os 100 contos de reis - livro 5

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Inédito - Livro 5

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Inédito - Livro 5

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Os 100 Contos de Réis

Carlos NeyPublicitário – Jornalista – Cronista

Revisão:Livro 5 – Dejanir Cunha

Capa:Clovis Brasil

[email protected]

Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica:Carlos Henrique Pimentel

CHP Designerhttp://projetolivropronto.blogspot.com/

Saiba mais a respeito do autor e do livro na internet,no Blog do Carlos Ney e conheça, também,

o Livro Digital e o Áudiolivro:http://blogdocarlosney.blogspot.com/

A reprodução parcial ou total de qualquer conto,depoimento ou do livro é permitida desde que seja

citado o nome do autor e a origem.

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Sê sempre o mesmo.Sempre outro.

Mas sempre alto.Sempre longe.

E dentro de tudo.

Cecília Meireles

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O Contador de Histórias

Calcula-se que o hábito de ouvir e de contar históriasvenha acompanhando a humanidade em sua trajetória noespaço e no tempo. Em que momento o primeiroagrupamento humano se sentou ao redor da fogueira paraouvir as narrativas fantásticas ou didáticas capazes deatrair a atenção e o gosto dos presentes e de deixar, norastro de magia em que eram envolvidas, uma lição e/ouum momento de prazer?

Conduzindo o leitor para o universo do seu estiloindividual em textos breves e concisos, o jornalista epublicitário Carlos Ney apresenta seu primeiro livro,intitulado “OS 100 CONTOS DE RÉIS” - um painel depequenas histórias que valem uma vida inteira.E não pense você que poderá ficar indiferente ao enredodessas histórias, já que o grande gancho dos chamados“contos mínimos” é a possibilidade que abre para ainteração entre o autor e o leitor, em face das situações edos personagens.

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Palavras do Autor

Não sei por que os outros escrevem. Nem mesmo sei qualo gatilho que, num determinado instante, faz com que as pa-lavras brotem e os textos, finalmente, comecem a ter sentido.Mas sei que é um processo estranho, que envolve mais de umaemoção, e que tem alguma parcela de sobrenatural, já que emmuitas das vezes o resultado surpreende até a mim.

Este livro tem tudo a ver com Araruama – RJ, já que osprimeiros contos, em 2003, foram escritos para publicação emjornais da cidade.

Depois dos primeiros, não consegui mais parar.Se me perguntarem por que eu escrevo contos, direi que é

pelo desejo de envolver as pessoas nas mais diversas situa-ções, com os personagens que eu imagino, e assim torná-lascúmplices no processo de criação. E quero acreditar que, ape-sar do conteúdo despretensioso, meu livro fará bem às pesso-as. Pessoas comuns, das que realmente gostam de ler, mas quenão o fazem porque não lhes sobra tempo; ou porque a leitu-ra é um hábito caro. E se elas forem comigo até ao final dolivro, e no correr das páginas eu conseguir arrancar delas umalágrima e um sorriso, terei alcançado meu objetivo. E podereientão dizer que valeu a pena.

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Sumário do Livro 5

O espírito da coisa ................................................................... 11Em família ................................................................................ 13De mãos dadas ......................................................................... 15O reencontro ............................................................................ 17Minha rua .................................................................................. 19O anjo da noite ........................................................................ 21Quadrinhos ............................................................................... 23Negócios de família ................................................................. 25A escolha ................................................................................... 39Depois que você foi embora .................................................. 41O complexo de diógenes ........................................................ 43Um por todos e todos por um ............................................... 45Assim é, se lhe convém ........................................................... 48Azar ........................................................................................... 51O mistério do 7º elemento ..................................................... 55O crime não compensa ........................................................... 57O dia depois de amanhã ......................................................... 60Tarde demais ............................................................................ 63As vampiras .............................................................................. 64O lado escuro da rua ............................................................... 65

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Livro 5

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O espírito da coisa

Acordei tossindo, com a sensação de que não podia maisrespirar. Meu coração cavalgava feito um potro louco, ameaçan-do pular do meu peito, enquanto um frio glacial me congelava osossos. Mas o pior era o cheiro. Um cheiro insuportável de...

– Enxofre!

O grito que eu dei, veio junto com a certeza de que estavavivendo o meu maior pesadelo. Ela estava ali, sentada na beira daminha cama, no maior relax, como se não estivesse morta e en-terrada debaixo de sete palmos de terra. A minha sogra. A pró-pria visão do inferno. E nem adiantava eu tentar entender a lógi-ca da coisa, já que minha mulher tivera de viajar às pressas para aParaíba – a mocreia estava morando lá com a outra filha, depoisde quase conseguir mandar para a cucuia o nosso casamento – sópara assistir ao enterro da velha. Ah, mas eu deveria ter imagina-do que nem o coisa ruim iria aguentar este dragão por muitotempo. Agora ela está aqui! A própria confirmação de que, real-mente, existe vida após a morte. E que o inferno não é assim tãolonge. A jararaca voltou das profundezas, só para me roubar apaz. E, pior ainda, ela foi logo dizendo, com voz de alma penadae um bafo azedo de carniça, que veio para ficar. E eu nem possomatá-la. Ah, isso não vai prestar. Muito mais do que apavorado,eu estou indignado, me sentindo traído. Afinal, ou bem a pessoamorre, ou não morre. Isso, de ficar indo e vindo, é a maior saca-nagem. E a megera está se achando, passeando pelo meu quarto,feita dona do pedaço. Será que cravar estaca no peito, adianta?Ah, não! Ela está bebendo da minha cachaça mineira, direto nagarrafa. Agora emborcou, depois de secar o pote, atravessada naminha cama. E pelos roncos, não vai acordar tão cedo. Mas que

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vai acordar vai, porque a desinfeliz não faz nada pela metade,quando o assunto é azucrinar este cristão. Enquanto ela está apa-gada, eu vou espalhando estas velas acesas em volta da cama, eme pegando com tudo que é santo que conheço. E como o mila-gre é dos grandes, estou disposto a pagar qualquer promessa.

– E você? Por acaso tem alguma ideia de como é que eu melivro deste encosto?

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Em família

Com passos cansados, Satanás atravessou toda a extensão daimensa sala do trono, vazia naquela hora do dia. Das paredes,aprisionados nas molduras, rostos de antepassados seus fitavam-no com malignos olhos vermelhos. Um gemido escapou-lhe porentre os lábios ressequidos, quando empurrou a pesada cadeirade pedra para mais próximo da lareira. Com os cascos fendidosbem junto às chamas crepitantes, deixou que o calor relaxasseseus nervos. De uns tempos para cá, fazia cada vez mais frio. Erao tal do efeito freezer que, segundo especialistas, estava reduzin-do a camada de enxofre. Culpa das máquinas de picolé, de que osjovens capetinhas tanto gostavam. Mais uma vez ele reconheceuque não deveria ter permitido isso. Depois de tantas centenas deanos infernais, lançando mão de todas as artimanhas para garan-tir a supremacia do mal sobre o bem, a coroa já lhe pesava sobreos chifres, e ele sentia que já não tinha o pulso forte de antes.Claro que já deveria ter abandonado o barco no décimo século,como o fizeram antes dele cada um de seus ancestrais. Mas, só deimaginar seu filho reinando absoluto sobre todas as forças dastrevas, o pânico tomava conta dele. O garoto era um desastre!Herdara da mãe, além dos traços finos, o sorriso que ficaria bemmelhor em um querubim. E desde que era só um diabinho mir-rado, o moleque só se interessava por livros, música e poesia. Ofato é que Satanás sempre se culpou por ser um pai ausente. E,depois que sua mulher morreu tão jovem, ele começou a mimardemais o guri. Acordes dissonantes de uma melodia, chegandoaté seus ouvidos, acabaram com o resto de paz que ainda tinha.Afundando o rosto horrorizado nas mãos, ele abandonou-se aodesespero. Lembrava-se agora que ontem, aqui mesmo nesta sala,Deminho havia dito que estava tocando lira eletrônica, e que pre-tendia formar uma banda de rock pesado: os Anjos do Inferno.

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E a alegria do garoto era tão grande, que o velho Satã, contratoda a lógica do universo, apenas balançou a cabeça assentindo,incapaz de dizer a palavra que precisava ser dita. Não bastassemaquelas roupas esquisitas e os cabelos compridos.

Sem pensar, o velho ergueu os olhos e suspirou:

– Deus, onde foi que eu errei?

E apenas o estrondo assustador do maior dos trovões, fa-zendo estremecer o palácio, respondeu a tamanha blasfêmia.

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De mãos dadas

Quem nunca veio a um hospital durante a noite, quando osilêncio é tão espesso que até assusta, não conseguirá imaginar asensação de tamanha solidão que cerca os compridos e frios cor-redores. Mas, por instantes, esse silêncio foi quebrado pelo ruídomonótono das rodas da maca. Sobre ela, coberta até o pescoço,uma criança de dez anos, da qual se vê apenas o rosto. Quando amaca ultrapassou as portas de vai-e-vem da sala de cirurgia, mé-dicos e auxiliares já esperavam por ela. Num canto afastado, lon-ge o bastante para não atrapalhar, mas perto o suficiente paraque a menina possa sentir a sua presença, ele a observava. É a suafilha que ali está, prestes a operar. A equipe médica movimenta-se com a eficiência que só a longa prática proporciona. Mas, comobom observador que é, percebe nos gestos de cada um deles, atensão de quem sabe que tem pela frente uma tarefa extrema-mente difícil. Enquanto as horas passam, os movimentos deles,bem como o ruído metálico dos instrumentos, vão tomando umritmo mais acelerado. De seu lugar, ignorado por todos, ele con-segue pressentir o cansaço e a tensão que vão tomando conta decada profissional; o envolvimento deles, a sua determinação. Namemória, ele revê os momentos que marcaram a vida de suafilhinha nos cinco primeiros anos, quando ele esteve sempre tãopresente, acompanhando cada descoberta dela, e todas as suasaventuras. Dando-lhe a mão, guiando seus passos, sabendo ouvi-la. Eles sempre foram tão unidos...

