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  • 8/14/2019 Dostoivski Contos

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    Dostoievski

    Contos

    Os Mais Brilhantes Contos de Dostoiewski

    Traduo de Ruth Guimares.

    Edies de Ouro

    1970

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    O Subsolo

    I

    EU SOU um homem doente... Sou um homem malvado. Sou um homem desagradvel. Creioque tenho uma doena do fgado. Alis, no compreendo absolutamente nada da minha molstia eno sei mesmo exatamente onde est o mal.

    No me cuido, nunca me cuidei, se bem que estime os mdicos e a medicina. Demais, souextremamente supersticioso, o bastante, em todo o caso, para respeitar a medicina (sou bastanteinstrudo: poderia ento no ser supersticioso, mas sou). No! Se no me trato, pura maldade deminha parte. No sabereis certamente compreender. Pois bem! Eu compreendo. No podereievidentemente explicar-vos em que errei, agindo to malvadamente: sei muito bem que no so osmdicos que eu incomodo, recusando-me a tratar-me. No engano seno a mim mesmo; re-conheo-o melhor que ningum. Entretanto, mesmo por malvadez que no me trato. Sofro do

    fgado! Tanto melhor! E tanto melhor ainda se o mal piora.

    H muito tempo j que eu vivo assim: uns vinte anos, pouco mais ou menos. Fui funcionrio,pedi demisso. Fui um funcionrio muito ruim. Era grosseiro e tinha prazer em s-lo. Podia bem mecompensar desta maneira, pois que eu no aceitava gorjetas (esta brincadeira no tem graa; masno a suprimirei. Escrevi-a crendo que teria esprito; no a apagarei, entretanto, expressamente;porque vejo que queria me dar ares de importncia). Quando os solicitantes em busca deinformaes se aproximavam da mesa diante da qual eu estava sentado, eu rangia os dentes; sentiauma volpia indizvel, quando conseguia causar-lhes algum aborrecimento. Conseguia-o quasesempre. Eram geralmente pessoas tmidas, acanhadas. Solicitantes, pois qu! Mas havia s vezespresumidos entre eles, petulantes, e eu detestava particularmente certo oficial. Ele no entendia de

    submisso e arrastava o grande sabre, de um modo detestvel. Durante um ano e meio movi-lheguerra, por causa desse sabre, e finalmente sa vencedor: ele parou de teimar. Isto, alis, se passavano tempo da minha mocidade.

    Ora, sabeis, senhores, o que excitava, sobretudo minha raiva, o que a tornava particularmentevil e estpida? que eu me inteirava vergonhosamente, mesmo quando a minha blis seesparramava mais violentamente, que eu no era mau homem, no fundo, no era nem mesmo umhomem azedo, e que tomava gosto, muito simplesmente, em assustar os pardais. Tenho espuma naboca; mas, trazei-me uma boneca, oferecei-me uma chvena de ch bem doce, e provvel que eume acalme; sentir-me-ei mesmo muito comovido. verdade que, mais tarde, morderei os punhos deraiva, e de vergonha perderei o sono durante alguns meses. Sim, eu sou assim.

    Menti antes, quando disse que tinha sido um mau funcionrio. Foi por despeito que menti.Tentava muito simplesmente distrair-me com os solicitantes e esse oficial, e nunca pude conseguirtornar-me realmente mau. Com efeito, verificava sempre em mim a presena de um grande nmerode elementos diversos que se opunham violentamente. Sentia-os fervilharem em mim, por assim

    O autor do dirio e o dirio mesmo so, evidentemente, imaginrios. No entanto, claro que tais pessoas como oescrito destas notas no apenas podem, mas positivamente, devem, existir em nossa sociedade, quando nsconsideramos as circunstncias em meio s quais nossa sociedade constitudas. Tentei expor ao pblico em geral, deuma forma mais enftica do que comumente se usa, um dos tipos do passado recente. Ele um dos representantes deuma gerao que ainda vive. Neste fragmento, intitulado O Subsolo, esta pessoa apresenta-se e a viso dele, e, como

    ele sempre foi, tentando explicar as causas prprias pela quais ele fez sua apario e foi levado a realizar sua aparioem nosso meio. No segundo fragmento, h outra anotaes adicionais s notas atuais desta pessoa relacionadas a certosacontecimento de sua vida. NOTAS DO AUTOR.

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    dizer. Sabia que estavam presentes sempre e aspiravam a manifestar-se do lado de fora, mas eu noos deixava; no, no lhes permitia evadirem-se. Atormentavam-me at vergonha, at s con-vulses. Oh! Como eu estava fatigado! Como estava saturado!

    Mas no vos parece, senhores, que eu me arrependo e que vos peo perdo de no sei que

    crime? Estou certo, senhores, que ides imaginar isso... Mas, alis, digo-vos que, quer vs oimagineis ou no, isso me indiferente...

    Jamais consegui nada, nem mesmo me tomar malvado; no consegui ser belo, nem mau, nemcanalha, nem heri, nem mesmo um inseto. E agora, termino a existncia no meu cantinho, ondetento piedosamente me consolar, alis, sem sucesso, dizendo-me que um homem inteligente noconsegue nunca se tornar alguma coisa, e que s o imbecil triunfa. Sim, meus senhores, o homemdo sculo XIX tem o dever de ser essencialmente destitudo de carter; est moralmente obrigado aisso. O homem que possui carter, o homem de ao, um ser essencialmente medocre. Tal aconvico de meus quarenta anos de existncia.

    Tenho quarenta anos atualmente. Ora, quarenta anos, toda a vida, a profunda velhice. inconveniente, imoral, vil viver alm dos quarenta. Quem vive depois dos quarenta anos?Respondei sinceramente, honestamente! Vou dizer-vos, sim, eu: os imbecis, os patifes, esses vivemmais de quarenta anos. Eu o proclamarei face de todos os velhos, de todos os respeitveis velhos,de todos os velhos de cabelos cor de prata e perfumados! Eu, o proclamarei face do universointeiro. Tenho o direito de falar assim, porque eu, eu viverei at os sessenta anos! At os setentaanos! At os oitenta anos! Mas esperai! Deixai-me tomar flego!

    Imaginais, certamente, senhores, que me proponho vos fazer rir? Enganais-vos a esse respeito,como sobre o resto. No sou de modo algum tio divertido como vos parece, ou quanto vos podeparecer. De resto, se agastados por tida essa tagarelice (estais irritados, sinto j), vs me perguntaiso que sou, afinal de contas, responderei: sou um assistente de colgio. Entrei na administrao parapoder comer (mas unicamente para isso), e quando no ano passado um dos meus parentes afastadosme legou por testamento seis mil rublos, pedi depressa minha demisso e me enterrei no meu canto;ali morava j h muito tempo, mas instalei-me agora definitivamente. O quarto que ocupo nosconfins da cidade feio, e desmantelado. Minha criada uma velha camponesa que a burrice tornoumalvada; alm disso, cheira mal. Dizem-me que o clima de Petersburgo me prejudicial, e que avida custa caro demais para os recursos nfimos de que disponho. Sei disso; sei bem melhor quetodos esses sbios conselheiros. Mas fico em Petersburgo. No deixarei Petersburgo porque.. . . Queeu parta ou no, alis, que importa!...

    Mas, do que um homem honesto pode falar com mais prazer?

    Resposta: de si mesmo.

    Pois bem! Vou ento falar de mim mesmo!

    II

    Quero agora contar-vos, meus senhores, quer o desejeis ou no, por que eu no consegui nem

    mesmo me tornar um inseto. Declaro-vos solenemente: um grande nmero de vezes j tentei tor-nar-me um inseto; mas no fui julgado digno disso.

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    Uma conscincia clarividente demais, asseguro-vos, senhores, uma doena, uma doena

    muito real. Uma conscincia ordinria nos basta mais que amplamente em nossa vida cotidiana, isto, uma poro igual metade, a um quarto da conscincia outorgada ao homem culto do nossosculo XIX e que, para sua desgraa, habita Petersburgo, a mais abstrata, a mais premeditada das

    cidades que existem sobre a terra (pois h cidades premeditadas e outras que no o so). Ter-se-ia,por exemplo, amplamente o suficiente dessa poro de conscincia que possuem os homens ditossinceros, espontneos, assim como os homens de ao.

    Imaginais, aposto, que escrevo tudo isto por atitude, para zombar dos homens de ao, parame dar importncia, como esse arrastador de sabre de que falava h pouco, mas seria uma atitude demuito mau gosto. Quem pensaria ento, dizei-me, senhores, em se glorificar com suas doenas efazer delas motivo de orgulho?

    Mas que digo eu! Todo o mundo age assim. precisamente de suas molstias que cada umtira glria e eu, provavelmente, ainda mais que os outros. No discutamos! Minha objeo

    estpida.

    Entretanto - estou firmemente convencido - a conscincia, toda conscincia umaenfermidade. Eu o sustento. Mas deixemos isto por agora. Respondei-me alisto: como era possvelque sempre, no instante mesmo - sim, como se fosse de propsito - precisamente no instante em queeu era o mais capaz de apreciar todas as nuanas do belo, do sublime, corno se dizia entre ns hpouco tempo, me acontecesse no somente pensar, mas fazer coisas tio incongruentes que... aes,para ser breve, que todos levam a cabo talvez bem, mas que eu praticava justamente quando tinhaperfeita conscincia de que era preciso me abster? Quanto mais o bem e todas as coisas "belas esublimes" se tomavam claras minha conscincia, mais profundamente eu me afundava na minhalama, mais eu me sentia capaz de me enterrar definitivamente. Porm o que era particularmentenotvel, que esse desacordo no parecia uma coisa fortuita, dependendo das circunstncias, masparecia vir por si e se produzir muito naturalmente. Dir-se-ia que era meu estado normal e de modonenhum uma doena ou um vcio; a tal ponto que, finalmente, perdi todo o desejo de lutar. Enfim,para concluir, admito quase (talvez o admita completamente) que tal era com efeito o estado normaldo meu esprito. Mas, antes, no comeo, quantos sofrimentos suportei pacientemente nessa luta!No acreditava que outros pudessem estar no mesmo caso, e durante toda a minha vida escondi estaparticularidade como um segredo. Eu tinha vergonha (pode ser que tenha vergonha ainda hoje). Istoia tio longe que me acontecia gozar uma espcie de prazer secreto, vil, anormal, ao entrar em casa,no meu buraco, por uma dessas noites petersburguesas sujas e feias, e repetindo-me que tinha aindacometido uma vilania, nesse dia, e que era impossvel reaparecer l em cima. E inquietava-me ento

    interiormente. Eu me atormentava, despedaava-me, bebia longamente a minha amargura,fartava-me tanto, que finalmente sentia uma espcie de fraqueza vergonhosa, maldita, onde gozavauma volpia real. Sim, uma volpia! Uma volpia! Insisto nisso. Comecei a falar disto,precisamente porque eu quero saber com justeza se os outros conhecem tais volpias.

    Explicar-vos-ei: a volpia, neste caso, provinha de que eu me inteirava demais da minhahumilhao; ela unia-se sensao de ter atingido um ltimo limite: tua situao abominvel, masno pode ser outra; no te resta nenhuma salda; nunca poders mudar, porque, mesmo que tivesseso tempo e a f necessrios, tu mesmo no quererias tomar-te um homem diferente; e, alis, aindaque quisesses mudar, serias incapaz: com efeito, mudar em qu? -No h talvez nada alm disso!

