamãe não queria que eu nascesse. Mas eu li outra história no papel que caiu de dentro do vestido, quando eu o desdobrei.

– Melissa, não são três dias, são meses e você continua dentro desses “três dias” que vem nos contando... O papel, onde está e o que estava escrito?

– “Para minha filha Melissa” - era isso que estava escrito. Eu o queimei, senhora, junto com o vestido. Promete, doutora, que irão vestir a minha mãe com roupa bonita, que combine com a beleza e o amor que ela tinha por mim? Por favor, não enterre a minha mãe junto com a minha avó. Aquela velha fria foi quem tentou me matar quando eu ainda estava na barriga da minha mãe, no dia do seu casamento, adiantando o meu nascimento. Mamãe salvou a minha vida das garras da vovó e o noivo não apareceu. Ela não merecia isso, não merecia aquela mãe. Bem feito o que mamãe fez a ela, e eu a culpava... Posso beijá-la antes que me levem novamente?

– Levaram o corpo, Melissa, há meses! Tinha muitas perfurações. Preci-samos encontrar a arma. Constatamos que você teve várias faltas na escola, não foram apenas três dias como diz. A diretora informou aos investigadores que tenta-ram localizá-las, mas sem sucesso. O vestido, Melissa? Onde o queimou?

– Eu ficava com minha avó, doutora, ela passou por vários problemas de saúde o mês passado, semana passada ela piorou, até que veio a falecer. A minha mãe trabalhava muito, chegava sempre muito tarde, por isso não nos encontraram.

– Melissa, nenhuma funerária confirmou essa passagem que você nos con-ta sobre a morte e o sepultamento da sua avó. O túmulo que você nos indicou não recebeu nenhum corpo nos últimos meses. Os vizinhos da sua avó já foram inter-rogados e todos confirmaram que ela estava bem de saúde. Nenhum viu o carro da funerária sair com um caixão de lá. Onde está a arma que usou para matar a sua mãe e onde está o corpo da sua avó?

– Onde está vovó, doutora? Onde está vovó? – Melissa, como era a caixa onde estava guardado o vestido de noiva?

Page 32: Livro contos melhores 2014 edição final

32

Contos Melhores - 2014

– Bonita e enfeitada com fita. – Respondeu tranquilamente.Espantosa! Ela voltou a paralisar o globo ocular num ponto fixo daquela sala

- palco simulado para apresentar uma história, dissimulada ou não? Que atriz!– Melissa, a perícia detectou outras digitais na cena do crime. Havia mais

alguém com você? Melissa, você quer tomar um copo de leite quente com açúcar?– Claro que não, doutora! Claro que não, doutora! Foi perfeita no que se propôs a fazer, impressionando os que ali estavam

para analisar a sua performance. Corajosa menina cuja fragilidade apresentava-se não dar conta daquela dramatização, levantava questionamentos aos presentes.

– Será dela esse papel, doutora? E o pai dela? Vamos puxar esse caso também?

– Por enquanto não! Levem-na e substituam o leite quente com açúcar por suco gelado. Quem sabe ela nos surpreenda com outras histórias? Ela é excelente contadora de fatos! Ah, Mel... Mel... Adoro ouvi-la!

– Sim senhora, doutora!

*Rita de Cássia Zuim Lavoyer é professora, vários livros publicados, Araçatuba-SP.

Page 33: Livro contos melhores 2014 edição final

33

Contos Melhores - 2014

O louva-deusCategoria regional - 3.ª menção honrosa - Caroline da Silva Rodrigues – Araçatuba-SP*

Não foi culpa de Sarah os eventos que ali ocorreram. Ao menos foi o que ela disse a si mesma enquanto relembrava aquele momento no mínimo bizarro em que seu filho, seu sangue, se pôs a chorar diante de um simples louva-

-deus.Antes disso os dois tinham tido uma tarde muito satisfatória, um programa

de mãe e filho. Ela havia cancelado seus compromissos no domingo e levado a criança para um passeio de carro, em seguida, um sorvete. Cristian havia dado risada quando ela derrubou um pouco do sorvete em sua blusa e Sarah não resistiu a provocá-lo.

– Cuidado, Cristian – disse – Se você ficar rindo, o devorador de crianças virá te pegar!

– Devorador...?! – Cristian riu mais ainda – Isso não existe! – Ah, não, existe sim – Sarah se debruçou em sua direção como se estives-

se dizendo algo de suma importância – É um bicho horroroso que aparece quando as crianças riem da mãe e que devoram sem parar aquele que está rindo. Dizem que só sobra uma poça de sangue no chão, no local onde havia a criança.

– Isso é besteira mãe – mas Cristian já olhava para os lados, apreensivo. – Você é que sabe – Sarah disse, dando uma lambida em seu sorvete –

mas, se eu fosse você, tomaria cuida... BÚÚÚ!Ela não completou a frase, avançando com as duas mãos na clássica pos-

tura de “assustar”. Cristian começou a chorar muito alto. Dividida entre abaixar a cabeça ante

tamanho constrangimento e consolar a criança, Sarah demorou a perceber que não era mais o foco da atenção do garoto. Virou-se na direção que Cristian encarava e viu um louva-deus em cima de outra mesa.

O bicho parecia muito maior do que os outros insetos da sua espécie que Sarah já havia visto e parecia olhar diretamente para Cristian, que não parava de chorar. Durante um tempo que Sarah não saberia precisar, mas que provavelmente

Page 34: Livro contos melhores 2014 edição final

34

Contos Melhores - 2014

foram apenas alguns segundos, eles ficaram congelados naquele momento, com Cristian chorando e Sarah compartilhando observando aquele louva-deus, uma sensação estranha na boca do estômago.

De repente um jornal esmagou o inseto, o que só fez com que Cristian cho-rasse ainda mais alto, mas tirou Sarah de seu transe.

– O que está acontecendo aqui?! Moabe, seu ex-marido, perguntou, dividindo o olhar entre Sarah e Cristian.

O jornal com que matara o louva-deus ainda enrolado em sua mão. – Olá, Moabe – Sarah respondeu, ainda um pouco perturbada – Cristian se

assustou com o louva-deus.Moabe suspirou, mas logo sorriu e acariciou o cabelo do filho com a mão

que não segurava o jornal. – Melhor agora, amigão?Cristian, que parou de chorar assim que Moabe dissera suas primeiras pa-

lavras, assentiu com a cabeça, mas ainda parecia um tanto pálido e cabisbaixo. Sarah imaginou que a reação não era nada mais do que vergonha pela atitude de instantes atrás.

– Já são cinco horas? – Sarah disse e olhou o relógio, ansiosa para mudar de assunto.

– Ainda faltam alguns minutos, cheguei um pouco mais cedo. – Ele se sen-tou na mesa com eles – Foi tudo bem, Cristian? Você se divertiu?

Mais uma vez Cristian apenas assentiu.– Nós demos uma volta de carro antes de parar aqui – Sarah se sentiu

compelida a dizer algo para preencher aquele silêncio – Mostrei para Cristian mi-nha casa nova.

– Mamãe me deu um quarto só pra mim – Cristian murmurou timidamente, parecendo muito diferente do garoto de minutos atrás.

– Que ótimo amigão – seu pai retrucou rapidamente, naquele tom que os adultos costumavam usar com as crianças – Você pode dormir lá quando for visitar sua mãe.

Sarah sentiu uma pontada de culpa a ênfase que Moabe deu a palavra vi-sitar, mas se recusou a ter aquela discussão mais uma vez - ele não iria fazer com que se sentisse culpada por ser uma mãe ausente.

Desde o inicio a ideia de ter um filho partira de Moabe, Sarah era contra. Por insistência dele acabou engravidando e como tudo terminara? Há vários anos

Page 35: Livro contos melhores 2014 edição final

35

Contos Melhores - 2014

Sarah saíra daquela depressão pós-parto, mas ainda se lembrava muito bem de toda a dor e sofrimento.

Moabe olhou para o relógio em seu pulso e se levantou. – Nós já vamos indo – ele colocou a mão no braço de Cristian, que se

sobressaltou em seu lugar. Na certa ainda estava sob efeito daquela cena com o louva-deus – Vamos, filhão.

Cristian levantou-se lentamente e se aproximou de Sarah– Tchau, mãe – disse.– Tchau, Cristian. Te vejo na semana que vem?– Estaremos te esperando sexta-feira – Moabe disse, pegando o garoto

no colo antes que Sarah pudesse abraçá-lo. Ela havia prometido a si mesma que o faria daquela vez, mas seu ex-marido interrompeu seu momento com Cristian.

– Estarei na sua casa às 8 – Sarah forçou-se a dizer, os sentimentos am-bivalentes.

Moabe apenas assentiu e caminhou para a saída, ainda levando Cristian no colo. Enquanto observava seu filho ser levado embora, Sarah sentiu o familiar senti-mento de alívio mas, junto dele, novamente aquela sensação na boca do estômago.

Algo no olhar de Cristian para ela, enquanto seu Moabe o levava embora, fez com que Sarah se lembrasse do louva-deus. Naquele momento, também sentiu vontade de chorar.

*Caroline da Silva Rodrigues é professora, 22 anos, já venceu o concurso de Concurso de Contos Cidade de Araçatuba em 1.º lugar na categoria regional. Araçatuba-SP.

Page 36: Livro contos melhores 2014 edição final

36

Contos Melhores - 2014

A velhice do reiCategoria regional - 4.ª menção honrosa - Rodolfo Elias Minari – Valparaíso-SP*

Nesta suíte, entre os pequenos brinquedos e símbolos que amealhei pelo fio das décadas, misturados a algumas centenas de livros – tudo disposto em estantes que tomam as quatro paredes –, se encontra em lugar de destaque

a bonequinha russa a que chamam Matrioshka.No cômodo não existe lugar para quadros ou pôsteres, por isso as lombadas dos livros precisam compor a mensa-gem, e pelo meu minuciosotrabalho assim o faziam; e os bonecos, ícones, estátuas e amuletos de diversas tradições que colecionoacentuam a tridimensionalidade e a plurissignificação de todo o saber científico, artístico, histórico e esotérico ali representados. Girando a cabeça sobre o eixo vagarosamente vejoa cor e o nome de cada volume, como filhos meus, como ovelhas bíblicas – e todas me parecem estar em seu lugar.

Mas eraevidente que Matrioshka não gostava do local onde eu a pusera.E eu, sentado em frente ao computador, resolvi de repente que disso era a culpa pelo a que hoje em dia chamam bloqueio criativo. Na minha época se chamava ficar sem dinheiro.Culpei a falta de dinheiro e o excesso dele. Tentei culpar tanta coisa. Eu precisava fazer isso, achar a razão da ruptura e consertar. Barrar o esco-amento de ideias. Qualquer tentativa é melhor do que ficar estático olhando essa tela brilhante. Por longo período culpara o computador, mas hoje dependo dele, meus dedos não tem força para datilografar e minha mão trêmula se cansa logo de escrever à mão. Penso em Goethe que, com mais idade do que eu, decidiu-se a escrever uma segunda parte de “Fausto”. Pesquisei no google e confirmei que ele o intentara meio século antes da invenção da primeira caneta-tinteiro e era obrigado portanto ao esforço de molhar repetidamente sua pena; sinto a plena convicção de que não confiaria em mim mesmo ao ponto de me fatigar e ter ciência do esquema a que sucumbo me deprime.

Sou um velho covarde e antissocial; a quem vai interessar o que eu escre-vo? Olho com nojo para a página de luz. Isso nem é papel. E o que está escrito não se poderia nem sonhar literatura, e mais acertado seria dizer de si um refluxo de consciência. Lembranças que vomito aleatoriamente, sem qualquer objetivo ou

Page 37: Livro contos melhores 2014 edição final

37

Contos Melhores - 2014

direção. Nos últimos anos, usara demais o exercício da escrita como catarse, cobri o sagrado ofício de imundície me purgando, e, curado, ignorei voltar ao suor e à devoção,e pelo anátema paguei com a desonra.A forma fálica de uma caneta faz essa impotência da escrita tornar-se ainda mais semelhante à do sexo. As garotas que atraio até aqui (usando, antes, a fama e o frisson sobre meu pensamento, mas, hoje, somente um valor humilhante em dinheiro) me saciam, mas não me fazem sentir homem. Uma delas defendeu que tanto o sexo quanto a escrita são metáforas, essa impotência é de algo maior, é de tudo. Para se alcançar qualquer coisa é preciso certa rigidez de personalidade, ou se fica parado ad eternum entre o caminho da vontade e o das perdas e ganhos. E por isso o falo é o símbolo por excelência, ele mostra o ser humano como é e como se pretende. Bela ideia – eu pensara me vendo em repouso, no espelho. Um pouco atrasada, eu me disse, aprendendo a rir de mim mesmo, estou só uns cento e vinte anos atrasado.

Estive perto demais do Olimpo para me contentar com ser rei em terra de idiotas.

Apago todo o texto e olho para os deuses em volta de mim, Baco, Shiva, um velho pajé, o touro Ápis, Santo Antônio, Iemanjá, Jesus, Buda. Clamo seu perdão e que iluminem minha mente decrépita, que acendam uma luz em meu coração, que me deixem lembrar dos sonhos, da felicidade que eu tinha em sero menor dos serviçais da Arte e do orgulho em manter-me, por ela, pobre. Eu tinha uma missão. E tinha uma força incrível. Uma energia que eu sentia circular e crescer, quando alinhava oschakras, na região do abdome. Se eu pudesse ser um menino de novo, se o senso de eternidade e o ímpeto missionário me tomassem novamente e se as palavras me saíssem abundantemente e sem esforço... Assim foi com os dezbest-sellers que escrevi, mas já lá se vão tantos anos. E não os de juventude que passam ligeiro eprazerosamente, mas anos de velhice que se arrastam e só trazem dor e perda.

O espelho, antes pleno, portal de possibilidade e mistério, de onde tirei o meu “Sangue Estancado” em apenas quarenta dias, é hoje, ao invés de poço, um negro buraco que em vez de dar só tira. Nele só vejo refletida a minha desgraça, e nada brilha em volta. Nenhum constructo visual como era praxe aparecer ao meu redor, no espelho, ou em circundando a chama de uma vela, que eu via de olhos fe-chados, em um dos muitos tipos de meditação que eu praticava. Tudo que enxergo são rugas que nada tem a ensinar. Não há dignidade em ser velho.

Especialmente esta última frase me causa, ao relê-la, repulsa. É patético

Page 38: Livro contos melhores 2014 edição final

38

Contos Melhores - 2014

como tento me espremer grosseiramente, esmagar o que resta de humano em busca de um suco amargo, confissão, cicuta, uma merda melodramática que não granjearia simpatia nem por pena.

Apago tudo.Que merda.A Musa não acaricia mais os meus cabelos; Matrioshka não diz o que sabe;

o espelho ruiu. Quem pode ajudar a responder o que sou eu?Sou um velho decadente e a grande tragédia é que isso já não fica interes-

sante, no papel. Metalinguagem saiu de moda assim que a palavra se popularizou. E pouca coisa é mais manjada literariamente do que um apartamento sufocante. Sou uma metáfora pobre, uma cópia desgastada de mim mesmo.

Merda.Saio para o corredor, tateando as paredes, quase a pedir que me sufoque,

ofenda, ou acaricie ou mate, ou qualquer coisa que se faça a alguém.De pé no centro da sala me desnudo. As portas de vidro estão descobertas.

Que importa? Quem sabe alguém veja esse corpo ridículo e ao menos se choque ou ria ou exclame o que seja exceto este silêncio a meu respeito, essa não reação à minha existência. Mas não vão dois minutos até desistir. Ainda que obrigassem pessoas a ver o meu corpo, ele não seria mais um indivíduo, ele seria “aquilo que o tempo faz com a beleza”; seria uma mensagem, mas não minha: seria a espécie humana, o atman divino, a nossa ascendência avisando que não pode haver espe-rança, pois tudo é vaidade e o próprio Senhor as destrói. Tateio a pouca carne que me resta sob a pele. Os ossos de todos os gênios aguardam esses meus.

É assim que o vício se transforma na serpente engolindo eternamente o próprio rabo. Disfarçado em esquemas, retorna sempre sob um novo pretexto, ou um antigo revestido de uma nova força persuasiva. Se me aguarda o cadafalso, por que dispender os meus últimos dias à mercê da angústia? Por que me humilhar tentando fazer o que já não consigo? Por que preferir frustração ao prazer?

Ligo o computador da sala. Mal entro no site e a ansiedade se esvai como mágica. Toda questão existencial cai por terra enquanto estudo as fotos das ga-rotas. Filosofia fica sendo só uma palavra, e a dor da escrita, uma metáfora. Mas é difícil adivinhar qual dentre elas sabe conversar. Qual dessas mulheres teria ao menos consciência de sua ignorância, para se deslumbrar com minha inútil e va-zante erudição? Apenas no começo eu escolhia a mais bonita. Dessa vez foi seu nome, Milene, que me fez voltar ao quarto, obrigado à visão do meu fracasso sobre a mesa, procurar minha carteira.

Page 39: Livro contos melhores 2014 edição final

39

Contos Melhores - 2014

Enquanto voltava à sala, já com cartão de crédito em punho, o resto de escritor agonizante tremeu em meu peito com dilacerantes espasmos. Ele queria viver. Ainda sou fragmentário, mais de um ser, sou trezentos, e nem a velhice e nem terapias nem deuses nos foram capazes de conciliar, ainda sinto nitidamente meu ego desprendido de tudo, tentando manter-se acima, e, enterrados meu pai e minha mãe há muito tempo, nunca fui capaz de deixá-los, como o próprio Jesus sugeria, então não deveria ter perdido tempo com essas coisas, e agora que não acredito em sutilezas, preciso de outra matéria prima.

Digito o nome de usuário e senha. Ser ou não ser?Ligo a cafeteira italiana, a coisa mais metafísica que há. Nem o trivial ajuda

mais. Murchou-me o assombro, o brilho curioso nos olhos, um maço de alface na cozinha era vida pulsante e vicejava no estilo de meu romance lindamente, junto das cenouras e do alho-poró, só que agora o repolho e as batatas no fundo da geladeira são apenas repolho e batata e empesteiam até a sala com seu cheiro de podridão – de velhice.

Número do cartão. Ano e mês de validade. Código de segurança.Depois de uns minutos, recebo resposta. Pagamento não autorizado. Sua

reserva expirará em 4min59seg... 58... 57...Prostro-me no sofá. Destino, aviso, sinal? Ou é para testar se quero, mes-

mo, aquilo? No fim, já que tudo é vaidade, o limite entre persistência heroica e teimosia burra é zero.

Então, lembro-me que adormeci. Sonhei, talvez. Creio que sonhei que Mi-chele chegava, e eu brincava mil jogos com ela. Não precisava tocá-la; eu era outra vez exímio com as palavras e narrando lhe incutia sensações como nenhum erotismo o faria. Ela me chamava de Rei Salomão.

Despertei. Dentro ou fora do sonho? Ou, mais importante, qual tem mais valor literário? Talvez a dúvida. Literatura é incerteza.

Soou a campainha, um fá sustenido, estridente, tenso, som de cor arroxea-da, entre ciano e magenta. Tal ruído me acordou definitivamente. Um susto, porque ninguém entra sem ser anunciado, antes, pelos porteiros.

Demorei um pouco a me vestir; pensei que, nesse lapso, ouviria o fá suste-nido outra vez, porém houve silêncio. Quando abri a porta,

“Oi”, disse ela.Fiquei sem ação por um instante. Há muito tempo eu não via uma beleza

tão... Que dizer? Inexiste adjetivo. Tentar descrever sua beleza me faria sentir um

Page 40: Livro contos melhores 2014 edição final

40

Contos Melhores - 2014

ainda pior escritor do que sou. Ela era uma mistura de tudo o que eu acumulara de singelo e doce em minha vida. Lembrou-me a amoreira da infância tanto quanto as pirâmides do Egito, e fez-me recordar a paisagem de um sítio, na Rússia, que não merecera menção nos relatos, mas fulgia, agora, ressignificada por tudo o que a beleza da menina tinha a ensinar.

“Oi. Entre”, eu disse; ela entrou e postou-se no centro da sala sem nada dizer.

“Você é a Milene?”“Milene está bom para você?”“Gostaria de chamá-la pelo nome.”“Tenho muitos nomes”, ela disse, e notei que seus olhos (azuis?) já haviam

fotografado as salas e as partes do corredor e da cozinha visíveisalém das portas entreabertas. “Pode me chamar como quiser. Ana. Ruth. Maria. Milene. Medusa.”

Parecia, ao mesmo tempo, ter bem menos e bem mais do que vinte e um. Parecia ter catorze, e trinta cinco. Parecia criança e, no instante seguinte, anciã.

“O que você faz?”, perguntei.“Ajudo os homens... lembrar... ter vida correndo nas veias.”“Além disso”, insisti.“Eu... Estudo. Letras. Terceiro ano. Diurno.”Meu egozinho se inflou. Como aos vinte anos. Queria isso na cama. Pouco

antes de. Frente a espelho. O brilho em meus olhos ao vê-la ouvir o meu nome. Ela se entregaria, apaixonada, inconsequentemente submissa, a primeira em anos a fazer amor comigo adredemente ou, o que era melhor (o diabozinho me dizia), ela se cobriria e alegaria não poder fazer amor com alguém em posição idealizada, quase mítica. Fui ansioso e ainda na sala contei-lhe e, para minha grande surpresa, ela jurou nunca ter ouvido o meu nome. Mostrei-lhe os cinco livros com os quais fiz fortuna e fama. Eu ainda tinha o dinheiro e a fama se fora, e, na frente da deusa, constatei tristemente que teria preferido o contrário. Ela olhou as capas e voltou sua atenção para uma antiga edição estrangeira de As mil e uma noites.

“Viu”, eu disse, “nem se interessa pelo que escrevi.”“Eu me interesso pelo que você vai escrever”, ela disse, “mais do que você

imagina”, olhando para mim com tal doçura, que eu perdoaria 490 vezes. Entre suas sobrancelhas, um ponto brilhante captava o meu foco como um imã, cercado por todos os lados pela luz dos seus olhos, para os quais eu não conseguia olhar diretamente (esverdeados?). Ali, numa zona ao centro de sua face oblíqua, conflu-

Page 41: Livro contos melhores 2014 edição final

41

Contos Melhores - 2014

íam olhares de todos os tempos e infinitos deuses conhecidos e desconhecidos, incontáveis manifestações de Brahman e todos os santos e orixás e budas e pajés e com estes sua floresta onde cada curumim e cada bicho e cada planta contém espírito e dom e me fez assimilar em memórias passadascada olhar de planta e gente e bicho que já vi em setenta e cinco anos.

Ela me fez falar e ouviu tudo por horas, sem se sentar um instante, e o vestido dela encobria seus pés. Contei tudo desde o meu último livro, há vinte anos, e a sequência de fatos que me fez nunca mais escrever. Ela identificou uma a uma minhas dores, igual a uma mãe tira bichos de pé de seu filho, com espinho de laranjeira e uma delicadeza de fada, ela me curou, eu ouvia sons de água e das esferas.

“Se eu fosse você, abandonaria essa rejeição”, disse ela finalmente, e foi como afastar todo passado doloroso com um sopro fresco de vida,“Ela é o sinal da sua genialidade e loucura. Mas precisamos deixá-la para trás agora. Seu ego elástico se inflou tanto que o dominou, até hoje. Agora o medo é de tornar-se um louco comum. Talvez eu tenha vindo para lhe dizer que não precisa ser aceito, não agora; que todas as pessoas do universo não são todas que lerão o livro. Ele não é para mim; talvez para minha neta.”

Depois disso assumiu novamente um aspecto fragmentário e ofuscante, e entre seus olhos se manifestaram outra vez os panteões divinos, a se multiplicar – como para provar que eles são muitos mais do que nós – numa velocidade que obscureceu minha visão e meu entendimento. A última coisa que entendi foi que todas essas figuras se resumem numa só, de uma mulher, uma menina, àpoda Milene à minha frente. Por influência do ponto brilhante entro em letargia. Vejo, já sem foco, que ela vem em minha direção e se inclina até beijar-me, não sei na testa ou no rosto ou na boca,pois imediatamente antes de seus lábios me tocarem adormeci.

No sonho, Milene sonhava comigo.Despertei. E, em toda essa história, é a primeira vez que me sinto realmente

acordado. No entanto, sei agora, nunca poderei ter a certeza.Um absoluto vazio. Sua ausência tem a força de duzentos homens armados.

Em cada ponto das três dimensões do apartamento sussurrava a potencialidade do novo. Embeveci-me. O caos tinha barulhos de água e faísca de luz, e o vazio que ela deixara revelou-se um poço, fonte transbordante, as palavras fluíam em minha cabeça como em um rio caudaloso. Difícil até escolher o que escreveria primeiro.

Page 42: Livro contos melhores 2014 edição final

42

Contos Melhores - 2014

Mas um sibilo, a voz dela inda ecoando, me disse que ainda não. Que aproveitasse o olhar enlevado e revisse a tudo, a cada objeto, livro e até minhas velhas meias e cuecas e a minha dentadura, pois as coisas sentiam saudade de mim e em breve serão objetos de um morto. Saboreei cada cor e formato na sala, cozinha. Lavei minha barba malfeita e escarrei, com um pouco de sangue, na pia. Finalmente o corredor me sufocou, com mãos geladas. Com um resto de forças entrei em meu quarto. Perdi, um a um, os sentidos, enquanto caía. A última coisa que vi foi: Ma-trioshka não estava em seu lugar.

Tombei sobre a cama e entendi que era a hora. Meu corpo começou as pro-vidências. Nesse instante como nunca percebi sua inteligência, como se contraía com força e em espasmos botava para fora todo o ar residual; senti as células de oxigênio percorrerem o caminho desde os pés, e como todos os músculos estão emaranhados uns nos outros e é a mesma coisa o coração e o dedinho. Morrer não é ruim.

Sobre o criado mudo vi uma pilha de papéis. Tentei pegar, mas só joguei ao assoalho centenas de folhas escritas à mão. O título. “Estrela de Fogo.” Fechei pela última vez os meus olhos e, entre caleidoscópios perfeitos, uma suave voz feminina começou a ler para mim a minha história e eu soube que, assim como Matrioshka estava no lugar a ela destinado, o livro encontraria as mãos e os corações corretos até que, quem sabe daqui a cinquenta ou cem anos, encontre seu destinatárioe viva.

*Rodolfo Elias Minari, músico, cantor, escritor. Valparaíso-SP.

Page 43: Livro contos melhores 2014 edição final

43

Contos Melhores - 2014

A luz na janela Categoria regional - 5.ª menção honrosa - Odair Maurício de Albuquerque- Penápolis-SP*

Peguei gosto por este quarto, Helena.Tanto tempo aqui eacabamos por nosa-costumar com os mínimos detalhes. Somos animais adaptáveis, caso contrá-rio estaríamos todos em uma grande barca furada. No começo, um vácuo e

essesilêncio. Silêncio, mil vezes silêncio. Como a calmaria nos desespera. Quere-mos ouvir, não importa o quê. Bobagens, muitas bobagens é o que queremos ouvir, mas só lhe dão um amontoado de nada. E o que é o nada? Esse corpo inerte na cama seria a resposta mais plausível. Ele não vive e, no entanto, está aqui. Mutila-ram sua vontade.

A quietude de tudo me assombra. Nenhum suspiro, nenhuma exclamação de desalento. Não sou criticado, não sofro injúrias, sou apenas uma mortalha en-carnada. Que calmaria. Você,Helena, gostaria desse estado zen. Diria que estamos gravitando, entrando num mundo paralelo, em outro plano cósmico. Uma baboseira que nunca dei crédito. Mas você acreditava nisso. Sempre acreditou.

Crer. Você me dizia para ter fé e tudo ia melhorar. Que saída engenhosa essa: basta ter fé e você encontrará a saída do buraco em que você caiu. Mas se eu tiver fé e não sair? “É porque sua crença não é tão forte, capaz de fazê-lo acreditar”, diria você. E se minha fé me enganar? Se eu achar que é fé quando na verdade é meu desejo que fala mais alto,com o único propósito de sair daqui e voltar a fazer tudo que fiz antes sem nenhum remorso? Ela sorria complacente: “Já é um começo”. Eu insistia. E se eu enganasse a todos, demonstrando a fé que não tinha,para ficar curado, e depois ririade tudo por não passar de uma fraude?“Você não enganaria a Ele”, responderia ela, com aquela serenidade que me exasperava. Desisti. Conformei-mee aceitei sua placidez.

Noite. A única luz que desponta vem da janela aberta trazida pela lua que se mostra cheia. Não a vejo, mas me fica a impressão de que ela está enorme. Sua luminosidade suave entra e desenha uma faixa no chão do quarto. Se ao menos eu pudesse me aproximar do parapeitoe olhar os movimentos dos prédios ao redor...Me sentiria como James Stewart em Janela indiscreta. Que excitante!Aí um crime

Page 44: Livro contos melhores 2014 edição final

44

Contos Melhores - 2014

surge e a monotonia se acaba. O criminoso esquartejando sua mulher, colocando num baú e de repente me surpreende observando tudo. Uma testemunha a ser apagada. Ele sairia de seu apartamento, viria ao prédio em que me encontro, en-traria no meu quarto e... Surpresa... Veria que a testemunha de acusação não tinha como escapar pela janela e nem quebrar a outra perna. Notaria também que mal falava com um lado da boca e nem teria o trabalho de cometer mais um crime. Já era um homem morto...

Olho o dedão dos pés e eles parecem tão distantes!Todo o corpo até o pescoço uma grande massa fixa. Um ponto imóvel naquela cidade imensa; cidade que aprendi a conhecer desde cedo com os colegas Janjão, Pituba, Ourives e Pé--de-Chinelo, figuras exóticas e singulares, mas não vieram. Talvez não tivessem co-ragem de me ver ali deitado.Foi com eles que desbravei a noite. Janjão me ensinara a fumar; Pé-de-Chinelo, a uma boa briga; Ourives, a saborear todo tipo de bebida, e com Pituba,aprendi a conversar. Bons camaradas, mas não vieram... Na verdade, poucos vieram.Apenas no começo o fluxo de pessoas foi mais intenso, mas logo o encanto que toda tragédia despertanoinício se perdeu em meio aos afazeres de cada um. Ninguém tem tanto tempo assim pra ficar chorando à beira da cama de um moribundo. Chegam um a um, com uma das mãos segurando a outra, sem palavras pra dizer, no fundo se regozijando que antes eu do que eles.

A noite é longa para quem não tem o que fazer. Olhei o quarto, enxerguei-sombras. Um suporte para roupas do lado esquerdo me observava. Olhei para “ele” e mesenti como se estivesse com visita; visita que examinavaapenas, nada dizia. Esse sim seria grande camarada. Sem julgamentos, censuras,acusações, não quer saber o que aconteceu.Olhamo-nos e em silêncio era como se fizéssemos confi-dências, como só um amigo faria. Mas me retenho... Tenho medo.

O medo! Transfigurado em várias camadas,ele se desdobra pelo quarto es-curo, tomando a forma de alguém que possa estar a me ouvir por detrás da porta, da parede, escondido no banheiro, embaixo da cama, no teto, atocaiado no forro, dentro do armário. Era um medo antigo, da infância. Cobria-se à noite com o lençol como se este fosse um escudo, que me envolvia e me protegia. Meus paisdormiam num dos quartos; meus irmãos,em outro, todos juntos, empilhados, e eu no sofá da sala. Volta e meia retirava a cabeça para respirar ou por causa do calor, para logo em seguida retornar à minha posição, não conseguindo pegar no sono, e quando conseguia um pouco, logoacordava em pesadelos. Agora meus braços não puxam mais o lençol.