Era uma relação mágica, esta é a palavra, que transformavacada momento que compartilhavam, numa ocasião muito espe-cial. Entendiam-se, muitas vezes, sem a necessidade de palavras;apenas por gestos e olhares. E conversavam sobre tudo, o quesempre surpreendia a ele, já que ela era tão pequena. Até os cinco

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anos, ele jamais deixou de estar junto com ela. Depois, repenti-namente, teve de afastar-se. Claro, ele sabe que não teve culpa, jáque a escolha não foi sua. Mas ele tem certeza, e isso foi o quemais o entristeceu, que o seu súbito desaparecimento magoou amenina profundamente.

O ruído do equipamento eletrônico, aumentando a intensi-dade dos bips, trouxe-o de volta à sala de cirurgia. O movimentoda equipe era agora mais agitado. Nos rostos, parcialmente co-bertos pelas máscaras, via-se o cansaço e a sensação da derrotaque se anunciava. Mesmo lutando uma batalha que sabiam serimpossível, eles não se entregaram. Tentaram de tudo.

Algum tempo depois, a criança levantou-se e veio até ele.Abraçados, pai e filha foram embora. Um a um, os membros daequipe de cirurgia deixaram a sala, exaustos e inconformados.

Ali deitada, sozinha agora, a menina parecia dormir tranqui-lamente, tendo no rosto uma expressão de puro contentamento.

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O reencontro

Eram outros tempos, e as coisas eram feitas daquela forma.Meu pai, rico proprietário de terras, levou-me até lá, na vésperado meu aniversário de quinze anos. O casarão antigo, de doispavimentos, um pouco afastado do centro da cidade. Era, porfora, igual aos outros tantos que por ali existiam. Um homemnegro, o mais bem vestido que jamais vi, abriu-nos a porta. Isola-do por grossas cortinas que cobriam inteiramente seus janelões,o salão imenso que tomava quase toda a extensão do andar infe-rior, era iluminado por pesados lustres de cristal. Em toda a vol-ta, mesas, sendo a maior parte delas ocupadas por casais. De al-gum lugar, soavam os acordes suaves de um piano. Aos meusolhos, aquele era um castelo que só existia nos livros. A maislinda mulher que eu já havia visto caminhou até nós, cumpri-mentando meu pai com respeitosa intimidade. Eu não conseguiadesgrudar os olhos do decote dela. Em atenção ao meu pai, asse-gurou ela que mesma faria as honras da casa. Dando-me o braço,levou-me até o bar, pedindo champanhe para nós dois. Sem pen-sar, procurei a aprovação do meu pai. Percebendo meu embara-ço, ela apertou meu braço e sorriu. Acho que foi naquele mo-mento, que me apaixonei de verdade. Do resto, lembro-me pou-co. O champanhe venceu meus receios, e eu abri meu coração.Na certeza de ser correspondido, fiz amor com ela. Depois disso,jamais tornei a vê-la; até hoje.

Amanda e eu resolvemos nos casar, após um namoro dedois intensos e loucos anos, numa cerimônia simples e sem con-vidados. Hoje, em nossa lua-de-mel, ela me trouxe para conhe-cer sua mãe. Olhando-as agora, uma ao lado da outra, pergun-to-me como foi possível jamais haver percebido a extrema se-melhança entre as duas.

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Enquanto o sol se perdia por trás do horizonte, e um ventooutonal desprendia as folhas douradas das amendoeiras, o tempopareceu enlouquecer, e diante de mim, nos mesmos olhos e sor-risos, passado e futuro tornaram-se uma coisa só. Depois, quan-do o silêncio já ameaçava tornar-se acusador, tomei minha deci-são. Por ser a única coisa a ser feita, abri o meu melhor sorriso.

E, tomando entre as minhas a mão da minha primeira aman-te, beijei-lhe respeitosamente as pontas dos dedos. Só a voz tre-meu um pouco, quando eu exclamei as palavras de praxe:

– Muito prazer!

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Minha rua

Hoje, sem mais nem menos, me pego a caminhar sobre meuspróprios passos, desenhados num tempo em que era tudo tãomais simples, e o mundo cabia inteiro nos limites da minha rua.Com os olhos da memória, avalio cada muro e cada canteiro,percebendo neles as marcas dos anos. Tudo tão igual, tudo tãodiferente. A começar pelos sons. Calaram-se os pássaros e tam-bém as crianças. Existem muito mais carros e mais grades. Osvelhos sorrisos mudaram-se daqui. Portões, antes sempre tãoabertos, trancam-se agora, com uma desconfiança toda nova. Naminha memória, o ano dividia-se em aulas e férias, numa simpli-cidade que envolvia por inteiro as nossas vidas. E cada coisa noseu tempo, já que existiam tempos e épocas. Tempos de soltarpipa, de jogar bolinhas de gude, de soltar balão, e de fantásticascorridas de carrinhos de rolimã. Todos eles religiosamente ob-servados, sem que ninguém pensasse em alterar o calendário,exercendo tais atividades em tempos impróprios. E mesmo hoje,eu nem sequer sei quem nos dizia onde se iniciava um tempo eterminava o outro. Já as épocas, eram determinadas pelas frutas.Mamão, goiaba, manga, sapoti, jamelão, jabuticaba, amora, ca-rambola e jaca, se ofereciam fartas, nos quintais da minha infân-cia. Nas avenidas de árvores de tamarindo, crianças e frutos seapinhavam nas tardes de intensa ventania. Passo pela casa doGordo, do Marcelo, do Pepe, esperando que a qualquer momen-to algum deles apareça, ou grite meu nome. Em frente ao prédioverde, olho para cima. A janela da Lia está fechada.

– Deus, como eu amava aquela garota!

Até conhecer Marina, com os maiores peitos que eu já tinhavisto. Marina foi a primeira mulher que eu levei para a cama,

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embora ela jamais soubesse disso. E a sua presença era de talforma intensa nas minhas noites, que eu quase podia tocá-la, en-charcando os lençóis de suor e de indecência.

O porteiro do prédio, perguntando-me se eu estava procu-rando alguém, despertou-me. Sem perceber, eu ficara ali parado,olhando para cima, tendo no rosto o sorriso idiota dos apaixona-dos. Claro que ali não morava mais nenhuma Lia; nem a Marina,o Gordo, Marcelo ou o Pepe. Foram-se eles todos, como os diase as tardes da minha infância. Não existem mais, como as goia-bas e os sapotis, dos quais eu ainda posso, às vezes, sentir o gostome adoçando a boca. No silêncio que restou, meus passos reper-cutem na calçada, e são como uma canção triste que me acompa-nha enquanto caminho de volta, no sentido inverso da felicidade.E esta canção triste, ecoando naquela rua morta, é a prova doquanto a vida deixou de fazer sentido.

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O anjo da noite

Lá pelas tantas, Ranulfo despertou sobressaltado e com aincômoda certeza de que havia alguém além dele no seu quarto.À sua volta, a escuridão era total. Tentou apurar o ouvido, à catade algum som denunciador, mas o galope acelerado de seu cora-ção tornava isso impossível. Tateando, buscou encontrar na me-sinha de cabeceira, os óculos salvadores. Foi quando uma voz deCid Moreira reverberou pelas paredes, liquidando com o últimovestígio da sua já limitada coragem.

– Volte a dormir, que você está sonhando!

Talvez só por burrice, Ranulfo ainda perguntou:

– Tem alguém aí?

– Sim. Sou o seu anjo da guarda.

Com olhos de puro êxtase, ouvindo emocionado os sinosbadalando sagrados cânticos, Ranulfo exclamava maravilhado:

– Milagre, milagre!

Mas, quando estava prestes a ajoelhar-se, rendendo ho-menagem ao celestial visitante, Ranulfo se deu conta de queestava inteiramente nu, por baixo da coberta. E sua vergonhafoi maior que a devoção.

Enquanto isso, seus olhos míopes tentavam vislumbrar naescuridão do quarto, aquele ser de luz, com seus cachinhos dou-rados e asinhas prateadas. Mas, nada!

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Apenas uma imensa mancha escura. Quando a mancha es-cura se mexeu, Ranulfo não se conteve, e exclamou horrorizado:

– Mas você é um negão!

A ousadia da acusação, mesmo desmentida pela voz fina egaguejante, foi cortante como faca de açougueiro. Com movi-mentos lentos, o gigante de ébano chegou-se mais para pertodele. Com passadas rápidas, que repercutiam no pequeno apo-sento como marretadas desferidas contra o chão, o visitante acer-cou-se dele, e com o rosto tão próximo ao de Ranulfo, que estepôde sentir- lhe o bafo alcoólico, respondeu secamente:

– Tava esperando quem? Cada um tem o anjo da guardaque merece!

E, enquanto ensacava os objetos mais vistosos que suas gran-des e ágeis mãos encontravam, o arcanjo Tião (foi assim que eledisse chamar-se) fazia severo discurso contra o materialismo deRanulfo, e a favor da distribuição de renda. E não adiantou Ra-nulfo argumentar por entre lágrimas, que morava num moquifo(janela e porta conjugados), e que seu salário mal dava para che-gar ao fim do mês. Por último, foram-se as derradeiras notas desua já magra carteira, engolidas por aquele saco que parecia nãoter fundo. Depois, já saindo, o anjo da noite deu um último aviso,que aos ouvidos acovardados de Ranulfo, soou como ameaça:

– De hoje em diante, eu não vou mais deixar você sozinho.

Depois desta experiência mística, Ranulfo quer mais é que odiabo o carregue.