    Mas o essencial - e isto o fim dos fins - que tudo se cumpre conforme as leis fundamentaise normais da conscincia requintada e dela flui diretamente, embora seja completamente impossvel

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    no somente mudar, mas em geral, reagir, de um modo qualquer. A conscincia requintada nos diz,por exemplo: "sim, tens razo, tu s um canalha"; mas o fato de eu poder verificar a minha prpriacanalhice, no me consola de jeito nenhum de ser um canalha. Mas isto chega!... Quantas palavras,meu Deus. Mas que explicaste? De onde provm essa volpia? Procuro explicar-me entretanto. Ireiat o fim. Foi para isto que tornei a pena...

    Assim, por exemplo, tenho um amor-prprio terrvel; sou to desconfiado e suscetvel comoum corcunda, ou um ano. Mas, verdadeiramente, houve minutos da minha existncia em que, seme tivessem dado uma bofetada, eu teria sido muito feliz, talvez. Falo seriamente: teria podidocertamente encontrar a algum prazer, o prazer do desespero, evidentemente; o desespero queencobre as volpias mais ardentes, sobretudo quando a situao parece realmente sem sada. Ora, a,no caso da bofetada, quanto aniquilamento esta sensao de ter sido esmagado assim!

    Mas o principal que sempre acontece que sou eu o culpado, de qualquer lado que seexaminem as coisas, e, o que mais, culpado sem afinal o ser, ou dito por outra forma: deconformidade com as leis da natureza. Sou culpado, em primeiro lugar porque sou mais inteligente

    do que todos aqueles que me rodeiam (julguei-me sempre mais inteligente do que aqueles que mecercam, e acontece-me at - imaginai! - sentir-me confuso com a minha superioridade, de tal modoque durante a minha vida tenho olhado as pessoas de esguelha, por assim dizer, e nunca pude enca-r-las bem de frente). Sou culpado, alm disso, porque mesmo que eu tivesse tido um sentimentoqualquer de generosidade, a conscincia de sua inutilidade no teria servido seno para meatormentar ainda mais. Eu no teria podido certamente tirar nada da: no teria podido perdoar, poiso ofensor teria me atacado conforme as leis da natureza, as quais no fazem caso do nosso perdo;mas impossvel, por outro lado, esquecer, pois o insulto, por mais natural que seja, nem por issopermanece menos. Enfim, mesmo que eu renunciasse a ser generoso e quisesse, ao contrrio,vingar-me do ofensor, no poderia faz-lo, porque me era impossvel decidir-me a agir, mesmo quetivesse esse direito.

    E afinal, por qu? a esse respeito que eu queria dizer-vos algumas palavras.

    III

    Como as coisas se passam entre aqueles que so capazes de se vingarem e, em geral, de sedefenderem?

    Quando o desejo de vingana se apodera de seu esprito, no h lugar neles seno para esse

    desejo. Precipitam-se para a frente sem se desviarem, cornos abaixados, como touros furiosos, e nose detm na carreira seno quando se encontram diante de um muro. (A propsito, diante de ummuro, esses senhores, isto , as pessoas simples e espontneas, os homens de ao, se apagam ecedem com toda a sinceridade. Para eles esse muro no de maneira alguma o que para nsoutros, os que pensamos, e, por conseqncia, no agimos; quer dizer, uma escusa; no de modoalgum, a seus olhos, um pretexto cmodo para arrepiar caminho, pretexto no qual ns outros noacreditamos, como uma regra. No, eles nada perdem com toda esta sinceridade. O muro tem paraeles algo de tranqilizante, moralmente calmante, final talvez mesmo misterioso... mas do muro.)

    Pois bem, precisamente esse homem simples e espontneo que considero como o homemnormal por excelncia, no qual pensava nossa terna me Natureza quando nos fazia amavelmentenascer sobre a terra. Invejo esse homem, no o nego: ele estpido. Mas, que sabeis a esse

    respeito? possvel que o homem normal deva ser burro. possvel mesmo que isso seja muitobelo. E essa suposio me parece tanto mais justificada quanto, se tomarmos a anttese do homem

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    normal, isto , o homem com a conscincia refinada, o homem sado no do seio da natureza, masde um alambique ( quase misticismo, senhores, mas estou inclinado tambm a essa suspeita), v-seque esse homem alambicado se apaga por vezes a tal ponto diante da sua anttese e lhe cede que,malgrado todo o refinamento de sua conscincia, acontece-lhe no mais se considerar seno topequeno quanto um rato. Ser talvez um rato extremamente clarividente, mas nem por isso menos

    um rato, e no um homem, enquanto que o outro bem um homem; em conseqncia... etc., etc.Mas o pior que ele se considera a si mesmo como um ratinho, ele mesmo! Ningum, com efeito,exige dele essa confisso. E isto muito importante.

    Vejamos ento um pouco esse ratinho em ao. Ele tambm foi ofendido, por exemplo (ele sesente quase continuamente ofendido), e pretende se vingar. possvel que acumule em si mais raivaainda do que o homem da natureza e da verdade. O desejo desprezvel e mesquinho de pagar ao seuofensor o mal com o mal o domina, talvez ainda mais violentamente do que domina o homem danatureza e da verdade, porque este, em sua rudeza natural, considera sua vingana como uma aoperfeitamente justa, enquanto o ratinho no lhe pode admitir a justia, por causa de sua conscinciamais clarividente. Mas eis-no enfim chegados ao ato mesmo da vingana. Em acrscimo vilaniainicial, o desgraado ratinho conseguiu acumular em torno de si, sob a forma de dvidas e

    hesitaes, tantas outras vilanias, primeira indagao ajuntou tantas outras, completamenteinsolveis, que, por mais que faa, criou em torno de si um atoleiro fatal, um lodaal fedorento, umcharco de lama, formado de suas hesitaes, de suas suspeitas, de sua agitao, de todos os escarrosque fazem chover sobre ele os homens de ao que o cercam, o julgam, o aconselham e dele riem abandeiras despregadas. No lhe resta ento mais nada a fazer, evidentemente, que abandonar tudo,simulando desprezo, e desaparecer vergonhosamente em seu buraco. E l, num sujo e lamacentosubterrneo, nosso ratinho insultado, batido e escarnecido lentamente mergulha na sua raiva fria,envenenada e, sobretudo, inesgotvel. Durante quarenta anos ele se lembrar do insulto sofrido, emtodos os seus pormenores mais vergonhosos ainda, excitando-se malvadamente, atiando-lhe aimaginao. Ele prprio ter vergonha, mas evocar todas as mincias, passar em revista uma auma todas as circunstncias, inventar mesmo outras, sob o pretexto de que teriam podidoacontecer, e no perdoar nada. Talvez, inicie a sua prpria vingana, tambm, mas, como sempre,pacfica, atravs de tentativas, s escondidas, incgnito, sem mesmo acreditar no seu direito devingana, ou no sucesso desta vingana, sabendo que por todos os esforos para se vingar ir sofrerum centena de vezes mais nele prprio, que aquele de quem quis se vingar, posso estar exagerando,sofra um nico arranho. Em seu leito de morte ainda se lembrar de tudo novamente, com interesseacumulado sobre todos os anos e....

    Mas, neste frio, abominvel, metade desprezo, metade crena, na qual sua conscincia vivesubmersa, em desgosto neste submundo por quarenta anos, no qual atualmente reconhece-se e aindaespera, um pouco em dvida, de sua prpria posio, neste inferno de desejos insatisfeitos tornadosntimos, no qual febres de oscilaes, de resolues determinadas para sempre e declinada

    novamente um minuto mais tarde que o saber deste estranho contentamento do qual eu tenhofalado reside. Isto to inesperado, to difcil de analisar, que pessoas que so um pouco limitadas,ou mesmo simplesmente pessoas de nervos fortes, no compreendero uma nica partcula disto.Possivelmente, voc ira acrescentar, em sua prpria considerao, com um sorriso amplo eforado, pessoas no o compreendero, a menos que voc nunca tenha recebido um tapa no rosto,e deste modo voc polidamente insinua que eu, tambm, talvez, tenha tido a experincia de um tapano roso em minha vida, e por isto eu questione como uma pessoa que conhece. Eu aceito que vocpense assim. Mas, permita-me expor o restante de meus pensamentos, senhores, eu no recebi umtapa no rosto, embora seja absolutamente indiferente para mim que voc pense assim.Possivelmente, eu mesmo admita, para mim mesmo que eu tenho dado to poucos tapas na facedurante minha vida. Mas, no entanto... vejamos uma outra palavra sobre este assunto do to extrema

    importncia para voc.

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    Continuarei considerando calmamente pessoas com forte nervos que no compreendem umcerto refinamento da alegria. Embora em certas circunstncias estes senhores baixem seus cornoscomo touros, ainda assim, devemos supor que eles acreditam piamente, ainda, como j disse,estarem diante do impossvel que surge de uma vez. O impossvel significa o muro de pedras! Porque muro de pedra? Por causa, evidentemente, das leis da natureza, das dedues, das dedues das

    cincias naturais, da matemtica. Assim, eles provam a voc, por exemplo, que voc descendentede um maado, no considere isto por uma questo acadmica, mas por um fato. Quando elesprovam a voc que na realidade uma gota da sua prpria gordura dever ser mais querida por voc,que um centena de anos deste seu carter amigvel, e que esta concluso a soluo final de todaassim chamada virtude e dever e todos tais preconceitos e fantasias, ento voc ter que aceita-lo,no haver sada, como duas vezes dois uma lei matemtica. Tentemos refutar isto.

    Dou-lhe minha palavra, eles gritam para voc, no tente protestar: um caso de duas vezesdois ser igual a quatro! A Natureza no pede a sua permisso, ela no tem que fazer o que vocquer, e quer voc goste ou no dela, voc est limitado a aceita-la como ela , e consequentementetodas as suas concluses. Um muro, voc v, um muro e assim por diante, e assim por diante.

    Cus Bondosos! Mas o que fazer se considero as leis da natureza e da aritmtica, e quando,por alguma razo, eu desgosto destas leis e do fato de que duas vezes dois seja quatro?Evidentemente, eu no posso quebrar o muro batendo minha cabea nele, se eu realmente no tenhoa fora suficiente para derrub-lo, mas eu no vou simplesmente me conciliar com isto porque uma parede de pedras e eu no tenho fora.

    No entanto, este muro de pedras realmente foi um consolo, e realmente contm algumaspalavras de conciliao, simplesmente porque uma verdade que duas vezes igual a quatro. Oh,absurdo dos absurdos! Tudo bem, se para compreender tudo, para reconhecer tudo, toda aimpossibilidade do muro de pedras; no se concilie com estas impossibilidades e muros de pedras,se te desagrada reconciliar com isto; por meio das combinaes mais lgicas e inevitveis paraatingir as mais revoltantes concluses sobre este tema, que mesmo para o muro de pedras voc sesente culpado, ainda que, novamente, seja claro como o dia que voc no tem culpa nenhuma, e,portanto, rangendo seus dentes, em silncio, impotente para afundar dentro da suntuosa inrcia,medita sobre os fatos e que no h um nico motivo para voc sentir-se vingado, que voc no tem,e talvez nunca ir ter, um objeto para seu rancor, que uma prestidigitao, um naco demalabarismo, um curinga de trapaceiro, que simplesmente uma trapaa, no saber o que e nosaber quando, mas, a despeito de todas estas incertezas e malabarismos, ainda h um sofrimento emvoc, e quanto mais voc no sabe, pior voc sofre.

    IV

    "Ah! Ah! Ah! Se assim, voc chegar a descobrir uma certa volpia at na dor de dentes!",exclamais vs, rindo.