Page 45: Livro contos melhores 2014 edição final

45

Contos Melhores - 2014

Meu “interlocutor”jamais entenderia minhas aflições. Coisas de criança que permaneciam no adulto, metamorfoseadas em gestos imperfeitos, sem nexo, in-fantis, ainda – depois de tanto tempo. Infantis nas ações, na voz que não queria sair, no titubear do primeiro emprego, nos quase-namoros frustrados, nas amiza-des-relâmpago, na incerteza se queria beber ou fumar e, no fim,acabaria fazendo os dois. Isso foi bom, ajudou na personalidade. Fiquei mais atrevido, andava de peito estufado, cheguei nas meninas, uns foras aqui e outros ali, nada que a bebida não curasse, e um cigarro para me acompanhar deitado no gramado da praça, de olho nas estrelas, pensando em Francine, que apesar de ser uma menina enjoada eu acreditava em sua conversa mansa, de víbora, coisas de Adão e Eva, Sansão e Dalila, Bentinho e Capitu, traições por trás daquele sorriso falsoà espera do mo-mento oportuno ou da minha desistência. Prevaleceu a primeira...

Meu “companheiro” de infortúnio mantinha-se ereto, impassível, dois bra-ços estendidos. Sorri com a ideia daquele suporte ser alguém com vida, mas que nada dizia. Era como se ele me apontasse para a janela e indicasse a abertura que propiciava uma infinidade de coisas que aquele quarto não podia me proporcionar. Ele indicava sistematicamente e eu olhava meu corpo estendido e sem reação, sem movimento.

O movimento. Eu poderia agora lamentar a impossibilidade de andar depois do acontecido, seria óbvio e previsível. Mas não vou dizer nada sobre isso. Não que as incertezas deixassem de saltar a cada minuto, mas não vou falar sobre esperanças mortas. Eu cavei minha própria sepultura, portanto, o jeito seria seguir o novo rumo e ninguém precisava ouvir minhas lamentações, choradeiras, pedidos de clemência ou ajuda a Deus.

Deus. A nossa hipocrisia chega às raias da insanidade. Nunca fui de ir à igreja, rezar, fazer orações ou coisas do gênero por mais que Helena me convi-dasse. “Você se sentirá bem”, suplicava. No momento em que borrei as calças por medo de morrer, lembrei-me Dele. Foi mais ou menos o mesmo que rezar um pai-nosso ou coisa que o valha. Mas nada adiantou. Como diria Cotinha, o que tem de acontecer não há jeito de mudar. Consolador...

E lá estava meu irretocável interlocutor que continuava com o braço es-tendido, esquecido. Era como se ele me incitasse a ir à janela. Quer que eu vá? – pergunto ou julgo perguntar. Minha voz está fanhosa, não a reconheço. Me es-forço, mas não vejo um milímetro dos dedos se moverem, sejam dos pés ou das mãos. Mas continuo a tentar. Como gostaria que no lugar daquele suporte surgisse Helena, em movimentos suaves, olhar que dissimulava tantos sentimentos e que conseguia escondê-los ao mesmo tempo.

Page 46: Livro contos melhores 2014 edição final

46

Contos Melhores - 2014

Mas Helena já não estava entre nós. Só me restava aquele suporte no canto do quarto. Se fosse alguém, diria que o olhar penetrante e cheio de confiança es-tava ali para me indicar o caminho da salvação: a janela. A lua permanecia como antes, plenamente iluminada, não tinha como errar o caminho. Vamos! Era como se eu o ouvisse. Não desista, meu rapaz, erga-se, vamos, levante-se.

Milagre, meus dedos mexiam, percebia-se um leve deslocar, coisa ínfima, milímetros deslizando um dedo ao lado do outro. Talvez a fraca iluminação me confundia, mas não podia ser, eu sentia movimentos, mínimos, mas movimentos, o que era mais extraordinário.

Sinto agora os músculos das pernas, os braços. Consigo firmar os cotovelos no colchão, vou pausadamente levantando o tronco, e já diviso toda a extensão da cama, que até então era vista parcialmente. Sento e respiro. Sentado, já posso ver algum movimento lá fora. Jogo as pernas para um dos lados. Começo a descer da cama. O primeiro passo foi emocionante, não menos que isso. Como se eu voltasse a ser criança. Mas como criança, fui ao chão. Apoiei as mãos no piso e fui devagar-zinho me erguendo. Para não levar um novo tombo, me apoiei na parede, até me aproximar da janela. Fiquei ali por um bom tempo, sentindo o ar revigorante. Não saberia dizer as horas, mas isso não me importava. Respirei como se acabasse de sair de uma clausura.

Me apoiei no parapeito e subi. Avistei toda a cidade sob meus pés. Olhei para o céu e vi uma constelação indescritível e me lembrei de Helena. Sempre amiga. Por mais bonita que fosse, nunca me imaginei dando-lhe um beijo, senão de amigos. Ou melhor, de irmãos. Ela, mais velha, orientando, e eu atrás, tropeçando e errando sempre. Olhei para baixo e vi pontos minúsculos que se moviam. Se ela me visse aqui, me repreenderia,com certeza, como a mãe ao filho; como naquela vez em que subi numa mangueira e ela, desesperada, me pedia pra descer –caso contrário, contaria aos meus pais. Nunca contou.E eu subi mais alto para deixá-la ainda mais em desespero.Ou quando fomos ao rancho do Pituba. Pulei daquela altura de cabeça, num mergulho espetacular, e sai do outro lado do rio. Ou quando eu empinei a moto para fazer graça para asmeninas que ficavam na calçada justa-mente para nos incitar a fazer todo tipo de maluquice, e batemos num poste... Mas agora ela não me repreenderia. Podia pular quando quisesse. Porque esse,Helena, será o meu último salto e você não precisará se preocupar mais.

*Odair Maurício de Albuquerque, 44 anos, técnico contábil, Penápolis-SP.

Page 47: Livro contos melhores 2014 edição final

Parte 2Contos melhores

nacionais

Page 48: Livro contos melhores 2014 edição final

48

Contos Melhores - 2014

Título: 13.600 - Os olhos mais lindos que já me olharam

Categoria nacional - 1.º colocado - J.R. Bazilista, São Paulo, SP*

S e chovia era lama para todo lado e naquela manhã chovia desde a noite passada. Os tratores da usina iam buscar os ônibus no começo da subida e puxavam até a portaria, não havia maneira de um ônibus subir sem ajuda.

Dizem que já tombou mais de um tentando subir, sobe e na metade patina e volta descontrolado e vira, nunca vi, hoje ninguém tenta, os tratores puxam um a um. A chuva era fina e não sei por que eu não confiava no motorista. O trator puxava como se nada tivesse acontecendo.

Desci na portaria junto com os outros, batemos cartão para entrar e passo rápido para fugir da chuva, nada de moleza. Da portaria até o barracão da oficina tinha bem uns quinhentos metros que foi feito num minuto, se o dia começava nesse pique certamente ia ser daqueles!

Entrei no banheiro que também era vestiário e fui até meu armário. Abri e fiquei olhando o velhinho que tomava conta do banheiro, resmungando e colocando uns ‘papelão’ no chão para conter o barro, em vão, meu rastro se confundia com os de outros. Uma turma entrava as seis e a minha que era menor, as sete, mas com a lerdeza dos tratores, hoje até as oito ainda estaria chegando gente e seu Flauzino teria um tréco.

Nem bem guardei minhas coisas e o encarregado me pegou.– Você vai dar uma mão no socorro, pega as ordens de serviço na minha

sala e já separa as ferramentas que a coisa tá feia hoje ‘o home’ taí!‘O home’ era o dono de tudo e bastava falar ‘ A o home’ que até as estopas

jogadas no chão pulavam sozinhas para o tambor de lixo, até as pombinhas do telhado pensavam duas vezes em cagar quando se ouvia ‘a o home’, terror e pau--mandado a melhor relação patrão-empregado.

– Pode levar a marmita que hoje não tem previsão!O “Socorro” era umas equipes que iam pra fora da oficina.

Page 49: Livro contos melhores 2014 edição final

49

Contos Melhores - 2014

Peguei minha marmita que tinha acabado de tirar e coloquei dentro da bolsa novamente, ajeitei a garrafa de café, tudo sem dar um piu. Assim era meu jeito de lidar dar com esse filho da puta, só balançava a cabeça, sim e não que nem retardado.

Saí do banheiro e ao entrar no barracão já avistei o Socorro e Stuart Eduward conferindo os pneus da Toyota.

Juro era esse o nome dele! Entre Josés, Joãos, Dedato, Sebastião, Cuíca, Rebimbela, Zóio, Negão, Sinvaldo, Mauro Sergio, Luís, Marcão... Tinha lá um Stuart Eduward! E o cara era esquisito também!

– Me mandaram ir contigo!– Você pega as ferramentas que eu vou lá ao almoxarifado levar umas

‘requisição’.– Chá comigo!Guardei a bolsa dentro da caminhonete e fui buscar as ferramentas. Primei-

ro peguei as ordens de serviço e dois encarregados discutiam, não ouvi no cu de quem iria entrar, não sendo no meu, fodasse! Na ferramentaria o Marquinho, que era o ferramenteiro, a essa hora da manhã já estava com veadagem, “o home taí, o home taí”. - Fodasse meu, pega aquela chave de três polegadas e racha na cabeça dele que eu quero ver se tu não vira o herói! - “Cê tá é doido!” Peguei o que tinha de pegar e me mandei e ele ficou lá repetindo: “O home taí, o home!”

O Stuart Eduward não havia voltado, guardei as ferramentas atrás na cami-nhonete e entrei na cabine e fiquei ouvindo o rádio amador. Ele chegou e jogou as peças requisitadas em cima do banco, subiu, ligou e engatou ré.

– Não está esquecendo nada?– Não! Respondi, mas deixa-me falar um pouco como ele era. Sabe o cow-

boy do Marlboro? Velho, cabelo farto e pintado de preto, topete meio Elvis segurado na pasta ‘Trim’, duas dobras na manga do uniforme. A cor do meu uniforme perto do dele é uma vergonha! Deixa-me ver... ãh... sapatão engraxado e cigarro no bico, calado, olhos meios serrados com ar sério compenetrado. Em suma, sua figura que fazia jus ao nome. Eu não tinha nada contra ele, mas preferia trabalhar com os outros mecânicos. Na verdade era puxa-saco demais pro meu gosto, mas vamos lá, tudo menos ficar aqui na oficina.

Passamos a portaria exclusiva da oficina e o guarda falou alguma coisa pra ele que eu não entendi e ele deu risada, acho que foi a primeira vez que vi o Stuart Eduward rindo. Pegamos uma rua de cascalho e lama que a ‘Toyota’ tirava de letra. O nosso primeiro ‘socorro’ era em um ônibus perdido no meio do nada. Tínhamos a

Page 50: Livro contos melhores 2014 edição final

50

Contos Melhores - 2014

indicação de uma fazenda, depois era achá-lo nas ruas do canavial. Enquanto tinha o cascalho beleza, pulava, sacolejavam, mas ia, sorte que a chuva tinha parado. Paramos para pegar uma rua de cana, apesar de a que estávamos também era margeada de por cana, só que a próxima era só barro, sem cascalho.

– Desce e desbloqueia o quatro-por-quatro! Ele falava assim comigo e se já não é algo digno ser mecânico, ajudante de mecânico então, não há auto-estima que sobreviva!

Desci e fui me segurando na caminhonete para não escorregar no barro, desbloqueei uma roda e fui para outra, ele lá, de olhar serrado e compenetrado queimando um cigarro atrás do outro. Desbloqueei e voltei.

– Limpa o pé!Pulei no banco e fiquei com os pés pra fora. Bati um pé no outro e as placas

de barro caíram, tirei um sapatão, depois do outro. Ele pegou a rua de barro e a caminhonete ia dançando, esses ‘japas’ têm as manhas. Pela janela cutucava com a ponta do canivete o restante de barro da sola. Às vezes o terreno endurecia e rodava mais fácil. Passávamos por poças que eu jurava que dali não saia, lama pra todo lado e caminho.

O rádio amador nos chamou e Stuart atendeu, anotou outro serviço, como ouvi tudo ele não falou nada e eu também nada perguntei. Calados!

Rodamos mais um pouco e no alto de uma rua que cruzava com a nossa avistamos um ônibus, podia ser aquele, mas não dava pra ter certeza porque o número não aparecia.

– Sobe lá e vê se é o nosso! Ele viu minha cara de “Ah, seu filho da puta” E resolveu completar – Eu não vou subir com a caminhonete se não for o nosso? Eu fico olhando, se for você faz um sinal.

As chances de eu escorregar de bunda ou de cara no barro eram grandes. Fui agarrado às canas da beirada praguejando, patinando e afundando feito um condenado e para piorar voltara a chover. Inferno!

Já dava pra ver que não era o nosso, mas resolvi perguntar se alguém sabia onde estava. Na porta eu não avistei ninguém, subi o degrau e Ela me olhou quando eu falei bom dia.

Foi à coisa mais bonita que eu já olhei na minha vida! Era pequena e se assustou. Que olhos! Só o rosto sujo e delicado estava descoberto e entregue a sujeira. Eu não tinha voz. Seu sorriso então! Minhas pernas fraquejaram. Ela era tão linda que me pusera bobo.

Ela não sabia de outro ônibus.

Page 51: Livro contos melhores 2014 edição final

51

Contos Melhores - 2014

– Eu não sei de ônibus, não!Desci do degrau, eu tinha acabado de ver um anjo! E não fiz nada! Volta e

faz alguma coisa! Diz a ela que valeu a pena viver por esse momento, que o fato de vê-la compensou por tudo! Vai Bruto!

Mas não, voltei pra cabine.– Limpa o pé!Abri o porta-luvas peguei um bloquinho de requisição e escrevi nas costas

de uma folhinha: ônibus 13.600.– Deve estar mais pra frente. Falou sozinho e tocando em diante. Podia es-

tar em qualquer lugar ou até não estar! Agora sou eu que não falo, compenetrado, Stuart você esta do lado do mais covarde e infeliz dos homens. Eu vi ‘Ela’ e não fiz nada, meu coração disparou, mas ele nasceu morto!

– Teve outro rádio, um caminhão, cardam também...– Porra Stuart! Você não reconhece um homem ferido de morte pelo Cupi-

do! Pode ser até a frota toda que ‘nós arruma’. Me tira daqui se não eu vou pular e voltar pra Ela, Stuart! Vamô embora, merda! Achei que ia chorar.

Logo achamos o outro ônibus, o pessoal ‘almoçava’ e também batemos a bóia já quase fria. Satisfeitos consertamos rápido. Fomos pra outro e depois um terceiro, que viesse o quarto, o quinto o milésimo, eu já disse Stuart, que venha!

Não resisti ficar quieto e falei estupidamente assim:– Naquele primeiro ônibus, lá eu vi a mulher da minha vida!E o filho da égua, quieto. E infeliz continuei:– Linda!Mudo.Porque eu comentei?Calado.E daí ele falou:– Já te falaram da minha mulher?O que é isso meu velho!– ...pode falar eu não ligo, eu sei que falam...Stuart eu sou um cara calado você não vê!E ele continuou:– Minha mulher também tinha sido a coisa mais linda que eu já vi, eu en-

carregado da sessão onde ela trabalhava, ela novinha de tudo, em pleno expediente fomos pruma salinha, no que eu a coloquei em cima da mesa e começamos, des-

Page 52: Livro contos melhores 2014 edição final

52

Contos Melhores - 2014

pencou com ela trincando a bacia e quebrando quatro vértebras. Justa causa sem direito a nada, você sabia disso, não?

Era por isso então que ele é tão esquisito!– Não anda, não faz nada, se entregou.A única coisa que pude falar foi:– Foda, heim!– Por isso você tem que amar sobre todas as coisas, senão desanima...

Beleza está longe de ser tudo. Você não fuma, fuma?– Não, não fumo!Peguei o rádio e perguntei para a central qual era o itinerário do 13.600.

Entramos na oficina um pouco antes das três e meia. Enrolei até as cinco e na saída eu peguei um ônibus do mesmo destino do 13.600. Quando ia descendo o 13.600 passou por mim e parou mais a frente. Vi quando “Ela” desceu, atravessou a rua e quatro crianças, uma com uma bicicleta, a chamaram de mãe, duas foram na bicicleta e as outras duas caminhavam ao seu lado descalças e saltitantes. Um sujeito, também todo sujo da cana, um pouco mais a frente parou e se empalha-ram, só podia ser o pai.

Se eu tinha fracassado no ônibus por que eu triunfaria agora! Já disse que eu tinha nascido morto. Nem falaria da “nossa desgraça!” Eles iam à direção do ‘Jardim das Flores’. Dei mais uns passos, o sujeito olhou pra trás, desviei o olhar morrendo de vergonha e covardia. Torci com todas as minhas forças para que ela não olhasse para trás. Todos apertaram os passos e eu parei.

“Eu não sei de ônibus, não!” “Eu não. Sei de. Ônibus. Não. Eu. Não. Sei.De.Ô.” Se afastaram mais ainda e foi a última vez que eu vi os olhos mais lindos

que já me olharam.

*Jeferson Rodrigo Bazilista, 36 anos, professor, São Paulo-SP.

Page 53: Livro contos melhores 2014 edição final

53

Contos Melhores - 2014

Mas o homem era velho, jáCategoria nacional - 2.º colocado - Paulo Henrique Pappen – Porto Alegre – RS*

Etinha que dar a volta de cuidar tudo sozinho, lá naquele meio de nada. Ele e o Brazina, que também era mais velho que as pedras. Daí os dois saíam sempre juntos, pra se ajudar caso qualquer coisa. Um via além pro outro, o outro ouvia

além pro um, e assim se ia indo, mais ou menos, até que desse.A ovelha. Sim. Mas antes teve o chapéu. O homem deitou lá no campo com o chapéu assim na cara pra evitar mos-

ca. O Brazina do lado, com uma orelha em pé pelas ovelhas. E se espalhava longe aquele cigarreio no meio da tarde, o sol estralando galhos, o mosquedo caça--carniça lambendo o suor do homem. Muito veneno, ele pensou. E viu de pronto uma baita duma mosca azul com caninos peçonhentos babando numa lata perto do arroio. E se atinou que ainda não tinha recolhido o lixo da semana passada. E acordou.

Mas quedê o chapéu? O Brazina ali, com a orelha em pé, sabia de nada. Diz o homem tá, decerto

que voou no vento. Mas que vento? Só se... Não. Decerto que ele tinha saído sem chapéu aquele dia. Porque, senão, como assim?

Aí voltando pra casa recolheu a lata de veneno lá do arroio. Pelo menos. O Brazina bocejando, como que nem quem diz deixa isso aí, tanto faz. Mas esse mos-quedo, disse o homem, você há de convir que antes não tinha. Outro bocejo: qual antes que você diz? Antes, ué, o grande antes. Aquele que não acaba, só que pra trás. Você tá variando, diz o Brazina. Desde quando que eu falo e você me escuta?

Daí nunca mais ele achou o chapéu. Desempoeirou um boné de eleição e ficou por isso. As cigarras continuaram. As caça-carniças continuaram. Ele, o Bra-zina e as ovelhas continuaram. O inço na volta do arroio também, e cresceu que era uma beleza de triste – o riozinho chegou se esconder de embaixo daquele capim.

Não, as ovelhas não podiam comer ali. Uma, que dava churrio. Duas, que elas eram taipa e caíam pra dentro da água. Daí se elas insistiam o Brazina tocava elas pra adiante no campo. Ele só ameaçava cara feia e elas já sentiam na memória a mordida, e davam na pata pra lá depois do arroio. O homem já só passava ali de

Page 54: Livro contos melhores 2014 edição final

54

Contos Melhores - 2014

olho fechado. A vergonha de não roçar aquele inço! Até cobra velha já devia ter. Mas um cansaço... Mal e mal ele se aguentava na tosquia, imagine ter que roçar na volta do riozinho!

Quando que a ovelha sumiu, daí, o homem tinha como inventar explicação. Decerto que foi riacho abaixo... Ou atravessou tudo o campo até o rio largo. E o homem tinha outras ovelhas pra cuidar, que ele se distraía. Mas não se convencia. Isso era coisa de piá, se convencer. Depois da idade a gente só fecha os olhos e deixa.

O Brazina, por exemplo. Cada vez mais bocejando. Puxando saliva, de velho que era, que a baba seca. Quedê a ovelha?, pediu o homem uma vez. O outro olhou em volta... Bocejou. Passou uma mosca, ele foi abocanhar e quebrou o queixo. Ficou chorando, daí, aquela boca torta que estralava toda vez que ele ia bocejar. Até parou de comer, quase. No fim ele só lambia o que o homem mastigava e jogava no chão.

Vararam quietos mais uns tempos (dê-lhe sol e dá-lhe chuva, uma geada e mais tanto sol, na hora da tosquia e depois, com o antes se laceando mais e sem-pre, vindo mosca e sono e vai que vai cigarra, e o mato engolindo inteiro o arroio), até que o Brazina cansou de vez. Deu uma última bocejada e espichou as pernas. O homem ali, assistindo. Chegou se erguer um pouco, mas desistiu. Tudo doía. O corpo encurvado em tremedeira. As lágrimas coçando na cara – vinham moscas grudar ali. Ele enfim se secou com o boné e carregou o Brazina de volta pra casa.

Daí ele já nem cuidava mais de mais nada. Se viu inútil mesmo. As ovelhas iam de manhã pro campo e voltavam no fim da tarde. Sozinhas. O homem só con-tava: doze. Mas falta uma! Ah, mas faz tempo que falta uma. E no tempo que ele tinha, que era todo, o homem ficava espantando as moscas. Só lá de vez em quan-do ele olhava em volta e se atinava que o Brazina, né. Aí esperava pelas ovelhas. Doze. Mas falta uma! Ah, mas faz tempo...

O dia chegou, daí, que elas não voltaram de noite. Diz ele até que enfim. E teve o que fazer na manhã depois, procurando as ovelhas no campo. Mas andou, esse homem! Foi o dia todo caminhando até a fronteira com o rio largo lá. E gritava de dar dó, no sem eco do perder de vista. Nada de ovelha. Até que tchuf! Uma lá dentro da água. E logo viu mais outra indo nadar também. Uma a outra ele contou: doze. Doze béééés branquinhos na água marrom. Uma correnteza ansiosa, levando as ovelhas embora. Era o que me faltava, pensou o homem, se secando com o boné. Ufa.

Page 55: Livro contos melhores 2014 edição final

55

Contos Melhores - 2014

Daí na volta, de já noitinha, veio num vento um choro de longe. E só podia ser, ele soube, que fosse o que era, era isso mesmo.

Aquela. Um chumaço só, ele viu chegando perto, uma bola de lã numa ca-verna. Mas uma bola pura! Diz ele quedê a cara? E revirou aquela ovelha procuran-do a fuça, o lombo, alguma carne. Das patas só se viam cascos. A voz dela, abafada pelo pelo, parecia uma velhinha se lamentando. O braço do homem afundava mais que inteiro na lã acumulada... Um senhor dum travesseiro. Um belo dum colchão! E naquela caverna, a sombra, nenhuma mosca, tudo era convidativo.

O homem lembrou de leve do velho chapéu. Nunca mais. Aí ele só atirou o boné assim e se escorou meio deitado na ovelhinha.Quanto tempo, diz ele? E o silêncio falou por tudo.

*Paulo Henrique Pappen, 28 anos, formado em Letra pela UFRS, revisor e tradutor.

Page 56: Livro contos melhores 2014 edição final

56

Contos Melhores - 2014

O Pomo da Discórdia.Categoria nacional - 3.º colocado - Gérson Luiz Colombo, Canoas, RS*

A quele cachorro ficou comigo por quase dezessete anos, veja só! Morreu de velho. Estava cego, surdo, de focinho grisalho e andava sempre de mau humor, rosnava por qualquer cosa. Desde novinho andava ao meu redor,

sempre rengueando daquela pata traseira. Não me deixava por nada, onde eu estivesse lá estava aquele “guaipeca”. Chê, que fidelidade! Dava gosto de ver. E foi ele que me escolheu sim, engraçou-se comigo e pronto. Pois foi que um dia, já velho, sumiu, assim..., do nada. Foi encontrado, na manhã seguinte, morto no meio do mato atrás do galpão. Dizem que os bichos sabem quando chega a sua hora e acabam por procurar um lugar frio para acelerar a morte. É o que dizem..., eu mesmo não sei, apesar de já ter visto muito disso por aí. Sou agrônomo, não sou veterinário. Seja como for é uma atitude inteligente. Vendo o que os homens fazem neste mundo..., ah, como, às vezes, brigam por nada, lutam tanto por uma vida de sofrimento e miséria, num desrespeito mútuo..., talvez os bichos sejam os inteligentes. Tu não te lembras dele? Não? Ah, é claro que não! Tu ainda não tinhas nascido quando ele morreu..., cabeça minha! Não liga! Coisa de velho! Em algum lugar tem uma fotografia dele... Isso! Aí mesmo..., nessa prateleira. Viu? Sou eu com ele, lá na estância, em Aceguá. Aí ele deveria ter uns nove anos. Eu o achava engraçado de tão feio que era. A mãe era uma ovelheira do meu falecido pai, uma “collie” de pelo longo, parecida com a Lassie daqueles filmes, já o pai dele deve ter sido um “guaipequinha” mui feioso... Ele me saiu assim: tamanho médio, peludo, tirando mais ao branco, com essas manchas marrons, cabeça grande, orelhudo, com meia cara branca e a outra metade marrom. Ah, mas era muito bom na lida com o gado. Era ligeiro e esperto, mesmo rengueando aquela sua pata. Sabe? Era ele quem reunia as vacas de leite para o coxo de sal. E não se precisava mandar..., ah, não senhor! Chegava o dia e a hora e ele já sabia. Saía numa disparada doida e quando se via..., lá vinha ele no garrão das vacas, pela cerca adentro. Era mesmo esperto o meu Tinhoso.

Esse cachorro tinha quase um ano quando eu o conheci. Eu deveria ter uns quinze ou dezesseis anos, estudava o ginasial num internato em Bagé e tinha

Page 57: Livro contos melhores 2014 edição final

57

Contos Melhores - 2014

voltado para casa nas férias de meio de ano. Meu pai queria preparar-me para assumir a administração da estância, por isso, férias para mim significavam lombo de cavalo desde cedo pela manhã. Misturar-me aos peões durante a lida era o modo de aprender, conhecer-lhes as manhas, a função de cada um, o que cada coisa queria dizer, o jeito de falar, que era diferente para quem vinha de diferentes regiões, que para se aprender essas coisas não há escola. Da marcação dos bois à tosquia das ovelhas, eu acompanhava aquela gente tão xucra quanto os bichos, mas de uma altivez e lealdade incomparáveis com as gentes das cidades. Matando a sede no mate, comendo a carne do espeto ou um arroz com charque, era assim que eu passava os dias de férias. De vez em quando, um que outro peão mais atrevido me oferecia um gole de cana ou um palheiro com fumo de rolo, depois se riam das minhas caretas de enjoo. Isso longe das vistas do pai, é claro! Aquele foi um bom tempo na minha vida!

Pois... Um dia cheguei para as férias, no velho caminhão Ford do meu pai, de carona com sêo Antenor, o motorista. Já de longe, a primeira coisa que vi foi aquele “guaipeca”, rondando os peões a cavalo, me chamou a atenção as voltas que dava ao redor de uma rês desgarrada. Então, ouviu o ronco do velho motor, estacou a corrida e nos acompanhou com os olhos. Devia ter nascido no intervalo das minhas visitas. O caminho, vindo da porteira, era tortuoso, fazia curvas acom-panhando os contornos naturais do terreno, sumimos das vistas do cachorrinho. Já perto da casa a estradinha de chão batido era reta e ladeada de tarumãs e cinamomos. Quando viu o caminhão se aproximando, se arrojou numa disparada doida atrás de nós, balançando as orelhas e a língua de faceirice, por fim, cansou ou desinteressou-se e retomou seu pastoreio. Foi naquela noite mesmo da minha chegada que eu o conheci, noite de céu sem lua e de muitas estrelas, com um frio de enregelar os ossos, certeza de geada branqueando os campos pela manhã; logo depois do jantar, fomos ao galpão, o pai e eu, como sempre se fazia, e lá estava o Tinhoso, refestelado nuns panos velhos e divertindo-se com um osso enorme. Até então, ele não tinha nome, só o chamavam de cusco, cusquinho ou guaipequinha, fui eu quem acabou por batizá-lo, logo adiante nesta noite. A peonada, educada como sempre, cumprimentou-nos com uns “Boas noites!”, “Como passa o moço?”, “Achegue-se ao fogo”, “Aceita um mate?”, essas coisas da cortesia campesina. Respondi aos cumprimentos e, de soslaio, com o canto do olho, percebi que o cão levantara as orelhas, por certo, reconhecendo um timbre diferente de voz. À medida que a conversa transcorria, com o pai passando as ordens para o dia seguinte, o

Page 58: Livro contos melhores 2014 edição final

58

Contos Melhores - 2014

cachorrinho foi se chegando a mim, ainda sestroso, mas corajoso. Reconheci, ao pé do fogo de chão, os homens de sempre, o sêo Antenor, motorista, o Virgílio, o Augusto, o Plauto, tido por poeta “pajador”, sempre com o violão nas mãos, a dedilhar uma melodia qualquer; lá estavam também o sêo Antero, com sua careca sempre suada, empregado por capataz da peonada, o Argeu, o velho Libório, que uns diziam que o meu pai dera abrigo para fugir da polícia, depois de metido nuns “entreveros” de morte, durante a revolução em 23, e que nunca deixava a estância para não ser pego de novo. Também estava lá o negro Adão, homem forte, mas não muito grande, educado, que não olhava nos olhos de ninguém e de quem não se conhecia passado, era homem de pouca fala. Mas, um que me assustava, era um certo Miro, um pelo duro, atarracado, de barba hirsuta, olhos maus, mesmo calado tinha jeito de encrenqueiro. Ora, no galpão impera a civilidade. Todos são aceitos, todos são bem-vindos. Todos são ouvidos e todos podem ouvir e falar, só não o faz quem não quer. O fogo nativo, crepitando no chão, é o foco central daquela hospitalidade rude, mas sincera. Não há, ali, lugar para preconceitos. Os nacos de carne assada são iguais, os pratos de arroz com charque têm a mesma medida, sejam dados ao patrão ou a qualquer dos peões, a cuia de mate passa de mão em mão, sem distinção, aproximando e irmanando companheiros de mesma sorte ou infortúnio. Fora do galpão, na faina diária, a vida deve ter suas diferenças, as responsabilidades, de mando e de fazer, são desiguais só assim. Mas, à noite, no galpão, opera-se a mais pura lei de igualdade.