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Quadrinhos

Batman lançou o olhar treinado para o relógio, enquantocolocava a lasanha ao molho siciliano, no forno para gratinar. Oprato favorito de Robin. Cinquenta minutos, ele pensou; o tem-po exato para um banho e a loção hidratante. Depois, jantar à luzde velas, dando o toque romântico. De passagem, revisou pelacentésima vez a mesa posta para dois. Outra vez ele sentiu faltade Alfred (o mordomo dos Wayne, que esteve sempre ao seulado, desde os oito anos, quando assaltantes de rua mataram osseus pais). Por conta desse crime, o Homem-morcego foi criado.O justiceiro implacável que varreu o crime das ruas de GothamCity. Agora, aposentado, vivia para o seu amor, feliz em ser ape-nas o Bruce do Robin. Numa outra cidade, é claro, mais toleran-te. Hoje, dez anos depois, ele espera por seu amado.

– Ele esqueceu, com certeza, do nosso aniversário.

E os dez anos desfilam por seu pensamento, arrancando umsorriso nostálgico. Ultimamente, alegria e tristeza têm sido maisfrequentes, causando mudanças súbitas do seu humor. Isso, e ainsegurança. A diferença de idades, sempre ela, lembrando queos relógios de ambos correm em velocidades diferentes. No iní-cio, os vinte anos que os separavam sequer eram lembrados. Com28 anos de idade, Bruce era um herói, aos olhos de menino deRobin. Com carinho de tio, ele ensinou ao jovem pupilo – quehavia sido adotado por um primo seu, já falecido – todas as téc-nicas de ataque e defesa que fizeram deles a dupla de mocinhosmais famosos do mundo. Agora, Robin é quem administra o con-glomerado Wayne. Há alguns anos, Bruce abriu mão disso, parapassar mais tempo em casa. Mas Robin foi à luta. Assim que seformou, dedicou-se aos negócios com tanto empenho, que ago-

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ra é o principal executivo do gigantesco empreendimento. ParaBruce, sobrou a vida doméstica. Na cozinha, seguindo a orien-tação de Alfred, descobriu uma nova forma de realização. Ado-ro esta casa, ele pensa, enquanto os olhos pousam em cada peçavaliosa que foi colecionando no correr dos anos, nas viagensque fizeram pelo mundo, numa lua-de-mel que parecia intermi-nável. A vida é quase perfeita, faltando só um tantinho assimpara que o seu coração se aquiete. Olhando para o espelho dobanheiro, corre os dedos pelas rugas ao redor dos olhos. Oscremes, caríssimos, já não estão funcionando. Depois, dandoum passo atrás, ele deixa cair a toalha, mostrando-se de corpointeiro. Um gemido involuntário escapa de seus lábios, ao cons-tatar que a cintura está cada vez mais larga.

– E Robin que não chega...

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Negócios de família

Eu só soube quem era o pai dela muito tempo depois. Aí,quando o assunto veio à tona, eu já estava tão envolvido que nãotinha mais como fazer o caminho de volta. Na verdade, com ocorrer dos anos eu fui criando tantos muros em torno de mimmesmo, que as mulheres costumavam sair da minha vida igno-rando mais coisas, do que antes do nosso relacionamento. Afinal,como poderia dividir segredos que não eram apenas meus, sa-bendo que, pelo simples conhecimento deles, eu poderia estarcondenando esta pessoa à morte? E agora, quando passado efuturo abrem-se à minha frente, que caminho escolher? Devo,conforme o desejo de minha mãe, romper de vez com uma vidaque jamais foi a minha e que, de uma só vez, arrancou dos braçosdela o marido e o filho? Ou, assim como meu pai, cumprir com omeu destino, fazendo aquilo que se espera de um Gambini?

1

Agosto de 1980

Eu não conseguiria descrever os pensamentos que ocupa-vam minha mente quando, naquela quarta-feira, desci do tremdepois de quatro anos ausente da minha cidade. Meu avô man-dara me chamar, com urgência. O velho Tony, com aquele sorri-so que sempre guardou só para mim, estava à minha espera. Oabraço foi demorado, e o silêncio de ambos foi mais eloquenteque qualquer palavra. Já no carro, eu ia correndo meus olhos pelapaisagem, tentando descobrir qualquer mudança. Mas, mesmoapós os anos decorridos, tudo parecia exatamente igual. O ran-cho do meu avô, onde nós sempre moramos, tinha terras que seperdiam na distância, e era, aos meus olhos de menino, do tama-

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nho do mundo. Próximas a nós existiam outras propriedades.Mas nenhuma delas se comparava ao nosso rancho. E de umaforma ou de outra, todos os vizinhos dependiam do meu avô.Mas ele era um homem duro, de olhar hostil e poucas palavras.Que me lembre, eu jamais o vi sorrir. E com a morte prematurade meu pai, minha mãe isolou-se em seu quarto, afastando-meassim do convívio com ela. No início, quando perguntava porela, os empregados diziam que ela não estava bem de saúde. De-pois de um tempo, já não perguntava mais. Só muito mais tarde,ao tomar conhecimento da história toda, eu pude compreenderos motivos dela. Graças ao Tony, que no rancho desempenhava afunção de motorista de meu avô, eu jamais me senti sozinho. Eleesteve sempre próximo de mim em todas as horas dos meus dias,até o momento em que, dez anos atrás, eu fui posto no trem,para completar os meus estudos na capital.

2

Abril de 1976

O telegrama me alcançou quando havia terminado o meusexto ano de colégio. Minha mãe havia falecido, e eu estava sen-do chamado para o enterro dela. Eu não sabia como lidar comaquela perda. Junto com os bens que ela me legava, deixou paramim o diário dela. Atendendo a seu desejo expresso, eu só o abriquando já estava de volta ao colégio. E só então, através daquelaspáginas, eu pude descobrir quem realmente eram os personagensmais importantes da minha vida. Segundo minha mãe, a famíliaGambini, uma das mais tradicionais da Sicília, sempre esteve li-gada a Cosa Nostra. Quando o primeiro navio trazendo imigran-tes italianos aportou nos Estados Unidos, tinha entre eles doisjovens Gambini. Poucos anos depois, em plena vigência da leiseca, a família Gambini já participava da quase totalidade dos

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negócios ilegais que prosperavam nas grandes cidades norte ame-ricanas. Além do abastecimento de bebidas alcoólicas, jogo, pros-tituição e receptação de cargas roubadas, eles também estavaminfiltrados nos principais sindicatos. Mediante suborno, eles con-trolavam políticos, policiais e até alguns juízes. Meu avô foi oúltimo dos grandes mafiosos que atuaram nos Estados Unidos, eembora tivesse conquistado fama como o mais violento deles,não conseguiu impedir que a maré negativa impulsionada porum jovem e destemido promotor (que, ironicamente, tambémdescendia de família italiana), Francesco Gatuzzo, que depois veioa se tornar juiz, fosse desmontando, tijolo por tijolo, o impériotão duramente construído através dos anos. E a cada golpe des-ferido, ele falava através dos jornais que estava chegando cadavez mais perto de colocar algemas no poderoso cabeça da Ca-morra americana. Vendo-se cada vez mais acuado, meu avô deci-diu eliminar o seu principal inimigo. E vários foram os atentadoscontra o magistrado. De dia ou de noite, locais por ele frequenta-dos eram explodidos, deixando feridos e mortos espalhados pe-las calçadas. Mais de uma vez, o carro em que ele se encontravafoi fuzilado. Mas, milagrosamente, Gatuzzo sobreviveu a todasessas ações. E longe de se deixar abater, parecia ganhar mais alentopara destruir meu avô.

3

Apesar de independentes, com áreas de interesse bastantedefinidas, as cinco famílias, Albernazi, Capobianco, Malatesta,Carmona e Gambini, compunham uma organização única, a qualcabia intermediar eventuais associações e, quando necessário,arbitrar divergências. Meu avô era o capo di tuti capo, na organi-zação americana. Por conta dessa função, ele fazia jus a uma por-centagem de todos os negócios que eram executados pelas de-mais famílias. Em contrapartida, cabia a ele impedir que as ativi-

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dades ilegais fossem prejudicadas pela ação de terceiros. Assim,preocupados com a perseguição que vinham sofrendo, chefes detrês famílias propuseram uma reunião, exigindo que meu avô sedeclarasse incapaz de resolver a situação e abdicasse do cargo queocupava. Depois de muita discussão, ficou combinado um prazofinal de trinta dias. Por conta disso, numa atitude que só poderia tersido ditada pelo mais absoluto desespero, meu avô conseguiu,mediante régio pagamento, incluir meu pai entre os poucos convi-dados a uma recepção na qual estaria presente o juiz Gatuzo. Meupai havia sido escolhido apenas pelo fato de que era o único rostodesconhecido pelos federais que serviam a Gatuzo. Neste momentode sua narração, e para que eu pudesse entender bem os fatos,minha mãe descreveu meu pai como um homem maravilhoso, quejamais quis participar dos “negócios” da família Gambini. De talforma que, como forma de mostrar sua independência, não hesi-tou em trocar o sobrenome Gambini, pelo de sua avó materna.Primeiro como estudante de Artes, e depois como pintor, ele pas-sou dois anos em Paris, e outros dois em Madri, onde conheceuminha mãe. O casamento deles foi ignorado por meu avô, quesequer respondeu ao convite que lhe fizeram. Mas, minha mãesempre soube disso, ele ansiava pela aprovação de meu avô. E essanecessidade de provar seu valor, seria a explicação para o fato demeu pai, assim que foi chamado por meu avô, ter aceitado, indife-rente aos riscos decorrentes, matar friamente o juiz. Só que, não sesabe como, o plano foi descoberto, e meu pai, tendo caído na ar-madilha que lhe foi armada, foi fuzilado, e teve seu corpo jogadona rua para que todos vissem. Dias depois, meu avô exigiu de mi-nha mãe (que para ele jamais fez parte da família) que ela nãotornasse a se aproximar de mim. Como viúva de seu filho, ele per-mitiria que ela continuasse vivendo ali, confinada em seu quarto.Se descumprisse suas ordens, ele a expulsaria de casa e ela jamaistornaria a me ver. E encarregou Tony, seu pistoleiro de maior con-fiança, da tarefa de proteger o futuro chefe da família Gambini.