    - Mas, sim, responderei; h uma volpia na dor de dentes: tive dor de dentes um ms inteiro;sei o que digo. No se sofre em silncio, neste caso; geme-se. Mas a esses gemidos falta franqueza;h neles certa malignidade, e tudo est ali, precisamente. Esses gemidos exprimem a volpiadaquele que sofre; se a doena no lhe trouxesse um certo prazer, ele cessaria de se 'queixar. umexemplo excelente, senhores, e vou desenvolv-lo.

    Esses gemidos exprimem, primeiramente; a conscincia to humilhante da perfeita inutilidade

    de vosso sofrimento, sua legalidade do ponto de vista da natureza, sobre a qual escarrais, evidente-mente, mas que vos faz sofrer, permanecendo perfeitamente impassvel. Significam tambm - que

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    vs compreendeis que o inimigo no existe, mas que a dor est l, mesmo assim, e que, com todosos vossos Wagenheim, sois o escravo de vossos dentes: quando calhar, vossos dentes cessaro dedoer; mas se foi decidido de outra maneira, eles vos faro ainda sofrer durante trs meses. E, se vsrecusais a vos submeter e protestais apesar de tudo, no vos resta outro meio de vos consolardesseno o de vos esbofeteardes e de quebrardes os punhos contra a parede. Pois bem! So preci-

    samente essas ofensas sangrentas, essas chalaas, que se permite no se sabe quem, so elas quesuscitam esta sensao de prazer, a qual atinge por vezes a suprema volpia.

    Eu vos suplico, senhores, prestai ateno uma vez aos gemidos de um homem culto do sculoXIX que sofre dos dentes h dois ou trs dias, quando ele se pe a gemer de modo diferente doprimeiro dia, isto , no unicamente porque tem uma dor, no como um grosseiro campons, mascomo um ser instrudo que se ps em contato com a civilizao europia, como um homem "des-ligado do solo natal e dos princpios nacionais", como se diz hoje em dia. Seus gemidos se fazemmaus, raivosos e no cessam mais, nem de dia nem de noite. Ele prprio sente muito bem,entretanto, que no lhe so de nenhuma utilidade. Melhor que ningum, sabe que irrita os que orodeiam e os tortura, e se tortura a si mesmo, sem proveito nenhum. Sabe que o pblico e a famlia,

    diante da qual se debate, no experimentam mais que desgosto com suas queixas, no maisacreditam nelas, e compreendem que poderia gemer de outra maneira, mais simplesmente, semtodos esses trinados, sem todas essas atitudes, e que ele exagera por malcia e por malvadez... Poisbem! A est! justamente nessa humilhao claramente vista que jaz a volpia. "Ah! Eu vosdesoriento, dilacero-vos o corao, impeo de dormir toda a casa! Pois bem! Tanto melhor! Nodurmais ento! Convencei-vos de que tenho dor de dentes! No sou mais para vs esse heri quepretendia ser; no passo de um pobre poltro, de um patife! Tanto melhor! Estou feliz, mesmo queme tenhais adivinhado enfim! Meus miserveis gemidos vos so penosos de ouvir? Tanto pior! Euvos lanarei numa roda-viva mais bela ainda!. . .

    Continuais a no compreender, senhores? - Sim, para poder apanhar todas as nuanas dessavolpia sensual, preciso que vossa conscincia atinja uma grande profundidade. Rides? Sou muitofeliz. Minhas brincadeiras, senhores, so de muito mau gosto, certamente; so embrulhadas e soamfalso. Tudo isto provm de que eu no me respeito: mas aquele que se conhece pode se estimar, porpouco que seja?

    V

    possvel verdadeiramente sentir ainda algum respeito por si mesmo, aquele que se dedicou adescobrir uma certa volpia na conscincia da sua prpria humilhao? Isto que digo no de modo

    algum ditado por inspido remorso. E em geral, detesto dizer: - Perdoe-me, papai, no o fareinunca mais!" No porque seja incapaz de pronunciar estas palavras, mas talvez muito ao contrrio,porque sou capaz demais!

    E como um fato expresso, eu me precipitava para a frente precisamente quando no estavaabsolutamente para nada no negcio. Era o que havia de mais repugnante. E com isto eu meenternecia, confessava-me, chorava e, por fim, naturalmente, enganava-me a mim mesmo, nodissimulando, entretanto: era meu corao quem me pregava estas partidas de mau gosto.

    Neste caso nem sequer nos podamos queixar das leis da natureza, embora essas leis metivessem feito sofrer numerosos vexames no curso da minha existncia. penoso recordar tudo isto,

    e, de resto, naquele momento era muito penoso tambm. Com efeito, um minuto mais, econveno-me raivosamente de que tudo isto no seno mentira, mentira ignbil, infame

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    comdia - esta contrio, este enternecimento, estes juramentos de vida nova! Vs me perguntareisporque me torturava, porque me deslocava assim? Resposta: porque me aborrecia demaispermanecer de braos cruzados; eis a porque me entreguei a essas contores. Era assim, asseguro.Observai bem, senhores, e verificareis ento que as coisas se passam precisamente assim. Euimaginava aventuras e criava para mim uma existncia fantstica para viver de um modo ou de

    outro. Quantas vezes, por exemplo, cheguei a me ofender, por motivos absurdos, de propsito:sabes bem, tu mesmo, que no h por que se zangar, e que te excitas a frio, mas te aqueces a talponto que chegas finalmente a te encolerizar sinceramente.

    Tive sempre o gosto por estas histrias. Tanto e to bem que finalmente perdi todo podersobre mim mesmo. Uma vez, duas vezes mesmo, quis me forar a me apaixonar. Sofri mesmo, se-nhores, garanto. No se acredita nesse sofrimento, no fundo da alma, ri-se dele, quase, mas sofre-severdadeiramente, de maneira muito real; fica-se com cime, fora de si ... E a causa de tudo isto, otdio, meus senhores; a inrcia nos esmaga. O fruto legtimo, o fruto natural da conscincia comefeito a inrcia: cruzam-se os braos com conhecimento de causa. J falei disso. Digo e repito cominsistncia: todos os homens simples e sinceros, todos os homens ativos, so ativos justamente

    porque so obtusos e medocres.

    Como explicar isto? Eis aqui: por causa de sua estreiteza de esprito, eles tomam as causassecundrias, imediatas, pelas causas primeiras; e bem mais facilmente, bem mais rapidamente queos outros, imaginam ter encontrado razes slidas, fundamentais, para sua atividade. Ento eles setranqilizam; ora, isto o principal. Para poder agir, com efeito, preciso previamente atingir umaperfeita tranqilidade e no mais conservar nenhuma dvida. Mas como alcanar essa tranqilidadede esprito? Onde poderia eu encontrar os princpios fundamentais sobre os quais possa construir?Onde est minha base? Onde iria procur-la?

    Excito-me pensando. Por outras palavras, toda a causa em mim arrasta imediatamente umaoutra aps ela, ainda mais profunda, mais fundamental, e assim em seguida, at o infinito. Tal aessncia de todo o pensamento, de toda a conscincia. Encontramo-nos ento diante das leis danatureza. E o resultado? sempre o mesmo, lembrai-vos! Falei-vos antes em vingana (certamenteno penetrastes muito bem a coisa). Diz-se: o homem se vinga porque considera que isso justo.Encontra ento o princpio fundamental que procurava: a justia. Sente-se ento completamenteapaziguado e vinga-se com toda a tranqilidade e com pleno sucesso, estando persuadido quecumpre uma ao justa e honesta. Ora, quanto a mim, eu no vejo nisso nada de justo nem de bom;e, se, por conseguinte, tento me vingar, pura malvadez da minha parte. A raiva poderiaevidentemente vencer todas as hesitaes e seria ento capaz de desempenhar com sucesso o papeldessa razo fundamental, precisamente porque ela no pode ser considerada como tal. Mas que

    fazer, se no sou suficientemente malvado? (Indiquei-o desde o comeo.)Minha raiva submetida a uma espcie de decomposio qumica, em virtude justamente

    dessas mesmas malditas leis da conscincia. Mal distingui o objeto do meu dio, ei-lo que se desva-nece, os motivos se dissipam, o responsvel desapareceu, o insulto no mais insulto, mas umgolpe do destino, alguma coisa como uma dor de dentes, de que ningum culpado. E no me restamais ento outro consolo que quebrar meus punhos contra a parede. Na impossibilidade deencontrar as causas primeiras, renuncio ento minha vingana com um desdm afetado. Ah! Se agente tentasse abandonar-se a seu sentimento, cegamente, sem reflexo alguma, sem procurarnenhuma razo, afastando para bem longe de si toda a conscincia, nem que fosse por algum tempo!Seria ento uma coisa muito diferente! Maldize ou adora, mas no permaneas de braos cruzados.

    A partir do depois de amanh - ltimo adiamento - tu te desprezars de ter conscientemente teenganado a ti mesmo. Resultado final: bolha de sabo, inrcia.

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    Ah! Senhores! possvel que eu me considere extremamente inteligente pela nica razo de

    que, em toda a minha vida, nunca pude comear nem acabar fosse o que fosse. No passo pois deum tagarela, de um tagarela inofensivo, de um impertinente como ns todos. Mas que fazer,senhores, se o destino de todo homem inteligente tagarelar, isto , derramar gua numa peneira!

    VI

    Oh! Se eu no tivesse passado de um preguioso! Como eu me teria respeitado a mim mesmo!Ter-me-ia respeitado precisamente porque me teria visto capaz ao menos de preguia, porque teriapossudo ento ao menos uma qualidade definida, da qual estaria certo. Pergunta: Quem s?Resposta: um preguioso! Teria sido verdadeiramente muito agradvel ouvir chamar-se assim. Tuests ento definido de maneira positiva; h alguma coisa ento a dizer da tua pessoa. .. "Umpreguioso!" - um ttulo, uma funo, uma carreira, meus senhores! No riais disto; assim.Teria sido, assim, por direito, membro do primeiro clube do universo e teria passado todo o meu

    tempo a me respeitar. Conheci um sujeito cujo orgulho era ser entendido em Laffitte. Consideravaessa qualidade como uma virtude muito preciosa e no duvidou jamais dele. Morreu com aconscincia no somente tranqila, mas triunfante mesmo, e teve razo. Eu teria nesse casoescolhido uma carreira: teria sido um preguioso e um gluto; no um guloso vulgar, mas umgozador, interessando-se por "tudo que belo e sublime". Que pensais? H muito tempo sonho isso."O belo e o sublime" pesam como chumbo sobre a minha nuca desde que fiz quarenta anos. Desdeque tenho quarenta anos! Mas antes? Teria sido muito diferente! Teria logo encontrado uma formade atividade adaptada ao meu carter: por exemplo, beber sade de todas as coisas "belas esublimes". Teria agarrado cada ocasio de beber glria "do belo e do sublime", depois de ter,previamente, deixado cair uma lgrima na minha taa. Eu teria ento tornado todas as coisas "belase sublimes"; teria descoberto "o belo e o sublime", at nas torpezas mais incontestveis; teriaderramado prantos to abundantes, como aqueles que deixa escapar uma esponja. Um pintor, porexemplo, comps um quadro digno de Gay, logo eu bebo sade desse pintor, porque amo tudo que "belo e sublime". Um poeta escreveu COMO AGRADAR A CADA UM, e eu bebo depressa sade de cada um, - porque amo "o belo e o sublime". Isto me valer o respeito geral; exigirei esserespeito; perseguirei com a minha clera aquele que mo recusar. Vivo pacificamente, morrosolenemente. No admirvel? No esquisito? Teria deixado crescer um ventre to opulento, teriaerguido para o alto um nariz to gorduroso, teria ornado meu rosto com um queixo to vasto, quetodos ao me verem teriam exclamado: "Eis a um ser bem real, um ser positivo!" Como quiserdes,mas bem agradvel ouvir dizer tais coisas a seu respeito em nosso sculo, to essencialmentenegativo.