Os minutos se escoavam entre as conversas e as músicas do Plauto, a cuia do mate passava pela roda. A chaleira preta de fuligem chiava sobre a trempe ao lado de uma grande panela onde o arroz, feito para o jantar, ainda fumegava, uma sobra de um quarto de ovelha, atravessado num espeto largo, derretia suas gordu-ras sobre o braseiro, tchiiiiiii, impregnando o ambiente com seu perfume adocicado. Vez ou outra, um se aproximava e passava a faca pela carne, tirando-lhe uma ponta mais assada, e logo sêo Antero passava a salmoura pelo talho com um molhozinho de ramos de carqueja. “Augusto, chê...” é o velho Libório quem pergunta “... e como foi a carreira do sêo Josino no domingo?”, “Pois! Que espetáculo, chê!...” responde o peão tragando o palheiro e largando uma fumaceira azulada sobre sua cabeça, “... quando largaram, se vieram parelhitos, no más! Isso até duas qua-dras, quando o tordilho do velho Silva se pôs na frente. Ah, mas com três quadras aquela égua do Flores foi entrando por fora e encostou, e se foi, à la cria, até a raia, com um corpo todo de frente.”, “É! Aquela égua é para tudo. Que qualidade!”,

Page 59: Livro contos melhores 2014 edição final

59

Contos Melhores - 2014

“Eu mesmo ganhei alguns mil réis naquela cancha, mas houve quem forrasse o poncho...”. Um outro perguntava ao pai pelas notícias do rádio, se ia mesmo haver guerra na Orópa, se o doutor Getúlio não queria juntar de novo uma gauchada para ir dar tunda nos alemães; outro, a um canto, perguntava se já não tinham visto o caminhão Chevrolet novo do vizinho, o sêo Ribeiro; alguém falava que os moirões da cerca da invernada do fundo estavam comidos de cupim, que o aramado logo ia abaixo; havia reses com berne precisando de banho de Creolina; a geada estava maltratando o pasto das invernadas; em tudo o pai prestava atenção e só com o olhar se acertava com sêo Antero, o capataz, para que de tudo desse providência; e eu, ouvia, e maravilhado aprendia.

Quando dei por mim, o cachorrinho não estava mais ao meu pé. Procurei-o com o olhar e fui achá-lo espichado sobre o catre de um dos peões. Dei uma risada: “Mas que bichinho atrevido! Olha só que tinhoso!”, eu disse por diversão. O catre, forrado com uns pelegos, era justo do tal Miro, que quando viu aquilo, levantou-se num pulo, já de punhal na mão, e antes que qualquer um pudesse dizer ou fazer al-guma coisa, estava em cima do animalzinho. “Mas passa jáááá, cusco ordinário!” E deu um “pontaço” fundo no quarto traseiro do pobre cachorro, cortando-lhe nervos e tendões. Aos gritos de dor, o pobre animal procurava saída, com a porta do galpão fechada, encontrou abrigo entre minhas botas e ali ficou tremendo e grunhindo as-sustado. O Miro, ainda com sangue nos olhos, talvez não satisfeito ou achando pou-co o que fizera, completou sua raiva: “Se quer te deitar, vai deitar nos pelegos desse negro, nojento como tu.” Para quê, senhor? Ao susto do alvoroço e dos ganidos do cão, seguiu-se, ao redor do fogo, um silêncio quase fúnebre, constrangedor. “Isso não se faz e isso não se diz”, devem ter pensado todos no seu mutismo, envergo-nhados da agressão desmedida ao cachorrinho e da desfeita a um companheiro de lida como era o negro. O agressor, ainda de punhal ensanguentado na mão, viu-se frente a frente com o Adão, que se levantara e o encarava com olhar sereno. O velho Libório levantou-se, por certo, com sua experiência em entreveros, sabia o rumo que aquilo podia tomar. Com uma mão espalmada sobre o peito do negro, como a contê-lo, olhava para o Miro. “Guarda essa faca, vivente, que a coisa pode terminar mal.” O Adão interrompeu o velho. “Senta, pai Libório, que não preciso de ninguém que me defenda de um covarde desses.”, “Silêncio, todo mundo!” Era a voz do meu pai. “Caluda! No meu galpão ninguém cruza ferros. Quem fizer, pode juntar suas coisas, garanto.” Os dois valentes deram-se as costas e se foram aos seus catres. O pai continuou: “Não gostei do que vi, sêo Miro, uma judiaria covarde

Page 60: Livro contos melhores 2014 edição final

60

Contos Melhores - 2014

com o bichinho. E ninguém destrata ninguém na minha casa. Amanhã de manhã o senhor deixa a estância. Sêo Antero, o senhor acerte as contas desse homem, que não preciso mais do serviço dele.”, visivelmente desgostoso levantou-se, passou a mão na minha cabeça. “Bah! Perdi o gosto da noite, meu filho. Vamos pra a casa. Podes trazer o quaipequinha contigo...” Levantei o pobre do bichinho, enrolei-o no meu pala e saí com ele ao colo. Demos uns passos no rumo de casa e o pai voltou, da porta do galpão chamou o Libório e pediu que este não tirasse os olhos dos dois durante a noite, para evitar que houvesse morte por conta de um coisa à-toa como o Miro. “O Antero e eu já se acertemos, não vamos dormir, patrão. Não se apercupe, esses dois podem até se jurar na calada, mas não vão se sangrar aqui dentro.”

Minha mãe, cheia de piedade do cãozinho ferido, permitiu que ele dormisse ao pé da minha cama, e fez-lhe um belo curativo. Um pelego velho serviu-lhe de cama. Eu, deitado, de vez em quando olhava para ele a ver se estava bem, passa-va-lhe a mão nas orelhas, ele levantava a cabeça, ainda meio assustado, como a perguntar: “Posso mesmo ficar aqui?” Talvez, pelo quarto aquecido ou pelo carinho que recebera foi serenando e, na madrugada, eu podia ouvir o seu ressonar tran-quilo e confiante. Bom, basta dizer que para o resto de sua vida, mesmo com todo o trabalho que tinha na estância, sua cama sempre foi um pelego ao pé da minha. Tinhoso ficou sendo seu nome. Nunca mais nos apartamos. O que se passou no galpão durante aquela noite não cheguei a conhecer, soube apenas que os dois valentes não se falaram, isso por respeito aos dois velhos que os vigiavam, mas se dormiram ou não, não se sabe. Como podia ser aquilo, isso eu pensava, um pobre cachorrinho se tornar o pomo da discórdia entre aqueles dois crinudos? Mas, qual? A verdade eu soube depois. A coisa era mais velha entre os dois, parece que já vinha das andanças dos dois ao chinaredo em Aceguá, onde havia, me disseram, que eu mesmo não entrava lá, uma china uruguaia de nome Rosa que era mesmo uma flor não só no nome, a quem os tais disputavam. Mas, parece que a Rosa se derretia era pelo Adão, dizem que dava voltas e se desmanchava toda para ficar com o negro, enquanto que com o Miro, só ia por força da profissão. Pois, um dia o Adão e a Rosa estavam juntos, e o Miro chegou procurando por ela, quando soube com quem estava, dizem que quis botar a casa abaixo, destratando todos e todas, e que foi contido pelo cano de um .44 inglês, na mão de um soldado de polícia. Dizem, também, que a partir disso se juraram, mas como na cidade o chinaredo era vigiado de perto pelos milicos, os dois se negaciaram, se negaciaram, mas nada de entreveros. Sobrou, então, o ressentimento, veja só, e logo por causa de uma china, que é de todo mundo e no fim nunca é de ninguém.

Page 61: Livro contos melhores 2014 edição final

61

Contos Melhores - 2014

Eu também soube depois, isso pela minha mãe, que naquela noite o pai não tivera sono solto, por desgostoso com o acontecido. Levantou-se mui cedo, mais que o costume, e foi ao galpão, onde encontrou os dois velhos, Antero e Libório, mateando. Esses tinham passado a noite em vigília para evitar o entrevero. Aos poucos se levantavam os peões. “Bons dias, que tal o mate?”, “É servido, paisa-no! Se chegue ao fogo!”. Adão acordara em seu canto, arrumou seu catre, seus pelegos, vestiu-se, atravessou a adaga nas costas, sem voltar-se para os demais, quieto como sempre. Tomou um café preto em dois goles e acendeu um pito. Do outro lado do galpão, Miro também se pusera de pé, já vestido e aprumado, com roupa de viagem e punhal atravessado na faixa de cintura. Antero se foi a ele, con-versou baixo, passou-lhe os dinheiros do acerto de contas que meu pai acabara de lhe entregar para tal fim. A peonada, mate tomado, café bebido, iam aos poucos saindo, passando pelo pai, davam mão a aba dos chapéus. “Patrão, bons dias!”, o pai cumprimentava-os todos, mas sem tirar os olhos daqueles dois. Adão saiu com um aceno de cabeça ao meu pai, mas lançando um olhar caborteiro ao Miro. Depois da encilha dos cavalos, os peões, no terreiro, reuniram-se em roda, des-montados, rédeas na mão, como sempre faziam, a esperar as ordens de sêo Antero para o dia que começava a clarear. Foi neste ponto que cheguei ao galpão. Vi o pai sair por último acompanhado pelo Miro, conversando baixo, encaminhando-o para longe dos demais, sempre preocupado em evitar o mal feito que ainda podia acontecer. Ele pensava, me disse depois, que aquela peleja não se evitava, mas queria que não fosse ali, em sua casa, onde todos sempre se deram tão bem; se tivessem que se pegar, que fosse fora de sua estância. Mas, o pobre do meu pai, por mais que quisesse,não pode evitar. O estouro deu-se ali mesmo, naquela hora. O Miro, com agilidade, voltou-se ao grupo de peões, já de mão no cabo da prate-ada. Foi se aproximando. “Por tua causa, negro ordinário, perdi meu emprego.”, Adão olhou reto para o outro, “Me chame de ordinário de novo e nunca mais vai destratar ninguém.”, o Miro explodiu, “Abaixa os olhos para falar comigo, crioulo ordinário!”, o negro Adão ficou parado, braços caídos, quieto como era seu jeito. De repente, cresceu para cima do crinudo do Miro. Da cintura puxou a adaga, “Ah, desgraçado, agora te mostro.” e se pegaram. Eram dois tauras no manejo do ferro, saía faísca, peleavam bonito. Ninguém mais podia se aproximar, agora era esperar para ver quem sobraria do embate inevitável desde a noite anterior. Os dois giravam se procurando, estocando o vazio. No ar gelado da manhã, a respiração exalada dos pelejadores se unia num só vapor ao seu redor. O Miro, talvez por bem mais

Page 62: Livro contos melhores 2014 edição final

62

Contos Melhores - 2014

velho, já ia cansando dos golpes que dava no nada, pois o negro, sestroso, pulava de lado e já levava vantagem. Logo que começaram se percebia que o Miro era mais bravata que destreza, se fosse uma cancha reta as apostas seriam no Adão. E continuavam girando, golpes e mais golpes, às vezes um pequeno talho, o suor já lhes empapava as camisas. Até que o Miro, já por cansado se via, embaralhou as pernas e caiu de costas, e nisso afrouxou a mão, perdeu a arma. O Adão, então, num gesto que não se esperava, sem dar mercê, sem piedade, enterrou-lhe a ada-ga no lado do peito, entre as costelas, direto no coração, ficou segurando assim até que o outro parasse de respirar. Quando a faca saiu, trouxe junto uma golfada de sangue escuro e fumegante. Todos estavam calados, eu tinha lágrimas nos olhos de tamanha emoção, quase não conseguia controlar a respiração, nunca tinha visto um homem morto, ainda mais morto diante de mim. O Adão em pé, segurando a faca ensanguentada, tremia levemente, seus olhos eram de fera, da fera que morava dentro dele. Só eu via aquilo no olhar dele? À medida que seu coração foi serenando, seu sangue esfriando, sua fera foi se retirando mais e mais para o fun-do da sua alma. Olhou para meu pai, “Patrão...”, meu pai balançava a cabeça, “Não diga nada, Adão, só pegue suas coisas e se vá...”, o negro ainda olhou em roda, não achou aprovação em ninguém. Matar um homem no chão e desarmado? “Está bueno, patrão!”, “Sêo Antenor...”, chamou o pai, “... vá de caminhão até a cidade e me traga a polícia, uma coisa dessas não posso contornar, não dentro da minha casa.” O Adão voltou para o interior do galpão e pouco depois trazia suas coisas em duas malas de garupa. O Antero jogou um cobertor sobre o corpo que já esfriava. O motorista Antenor já dava partida no caminhão e se punha a caminho. Adão, mon-tado, parou a cumprimentar meu pai, “Patrão, lhe agradeço a acolhida e o respeito que sempre teve por mim. Le peço desculpas por ter trazido sangue para sua casa, mas...”, “Não se incomode, Adão, tu fostes muito destratado, um homem não pode mesmo aguentar isso calado, não ia mesmo terminar bem. Aproveite a vantagem, que a milicada logo vai bater o campo te procurando.”, Adão levou a mão à aba do chapéu e olhou a todos ao redor, “Patrão..., senhores...”, olhou-me e perguntou, “E o guaipequinha, moçito? Como está?”, “Vai ficar bom.”, respondi, “Coisa boa, cuide bem dele, moçito, aquele cachorrinho há de ser um bom parceiro.”, chegou as chilenas no flanco do bagual e se foi estrada à fora.

“... um homem não pode mesmo aguentar isso calado...”, foi o que meu pai disse ao Adão. Sempre respeitei meu pai, mas... como assim ‘um homem não pode

Page 63: Livro contos melhores 2014 edição final

63

Contos Melhores - 2014

aguentar isso calado’? De que adiantou aquela morte? Qual foi a compensação que o matador teve? Talvez eu fosse muito guri, ou talvez eu tivesse crescido, assim, de repente, naquela manhã, assistindo àquele entrevero. A partir de então, notícias so-bre o Adão se tornaram raras. A polícia desde que veio, tomou depoimentos e levou o corpo do Miro, andou atrás do negro, primeiro revirou nossa estância e por pouco não acabam achando o velho Libório, que foi esconder-se, a mando do pai, dentro da nossa casa, veja só! Bateram as terras dos vizinhos, espalharam cartaz do Adão pelas delegacias, mas qual, nem rastro de cheiro encontraram. As buscas restavam em nada, foram minguando, por fim pararam. Soube mais tarde que o Adão passou a andejar por aquelas vastas planuras, sem cercamento ou divisão, gauderiando no más, às vezes se empregava, corria uma ponta de gado, outra vez andejava em tropeiradas até a Serra e de lá voltava, foi visto arriscando umas platas em carrei-ras, passando contrabandos do Uruguai; sumia uns tempos, voltava; se encontrava a milicada, desaparecia. Assim esteve por uns trinta anos. Encontraram-no morto, parece que do coração, numa tapera em terras de um certo Miguel Silva, pros lados de Piratini, que lhe tinha dado refúgio. Solito, sem amor, sem amigos... Eu pergunto: E isso lá é vida, sêo? Andar fugindo sempre? Sempre arriscando um olhar para trás com receio da polícia ou dos parentes do morto? Pois, naquela manhã, no terreiro defronte ao galpão do meu pai, aprendi que este tipo de valentia, de armas nas mãos e sangue nos olhos, só serve para satisfazer orgulho ferido, e talvez nem para isso sirva, que só vi dor e sofrimento no caminho de quem escolheu este rumo. Valentia mesmo, eu acho, é não revidar uma afronta, é vencer a vontade de fazer justiça com as próprias mãos, é montar guerra constante e sem quartel ao inimigo que vive dentro da gente, é vencer a cobiça e a ganância que fazem a gente querer o que não é nosso ou mais do que se precisa. É preciso coragem para essas coi-sas... E, se possível, ajuda muito ter na vida uns bons e sinceros amigos, não são precisos muitos, uns quatro ou cinco, talvez,... um para cada alça do seu caixão. Ah..., e um bom cachorro ovelheiro..., sim é preciso também ter um bom cachorro fiel e companheiro, como esse aí da foto. Viu só? Mas que era mui feio..., ah, isso era..., esse meu Tinhoso.

*Gérson Luiz Colombo, 56 anos, advogado, reformado da Força Aérea, Canoas, RS

Page 64: Livro contos melhores 2014 edição final

64

Contos Melhores - 2014

Recado pra MarluceCategoria nacional - 1.ª menção honrosa - Álvaro Cardoso Gomes, São Sebastião, SP*

O PM estava caído na calçada, meio de costas, meio de lado, com o joelho da perna direita flexionado, de maneira que, já a um primeiro olhar, pude ver os dois buracos na altura do peito dele. Uma das balas tinha perfurado o

colete que nem se fosse papel. Na nádega direita, havia um rombo do tamanho de uma maçã. Era de outro tiro que tinha atingido ele no estômago e arrombado tudo por dentro, do mesmo modo que o dedo sujo de um moleque faz, ao se enfiar num pote de margarina. Só o impacto dos projéteis de uma .12 pra fazer um estrago assim, tanto que nem me dei ao trabalho de conferir os cartuchos no chão. Me ajoelhei e olhei pra cara do morto que milagrosamente ainda equilibrava o boné da corporação na cabeça. Era mesmo o Cido. Sentado na calçada, o parceiro dele, o cabo Benê, um negrão grande e forte que nem um touro, soluçava. Senti um nó no peito e cerrei os maxilares. Eu não ia chorar, não podia chorar.

O sargento Okamoto estava do lado, os olhos de gato tão vincados que pareciam cicatrizados. Com a mão apoiada na coronha da .40, ele espiava a cena, impassível, como todos os japoneses. Mas a calmaria do Okamoto era enganosa. Conhecia muito bem o japa: sabia que dentro dele fermentava uma raiva fria. Ótima pra fazer o que devia ser feito. Me ergui, dando uma espiada rápida na viatura do Cido, um Corsa, com uma porta aberta, o banco do motorista manchado de sangue e a lataria cheia de perfurações.

– Você conta pra Marluce? – o Okamoto perguntou, seco, com os lábios também vincados.

Ia sobrar pra mim. Mas quem podia chegar na esposa do Cido, senão eu, o amigo do peito?

– Conto. Mas, antes, vou com vocês atrás dos vagabundos.– Tá bom – ele concordou, pra, em seguida, gritar pro cabo: – Benê, levanta

daí, que a gente não pode mais perder tempo!O Benê se levantou. Como era grande o cara! A .12 na mão dele parecia

uma arma de brinquedo.

Page 65: Livro contos melhores 2014 edição final

65

Contos Melhores - 2014

– Nos conformes, sargento. Vamos lá – disse, com a voz cavernosa, limpan-do os olhos com as costas da mão.

– A essa altura, os vagabundos devem estar longe. Numa boa – comentei, balançando a cabeça.

– O pessoal do Garra e da Rota já estão na captura deles – disse o sargento Okamoto com toda a calma do mundo e estreitando ainda mais os olhos. – Combi-naram de cercar os elementos lá perto da favela do Boqueirão. É só a gente descer a Canuto que pega eles voltando. Estão num Marea verde.

– Voltando da onde? – perguntei, pra depois acrescentar: – A essas horas, os vagabundos devem ter se enfiado na favela. E ninguém mais pega eles.

– Negativo, tá tudo cercado. Eles devem ter chegado lá e, vendo o bloqueio, voltaram. Daqui a pouco vão querer pegar a Canuto pra entrar na Interlagos e sumir em Parelheiros.

– Por que a Canuto?– O caminho mais rápido.O japa conhecia como ninguém a vila Erna.– Tem outra coisa: combinei com o pessoal do Garra e da Rota pra não se

meterem.– Eles vão deixar os vagabundos pra nós? – voltei a perguntar.– Isso mesmo. Só vão ajudar cercando os elementos e não deixando eles

fugir.Legal o pessoal do Garra e da Rota. Sabiam que era questão de honra do

Okamoto, do Benê e de mim. Última homenagem pro colega.– O Benê pode ir com você? – disse o Okamoto.– Tudo bem – fiz um sinal de positivo pro negão. – A gente fecha a rua do lado daquela ladeirona, você fecha do outro, junto

da praça – tornou a falar o Okamoto, entrando na viatura, onde o parceiro dele, o cabo Ewerton, já esperava com o motor ligado.

O Ewerton pisou fundo, e a viatura arrancou cantando os pneus. O pessoal do IML continuava a tirar fotos do cadáver e a colher provas. Entrei no Vectra e saí atrás do japa. Na primeira esquina, o Corsa tomou a esquerda e eu, a direita. Bocejei, porque ainda não havia dormido nada naquela noite. Tinha ficado até perto das três numa baiúca na Major Sertório, bebendo uísque e papeando com uma garotinha chamada Andressa. Nem bonita, nem feia – dava pro gasto. O uísque é que era uma bosta. Tão falso quanto loira de puteiro da Cracolândia. Chegando em casa, foi só vomitar. E lá estava meu jantar boiando no fundo da privada. Nem

Page 66: Livro contos melhores 2014 edição final

66

Contos Melhores - 2014

bem tomei um banho gelado, me preparando pra ver se dormia, quando o telefone tocou. Era o sargento Okamoto:

– Má notícia, Medeiros. Parece que pegaram o teu amigo.Meu coração bateu disparado no peito. Que amigo, pensei? Porque só tenho

dois. O Bellochio, meu parceiro do 113º DP e o Cido, que é da PM.– O Cido. Tocaiaram ele.Fiquei em silêncio, sentindo uma dor no peito.– Você vem?– Já estou indo.Enquanto me vestia, fiquei pensando naquela merda toda. Puta que pariu, o

Cido! Justo o Cido, caralho! Era um baixinho troncudo que conheci jogando futebol soçaite no “9 de Julho”. Um campeonato fuleiro, organizado entre as delegacias da Zona Sul. Muitas vezes, saía pau: afinal, eram jogos da Polícia Militar contra a Polícia Civil. No futebol, engano um pouco, ou melhor, enganava, que agora o fôlego não ajuda. Prova disso é que, quando entrei num baixinho troncudo, que conhecia de vista, levei a pior. Não gostei nada, nada, quando ele, muito rápido, me deu uma finta e enfiou a bola no meio das minhas canetas. Não bastasse isso, em outra jogada, pedalou na minha frente. Tentei inutilmente acertar o cara, mas, em vez disso, me arrebentei todo no chão. Levantei louco da vida, parti com tudo pra cima do baixinho e joguei ele no alambrado. O carinha, apesar de meus metro e oitenta, quis encrespar e me encarou. Não gosto de homem me encarando e disse:

– Qualé? Vai invocar, pintor de rodapé?Um cabeçada na boca do estômago me fez dobrar o corpo. Mas logo me

recuperei e, quando já me preparava pra arrebentar o baixinho, a turma do deixa--disso interveio. Não sei quem me segurou por detrás, enquanto eu esbravejava:

– Me larga, caralho! Me larga!– Medeiros, pára com isso, cara. É só uma brincadeira – me dizia o Coelho

com o jeito manso dele.– Acabou o jogo, acabou o jogo – disse o Bellochio, ridículo em seu unifor-

me de juiz e tentando também acabar com a confusão. – Tem um monte de bramas esperando pela gente.

– Olhei pro baixinho. Uma porrada minha quebrava ele em dois. Mas não valia a pena gastar energia assim num jogo de brincadeira. E com um colega. O melhor era beber uma cerveja estupidamente gelada, comer uma carninha e jogar conversa fora.

Page 67: Livro contos melhores 2014 edição final

67

Contos Melhores - 2014

– Desculpe, cara. Fiquei nervoso à toa – disse o baixinho, esticando a mão. – Sou o Aparecido. Mas pode me chamar de Cido.

– Que que você tem dentro da cabeça? Um tijolo? – disse, esfregando a boca do estômago.

Ele começou a rir. Não demorou muito, a gente estava no boteco do “9 de Julho” enchendo a cara. E assim começou a minha amizade com o Cido. Uns dias depois, ele me convidou pra um churrasco na casa dele. E lá fui eu. O Cido mora bem na entrada da favela do Boqueirão num sobradinho apertado que ele mesmo construiu nas horas de folga. Respeitado e querido pelos moradores, ao contrário de muitos de seus colegas, fazia questão de mostrar que era da PM. Saía de casa de farda e voltava de farda, o que, do meu ponto de vista, era uma coisa temerária. Lembro que cheguei mesmo a alertar o Cido sobre isso.

– Se não uso a farda aqui, os vagabundos vão pensar que estou amarelando – disse ele, com indignação. – Usando a farda, imponho respeito.

Não bastasse isso, muito durão, ainda encarava os chefões das bocas e não admitia que se vendesse droga pras crianças da sua rua. E foi por isso que se fodeu. Eu sabia quem tinha feito aquela barbaridade com ele.

O Cido era casado com a Marluce e tinha dois filhos, o Carlos Alberto, de sete anos, e a Lineide, de 3. Fora o trabalho na PM, fazia bico como segurança numa Universidade, onde estudava Direito. O sonho dele era prestar concurso pra Delegado e mudar com a família pra uma cidade qualquer no interior.

– Um lugar maneiro, tranquilo. Bom pra educar as crianças. Com um quintal grande com uma churrasqueira de verdade – várias vezes ele me contou esse seu sonho, enquanto preparava uma picanha na churrasqueira improvisada com alguns tijolos e uma grelha.

E eu tinha certeza que ele ia conseguir. Nunca vi cara mais esforçado. Gen-te fina, o Cido, uma moça no trato. Cada vez que ia no sobradinho da favela do Boqueirão, era recebido que nem um rei. E eu não sabia bem por quê, mas o Cido tinha a maior consideração por mim. Talvez por que tivesse escutado umas histó-rias a meu respeito: que eu não levava desaforo pra casa, que não era de amarelar e não fazia acordo com vagabundo.

Lembrei de tudo isso com muita tristeza, enquanto seguia rapidamente na direção da Canuto. Coitada da Marluce. O que ia fazer sozinha, com as duas crian-ças, contando só com a ridícula pensão de um PM? E nem tendo mais onde morar. Porque, ali, no Boqueirão, não ia poder mais ficar. Mas o pior de tudo mesmo era

Page 68: Livro contos melhores 2014 edição final

68

Contos Melhores - 2014

perder o Cido, que ela amava de verdade. E as crianças? Como ficar sem o paizão que adoravam?

Cheguei na Canuto. Na outra ponta, que dava pra Interlagos, o Okamoto e o Ewerton já deviam estar com o carro atravessado na rua. Os vagabundos iam descer a Vereador Moreira Diniz, uma puta de uma ladeira. E deviam vir a toda, com as viaturas da Garra e da Rota berrando atrás. Virando à direita, iam cair nos braços do japa e do Ewerton. Mas se a gente tivesse sorte, talvez viessem pro nosso lado. Estacionei o carro de lado, no meio da rua.

– Vamos lá, Benê, a festa vai começar.O negão não disse nada, abriu a porta, saiu, deu a volta no Vectra e encos-

tou o corpanzil junto do capô. Deixei o carro, abri o porta-mala e peguei a carabina. Fui até o Benê, que estava imóvel, segurando a .12 nos braços enormes, que pareciam troncos de árvore. Sem olhar pra ele, eu disse:

– Conta lá como foi.O Benê começou a falar, parecendo que fazia um grande esforço:– Passei na casa do Cido, lá pelas sete da noite, peguei ele, depois, passei

em casa pra dar um recado pra patroa. O Cido não quis ficar esperando. Estava com pressa porque tinha que ir na faculdade dele pra ver as notas de umas provas. Ele falou que era pra ficar esperando, que logo estava de volta pra gente fazer a ronda. Tinha acabado de entrar em casa, quando escutei os tiros. Saí pra rua ainda a tempo de ver um vagabundo atirando com a .12 no Cido. Ele estava ajoelhado na calçada. Corri até lá, mas o vagabundo entrou no Marea e saiu no pau.

Ele rangeu os dentes, cuspindo as palavras, cheio de ódio:– Foi uma execução. Uma covardia!O Bebê se calou. Não perguntei mais nada, porque tudo tinha sido dito.

Também me encostei no Vectra e fiquei esperando. Estava calmo, muito calmo. Mas sabia que o peso daquilo tudo ia cair em cima de mim mais tarde. Quando tivesse que contar pra Marluce ou quando chegasse no meu apartamento vazio e sentisse que ia ficar um pouco mais só. E que nunca mais o Cido ia acertar uma cabeçada na boca do meu estômago. E nem me dizer com um sorriso malandro:

– Desculpa pela bola entre as pernas. Não pude resistir...A madrugada estava tranquila, fazia frio. E eu só com um leve agasalho.

Mas logo a coisa ia esquentar. Escutava o barulho dos grilos nas moitas da praça ao lado. De longe, vinham os ruídos da cidade que nunca dormia. O estrondo dos motores dos ônibus e carros chegavam amortecidos até nós.

Page 69: Livro contos melhores 2014 edição final

69

Contos Melhores - 2014

Até que escutei o ronco de um motor, de pneus derrapando, de sirenes. Me pareceu também ouvir estampidos. A festa ia começar. Torci pra que os putos vi-rassem à esquerda. Eles podiam vir quentes, que eu estava fervendo. A adrenalina começou a correr no meu sangue. Minhas mãos estavam suadas, e eu não parava de salivar, feito um cão hidrófobo. Impaciente, pensei se não valia a pena entrar no carro e ir ao encontro do Okamoto e do Benê. Talvez precisassem de ajuda por lá. Mas também pensei que se os vagabundos dessem meia volta, pra evitar o japa e o Ewerton, eu ia passar por eles, correndo o risco do Marea escapar. Aí, adeus, era só os filhos da puta se enfiar numas quebradas, que ninguém mais pegava eles.

Na verdade, estava com medo de ficar fora da festa. Isso se o japa e o Ewerton dessem conta do recado. Aí, só me sobrava ir até a casa do Cido. E falar com a Marluce. Mas escutei o ronco de um motor bem perto. O Benê se mexeu excitado e destravou a .12. Meu coração bateu acelerado. Vi uns faróis altos de um carro dobrando a rua. Tinha que ser um Marea, tinha que ser o Marea. Era o Marea verde! O Benê se colocou em posição de tiro. Levantei a carabina e firmei os pés no chão. Atiramos. Dois estrondos: a tampa do motor do Marea foi atirada pro alto, en-quanto o vidro do pára-brisa estilhaçava. O carro, desgovernado, subiu na calçada, batendo de frente numa árvore. Nesse instante, chegava o Corsa com o Okamoto e o Ewerton. Eles desceram embalados. Corremos até o Marea. Segurando a .12 rente à cara, o Ewerton abriu a da porta da frente do carro. O motorista já era, com a cara esfacelada. No banco do lado, um sarará albino, todo ensanguentado, com piercings nas sobrancelhas e no nariz, gemeu, levantando as mãos:

– Tô limpo! Tô limpo!Ignorando o vagabundo, que estava sob a mira do Ewerton e do Benê, o

Okamoto abriu a porta detrás do carro. Um moleque magrelo, de uns dezoito, deze-nove anos, os olhos arregalados de pavor, tremia que nem se estivesse com febre.

– Vamos precisar só de um pra dar o serviço – rosnou o japa.– Falou – disse o Benê.O albino tentou se proteger com os braços. Ouvi um estrondo, e os projé-

teis, depois de arrebentar os braços do vagabundo, abriram um rombo no peito dele, arremessando-o violentamente contra a porta. O albino caiu entre o banco e console do carro e ficou ali inerte. O Okamoto agarrou o moleque pelos cabelos e puxou ele pra fora. O garoto caiu de quatro, implorando pela vida. O japa encostou a automática na orelha do vagabundo e disse:

– Você vai dar o serviço agora, senão acaba que nem os outros.

Page 70: Livro contos melhores 2014 edição final

70

Contos Melhores - 2014

– Pelo amor de Deus, pelo amor de Deus – ele gemia.– Não põe Deus no meio, caralho! Quem que mandou executar o Cido?O Okamoto não estava pra brincadeira. A prova disso era o sarará arreben-

tado no banco da frente. O japa deu uma cacetada na orelha do moleque, que não esperou mais pra responder, dizendo, apavorado:

– O Bacana...Nisso, chegaram as viaturas do Garra e da Rota, como de costume, fazendo

aquele estardalhaço.– Tudo sob controle – disse o Okamoto pros colegas, enfiando a .40 no

coldre. E, dando um pontapé no pivete, completou: – Sobrou esse lixo aqui.Fui até meu carro guardar a carabina. Abri o porta-malas e deparei com

uma bola de futebol soçaite novinha. Um presente pro Cido, que ia fazer aniversário na próxima semana. Senti um aperto no coração. Entrei no carro. Eu não queria fazer o que tinha que fazer. Por isso, fiquei ali parado, à toa, procurando não pensar em nada. Mas, como sabia que não adiantava ficar protelando aquela merda, dei um suspiro e liguei o motor. Era eu e mais ninguém que tinha que dar o recado pra Marluce.