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4

Depois de ler o diário de minha mãe, e apesar de todasas coisas horríveis que ali eram descritas, pouca coisa mu-dou em mim. Talvez se ainda estivesse vivendo no rancho,ou se fosse alguns anos mais novo, o resultado pudesse tersido diferente. Mas não hoje.

Eu estava de tal forma integrado à vida escolar, que era comose jamais tivesse existido alguma outra. Estudos, esportes e di-versão tomavam todas as minhas horas, em perfeita organização.Nas férias anuais, minha dificuldade era ter de escolher, dentretantos convites feitos por meus colegas de colégio, para que lu-gar eu iria. Dessa forma, tudo o que envolvesse o rancho, ouqualquer das pessoas que ali moravam, de tão distante, ocupavaum lugar pouco expressivo em meus pensamentos. Após medi-tar por uns três dias, queimei o diário, preocupado em que elepudesse cair em mãos erradas. Com aquele gesto, eu tinha certe-za de deixava para trás um passado ao qual eu jamais me sentiligado. Mas o que eu ainda não sabia, era que o destino já haviatraçado outros planos para mim.

Na festa de encerramento do ano, antes do período das férias,era tradição receber, para um grande baile, as alunas de um colégiotão renomado quanto o nosso. Foi quando eu conheci Fiorella. Nasférias, mudando totalmente de planos, decidi aceitar o convite deum colega com quem eu tinha pouca intimidade, apenas pelo fatode que a família dele tinha casa em um dos mais luxuosos condomí-nios de Malibu, onde Fiorella estaria hospedada com suas amigas.

Quando nos separamos, ao final de pouco mais de vinte dias,eu e ela já havíamos combinado que nos casaríamos. Nos mesesque se seguiram, sempre que nossas licenças de final de semanacombinavam, nos encontrávamos na cidade. E, claro, já tínha-mos feito nossos planos para que após o encerramento das aulas,passássemos as férias juntos.

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Agosto de 1980

Enquanto o carro em que nós íamos reduzia velozmente adistância que separava passado e presente, eu tomava consciên-cia do quão diferentes eram as duas metades da minha vida. Dogarotinho que um dia se viu jogado no mundo, tendo de apren-der a dividir os espaços com outros de sua idade, havia restadomuito pouco. Por nunca ter tido uma família, diferentemente dosdemais, a adaptação aos novos tempos foi relativamente fácil.Agora, se ocorresse o inverso, e ele se visse obrigado a trocar opresente pelo passado, como se comportaria? Tony, caladão comosempre, mantinha-se atento ao volante, dando-me o tempo queeu precisava para organizar as coisas em minha mente. Desde osmais remotos dias de minha infância, as histórias que Tony con-tava sobre as nossas famílias, desde a Sicília, eram guardadas comotesouros em minha memória. Assim como aconteceu com ele,quando tinha a mesma idade que eu, as histórias despertaram umamor profundo pela terra e por nossos antepassados, que valori-zavam a honra e a coragem acima de qualquer outra coisa.

A família de Tony, na Sicília, sempre serviu aos poderososGambini, e isto, para eles, era motivo de grande orgulho. O avôdele veio para a América, com o pai de meu avô, que Tony medisse, foi o maior de todos os Gambini. Assim, não deve ser difí-cil imaginar o conflito que existia dentro de mim ao confrontaros dois lados da moeda, já que para minha mãe, aqueles que euconheci como heróis, através das histórias contadas por Tony,não passavam de reles criminosos. E agora, prestes a me encon-trar com meu avô, eu tinha certeza de que teria de decidir por umou por outro lado, sabendo que seria essa decisão que iria deter-minar todo o resto da minha vida.

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Meu avô me aguardava na varanda. E se eu estivesse espe-rando por algum gesto de carinho dele, teria me decepcionado.Ele estava muito velho, e os anos haviam curvado um poucoaquela figura imponente. Mas eu podia ver bem definida naquelaexpressão, toda força que ali existiu. Durante alguns minutos, eleapenas me olhou. Depois, fez um gesto para que eu me sentasse.Só muito tempo depois ele perguntou o que eu havia achado dodiário de minha mãe. Por mais incrível que me parecesse, eu esta-va absolutamente tranquilo. Por maior que fosse o poder daquelehomem, habituado a fazer prevalecer sua vontade, ele não con-seguia me alcançar. E esta segurança ficou clara nas respostasque eu dei a ele. Tentando poupar tempo, eu expliquei que nãotinha muita ligação afetiva com minha mãe, meu pai e com ele,uma vez que jamais participaram da minha vida. Assim, amar ouodiar qualquer um deles, pelo que fizeram ou deixaram de fazerem seu passado, seria absurdo.

Então, ele me contou quem eu era. E como a minha vidacomeçara com os primeiros Gambini, numa das aldeias sicilianas.E embora fosse a mesma história que eu havia escutado de Tony,ela soava diferente na voz do meu avô, já que ele ajudara a escrevê-la. Muitos dos nossos orgulhosos antepassados viveram e morre-ram para conquistar o direito de jamais serem escravos de outroshomens. E quando a Sicília foi invadida por estrangeiros, eles orga-nizaram a resistência, formando grupos de guerrilheiros em cadauma das aldeias, que atacavam de emboscada, com punhais e astemíveis luparas, e que jamais faziam prisioneiros.

Com o fim da guerra, os Gambini eram o poder a quem opovo prestava obediência. E juntamente com outras poucas fa-mílias abastadas, os homens de honra criaram uma organizaçãoque oferecia justiça igual para todos os sicilianos. E que conside-rava como inimigos o governo e todas as suas autoridades. As-

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sim sendo, qualquer assunto da aldeia deveria ser discutido como Padrinho, e a decisão por ele tomada seria definitiva. Quemcomentasse tais assuntos com as autoridades de governo, estariaquebrando a omertá, e pagaria por isso com a própria vida.

Esta organização veio a ficar mundialmente famosa como aMáfia (Cosa Nostra ou Camorra). Meu avô falou por quase qua-tro horas. Depois, mandou que eu fosse me trocar, avisando queo jantar seria servido pontualmente às dezenove horas.

À mesa, ele não conversou mais comigo. No dia seguinte, fuiarrancado da cama pelo Tony, como fazia nas manhãs de minhainfância, que me convidou para andarmos a cavalo. Era comouma volta no tempo. E como sempre fazíamos, terminamos opasseio com um mergulho no lago de águas transparentes. Quandovoltei para casa, meu avô me esperava na varanda. Sem qualquerpreâmbulo, me perguntou por Fiorella Gatuzzo. Foi como se eutivesse recebido um soco no estômago. E antes que eu pudesseme recobrar, ele foi categórico: queria que eu matasse o pai deFiorella. Não importava de que forma, mas teria de ser logo. Eudevia isso a ele. Eu devia isso ao meu pai, como forma de apagarde sua memória o fracasso que tanto envergonhou nossa família.Enfim, era o que ele exigia de mim, por tudo o que eu haviarecebido dele até hoje, e pelo tanto que viria a ser meu, depoisque ele morresse. Tony conversaria comigo sobre os detalhes. Equando eu ia argumentar, ele levantou-se, e subiu para o quartodele. Mas antes que chegasse ao meio da escadaria, sem se voltar,ele avisou que se eu não desse o assunto por resolvido em seismeses, o juiz seria informado de quem eu era, e do “verdadeiro”motivo pelo qual me havia aproximado da neta dele. E, claro,como eu não era oficialmente um Gambini, perderia qualquerdireito à herança dele. Depois disso, eu nunca mais vi o meu avô.

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Janeiro de 1990

A mansão dos Gatuzzo, totalmente iluminada, se destacavaem meio ao verde dos magníficos jardins que a cercavam. O pre-texto para a festa que ali se realizava, era o aniversário de dezoitoanos da única neta do juiz Gatuzzo. Mas, eles estariam apresen-tando para a sociedade o noivo de Fiorella. Neste momento danarrativa, eu devo esclarecer alguns pontos que ainda permane-cem obscuros. Por imposição de minha mãe, que orgulhosa desua origem nobre, manteve como casada o sobrenome Fanini, eufui batizado com o sobrenome dela. E em meus registros escola-res nada constava que pudesse me ligar aos Gambini. Na épocado casamento dos meus pais, o cerco imposto pelos Intocáveis (aforça-tarefa formada por agentes federais sob o comando dopromotor Gatuzzo) ameaçava de tal forma os assuntos da famí-lia, que meu pai se aproveitou disso como motivo, e ao se casarem Madri, terra de minha mãe, utilizou o sobrenome de solteirada avó materna dele. E como Leonardo di Pietro, meu pai inves-tiu grande parte da considerável fortuna de família da minha mãe,na construção do mais moderno shopping center da capital es-panhola. Por conseguinte, qualquer investigação que se fizessesobre mim, chegaria até o rico empresário, Leonardo di Pietro, jáfalecido. Por conseguinte, quando meu pai foi fuzilado no aten-tado contra o juiz Gatuzzo, documentos falsos obtidos na Sicília,davam a ele um outro nome, nada havendo que o ligasse a famí-lia Gambini; e por esse motivo, seu corpo jamais foi reclamado.

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Na véspera do aniversário de Fiorella, eu fui chamado à bi-blioteca do juiz, para que tivéssemos uma conversa reservada,

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antes do jantar no qual eu estaria formalizando o meu pedido denoivado. Não havia qualquer semelhança entre os dois homensque, durante duas décadas foram os principais personagens deuma guerra urbana sem precedentes. O juiz era simpático e fa-lante. De uma gaveta perfeitamente camuflada na imensa escri-vaninha de madeira maciça, tirou uma garrafinha de cristal, ser-vindo em copinhos de cerâmica duas doses de um excelente licoritaliano, de menta. Durante quase duas horas, e eu confesso quenem percebi a passagem do tempo, ele me fez falar sobre mim, emeus projetos para o futuro. Quando eu disse a ele que pretendiaconvencer Fiorella a ir para a Espanha comigo, onde um empre-endimento imobiliário me havia sido legado por meus falecidospais, ele festejou a ideia.