    VII

    Mas no so seno sonhos de ouro!

    Oh! Dizei-me qual foi aquele que primeiro declarou, que proclamou primeiro que o homemno comete vilanias seno porque no se apercebe de seus prprios interesses, e que se fosse escla-recido, se lhe abrissem os olhos sobre seus verdadeiros interesses, sobre seus interesses normais,cessaria imediatamente de cometer vilanias, e se tornaria no mesmo instante bom e honesto, pois,esclarecido pela cincia e compreendendo seus verdadeiros interesses; encontraria no bem sua

    prpria vantagem? Como est entendido que ningum pode agir conscientemente contra seu prprio

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    interesse, o homem seria ento por assim dizer colocado na necessidade de fazer o bem. Oh!Criana! Criana pura e ingnua!

    Mas dar-se- que o homem, no curso desses milhares de anos, no agiu seno segundo o seuinteresse? Que faremos ento desses milhes de fatos que atestam que os homens, tendo embora

    perfeita conscincia do seu interesse, o relegam a segundo plano e enveredam por um caminhototalmente diferente, cheio de riscos e de acasos? No so, entretanto, forados a isso; mas pareceque querem precisamente evitar a estrada que se lhes indicava, para traar livremente,caprichosamente, uma outra, cheia de dificuldades, absurda, mal reconhecvel, obscura. que essaliberdade possui a seus olhos mais atrativos que seus prprios interesses ... O interesse! Que ointeresse? Vs vos empenhais em me definir com toda a exatido em que consiste o interesse dohomem? Que direis vs se um belo dia se vem a descobrir que o interesse humano em certos casospode ou mesmo deve consistir em desejar, no uma vantagem, mas um mal? Se assim, se essecaso se pode apresentar, ento tudo desmorona. Que pensais disto? Tal caso pode se apresentar?

    Vs rides! Ride, senhores, mas respondei! Os interesses humanos esto enumerados com

    exatido? Ser que no existem alguns que no entram em nenhuma das vossas classificaes e nopodem a encontrar lugar? Com efeito, tanto quanto sei, senhores, organizastes vosso registro dosinteresses humanos de acordo com as cifras mdias das estatsticas e das frmulaseconmico-cientficas. Os interesses humanos so, pois, segundo vs, a riqueza, a tranqilidade, aliberdade, e assim por diante; de maneira que, o homem que repelisse consciente e ostensivamente ovosso registro, deveria ser considerado, na vossa opinio, e, alis, tambm na minha, como umobscurantista, um louco? No assim? Mas eis o que bem estranho: como possvel que todosesses estatsticos, esses sbios, esses filantropos, deixem constantemente de lado um certo elemento,nos seus clculos de interesses humanos? Eles no querem mesmo lev-los em conta nas suasfrmulas, cujos resultados assim falseiam. A coisa no seria difcil, entretanto; por que nocompletar a lista e introduzir-lhe o elemento em questo ?... Mas a dificuldade provm de que esseelemento to particular no pode encontrar lugar em nenhuma classificao e no pode se inscreverem nenhuma lista. Eis um exemplo: eu tenho um amigo... Mas fico pensando nisso! Vs oconheceis tambm; ele o amigo de todo o mundo.

    Quando se prepara para agir, esse senhor comea por explicar-vos muito claramente, combelas e grandes frases, como lhe preciso agir para se conformar razo e verdade. poucodizer: ele discutir com paixo, com entusiasmo, interesses reais e normais da Humanidade;escarnecer cegamente dos tolos que no compreendem nem seus verdadeiros interesses, nem overdadeiro valor da virtude. Mas, um quarto de hora depois, nem mais cedo nem mais tarde, semrazo nenhuma, sob um impulso interior mais poderoso que todas as consideraes do interesse, ele

    far uma coisa ridcula, uma tolice qualquer, e agir ento contra todos os preceitos que tinhacitado, contra a razo, contra os seus interesses, contra tudo...

    Previno-vos, de resto, que meu amigo uma personalidade coletiva e que difcil, porconseqncia, conden-lo sozinho. precisamente a isto que quero chegar, senhores! No h umacoisa, com efeito, que nos seja a todos mais cara que os nossos interesses mais preciosos? Poroutras palavras (para no violar a lgica): no existe para ns um interesse (aquele que se deixa delado, aquele de que acabamos de falar) mais interessante que todos os outros interesses, maisprecioso que todos eles, e pelo qual o homem est pronto, se for preciso, a agir contra todas asregras, isto , contra a razo, sacrificando-lhe sua honra, sua paz, sua felicidade, todas as coisasbelas e vantajosas, em uma palavra, nada seno para atingir uma coisa nica que lhe mais cara que

    todas as outras, que constitui a seus olhos seu interesse supremo?

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    - Sim, - direis, - mas ainda de interesse que se trata... - Permiti! Vamos nos explicar; no com jogos de palavras que se pode esclarecer a questo. O que faz a singularidade dessa coisa,desse interesse, que ele destri todas as nossas classificaes e altera todos os sistemas edificadospelos amigos do gnero humano para a felicidade do homem. Em uma palavra, um embarao, umobstculo. Mas antes de vos apontar essa coisa, quero me comprometer pessoalmente, e afirmo

    ento com altivez que todos esses belos sistemas, que todas essas teorias que pretendem explicar Humanidade em que consistem seus interesses normais, a fim de que ela se torne logo virtuosa enobre no seu esforo para atingir os ditos interesses, declaro que tudo isso no passa de logstica.Sim, pura logstica! Crer que a renovao do gnero humano possa realizar-se fazendo-lhe conhecerseus verdadeiros interesses, equivale, no meu modo de pensar, a admitir com Buckle que acivilizao suaviza o homem, que se torna cada vez menos sanguinrio, menos guerreiro. Bucklechegou a esse resultado muito logicamente, creio. Mas o homem nutre tal paixo pelos sistemas,pelas dedues abstratas, que est pronto a desfigurar conscientemente a verdade, pronto a fechar osolhos a tapar os ouvidos diante da verdade, tudo para justificar sua lgica.

    Tomo este exemplo porque convincente. Olhai pois em torno de vs! O sangue corre em

    borbotes, alegremente mesmo, como champanha. Vde nosso sculo XIX, no qual viveu Buckle!Vede Napoleo, o outro, o grande, e o de hoje! Vede a Amrica do Norte e sua unio, estabelecidapara a eternidade! Vede enfim esse caricatural Schleswig-Holstein. Ento em que que acivilizao nos adoa? A civilizao no faz mais que desenvolver em ns a diversidade dassensaes... nada mais. E graas ao desenvolvimento dessa diversidade, muito possvel que ohomem acabe por descobrir uma certa volpia no sangue. Isto alis j aconteceu.

    Notastes j que os sanguinrios mais refinados foram sempre senhores muito civilizados,junto dos quais todos esses tila, todos esses Stenka Razine fariam uma figura bem mesquinha. Seesses senhores se fazem notar menos, que se encontram mais freqentemente e estamoshabituados com isso. Mas se a civilizao no tornou o homem mais sanguinrio, tornou-o semdvida mais sordidamente, mais covardemente sanguinrio. Antigamente, o homem consideravaque tinha o direito de derramar sangue, e era com a conscincia bem tranqila que destrua o quebem lhe parecia. Hoje, embora considerando a efuso de sangue uma ao condenvel, nem por issodeixamos de matar, e mais freqentemente ainda do que antes. Isto vale mais? Decidi vs mesmos.Diz-se que Clepatra (desculpai este exemplo tirado da Histria Romana) divertia-se em espetaragulhas no seio das escravas e experimentava grande prazer com seus gritos e contores.Dir-me-eis que isso se passava numa poca relativamente brbara, que nosso sculo brbarotambm, pois continuam a espetar agulhas na carne, que o homem, se bem que tenha adquirido umacompreenso mais clara das coisas que, naqueles recuados tempos, no pde ainda se habituar seguir as normas da razo e da cincia. Mas estais certos, no obstante, que ele se habituar quando

    se desfizer completamente de certas tendncias ruins, e quando o senso comum e a cincia tiveremcompletamente reeducado a natureza humana, e a tiverem orientado para um caminho normal.Estais certos de qu ento o homem deixar de se enganar deliberadamente e se ver por assimdizer na impossibilidade de querer opor sua vontade aos seus interesses normais.

    Mas h mais ainda: ento, dizeis, a cincia ensinar ao homem (mas, na minha opinio, isto j um luxo suprfluo) que ele nunca teve vontade, nem caprichos, e que no passa, em suma, de umatecla de piano, de um pedal de rgo; o que realiza, por conseguinte, realiza-o, no segundo suavontade, mas conforme s leis da natureza. Basta pois descobrir essas leis, e o homem ento nopoder mais ser considerado responsvel por suas aes, e a vida se lhe tornar extremamente fcil.Todas as aes humanas podero ser evidentemente calculadas matematicamente, de acordo com

    essas leis, como se faz para os logaritmos, at o centsimo milsimo, e sero inscritas nas

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    efemrides, ou far-se-o livros estimveis no gnero dos nossos dicionrios enciclopdicos, ondetudo ficar to bem calculado e previsto, que no haver mais aventuras, nem mesmo mais aes.

    Ento, e sois vs quem continua a falar, ver-se- estabelecerem-se novas relaes econmicas,que sero, por sua vez, fixadas com preciso matemtica, que todas as dvidas desaparecero logo,

    pela simples razo de que se tero descoberto todas as solues. Ento se edificar um vasto palciode cristal. Ento veremos o Pssaro de Fogo, ento... No se pode certamente garantir (sou eu quefalo agora) que no ser terrivelmente fastidioso (que fazer, com efeito, se tudo est calculado efixado de antemo?); em compensao, sero todos muito sbios. Evidentemente o tdio pode sermau conselheiro: o tdio que nos faz enterrar agulhas de ouro na carne... Mas isto no nadaainda. O que mais grave (sou eu quem continua a falar) que talvez nos acharemos ento muitofelizes de ter mo agulhas de ouro: o homem bruto, terrivelmente bruto, ou melhor dizendo, no to bruto quanto ingrato, e difcil encontrar quem seja mais ingrato que ele. Eu no ficaria poisadmirado se, no meio dessa felicidade, se levantasse de sbito um cavalheiro despojado deelegncia, com o rosto "retrgrado" e escarninho, e que nos dissesse, pondo as mos na cintura:"Pois bem, senhores! Se jogssemos por terra, de um s pontap, toda essa felicidade tranqila,

    nada mais que para mandar os logaritmos ao diabo e poder recomear a viver segundo a nossa tolafantasia?" Isso no seria ainda nada; mas o mais terrvel que esse personagem encontrariacertamente discpulos. O homem feito assim. E tudo isso por causa de uma coisa nfima que sepoderia desprezar completamente, parece: tudo isso porque todo e qualquer homem aspira, sempre eem todas s situaes, a agir segundo sua vontade e no de acordo com as prescries da razo e dointeresse; ora, vossa vontade pode e deve mesmo, por vezes (esta idia me pertence, comopropriedade particular), se opor aos vossos interesses. Minha vontade livre, meu arbtrio, meucapricho, por estapafrdio que seja, minha fantasia sobreexcitada at a demncia, eis precisamente acoisa que se pe de lado, o interesse mais precioso que no pode encontrar lugar em nenhuma devossas classificaes, e que quebra em mil pedaos todos os sistemas, todas as teorias.