*Álvaro Cardoso Gomes, 70 anos, crítico literário, muitos livros publicados, São Sebastião-SP.

Page 71: Livro contos melhores 2014 edição final

71

Contos Melhores - 2014

CoquelucheCategoria nacional - 2.ª menção honrosa - Douglas MCT, São Paulo, SP*

S ão as boas desculpas, tinha lhe dito o pai.Ela recheou a carne com bacons cortados em grandes pedaços, buscando as brechas exatas no suíno para a aplicação. Mãos besuntadas, guardanapo

de pano, uma golada de cerveja. Suspirou como que para extrair um bocado do vazio.Batatas extras, pimentão verde picado, molho de alho, sal e azeite ador-

navam a assadeira. Caeto estava agindo estranho com ela há dias, na cama e no café da manhã. Nunca conseguiram almoçar juntos. A família desde então ausente, nenhum amigo telefonava. Nem a Juliana, quem diria. Furtou uma salsicha Viena e mastigou junto de sua frustração. Colocou as demais no entorno, acompanhadas de algumas linguiças toscanas.

Pietro passou por ela, correndo até o outro lado em busca da bola que lhe fugia. Tão pequeno, mas já tão injusto. O feijão preto, também com bacon, bor-bulhava de dentro da panela, mais vivo do que ela. Na sala ao lado, risadas altas, fofocas baixas, um escárnio aqui e ali, a legião que chamava de parentes atuava.O de sempre.O arroz fumegava, olente pelas cenouras e salsinhas na medida, adian-tando a fome, encimando sua ansiedade.

Ela levou a peça para assar, o cheiro parecia bom. Tinha acertado daquela vez? Os ovos já cozidos, a cerveja gelando. A noite ideal, para recuperar o que tinha perdido. Esperou, ignorando a algazarra da família, os gritos das crianças, os animais latindo e piando, reconfortando-se no caos. Encontrou ali sua cadeirinha predileta, aquela de madeira com o assento circular, sentou e esperou. Esperou submissa ao lado do fogão. Longos quarenta minutos, quase cinquenta. Um tio veio reclamar da demora, um primo correu chorando pelo dente perdido, uma mulher perguntou onde era o banheiro. Então, a cozinha novamente só para ela. Suspirou o de sempre. O vazio agora era maior que seu buraco no estômago.

Percebeu que ele estava ali antes de chamá-la. Percebeu quando uma lá-grima escorreu. Os sentimentos sendo sinceros, chegando antes da hora.

– Filha.– Pai.

Page 72: Livro contos melhores 2014 edição final

72

Contos Melhores - 2014

Fazia muito tempo, ela se lembrava. Fez um esforço para isso. Memória falha, sempre em branco, mas as boas memórias, assim como as boas desculpas, não se dissipavam tão facilmente. Assim ele a ensinou.

– Que saudade.– Eu também.Não se abraçaram, mas era como se fosse. Ela chorava, ele sorria.– Eisbein de novo.– Seu prato predileto.Pelo menos sempre foi. Curitiba, 2002, no Cantinho do Porcino. Ela, o pai, a

mãe e os irmãos. Mais de uma década, não parecia tanto. O tempo não existe para a saudade. A dor pela recordação era que pesava nos ombros. Aquela dor recente, da passagem escura e súbita, inesperada e inaceitável. O amor partido. Não Caeto, mas do pai. Agora ele estava ali, sentado no banquinho gêmeo ao lado, rotundo e risonho sob sua barba nórdica, as bochechas salientes esbraseadas, todo bona-chão, passeando com a mão sobre a barriga maciça.

– Deve estar uma delícia.– Eu aprimorei a sua receita. Deve estar mesmo.O alerta do celular indicava os quarenta – ou cinquenta – minutos atingidos.

O tempo não existe para o joelho de porco. Ficou pronto entre um pensamento e outro. Há quanto tempo ele estava ali? Enfim.

Luva de vaquinhas estampadas, careta pelo vapor.Do forno aberto era re-tirada a assadeira com o eisbein recauchutado. O silêncio no tempo que não era tempo predominava. A família do outro lado em silêncio absoluto. A paz tão espe-rada.

O pai não precisou experimentar.– Tá com uma cara boa. Vão adorar.– Espero que sim.Ela hesitou. Ele percebeu e esperou, levantando uma sobrancelha felpuda.– Esqueci do limão. Isso era essencial. Eles vão perceber a diferença. –

Suspirou frustrada. Agora o vazio era ela. – O limão era essencial.– Não era.– Esse detalhe vai pesar no resultado, vai vendo.– O limão era detalhe meu, uma liberdade criativa minha. Esse eisbein é

seu e você entuchou o porco de bacon. Eu nunca fiz isso, lembra? – Ela lembrou rápido, como se nunca tivesse esquecido. – Esse é a sua versão. É ela que vale a

Page 73: Livro contos melhores 2014 edição final

73

Contos Melhores - 2014

partir de agora.Você tem razão, ela teria dito. Mas não disse. Refletiu. Uma emoção subiu

do âmago.– São as boas desculpas, filha.Ele sorriu.Ela levou o assado para os famintos à espera. O tempo diluiu, o barulho

voltou. Pietro ainda corria atrás da bola, o tio ainda reclamava da demora. A rotina amarga podia ser suportada sem uma pitada de limão. Bacon sempre alargava sorrisos. Existia ainda uma esperança de ser aceita de volta pela autenticidade imposta no suíno, uma marca registrada, calcada como ferro quente no cerne da família. Quem sabe?

Quando ela voltou à cozinha ele não estava mais. Seu vazio sumiu após o banquete. Uma imersão nas fofocas sobre vizinhos colaborou para o retorno do bom humor. Um SMS de Caeto com pedidos de desculpas. A vida seguia assim, como quem não quer nada.

Pelo menos ela tinha herdado o sorriso do pai.

*Douglas Marques Comito, 31 anos, editor de livros e revistas, vários livros publicados, São Paulo-SP.

Page 74: Livro contos melhores 2014 edição final

74

Contos Melhores - 2014

O regresso do heróiOlhou alguns instantes para o cadáver tão fixa,

tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas...

(Dom Casmurro, Machado de Assis)

Categoria nacional - 3.ª menção honrosa - Paulo Sérgio Marques – Sinop - MT*

Um dia vem a notícia: morreu Mão-de-Deus.Enfim.E Nardino não se perde em hesitações. Quem aprendeu a cumprir os go-

-vernos da vida não fraqueja.Na madrugada deixa a casa. Depois de beijar a menina Belafrô e o menino

Curitié. Não consegue acreditar que um dia os filhos desaparecerão da lembrança, que a ausência cotidiana cuidará de fazer os rostos nublarem até o esquecimento completo. Que no futuro, talvez ainda uma reminiscência fria na memória, nada restará, porém, no coração. Naquele dia, os meninos serão talvez ainda nomes, mas nunca mais os filhos de Nardino.

Lembra-se de não ser esta a primeira vez. Dizer adeus foi um uso antigo. Depois disso, foi um hábito que sempre existiu na espera, sob a sombra encom-pridada das crianças, que cresciam sem suspeitar os planos do pai. Como se viver fosse obra sem limites. Ele, contudo, nunca duvidou de que a hora viesse. E até a planejava e preparava, sem se sentir um traidor.

A mulher está acordada. Já pressentiu o perigo no marido, quando ele ouvia a notícia anunciada por um mascate de mezinhas e garrafadas. Mas, no sono simu-lado, não ergue braços, nem olhos, nem palavras. Finge ainda dormir, quando ele lhe beija a testa e deixa sobre a cômoda o dinheiro. É tudo o que ren-deu a venda dos últimos grãos da colheita.

Parte sem nada, a não ser pela trouxa de poucas roupas. Do mesmo jeito que chegou, quinze anos antes. Quando encontrou Rosalinha a cuidar de sítio de herança, mulher sem braço de homem. E ele, sem virtude de herói, mesmo assim pediu emprego. A mulher falou pouco, o suficiente para apontar serviços e ferra-

Page 75: Livro contos melhores 2014 edição final

75

Contos Melhores - 2014

mentas. A mudez conquistou-o. E seu perfume de café, sempre quente e fume-gante o dela, em qualquer ponto do dia, servido sem perguntas. Rosalinha não se preocupava de saber dos tempos passados ao homem que recebia de marido. O mesmo silêncio que o recebeu, agora se despede. Sem a pressa de fazer o café, segurá-lo na casa um pouco mais, antes de separá-los o dia, com seus trabalhos desunidos de homem e mulher.

Esse bule de café, que melhor dá ao homem o sentido de um lar, Nardino hoje não pode cheirar e beber, porque não tem estômago e pulmões, só tem pés. Quando sai, apenas o barro denso do quintal tenta segurar-lhe as pernas. Gruda nas botas. E Sorgo, o cão, que o segue e só desiste com pedrada. O animal chora e pergunta. Tenta de novo agradar o dono. A pata receosa. A cabeça não entendendo aquele amor recusante de companhia. A culpa censurando a falta de coragem para ladear Nardino. A confusão não compreendendo qual o seu lugar neste mundo de gente-homem.

Por muito tempo, Nardino também andou como cão entre gentes. Vinha fugindo, se escondendo. Mas era dele mesmo. Até cogitou o rejeitar a vida. Mas suicídio não é capitulação, como rezam os maus livros. É o contrário disso: é a última batalha de um desesperado. Nardino não tinha inspiração para suicídios. Capitulou e sobreviveu. E fez família: Curitié, Belafrô, as crianças anunciaram o futuro que não viria. Assim ele ia sorvendo a alegria dos meninos, como carrapato que não sabe viver da própria seiva.

Enquanto se afasta, o pensamento se entretém em desenhar o rosto dos filhos abandonados. Às vezes acha que o escorço sai errado, um nariz um pouco mais largo, uma covinha que não devia estar lá. Apaga, refaz o rabisco, enquan--to, atrás, a estrada se alonga, expira a última estrela desta madrugada que não despertou no cheiro do café de Rosalinha. Na trilha, o vento sopra sem odores e a terra já é de estio. Duas vezes ele pisou essa dureza de chão comprido. A diferença é que agora ele segue nortes, tem aonde chegar e projeto a cumprir. Da primeira vez era a fuga, e quem foge não leva mapa, a estrada de quem foge é o desvio. Só agora é que tem o desenho fácil, de cabeça e de cor, que o caminho de casa desdenha lápis. Vem, desta feita, refazendo o rosário, como aquelas crianças da história que excitava Belafrô (Conta, pai, a dos meninos que se perdem de casa), colecionando as pedras atiradas para lembrar a trilha e remontar à vida perdida. Mas estas contas não são mais as mesmas. Ele vai estranhando a pouca mata do caminho, de que resta por testemunha uma ou outra castanheira carbo-nizada.

Page 76: Livro contos melhores 2014 edição final

76

Contos Melhores - 2014

A viagem é mais curta quando se sabe aonde ir. Já fez metade da jornada, quando o dia chega a céu alto. Não é mais o ermo. Aqui e ali desponta um trator solitário no descampado, uma cantiga de lavadeira embaixo de ponte, revoada de urubus indicando imundície de homens. Cruza com meninos tangendo cabri-tos. A menina Belafrô temia cabras. Mas o caçula Curitié era montador de bichos, pilotava-os no chifre. Agora, enquanto essa Belafrô e esse Curitié se espaçam, vêm outras crianças no seu encalço, ameaçando com fronteiras, reclamando geografias roubadas.

Ele espera o grupo passar e retoma a rota. Por um instante vacila. A estrada está coberta de pegadas no sentido contrário da viagem. Uma sensação de rumar para o lado errado detém-lhe o passo, naquele mosaico de pés e patas, como setas indicando a casa abandonada. Ele recorda, contudo, que seu verdadeiro lar está adiante. Ou metade dele o recorda, a outra metade ainda presa a Rosalinha e aos filhos de Rosalinha. De repente, o amor é uma simetria. Con-templa o sertão seco e sem sombras ao sol do zênite. Por alto, tudo são horizontes, à frente como atrás. E então?

Finalmente vence contra si mesmo o cabo-de-guerra, decide-se e move as pernas. Arrasta no pó o rastro dos meninos e das cabras. Caminho, quem faz é o pé, cada um por sobre o dos outros. Só o mundo é sempre o mesmo; os destinos, nunca.

Dias se seguem assim, entre o arranco e a hesitação. Quando, enfim, avista o vilarejo, tenta esboçar na memória os rostos de outras crianças. Só vultos. Pro-cura lembrar os nomes. Um, somente, o cérebro ainda soletra: Mão-de-Deus. O ja-gunço. Mão-de-Deus, o assassino. O ladrão de famílias. Mão-de-Deus. Que agora, terminada a missão de arrebanhar almas, o Deus recolhe à manga.

O cemitério se antecipa às ruas poeirentas. É o primeiro domicílio avistado da estrada, para quem chega, os mortos a receber as visitas da cidade: “Entre, fi-que à vontade, não repare na sujeira das cruzes! É que anda o povo muito ocupado de viver...”

Já não mais este Mão-de-Deus, de corpo duro, rodeado de curiosos e vin-gadores, todos buscando a certeza do alívio ou o deleite da desforra que não pu-deram armar com as próprias mãos. Que gozo o de vê-lo deitado no mesmo caixão que encomendou a outros! Inúteis as mãos de dedos curtos e grossos, antes bons no empunhar facas, mas sem fazer feio na mira de pistolas. Ridículo o bigode en-corpado em que se assinavam machezas e contratavam infâmias. Muda a voz que

Page 77: Livro contos melhores 2014 edição final

77

Contos Melhores - 2014

desmandava governos e exigia submissões. E agora, até esse chorinho de viúva avulta mais do que sua língua de mandão.

Oculto na multidão, Nardino espreita de esguelha a mulher de preto. Tanta gente no enterro, e só chora a viúva, na sua obrigação de ser triste. É possível que o sucesso do funeral não se deva só à celebridade do defunto. Mesmo sob as som-bras do luto, é de se ver que a viúva ainda dispara formosuras, beleza de de-clarar guerras e fazer desgraças. O choro é miúdo, mais composto de suspiros que de lágrimas. Difícil dizer se de amor, se de moral. Nardino quer ler algum vestígio de clareza, mas nem a mulher nem a mantilha gozam de transparências. Então, ele se tranca igual, com os olhos e os lábios rijos.

O padre encomenda o corpo, as carpideiras entoam, santissimamente, “Re-pousa, alma serena, à direita do Altíssimo”, o Deus derramando a mesma bênção sobre bons e maus. Ele, não. Nardino não consegue ser generoso com bandidos. Espera a saída do grupo. É o último a deixar o cemitério. Quando fi-cam a sós, ele e o morto na espera dos coveiros, Nardino sobe à borda do derra-deiro barranco, raspa da garganta um grosso grumo de ressentimento e cospe no olho morto do jagunço. Cobre depois com o chapéu a testa franzida e ruma para a casa da viúva.

Enterrado o defunto, começa a desenterrar memória. Tenta pensar nos vi-vos. Lembra vagamente de uma mulher e duas crianças. Seus filhos? Não con--segue reter os nomes. Confunde, nas lembranças, os sentimentos. Que filhos? Tantos já foram os deixados para trás.

A mulher de preto despede-se de vizinhos, que a deixam à porta de casa. Nardino espera, hesita. Depois de um minuto infinito, enche o peito, abre o por-tão, sobe os degraus da varanda.

Dentro, uma casa limpa e sóbria. Poucos móveis, mas polidos como estre--las de lua nova. Sobre um consolo que serve de oratório, em parceria dos santi--nhos e velas, ele vê as fotos emolduradas: um jovem rapaz em roupa de festa; um casal de noivos; a mulher do cemitério, sem o véu negro, soprando o bolo de aniversário com um bebê de covinha no queixo. Como se emanado do confeito, Nardino sente perfume de mel e frutas e se lembra de nomes: Quinquim, Suvinha. Mas aquele moço em mangas de seda não cabe no nome que ele recorda. Talvez se engane. Ou seja um nome de pequeno, pronunciado pela última vez naquela noite, quando esperou as crianças dormirem, para que o derradeiro beijo fosse apenas sonhado.

Nenhuma foto do marido, daquele Mão-de-Deus ou de outro qualquer. Por-

Page 78: Livro contos melhores 2014 edição final

78

Contos Melhores - 2014

que houve outro. Dono e senhor de seu casamento, num ano distante. No dia da cerimônia, aquele noivo felicitava-se de ser o legítimo proprietário da maior beleza do pequeno mundo que conhecia. Beleza tanta, a da noiva Leninha, que precisou fugir dela. A mão direita do Altíssimo que abençoou aquelas núpcias logo enviaria a irmã sinistra para amaldiçoá-las.

E a Providência proveu. Deixou primeiro crescer a prole e o jardim dos re-cém-casados, esperou o amor criar raízes para a tragédia ficar bonita. Quando a primogênita do casal já corria sobre dois pés, deu, a Providência, ideia ao ja-gunço Mão-de-Deus de se aposentar. Era este um reputado assassino de aluguel, temido pelos oito braços da rosa-dos-ventos. Naquele dia, bafejado pela reza de algum beato ou enfastiado do ofício de diabo, acordou o malfeitor com talentos para a honestidade e planejou-se uma cura: estava na hora de enferrujar a garru-cha e estabelecer família. Gostou da que viu naquela casa. Queria mulher bonita justa-mente como aquela. Deu-se a decisão. Se precisasse, faria o último serviço no marido, para fabricar a viúva. O Céu lhe perdoaria essa malvadeza temporã, pois era para a boa causa de deixar de vez a vida de facínora, corrigir-se para a hora da morte. Mandou recado, avisando o casal do seu projeto, com assinatura legível e incontestável, para afiançar o tremor e a obediência.

O delegado, muito amigo, acautelou o marido de que o sensato era raspar--se logo dali. Para não deixar a mulher viúva e facilitar ainda mais a empreitada do criminoso.

– A polícia já vem pegar esse Mão-de-Deus, já é muita queixa. O cabra logo vai ao xilindró ou ao campo-santo. É questão de tempo, homem.

– Mas tu não é a polícia, delegado?– Não pra essas coisas. Precisa de ordem de cima. O bandido é de respeito.Entendeu, o marido, que a lei também tinha seus melindres com bandido

bem armado. Quis ficar. Enfrentar o celerado recém-convertido. A mulher, po-rém, não acreditava em santidades de jagunço.

– Coragem é uma coisa. Mas o impossível não se enfrenta, homem!Implorou. Chorou. Rastejou. Pediu pelos pequenos.– Tu vai ser a nossa desgraça! Prefiro ser concubina a ser viúva com filho

órfão.Viu que Leninha não era só bonita de feição, mas também de alma. A mu-

-lher o amava. Isso deve ter convencido. E ele aceitou que ela lhe preparasse a trouxa com mudas de roupa e comida para chegar a distâncias boas de não a-

Page 79: Livro contos melhores 2014 edição final

79

Contos Melhores - 2014

-frontar tiros. Leninha mandaria avisar quando a casa estivesse livre de malfeitor.Tudo lhe pilhou este Mão-de-Deus: a mulher, os filhos; a terra e o trabalho,

a pequena horta de milho e feijão; a cadela perdigueira, pastora de cabra e galinha; a alegria de ser dono de sua liberdade. Foi preciso juntar bravura para ver os filhos que não eram mais dele. A menina Suvinha tinha um ano, pouco mais, o menino Quinquim recém-nascido, quando ele deixou de ser pai. Na cama, no sono, não pôde mirar-lhes os olhos na despedida. Saiu antes da aurora. Nem teve tempo de sentir o perfume do café bom de Leninha, que permaneceu no quarto, sabe-se lá se a suspirar ou chorar.

Ao fim de um mês de andança alucinada e sem prumo, o fugitivo achou Rosalinha e seu colo e seu modo leve de consolar heróis.

Então, Nardino pôde chorar. E, quando secaram as lágrimas e a vergonha, reergueu o reino e a prole. Primeiro, uma certa menina Belafrô e seu angélico rosto de amor-perfeito. Dois anos depois, um piloto-de-cabra Curitié. Mas esta era outra estória, coisa do passado, não vale remoê-la, para não dar de comer à dor.

Agora, sim, sabe os nomes de todos os filhos: Quinquim e Suvinha. Terá netos. E poderá batizá-los com nomes de flores e pássaros. E os ensinará a mon--tar cabras. Como fez com o filho. Numa infância longínqua. Quase nem lembra. Quinquim, o piloto de cabras. E Suvinha, que tremia só no bater dos cascos. Seus filhos, dele. Desde antes de os ver parir.

Quando enxuga os olhos, encontra os da mulher de preto, em pé e imóvel, na porta do quarto. Um sorriso ao meio fala como um convite. Ele, porém, não se mexe. Leninha se aproxima, toma-lhe a trouxa da mão. Abre-a. Guarda a rou-pa nas gavetas, enquanto ele se senta na cama que parece sua. A mulher tira-lhe as botas. Caem no chão pelotas de barro seco. A terra úmida de vida que o colava a outro solo se esfarela. O pó escorre e some nas brechas do assoalho.

– Vai se lavar. Vou servir o café.No fogão, o bule espera. Fumegante. Cheiroso.Como todos os dias.

*Paulo Sérgio Marques, 47 anos, professor – Sinop - MT.

Page 80: Livro contos melhores 2014 edição final

80

Contos Melhores - 2014

A Bovary do Largo da IdeiaCategoria nacional - 2.ª menção honrosa - Rodrigo Machado Freire – Goiânia - GO

A moça acreditava que o amor viria possante pelo asfalto, que andava atrás de luzes piscantes e estacionaria brevemente para alguns tragos em frente à casa de shows, que comia cachorro-quente na barraquinha, que o amor

tinha escapamento e andava atrás de coisas tão escandalosamente anunciadas, desesperadas por alegria, pernas de minissaia, ruge no tom certo, batom vermelho sangue, unhas muito bem pintadas... Ela acreditava em Um lugar chamado Notting Hill... e demais balelas que encantavam seus vinte anos! Ela que disse “Nothing Rill”, e riu o dono da locadora, riu porque era advogado, e sabia inglês, e não sabia que a moça vivia num bairro de esgoto a céu aberto. Era a verossimilhança distraí-da e desgraçada da história, que ao riso do doutor balconista não fez a menor falta desconhecê-la.

Ela estava na esquina imaginando que iriam arrancar dali. Iriam voar longe num futuro próximo. Uma praia, onde o oceano quebra poesias sem fim na areia. Paraísos novos a alguns litros de gasolina de distância? Com aquela espaçonave prateada e sua astúcia felina, parecia simples que parassem somente quando fos-se sonho.

Fora abduzida para um amplo gozo: “Vai para onde?” perguntou o futuro promissor. Ela quase lhe disse: “Para onde você for”; “Até você me deixar”; “Não tenho mais aonde ir!”; Quase também cantarolou: “Aonde tiver sol”. Mas, por fim, disse apenas a verdade enfadonha e encardida: “Largo da ideia”. Era perigoso... Era longe, esburacado e escuro. Tinha boca de fumo, suscitava emboscadas... Eles, desconhecidos. No entanto, o rapaz tinha o sexo latejando largo nas ideias. Ela era fabulosa. Ele pensava no timbre superior entre amigos, mil vitórias... “A transa no meio da estrada, no Moulin Rouge!”.

Ela fez jogo duro, tática. Era sua única moeda. Pudera! “Sem merenda, sem recreio!”. E que moeda! Era linda, a despeito dos poucos cuidados do tempo e do nome suburbano. “Uma belezura, meu lindo, que se fez sem pai nem mãe”, deu logo isto para ele mastigar naqueles minutinhos: “sem pai nem mãe” – por que an-dava a cata de piedade? Verdade é que esperava um resgate, merecia um resgate. Deixaria tudo para trás.

Page 81: Livro contos melhores 2014 edição final

81

Contos Melhores - 2014

Deu-lhe um beijo sob a única luz de um único poste na rua... e só. Abriu a porta do amor, desceu com as vísceras eufóricas e sumiu entre as paredes para sempre nos tijolos, no corredor estreito que entremeava os latidos. Morava nos fundos. Deixara apenas números para que o desejo do rapaz digitasse com dedos ligeiros.

Nos dias seguintes, cumpriu apenas clichês dos filmes que via, apenas essa postura adotada com tenacidade, qual com frieza remedava algo quente. Deixava tocar o coração várias vezes antes de atender. Rigorosa, estratégica, desapareceu das baladas, das noites, das intenções perigosas de outros afetos, imaginando-se moça digna de uma realeza, emulava como podia a indiferença de uma princesa com muitos pretendentes.

O tempo corre, segue-se o jogo. Ele passa todos os dias para pegá-la no salão, dentro daquela ternura prateada e brilhante. Ah, o amor! Ela fecha as pernas, as mantêm assim até que o laço o enforque. Não escorregaria no molhado... Usava decotes e saias de morder e assoprar. Nada muito ousado, tudo a parecer muito natural, sem propósito. Trabalhava enfeitada de espontaneidade, esperando que ele surgisse entre as clientes. Por dentro, escondia o enorme cansaço daquele papo de salão, de favela, de novela, de amantes, de madames... Era uma esquizofrenia!

Quem dera fosse “por fim”, mas casaram e a história não acabou aí. “Fe-lizes para sempre” era promessa que só tolos ouviriam, tanto que ela morava a apenas meia hora de antes.

“Então era isto?! Panelas sobre o fogão? Louças sujas na pia esperando suas mãos de quem lava?

Passeavam esporadicamente, tentavam driblar o tédio muito ajuizadamen-te, a 40 por hora, que era o que os radares permitiam. Isto é, quando para ele não bastava o bar da esquina e o Corinthians... Aí davam voltinhas e voltinhas para escoar ao mesmo destino, o mesmo lugar depois de um shopping, de um suco de laranja. Setenta metros quadrados emparedavam as expectativas.

– Bem, desce para abrir o portão! – ele disse.Os dois rangiam, ser chamada de “bem” e o portão. Todas as vezes ela tardava a descer do carro, descontente. Antes de sair, ela

namorava o painel do amor, tentando entender quanto restava de combustível. Era isto o amor? É o que ele podia fazer? Dar voltinhas e ser novamente encaixotado? Ah, que batalha não travava com seu resto de expectativa ao silêncio resignada. Dera mil cavalos de pau no começo, rugia feito louco, parecia que ganharia da vida

Page 82: Livro contos melhores 2014 edição final

82

Contos Melhores - 2014

num racha. Era isso o destino?! Abrir um portão de garagem? – Coca-cola!– O quê?– Vontade de beber coca-cola, amor! - ela se escondia, apenas para que o

amor desse mais uma volta por uma esmola de fatia da cidade.As outras casas também tinham garagem, todos os amores estavam lá

dentro por volta das 20 horas. Não eram feitos para algo novo, mas para um co-tidiano. Eram fabricados! Consumidores. Poluentes! Serventes das semanas com folga domingo sim, domingo não no parque, na Quinta da Boa Vista, “no quinto dos infernos” – ela dizia cheia de esperanças esquartejadas, baixinho para si mesma. Se reclamasse ele viraria sapo, ele devia adivinhar, mas parecia cego, entregue totalmente ao corpo. A sensação de poder com bolsos furados! Pois se o tempo de seu homem era roído atrás de mesas, tic-tacs... dentro de estaleiros, sobre resmas, atrás de balcões e vidros... Roído impiedosamente por quilos de batatas, torcido rí-gido como porcas em parafusos de aço, atarraxado em ser aquilo, segurança, esta-bilidade, estaticidade... Quaisquer dessas porcarias que também podemos chamar, com ares dignos, de “dever”. E o amor com seu inútil porta-malas imenso... Um porta-luvas... para esconder as digitais?! 200 cavalos conformadíssimos!

Seu destino de logo mais se adivinhava no itinerário, olhando da varanda: “ora as vizinhas carregavam crianças, ora bolsas de mercado na rua de cimento sob o sol, que, fosse decente além de necessário, entristeceria de iluminar aquelas tantas monotonias. Uma metrópole de tédios!

E o amor dava voltinhas. Não deixava nada para trás, respirava a própria po-eira que levantava. Asfixiava! Como ela não tinha reparado?! Em que sono estivera aprisionada outrora? Ela só conseguia ver da janela aqueles meses de abstinência por meia hora de distância da miséria de duas décadas.

Volta e meia, encontrava uma conhecida, uma antiga cliente... Fingia o “bom dia!”, os sorrisos pesadíssimos para não contar mazelas. Ora, se a própria dona do salão, onde trabalhara, morava na outra quadra!

Compreendeu que quanto mais fácil um homem vencia as distâncias, quan-to mais o transporte era eficiente, veloz, mais área abrangiam os limites da Des-graça, mais próxima estava a desdita e não havia fuga por que eles a pegariam antes que ela dobrasse uma esquina. Haveria, aonde quer que fosse, apenas ciclos semanais, menstruais... Dolorosos, sangrentos, sentimentais, em discordância com a indiferença do mundo!

Page 83: Livro contos melhores 2014 edição final

83

Contos Melhores - 2014

Desligava-se da novela em 40 polegadas que acompanhara outrora borran-do unhas e à custa de torcicolos. Não valia a pena ver de novo no meio daquelas almofadas fofinhas. Olhava o ponteiro grande do relógio de parede na sala, espe-rava ele dar meia volta.

Era aquilo! Meia-hora e uma geladeira de afazeres, panelas fartas, pisos grandes, paredes emboçadas e brancas, um mausoléu com direito à imagem bre-ga de uma Nossa Senhora ao lado da tevê... E a gravidez esperando um João... “Ninguém”, ela completava.

A moça não era de chorar, quanto mais de suicídio. Embora desprezasse a vida que levava, era fidelíssima ao tédio que a roia gradativamente. Ajeitou uma placa na fachada: “Manicure e pedicure a domicílio” e voltou com seu pequeno feto para a morte e seus afazeres domésticos.

*Rodrigo Machado Freire, 38 anos, professor – Goiânia - GO.

Page 84: Livro contos melhores 2014 edição final

84

Contos Melhores - 2014

A última vez que vi meu paiCategoria nacional - 5.ª menção honrosa - Henrique Bom, Nova Friburgo-RJ

N a verdade não posso dizer que conheci meu pai. Na última e quase primeira lembrança que dele guardo o vejo a cavalo a desaparecer por trás de uma colina em frente a casa em que nasci. Movia-se em direção ao povoado,

esperando - disse minha mãe - encontrar-se com o cortejo do dia do padroeiro. Ia empertigado, em seu melhor terno e com um botão de cobre no colarinho, que brilhou ainda por duas ou três vezes antes que dobrasse a vertente e eu não mais o visse para todo o sempre. Tinha seis anos e dele não tenho sequer um retrato amarelecido, somente a imagem sobre o cavalo que o veria morto e nada mais além da imaginação, dessa que carrego comigo ainda hoje.