Horas mais tarde, eu e Fiorella ficamos noivos, com asbênçãos da mãe e do avô dela, ambos viúvos. O toque de hu-mor ficou por conta do convite feito pelo juiz, prontamenteaceito por mim, para que participasse com ele de uma pesca-ria em alto mar, no barco de sua propriedade, o La Fiore. Eutenho certeza de que meu avô, apesar do imenso esforço queisso lhe custaria, iria se engasgar de tanto rir, se viesse a tomarconhecimento desse convite.

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Outubro de 1994

O iate singrava as douradas águas do Pacífico, rumo ao solque ameaçava esconder-se no horizonte. No convés superior,abraçados, Fiorella e eu desfrutávamos da melhor das solidões.Para trás ficavam todos os acontecimentos que transformaram,no último ano, ambas as nossas vidas.

A morte do juiz, na biblioteca de sua casa, vítima de umataque cardíaco fulminante, atraiu para a família Gatuzzo uma

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notoriedade incômoda. Durante semanas, furgões de reportagense jornalistas acampavam nos jardins da mansão, abordando em-pregados e expondo a dor da família nos jornais de todo o país.E durante todo o tempo, eu estive junto com Fiorella, não ape-nas confortando, mas auxiliando ela e sua mãe nos procedimen-tos legais decorrentes do falecimento, e que compreendiam exaus-tivas reuniões com advogados. Como procurador da única her-deira, cabia a mim aprovar ou não os consideráveis investimen-tos de meu falecido sogro, em papéis e imóveis.

Pouco mais de dois meses depois do juiz Gatuzzo, suicida-va-se o velho Leonardo Gambini. Segundo as notícias, ele sofriade uma doença degenerativa, conforme os exames que se espa-lhavam junto ao corpo, e era orgulhoso demais para aceitar vivero restante de seus dias na dependência de terceiros.

O velho Tony cumprira a parte dele. Depois, previamenteorientado por mim – já que eu não poderia ter nenhuma partici-pação nesses procedimentos – ele determinara a transferênciapara uma conta numerada que eu abrira na Suíça, de todo o ouroque compunha o espólio de meu avô (o velho não confiava emnenhum outro investimento).

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Agosto de 1980

Depois que meu avô me deu o ultimato, fui procurar Tony.Ele não fez qualquer comentário, enquanto eu narrava os acon-tecimentos. Eu estava furioso. Disse a ele que iria matar o meuavô. Ficamos os dois ali fora, sentados num dos bancos do jar-dim, tomando cerveja e olhando as estrelas. E só muito tempodepois, suavemente, Tony me falou que, de novo, eu não estavapensando como a truta. E foi como se eu mergulhasse em umredemoinho, enquanto os ponteiros do relógio do tempo gira-

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vam alucinadamente no sentido inverso.Por trás, as terras de meu avô eram limitadas por uma mon-

tanha escarpada que abrigava a nascente do rio de águas muitogeladas que cortava toda a extensão do rancho. Num certo tre-cho, havia se formado um lago natural de pouca largura, masbastante profundo, que todavia não impedia a progressão do rioque, logo em seguida, tornava a correr velozmente, aproveitandoo declive do terreno. Era naquele lago, que Tony e eu pescáva-mos. Um dia, para meu deslumbramento, uma imensa truta pra-teada saltou, parecendo manter-se parada no ar. Tony me disseque aquela era a mãe de todas as trutas. A partir desse dia, eufiquei obcecado em pegar aquela truta. Dias, semanas, meses sepassaram, e nem sinal dela. Enquanto eu voltava de mãos vazias,Tony trazia para casa o seu peixe no balde (ele só admitia quepescássemos um peixe, cada um). Tony não era de ficar dandoconselhos. E só opinava quando isso lhe era pedido. Mas, talvezpor ter visto o meu desespero, ele perguntou se eu sabia por qualmotivo eu ainda não havia conseguido pescar a grande truta pra-teada. Como eu nada dissesse, ele respondeu que era porque eunão estava pensando como a truta. Então, ele me explicou queaquela espécie de peixe era muito inteligente. E a “minha” truta,pelo tamanho que tinha, era a mais inteligente de todas. Durantecentenas de anos os peixes viveram naquele rio, e não precisa-vam das nossas iscas para se alimentar. Os que eram pescadospor nós, não estavam com fome; eram curiosos. Uma truta, porser peixe de rio, jamais viveria naquele lago. Esperta como elaera, poderia até passear por ali, mas buscaria segurança na partemais profunda do lago. Depois deste dia, mudamos nossas iscas,e utilizamos linhas mais fortes. De barco, ficávamos os dois, ho-ras a fio, imóveis e em silêncio. Quase um mês depois, eu pesqueia grande truta prateada. Conforme havia prometido a Tony, quesó aceitara me ajudar sob essa condição, eu a devolvi ao lago.

Agora, tantos anos depois, a história me voltava com todas

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as cores daquele verão passado. E por causa dela, eu sabia o quedeveria fazer. Mas, para isso, eu iria precisar mais ainda de Tony.E foi o que eu disse a ele.

Ele havia me falado do sonho que tinha. Quando meu avômorresse, e se eu não viesse mais morar aqui, ele gostaria deviver na Sicília. Se tivesse algum dinheiro, só o bastante paracomprar um pequeno sítio na terra de seus avós, ele seria ohomem mais feliz do mundo.

Agora, eu falei do sonho dele e também do meu, que nadatinha a ver com a família Gambini. Meu avô havia encaminhadomeu pai para a morte, e agora estava querendo fazer a mesmacoisa comigo. E não adiantava eu abrir mão da fortuna dele, jáque meus pais haviam garantido meu futuro. Se eu não cumpris-se a sua ordem, ele afastaria de mim a mulher da minha vida. Eisso, eu não iria permitir. Conversamos durante a noite toda. Tonymanteve-se inflexível em um ponto: o velho juiz deveria morrerpelas minhas mãos. Eu era um homem de honra, e não poderiafugir ao meu destino. Ao contrário do que eu pudesse estar pen-sando, meu pai não era um tolo. Ele fez o que fez, de formaconsciente, porque sabia do seu dever de sangue. Matando o juiz,aí sim, eu estaria liberado para fazer qualquer outra coisa. Quan-to ao sonho dele, ele me disse, viria sempre depois do dever decuidar de mim, enquanto eu precisasse dele. Porque ele tambémera um homem de honra, e havia se comprometido com isso.Depois, olhando dentro dos meus olhos, finalizou com as pala-vras que selaram o nosso acordo:

– Pelo seu sonho, qualquer homem deve estar disposto afazer o que for preciso.

Depois disso, conforme meu avô havia determinado, Tony eeu conversamos sobre “os detalhes”. Quando o sol já se mostra-va, nós nos separamos com um abraço demorado.

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Final

Sem outros parentes conhecidos, o herdeiro legal de meuavô era, no papel, o irmão mais novo dele, Carlo, residente naSicília. Meu avô tinha um documento assinado por ele, menomeando procurador. Mas, esta procuração só passaria àsminhas mãos se eu matasse o juiz.

Por esse motivo, a vida de meu avô teria de ser preservadaaté que ele, conforme a promessa feita, entregasse a procuraçãonas mãos de Tony, que a traria para mim. Pelos planos que euhavia traçado, tão logo tivesse a posse do rancho – e já que meuavô não estaria mais vivo – eu o venderia, entregando a Tony,conforme os desejos de meu avô, metade do valor apurado. Aoutra metade seria dividida entre os outros mais de vinte empre-gados, todos italianos, que durante quase trinta anos serviramlealmente aos Gambini, aqui na América. Antes de deixar o ran-cho pela última vez, Tony me deu o frasco com um poderosoveneno que seria acrescentado ao licor de menta que o juiz, con-trariando ordem expressa de seu médico, bebia reservadamente.Essa foi a forma que eu encontrei de harmonizar passado e pre-sente, sem comprometer o futuro que eu escolhi para mim. Quiso destino que eu, para deixar de ser definitivamente um Gambi-ni, tivesse de agir exatamente como um.

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A escolha

Desde que a lembrança alcança, nós estávamos sempre jun-tos. Dois garotos da mesma idade, vivendo dias despreocupados,numa época em que a maldade ainda não havia sido inventada. Asemana inteira, eu ia para casa dele, imensa, e com um quintalque abrigava mangueiras generosas. Mocinhos e bandidos dasnossas brincadeiras, nem percebemos que o tempo passava à nossavolta. Até que, adolescentes, ele rumou para outra vida, em SãoPaulo, quando seu pai assumiu a direção da fabrica do sogro, e eutive de meter a cara nos livros, brigando por uma vaga difícil nauniversidade pública. Nas férias, nos dois primeiros anos, eu iapara o sítio deles, no interior paulista. Depois, tendo de conciliarestudo e trabalho, só nos comunicávamos por cartas. E mesmoessas, na medida em que o tempo me faltava, foram escasseando.Faz quinze anos que não nos vemos. Claro que eu tinha comocerteza o fato de que ele estaria numa boa, tocando os negóciosda família. Jamais imaginei que alguma coisa pudesse sair erradapara ele. Por isto, é tão difícil acreditar no que vejo agora. Mas éele. Eu o reconheço, mesmo com os cabelos desgrenhados, abarba imensa e as roupas imundas. Logo ele que sempre foi tãovaidoso. Sentado na calçada, com olhar vazio, indiferente aomovimento das pessoas, a imagem do meu amigo de infância éum grito desesperado de socorro. Meses antes, eu teria atravessa-do a rua – atravessado o tempo – e o levantaria da calçada imun-da, abraçando-o sem qualquer constrangimento. Meses antes...