    Onde, pois, aprenderam os nossos sbios que o homem tem necessidade de no sei quevontade normal e virtuosa? Por que imaginaram eles que o homem tem aspiraes aps uma certavontade racional e til? O homem no aspira seno depois de uma vontade independente, qualquerque seja o preo e sejam quais forem os resultados. Mas s o diabo sabe o que essa vontade vale...

    VIII

    "Ah! ah! ah! mas a vontade, isso coisa que no existe!" - vs me interrompeis rindo. - "Acincia j conseguiu to bem dissecar o homem que, a partir de agora, sabemos que a vontade e o

    que se chama de livre arbtrio no passam de..."Permiti, senhores! Eu prprio me preparava para comear assim. Tive mesmo medo,

    confesso-vos: ia gritar que a vontade depende, sabe o diabo de qu, e que talvez se trate de algomuito bom, mas lembrei-me da cincia e mordi a lngua: foi ento que me interrompestes. Comefeito, se se conseguir descobrir a frmula de todos os nossos desejos, de todos os nossos caprichos,isto , de onde provm, de acordo com que leis se desenvolvem, como se reproduzem, para que finstendem em tais ou tais casos, etc., provvel, ento, que o homem deixe logo de querer, nem sequer provvel, certo. Que prazer haver em no querer seno em conformidade com tbuas declculos? Mas isto dizer pouco ainda: o homem cair imediatamente na categoria de uma simplespea. Na verdade que um homem despojado de desejo, de vontade, seno uma pea, uma

    transmisso?! Que pensais disto? Examinemos pois as probabilidades: tal ou tal coisa poder seproduzir ou no?

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    - Hum! - dizeis. - Nossos desejos se enganam muito freqentemente, porque nos enganamos

    na avaliao dos nossos interesses. Acontece-nos querermos coisas ineptas porque, com a ajuda danossa estupidez, cremos nos aproximarmos assim do que consideramos como particularmenteinteressante. Mas quando tudo estiver explicado, quando tudo for posto em ordem e fixado de

    antemo (o que muito possvel, pois ridculo, pois estpido crer que certas leis da naturezapermanecero indecifrveis), ento, evidentemente, no haver mais lugar para o que se chama dedesejos. Se nossa vontade entra ento em conflito com a nossa razo, poderemos raciocinar e noquerer, porque impossvel a um ser racional desejar inpcias, contradizer conscientemente a razoe procurar prejudicar-se... E urna vez que todos os desejos e todos os raciocnios podero sercalculados antecipadamente, porque estaro descobertas as leis do nosso suposto livre arbtrio,tornar-se- possvel, um dia, (eu no gracejo) organizar uma espcie de lista, e ter vontade,reportando-nos a ela. Admitamos que me seja provado um dia que se eu mostrei o punho fechado aalgum, que no podia agir de outra forma, e que devia fechar o punho precisamente assim; deque liberdade disponho eu ainda, sobretudo se sou eu prprio instrudo e se possuo um diploma?Posso ento calcular minha existncia com trinta anos de antecedncia. Numa palavra, se isto se

    realizar, no teremos mais nada a fazer seno compreender. E, em geral, devemos repetir-nos semdescanso que nesse instante e precisamente nessa circunstncia, a natureza no se preocupa conoscode maneira nenhuma, e que preciso aceit-la como , e no como a enfeita a nossa fantasia, e quese aspiramos realmente s frmulas, s efemrides, aos alambiques, no h nada a fazer, precisoaceitar o alambique; seno ele passar perfeitamente sem a nossa aprovao,

    Sim, mas aqui justamente que me aparece a dificuldade. Mas, perdoai-me por me ter postoassim a filosofar. No o esqueais: tenho quarenta anos de subsolo. Permiti-me soltar as rdeas minha fantasia. Vede, senhores, a razo uma coisa excelente; isto incontestvel; mas a razo arazo e no satisfaz seno a faculdade de raciocnio do homem, enquanto que o desejo a expressoda totalidade da vida, isto , da vida humana inteira, inclusive a razo e seus escrpulos; e, se bemque nossa vida, tal como se exprime assim, se revista freqentemente de um aspecto muito velhaco,nem por isso menos vida, e no a extrao da raiz quadrada.

    Assim comigo, por exemplo: eu quero viver, naturalmente, a fim de satisfazer minhafaculdade de existncia em sua totalidade e no para satisfazer unicamente a minha faculdade deraciocnio, que no representa, em suma, seno a vigsima parte das foras que esto em mim. Quesabe a razo? A razo no sabe seno o que aprendeu (ela no saber nunca outra coisa,provavelmente; e embora isso no seja uma consolao, no o devemos dissimular), enquanto que anatureza humana age com todo o seu peso, por assim dizer, com tudo que ela contm em si,consciente e inconscientemente; acontece-lhe cometer disparates, mas vive.

    Suspeito, senhores, que me considerais com um certo desdm: vs me repetis que impossvel a um homem esclarecido e culto, ao homem do futuro, em uma palavra, que lhe impossvel querer deliberadamente o que for contrrio aos seus interesses; claro como asmatemticas. Estou inteiramente de acordo: sim, matematicamente exato. Mas repito-vos pelacentsima vez: existe um caso, um nico, em que o homem pode deliberadamente, expressamente,rebuscar o que lhe desfavorvel, o que lhe parece estpido, inepto, com o nico fim de se subtrair obrigao de escolher o aproveitvel, o digno. Porque essa inpcia, esse capricho, talvez seja,efetivamente, meus senhores, o que h de mais vantajoso para ns sobre a terra, sobretudo emcertos casos. possvel mesmo que essa vantagem seja superior a todas as outras, mesmo quandonos manifestamente prejudicial e contradiz as concluses mais justas do nosso raciocnio.

    Conserva-nos, com efeito, o principal, o que nos mais caro, isto , nossa personalidade. Algunsafirmam que isso precisamente o que temos de mais precioso. A vontade pode querer por vezes se

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    pr de acordo com a razo, sobretudo se no se abusa desse acordo e se dele se aproveita mo-deradamente. Isto pode ser til e digno de aprovao. Mas, muito freqentemente, o mais freqentemesmo, a vontade recusar-se obstinadamente a concordar com a razo, e ento... ento... Massabeis que isto tambm extremamente til e digno de aprovao?

    Admitamos, senhores, que o homem no um bruto. No se dizer, com efeito, que ele o seja,porque se o fosse, quem poderia ento reivindicar a inteligncia? Mas se no um bruto, nomnimo monstruosamente ingrato, extraordinariamente ingrato. Creio mesmo que a melhordefinio que se possa dar do homem: um ser com dois ps e ingrato. Mas no tudo ainda: esseno ainda o seu principal defeito. Seu principal defeito o mau carter, que ele conservouinaltervel, desde o dilvio universal at o perodo schleswig-holsteiniano de nossa Histria. Maucarter, e, em conseqncia, conduta insensata, porque se sabe h muito tempo, que esta decorredaquele. Tentai, lanai um olhar pela Histria da Humanidade! Que vedes? grandioso,dizeis? - Sim, bem pode ser; s o colosso de Rodes j representa alguma coisa. E no em vo queM. Anajevski nos lembra que, segundo uns, o colosso era uma obra humana, ao passo que outrosafirmavam que era o produto das foras naturais. Estareis chocados pela variedade? Sim, h nisso

    uma certa variedade: para disso nos convencermos, basta lanarmos uma olhadela pelos grandesuniformes civis e militares, e se lhes ajuntarmos as pequenas fardas, perder-nos-emoscompletamente; nenhum historiador resistir a isso. Montono, direis? - possvel. No se fazseno guerrear, com efeito. Luta-se hoje, lutou-se ontem, lutar-se- amanh mesmo um poucomontono demais, confessai!

    Numa palavra, pode-se dizer tudo da Histria Universal, tudo que se apresentar imaginaomais desregrada. Mas impossvel dizer que ela racional; equivocar-vos-eis desde a primeiraslaba. E, ademais, eis ainda o que se passa constantemente: homens aparecem, sensatos e de bonscostumes, filantropos, cujo fim levar uma existncia racional e honesta, a fim de agirem peloexemplo sobre seus semelhantes e de provar-lhes que possvel viver sabiamente. Mas queacontece, ento? Sabe-se que grande nmero desses amantes da sabedoria acabam, mais cedo oumais tarde, por trair suas idias e se comprometem em escandalosas histrias.

    Pois bem! Eu vos pergunto: o que se pode ento esperar do homem, desse ser dotado dequalidades to estranhas? Tentai derramar sobre ele todos os bens da terra; mergulhai-o na felici-dade, to profundamente, que no se distingam mais na superfcie seno algumas bolhas de ar:satisfazei suas necessidades econmicas to completamente que ele no tenha mais nada a fazerseno dormir, comer pes de mel, e pensar nos meios de fazer durar a Histria Universal - poisbem! mesmo nesse caso o homem, por pura ingratido, por necessidade de se emporcalhar,cometer, guisa de agradecimento, uma vilania qualquer. Correr at o risco de perder os seus

    pes de mel e procurar as inpcias mais perigosas, os absurdos menos proveitosos, s para misturara essa sabedoria to positiva um elemento fantstico, pernicioso. So precisamente os seus sonhosmais fantsticos, a sua asnice mais vulgar, que ele pretender conservar, unicamente para provar asi mesmo (como se isso fosse verdadeiramente to necessrio) que os homens so homens e noteclas de piano, sobre as quais se dignam tocar, verdade, as leis da natureza, que tocam de restocom tal brio que muito em breve no ser possvel querer seja o que for sem se referir aoscalendrios. E depois, mesmo que se achasse que o homem no passa realmente de uma tecla depiano, se se chegasse a lho demonstrar matematicamente, mesmo nesse caso, ele no tomaria juzo ecometeria alguma incongruncia, apenas para marcar bem sua ingratido e perseverar no seucapricho. E, no caso em que os outros meios lhe faltassem, ele se afundaria na destruio, no caos;desencadearia no sei que males, mas no faria finalmente seno o que lhe desse na cabea. Lanar

    sua maldio sobre o mundo, e como s ao homem dado amaldioar (isto bem um privilgio

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    seu, que o distingue muito particularmente dos outros animais) alcanar assim os seus fins, isto ,convencer-se de que um homem e no uma pea.

    Se me disserdes que o caos, as trevas, as maldies, que tudo isso pode tambm ser calculadode antemo, se bem que a s possibilidade desse clculo ir paralisar o impulso do homem e que a

    razo triunfar, assim, uma vez mais, ento eu vos confessarei que o homem s ter um meio defazer o que lhe apraz, que perder a razo e tornar-se completamente louco.

    Isto bvio para mim; eu vo-lo garanto, pois parece claro que desde todos os tempos a grandepreocupao do homem foi provir sem cessar a si mesmo, que ele era um homem e no umaengrenagem. Com isso arriscava a pele, mas provava-o: vivia como um troglodita, mas provava-o.E como, depois de tudo isto, no pecar, como no nos felicitarmos por no estarmos ainda nessasituao e por a nossa vontade depender ainda no se sabe de qu?

    Vs exclamais (se me fazeis ainda a honra de gritar) que ningum pensa em me privar deminha vontade, que a gente s se agita para arrumar as coisas de tal maneira, que por si mesma, por

    sua prpria iniciativa, minha vontade possa pr-se de acordo COM os meus interesses normais, comas leis naturais, com a aritmtica.

    Ora vamos, senhores! Que restar da minha vontade, quando tudo estiver nas tbuas decalcular e quando no houver mais que "duas vezes dois quatro"? Duas vezes dois sero quatro semque minha vontade se incomode com isso. A vontade quer saber de coisa bem diferente!