No mais, é o que me contam. Foi encontrado embaixo de um cinamomo com uma bala nas costas e duas cavidades no lugar das órbitas, que lhe produzi-ram os corvos nos dois dias e duas noites em que esteve desaparecido. Também não cheguei a ver. Não que minha mãe ou meu avô se importassem. Acho mesmo que preferiam que eu visse para sentir em toda extensão, o desejo e mais que o desejo, a necessidade da vingança. Ocorre que preferi encolher-me em um peque-no catre, ao lado do fogão de barro, que recendia a farinha e charque. A casa era pequena, de pau-a-pique, de forma que por entre as frestas eu podia acompanhar um movimento estranho no terreiro, sobre o qual, por uma curiosidade distraída, por vezes lançava os olhos, mas ao lembrar-me do ocorrido, abaixava a cabeça, temeroso de que enfim, não houvesse como fugir àquela idéia opressa, desusada e original, de que meu pai - um homem de fato quase estranho para mim - estava morto.

Lembro só de minha mãe na porta, muito firme, mas já vestida de negro e da perspectiva em que eu estava, ela parecia maior no seu silêncio triste, recortada na luz do terreiro, as mãos magras a segurar um véu que utilizava aos domingos, mas era uma terça. Recusava-se a chorar, assim como o pai, meu avô, a seu lado sem tocá-la. Eu não sabia então, mas já debulhavam, no íntimo, o rosário da vingança, na qual meu pai fora uma das contas, arrastada por algum evento ime-morial, mas que levaria de rojo por sua vez a outras e outras, devorando gerações,

Page 85: Livro contos melhores 2014 edição final

85

Contos Melhores - 2014

como o repique de uma bola na mesa de bilhar, pode atingir, além do alvo, qualquer uma ao acaso.

De resto - soube depois - quase não foi possível encomendar o corpo, pelo muito que ficou ao relento, e minha mãe autorizou, com um gesto de cabeça, que fosse levado às pressas para o cemitério sem ao menos entrar na casa, e assim foi feito. Talvez por isso eu não me lembre de nada. Sei por ouvir, que minha tia, irmã de meu pai, recolheu da parede o seu retrato do casamento e minha mãe apenas observou calada. Indaguei minha mãe, aos quinze anos, por que deixou, por que a cordura naquela hora extrema? Ela respondeu: Se perdera o marido, o que valeria o retrato? E assim fiquei eu, sem uma chapa de meu pai, a errar por essa vida. O que me salvou era a imaginação. Eu identificava o gemido do vento por entre as telhas como o derradeiro lamento de meu pai malferido e no rechinar da cigarra, a música que vez por outra, ele tirava da concertina nos bailes. Tudo isso concebo, pois como o senhor sabe, não vi.

Minha tia, mais nova que minha mãe, no enterro foi quem chorou pelo ir-mão. De minha mãe, haviam secado as lágrimas por cada vez que ele aprontara o cavalo para seguir em frente, sem olhar para trás.

Por que conto tudo isso? Ora, o senhor vai saber. Mais um pouco de paci-ência é o que eu lhe peço.

Se é certo que talvez meu pai dera algum motivo ao matador, nós em prin-cípio nunca soubemos de nada. E se meu avô e minha mãe desconfiavam, não tinham certeza. É fato que meu pai fizera inimigos por este mundo, desde Catas Altas até Valparaíso, que Anésio, o domador de cavalos queria matá-lo por causa de uma partida de potros... mas não foi Anésio, que no dia estava do outro lado da fronteira, no ofício de contrabando. Como eu poderia saber? Eu não soube, era pequeno, o senhor conhece. Quase tudo que eu lhe conto é de segunda mão ou como estar em um sonho.

Mais um trago? Talvez o senhor careça, a história é longa e também a via-gem. E no fim, nunca se sabe onde vai dar. Penso que não se importe que eu conte. Afinal, é uma forma de desabafo.

Na verdade, por muito tempo não se soube quem foi. Ou melhor, ninguém da família, nem mesmo algum parente distante proferiu algum nome ou deu sen-tença. Era um silêncio esmerado, a espera de que o lodo assentasse e o assassino voltasse a circular sem pejo, enganado pelo remanso dos protestos. Tudo calcula-do, eu penso, no tento da vingança. No fundo, porém, todos conheciam o autor e aos poucos - enquanto eu crescia - as lacunas da história, como um tecido roto,

Page 86: Livro contos melhores 2014 edição final

86

Contos Melhores - 2014

foram se recompondo aos remendos, ano após ano, até que o caso teve princípio, meio e fim, e dilucidado estava, assim como eu hoje aqui estou.

Sim, foi minha mãe que insistiu, a medida em que eu tomava corpo. Meu avô morreu logo, apaixonado. Se dependesse de minha tia, meu caminho era outro; enquanto as outras crianças brincavam pela rua, enchendo o céu com o alarido de maritacas, ela me segurava em casa, com o livro de reza nas mãos. Queria me ensinar outro caminho por entre as sendas do mundo, no rumo da pedregosa trilha da salvação. Mas desgarrei da tia e do caminho custoso que me parecia cada vez mais longe, a medida em que eu crescia e dava conta e vazão em mim, de ambi-ções desconhecidas, do corpo e da alma.

Tanto fez minha mãe que acabei por prometer, mas não pensei em cumprir, até que o fardo fosse meu, crescendo esquisito, naquela estranha ausência de um pai que não conheci. Ela foi envelhecendo ficando assim cambaia em sua magreza, mas não houve dia sem que eu escutasse como em uma reza de outra natureza, aquela voz que, por derradeiro, não passava de um solilóquio inaudível, mas do qual sabia eu a tradução exata; ela queria apenas ter a certeza de que eu nos vingaria a todos, dando desta forma, vezo àquela silenciosa e arrastada viuvez. Alimentava--se disso e até mesmo quando seu corpo fraquejava e parecia desarticulado. Eu deveria procurar o assassino de meu pai, através da descrição que ela me fizera e o fizera tanto e tantas vezes, que a imagem do assassino - que eu nunca vira - era mais nítida em mim, do que a do meu pai, cujo afeto econômico nos seis anos em que nos conhecemos, não deixaria margem para dois ou três afagos, se tanto.

Sim, foi minha mãe que insistiu, embora não tivesse motivo para chorar o morto e até mesmo, ao contrário, agradecer o fardo que lhe caía por assim dizer - sem que ela nada fizesse para tal, sem culpas a lamentar - daqueles ombros magros e ossudos, que deixei para trás um dia, rumo à cidade e a uma vida de esquecer. E, por certo, esqueci.

Durante longo tempo essa vingança pairou dentro de mim como algo irreal, esmorecido, até que a morte de minha mãe me tirasse do rumo que tracei e não aguentasse a lembrança do olhar lançado por ela sobre meu opróbrio. Deus sabe, procurei em vão por outra sina, mas estou aqui para cumprir o destino, a minha urgência.

O senhor deve estar surpreso. Eu também estaria. Na verdade ainda estou, já que emprestei a minha vida, durante muitos anos, um trilho diferente. Por que falo assim meio empolado? Não era de meu natural. Eu estudei. Parti de minha casa, aquela onde nasci, aos quinze anos para trabalhar na cidade, fui sacristão e

Page 87: Livro contos melhores 2014 edição final

87

Contos Melhores - 2014

ajudei na missa, como aspirou minha tia. Depois cansei daquela sina e do padre, fui para São Paulo, onde fiquei até que uma espécie de vento me trouxe de volta.

Mas estou repetindo, desculpe. A essência é que saí de minha roça, deixei, antes dos quinze anos, aquela mesma casa na qual vi - mas não me lembro de todo - meu pai ser trazido em uma espécie de rede com dois varões e ser deixado no terreiro, como alguém que dormia, salvo por um dos pés com a bota e o outro descalço. Fui trabalhar bem longe e calhou que eu estudasse um pouco. Aprendi as contas de somar e dividir e umas palavras que não se usam por aqui. No mais, acho que sou quase o mesmo que partiu e voltou por vergonha, com a urgência de ainda não ter cumprido a promessa para com sua mãe. Por isso regressei então a esse pedaço que me cabia no mundo e nessa história.

Como cheguei até aqui? Não foi difícil. Ninguém me conhece, não sabia a tenção ou o procedimento. Consumi alguns dias em tropeadas e na quietação da noite dormia em qualquer pago, em alguma casa vazia ou debaixo do céu. Indaguei a um e outro, assim como quem não tem proveito na resposta. Por fim perguntei a um tropeiro de nome Abúndio, que era surdo, mas apontou-me o caminho quando escrevi o nome com um graveto, na areia da estrada. Mais um dia de marcha e cheguei à encruzilhada. Eu não atinava o rumo sem vivalma. Deixei pra Deus deci-dir. Se de um lado meu destino era outro e eu não topava com o assassino de meu pai, voltava manso sobre meus passos, mas se fora de justiça... arrisquei.

Mas de minha parte, não trago qualquer ódio. Como eu disse, meu pai era um estranho que sequer um dia pousou as mãos sobre minha cabeça. Mas o senhor compreende, pois também se vingou em meu pai, de alguma afronta que não era sua, ou era, vá saber. Eu queria lhe dizer isso antes de matá-lo. Não é pessoal - já vi essa fala em uma fita na cidade. Eu não pensava em vingança. Tinha até esquecido, mas de uns meses para cá, dei para sonhar com o finado e com minha mãe, que não tive paz. Larguei o emprego, deixei São Paulo, voltei a montar e procurei.

E por isso estou aqui e preciso vingá-lo, ou a alma de meu pai não terá descanso e eu tampouco, em meus sonhos. Lamento apenas encontrá-lo assim, tão solitário. Dá pena matar alguém que já parece morto. Preferia que arrostasse um pouco, mas o que se há de fazer? A vida é como é.

*Henrique José da Silva Bom, 62 anos, nasceu em Nova Friburgo-RJ. É médico e exerce a especialidade de psiquiatria. Romancista e contista, obteve, com seus trabalhos, várias premiações literárias.

Page 88: Livro contos melhores 2014 edição final

Parte 3 Contos melhores

internacionais

Page 89: Livro contos melhores 2014 edição final

89

Contos Melhores - 2014

Ricochete - A menina que atirava pedrinhas ao rio

Categoria internacional - 1.º colocada - Mônica Barroso Reis Simão, Fundão, Portugal*

E la passava a vida a atirar pedrinhas ovais e brilhantes para o rio. Estas relu-ziam quando expostas ao sol, se cobertas por beijos frescos dados pela água. Ela, com os seus cabelos loiros que absorviam a luz do sol, passava a vida

a atirar pedrinhas para o rio. Algumas caiam perto dela, outras eram engolidas pelo caudal, sem nada mais para as relembrarem a não ser os círculos de bordas brilhantes, que fugazmente se formavam quando as mesmas batiam e saltitavam na superfície da água.

Ela vivia feliz, embalada pelo vestido leve e de algodão que usava no corpo pequeno e mimoso de menina. Conhecia o toque dourado e morno do sol nas suas costas, as carícias frias e brandas do rio nas suas mãos. O restolhar do vento e do curso de água impregnara-se-lhe na memória, como uma música constante, que, mesmo quando não está presente, internamente a mente teima em reproduzir.

Era graciosamente inocente, no seu estado de meninice, e ignorantemente feliz. Do exterior, pouco ou nada conhecia, e isso não a incomodava.Vivia alegre com o seu bastante, que era bastante pouco aos olhos de es-

tranhos, mas suficiente para ela. No entanto, um dia conheceu sons novos, e um diferente manto caiu sobre ela.Primeiro, ouviu o ruído de sapatos a judiar o cascalho. Depois, sentiu na pele

nua das costas outro toque abstrato que não o da luz do sol. Era a sombra do dono dos sapatos que trincavam o cascalho.

A menina olhou para baixo e viu botas negras com biqueiras gastas. Subiu o olhar pelas calças do homem, pela camisa e casaco, por fim deu com a face dele, escura por este se encontrar em contra luz. Uma cara de adulto.

A rapariguinha iria pedir-lhe, delicadamente, para ele se desviar um bocado, pois o homem estava a tapar-lhe o sol. Havia tanta luz solar que decerto o senhor não se importaria de se mover alguns centímetros, afinal, ela chegara àquele sítio

Page 90: Livro contos melhores 2014 edição final

90

Contos Melhores - 2014

primeiro. Mas, antes que a garota lhe pudesse pedir algo, ele falou. O que estás a fazer?, perguntou-lhe, com a sua voz de adulto.

E ela respondeu-lhe que estava a atirar pedrinhas ao rio, que tentava que elas cavalgassem o mais longe possível sobre este. Respondeu-lhe que apanhava sol e ouvia canções do vento e da corrente.

O homem fez uma cara muito desagradável. Franziu as sobrancelhas, tor-ceu os lábios e cruzou os braços. A menina sacudiu levemente os ombros e esticou os joelhos, outrora fletidos, para se descobrir da sombra do indivíduo. Pegou em dois seixos polidos, um salmão e outro verde, e observou-os à luz do sol, com olhos curiosos e inocentes.

Isso não é vida para ninguém, acusou o homem, dando dois passos para o lado, obscurecendo a pequena, de novo, com a sua sombra. Daqui a poucos dias, máquinas virão a este lugar; não deves continuar por aqui, rapariga.

Ela ergueu os olhos para o homem, e pensou como ele era egoísta. Levan-tou-se e sacudiu o vestido branco. Fletiu levemente os joelhos, posicionou o corpo lateralmente virado para o rio, descreveu um arco rápido com o braço e, pleck, pleck, plock, atirou uma pedra pequena e oval, que saltou três vezes na água antes de se afundar.

Se quer aprender a atirar pedras não precisa de por aqui máquinas. Eu posso ensinar-lhe, ofereceu. No entanto o homem pareceu não gostar da oferta, resmungou algo e foi embora.

Três dias se passaram desde o acontecimento, e, como o adulto lhe havia dito, máquinas invadiram o local, bem como sons barulhentos e ameaçadores. No entanto, a menina continuava sentada à beira do rio, a brincar com pedrinhas coloridas e molhadas, a absorver os raios de sol nos cabelos.

Ouviu novamente o som de botas a pisarem o cascalho e ergueu os olhos. O que estás a fazer, menina?, perguntou-lhe o homem. Ela ergueu as so-

brancelhas levemente, com travos de uma petulância infantil, que lhe dava um ar de graça. Era óbvio que estava a atirar pedrinhas planas ao rio, em busca de que o próximo seixo ricocheteasse mais vezes sobre a superfície da água e fosse mais longe que o anterior; era claro que ela estava a apanhar sol, mas ele parecia não perceber isso.

Talvez o homem não fosse tão inteligente quanto ela, então a menina fez o favor de expor os seus pensamentos oralmente, para que o das botas percebesse.

Ele não deve ter compreendido o que ela proferiu, pois, como resposta,

Page 91: Livro contos melhores 2014 edição final

91

Contos Melhores - 2014

repetiu o que lhe dissera há dias, que aquilo não era vida para ela, e que não devia continuar por ali. Nos próximos dias estas máquinas vão começar a erguer edifí-cios, disse o senhor, com um tom pouco simpático.

A menina, por sua vez, perguntou-lhe de novo se queria que lhe ensinasse a atirar pedrinhas ao rio, de forma a que estas fizessem ricochete no mesmo. Quando estava de mau humor, fazer isso punha-a feliz, e aquele homem parecia bastante mal humorado.

Como resposta, ele destruiu a pirâmide de pedras, que reluziam contra o chão, que ela havia construído. Deu uma sapatada ao minúsculo edifício, brilhante pelo sol, e rolaram os calhaus corrente abaixo.

Depois disso, o homem foi-se embora, e a menina quase chorou. (Mas não chorou).

Uma semana passou, e os edifícios eram erguidos em volta do rio. No meio do barulho das máquinas, gigantes esqueletos quadrados, de aço e cimento, impe-diam a luz do sol de iluminar os metros de terra, decorados de pedras chatas, em que a menina gostava de se sentar e brincar.

Plock. Não se ouvia mais a canção do vento e do correr da água, e os braços

dourados do sol já não alcançavam grande parte do solo que flanqueava o rio, mas pelo menos ainda existiam pedras para atirar ao rio, e rio para onde atirar pedras.

O loiro dos cabelos da menina, sem o zelo da grande estrela, parecia ter perdido parte do brilho.

Desta vez, ouvir o som das botas a calcar o cascalho foi quase uma proeza, no meio de tanto ruído. Eles diziam que estavam a construir coisas, mas aos olhos e ouvidos da menina, estavam a destruir o pouco que ela conhecia.

Plock.Estou a atirar pedras ao rio. Replicou a menina, quando o homem lhe per-

guntou o que fazia. Contudo, não fazia por estas ricochetearem na superfície da água; atirava-as sem entusiasmo. Estava mais frio que o habitual.

Olhou o homem com olhos de ver. Agora ele já não estava em contra luz, por razões óbvias. A mesma luminosidade — ou a ausência dela — presente no espaço banhava-os aos dois na mesma medida. Claramente, ele tinha uma cara de adulto.

Ainda a fazer essa coisa tola? Sai daqui, menina. Daqui a umas semanas já não vai haver rio. Pegou numa pedra aleatória e atirou-a para dentro do caudal.

Page 92: Livro contos melhores 2014 edição final

92

Contos Melhores - 2014

Ouviu-se um plock. Aconselhava-te a levar algumas pedras para casa como recor-dação.

Ela não queria saber dos conselhos do homem. Ele não sabia que as pedras, quando não estavam molhadas, não possuíam metade da beleza que agora tinham. Ele nem ao menos sabia fazer com que as mesmas fizessem ricochete na água e soluçassem sobre esta.

A menina tinha a pele dos braços arrepiada pelo frio e pela notícia. Daqui a umas semanas já não vai haver rio. Tiraram-lhe o sol, privaram-na de escutar a voz do vento e a canção da corrente, e agora nem rio nem pedras iria ter.

O corpo tremeu quando ela espirrou. Limpou o nariz avermelhado com a mão, enquanto olhava para o homem de viés, com olhos chorosos.

Ela queria protestar, mas um soluço sufocava-lhe a garganta; se esvoaças-se transformar-se-ia em lágrimas.

O homem emitiu um som gutural, enfastiado. Ouviu-se o restolhar de tecido a roçar em tecido, quando ele despiu o casaco formal preto. Cobriu a pequena com ele, sem grandes gentilezas ou carinho; ela parecia uma coisinha minúscula, obscurecida pela peça preta.

Vai para casa, menina, disse ele. Vai para casa, senão adoeces. Vai e não voltes tão cedo.

Ela foi, e tão cedo não voltou. Correu até casa, com o casaco do homem sobre os ombros, a bruxulear atrás de si. O soluço que lhe sufocava a garganta esvoaçou, e ela sentiu-o morno, a traçar-lhe as bochechas rosadas.

Passaram-se vinte anos, até ela regressar ao local. De fato, já não existia rio, onde antes existia rio. Em vez disso, um hotel

cinco estrelas fora erigido no terreno. As antigas pedras do antigo flume foram tritu-radas e agora juntavam-se a outras tantas, industrializadas; atapetavam e demar-cavam um caminho que ia desde o grande portão, que delimitava espaço público de privado, até às portas de entrada, propriamente ditas, do hotel.

Ao deparar-se com aquela visão, a mulher rodou nos calcanhares, os seus sapatos fizeram um barulho estaladiço contra o solo grumoso. Entrou no próprio carro e fechou a porta com um tunque surdo.

O menino ergueu o olhar, quando ouviu o som do motor de um carro invadir o espaço verde. Estava agachado, de frente para o ribeirinho de água translúcida e

Page 93: Livro contos melhores 2014 edição final

93

Contos Melhores - 2014

corrente. As calças estavam sujas com nódoas verdes, na parte dos joelhos, mas ele sustentava nos lábios um sorriso teimoso e nas mãos segurava pedras peque-nas, redondas e lisas, que retirou de um montinho que ele próprio havia juntado, sobre a relva lisa.

A mulher aproximou-se dele e tapou-o com a sombra do seu corpo. Usava sapatos de salto, que ruminavam a erva macia do solo.

O que estás a fazer?, Perguntou ela, que vestia um casaco preto, com um corte direito. O menino pensou que era parecido ao casaco com que o pai saia todos os dias do trabalho.

Estou a atirar pedras ao rio, respondeu, apontando para o montículo de pedras ao seu lado, mas a minha mãe diz que ando só a sujar calças.

A mulher teve vontade de dar um pontapé ao montinho de pedras. Aquilo era uma perda de tempo.

Queres-me ver a atirar pedras? Estou a tentar com que deem muitos sal-tos!, disse o rapaz, entusiasmado. Ela queria responder que não queria ver nada, mas ele atirou a pedra ao ribeiro à mesma.

Plock, afundou-se.Na verdade ainda não consegui fazer com que saltassem mais que uma vez.

Acho que as pedras estão estragadas, comentou o atirador de pedras, seriamente. A mulher achou graça, e um botão de sorriso desflorava-lhe dos lábios.

Mas dizem que querem destruir o ribeiro, e construir outra coisa qualquer aqui, levantou os olhos castanhos para a mulher de cabelo loiro, pessoas com casacos parecido a esse.

Então a mulher despiu o casaco, a sentir-se envergonhada, e sentiu o sol nas costas. Tirou os sapatos com os pés e baixou-se até ficar ao nível do rapaz. Sentiu a erva fresca e as pedras sob e entre os dedos.

Eu ensino-te a atirar pedras, de forma a que elas façam ricochete na água. Ofereceu.

Agarrou numa pedra lisa e oval, posicionou o corpo de lado para o ribeiro, com as pernas ligeiramente afastadas, como fazia em criança; fletiu levemente os joelhos, descreveu um arco rápido com o braço e…pleck, pleck, pleck, plock. A pedra saltitou três vezes, e o rapazinho bateu palmas, feliz.

Anunciou que queria tentar, e a mulher ajudou-o na postura. Quando atirou a pedrita, com a mão dela sobre a sua, esta saltou duas vezes sobre a água.

Ambos sorriam, e o sol acariciava-lhes o cabelo.

Page 94: Livro contos melhores 2014 edição final

94

Contos Melhores - 2014

Consegui fazer isto, antes que destruíssem o ribeiro!, festejou o menino.A mulher apoiou a face na mão, sentada na relva. Olhou para o rapaz com

olhos de esperança e afagou-lhe o cabelo, e sorriu como uma criança. Não vou deixar que destruam o ribeiro. Decidiu, independentemente das

pessoas que teria de juntar, das cartas que teria de escrever, das reuniões que teria de agendar. Não vou. Não vou.

A sério? Perguntou ele. E ela respondeu que sim, que já tinha sido criança, e que sabia como aquele ribeiro era importante.

O sorriso do rapaz esticou-se de orelha em orelha, confessou à mulher que o cabelo dela se parecia com o sol.

Ela gargalhou, esticou os braços e deitou-se sobre a relva, com os olhos fechados.

Conhecia o toque dourado e morno do sol nas suas costas, as carícias frias e brandas do rio nas suas mãos, e a melodia do correr da água nos ouvidos. Era fe-liz com aquele bastante, e não iria permitir que o destruíssem. Não iria permitir que a destruíssem. Nem que destruíssem os sonhos do menino que lhe sorria. Jamais.

*Mônica Barroso Reis Simão, 19 anos, estudante, Fundão, Portugal.

Page 95: Livro contos melhores 2014 edição final

95

Contos Melhores - 2014

O giz na estradaCategoria internacional - 2.º colocado - Jorge José Pires Figueiredo, Alverca, Portugal*

E ra na primavera que os miúdos ocupavam a estrada. Cada brincadeira tinha a sua época. As que faziam na estrada eram, como que marcados no calendá-rio, nos dias magníficos de Abril a Junho em que já quase não chovia e o sol

ficava ameno. De inverno não dava, pelas vestimentas mais pesadas que usavam e os ralhos das mães por a sujarem mais do que seria usual, difíceis de enxugar dependuradas em cordas em alpendres sem sol. De verão era impossível, que o asfalto era um colector de calor que ficava a reverberar muito para além de o sol se pôr. No Outono era a novidade do recomeço da escola, que trazia saudades dos jogos de pião, de berlinde, das correrias, que os fazia esquecê-la.

A estrada era antiga, o asfalto era novo. Os pais e os velhos lembravam-se, sem esforço, do piso de macadame e do sítio exato onde estiveram os maiores buracos, e de cada buraco uma história. Muitos trabalharam no asfaltamento da estrada, até uns dez ou quinze quilômetros para cada lado da aldeia. Antes e de-pois deles, conforme progrediam os trabalhos, outros homens das aldeias que a estrada ligava, trabalharam nela também. Aspergiram alcatrão líquido, aquecido em carrinhos como se fossem locomotivas pequenas. Sobre essa camada negra lançavam gravilha, depois mais alcatrão, por fim areia, espalhada com a arte de quem semeia o centeio, usando a pá em vez da mão. Passava, por fim, o pesado cilindro de enormes rodas de ferro. E se, nos verões seguintes, o calor liquidificava de novo o alcatrão e o trazia, pegajoso, à superfície, o cantoneiro que palmilhava quilômetros, ao longo do seu lanço de estrada, corrigia, deitando-lhe por cima mais areia. Era bom que a miudagem soubesse, diziam os mais velhos, era bom sabe-rem que a vida nem sempre fora fácil assim, com uma estrada alcatroada onde se podia riscar bonecada.

Naquele pedaço de estrada havia um talude onde alguém plantara roseiras de rosas de toucar, coisa brava como silvas para se dar em terreno tão mau, que em Maio davam cachos de rosinhas em variedades de cor, do quase-branco ao quase-vermelho, como se Deus, ao compor as cores misturasse as cores, branca

Page 96: Livro contos melhores 2014 edição final

96

Contos Melhores - 2014

e vermelha, originais e se esquecesse de as preservar, de as considerar para dar tons às rosas que criara. A meia encosta do talude, numa clareira das roseiras que deixava à vista argila vermelha, assomavam amarelentas, verticais como lombadas em estante, lascas finas de argila xistosa. Uma gizeira. Era uma palavra inventada, lógica, que associava o giz e o quadro preto da escola, aos estratos macios e à superfície alcatroada da estrada. Os mais velhos inventavam instrumentos, paus de azinho, chaves de abrir latas de conserva, pregos de solho, para arrancar lâminas desse giz. Esforçavam-se por conseguir pequenas peças de uma cor só, que podia ser o branco impoluto, o amarelo escuro, a cor de ferrugem ou um magnífico lilás, que valiam o reconhecimento do valor de mineral raro. As outras, onde se mistu-ravam cores diversas como na pele de um gato de muitos cruzamentos, deitavam--nas fora. E eram essas que os mais miúdos, aqueles que ainda nem sequer co-nheciam o giz da escola, aproveitavam, numa segunda escolha, na aprendizagem do valor das coisas a partir do significado que se lhe queira atribuir. E o pequeno Júlio, ou Julinho, que ainda há bem pouco abandonara a proteção da casa para ser entregue à proteção colectiva da rua, era o fim da cadeia dessa percepção, “toma, esta é boa para t”, diziam-lhe quando lhe davam uma peça sofrível.

Com o giz da gizeira riscava-se a estrada. Nessa altura ainda se podia brin-car na estrada sem o perigo de ser atropelado, sem o ralho de sobreaviso feito pelos pais e pelos velhos. Havia um silêncio que fazia parte da vida, como o ar, a luz do sol de dia, a quase escuridão à noite, das noites sem luar. Havia no ar uma disponibilidade virgem para as vibrações das ondas sonoras, pelo que qualquer latido de cão, mugido de vaca, malho de ferreiro, ou o sino no campanário a dar dolentes pancadas das horas, se propagavam numa diluição suave e demorada, deixando como que um rasto, um vestígio que ficava a vibrar cada vez mais ténue no ouvido. Assim, quando um dos raros carros se aproximava, ouvia-se bem ao longe no seu arfar de bater de válvulas. O primeiro que o ouvia gritava “Automóvel! Automóvel... e era acompanhado pelos outros. E todos se afastavam para o deixar passar. Se o carro era diferente, fora do preto habitual ou mais imponente pelo tamanho ou brilho, os miúdos batiam palmas quando passava. Julinho não sabia ainda distingui-los, quando mereciam aplausos, mas seguia os outros, obediente-mente, aprendendo depressa que eram também os mais velhos que marcavam o momento de acabar o festejo.

Conforme avançava a primavera, retardavam a hora da brincadeira na es-trada e, já próximo do verão, apenas iam depois de o sol se pôr, com o asfalto a

Page 97: Livro contos melhores 2014 edição final

97

Contos Melhores - 2014

emanar cheiros a alcatrão e sopros suaves de calor. Reavivavam desenhos sumi-dos pelos rodados de carros e caminhões, raros, e pela passagem frequente de pessoas ou animais de carga. As meninas riscavam campos de jogo da macaca ou da raiola. Os rapazes traçavam pistas serpenteantes para serem percorridas pelos mais hábeis no manejo do arco e gancheta. E ao longo dessa pista, como se fosse o modelo da estrada onde de facto brincavam, os mais pequenos, meninos e meninas, repudiados dos jogos dos mais velhos, imaginando imitar o mundo que conheciam, desenhavam casas e árvores e crianças desenhando, e, dentro da es-trada, outra estrada, que cada vez que se miniaturizava crescia a ilusão da verdade que tentavam figurar.

Aqui o vieram buscar num dia soalheiro, de um tempo de quase verão que aquecia demasiado o asfalto antecipando já o fim da época das brincadeiras na es-trada. Julinho sentiu ser agarrado por debaixo dos braços e elevado à altura de um colo de adulto. “Vem”, disse-me a voz que imediatamente reconheceu ser de uma vizinha, mesmo antes de ela o virar para si e o aconchegar ao colo, fazendo-lhe festas no cabelo e no rosto, numa ternura inabitual. Levou-o para casa, aninhado entre colo e braços, protegido como se fosse uma criança de dois anos.

Entrou assim com ele no quarto, perante a cama onde o pai de olhar imóvel como se fitasse as tábuas do sobrado do sótão que lhe faziam de teto. Julinho, ainda aconchegado no colo da vizinha, fitou também as tábuas, iguais às do seu quarto, onde tentava descobrir representações de figuras nos veios e nós do pinho, quando, na obrigatoriedade da sesta, ficava acordado na cama. Não descobriu nada. A vizinha alterou-lhe a posição e olhou para o rosto do pai. Não mostrava qualquer ânimo. Embaciado como as cinzas da lareira apagada, aparentava a cor de uma maçã mal madura, numa mistura de veios vermelhos, sobre grandes zonas de um verde próximo da cor da cera. E uma barba de alguns dias dava-lhe ao rosto emagrecido o ar abandonado dos velhos pobres e errantes que ocasionalmente passavam na estrada de saco de serapilheira ao ombro e de bordão de cana gros-sa, pedindo às portas das casas abastadas um prato de sopa e uma fatia de pão. Não, na altura Julinho não saberia dizer como era o rosto do pai, apenas sentia que alguma coisa estava mal. Pressentiu-o, num leve estremecimento que ninguém terá notado.

“Olha o menino! Está aqui o menino!”, diziam ao doente, talvez na esperan-ça de que a presença do filho fosse o lenitivo milagroso que desse tônus a tanta apatia. “Beija o pai” e reclinavam-no sobre o rosto macilento com o seu corpito a

Page 98: Livro contos melhores 2014 edição final

98

Contos Melhores - 2014

pairar sobre a cama segurado pelos braços de duas vizinhas, desajeitadamente como se fosse um pássaro no seu primeiro voo. Julinho formava de longe um beijo, e conseguiu pousar os lábios de supetão na fronte escaldante do pai.