A verdade é que a vida nunca foi fácil para mim. A luta pelasobrevivência sempre foi acirrada, e este processo consumiu meussonhos e toda a minha energia. O casamento com a mulher daminha vida foi bom só no início. Agora, nos odiamos mais doque nos amamos. Meses atrás, larguei a Defensoria Pública –

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minha última tentativa de mudar o mundo. Decidido a ganhardinheiro, ingressei num grande escritório de advocacia. Lá, eu eos outro vinte e quatro litigantes pisamos uns nos outros, na ten-tativa de nos mantermos à tona.

Então, o que eu posso fazer por este meu amigo?

O apartamento em que moramos, é pago pela minha mu-lher; e ela faz questão de me lembrar disso quase todos os dias.Um amigo fracassado é tudo do que eu não preciso para con-sertar o meu casamento. Por outro lado, que bem faria para asminhas aspirações profissionais, ser visto abraçado a um men-digo, quase na portaria da empresa? Assim, viro as costas parao meu amigo de infância, e para o cara que eu um dia fui, tor-nando a me juntar às pessoas que, como eu, precisam desespe-radamente continuar vivendo.

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Depois que você foi embora

Agora eu já consigo ver o dia que começa a apontar por trásda linha de montanhas. Agora eu sei que, daqui a pouco, o ventocortante que encrespa a superfície do mar, vai serenar, e os pri-meiros pássaros, com seu canto suave, irão saudar a nova manhãque virá. Agora eu sei que por trás de toda a imensa tristeza dalonga noite, existe sempre a certeza de um novo amanhecer. Emmeu rosto, a lágrima secou. Mas, como um cristal que o tempoendureceu e que a lembrança preserva, ela está guardada, ainda,como cada um dos nossos dias. Assim como todas as palavras eos silêncios mais eloquentes. Eu preciso dizer que, mesmo quan-do nosso amor era tanto que até doía, e o nosso mundinho pare-cia nos proteger da vida lá de fora, às vezes eu me pegava olhan-do para a porta, com medo do que poderia se esconder por trásdela. E eu não estava tão errado, você concorda? Depois, tudo setransformou numa eterna noite, cercada de frio, dor e irrealida-de. E a noite foi tão longa, que eu julguei que seria eterna. Hoje,eu já consigo caminhar por esta estrada que não tem fim nemcomeço e, sozinho como jamais me lembro de ter sido um dia,não sentir pena de mim mesmo. E mesmo quando olho o marquebrar-se nas pedras lá embaixo, já não ouço o apelo das ondasme oferecendo paz e insistindo para que eu mergulhe nelas, be-bendo delas, respirando delas.

Na verdade, foi quando eu comecei a ouvir sua voz, repetin-do vezes sem conta que esta não era a saída, que desse jeito ja-mais tornaria a encontrar você. Por isso, e só por isso, eu tiveforças para lutar contra mim essa batalha de todos os dias, nodesespero de todas as horas. Até que pudesse ver, desenhando-seno horizonte distante, os primeiros raios do sol. E assim, eu voucaminhando por esta estrada sem fim nem começo, e mesmo

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que a vontade de desistir seja ainda tão forte, eu sigo adiante.E não vou parar nunca enquanto puder sentir em meus dedosa suavidade da sua pele, a luz dos seus olhos guiar a minhavontade, e a doçura da sua voz sussurrar em meus ouvidosque você ainda me ama.

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O complexo de diógenes

Quando Diógenes recebeu do patrão a notícia de que es-tava despedido, correu para casa, ansioso que estava em aba-far, nos carinhosos braços da amada, a dor da ingratidão. Mas,chegou atrasado.

Com o braço negro e musculoso sobre a mulher que era deDiógenes, Chicão, o mecânico, roncava desavergonhadamentena cama que era de Diógenes. A indignação queria que ele gritas-se bem alto a sua revolta. Mas, a cautela o manteve calado. Afi-nal, vai que o negão acorda mal-humorado?

Percebendo que sobrava naquele quadro familiar, decidiuabandonar a casa. Na saída, ainda trôpego pelo susto, pisou norabo do cachorro que, como um tapete peludo, espalhava-se jun-to à porta. Levou uma mordida. E isto, na cabeça conturbada deDiógenes, foi a gota d’água.

Sentindo-se perseguido pela humanidade, decidiu isolar-sedela. Só com a roupa do corpo, tomando como norte a monta-nha mais distante que a vista alcançava, iniciou a jornada semvolta. E conforme os dias iam virando semanas, um fervor místi-co começou a tomar conta dele.

Enquanto as semanas iam virando meses, a extrema solidãoagia naquele cérebro doente, criando nele um cego fanatismo.

Por isso, quando se viu diante da montanha que ele escolhe-ra como destino, teve a ilusão de que era o próprio Deus. E nacrença de que subia os degraus para o céu, iniciou a penosa esca-lada. Quase no topo, encontrou uma gruta. Nela, preservadas da

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chuva e do sol de anos a fio, as quinquilharias deixadas poralgum outro que, como ele agora, resolvera dar uma bananapara o mundo material. Dentre tudo, uma lamparina a óleochamou sua atenção.

Agora, noite após noite, ele caminha até o ponto maisalto da montanha, e com a lanterna erguida sobre a cabeça,contempla com olhos de pai a cidade que se espalha sobreseus pés, cumprindo a sina dos deuses, que é de velar osono de seus filhos.

Lá de baixo, as pessoas olhando a chama que desafia onegrume da noite, divertem-se com a obstinação do loucoda montanha.

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Um por todos e todos por um

– Dartagnan, sou eu... – A voz que hesita, demonstra clara-mente o enorme conflito entre ligar e não ligar.

– Eu sei que não deveria estar telefonando para você. Eujurei que jamais faria isso. Não depois daquela noite.

– ...

– Espere, me deixe falar. Você acha que se não fosse tãoimportante, eu estaria falando com você? Estaria passandopor cima do meu orgulho, depois das coisas horríveis que vocême disse?

– ...

– Você pode escutar, Dart? Tem um bicho nojento me acu-ando na minha cozinha – o gorducho Porthus falava aos berros,enquanto grossas lágrimas corriam dos seus olhos.

Eu estou trepado numa cadeira, armado com uma ridículacolher de pau, à mercê deste... deste...

– ...

– Você não entende? Este animal horroroso está preparan-do o bote. Ele está esperando eu descer. Mas eu não vou, nunca.– Porthus, agora, chorava copiosamente.

Bem próximo à cadeira onde Porthus se equilibrava, um mi-núsculo camundongo, indiferente ao pânico que causava, senta-va-se sobre as patas traseiras, devorando com gula os sucrilhosque se espalhavam pelo chão.

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– ...

– Você quer saber de Athos e Aramis? Eles estão viajando.Alguma surpresa? Agora, eles quase não têm tempo para vir aqui.Estou só. Eu contra o mundo.

– ...

– É um rato! Será que você não me ouve? Um rato imenso efeio. – Porthus estava histérico agora.

O bicho está olhando fixo para mim, com seus olhinhosmalévolos, só esperando que eu adormeça ou morra.

O apartamento, de quatro quartos, na cobertura de um pré-dio de poucos andares na Lagoa Rodrigo de Freitas, fora herançados pais de Porthus. Nos bons tempos, quando ele ainda estavacasado com Dartagnan, todo dia era uma festa. Athos e Aramis,um casal que ele conhecera logo no primeiro ano de faculdade,eram artistas talentosos e loucos. Pintavam e esculpiam num ate-liê em Jacarepaguá, mas viviam ali, transformando o apartamen-to em um circo. Era o início dos anos noventa, e mesmo na zonasul do Rio os quatro gays, morando juntos, criavam uma silenci-osa hostilidade por parte dos demais condôminos. Mas eles, jo-vens e felizes, nem se importavam com isso.

Na cozinha, ainda aboletado sobre a cadeira, com o telefonesem fio grudado no ouvido, Porthus, dividido entre o pavor e odespeito, continuava fazendo o seu número.

– Está bem, doutor Dartagnan. Não vou mais desperdiçar oseu tempo. Não é preciso ficar me lembrando que você tem mi-lhares de clientes aguardando por você. Claro, um psicólogo tãofamoso. Eu vejo você na tevê, às vezes. Sempre muito pondera-do, demonstrando imensa sabedoria. Parecendo estar muito bem.

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No final das contas, eu deveria ser um obstáculo na sua vida. Umtrambolho gordo e ridículo. Sempre tirando mais do que dando.

– ...

– Como? Você me pergunta o que é que eu quero? Eu que-ro... eu quero... sua atenção, merda! Que você se importe. Oupelo menos finja que se importa. Que venha até aqui, merda!Ridículo! Ridículo! Ai, como eu sou ridículo em pensar que vocêse abalaria; que viria até aqui.

– ...

– E daí que você esteja em São Paulo? Não é de marte quenós estamos falando. É de São Paulo. Antes, você nem pensariaduas vezes. Mas, agora é agora, certo? Não está nem aí. Que seexploda! Vou desligar, Dart.

– ...

– Não, doutor. Seu tempo é precioso demais. Volte para oque é realmente importante para você. Desculpe por eu tertelefonado.

Com tanto ódio que esqueceu o motivo de sua aflição, Por-thus desceu da cadeira, aos prantos, e saiu da cozinha, pisandoforte. Se não tivesse fugido bastante rápido, o camundonguinhoteria sido esmagado por aqueles pés imensos.

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Assim é, se lhe convém

Pompilho aspirou com gosto o cheiro doce dos mana-cás, que vinha de seu canteiro. Depois, fechou as janelas. Osolhos argutos vistoriaram cada cômodo de seu pequeno cas-telo. Era detalhista, o que se há de fazer? Compulsivo, diri-am os modernos, como se diagnosticassem uma patologia.Virtude, isso sim, argumenta ele.