    IX

    Senhores, gracejo evidentemente e eu prprio sei que meus gracejos no so muito bons; mas,alis, no se trata unicamente de gracejos. rangendo os dentes, talvez, que gracejo. Senhores, hproblemas que me atormentam: ajudai-me a resolv-los. Assim, quereis libertar o homem de seusantigos hbitos e corrigir-lhe a vontade segundo os dados da cincia e conforme ao senso comum.Mas como sabeis que o homem pode e deve ser corrigido? De onde conclustes que a vontade dohomem deve necessariamente ser educada? Em uma palavra: por que pensais que essa educao lhe realmente til? E para dizer tudo: por que estais to firmemente persuadidos que semprevantajoso para o homem no contradizer seus interesses normais, reais, garantidos pelo raciocnio epela aritmtica? Isto no , em suma, seno uma suposio vossa. Admitamos mesmo que tal sejacom efeito a lei lgica; mas ser verdadeiramente a lei humana? Pensais, talvez, que sou louco,senhores? Permiti-me que me explique.

    Admito: o homem um animal essencialmente construtor, obrigado a se dirigirconscientemente para um fim qualquer; um engenheiro. Deve, pois, constantemente traarcaminhos novos, no importa em que direes. Mas talvez por causa disso, precisamente que tempor vezes desejo de escapar pela tangente, precisamente porque est condenado a traar umcaminho e tambm porque, por estpido que seja o homem de ao, ele adivinha por vezes que todaestrada leva sempre a alguma parte, e que no a sua direo que importa, mas o prprio fato deque ela o conduz para um lugar qualquer, a fim de que o menino sabido no se lembre de desprezarseu ofcio de engenheiro e no se abandone preguia, a qual , como se sabe, a me de todos osvcios. indiscutvel que o homem gosta muito de construir e traar caminhos; mas como aconteceento que ele ame to apaixonadamente a destruio e o caos? Dizei-me. Mas eu mesmo gostaria de

    vos dizer algumas palavras a esse respeito.

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    No ser que ama tanto a destruio e o caos (Se os ama s vezes, indiscutvel) porque teminstintivamente medo de atingir o fim e terminar o edifcio que constri? O que sabeis disso? Eleno ama talvez esse edifcio, seno de longe, e no de perto. Apraz-lhe, talvez, construi-lo, mas nomorar nele, e est pronto talvez a abandon-lo aos animais domsticos, s formigas, aos carneiros,etc. As formigas, sim, tm outros gostos; possuem nesse gnero um edifcio verdadeiramente

    extraordinrio, construdo para os sculos, o formigueiro.

    Foi por um formigueiro que comearam as honradas formigas e provvel que tal sejatambm o termo da sua carreira, o que faz honra sua constncia e ao seu senso prtico. Mas ohomem um ser verstil, e possvel que, semelhana do jogador de xadrez, no ame seno aao mesma e no o fim a atingir. E quem sabe? (no se pode garantir) possvel que o nico fimpara o qual tende a Humanidade no consista seno nesse esforo, nessa ao; ou por outra: a vidano teria fim exterior, o qual no pode evidentemente ser seno aquele "duas vezes dois quatro",isto , uma frmula. Ora, senhores, duas vezes dois quatro um princpio de morte e no umprincpio de vida. Em todo o caso, o homem sempre teve medo desse "duas vezes dois quatro" e eutambm tenho.

    verdade que o homem no se ocupa seno da procura desses "duas vezes dois quatro";atravessa oceanos, arrisca a vida em sua perseguio; mas quanto a encontr-los, quanto aapanh-los realmente - juro-vos que tem medo, pois ele se d conta que, uma vez encontrados, nadamais tem a fazer. Depois de terminarem o trabalho e de terem recebido, os operrios vo aobotequim, para acabarem a noite na cadeia; tm ento a sua conta ao menos por uma semana.Enquanto que o homem, que se tornar ele? Em todo o caso, observa-se constantemente nele certoconstrangimento, sempre que atinge um fim. Tenta aproximar-se do fim, mas to logo o atinge, noest mais satisfeito; e isto verdadeiramente bem cmico. Em uma palavra: o homem construdode uma maneira muito cmica, e tudo isto faz o efeito de um calemburgo. Mas seja como for, "duasvezes dois quatro" uma coisa bem insuportvel. "Duas vezes dois quatro", na minha opinio,respira impudncia. "Duas vezes dois quatro" nos desfigura insolentemente. De mos nos quadris,ele se nos atravessa no caminho e nos cospe na cara. Admito que "duas vezes dois quatro" seja umacoisa excelente, mas se preciso louvar tudo, eu vos direi que "duas vezes dois cinco" tambm svezes uma coisinha muito encantadora.

    E por que pois estais to inabalavelmente, to solenemente convictos de que s necessrio onormal, o positivo, o bem-estar, em uma palavra? A razo no se engana em seus juzos? possvelque o homem no ame seno o bem-estar? No possvel que ele ame na mesma medida osofrimento? No possvel que o sofrimento lhe seja to vantajoso quanto o bem-estar? O homemse pe por vezes a amar apaixonadamente o sofrimento; isso um fato. No h necessidade de

    consultar a esse propsito a Histria Universal. Indagai vs mesmos se unicamente sois homens, ese tendes vivido, por pouco que seja. No que toca minha opinio pessoal, dir-vos-ei que mesmoinconveniente s amar o bem-estar. Est bem? Est mal? Isso eu no sei, mas s vezes agradvelquebrar alguma coisa. No precisamente o sofrimento que defendo aqui, ou o bem-estar: meucapricho, e insisto para que ele me seja garantido, se for preciso. Nas comdias, por exemplo, no seadmitem os sofrimentos, eu sei; tampouco podemos admiti-los num palcio de cristal: h dvida, hnegao no sofrimento, mas o que seria ento de um palcio de cristal do qual se pudesse duvidar?Ora, estou certo de que o homem no renunciar jamais ao verdadeiro sofrimento, isto , destruio e ao caos.

    O sofrimento! Mas a causa nica da conscincia! Eu vos declarei, verdade, no incio, que a

    conscincia, na minha opinio, um dos maiores males do homem; mas sei que o homem a ama eno a trocar por nenhuma satisfao, seja qual for. A conscincia, por exemplo, infinitamente

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    superior a "duas vezes dois quatro". Depois de "duas vezes dois", no resta evidentemente maisnada, no somente a fazer, mas mesmo a conhecer. A nica coisa que nos resta, ento, taparnossos cinco sentidos e mergulharmos na contemplao. Com a conscincia chega-se, verdade, aum resultado idntico, isto , inao, mas poder-se-, ento, pelo menos dar-lhe uma chicotada, devez em quando, o que vivifica um pouco o esprito, apesar de tudo. muito reacionrio, mas

    sempre vale mais do que nada.

    X

    Credes no palcio de cristal, indestrutvel, para a eternidade, ao qual no se poder mostrar alngua, nem mostrar os punhos s escondidas. Pois bem! Eu, se desconfio do palcio de cristal, talvez justamente porque de cristal e indestrutvel e porque no se poder lhe mostrar a lngua,mesmo s escondidas.

    Vede: se em lugar de um palcio de cristal eu s disponho de um galinheiro, quando chove, eu

    me insinuarei talvez no galinheiro, para fugir chuva, mas ficando-lhe embora muito agradecidopor ter me preservado, no tomarei meu galinheiro por um palcio. Rides, dizeis-me que emsemelhante caso palcio e galinheiro se equivalem. Sim, responderei, se se vivesse apenas para noestar molhado.

    Mas que fazer, se se me meteu na cabea que no se vive somente para isso e que, se se vive, num palcio que preciso se instalar? Isto minha vontade, isto meu desejo, Vs noconseguireis me arrancar esta vontade, seno quando tiverdes modificado meus desejos. Pois bem!Modificai-os, apresentai-me um outro fim, oferecei-me um outro ideal! Mas, enquanto espero,recuso-me a tomar um galinheiro por um palcio de cristal. possvel que o palcio de cristal noseja seno um mito, que as leis da natureza no o admitam e que eu o tenha inventado por tolice,impelido por certos hbitos irracionais da nossa gerao. Mas que me importa que ele sejainadmissvel! Que me importa, pois que ele existe nos meus desejos, ou, para dizer melhor, pois queexiste tanto quanto existem meus desejos? Continuais a rir, penso. Ride tanto quanto vos agrade!Aceitarei todas as zombarias, mas recusar-me-ei a me declarar saciado, quando ainda tenho fome;no me contentarei com um compromisso, com um zero se renovando indefinidamente, pela nicarazo de que est conforme as leis da natureza e existe realmente. No admitirei que o coroamentodos meus desejos possa ser uma casa de tijolos, com alojamentos a preo mdico, arrendados pormil anos e ostentando a tabuleta do dentista Wagenheim. Destru meus desejos, derrubai meu ideal,apresentai-me um fim melhor e eu vos seguirei. Dir-me-eis, talvez, que no vale a penaocupardes-vos de mim; mas neste caso posso vos responder do mesmo modo. Ns discutimos

    seriamente, e se no vos dignardes me conceder vossa ateno, pois bem! No vou chorar por isso.Eu tenho meu subsolo.

    Mas, enquanto existo, enquanto desejo, que minhas mos sequem se levo um tijolinho queseja a essa casa! No me digais que eu mesmo renunciei cedo ao palcio de cristal, pelo nico mo-tivo de no lhe poder mostrar a lngua. Se falei assim, no que eu goste tanto de mostrar a lngua.Acontece porm que, e isto precisamente que me irrita, de todos os vossos edifcios no h um aoqual no se possa mostrar a lngua. Ao contrrio, eu faria cortar minha lngua, por gratido, se searranjassem as coisas de tal maneira que eu no tivesse mais desejo de a mostrar. Que me importaque as coisas no possam se arranjar assim e que seja preciso contentarmo-nos com alojamentos apreos mdicos! Por que tenho eu tais desejos? No sou feito assim, seno para poder verificar que

    essa constituio no seno uma brincadeira de mau gosto? esse verdadeiramente o nicofim? - No o admito.

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    De resto, sabeis o que vou dizer-vos? Estou persuadido de que ns outros, homens do subsolo,

    devemos ser mantidos na trela. O homem do subsolo capaz de permanecer silencioso no seusubsolo durante quarenta anos; mas, se sai do seu buraco, ele desabafa, e ento fala, fala, fala...

    XI

    O fim dos fins, senhores, no fazer nada, absolutamente nada. A inrcia contemplativa prefervel seja ao que for. Assim pois, viva o subsolo! Se bem, que eu tenha dito antes que invejavao homem normal at a derradeira gota da minha blis, quando o vejo tal qual , renuncio ao sernormal (no cessando todavia de ter inveja dele). No! No! Apesar de tudo, o subsolo vale mais.L ao menos se pode... Ah! C que minto de novo! Minto, porque sei, to claramente quanto duasvezes dois so quatro, que no o subsolo que vale mais, mas algo muito diferente a que aspiro,mas que no posso descobrir. Para o diabo o subsolo!

    Se eu pudesse crer ao menos numa s palavra do que escrevo aqui! Juro-vos, senhores, queno creio em uma s palavra, em uma nica e miservel palavrinha! Ou melhor, dizendo: creio,talvez, mas sinto no mesmo momento, suspeito, no sei por que, que minto descaradamente.

    - Mas, nesse caso, por que escreveu tudo isto? - perguntareis certamente.

    Que tereis dito se eu vos tivesse encerrado durante quarenta anos, sem fazer nada, e se,decorrido esse tempo, eu fosse visitar-vos no vosso subsolo para verificar no que vos tnheistornado?

    Bem que eu gostaria de vos ver l! Pode-se deixar durante quarenta anos um homem s e semocupao?