Depois disso, as mulheres deixaram-no livre, como que esquecidas dele por já não ter utilidade próxima. Mas ele sabia que tendo sido tirado da estrada não lhe era permitido voltar para lá, não porque lhe tivessem recomendado, mas porque ele, naquela intuição própria das crianças que lhes dá a percepção da vida mais a partir dos afetos que das palavras, se sentia confinado à casa como se pudessem vir a querer repetir aquela desajeitada cerimônia de beijar o pai. Ficou deambu-lando entre o quarto onde as mulheres balbuciavam em surdina palavras que não conseguia ouvir e o quintal onde três homens pareciam esperar pacientemente por qualquer coisa, enquanto iam fazendo cigarros a partir de uma onça. Fumavam e trocavam algumas palavras, poucas, sobre desgraças antigas. Voltavam a fazer cigarros, um cedia o livro de mortalhas, outro a onça, como se fossem rodadas de copos de vinho que na taberna cabia a cada um pagar por sua vez.

No quarto, a mãe de Julinho refrescava panos de algodão na água de uma bacia de ferro esmaltado e colocava-os, meio espremidos, na testa do doente. E depois de aquecidos pela febre, repetia o ciclo, mergulhando-os de novo na água da bacia. Com regularidade, marcada pelo consenso das mulheres mais velhas que, metendo o dedo na água, concluíam que já não estaria fresca, outra mulher ia despejar a água ao quintal para verter-lhe de novo a água fresca de um cântaro de barro. “Como está ele?”, perguntou-lhe um dos homens. Ela encolheu os ombros, apertou fortemente os lábios e acenou dois nãos sem dizer palavra e regressou ao quarto. E o homem que a interrogou olhou para os outros, puxou uma fumaça fun-da, mais pensativo, e lentamente libertou de dentro dos pulmões aquela baforada ácida do tabaco de onça, sacudiu o cigarro e como se procurasse as palavras disse uma frase áspera mas insignificante para ouvidos de Julinho: “É tramada esta coisa das sezões”.

*Jorge José Pires Figueiredo, Alverca, Portugal.

Page 99: Livro contos melhores 2014 edição final

99

Contos Melhores - 2014

A campanha do leiteCategoria internacional - 3.º colocada - Fátima Bica, Mira, Portugal*

N aquele tempo, a gente tinha que se alabantar e estar no Casal da Avença co leite à volta da uma hora da manhã, uma hora, duas, ali naquele intervalo é que o ti Manel Zé recebia o leite porque ópois tinha ele que votar a vaca ao

carro e ir levar o leite a Candeias, só lá adiante é que havia uma estrada onde o ca-mião passava, e quem lá estava estava e quem não estava ficava, Tinha vezes que as pessoas diziam-lhe assim, Oh home, não vá assim a chover, deixe arramar, inda é pior ca vida de moleiro,_ Havia ali muntos moleiros_, Ele deu em troco assim, Vida de moleiro, não, porque vocês se quiserem param o moinho e ópois quando o tempinho der votam-no a moer outra vez, mas este produto não pode esperar…, se eu lá estiver, estou, se não estiver, o camião vai à dele e adeus amigo,

Ora aqui o povo era munto, tudo comprou, tudo trocou de gado e tratámos co ti Andorinho, _olha o ti Alberto Andorinho está munto mal, está munto malzi-nho_ ele alabantaba-se adiantado uma hora e tocava o búzio no meio do quintal e a gente sabía que era pra se alabantar e tirar o leite e depois de tirarmos o leite reuniamo-nos todos na casa dele e íamos por aí fora num rancho pela Mata dos Medos virados ao Casal da Avença,

Uma ocasião, o que é que aconteceu à pobre da Florzita?, Eu sempre aza-rada, sempre co azar, ou adiante, ou atrás, ou ao meio, A minha mãe, que dormia ao canto do borralho em cima de palha de centeio, com uma mantita aos pés e uma fogueira feita, vai assim, Oh Florzita! mal eu me tinha deitado, Eu era danada pra fazer renda, ora vir àquela hora que eu vi, não sei que horas eram porque não ti-nhamos relógio, mas foi no fim de fazer as voltas todas, tirar o leite à vaca, e ópois acomerar o gado, e ópois comer, e inda fazer renda_Tenho aí uma toalha, está rota, mas ainda está aí uma desse tempo, porque a minha mãe, o que eu tinha feito até então mandou tudo na urna ao pobre do filhinho, Eu tinha lençóis bordados por mim que se podiam ver, mas ela, mais um, mais um, ai mais um, pronto, foram… eu já não me alembra quantos tinha, mas tinha munta coisita já feita, era a ideia dela, era pra ele ir melhor, era prós pezinhos irem melhor, era prás mãozinhas irem melhor,

Page 100: Livro contos melhores 2014 edição final

100

Contos Melhores - 2014

era pró pescocinho ir mais direitinho, e era pra…, e era, e era, e era sempre até lho tirarem, Foi um caso munto séiro pra lho tirarem, o filhinho dela que morreu tísico na flor da idade_ Já perdi o fio à meada, Bem, a minha mãe não tinha cama com medo de eu perder o leite e foi atão assim, Eh, Florzita, Ai, inda agora me deitei, pensei, mas como eu sempre custei a adormecer, esse mal de dormir bem de nascença, lá me alabantei e lá agarrei no banquito e no baldito e no pano e fui pró curral, Eu era munto habilidosa e munto limpa e munto cuidadosa, e a minha mãe, que tinha nomeada pelo que vendia, não entregava a volta do leite aos meus ir-mãos, A gente sabe como é, eram zagalotes e só lhe apetecia fazer mal, Eram como os da idade deles, Olha que eu vi co estes dois que a terra há-de comer muito rapazito do nosso rancho tropeçar e ‘spejar leite e ópois ir acabar de encher o lato à ribeira da Avença, Mas a minha mãe não queria isto na casa dela por nada deste mundo, era uma mulher munto séira, O que é certo é que quando abri a porta do curral, a vaca até estremeceu, coitada, devia estar no primeiro sono, En-rego atão a tirar o leite, mas qual quê, tanto valia puxar como estar a cantar, nada, E porquê?, Ora, se eu cheguei ao Casal da Avença por volta das onze, onze e meia, não tinha passado tempo nenhum desde a tiragem antes da ceia até esta depois da minha mãe me chamar, Eu se me calo caladinha, lá está, se me calo caladinha e me voto a andar, mas não há coisa como eu dizer a verdade, Vim por ali fora e vou assim, Oh mãe, que horas sarão?, Ah filha, não sei, sei que o ti Andorinho já tocou o búzio, _Não tinha nada, ela é que tinha sonhado…_, Atão mas a vaca não me deu leite nenhum, Isso foste tu que o ‘spejaste, E puca!, inda agora se alabanta e agarra no cajado pra me açoigar… Deus lhe perdoe, Sim, porque ela dormia sem-pre com um cajado ao comprido co ela, Uma mulher sozinha co home pró Brasil naquele fim de mundo tinha que se defender, a ela e aos filhos, Mãe, vomecê tem que estar enganada nas horas, a vaca não me deu leite nenhum, gritava eu, en-quanto fugia ao cajado, Mas ela não confiava em ninguém, nem na própria sombra, era o mal dela, A gente tem que confiar em quem tem, é ou não é?, Mas qual quê!, E esse é também o defeito do Manel Flustrias, não confia na mulher e faz a vida negra à pobre da cachopa que é uma amargurada, isto é uma acomparação, Ele tem muita intendência nossa, inda é nosso primo, pronto, só que a gente tem ou-tros instintos e ele é mais mau, é mais e mais e mais em tudo, até em mazura, anda a apanhar lenha pra se aquecer, mas ele que se alembre que tem lá uma filha e um dia pode arranjar um como ele ou inda pior e cai a nódia na camisa mais limpa, Lá mudei eu de mim outra vez pra falar em quem não interessa, Ora estava eu atão, A

Page 101: Livro contos melhores 2014 edição final

101

Contos Melhores - 2014

minha mãe veio a si e disse, Pronto, mulher, vai lá co esse, vai lá co esse, e toma cuidado pra não ‘spejares o resto, Eu vou atão por ali fora, o carreirito era por ali, e quando cheguei à casa da ti Delfina Torta fui assim na janela do quarto, Eh ti Delfi-na, ti Delfina, mas ninguém falou, _estavam a dormir a sono solto_, Ninguém falou, convenci-me que era realmente tarde e que já tinha ido tudo, e pus-me ao caminho sozinha na esperança de os alcançar, Olhai, uma cachopita de doze anos a atraves-sar aquele caminho da Mata dos Medos sozinha aquela hora!, Sujeita a topar com alguma bruxa ou algum lobisomem ou até ca quadrilha do Zézão, Nem quero que me alembre que até se me carda o corpo todo, Como se tudo isto não bastasse, ia derreada com trinta e tal litros de leite à cabeça, Ele era o leite da tiragem do meio dia, ele era o da tiragem da noite e ele era aquele meio litrito da última tiragem, Quero eu dizer atão que atravessei a Mata dos Medos sozinha mais Deus, mas sempre a falar, E porquê?, Porque fazia um luarzinho como de dia e qualquer pi-nheiro, qualquer tojeiro, qualquer moita me fingia gente adiante de mim, Eh pá, mas não esperarem por mim, Eh ti Loureiro, não faça isso, Atão eu não estou bem a conhecer o seu passo, Eh ti Maria, com um raio, hoje ninguém fala, Passei a Mata dos Medos sem me custar nada, sem me custar nadinha, O pior foi quando eu cheguei à estradita do Casal da Avença, ali a par ca terra que é hoje do ti Cadeiras, e nem gente de Semedo, nem gente das Cantadas, nem gente de Miranda, nem uma luz acesa, nem nada, Aí é que eu tive medo, Atão afinal ele não é nada tarde, ele é é cedo demais, E pus-me a gritar aqui d’el rei, Ai agora, ai e agora, o que é que eu faço se aparecer algum malfeitor, E quando chegarem as das Cantarinhas, o que vão pensar, Ai se me vêem aqui sozinha à porta do ti Manel Zé estou desgra-çada_ O Manel Zé, o que recebia o leite, tinha largado a mulher em Miranda e fu-gido ca amante pró Casal da Avença e aquilo, o ele ter uma amante, veio-me à cabeça, Ele pode ter uma má fala pra mim, pode inté querer fazer poico de mim, E tive medo, Como já era zagalotazita tive medo de ficar desonrada e perder casa-mento_, O que é que me alembrou?, Eu vou ao menos ali pra trás da casa e quan-do sentir gente apareço, Foi aí que eu errei, O Manel Zé trazia dois cãezões soltos e quando me viram avançaram em cima de mim que me iam comendo, Eu inda agora me ponho a correr co lato do leite à cabeça_ aí é que eu ’spejei leite, ia ‘spejando o leite todo_ e o ti Manel Zé acordou, O que é isso, quem está aí, quem é que grita?, Ora, rendi-me, Oh ti Manel Zé, sou eu, Eu, quem? A Florzita da Rosai-ra de Semedo, És tu, filha?, Não posso dizer mal nenhum do home, Deus o lá tenha em descanso conforme o bem que ele me fez, Se ele o era, se era putanheiro, era

Page 102: Livro contos melhores 2014 edição final

102

Contos Melhores - 2014

lá com quem deixava, pra mim foi bom, um senhor dos melhores, Viu as horas_ ele já tinha relógio pra estar de alabanto por uma hora que era quando recebia o lei-te__ e vai assim, Sabes que horas são?, Não, a minha mãe não tem relógio, Pois, a tua mãe não tem relógio porque o relógio em Semedo é o búzio do ti Andorinho, assim como o relógio aqui no Casal é o meu búzio, mas olha que inda são só onze e meia, Eu inté fiquei ensovacada quando ele disse as horas que eram e fui assim, Atão e agora, vou voltar pra casa?, isto é pra andar a noite inteira pra trás e pra diante, Não vais nada, disse o ti Manel Zé com aquela voz calma que ele tinha, Deixa-te estar aí que eu já venho, E saiu por uma portita que separava a leitaria do resto da casa, Eu ouvi vozes, bchi bchi bchi, bchi bchi bchi, _era ele a falar ca amante_ mas só percebi isto, O cobertor não vai deixar falta que eu já te venho aquecer, Na altura, não entendi o verdadeiro significado destas palavras, o que é que a gente quer, era inocente, era e fui durante muitos anos até casar, o meu home é que me explicou as coisas da vida porque antigamente uma cachopa de respeito não podia ter conversas destas com ninguém que era uma vergonha, Mas, voltando à vaca fria que está por encetar, o ti Manel Zé voltou à leitaria com um cobertorzito, sentou-me numa cadeira ao pé do balcão, votou-me o candeeiro ace-so ao pé de mim_ um candeeirito de vidro, inda não havia eletricidade, olha quando é que a eletricidade havia de chegar ao Casal da Avença!_ e disse, Faz o teu soni-nho, não tenhas medo que ninguém te faz mal aqui, e vê se descansas alguma coisita que inda faltam umas duas horas até as outras pessoas começarem a che-gar_ O que o povo falava!, mas eu não tenho isto pra dizer do home,_ E eu amanhã, em vindo de entregar o leite, vou comprar pasto à tua mãe e aproveito pra lhe perguntar pra que é que ela quer dois rapazes dentro de casa e manda uma meni-na sozinha a esta hora,

Assim foi, Mas no entretanto, no caminho de lá pra cá, a ti Gorda, que era a mais velha, Isto a uma menina não se faz, e mais a mais com dois rapazes em casa, a ti Rosáira anda errada, E o rancho, que sim, que andava, Olha que o rancho que ia aqui de Semedo era grande, inda me alembra as pessoas que eram, Era a Marília da ti Choa, a ti Choa tinha duas vacas, era a ti Natália do Tóino Capelo que os pais também tinham duas vacas, era a ti Funfa, ou o Deolindo ou o Regino que o ti Silvano tinha duas vacas, era a Anunciação, ou era o Celso, ou era o Césarito porque o pai também tinha uma vaca, era o Silvino ou era a Rosalina ou a Céua por-que o pai tinha duas vacas, era o ti Andorinho que tinha um moinho de renda mas também tinha duas vacas, ia a Luz, ou o Rito ou a Clarisse porque a ti Adosinda, a

Page 103: Livro contos melhores 2014 edição final

103

Contos Melhores - 2014

viúva, também tinha duas vacas de meias, ia a Mariana ou a Gracita ou o Zézito ou o Manelito ou o Dario porque o ti Grande tinha duas vacas marinhas mas também tinha duas turinas, ia a ti Dília, olha quantas pessoas!, ia o ti João Gafanhoto, ia a ti Maria Rosa do Capelo, ia a ti Ludovina que o ti Chapéu inda não era oirives mas já tinha três vacas, ia este brasil de povo daqui e naquele dia fui eu sozinha, Pró que a gente está guardada!, Mas, como há males que vêm por bem, a partir daí nunca mais fui que a minha mãe quando viu o que tinha sucedido virou-se a chorar, e ao mais era poico choradeira, e jurou pelo que havia de mais sagrado que preferia perder fama e dinheiro do que perder a única filha na campanha do leite.

*Maria de Fátima Clemente Bica, professora, Mira, Portugal.

Page 104: Livro contos melhores 2014 edição final

104

Contos Melhores - 2014

O perfume de AbigailCategoria internacional - 1.ª menção honrosa - Marcus Vinícius Filgueiras Júnior, Montevidéu – Uruguai* (Brasileiro morando no exterior)

O enorme tabuleiro já estava em cima da mesa da cozinha. Foi colocado com muito cuidado. Eu sentia o cheiro de lá da sala. Conhecia o tempero de Abi-gail pelo aroma: alecrim, orégano, pimenta negra, tomates frescos e azeite

de oliva. Não me enganava nunca. Imaginava perfeitamente até os seus movimen-tos agregando as ervas e as especiarias. Minha fome se tornou quase insuportável.

Escutei Abigail perguntar se Carlos ou Tonho sabia se o rio já havia transbor-dado. Carlos respondeu apenas que as notícias não eram boas.

Naquele momento, vi Tonho sair sorrateiramente em direção ao quarto ao lado da dispensa. Pelo visto, iria à busca de mais uma dose de cachaça. Mantinha em seu armário sempre uma pinga da boa. Carlos o acobertava.

Abigail era séria demais no trabalho. Assumiu a padaria herdada do pai quando ainda tinha 30 anos. Cobrava severamente até mesmo de seu marido, Carlos, quando o assunto era cumprir os compromissos da padaria.

Tonho era tímido e não olhava direto nos olhos quando falávamos com ele. Desde que Abigail assumiu a padaria ele começou a trabalhar com eles. Tem doze anos de casa. Já Carlos, parecia que não era capaz de sair de seu mundo para perceber Abigail. Para ele, bastava a sinuca,a cerveja e as mulheres para depois do trabalho.

E o cheiro da comida estava cada vez mais forte. Sentia pontadas agudas no estômago. Apertava as chaves nas mãos e esperava para levar as encomendas ao destino, ora de bicicleta ora de carro. Era a minha função desde que comecei a trabalhar com eles, há mais ou menos três anos.

A fome era tanta que os planos de conseguir um emprego fixona capital – que habitavam meus pensamentos dia e noite – estavamsuspensos naquele instante.

Enquanto isso, Carlos revisava os papéis dos pedidos do dia. Tonho ficava parado à espera de novas ordens. E eu aguardava para entrar em ação. Abigail verificava a relação de outras encomendas dasfestas de fim de ano. Depois, pegou o telefone e fez duas ou três ligações.

Page 105: Livro contos melhores 2014 edição final

105

Contos Melhores - 2014

De repente, avisou a todos que iriamos fazer duas entregas ao mesmo tempo.O tabuleiro que havia acabado de sair do forno era para dois clientes. Nor-malmente entregávamos uma parte e retornávamos à padaria para buscar a outra. Diante das notícias da elevação do nível do rio, a decisão foi tomada. Carlos iria com Tonho. Abigail, comigo. Júlio, o padeiro da manhã, ficaria responsável pela padaria enquanto saíamos todos.

Diante da situação, naquele dia não seria possível almoçarmos todos juntos, como de costume. Abigail fazia questão que todos estivessem à mesa. A padaria parava. Era um ritual sagrado que havia herdado de seu pai. Abigail cresceu almo-çando junto com todos os funcionários da padaria. É certo que era um costume incomum para aquela sociedade em que os funcionários das famílias comiam iso-lados na cozinha. Se tivesse entrega para fazer e eu estivesse lá, participava da mesa. Uma recusa injustificada era entendida como uma falta de educação ou de bom coração.

Começou a operação para dividir a encomenda. “Tonho, pega aquele outro tabuleiro menor, rápido”, disse Abigail tomando a frente dos trabalhos. Ao perceber o movimento, me dirigi à cozinha para ajudar no que fosse preciso. “Me ajude, aqui, deste lado”, disse Abigail para mim. Cheguei bem ao seu lado. Bem próximo. O seu perfume quase doce sequer se misturou com o cheiro da comida que estava no ar. Nunca havia sentido o seu perfume durante todo aquele tempo de convivência. De relance, não pude deixar de ver sua blusa desabotoada, que me permitia ver seu sutiã lilás de rendas.

Ela fez a primeira incisão naquele manjar para dividi-lo. Uma vez dividido, tomou uma grande espátula para começar a levantar uma das partes lentamente. Aí sim, se fez a definitiva covardia. Ao movimento de levantar uma parte, mostra-ram-se os pedaços de queijo derretidos, as ervas picadas, as berinjelas macias e toda a cremosidade daquela preparação. Como uma cirurgia, se conseguiu trans-plantar com sucesso a metade para outro tabuleiro menor.

O tabuleiro foi colocado na parte traseira do carro. Abigail tomou a direção e sentei ao seu lado. Novamente o seu perfume distraía a minha fome. Era muito dis-creto, leve, mas inconfundível. Parecia que algumas vezes o perdia no ar, mas logo o recuperava. Acho que cheguei a inclinar discretamente a cabeça para alcançá-lo. E sua blusa continuava aberta na altura dos seios. Não sei se deveria avisá-la, mas, ao mesmo tempo, não conseguia deixar de desfrutar.

Abigail me perguntou se minha mãe estaria precisando de alguma coisa, se poderia ser atingida pelas águas nervosas do rio da cidade. Nem me lembro da mi-

Page 106: Livro contos melhores 2014 edição final

106

Contos Melhores - 2014

nha resposta. Estava mesmo dominado por seu perfume e pela janela de sua blusa.Chegamos à casa da cliente. Pensei, então, que não poderia deixar de avi-

sá-la sobre sua blusa. Mas não consegui. Logo desci e abri a porta traseira. Ela também desceu e chegou ao meu lado para retirarmos juntos o tabuleiro que já havia recebido toda a temperatura, razão pela qual já exalava um forte vapor. Por isso, o perfume de Abigail parecia estar longe, o que me fazia instintivamente che-gar mais perto para captá-lo. Foi quando nossas cabeças levemente se tocaram e pude senti-lo um pouco mais forte. Nem mais me dei conta do aroma das ervas, pimentas, azeite e tomates frescos.

Entregamos o tabuleiro. Abigail recebeu o pagamento da cliente e dirigiu-se rapidamente ao carro. Entrou, sentou e deu a partida no motor. Mas não o colocou em marcha. Voltou com sua mão à ignição e, lentamente, desligou o carro. Olhou para mim com um leve sorriso, ajeitou-se no banco e fechou o botão de sua blusa. Ligou novamente o carro. E, então, partimos.

Não, não foi um sorriso cínico. Também não foi reprovador. Os seus olhos não pareciam tristes ou desapontados. O seu rosto rosado era apenas do calor da padaria. Na verdade, não sei bem o que se passou.

Ela seguia normalmente entrando e saindo de ruas. Olhando à frente, con-centrada como sempre. Parecia que era indiferente a minha presença, ali, ao seu lado. Passava a marcha e pisava nos pedais. Eu observava de soslaio a harmonia dos seus movimentos e o discreto balé de suas pernas sob a saia na altura dos joelhos.

Ao passar perto do rio constatamos que as águas iriam invadir as ruas em poucas horas.“Vamos ter complicações para cumprir as próximas entregas”, disse Abigail em tom de lamento, momento em que olhoupara mim de novo. Não havia muitas entregas para aquele dia, mas para os dias seguintes, véspera de Natal, tudo ficaria mais difícil por causa da inundação iminente.

Chegamos à padaria. Carlos comentou que um pedido para aquele dia havia sido transferido. Só restariam poucas entregas. Abigail disse que eu estaria dispen-sado para aquele dia. Fiz uma refeição leve na sala, que era contigua à padaria. Em seguida, acenei para todos sinalizando que iria embora e Abigail despediu-se de mim de lá da cozinha mesmo sem sequer levantar a cabeça.

Ainda que distante, era capaz de sentir o perfume de Abigail. Impossível esquecê-lo. Fiquei atormentado por todo o resto do dia.Por diversas vezes, o per-fume vinha a minha memória e, em seguida, o sutiã lilásde Abigail e, por fim, o seu sorriso indecifrável.

Page 107: Livro contos melhores 2014 edição final

107

Contos Melhores - 2014

Não sabia direito o que pensar. Sei dizer que as imagens se repetiam e também aquela sensação de respiração fria na altura do estômago. O resultado é que dormi sobressaltado.

No dia seguinte, tomei banho logo que acordei. Esfreguei o sabonete até que meu corpo estivesse todo tomado por espumas. Antes de sair, troquei minha camisa cerzida por outra em melhores condições.

Peguei a bicicleta e fui direto para a padaria. As águas já haviam invadido a cidade durante a noite, não com tanta força como se havia previsto. Havia ruas totalmente inundadas e outras que estavam de sobreaviso. Mantinha-se a previsão de mais chuvas para castigar a região.

Ao chegar à padaria percebi, de pronto, que as máquinas estavam a todo vapor. Fui logo perguntando a Tonho se precisava de ajuda. E fui caminhando em direção à cozinha. Quando me aproximei pude ver Abigail organizando os manti-mentos. Parecia que sequer havia notado minha presença. Tonho me respondeu que a preparação de todas as encomendas iria ser antecipada para aquele dia, sábado, por receio de complicações com a enchente. As entregas seriam feitas na manhã de domingo por um caminhão.

Diante da situação, novamente ofereci ajuda na cozinha até que tivesse al-guma encomenda para entregar. Abigail respondeu que teria muitas coisas a fazer. E foi logo apontando as massas para bater e os legumes a descascar. E seguimos por quase uma hora naquele ritmo intenso.

Em um estalo, Abigail levantou a cabeça e se dirigiu a mim: “vou tomar um banho e, depois, gostaria que você me levasse até ao centro da cidade porque tenho que comprar algumas coisas”. Respondi balançando a cabeça afirmativa-mente. E notava que Carlos sequer se oferecia para levá-la. Só a conseguia notá-la como alguém que dirigia a padaria.

Abigail saiu da cozinha em direção a casa. Passados em torno de quinze minutos, escutei-a dizer, em voz alta,que já estaria pronta para sair. Dirigi-me à sala da casa e não a encontrei. Não mais que de repente, Abigail cruza a sala com os cabelos soltos e ainda molhados e simplesmente diz para mim: “vamos?”.

Elafoi diretamente ao carro e, desta vez, não assumiu a direção. Deixou para que eu a conduzisse. Ao sentar pude notar com mais detalhes que não estava com seus trajes de trabalho. Um vestido preto, mas fresco e leve. Uma beleza como nun-ca tinha visto antes. Agora o seu perfume suave invadiu o carro que chegou a me desconsertar. Minhas mãos suavam e o estômago gelava novamente. Esfreguei-as nas minhas pernas, para tratar de enxugá-las na calça comprida.

Page 108: Livro contos melhores 2014 edição final

108

Contos Melhores - 2014

Abigail ficou no centro e disse a mim que retornasse depois de uma hora e meia para buscá-la. Voltei à padaria, coordenada por Carlos, que se tornava mais solto, mais relaxado sem a presença de Abigail, mas não deixava de cumprir com os compromissos.

Fui buscá-la no centro, no mesmo local em que a havia deixado. Ela já me esperava com sacolas nas mãos. Entrou, e logo senti o seu perfume. Não resisti e suspirei diante do esplendor da sensação. Abigail se virou para mim e sorriu. Novamente me desconcertou todo. Meu coração disparou. Quase entrei em ruas erradas, mas logo me recompus e retornamos à padaria.

Ao chegar, perguntou-me se eu poderia ajudá-la naquele sábado, porque trabalharíamos até altas horas por causa das antecipações. Ela disse que me pa-gariaas horas em dobrodo que normalmente me paga para cumprir as minhas entregas.

Respondi que sim. Mas ela fez questão de que eu falasse com minha mãe em primeiro lugar, para que tudo pudesse ficar ajustado corretamente. Eu disse que, quanto a isso, não haveria problemas. Tudo ficaria acertado.

Abigail recolocou sua roupa de trabalho. Fomos todos para a cozinha e tra-balhamos muito. A concentração era total no trabalho: aves recheadas, salgados, doces e muitas encomendas para a especialidade da casa, a lasanha de berinjelas, que levava o segredo do tempero de Abigail.

Eram duas e meia da manhã quando a tarefa terminou. Todos exaustos. O rio havia transbordado de vez. Muitas ruas estavam cheias. A água estava che-gando à porta da padaria. Apesar da casa e da padaria serem altas, se as águas continuassem a subir não haveria em breve como transitar pelas ruas nem mesmo de caminhão.

Carlos parou para tomar cachaça com Tonho. Eles foram para o quintal. Abigail me deu uma toalha para que eu pudesse tomar banho. Fui em direção ao banheiro da padaria e ela tocou em meu braço para que eu fosse para o seu ba-nheiro. Mais uma vez, ela conseguiu me trazer calafrios.

De banho tomado e bermudas, sentei-me na sala. Abigail abriu uma cerveja, tomou um bom gole. Perguntei a ela se poderia tomar um copo para relaxar. Ela perguntou se eu já poderia beber. Respondi que já tomava cerveja com meu tio em casa. Já havia cumprindo dezoito anos. Ela se espantou porque achava que ainda contava com 16 ou 17 anos, acredito que por causa da minha estrutura franzina. Disse que só me deixava dirigir porque eu guiava muito bem e lhe trazia segurança. Então, deu-me um copo de cerveja gelada e alguns salgadinhos.

Page 109: Livro contos melhores 2014 edição final

109

Contos Melhores - 2014

Deixou-me na sala e foi tomar banho.Em silêncio, fiquei sentado na sala saboreando a cerveja que ela me serviu.

Ao sair do banho, chegou à sala de quimono e seus cabelos presos como de costume. O cheiro de banho fresco era tão sedutor quanto o perfume que me roubou o sossego. Abigail disse que seria melhor eu dormir por ali mesmo por que já seria arriscado sair pela cidade naquela situação. Concordei. Ela me entregou as roupas de cama para que eu pudesse me ajeitar no espaçoso sofá da sala. Saiu em direção ao seu quarto. Carlos e Tonho continuavam rindo alto no quintal e provavel-mente dormiriam nas redes por ali mesmo. E eu estava mesmo morto de cansado.

Antes de haver terminado de me ajeitar, Abigail chega de repente para dar--me boa noite ao que também lhe respondi. Logo virou as costas. Mas antes de dar o primeiro passo, virou-se de novo para mim e disse com aquele mesmo sorriso: “muito obrigada por tudo.” Fiquei mudo, gelado e ainda confuso. Apenas sorri. Dei-tei virado para o canto. Fiquei calado e de olhos fechados. Tentava me acostumar com o cheiro da noite fora de casa e acalmar as minhas pulsações.

Passados alguns minutos, não sei quantos, ainda estava ali, parado, sem conseguir dormir apesar do cansaço. Senti Abigail sentar-se ao meu lado no sofá. Continuei com os olhos fechados, mas sentindo o calor de suas pernas em minhas costas. Depois, senti sua respiração próxima, porque ela conferia se eu estava dormindo. O calor aumentou porque senti os seus lábios tocando o meu rosto e levemente o canto da minha boca.Não tive coragem de abrir os olhos. Suas mãos tocaram os meus cabelos por duas vezes em movimentos delicados.Passados al-guns minutos, levantou-se e foi dormir.

Despertei-me muito cedo. Ao lado do sofáAbigail havia deixado um presen-te. Um frasco de perfume, um delicioso perfume.E também um envelope com o meu pagamento.

Saí sem fazer barulho e deixei um bilhete para Abigail em cima da sua mesa do escritório: “Obrigado pelo perfume e por tudo o que fez por mim. Feliz Natal”.

O restante da história vocês já sabem. Foi a última vez que avi. Contar mais? Não, eu já contei tudo. Se eu voltei? Ah, sim, no mesmo dia em que fiquei sabendo que viriatrabalhar na capital, fui até a padaria para me despedir, mas ela não estava.Nunca mais voltei, mas o perfume de Abigail jamais me deixou.

*Marcus Vinícius Filgueiras Júnior, 46 anos, Montevidéu – Uruguai*(Brasileiro morando no exterior)

Page 110: Livro contos melhores 2014 edição final

110

Contos Melhores - 2014

A árvore que dava frutos de metal

Categoria internacional - 2.ª menção honrosa - Maria de Fátima Estevens Martins, Coimbra, Portugal*

E ra uma vez um homem muito pobre que vivia nos arredores de uma grande cidade, num bairro muito pobre. A sua casa era feita de um amontoado de materiais que ele ia juntando nas lixeiras por onde passava.

No entanto, e a contrastar com aquele monte de lixo a que ele chamava de casa, o homem cultivava uma pequena horta que era a inveja de quem a observava. Legumes variados, verdes e viçosos cresciam em redor de uma pequena árvore sempre carregada de frutos ou flores consoante a estação do ano. O homem era feliz, enquanto cuidava do seu pequeno oásis.