– Das minhas raras virtudes, sendo a modéstia a princi...

A campainha, tocada insistentemente, arrancou-o do seumonólogo. Sim, porque Pompilho era dos que se bastavam,convivendo em doce harmonia consigo próprio. – Afinal, nãose diz que...

A campainha tocou de novo, ainda mais nervosa. Lá estavaele de novo a conversar com seus botões; fazer o quê, se ohábito faz o...

À porta, emoldurada como uma pintura renascentista, ten-do ao fundo a rua que despertava para o novo dia, estava oamor da vida dele.

Lucineide.Que no dia mais negro da sua existência, escafedeu-se mun-

do afora, sem qualquer...

– Cacete, Pompilho, vai ficar aí parado como um doisde paus?

Era Lucineide.Deus, como sonhara com aquele momento. Como fantasia-

ra em suas noites sem sono, o doce instan...

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– Sai da frente, homem, que estou apertada.

Era Lucineide. Loura e linda. E não estava sozinha, já quetrazia pela mão um garotinho de no máximo dois anos, da cor dechocolate. E ela chispou para o banheiro, deixando os dois ali,olhando-se constrangidos. Pompilho e o pimpolho; o pimpolhoe o Pompilho. É claro que Pompilho amava as crianças, assimcomo amava todos os animaizinhos da natureza. Mas, ele tem deconfessar, preferia as plantas, por uma questão de afini...

– Pombas, Pompilho, você já saiu do ar, de novo. Deixa eu teapresentar. Este é o Júnior, seu filho.

– Filho, meu Deus. Um filho de quase..., quase...

– Quantos anos tem o garoto?

Era uma pergunta banal, sem qualquer outra intenção quenão a de estreitar, através do conhecimento, os laços da pater-nidade recém adquirida. Mas, Lucineide, sensível como era,levou a mal.

– Viu só? Você já está duvidando que o Ariclenes sejaseu filho...

– Ariclenes? Mas ele não é o Júnior?

– É Júnior por parte de pai; você! Ariclenes é por causa deum sonho que eu tive com o vovô, que Deus o tenha – os doisse persignaram.

– O velho pedia que eu colocasse no neto, o nome do me-lhor amigo dele. Você acha que eu fiz mal?

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Claro que Pompilho não achava. Lucineide sabia melhor doque ninguém, que Pompilho era espiritualista convicto, tendo pelascoisas do além um respeito que beirava o medo. E para mostrarque não iria brigar com a verdade, Pompilho abraçou o guri, pre-ferindo ignorar que o moleque demorara bastante para nascer, jáque ele e Lucineide estavam separados há mais de quatro anos. Edava gosto de ver aqueles dois assim abraçados, alheios às dife-renças, uma vez que Pompilho era mais branco que consciênciade anjo, enquanto o garoto – por certo graças a mediunidade damãe – havia puxado ao melhor amigo do avô dela, que com cer-teza, tinha os dois pés no continente africano. A vida é repletadesses pequenos milagres. Não vê o caso deles? Ontem mesmo,Pompilho tinha apenas a si próprio. Agora, tinha esposa e filho,de uma só tacada. E nesta hora, como deixar de lembrar da dorque sentira, dias depois de Lucineide ter ido embora, quando leu,pichada na parede de sua casa, a frese terrível:

TODO CASTIGO PARA CORNO É POUCO!

Humilhado, buscara conselho com o padrinho, missioná-rio de uma obscura ordem religiosa. E desse homem santo,ouvira as palavras reconfortantes:

– Chifre é coisa que não existe. Tire isso da sua cabeça.

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Azar

Aquela era uma pequena cidade, pouco mais do que umavila de pescadores, no interior de Portugal do ano da graça de1901. As casas ali eram pequenas, e muito próximas umas dasoutras. Construções simples, descoloridas, todas no mesmo esti-lo, como se feitas de uma só vez. Nas manhãs, as mulheres apro-veitavam o bom tempo, e iam até a bica, no centro, onde umenorme tanque circular era usado para lavagem de roupas. E ali,naquele território só delas, vidas alheias eram, como as roupassujas, lavadas em público.

– A rapariga, numa outra vida, jogou pedra na cruz. E ago-ra vive para expiar as culpas passadas. Pior, que me arrastounesse calvário.

Distante dali algumas quadras, a tal rapariga bordava delica-das florezinhas, numa das peças do seu enxoval de casamento. Asorte jamais sorrira para a doce e ingênua Popônia. Nascera tar-de, quando os pais já tinham mais com que se preocupar, e dezanos depois do irmão, que vendo-se deposto da condição de fi-lho único, jamais lhe perdoou tal afronta. Eram abastados, porser o pai dono de um dos poucos barcos de pesca, da vila. Mas,isso só durou até o dia do primeiro aniversário de Popônia. Umatempestade tão terrível quanto inesperada, impediu o retorno dobarco. Ninguém escapou. A mãe, com a saúde abalada desde oparto tardio, viu agravado o seu estado, falecendo poucos mesesapós. O irmão, culpando-a pelos infortúnios, deixou a cidade parasempre, embarcando num cargueiro de bandeira espanhola. Parafazer face às dívidas acumuladas, a casa teve de ser vendida.

Castorina, alegando razões de coração, mas na verdade de

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olho gordo no pequeno capital que restara, assumiu a guarda dacriança. A partir desse dia, jamais deixou de referir-se à sobrinha,como um fardo. Não satisfeita de tê-la como criada sem paga, apérfida Castorina fazia questão de tornar-lhe a vida, um suplício.Assim, os anos foram passando, todos iguais. Até que um dia,bateram à porta. Estando sozinha, já que a tia, como de hábito,saíra a bater pernas pelo comércio, teve um momento de indeci-são. O desconhecido procurava um quarto para alugar. Ora, na-quele fim de mundo, alugar um quarto para um viajante, era sem-pre um excelente negócio. Qualquer das casas, ela tinha certeza,acolheria com entusiasmo tão distinto cavalheiro. Vencendo pelaprimeira vez o velho medo, decidiu fazer entrar o desconhecido,para que esperasse pela tia. E ainda serviu-lhe café e bolachas,ignorando a sovinice da megera. Os passos pesados da Castori-na, ressoando no alpendre, interromperam a agradável prosa dosdois. Ao ouvir-lhes as risadas, a megera trancou a cara. Mas foiquando viu o almofadinha aboletado em sua poltrona, com aresde dono, que o vermelhão da raiva subiu-lhe do colo ao rosto.Percebendo os já tão conhecidos sinais, Popônia apressou-se aexplicar-lhe que o gentil senhor viera alugar um quarto. Santamedicina! Animada com a possibilidade de embolsar uns escu-dos, a agora toda gentil Castorina abriu um de seus raros sorri-sos, pondo à mostra os dentes estragados. Sorriso que quase vi-rou um engasgo, quando soube que a tonta da sobrinha dobrouo valor que ela própria pediria. E qual não foi sua surpresa quan-do o estranho, com aquele gesto de mãos que só os muito ricossabem fazer, aceitou sem regatear.

– Será que pedi pouco? – a interesseira pensou consigomesma.

E conforme o tempo passava, a Castorina melhor conheciaos detalhes da vida do inquilino. Era comerciante, e ausentava-se

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por conta dos negócios, a cada quinze dias. Mas, ao retornar,sempre trazia mimos valiosos para ela e para a sobrinha. A casa,graças a generosidade dele, começou a dar sinais dos bons fados.Pintada de novo, exibia vistosas cortinas em suas janelas, e umainfinidade de flores multicoloridas, arranjadas em vasos e jardi-neiras, pelas caprichosas mãos de Popônia. Anfilófio – este era onome do rapaz – tratava a ambas com tão gentis maneiras, que aCastorina logo encasquetou que o gajo estava a lhe fazer a corte,já que era das que julgam que o mundo gira em torno de seupróprio umbigo. Assim, quando ele solicitou uma entrevista emparticular, esmerou-se em fazer caras e bocas, apertada em rou-pas que lhe amassavam as carnes, na tentativa de mostrar-se maissedutora. O golpe só não foi maior porque a manhosa tinha setevidas. E cada uma delas, era mais calculista que a outra. Ora, se oparvo apaixonara-se pela desmilinguida da sobrinha, deixe-se es-tar, que nem tudo estava perdido.

Afivelando às fuças um sorriso que mais parecia um esgar,fingiu-se contente, aceitando que noivassem. Mas fez exigências.Todas muito justas, dizia a pérfida mulher, já que abrira mão detodo o pequeno patrimônio de uma vida, para que a sobrinhativesse dias de princesa. Outro, menos apaixonado, teria recusa-do tamanho despautério. Anfilófio, contudo, sequer protestou.Assim, toda desmanchada em salamaleques e rapapés, a Castori-na viu Anfilófio colocar no delicado dedo da amada, o anel docompromisso, que a broaca avaliou como caríssimo.

Mas, cinco meses depois, uma carta endereçada a Popônia,foi interceptada pelas ágeis mãos de Castorina. Um advogadoinformava que Anfilófio havia sido preso, e que rogava que anoiva o visitasse no presídio da Capital. Queria pedir que ela operdoasse, e explicar-lhe o que acontecera. Lívida, a Castorinadespachou a sobrinha para que fosse ao herbanário aviar-lhe uma

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receita. Vendo-se sozinha, invadiu o quarto do hóspede. Ao can-to, o imenso baú de couro negro, sempre trancado, que tanto lhedespertara a curiosidade e a cobiça. Com ferramentas adequadase muito esforço, arrebentou as fechaduras. Dentro, uma monta-nha de cédulas estalando de novas. Eram libras esterlinas. Mas,para a Castorina, que apesar da pose era uma rematada idiota,eram notas falsas, dinheiro de meliante, já que não tinham qual-quer semelhança com "cédulas de verdade", que ela tão bem co-nhecia. Por conta disso, acovardada em se imaginar cúmplice dodelito, já que acoitara o bandido em sua casa, decidiu tirar de lá aprova do crime. Amontoando a dinheirama no quintal, ateou-lhefogo. Na pressa, não reparou na carta que agora queimava juntocom as cédulas. Nela, Anfilófio dizia que se Popônia estivesselendo aquela carta, seria porque algo de muito ruim aconteceracom ele. Se assim fosse, todo aquele dinheiro, que era fruto davenda das terras de sua família, em Londres, deveria ser usadopor ela, para começar uma nova vida.