    "Mas no vergonhoso, no humilhante!" - me direis talvez, meneando a cabea, comdesprezo, - "Voc tem sede de vida, mas quer resolver as questes vitais por meio de mal--entendidos lgicos. E que obstinao! Que imprudncia com isso! Mas tem medo, apesar de tudo.Voc diz inpcias, mas sente-se feliz com elas. Diz insolncias, mas tem medo e se desculpa.Declara que no receia ningum, mas busca as nossas boas graas. Voc nos assegura que range osdentes, mas graceja ao mesmo tempo, para nos fazer rir. Sabe que as suas sentenas no valemnada, mas parece muito satisfeito com a sua literatura. possvel que voc tenha sofrido, mas notem nenhum respeito pelo seu sofrimento. H certa verdade em suas palavras, mas falta-lhes pudor.

    Sob a ao da vaidade mais mesquinha, voc traz a sua verdade para a praa pblica, expe-na nomercado, para alvo de chacota. Voc tem alguma coisa a dizer, mas o temor faz-lhe escamotear altima palavra, pois insolente, mas no audaz. Gaba a sua conscincia, mas no capaz seno dehesitao, porque embora sua inteligncia trabalhe, seu corao est emporcalhado pelalibertinagem; ora, se o corao no puro, a conscincia no pode ser clarividente, nem completa. Ecomo voc importuno, como molesto! Que palhaada, a sua! Mentira tudo isso! Mentira!Mentira!"

    Todas estas palavras fui eu quem as disse, evidentemente. Mas, elas tambm provm dosubsolo. Durante quarenta anos, prestei ateno por uma pequena fenda a esses discursos. Euprprio os compus, pois no tinha outra coisa a fazer. Por isso, foi-me fcil decor-los e

    imprimir-lhes; uma forma literria.

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    Mas, pudestes crer, verdadeiramente, que eu ia imprimir tudo isto e vo-lo dar para ler? E eisainda o que no compreendo: por que me dirijo a vs, chamando-vos de "senhores", como se fsseisleitores meus? No se publicam, no se do a ler a ningum as confidncias que eu me preparo parafazer aqui. EU, em todo o caso, no sou suficientemente forte para agir assim, e, de resto, no vejo anecessidade disso. Mas, vede, veio-me alma fantasia, e quero realiz-la custe o que custar. Eis do

    que se trata:

    Entre as lembranas que cada um de ns possui, h algumas que no contamos seno aosnonos amigos. H outras ainda que no confessaremos nem mesmo aos nossos amigos, que norepetiremos seno a ns mesmos, e alis, sob o signo do segredo. Mas existem enfim coisas que ohomem no consente nem em confessar a si mesmo. No curso de sua existncia, todo homemhonesto acumulou dessas lembranas suficientemente. Direi mesmo que seu nmero tanto maisimportante, quanto o homem mais honesto. Eu, em toda o caso, no faz muito tempo que medecidi a me lembrar de certas antigas aventuras minhas; at aqui, evitei-as, e no sem um tanto deinquietao. Ora, agora, quando as evoco e quero mesmo anot-las, agora tenho a prova: possvelser franco e sincero, ao menos cara a cara consigo mesmo, e poder-se- dizer toda a verdade?

    Observarei a este propsito que Heine assegura que no podem existir autobiografias exatas, e que ohomem mente sempre, quando fala de si mesmo... Rousseau, com seu ponto de vista, certamentenos enganou nas suas Confisses e mesmo deliberadamente, por vaidade. Estou certo de que Heinetem razo: compreendo muito bem que nos possamos sobrecarregar de crimes abominveis, apenaspor vaidade, e compreendo tambm o que pode ser esse sentimento. Mas Heine tinha em vista asconfisses pblicas; ora, eu no escrevo seno para mim sozinho e declaro de uma vez por todasque, se pareo dirigir-me ao leitor, simplesmente um processo de que me sirvo para maiorfacilidade. No seno uma forma, uma forma vazia; e quanto aos leitores, no os terei jamais, j odeclarei.

    No quero ser incomodado em nada na redao das minhas notas. No observarei nenhumaordem, nenhum sistema. Escreverei simplesmente o que me lembrar.

    Mas vs podereis me pegar na palavra desde o comeo e me perguntar: se verdade que nopensa em seus leitores, por que ento combina consigo mesmo - e no papel - ainda! - que noobservar nenhuma ordem, nenhum sistema, que registrar o que lhe passar pela cabea, etc.? Porque se explica? Por que essas desculpas?

    Pois bem! Eis a! assim!

    H, de resto, a, um caso psicolgico interessante. possvel que eu seja muito simplesmente

    um covarde. Mas possvel tambm que imagine diante de mim um pblico, a fim de no perder osentido das convenincias. possvel ter milhares desses motivos...

    Mas h ainda outra coisa: por que, em suma, pus-me a escrever? Se no para o pblico, noposso evocar minhas lembranas sem as lanar ao papel?

    Com efeito, mas quando estiverem fixadas no papel, adquiriro um aspecto mais solene. Istome constranger, julgar-me-ei melhor e meu estilo ganhar. Demais, possvel que isto me tragacerto consolo. Assim, hoje, estou particularmente oprimido por uma lembrana longnqua; surgiuem mim muito nitidamente h alguns dias, e, desde ento, me persegue sem trguas, como umdesses motivos musicais que no pretendem vos largar. Ora, preciso absolutamente que eu me

    desembarace dela. Tenho centenas de recordaes desse gnero; mas uma delas s vezes desperta

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    de sbito e me agarra pela garganta. Eu imagino, no sei mesmo por qu, que se a registrar, ficareilivre. Por que no tentaria?

    E depois, enfim, eu me aborreo e nunca fao nada. Escrever as lembranas um trabalho.Diz-se que o trabalho torna o homem bom e honesto. ento uma oportunidade que se me ofe-

    rece...

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    Uma rvore de Natal e um casamento

    Um dia destes, vi um casamento... mas no, prefiro falar-vos de uma rvore de Natal. Achei ocasamento bem bonito, mas a rvore de Natal me agradou mais. Nem sei como, olhando para ocasamento, me lembrei da rvore. Eis como o caso se passou.

    H cerca de cinco anos fui convidado, na vspera de Natal, para um baile infantil. A pessoaque me convidou era um conhecido homem de negcios, cheio de relaes e maquinaes, e, assim,no se h de estranhar que o baile infantil servisse apenas de pretexto para os pais se reunirem e, nomeio da multido, se ocuparem de seus interesses materiais com ar inocente e surpreendido. Comohouvesse chegado ali por acaso e no tivesse nenhum assunto comum com os outros, passei a noitede maneira muito independente. Havia mais um cavalheiro que, como eu, no tinha, decerto,conhecidos no grupo, e participava casualmente da felicidade familiar. Ele deu-me na vista antes detodos. Era um homem alto, magro, muito srio, vestido muito decentemente. Notava-se que afelicidade da famlia no lhe comunicava a menor alegria; mal se retirava a um cantinho, cessava de

    sorrir e franzia as sobrancelhas espessas e negras.Afora o dono da casa, no conhecia vivalma em todo o baile. Via-se que ele se entediava

    horrivelmente, mas que resolvera manter at o fim o papel do homem que se diverte e feliz. Soubedepois que era um provinciano vindo capital a algum negcio importante e complicado. Trouxeracarta de recomendao para o nosso hospedeiro, que o protegia, porm, no con amore, e oconvidara, por cortesia, para o baile infantil. No jogavam cartas com o provinciano, ningum lheoferecia um charuto nem com ele entabulava conversao, talvez porque reconhecessem de longe opssaro pela plumagem, e, deste modo, o meu cavalheiro via-se obrigado, para ter que fazer dasmos, a alisar a noite inteira as suas suas. Eram, alis, umas suas realmente belas - porm ele asacariciava com tanto zelo que a gente, ao fit-lo, sentia-se inclinada a pensar que primeiro vieram

    ao inundo as suas e s depois o homem, para cofi-las, inserido entre elas.

    Alm desse personagem, que tomava parte na felicidade do dono da casa, pai de cincogarotos bem nutridos, do modo que acabo de relatar, outro conviva cara no meu agrado. Mas esteera de aspecto completamente diverso. Era um personagem a quem os outros chamavam JulioMastakovitch. Percebia-se primeira vista que era ele o convidado de honra. Estava para o dono dacasa como este para o cavalheiro que afagava as suas. o dono e a dona da casa falavam-lhe comamabilidade extraordinria, cortejavam-no, enchiam-lhe o copo, amimavam-no, e lhe apresentavam,recomendando-os, vrios convidados, ao passo que a ele no o apresentavam a ningum. Notei atuma lgrima nos olhos do hospedeiro quando Julio Mastakovitch observou que raras vezes passarao tempo de maneira to agradvel como naquela noite. Comecei a sentir-me acabrunhadssimo em

    presena de semelhante figura, e, depois de haver admirado as crianas, retirei-me a um pequenosalo, totalmente vazio, e fui sentar-me sob o florido caramancho da dona da casa, o qual ocupavaquase a metade de toda a pea.

    Eram as crianas incrivelmente gentis, e no queriam, apesar de todas as exortaes dasmames e das governantas, parecer-se com as pessoas grandes. Num piscar de olho desmontaramtoda a rvore de Natal, e conseguiram quebrar a metade dos brinquedos antes mesmo de saber aquem eram destinados. Achei particularmente engraado um menino de olhos pretos e cabelosfrisados que viva fora me queria matar com a sua espingarda de pau. Entretanto, mais que todos,atraa-me a ateno sua irm, menina de onze anos, um amor de criana, meiga, cismativa, plida,com grandes olhos sonhadores flor do rosto. Parecia que os amiguinhos a tinham ofendido, poisveio ao salo onde eu estava sentado e, a um cantinho. ps-se a brincar com as suas bonecas. Osconvidados apontavam, com respeito, um rico negociante, pai da menina, e algum observou,

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    cochichando, que ela j tinha trezentos mil rublos reservados como dote. Voltei-me para ver quemse interessava por esses pormenores, e o meu olhar caiu sobre Julio Mastakovitch o qual, de moscruzadas atrs das costas e inclinando a cabea para um lado, parecia acompanhar com particularateno o mexerico de alguns senhores. Pouco depois, no pude furtar-me a admirar a sabedoria dosanfitries na distribuio dos brindes s crianas. A menina que j tinha seus trezentos mil rublos de

    dote ganhou uma boneca suntuosssima.

    Desde ento os presentes foram diminuindo de valor, de acordo com a diminuio daimportncia dos pais daquelas crianas felizes. Afinal, a ltima' um menino de dez anos, magrinho,baixinho, sardento e ruivo, ganhou apenas um livrinho de contos sobre as maravilhas da natureza,Das lgrimas da sensibilidade, etc., sem estampas e at sem vinhetas. Filho da governanta dosmeninos da casa, uma pobre viva, era um pequeno muitssimo encolhido e tmido, metido numpobre paletozinho de nanquim. Recebido o seu livrinho, andou muito tempo volta dos brinquedosdos outros. Tinha uma vontade imensa de brincar com as outras crianas, mas no se atrevia; claro,

    j sabia e compreendia a sua situao.