Trabalhava de sol a sol, longe de casa, tudo o que ganhava mal dava para pagar os transportes e para os seus gastos pessoais. Sonhava em ter um grande espaço, onde pudesse dedicar-se só ao cultivo de plantas e árvores. Era o objetivo da sua vida – ter uma quinta e trabalhar a terra.

Imaginava-se a cuidar das árvores, das plantas e até das flores que ele tanto amava e depois vendê-las no mercado e ter dinheiro suficiente para ter uma vida mais digna, com um espaço a que realmente pudesse chamar casa. E por fim, constituir uma família.

Um dia, enquanto trabalhava na sua pequena horta, encontrou uma pe-quena semente, muito estranha, pois tinha uma forma quadrada. Depois de muito a observar, chegou à conclusão de que não conseguia identificar a que planta ou árvore pertencia aquela semente. Mesmo assim, plantou-a no centro da sua horta.

Nem um dia tinha passado e já a planta tinha um palmo de altura e quase era possível vê-la crescer. O homem nunca vira nada assim e passava muito tempo a observar aquela planta que ele nunca tinha visto.

No domingo seguinte, de manhã, ainda mal o sol despontava no horizonte, o homem acordou com um som muito delicado, semelhante ao som emitido pelos espanta espíritos. Levantou-se e foi até ao quintal. Soprava uma brisa ligeira, o sol

Page 111: Livro contos melhores 2014 edição final

111

Contos Melhores - 2014

acabara de acordar e o homem ficou encantado com o maravilhoso espetáculo que tinha diante dos seus olhos – a planta, em poucos dias, tornara-se uma árvore do seu tamanho, mas muito fina, o seu tronco era semelhante a uma cana de bambu. Toda ela baloiçava ao sabor da brisa matinal, as folhas eram de um verde quase azul e estava carregada de pequenos frutos brilhantes que tilintavam como minús-culos sinos de metal.

Aproximou-se, devagar colheu alguns e verificou que eram duros, muito duros, com certeza que não eram comestíveis. Enquanto olhava, extasiado, para as suas mãos cheias dos pequenos frutos, gerou-se uma grande confusão. De todas as partes acorria gente a gritar:

- É ouro, é ouro!Sem que o homem se apercebesse como, o seu quintal foi invadido por

dezenas de vizinhos que se atiraram à árvore, tentando agarrar o maior número possível de frutos. Eles perceberam, primeiro do que o homem, que aqueles frutos eram pequenas peças de ouro.

A árvore já estava, praticamente, despida de fruto e folhas, quando alguém se lembrou de levar a árvore, só que ao arrancá-la, todos os frutos desapareceram na mão de quem os tinha conseguido apanhar. A própria árvore acabou por defi-nhar e secar na mão daquele que a arrancara. Foi a desolação, completa e, pouco a pouco, todos foram abandonando o quintal, sem reparar que o homem estava deitado no chão e inanimado.

Quando a noite caiu, o homem sentiu frio, abriu os olhos e viu que estava caído no junto à sua casa, desde manhã. Olhou à sua volta e reparou que o seu quintal estava como se nada tivesse acontecido – os seus legumes continuavam verdes e viçosos e a árvore de sempre continuava no centro, mas da árvore extra-ordinária nem sinal.

“Será que sonhei!? Será que nunca existiu uma árvore que dava frutos de metal!? “ – O homem estava confuso.

Antes de entrar em casa, reparou nas suas mãos que continuavam fecha-das, abriu-as, lentamente, e mesmo sem sol o seu brilho era intenso.

O que aconteceu podia não ter sido real, mas de qualquer forma permitir--lhe-ia concretizar o seu verdadeiro sonho. Aqueles minúsculos frutos iriam dar para comprar muita terra e produzir muitos frutos.

*Maria de Fátima Estevens Martins, 45 anos, professora, Coimbra, Portugal.

Page 112: Livro contos melhores 2014 edição final

112

Contos Melhores - 2014

Círculos da VidaCategoria internacional - 3.ª menção honrosa - Desirée Jung, Vancouver-BC, Canadá* Brasileira morando no exterior)

A s pichações se multiplicam a cada dia. Não são imagens que indicam um sentido determinado, uma mensagem. Apenas círculos, e mais círculos. To-das as tardes, quando Augusto volta do trabalhopara casa, elepara o carro

no sinal da entrada da ponte e avista a propriedade com o muro pichado. Uma macieira, única testemunha das formas arredondadas sobre a pintura branca, dei-xa maçãs repousando na grama como se adormecidas pela gravidade,traços na calçada.

Ao longe, o horizonteparece indiferente aos percalços da vida urbana. Um lago artificial separa o setor industrial da área residencial da região. Com muito orgulho, consegue se mudar para o lado nobre,indícios da sua privilegiada posição social, mas até quando isso vai durar?O sinal vermelho abre e as folhas de outono levitam sobre o canteiro vazio replantado após o verão e enfraquecido com o poder da nova estação. A tempestade próxima faz o entardecer ganhar uma aurora fora de horário, nuvens carregadas e um sol quase branco, sibilante.

Ele continua a imaginar se o morador da casa pichada, com intromissões aleatórias na sua residência, sente-se revoltado.No início da sua carreira, quando ele notava alguma propriedade abandonada como esta, tinha o costume de bater na porta e oferecer um novo negócio residente, uma técnica para atrair clientes. Naquela época, como corretor de imóveis, sua posição não erade prestígiomas de subserviência, devido ao rendimento oscilante. No emprego atual, como consul-tor de empreendimentos imobiliários, seu orçamento duplica, ele sente-se mais seguro,mas seus princípios compulsivos, que insistem em investir na bolsa e au-mentar o capital,causam um súbito desfalque e asua empresa é vítima de uma iminente falência.

Será capaz de voltar ao passado? A reestruturação da companhia é uma impossibilidade, dali só sairão desempregados. Em poucos dias, terá que deixar o cargo, e contar com a ajuda da esposa. Mas precisa ganhar tempo, inventar algo, mesmo se a solução forvoltar a vender casas. Espera que o futuro seja melhor do

Page 113: Livro contos melhores 2014 edição final

113

Contos Melhores - 2014

que o prospecto de contar a notícia para a família.Quer continuar bem visto, teme a reação da esposa e do filho diante da verdade. Mas angústia não é a resposta certa para os seus conflitos. Sem perceber, com o carro coberto por singelos traços de neve,ele chega na entrada de casa.

Lembra-se da mãe, no meio da pradaria. A tempestade já deve ter começa-do a tomar conta daquele canto da província, onde o inverno é ainda mais rigoroso, e as alternativas de trabalhorestritas. Acordar cedo, cuidar do pasto edo gado, são costumes do campo, uma forma de vida. De pé desde as cinco horas da manhã, é costume da mãe se levantarpara trocar a lâmpada de lugar no galinheiro.Um especialista em aves na televisão havia lhe aconselhado o método para fortalecer as gemas dos ovos. Depois, o produto é vendido para os supermercados durante o inverno para aumentar o orçamento.

Uma possibilidade seria se mudar para perto dela e viver de forma mais simples. Vender a casa e morar no campo. O filho e a esposa poderiam se adaptar, ele compraria um carro mais econômico, ou então todos pegariamcondução públi-ca para cumprir com suas obrigações na cidade. Moram no primeiro mundo e tem o luxo deusar transporte público. Os seus financiamentos, se repassados, serão apenas uma memória, já que mal haviam começado a pagar. E quem sabe se os costume de anos atrásvenham a retornar,quando o custo do aluguel e as despesas diárias da família eram os únicos gastos.

As curvas da propriedade ainda parecem cobertas por um camadaseminova de tinta quando ele sai do carro. Do outro lado da rua, numa casa semelhante a sua, avista Pedro, encostado em um dos pilares da propriedade vizinha. O filho está acompanhado de um outro menino, mais comprido, que usa um short vermelho e uma camisa azul com listras.

É o novo vizinho e parece um jogador de basquete, mas ao invés de uma bola, carrega um computador portátil, e apontao dedo para a tela do computador.A neve não para de cair mas os dois se vestem como se estivessem numa praia. Pedro está com a cabeça em diagonal, seus pequenos olhos desaparecendo sob a brancura estridente do dia. O que estão fazendo do lado de fora, no meio de uma tempestade?

Augusto abre o portão, com medo de danificar o carro recém comprado epercebe que está parado no meio da garagem, com o ar quente ligado e os vidros embaçando.Os adolescentesmal notam a sua presença. Ele respira fundo edesce do carro, um alívio constatarque a reforma continua, as latas de tinta acumuladas

Page 114: Livro contos melhores 2014 edição final

114

Contos Melhores - 2014

num dos cantos do ambiente, o material dos pintores espalhados sobre o chão, a indicação deuma quietude típica das residênciasonde tudo vai bem, cotidianamen-te.

Mal termina de subir as escadase é consumido pelo aroma de carne cozida. Sabe que vai engordar com mais um jantar farto da esposa, mas não se importa. O prospecto lhe dá uma sensação de segurança.Gira a chave na fechadura e en-contra a esposa se desdobrando diante do fogão, numa fantasia improvável que a realidade reforça cada vez mais. Ele senta-sena cadeira junto à mesa de madeira, coloca a pasta na chão e ajeita o paletó, comodiante de uma reunião empresarial.Condicionado, e um pouco traumatizado, revê os debates, os encerramentos de contrato, as resoluções que levam às dívidas finais da empresa.

Se não tivesseapostado tanto na liquidez do dinheiro e no aumento do mer-cado, talvez os fatos fossem diferentes. Mas na realidade, não havia sido assim. Assiste a tudo como se fosse um filme, e ele, um espectador. Na cozinha, uma calma que o fantasma do escritório desfaz nas faces de desapontamento dos fun-cionários, enquantoali, tudo parece seguir na mais perfeita ordem.

Quando a esposa gira o corpo, sua surpresa é clarividente. Usa luvas prote-toras e bate uma contra a outra. Está maquiada com sombras azuis fora de padrão para o seu tom de pele e que borram ainda mais a sua expressão de receptividade inesperada. Feliz e sorridente, abre a geladeira, tira um suco vermelho de dentro, e lhe serve um copo. Não quer notar as dimensões do seu corpo porque as curvas de Catherine estão cada vez mais desproporcionais, as bochechas igualando-se ao formato do rosto, redondas e sem queixo. Encontra em si uma saudade do tempo em que eram namorados e costumavam passar os verões acampando pelos par-ques, pedalando pelas rodovias, com um ritmo saudável de vida e pouco dinheiro no bolso.

“Você chegou mais cedo hoje,” ela diz, insinuando traços de doçura mas emanando uma falsa aparência, talvez em função da recepção inesperada.

Na véspera do casamento, Catherine promete a si mesmo a falar sem medo ou prosternação com o marido, indícios de uma repetição de padrão do seu relacio-namento com a mãe.De hoje em diante não passa, ela pensa. Faz o jantar, prepara o terreno, tudo para se sentir emocionalmente segura. Irá usar o dinheiro que o pai lhe dá para cuidar de si mesma, sem se sentir culpada pelas dívidas do marido. Fora ele quem decidira se mudar, comprar um carro e viver perigosamente, gas-tando dinheiro além das contas. Racionalmente tem confiança, mas a sua presença

Page 115: Livro contos melhores 2014 edição final

115

Contos Melhores - 2014

tão perto de silhe intimida. “E você sempre a cozinhar,” ele enfatiza, com a sensação de vê-la constan-

temente adornada por um avental e alguma comida na boca.Quando o marido chega mais cedo, como vêm acontecendo com freqüên-

cia, uma energia pesada, uma coação invisível, reduz a sua espontaneidade e lhe leva a agir com cautela.Catherine sorri sem graça e foca nas bolachas assando no forno. É um mimo que o marido desconhece. Está cozinhando quitutes para o filho. Augusto teme que o menino vá engordar. Ela não se importa, poistambém gosta de tomar chá com algum doce antes de dormir. É uma receita que encontra nas revistas femininas que assina e lê com regularidade.

Abre o forno, experimenta um pedacinho do biscoito e sente-o dissolvendo na boca, a baunilha celebrando a chegada do inverno, o tempo dos cobertores, o silêncio do cotidiano. A noite promete um esforço de atitudes, por isso também faza carne assada de Augusto. A decisão de gastar a mesada do pai com algo que lhe dê prazer é antiga mas só hoje encontra coragem para comunicar o seu desejo ao marido. Passa o verão pensando no assunto e escolhe o inverno para recomeçar a estudar. Considera as circunstâncias.

Pedro crescido, podendo tomar conta de si mesmo, o maridono trabalho o dia todo, a diarista que lhe ajuda com a limpeza da casa, toda essa estrutura lhe incentivando aseguir o seu sonho de abrir o próprio negócio fazendo o que sempre gostou, culinária. Mas para isso, precisa estudar, aprender melhores formas de oti-mizar os ingredientes, acelerar a produção, e gerar produtividade num restaurante.Depois, seriam apenas algumas horas de estudo, já que a outra metade do curso seria feita por correspondência.

“O jantar vai ficar pronto daqui há alguns minutos. Por que você não vai se trocar?” Ela sugere, quando vê ele parado na cozinha, lhe olhando mas não dizendo nada, apenas seguindo-a com os olhos.

“Eu vou tomar banho então,” ele repete, enchendo o ambiente com palavras desnecessárias e perguntas veladassobre os eventos do dia.

Augusto quer arranjar uma maneira educada deconscientizar a esposa do seu ganho de peso e da sua perda de autoestimamasreconhece que tem assuntos mais importantes para tratar.Além disso, não sabe o que se passa na sua cabeça. Conversam muito pouco. Tem a sensação de que ela ocupa o tempo com revistas femininas que só incentivam as suas fantasias. Pelo menos na época em que tra-balhava na biblioteca permanecia ocupada com livros e não punha tanta comida na

Page 116: Livro contos melhores 2014 edição final

116

Contos Melhores - 2014

boca. Às vezes pensa seo crescimento da empresa e o seu aumento de salárionão haviam causado umatransformação fatal para a sua família.

Diante da situação, sente desânimo, pois não sabe como voltar atrás. Algo saiu do controle, como os círculos espalhados no muro da casa próxima a ponte do lago. É impossível tentar entender. Objetos e aparelhos desnecessários se acu-mulam na sala, excessos que no inverno deixam todos com a aparência de pre-guiçosos. É com essa mistura de ojeriza e culpa, sentimentos que lhe consomem no trajeto da cozinha ao banheiro, que começa a se despir. Os círculos da casa da ponte voltam a sua cabeça numa sensação de descontrole. Não lhe pertencem, participam dos desencontros da vida, e quer vê-los longe de si.Minutos depois, já limpo e ensaboado, de pijama de flanela próximo a lareira, com um chá de rosas nas mãos, tenta desintoxicar os quilos quer irá ganhar no jantar, relaxando as per-nas na cadeira de massagem que comprara também a prestações no cartão de crédito.

Precisa confiar que tudo vai ficar bem. No tempo certo, irá convencer a esposa a pedir ao pai para lhe aumentar a mesada. É uma emergência, o resto poderá ser contornado com um empréstimo, possivelmente com a reestruturação da empresa. É trabalhador, pode retomar o rumo da própria vida.

Enquanto pensa numa estratégia para abordar a esposa, Pedro entra em casa e encontra o pai surfando os canais da televisão.

“Será que eu posso esquiar nesse fim de semana?” O menino diz avida-mente, como se ainda estivessecom os olhos presos na tela de computador.

“Isso é ótimo, você precisa sair de casa, ficar na frente de jogos eletrônicos vai acabar te deixando catatônico,” Augusto afirma, parando num canal sobre re-novações residenciais.

“O que é catatônico?” Pedro pergunta, brincando com os dados que carrega dentro do bolso da bermuda.

“O que você está fazendo de bermuda? Está maluco? A temperatura é de quase zero graus,” o pai enfatiza, sentindo arrepio ao ver suas pernas vermelhas expostas.

“Eu só fui lá fora ver um vídeo de snowboard. A internet do Lúcio ainda não foi ligada e ele não pode me mandar por email. O pai dele não terminou de orga-nizar a mudança a tempo,” Pedro diz, dando um alô para a mãe antes de ir para o quarto se trocar.

“Ande logo, Pedro, ponha os seus pijamas. Está quase na mesa,” Catherine

Page 117: Livro contos melhores 2014 edição final

117

Contos Melhores - 2014

afirma, dobrando o avental e colocando o purê de batatas numa vasilha de louça.A mãe e o pai raramente dividem o mesmo ambiente. Talvez prefiram a

intimidade do quarto. Já ele, Pedro, teme as perguntas inquisidoras e repletas de razão do pai, porque às vezes não sabe o que responder, e o excesso de zelo da mãe, que insiste em alimentá-lo continuadamente.

“Está bom mãe, já vou,” ele responde, entrando no quarto e vestindo a calça de moletom que guarda para a época de inverno. O forro é de pena de ganso, e o contato com a perna gelada lhe amacia os sentidos.

Durante o jantar, começa a nevar ainda mais. O vento pressiona os vidros, que constrangem o ambiente numa acústica violenta, invasiva. Pedro ainda não sabe como mencionar o dinheiro que precisapara passar o fim de semana com o amigo na estação de ski. Augusto nota que o menino está comendo pouco, e acha que deve fazer o mesmo. Catherine percebe como selecionou as vasilhas corretas para cada tipo de alimento. A carne assada, recheada com peras e alecrim, numa tábua de madeira com flores de acácia, o purê de batatas numa vasilha com bordas de rosa, e a salada num recipiente de prataque deixam a toalha bordada da mãe ainda mais aparente.

“Por quê você está sorrindo, Catherine?” Augusto pergunta, quando nota a sua aparência alegre na mesa de jantar.

“É que eu estou orgulhosa com a minha mesa,” ela diz, contente.“Você gasta muito tempo com isso,” ele diz, com a boca cheia.Pedro sorri apesar de tudo, pois gosta de ver a mãe satisfeita. O pai man-

tém-se resignado e confuso, a busca de mais explicações. O silêncio evoca ecos de outrora, dos tempos dos discursos enfáticos e das conquistas da empresa. É verdade que faz tempos que não fala tão enfaticamente assim.

“Não existe tempo certo, mas eu preciso anunciar algo,” Augusto afirma secamente, arrumando o guardanapo sobre a mesa.

Catherine acha indelicado o esposo decidir,junto com ela, comunicar algo importante para a famíliatambém naquele dia. Não sabe se deve interromper a fala e mencionar seus próprios interesses primeiro. Espera não ser nada importante.

A aparência de Augustoé de preocupação temperada e cautela. Sua face fica desta maneira até ele terminar de falar, quando parece aliviado. O fato da empresa ter falido não lhesurpreende, havia meses que notava um consumo de-senfreado no marido. Mas a sua raivanão é só pela irresponsabilidade dele mas pela demanda. Mais uma vez, ela ficava em segundo plano. Sua vontade erapuxar

Page 118: Livro contos melhores 2014 edição final

118

Contos Melhores - 2014

a toalha da mesa e deixar todos os pratos espatifarem no chão, num temporal revoltante e indiscreto.

“Eu preciso da sua ajuda, Catherine, e da sua também, Pedro,” ele afirma, levantando-se da mesa. “Quero pedir um empréstimo no banco, e espero que seu pai possa nos ajudar um pouco, querida. Afinal, é o nosso futuro que está em jogo,” enfatiza, voltando para a cadeira de massagem.

Um pouco enjoado por comer tanto, ele não consegue ver o que se passa na cozinha. Mas acha que corre tudo bem. Nenhum deles se exalta ou parece assusta-do com os prognósticos do porvir. Na televisão, um casal decide comprar uma casa com dois quartos e uma suíte, para cortar os gastos.Ele fecha os olhos, cansado, e quando acorda já é de manhã, e a janela está coberta por uma fina camada de neve. Muda de roupa rapidamente, cuidadoso para não acordar a esposa, e sai com uma sensação de esperança, decidido a empacotar seus pertences no escritório e despedir-se de todos definitivamente. Quer uma transição rápida, pois precisa planejar bem os próximos passos.

O dia transcorre com muita luz e branquidão. Apesar da claridade, Catherine acende a luz do abajurpara escrever a carta para o marido. Em um dos dedos o es-maltede unha cor de rosa está rachado, na noite passada precisara arear a panela do assado, que não coubera na máquina de lavar louça.

É com poucas palavras que explica a sua decisão. Já havia feito a mala, e também a do menino, que só iria encontrá-la depois de passar o fim de semana com o amigo no resort. Seu dinheiro estava separado, e ela iria passar na escola para lhe explicar tudo. Ele deveria compreender, já que não era de causar proble-mas diante das suas decisões.

É bem verdade que nunca fizera nada parecido antes. É uma questão de sobrevivência, ou ao menos, uma necessidade de respirar um pouco mais de es-paço, pelo menos por um tempo. Ali dentro, sente-se sufocada.Ainda lembra-se de colocar o resto de carne assada no microondas, algumas cervejas para gelar no congelador, além de uma salada e um arroz na geladeira.

A conversa com a mãe não havia sido promissora, mas isso não lhe sur-preendia. Estava sempre lhe criticando, e nunca aceitava a filha como uma aliada, sim uma competidora. Amava o pai com um excesso de trejeitos, e deixava isso claro nos telefonemas. Mas aceitara as suas condições. Era temporário, uma emer-gência, até ela decidir o que fazer. O pai, por outro lado, ficara extasiante. Nunca gostara do marido, e achava que a filha estava tomando a decisão certa.

Page 119: Livro contos melhores 2014 edição final

119

Contos Melhores - 2014

Augusto, ao sair do trabalho, tem vontade de fazer o caminho mais longo para casa. Quer, por alguma razão, evitar os círculos de pichação, que volta e meia aparecem na sua cabeça. Sente-se perseguido por um súbito descontrole.

Talvez, o que realmente devesse fazer era bater na propriedade e tentar conversar com o dono, saber porquê ele não pinta o muro, ou ao menos reclama na prefeitura. Quando está próximo da ponte, acha graça do pensamento que tivera momentos antes, de querer mudar o trajeto até ali. Não havia nada diferente no seu cotidiano, iria chegar em casa e tudo estaria com antes, na mais repleta ordem.

Como sempre, o sinal fecha, e automaticamente, ele gira o rosto na direção da casa na entrada na ponte. Diferente do dia anterior, os círculos estão preenchi-dos com traços de neve, que dão uma aparência de desencontro nos desenhos, como se dissolvessem no ar. Acha a imagem aconchegante, incompleta, e uma sensação de tranqüilidade toma conta de si. É tudo uma questão de perspectiva, ele pensa, ao acelerar o carro quando o sinal abre, pensando no jantar da esposa.

*Desirée Jung, 39 anos, escritora , Vancouver-BC, Canadá.

Page 120: Livro contos melhores 2014 edição final

120

Contos Melhores - 2014

Gare do OrienteCategoria internacional - 4.ª menção honrosa - Al Cino Elyseu, Merceana, Portugal*

À quela hora da tarde a cidade esgotava-se na fuga de cada um para casa, anestesia de revolta até ao outro dia. A chuva caia farta e o autocarro seguia lento, aos tombos, contentor apinhado de vidas cansadas, céu de subúrbio

com estrelas de lata. Albano não conseguia raciocinar. Tudo era turvo na sua mente. Olhou de novo os companheiros de viagem e todos ali eram suspeitos. Já nem sa-bia há quantas horas andava naquilo. Como era possível? Estava em fuga, perdido, sem rumo certo, longe, mas cada vez mais perto de um abraço qualquer, encontro sinistro que ele só não sabia onde iria acontecer.

Pensou em Pepa. Achou que pior que uma doença fatal, era fugir do mer-da com quem ela casara.” Amo um policial!” –pensou. Apeteceu-lhe vomitar. Não sabia de onde o marido enganado tinha aparecido. Na realidade o policial apenas vira duas pessoas dentro de um carro estacionado. Quando abrira a porta, sacara-o ao murro e vai de bater. Tentara dar-lhe um primeiro soco mas Albano desviara-se. Desviara-se para levar um outro mais certeiro no olho direito. Ainda sentia no ar aquele punho. Depois o outro largara-o e chamara tudo à mulher. A puta que se preparasse para dormir onde quisesse. Albano atirara-se ao merdoso, mas só tivera tempo de ver a pistola. O outro quisera matá-lo. Não o dissera, mas lera-lhe nos olhos. E ali estava ele. Horas e horas de Inverno e outras tantas de Inferno. Olhou os vidros embaciados e não soube onde estava. Por instantes achou que toda a cidade andava à sua procura.

O autocarro voltou a parar. E se o policial enganado entrasse por ali aden-tro? Descansou. Só tinham subido crianças da escola e aquele outro de blusão de cabedal. Careca. Pareceu-lhe polícia. Já os via em todo o lado. Esta ideia fê-lo sentir frio e recordou que, na pressa da fuga, deixara no carro que abandonara o texto que andava a trabalhar para um novo livro.

– Mais uma tanga p’ra ninguém ler. Um gajo a explicar aos merdosos das editoras a qualidade da coisa, e os cabrões cheios de paneleirices na fala a atira-rem o molhinho de folhas directamente para o lixo – saiu-lhe a meia voz. Acabara de focar sobre si uma série de rostos inexpressivos e tremeu. Saberiam que ele

Page 121: Livro contos melhores 2014 edição final

121

Contos Melhores - 2014

estava em fuga? Fugir não era um momento de muita inspiração e, vinda do nada, a vontade de beber, de fumar bateu-lhe à porta. O tabaco e o álcool ajudavam sempre na filosofia. Se viesse a safar-se daquela trapalhada, mudava de rua, de país, de cão de tudo. “ Amor, eu contigo só queria ter a casa limpa e as gavetas organizadas” – pensou. A relação de Pepa com o marido fora sempre um vendaval de lençóis nunca mudados, e ele a pensar um dia ser feliz, uma casa escolhida pelos dois, comer, foder. Ela era uma ninfomaníaca. Comia-o vivo. Tudo acontecera por acaso. Ele, um escritor que ninguém lia com cinquenta cêntimos no bolso, e ela, menina de bem, educada em colégio de freiras casada com um policial.

Que se lixasse a merda do dinheiro do papi dela. Um dia alimentara mesmo a ideia de conhecer o homem mas, agora tinha a certeza que essa oportunidade nunca chegaria. Aristocracia da trampa. Raspado o verniz das aparências, o que se via eram príncipes da droga, lavagem de dinheiro e limousines. Um falso moralista. O caldinho com a francesa é que ele nunca deixara.

De repente a mulata do banco da frente prendeu-lhe a atenção. A blusa era quase transparente. Deveria usar cuecas pretas de fio dental. Por momentos ela conseguiu fazer com que ele não pensasse no que horas antes lhe acontecera. O cabelo despenteado dava à dama um toque de loucura, produto de bairro social. Se ele naquele momento movesse uma mão que fosse em qualquer direcção, a gaja decerto desatava a gritar que ele a queria violar.

E o Tony preto? Uma vez perguntou-lhe se ele sabia foder. Eram garotos. Nunca tinha pensado naquilo. Depois passara a espreitar tudo e todos. Toda a gente o fazia. O diretor da escola, as professoras. Fora apanhado a espreitar as pernas da tipa de desenho. Por debaixo da saia, as meias de vidro davam um toque lascivo à carne tenra que ainda o excitava. Ela falou com ele no fim da aula. Que o menino tinha falta de carinho, disto e daquilo. Queria ajudá-lo, mas ele agarrara-se-lhe às pernas gulosas e perguntara-lhe se podiam foder. Foi expulso, e isso custara-lhe uma enorme tareia do pai.

Agora doía-lhe o corpo todo. Devia ter costelas partidas. Um espelho naque-le momento, e ver-se-ia um cadáver. O queixo mexia-se mas estava inchado. Tudo à conta dos murros do outro. Olhou para a frente. O careca do blusão negro estava a olhar. Seria para ele? Estava agarrado ao telemóvel. Albano sentiu-se incomoda-do. Não estava a gostar daquilo. Apaixonara-se e agora fugia. Ele e ela acabavam sempre estafados que nem umas bestas. Sonhara vê-la prenha dele. Aquele ar en-ganadoramente obediente fora sempre uma maneira de ela se entregar. Submissão

Page 122: Livro contos melhores 2014 edição final

122

Contos Melhores - 2014

a desvanecer-se na cama, loba cheia de cio. Teria Pepa montado toda aquela cena com o merdoso? Sobressaltou-se. Não tinha ainda pensado naquilo. Não. A sua rainha Inca não lhe faria uma coisa dessas. E ainda havia quem dissesse que era difícil viver sem regras. Um gajo capaz de pensar era o que deveria fazer.

Incomodado, percebeu que o autocarro ia parar outra vez. Levara a maior tareia da vida e agora estava ali encurralado. Talvez tivesse sido melhor sair antes. Não sabia. O barulho do motor baralhava-lhe os sentidos. A juntar às dores dos murros, agora doía-lhe a alma. Aquela sensação de que nunca mais veria Pepa acentuava-se nele e o gajo careca não tirava os olhos dali.

Albano pensara que depois de se ter divorciado da mulher iria refazer as suas emoções. Enganara-se. Com Pepa tudo não passava agora de uma canção incompleta, abandonada no palco a meio dos aplausos. E ela no dia em que se tinham conhecido a perguntar-lhe se ele vivia sozinho ou se tinha mulher. Três ou quatro respondera ele. Quando não estava ao pé dela, estivesse com quem estivesse, estava sempre só. Mas ela achara que ele devia ser feliz por viver como um artista. Albano sorriu ao pensar que se todos os amantes sonhavam, nem todos o faziam da mesma maneira. Os que sonhavam de noite, acordavam de dia para se encontrarem com a sua realidade. Os que como ele e Pepa tinham sonhado de dia, seriam sempre os mais autênticos. Tinham os olhos abertos para a realização dos seus desejos. Mas agora não sabia. Era melhor que o policial tivesse sido apanhado com uma dose de coca na esquadra e estivesse agora em prisão com saídas precárias.

Veio-lhe à cabeça o sonho daquela vez no motel. Cansados, ele e ela ti-nham adormecido. Ele sonhara que era um dos cinco trapezistas de um circo. Tudo a grande altura. Voavam como pássaros. Duas mãos agarravam sempre os que vinham do fim de um voo. Lá em baixo tremiam de emoção. Então entraram dois polícias na pista. Um deles era o outro, o enganado. Dois dos trapezistas estatelaram-se logo lá em baixo. Um terror. Ele também caíra. Quando acordara, Pepa gemia. Despertara-a com cuidado e então ela dissera-lhe que estava a meio de um pesadelo. Só gritava que era muito alto e que depois dos dois polícias terem invadido a pista todos tinham caído sem ela saber de onde. Pepa não entendera porque razão ele lhe fizera depois tanta pergunta. Se o pai dela aparecesse ali naquele momento para falar com ele seria bom. Aquelas coisas não aconteciam só às filhas dos amigos. Talvez ficasse ao lado deles. Pelo menos da filha. Ele e Pepa poderiam convencê-lo de que uma mão lava a outra, e as duas lavavam a cara.

Page 123: Livro contos melhores 2014 edição final

123

Contos Melhores - 2014

Não. Concluiu para si que estava a ser ingênuo.Outra paragem e o autocarro de novo imóvel. O gajo careca do blusão ia

sair. Mas porque olhara para ele? Um sorriso estranho. De repente alguém a chorar. Era o que lhe faltava. Um puto com a mãe a dar-lhe um par de estalos. “ Filha da puta”– pensou. Que bebedeira de ranho. Não era justo. Uma criança indefesa. A gaja nem um mimo lhe dava. Pobreza. A pobreza cristalizava as emoções e o co-ração não se mexia para nada. Um povo cansado de levar porrada e a vida ia-se. País dos matraquilhos. “Políticos de merda” – pensou. Por ele iam todos metidos a pique. Não podia ser por escumalha daquela que toda a gente se levantava todos os dias. Andorinhas à procura do lugar do ano anterior. Só que invariavelmente ninguém sabia a que ninhos pertenciam. Nem ele. Estava também perdido, assus-tado, confuso, mas seria Pepa quem ele procuraria a vida inteira. Não lhe agradava nada ir fazer companhia ao pobre do Stone. A mão estendida para a moedinha de arrumador e cheio de mijo. Fora assim que ele e Pepa se tinham conhecido. Num parque automóvel com o infeliz de sorriso aberto para os dois. A urina escorria-lhe pelas pernas abaixo e ensopava-lhe os sapatos. Depois ficara ali a sorrir para eles, como que abençoando as moscas que o rodeavam. Uma noite Albano apanhara-o estendido no mesmo sítio. Tinha uma mão toda espatifada com pedaços de ossos e tendões à mostra. Tivera uma trabalheira danada para correr a pontapé os dois rafeiros sarnentos que mordiam desalmados o desgraçado. O Stone ainda abrira os olhos. Estavam vermelhos. Albano ficara desfeito quando ele lhe balbuciara bai-xinho que só lhe apetecia morrer. E morrera mesmo ali, sem renda para pagar, sem contas da água e luz ou impostos para resolver, sem pensão para os miúdos, sem imposto de circulação, sem multas de trânsito, e sem os políticos de merda que dizia só poderem ser castigados com sessões de sexo anal.

O peito continuava a doer a Albano. Agora doía-lhe mais e o autocarro pa-rara outra vez. Gare do Oriente. Fim da linha. Tinha mesmo que sair. Sentiu que acabava de chegar ao outro lado da vida. Cada vez chovia mais e ele sem guarda--chuva. “E agora p’ra onde é que vou?” –pensou ao pisar o chão encharcado. Um táxi. Mas não se via nenhum. Havia ali gente a mais. Deveria ter descido antes.

Então, instintivamente, Albano sentiu que alguém o seguia. Alguém o estava a controlar. Tentou uma ligeira corrida mas apenas escutou um barulho abafado. Que clarão fora aquele? “Que dor, foda-se!” – pensou. Alguém o tinha alvejado. O polícia estava ali. Não sabia onde, mas o corpo ardia-lhe. O fogo do Inferno consumia-o.

Page 124: Livro contos melhores 2014 edição final

124

Contos Melhores - 2014

– Que cansaço amor! – sibilou. A cabeça pareceu-lhe girar sem parar. Outro estrondo arrasou-lhe os ouvidos. De novo uma dor enorme. Albano não se conse-guiu agarrar a nada. Mas que vulto era aquele? Não estava a ver bem. Sangue! Esvaia-se em sangue. Alguém estava agora atrás de si. Não. Não era o outro. Fosse quem fosse, acertara-lhe outra vez. Continuava a disparar. Mas quem seria? O que era aquilo? Não era o merdoso do polícia. Nem tinha essa honra? Sentiu que entre-tanto havia uma multidão a presenciar tudo mas ninguém se aproximava deles. Já não se aguentava em pé. Não tinha força nem para abrir os olhos. Caía lentamente de joelhos e o seu aspecto não devia ser dos melhores. Gente a gritar. Porquê!? Não conseguia respirar. As vozes vinham todas de longe e o fresco da calçada molhada soube-lhe bem. Acreditara que por Pepa mudaria o mundo, mas agora não via abrirem-se-lhe as portas do Céu, Não via o Filho à direita do Pai.

– Amor porque não estás aqui!? – saiu-lhe pela boca ensanguentada. Com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces, concluiu que era agora apenas um ligeiro sussurro do que já fora. Não via nada e sentiu sono. Como era possível!? A vista fora-se-lhe mas ouvia. Sirenes. Que barulho horrível. Estava aos poucos a despedir--se da sua bailarina. Pela primeira vez lembrou-se do filho de Pepa. “ Nunca lhe digas que morri como o Stone, na rua.” – pensou. As dores do corpo eram horríveis. “ Diz-lhe que me transformei num pássaro cor de laranja. É a cor preferida dele.” – pensou de novo. O corpo ardia-lhe tanto e ele passageiro daquela viagem sem regresso. Que ela deixasse as orquídeas de que gostava florescerem em honra da paixão dos dois. Só isso. No meio das dores já insuportáveis pressentiu que o es-tranho viera pôr-se à sua frente. Estava a contemplar a sua obra. Albano via apenas um vulto. Onde estaria o policial? Aquele outro estava a chorar? Baixinho. Mas o que era aquilo!? Não o conseguia ver. Só uma sombra. Novo estampido mas ele não sentiu nada. Perdoa-me querida filha? Foi o que ele dissera? No estertor da agonia Albano não percebia. O outro dera um tiro nele próprio? Perdoa-me querida filha!? De repente aquele rio pastoso e quente soube-lhe bem. Era o sangue do outro ain-da a borbulhar. Albano sentia-lhe agora a respiração. Caira ali. O pai de Pepa? Era o pai dela!? “Adeus amor. O fim da nossa história é aqui mas valeu a pena” – ainda pensou. Nos lábios sem vida o esboço de um sorriso.

*Al Cino Elyseu, formado em Relações Internacionais, Merceana, Portugal.

Page 125: Livro contos melhores 2014 edição final

125

Contos Melhores - 2014

O velho e o ventoCategoria internacional - 5.ª menção honrosa - Susana Luísa Carvalho Machado, Santa Maria da Feira, Portugal*

L á longe, numa terra bem distante, onde as montanhas se cruzam com o mar, vivia um homem muito pobre, mas solto e livre como o próprio ar.Há quanto tempo vivia ali ou como se tinha tornado tão pobre ninguém sabia,

ao certo, dizer. Pois muitos eram os que o viam caminhar até à praia, todos os dias, mas poucos havia que privassem com ele, lhe dirigissem a palavra ou que perce-bessem sequer o motivo que o levava a traçar esse caminho com tanta frequência.

A verdade é que o homem - o velho, se assim o preferirem chamar – depois de uma vida inteira de trabalho, acabou por ficar só, desamparado, sem qualquer fonte de subsistência, para além de uma parca reforma, que mal chegava para satisfazer as mais básicas das suas necessidades. Tornara-se, assim, um solitário, desses espíritos que, de tão livres, acabam por cortar até as amarras das relações pessoais.

Mas, ao contrário do que acontecia com aqueles que o viam deambular sem saber o que lhe dizer ou fazer, esse facto não o mortificava. Há muito que aprendera a ouvir as vozes da Natureza e achava infinitamente mais interessante e útil ouvir o que estas tinham para lhe dizer, do que a voz de muitos humanos.

Descia, por isso, todos os dias até à praia, onde se sentava no topo de uma rocha, para ouvir o vento falar.

O vento, de há muito seu conhecido, tinha sempre imensas histórias para lhe contar. Trazia novidades de tempestades marítimas e das terras do além-mar. Outras vezes, contava histórias de sereias e marinheiros ou simplesmente lhe fa-lava das riquezas que existiam nas terras longínquas, que ele nunca haveria de visitar.

Fossem novas corriqueiras ou as mais eloquentes novidades, o vento trazia sempre algo para lhe narrar. E não era só o velho que desfrutava com este ritual. O próprio vento degustava cada um desses momentos passados a contar histórias ao homem. Rodopiava em seu redor, ora lenta, ora agitadamente, sibilando aos seus ouvidos as notícias do mundo, que trazia consigo e que não gostava de guardar.

Page 126: Livro contos melhores 2014 edição final

126

Contos Melhores - 2014

E, assim, todos os dias se juntavam, naquela mesma praia, à mesma hora. Por vezes o vento falava baixinho, contando segredos que não queria espalhar, e sussurrava numa brisa leve, quase impossível para o velho, já com a audição afeta-da pela idade, decifrar. Mas em certos dias, de tanta empolgação, não se conseguia conter e bradava os acontecimentos, com fortes vergastadas que cortavam a face do homem.

A população, em redor, apenas ouvia o vento soprar ou uivar, mas do que ele dizia, nada podiam compreender. Apenas o velho tinha ouvido para estas con-versas.

Quer trouxesse lufadas quentes tropicais, ou rajadas frias polares, as con-versas com o vento enriqueciam sempre o coração do velho homem, que não tinha mais para partilhar.

Mas um dia o vento não veio…À mesma de hora de sempre, o homem desceu até à praia, onde se sentou

no topo da mesma rocha de sempre e esperou. Mas o vento não chegou. Esperou horas e horas a fio, convencido que este se atrasara. Talvez numa aventura das montanhas do Atlas ou no meio de um qualquer oceano…como saber por onde ele andaria?! Porém,as horas passaram e o dia deu lugar à noite e o sol refletiu-se na lua e o velho, cansado e fraco de fome, levantou-se e regressou a casa. Triste e curvado percorreu o caminho que separava a praia da montanha onde vivia, sem-pre olhando para trás, na esperança de ouvir uma voz chamar. Quando chegou à sua humilde casa deixou a janela aberta, não fosse ele, por acaso querer entrar…não que isso outrora tivesse acontecido, mas também nunca antes deixara de apa-recer. Mas ele não apareceu. O velho adormeceu, com a janela aberta pensando: Amanhã volto à praia e ele vai lá estar.

Mas, o facto, é que o vento não apareceu. Nem na manhã seguinte, nem nos dias que se sucederam. O velho, com medo que ele viesse na sua ausência e não soubesse onde o encontrar, deixou de ir para casa e ali, na mesma rocha de sempre, se deixou ficar.

Os vizinhos, ainda que habituados a ver o homem ali parado várias horas por dia, começaram a estranhar. Havia quem jurasse a pés juntos que, na última semana, ele passara as noites na praia, mas não havia vivalma com coragem para o ir confirmar. Há tanto tempo que na vila ninguém lhe falava, que ninguém sabia que lhe havia de ir dizer. Porém, as conversas sobre ele multiplicavam-se no café, na mercearia, na praça…

Page 127: Livro contos melhores 2014 edição final

127

Contos Melhores - 2014

“Alguém tem de fazer alguma coisa, vai morrer de fome ou frio!”, diziam uns. “Será que enlouqueceu completamente?”, questionavam outros. Mas, os dias iam passando e ninguém fazia nada.

E o velho ali ficava e esperava, esperava.Não conseguia compreender porque o vento tinha desaparecido…e o resto

das pessoas, será que não se apercebiam da ausência do vento?!Ao fim de vários dias, semi-adormeceu e foi acordado pelo que julgou ser

uma tênue aragem. Fora apenas um ligeiro salpico de uma onda que o acorda-ra, porém. Desiludido pelo quebrar da esperança que este momento lhe trouxera suspirou, de forma tão profunda e magoada, que a própria onda não foi capaz de conter a pergunta:

- Que se passa velho? Porque suspiras assim?- Há vários dias que o vento não sopra por aqui. Não saberás o que lhe terá

acontecido? – Perguntou o homem, lembrando-se que as ondas e o vento, por vezes se cruzam em grandes viagens.

- Olha que ouvi dizer que o vento não vai voltar!Houve quem o ouvisse con-tar que estava demasiado desiludido com o mundo e com as pessoas. O vento cor-ria pelo mundo, soprando ao ouvido deste e daquele, as narrativas que tinha para contar, trazendo daqui e d’além a riqueza das histórias que ouvia. Agora, o mundo é um lugar mais pobre, as pessoas estão mais pobres. Não porque lhe faltem bens e coisas, como acontece contigo, mas porque estão muito ocupadas para o escutar, para se escutarem umas às outras, para darem valor ao que realmente importa na vida… Creio que, no mundo inteiro, tu eras a única pessoa suficientemente rica, para valorizar essa relação que tinhas com ele.

O velho ficou a refletir nas palavras da onda, enquanto esta se afastava pelo mar dentro. O que poderia fazer para contrariar esta situação?! O que mudar, para o vento voltar?!

Então, em muitos anos, resolveu olhar à sua volta e observar o mundo que o rodeava e no qual há muito tinha deixado de participar.

Viu, ao longe, um e outro vulto olhando a praia. O vulto das pessoas que há dias se preocupavam com ele, mas não tinham coragem de o abordar. Viu que a vida continuava na vila, que apesar de ter perdido as conversas com o vento, tinha ainda muita gente com quem falar.

Levantou-se e começou a dirigir-se aos vultos que, ao verem a sua iniciativa perderam o receio e foram ao seu encontro. Depressa uma mulher veio com comi-

Page 128: Livro contos melhores 2014 edição final

128

Contos Melhores - 2014

da para o alimentar, uma menina com uma manta para o agasalhar e um homem com um ombro amigo para o apoiar.

Rodeado por uma pequena multidão, o velho percebeu que, embora fosse pobre, já não lhe faltava nada e deixou a praia, da qual não saía há semanas. Fê-lo para não mais voltar. Nas gentes da vila aprendeu a ouvir a riqueza das histórias que estas tinham para partilhar.

Contam as vozes, porém, que nessa mesma noite, o vento regressou para falar com o homem, mas não o encontrou. Por isso, todos os dias, à mesma hora de sempre regressa àquele lugar, fustigando com as suas rajadas a rocha onde este se costumava sentar, e nessa mesma rocha, vai deixando marcadas as histórias mais eloquentes ou corriqueiras, que traz das suas viagens, só para lhe contar.

*Susana Luísa Carvalho Machado, 31 anos, arquieteta, Santa Maria da Feira, Portugal.

Page 129: Livro contos melhores 2014 edição final

Parte 4Contos da

comissão julgadora

Page 130: Livro contos melhores 2014 edição final

130

Contos Melhores - 2014

O mascate

Categoria: comissão julgadora de 2014 - Marilurdes Martins Campezi, Araçatuba-SP*

Q uando, por minha janela, entra minha história, a me visitar em noite de lua cheia, eu lhe faço sala para me lembrar de mim. E hoje é uma dessas noites em que o sono é enganado pelo fio de um episódio que nunca contei

a ninguém. Seria diferente se apenas eu o contasse, mas agregados que somos, coloco-me no colo de minha visita para escrevê-la a duas mãos.

Ele era pontual. Aquele bigode preto e espesso não escondia o riso fingido de quem quer agradar para proveito próprio. Os olhos grandes, acesos, usavam cada segundo para perscrutarem os arredores em que viviam seus clientes. A pele morena e o formato do nariz denunciavam sua origem libanesa. Abdo trazia a gran-de mala repleta de sonhos, para que minha mãe, mulher nova e bonita, mergulhas-se no mundo que não era o seu. Sem possibilidade de frequentar lojas, recebia o mascate como importante visita. Ele atravessava o quintal de chão batido com seus sapatos pretos e lustrosos, fazendo um nhecnhec que cortava o silêncio respeitoso de nossa recepção. Minha mãe sorria ao vê-lo subir os dois degraus para pisar o chão de tijolos da única sala daquela casa de tábuas. Vinha carregando, na grande mala, os sonhos de consumo da pobre costureira. E o coração da mãe Amália batia forte, não pelo homem, mas pelas suas mercadorias: as suaves rendas e sedas estrangeiras expostas, após a água e o cafezinho, sobre a velha mesa escura: - “Bode bagar à brestação” – e espalhava os cortes dos tecidos sobre o único móvel da sala, herança deixada por minha avó paterna.

E eu ficava ali, de pé, encostada àquela mesa, a observar minha mãe ávida por obter alguns daqueles tecidos, para senti-los em seu corpo jovem e desejoso de se mostrar belo. Nunca, porém, aquela mulher podia comprar algum corte das preciosas fazendas macias, vindas de lugares ignorados por ela, embora “seu” Abdo fizesse tudo para convencê-la a ficar com uma delas.

Minha memória sussurra-me um detalhe: por minha mãe ser costureira, talvez isso atiçasse mais fogo à fogueira de seu desejo de compra. E lembro-me de que ela comprava poucos metros de um algodãozinho estampado, dando o mínimo de entrada como pagamento, sem a certeza de ter o dinheiro para pagar a

Page 131: Livro contos melhores 2014 edição final

131

Contos Melhores - 2014

prestação seguinte. Era sempre assim: às vezes ela quitava uma prestação; outras vezes comprava um tecido próprio para a ralé, embora sonhando com as sedas e as rendas dos mais nobres.

Percebendo aquela ambição de minha mãe, eu sofria por minha impotência infantil de fazê-la feliz. Eu até sonhava estar comprando um fino corte de renda francesa (naquela época eu não sabia o que era francesa) e depois, no meu sonho, minha mãe aparecia bela, dentro do elegante vestido que ela mesma cosera. Por isso, quando “seu” Abdo aparecia, eu corria do quintal até à porta de casa, subia, aos saltos, os dois degraus de tijolos e gritava para dentro, onde minha mãe costu-rava: - Mãe! O mascate tá chegando! – na esperança de provocar sua felicidade. E ela me repreendia: - Não é assim que se fala, Lia! O nome dele é seu Abdo!

Lembro-me de que, em um dia nublado, vi a figura inconfundível do vende-dor de sonhos abrir o portãozinho de madeira apodrecida e entrar pelo quintal de nossa casa, meu lugar sagrado, meu lugar de sonhos pisoteado por aquele homem que só deixava tristeza atrás de si. - Mãe, o “seu” Abdo tá chegando!

Ele sorria para ninguém, só para mostrar simpatia, e invadia meu território para provocar aquela rápida sombra no olhar de minha mãe. Eu não sabia o porquê daquela sombra, mas hoje, ao me sentar com minha história, ela sussurra que isso acontecia por dois motivos: o dinheiro que teria que entregar a ele, guardado para a mistura do amanhã, e o vazio que ficaria após a ida do mascate levando tudo de mais belo que ela queria.

Mas o senhor Abdo fingia não perceber esses pequenos detalhes, pois seu objetivo era estimular a cobiça da minha amada mãe costureira para ver as luzes que tomavam conta de seu olhar, mas sem ver as sombras, ao passar as mãos pelos belos tecidos da Europa e do Oriente. Eu notava os dedos dela a alisarem as sedas por algum tempo, para depois abrirem a gavetinha da máquina de costura, tirar dali uns parcos trocados e entregá-los ao homem bigodudo e próspero, para quitar a prestação do “tecidinho” de algodão. A seguir, Abdo recolhia as sedosas fazendas e rumava em direção ao portão, para a sua peregrinação de venda.

Algumas ocasiões em que não suportava ver a cena da pobreza, eu ficava no quintal, pensativa, procurando compreender a tristeza no rosto de minha mãe quando de volta à máquina de costura. Será que não havia um jeito de conseguir aquela seda? Pelo menos um corte... Isso, porém, permanecia no campo das con-jecturas que eu logo esquecia, pois meu mundo infantil era mais urgente que as cobiças e vaidades humanas. Eu não sabia dos ardis da vida para um ser adulto

Page 132: Livro contos melhores 2014 edição final

132

Contos Melhores - 2014

tentar alcançar a felicidade. E eis que nossa sala foi o ponto de apoio para que um fato inesperado vies-

se a mostrar-me a mãe que eu ainda não conhecia. Após um mês da última visita, o mascate chegou suado pela caminhada, cheirando a alfazema muito forte. Eu não sabia, mas minha mãe o esperava. Notei-a um tanto nervosa.

– Boa tarde, bela menina! Boa tarde, dona Amália! Dá licença pra Abdo mostrar os tecidos mais bonitos e finos, que senhora jamais viu!

Mamãe cumprimentou-o com recato, serviu-lhe a água e o café que ele degustou antes de espalhar aquele fantástico mundo luxuoso diante dos olhos da-quela jovem e pobre mulher. Eram sedas finíssimas: failles e tafetás, shantungs e rendas francesas, sedas e organdis importados. A velha mesa sustentava aquele luxo e destoava dele como o tecido que cobria o corpo de minha mãe destoava dos expostos sobre o móvel. Ela acariciou cada corte das fazendas com a suavidade de amor recolhido com desejo de se doar. Seus olhos se derramaram sobre uma seda estampada de flores brancas cobrindo o fundo grená. Pegou-a e tentou guardá-la como se guarda um segredo, mas depositou-a suavemente sobre a mesa. Con-versou sobre sua dívida com o vendedor e foi até a gaveta da máquina de costura buscar o dinheiro da última prestação do tecido ordinário que vestia. Ofereceu-lhe água antes de pagá-lo. Ajudou-o a recolher os tecidos espalhados ostensivamente naquele tampo de mesa.

Enquanto ele dobrava os cortes, mamãe falava sem parar, um pouco mais alto que de costume. Antes de fechar a mala, “seu” Abdo deu uma última olhadela para ver se tudo estava em ordem. Então veio a surpresa:

– Onde tá o “bano” de seda “bermelha”? Abdo tem certeza de que mostrou ele “bra” dona Amália!

– Não sei não, “seu” Abdo. Eu nem vi essa seda! Olhe melhor em sua mala. Meu coração ficou aos saltos. O mascate olhou na mala, no chão, na mesa,

de novo na mala, e não encontrou o corte. Eu sabia que ela ficara longo tempo com o pano nas mãos, e por certo, ele também o sabia. - Paga logo o mascate, mãe! – gritei aflita.

Ela olhou-me quase assustada e estendeu o dinheiro da prestação que ele logo pegou. Olhava para ela desconfiado: - Abdo não sabe o que a senhora “vez”, mas ficou com o corte da seda bermelha, está roubando Abdo!

– Olhe aqui, seu mascate de uma figa, eu não preciso das suas sedas, não! Tenho mais o que fazer do que ficar ouvindo o senhor dizer que eu roubei um corte

Page 133: Livro contos melhores 2014 edição final

133

Contos Melhores - 2014

de pano! Essa foi a última prestação e eu não quero que venha mais aqui, ouviu?E assim falando, minha mãe pegou a mala do mascate, ainda aberta e

jogou-a porta afora. Depois voltou diante do assustado comerciante e empurrou-o degraus abaixo, sem escrúpulos. Ele precisou de se esforçar muito para não cair, pegou sua mala do chão batido do quintal, recolheu os tecidos espalhados e saiu quase correndo, aos tropeções, portão afora.

Meu coração de filha veio à boca. Encostei-me ao batente da porta com os olhos marejados. Mamãe, ainda agitada, percebeu que seu segredo agora estava dividido. Passei a noite procurando entender o que havia acontecido sem concluir coisa alguma.

Tempos depois, meus olhos novamente se encheram de lágrimas cujo sal penetrava de mansinho em minha boca, quando vi minha mãe sair, toda bonita, num vestido de seda grená com flores brancas.

Minha história está impaciente para livrar-me das recordações, mas resolvi retê-la por mais algum tempo para fazer-lhe a pergunta que se instalou dentro de mim por tantos anos. O luar inunda o quarto e eu quase posso ver a face de minha visita com um sorriso triste. E ela reacende, em minha memória, uma imagem: a mesa! Aquela mesa apoiava-se numa caixa quadrada com metade de sua medida, no lugar dos pés. Essa caixa tinha uma portinhola corrediça e dentro dela minha mãe guardava os tecidos de suas freguesas. Foi ali que, a uma distração do mas-cate, jogou o tecido, abrindo a tampa da mesa, pois havia uma divisão ao meio dela, fechando-a em seguida. Ele jamais imaginaria que o suporte da mesa fosse uma caixa de guardados. Eis aqui a minha resposta.

A lua recolhe sua prataria preciosa, guardando-a atrás de nuvens que pre-nunciam chuva. Minha história, com o escuro, resolveu partir. Sua missão foi cum-prida por hoje: fez-me menina para lembrar e adulta para perdoar.

*Marilurdes Martins Campezi é professora, escritora, vencedora da 1.ª edição (1985) do Concurso de Contos Cidade de Araçatuba, vários livros publicados, membro da Academia Araçatubense de Letras e da União Brasileira dos Escritores.

Page 134: Livro contos melhores 2014 edição final

134

Contos Melhores - 2014

Uma noite de outonoCategoria: comissão julgadora 2014 - Emilia Goulart, Araçatuba-SP*

A porta que dava saída para o fundo da casa não fora trancada e dançava num vai e vem monótono, ao som da ventania que agitava o arvoredo contornava a propriedade. Lá dentro duas moças debruçadas sobre os livros não que-

riam perder tempo. Estavam às vésperas do vestibular. O sítio não ficava tão longe, mas, o suficiente para que ninguém as inco-

modasse. A irmã mais velha se casaria dentro de alguns dias, e a casa na cidade estava com um movimento de pessoas fora do normal. Por esse motivo Rita con-vidou sua amiga Andréa, para irem ao sítio da família onde estudariam sem serem interrompidas a todo o momento.

Fizeram uma compra para abastecer a despensa por uma semana, o tempo que faltava para as provas do vestibular, encaixotaram os livros necessários, note-books e apostilas.

– Não se esqueça de levar a lanterna do papai. – Lembrou-lhe a mãe.– Para quê?– Nunca se sabe, seu pai sempre leva.Rita ligou o motor do carro e ia sair quando a mãe vem gritando de dentro

da casa:– Suas malucas, estão esquecendo os celulares.– Não... Não nos esquecemos. Decidimos não levar, você não nos daria

sossego.A mãe ficou com os dois celulares nas mãos, um sorriso tolo nos lábios e

um coração apertado no peito. Havia prometido todo o silêncio do mundo para que a filha não fosse. Mas os argumentos da estudante foram mais convincentes e Rita acabou vencendo.

– Mãe... Não vai acontecer nada. O sítio é bem guardado, tem caseiro com a esposa e cães de guarda muito bem treinados.

À noite o vento de outono açoita com mais força as portas da casa, uma rajada mais forte abre a porta dos fundos e a faz cantar um lamento fúnebre que pausa com um baque e recomeça com o ranger das velhas dobradiças. Lá fora as

Page 135: Livro contos melhores 2014 edição final

135

Contos Melhores - 2014

árvores contorcem e gemem.As duas se entreolham, alguém deveria ir fechar direito a porta. An-

dréa sugeriu:– Vamos jogar palito, quem perder vai fechar.Andréa perdeu, levanta-se mas o medo a paralisa, Rita esta mais familiari-

zada com a casa:– Vou eu, sua medrosa.Parou um instante no umbral da porta para observar a ventania e o enfu-

recido arvoredo que marginava a estrada se digladiar. Ao longe visualizou os faróis de um carro parado bem onde a estrada que levava à casa, fazia uma bifurcação com a rodovia. Não quis passar seu temor para a amiga, afinal podia ser apenas um motorista que parou para urinar. A próxima entrada era de uma fazenda que ficava alguns quilômetros á frente.

Nenhum barulho nem um som a não ser o do vento lá fora, que teimava em abrir e fechar aquela porta. Rita sugeriu que deveriam arrastar um móvel e assim acabarem com a graça do vento. Na verdade queria reforçar a segurança.

– Será que vem chuva? — Pergunta Andréa.– Olhando pela janela, poderei responder. Rita procurava um pretexto para dar uma olhada e ver se o carro havia se-

guido pela rodovia. Não queria alarmar a amiga sem motivos. Da janela ela poderia ver a estrada lá na frente e saberia se ele havia ido embora.

– Deixa-me ver.— Caminhou até a janela mas, Andréa disse quase implo-rando:

– Você não vai abrir mais nada hoje, começo a me arrepender de ter vindo. Ainda bem que avisei ao Toninho onde estaríamos.

Toninho era o namorado que ela conhecera há dois meses.– Você não deveria ter dito a ninguém. Foi o que combinamos não foi? – Nossa Rita, ele é gente boa, seus pais sabem onde estamos!– É diferente! Está bom, não vamos discutir, mesmo porque não estou com

o mínimo de vontade de dirigir a noite.Um calafrio a fez arrepiar. Se uma daquelas árvores caísse sobre a estrada

elas não conseguiriam sair dali. Rita tentou não demonstrar suas preocupações. Continuaram os estudos, meias horas depois estavam bem mais tranquilas, até o vento havia dado uma trégua. O pai de Rita havia dito que o casal de caseiros que moravam bem ao fundo da propriedade soltava os cães a noite, mas, até aquele

Page 136: Livro contos melhores 2014 edição final

136

Contos Melhores - 2014

momento ela não ouvira movimento dos cães.Bem ainda era cedo demais.Mais tarde ela ouviu barulho em uma lata que tombou, parou e prestou

atenção, Andréa estava tensa.– Não foi nada, o caseiro já deve ter soltado os cães.– Que bom agora melhorou, porque não me disse que tinha cães?Rita não respondeu, achou estranho que além do barulho da lata nada mais

se ouviu. Passaram mais alguns minutos, o silêncio lá fora era assustador. Afinal, seriam aqueles cachorros tão silenciosos? Continuaram com suas leituras e de vez em quando discutiam baixinho alguma dúvida que surgia.

Meia noite, deram uma parada nos estudos para prepararem um lanche. Tomaram um chocolate quentinho com algumas torradas e voltaram aos estudos. A noite seria longa. Andréa pergunta:

– E os cachorros? Não latem?– Talvez o caseiro tenha se esquecido de soltá-los ou devido ao mau tempo

deixou para soltá-los mais tarde. Rita não acreditava no que dizia, mas se a amiga entrasse em pânico seria

ainda pior.– Não houve motivo para eles latirem. Esta ventania está para passar, feliz-

mente a energia não foi cortada, sinal que estamos exagerando na nossa avaliação do temporal. Como se ela tivesse feito um pedido muito especial, foram atendidas. Um estalo misturou-se a um raio que iluminou o interior da casa para em seguida mergulhá-la na escuridão. O som do trovão ia longe, deixava para trás uma árvore que não suportou o forte vendaval e foi ao chão caindo atravessada na estrada.

Elas só iriam saber se o dia amanhecesse para elas.Devido à escuridão reinante no interior da casa, logo Andréa pegou no sono.

A aparente tranquilidade da amiga lhe deu a calma necessária para adormecer.Enquanto Rita, aguardava algum barulho dos cães. De repente ela ouviu alguns passos que tanto poderia ser dos cachorros,

do caseiro ou de outra pessoa. Pensou em chamar pelo nome do caseiro, porém, desistiu.

Trac...trac, aqui mulher vire essa lanterna para cá. – Não disse que era o fusível?A luz se fez e os passos se afastaram, Rita acompanhou os passos do casal

até desaparecerem. Adormeceu.

Page 137: Livro contos melhores 2014 edição final

137

Contos Melhores - 2014

De manhã perguntou ao caseiro porque ele não soltara os cães.– Estava muito feio o tempo, fiquei com dó. Com aquele temporal quem se

atreve a deslocar-se até aqui? Se ladrões fossem trabalhadores não assaltavam.No canil eles estavam protegidos. Agora as moças me dão licença que eu

vou avisar seu pai... —Rita o interrompeu:– Não precisa estamos indo embora. Ainda bem que nada do que temíamos

aconteceu.– Pois é isso e por isso mesmo que devo avisá-lo, se ele não mandar um

trator prá tirar aquela árvore da estrada, você não consegue tirar o carro e acho que não querem passar mais uma noite aqui?

*Emilia Goulart dos Santos é escritora, vários livros publicados, já foi vencedora do Con-curso de Contos Cidade de Araçatuba, membro da Academia Araçatubense de Letras e da União Brasileira de Escritores.

Page 138: Livro contos melhores 2014 edição final

Parte 5 Anexos

Page 139: Livro contos melhores 2014 edição final

139

Contos Melhores - 2014

Participantes da Comissão Jugadora

Carlos Brefore

Márcia Lorca

Tito Damazo

Emília Goulart

Marilurdes Martins Campezi

Page 140: Livro contos melhores 2014 edição final

140

Contos Melhores - 2014

Cartaz de divulgação do concurso