    Gosto muito de observar crianas. So sobremodo curiosas as suas primeiras manifestaesindependentes na vida. Notei, pois, que o menino ruivo se deixava seduzir pelos brinquedos dosoutros, sobretudo pelo teatro, em que ele se empenhava para representar um papel qualquer, a pontode aviltar-se. Pegou a sorrir para os outros, a cortej-los, deu a sua ma a um pequeno gordo que jtinha o leno cheio de presentes. e at se ofereceu para carregar outro, s para que no o afastassemdo teatro. No entanto, poucos minutos aps um rapazinho arrogante deu-lhe uma boa surra. oruivinho nem teve coragem de chorar. Logo apareceu sua me, a governanta, e ordenou-lhe no seintrometesse nos brinquedos alheios. O menino retirou-se para o salo onde estava a menina bonita.Esta o deixou aproximar-se, e as duas crianas entraram a enfeitar a suntuosa boneca.

    Fazia j meia hora que eu estava sentado no caramancho de hera, e quase adormecera aozunzum da conversa entre o ruivinho e a menina dos trezentos mil rublos de dote, que seentretinham a respeito da boneca, quando de repente vi entrar no salo Julio Mastakovitch.Aproveitando a distrao dos presentes com uma briga surgida entre as crianas, sara do saloprincipal sem fazer barulho.

    Notara eu, poucos minutos antes, que ele mantinha animada palestra com o pai da futuranoiva rica, a quem mal acabara de conhecer, explicando-lhe as vantagens de qualquer empregopblico sobre os demais. Parou porta, tomado de hesitao, e parecia calcular alguma coisa naspontas dos dedos.

    - Trezentos. . . trezentos - murmurava.- Onze.. . doze.. . treze... at dezesseis, so cinco anos...Faamos de conta que sejam quatro por cento, so doze... cinco vezes doze, sessenta; estessessenta... bem, calculados por alto, ao cabo de cinco anos sero quatrocentos. Est certo... Masnaturalmente o malandro no os ter colocado a quatro por cento! Talvez receba oito ou at dez porcento. Suponhamos que sejam quinhentos, no mnimo, sim, quinhentos mil, na certa. .. o excedentegasta-se no enxoval, hum...

    Acabou a meditao, assoou-se, e, indo a sair do salo, sbito avistou a menina e estacou.Como eu estivesse assentado atrs dos vasos de flores, no me pde ver. Tive a impresso de que ohomem se achava muito excitado. Seria o clculo que operava esse efeito sobre ele, ou outro motivoqualquer? No sei. seja como for, o certo que esfregava as mos e no conseguia permanecer no

    mesmo lugar.

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    Quando a sua agitao chegou ao cmulo, parou um instante e lanou um segundo olhar,muito resoluto, futura noiva. Quis aproximar-se dela, mas primeiro olhou em redor. Depois, comoquem tem sentimentos criminosos, aproximou-se da criana nas pontas dos ps. Com um sorrisinhonos lbios, inclinou-se para ela e beijou-a na testa. A menina, no esperando a agresso, gritouassustada.

    - Que que voc est fazendo aqui, bela menina?;perguntou ele em voz baixa.

    E, olhando em torno de si, deu-lhe uma palmadinha no rosto.

    - Estamos brincando...

    - Com ele? - disse Julio Mastakovitch fitando o menino de esguelha.

    E logo acrescentou:

    - Escuta, meu amigo, por que no vais para o salo?

    O menino fitava-o sem falar, de olhos arregalados. Julio Mastalovitch olhou de novo em redor eaproximou-se outra vez da pequena:

    - Que que voc tem a bela menina? Uma bonequinha?- Uma bonequinha - respondeu a criana decara fechada, cabisbaixa.

    - Uma bonequinha... Mas voc sabe, gentil menina, de que feita a bonequinha?

    - No sei... - cochichou a pequena, abaixando ainda mais a cabea.

    - De trapos, minha alma... Mas tu, meu filho, deverias ir para o salo brincar com os teuscamaradas, - disse Julio Mastakovitch encarando o menino com severidade.

    As duas crianas franziram a testa e agarraram-se pela mo. No queriam separar-se.

    - Sabe voc por que lhe deram essa bonequinha? - perguntou Julio Mastakovitch baixando cadavez mais a voz.

    - No.

    - Porque voc uma criana boa e se comportou bem a semana toda.Perturbado a mais no poder, Julio Mastakovitch lanou mais uma vez um olhar em roda, e baixoua voz de modo que a sua pergunta, formulada em tom impaciente e embargada pela emoo, saiuquase imperceptvel:

    - Diga-me, gentil menina: voc gostar de mim se eu fizer uma visita a seus pais?

    Havendo proferido tais palavras, Julio Mastakovitch quis beijar a pequena mais uma vez;mas o menino, vendo-a prestes a romper no choro, puxou-a pela mo e, compadecido, comeou, eleprprio, a choramingar.

    Dessa vez Julio Mastakovitch aborreceu-se deveras.

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    - Vai-te embora - disse ao menino - Vai para a sala brincar com os teus camaradas.

    - No v, no - protestou a menina. - Voc que deve ir-se embora. Deixe-o aqui, deixe-o - dissequase soluando.

    Algum fez barulho porta. Assustado, Julio Mastakovitch ergueu no mesmo instante ocorpo majestoso. O menino ruivo, porm, assustou-se ainda mais do que ele, largou a mo damenina e, devagarinho, roando a parede, caminhou do salo sala de jantar. Para no despertarsuspeitas, Julio Mastakovitch tambm passou sala de jantar. Estava vermelho feito uma lagosta e,mirando-se ao espelho, parecia at envergonhado de si mesmo, talvez arrependido da suasofreguido. Teria sido o clculo feito na ponta dos dedos que o arrebatara a ponto de inspirar-lhe,apesar de toda a sua seriedade e gravidade, um procedimento de criana? Aproximava-se de chofredo seu objetivo, embora este no viesse a tornar-se um objetivo real antes de cinco anos, nomnimo.

    Acompanhei o respeitvel cavalheiro a sala de jantar, e ali testemunhei um espetculo

    curioso. Rubro de raiva e despeito, Julio Mastakovitch perseguia o menino ruivo, o qual, recuandocada vez mais, j no sabia para onde correr:

    - Sai daqui! Que diabo vens fazer aqui, velhaco? Vieste roubar frutas, hem? Vieste? Fora daqui,patife! Vai, fedelho, procura os teus camaradas!

    Espantado, o pequeno recorreu a um expediente extremo: foi esconder-se debaixo da mesa.Ento o seu perseguidor, no auge da excitao, puxou do bolso o grande leno de batista e,brandindo-o, procurou enxotar o menino do seu esconderijo.

    Este se encolhia caladinho, sem se mexer. Cumpre observar que Julio Mastakovitch era umtanto gordo: rapaz bem nutrido, corado, barrigudo, de pernas robustas, - em uma palavra, como secostuma dizer, redondo e forte como uma noz.

    Suava, enrubescia, arfava terrivelmente. Estava exasperado por um sentimento deindignao e, quem sabe, de cime.

    No pude conter uma gargalhada. Julio Mastakovitch virou-se e, a despeito de toda a suaimportncia, ficou mortalmente acanhado. Nesse instante, na porta oposta, apareceu o dono da casa.O ruivinho saiu logo do esconderijo e ps-se a limpar os joelhos e os cotovelos. JulioMastakovitch, com um gesto rpido, levou ao nariz o leno que tinha na mo, seguro por uma das

    extremidades.O dono da casa fitava-nos aos trs, perplexo, mas, como homem que conhece a vida e a

    considera pelo lado srio, resolveu aproveitar a circunstncia de encontrar-se quase a ss com o seuhspede.

    - este o menino - disse indicando o ruivinho - que tive a honra de lhe recomendar...

    - ? - respondeu Julio Mastakovitch, que ainda no voltara inteiramente a si.

    - filho da governanta de meus filhos - prosseguiu o dono da casa em tom de solicitao -, uma

    senhora pobre, viva de um funcionrio honesto; portanto, Julio Mastakovitch... se for possvel. . .

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    - Mas no ;exclamou sem demora Julio Mastakovitch.

    - Perdoe-me, Filipe Alexeievitch, totalmente impossvel. Pedi informaes... No momento no hvaga, e, ainda que houvesse, j se tem dez candidatos, cada um mais qualificado que este..

    - Sinto muito... muitssimo..

    - pena - disse o dono da casa. - um menino bonzinho, modesto . . .

    - Pelo que vejo, um grandssimo vadio, - estourou Julio Mastakovitch, com uma careta histrica.- Sai da, menino. Que que tu queres a? Vai brincar com os teus camaradas; disse ainda,voltando-se para o ruivinho.

    No conseguindo mais conter-se, olhou para mim de soslaio. Por minha vez, no pudedeixar de lhe rir deliberadamente nas barbas. Ele desviou de mim os olhos, e em voz bem altaperguntou ao dono da casa quem era aquele rapaz esquisito.

    Saram os dois da sala cochichando. Vi que Julio Mastakovitch, ouvindo as explicaes deseu hospedeiro, abanava a cabea, meio desconfiado. Ri a bom rir com os meus botes, e voltei aosalo. Rodeado de mames, de papais e dos donos da casa, o grande homem explicava alguma coisacom muito calor a uma senhora a quem acabavam de apresent-lo. Esta segurava pela mo a meninacom quem, dez minutos antes, Julio Mastakovitch representara a sua cena no pequeno salo. Agoraele estava-se derramando em extticos elogios beleza, aos talentos, graa e boa educao dagentil menina. Manifestamente engodava a mamezinha, que o escutava quase com lgrimas deenlevo. Os lbios do pai sorriam. o dono da casa alegrava-se com essas alegres efuses. Os prpriosconvidados tomavam parte no jbilo; at os brinquedos das crianas foram suspensos para no seperturbar a conversa. Era uma atmosfera quase religiosa.

    Logo depois, ouvi a me da interessante pequena, comovida at o fundo da alma pedir aJulio Mastakovitch, com expresses escolhidas, que lhe desse a subida honra de distinguir-lhe acasa com sua preciosa visita, e ele aceitou o convite com entusiasmo; enfim, ouvi os demaisconvidados, no momento da de despedida, expandirem-se, como o exigiam as convenincias, emlouvores comovidos ao rico negociante, a sua mulher e a sua filha, e principalmente a JulioMastakovitch.

    - casado esse cavalheiro? - perguntei em voz quase alta a um conhecido que estava mais pertodele.

    Julio Mastakovitch enviou-me um olhar indagador e feroz.

    - No - disse-me o meu conhecido, profundamente penalizado com a leviandade que eu depropsito cometera.

    Passava eu, h pouco tempo, em frente igreja de ***, quando um grande ajuntamento medespertou a ateno. Em redor falava-se de um casamento. O dia estava nublado, comeava achuviscar; entrei na igreja abrindo caminho atravs da multido. Logo avistei o noivo. Era um rapazbaixo, gordo, bem nutrido, de ventre pondervel, muito enfeitado, que corria para todos os lados, seagitava sem parar, dava ordens. Enfim, levantou-se um murmrio de vozes anunciando a chegada

    da noiva. Fendi a turba de curiosos e vi uma jovem de admirvel beleza, para quem a primaveraapenas comeava. Mas estava plida e parecia triste a linda noiva. Olhava distrada e tinha os olhos

  • 8/14/2019 Dostoivski Contos

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    vermelhos, o que me deu impresso de lgrimas recentes. A severidade clssica de suas feiesemprestava-lhe beleza uma expresso algo solene. Atravs daquela severidade, daquela gravidade,de toda aquela tristeza, transpareciam os traos de uma criana inocente, algo de incrivelmenteingnuo, juvenil e ainda no formado, que parecia, sem palavras, implorar piedade.

    Ouvi observar que ela mal acabava de completar dezesseis anos. Examinando atento onoivo, nele reconheci Julio Mastakovitch, que eu no via desde cinco anos. Olhei para ela... MeuDeus! Fendi a multido outra vez para sair da igreja o m