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O mistério do 7º elemento

Desde que ela mudou-se para cá, eu a venho observandoatentamente. Pelo fato de estar preso a esta cadeira de rodas,tendo de abrir mão dos meus esportes preferidos e das longascaminhadas, tornei-me um espectador atento das coisas, já quepara mim o mundo ficou do tamanho desta janela. Assim, fuiadestrando minha percepção a tal ponto que, com a câmera digi-tal nas mãos, capturo detalhes que a visão comum jamais regis-traria. Por isso pude anotar cada peça do pesado mobiliário quecompunha a mudança da nova vizinha: 13 caixotes imensos.

Pela posição das persianas, eu julgava que não seria notado,mas o gato preto, que iria dividir com ela a nova residência,fixou em mim seus olhos malévolos por um longo tempo, deforma a não deixar dúvida de que eu fora descoberto. Nos diasque se seguiram, nada aconteceu. Portas e janelas do casarãopermaneciam fechadas, e as grossas cortinas impediam que seolhasse através delas. Quando eu estava prestes a desistir, vie-ram as noites de lua cheia.

Por volta da meia-noite, carros negros começaram a estacio-nar em frente ao portão, deles descendo homens e mulheres ele-gantemente trajados, mas chegando sozinhos. Eram sempre seteos visitantes que entravam. No entanto, antes do amanhecer, so-mente seis carros retornavam, para buscar seus passageiros. Omesmo fato repetiu-se em cada uma dessas noites de lua cheia.Depois, tudo voltou a ser como antes, a casa permanecendo va-zia e silenciosa, como se não fosse habitada.

Graças ao meu fabuloso equipamento, transportei as ima-gens obtidas com a câmera, para a tela do computador, e pude,

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utilizando o recurso de aproximação das imagens, tornar nítidosos rostos de cada visitante. Totalmente obcecado, eu dividia omeu tempo entre a tela e a janela, aguardando pela primeira noitede lua cheia. Quando isso se deu, eu comparei as fotos que tinha,com cada um dos novos visitantes. Então, dei-lhes nomes: Abel,Brena, Cloé, Dante, Elmer, Franz e Gertrude, chegaram na pri-meira noite; Elmer não retornou. Depois, foi a vez de Brena.Nessa altura, já haviam vindo para o grupo, Ianis, Jéssica, Keila eLicurgo. Abel e Gertrude não foram mais vistos.

Agora eu vivia para esse mistério, envolvido de tal formaque sequer dormia, consumindo leite de caixa e biscoitos, alimesmo, próximo à janela, temendo perder o detalhe que explica-ria o desaparecimento, a cada noite, do sétimo elemento. Os mesesforam passando, e em cada uma das noites de lua cheia, sete pes-soas entravam e apenas seis saíam. Estranho era que, apesar dosdesaparecimentos, os jornais nada publicavam. Mais estranho ain-da, era o fato de que os visitantes demonstravam estar alegres,tanto quando chegavam, quanto quando partiam. Só que a cons-tante agitação das noites em claro, e a alimentação precária, co-meçaram a cobrar seu preço. Não percebi quando ferrei no sono.

Ao acordar, estava no centro da imensa sala, toda vermelha,discretamente iluminada por velas, em candelabros de ouro fixa-dos às paredes. Muito mais deslumbrado do que temeroso, eu ob-servava fascinado cada detalhe do salão. Sob a minha cadeira derodas, um imenso pentagrama, com elaborados símbolos cabalísti-cos. Sentada num imenso trono de rocha bruta, trajando um man-to dourado, tendo o gato negro no colo, a dona da casa tinha oporte de uma rainha. Senti uma enorme alegria, fruto talvez damais absoluta loucura. Agora, eu não era apenas o observador dis-tante. Eu estava ali, fazia parte de tudo aquilo, e era um deles. Fi-nalmente iria descobrir o mistério do sétimo elemento.

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O crime não compensa

Quando a jurássica secretária da presidência adentrou orecinto, o silêncio que se fez foi mortal. Ela acabara de igno-rar o primeiro mandamento da ancestral empresa ZAMBRO-VI, PUSKAS e CARRANZA – IMPORTAÇÃO E EXPOR-TAÇÃO, que rezava que jamais se interromperia uma reuniãoda Diretoria. Mas, o silêncio logo foi quebrado pelo sofridouivo do meu estômago, quando ela, com os olhinhos brilhan-tes de uma ratazana sádica, apontou-me o dedo longo e ossu-do, e ordenou que eu fosse atender a um telefonema u-r-g-e-n-t-e. E logo passei do medo ao terror, quando ela, sem dis-farçar a alegria, completou:

– É da polícia.

Sem essa de cidadão cumpridor das leis. Eu estava gruda-do à cadeira, vitimado por um tremelique vergonhoso e in-controlável. A culpa estampava-se na minha cara, por qual-quer crime que fosse. Quando a autoridade, do outro lado dalinha, informou que minha sogra havia sido sequestrada, lá-grimas me correram dos olhos. E a gargalhada, a custo conti-da, jorrou como cachoeira. Claro que para o investigador, eudisse que era uma crise de nervos. Ainda tonto, eu só conse-guia pensar: quem é que iria querer pegar aquela tribufu? Nadacontra os meliantes, é claro; eu dou a maior força. O policial,cortando a animada conversa que eu tinha comigo mesmo,aconselhou-me a contratar um profissional, para negociar ostermos do resgate. Foi aí que a ficha caiu. Tinha de ser pega-dinha. Não é que eu ainda teria de pagar para trazer aquelavelha de volta? Mesmo que eu, na verdade, estivesse dispostoa fazer qualquer sacrifício, só para me ver livre da jararaca,

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por causa da minha mulher que – e nem me pergunte por quê– adorava a mãe dela, eu ia ter de chutar contra meu própriogol. Problemas, problemas... Então, eu mandei e-mails paraos meus comparsas da C.O.R.J.A. (CAMBADA DOS ONZERENEGADOS DO JARDIM DE ALAH), convocando umareunião de emergência, para aquela noite. A turma do antigobairro, com devoção franciscana, bate ponto toda sexta-feirano bar do Araújo. Só que, por causa da urgência do ocorrido,não dava para esperar sequer um dia. Na hora combinada,estávamos todos lá.

Eu nem consegui acabar de expor os fatos. A galera rola-va no chão de tanto rir. E nem adiantou eu ficar repetindoque a coisa era grave, pedindo seriedade. Imagine só quandoeu soltei a bomba: o Palhares seria o profissional que eu con-trataria para lidar com os sequestradores da minha sogra. Abirosca do Araújo quase veio abaixo, com as gargalhadas doscaras. Sérios, ali, só eu e o Palhares.

Agora, eu devo explicar a quem não o conhece, quem éo Palhares. O cara é um asno. Você acredita que o panacajogou para o alto, assim, na maior, um salário de marajánuma empresa multinacional, para abrir uma agência dedetetive particular?

Mas, mesmo que ele jamais tenha passado da palavra àação, ele é um profissional, pombas; tem de ser respeitado.Era esse o meu discurso. Mas, no meu plano perfeito, do Pa-lhares eu só esperava uma coisa: nada!

O que aconteceu depois, saiu em todos os jornais. Emseu primeiro telefonema, os sequestradores mandaram o Pa-lhares ir buscar a velhota de volta. Assim, sem mais nem me-

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nos; deram o endereço e tudo. Tremenda sacanagem dos ca-ras. E o babaca do Palhares, foi. E mais, resolvendo usar acabeça pela primeira vez na vida, convocou a imprensa, deci-dido a surfar nessa onda. Por isso, todo mundo viu no JornalNacional, o Palhares resgatando a “simpática vovozinha”.

Hoje faz dois anos que tudo aconteceu. A turma, agoracom dez, continua se reunindo toda sexta-feira, na birosca doAraújo. Menos o Palhares, é claro, que agora virou celebrida-de. Você quer saber da minha sogra? Está morando lá na mi-nha casa. Diz que ainda não conseguiu se recuperar do cho-que, e por isso não pode mais ficar sozinha. Minha mulher,com os olhos lacrimosos, perguntou se podia, já que não lherestam muitos anos de vida. Só que a surucucu tem saúde deferro. Fuma, bebe, e come como uma porca. Pelo jeito, a ve-lha vai durar mil anos. Fazer o quê, se eu nasci sem sorte?Feliz era o Adão, que não tinha sogra.

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O dia depois de amanhã

Estava um dia perfeito, daqueles em que a gente fica se per-guntando o que pode sair errado. Caminhando pelo calçadão, naorla da lagoa, deixei meus olhos se perderem no infinito. Por isso,demorei a perceber a moça ao meu lado. Linda, com longos ca-belos negros escorrendo por seus ombros, e sem qualquer ma-quiagem. De diferente, só o vestido branco, enfeitado com fiti-nhas multicoloridas; além dos dentes, é claro, todos eles de ouro.Queria ler minha mão. Normalmente, eu não dou assunto; igno-ro e sigo em frente. Mas hoje, tocado pela extrema beleza damanhã, brinquei com ela:

– Se você adivinhasse mesmo, saberia que não sou umbom cliente.

A resposta vem rápida:

– Pelo contrário, só me aproximei porque sei que o que te-nho a dizer, irá mudar sua vida.

Não tanto pelo que ela falou. Mas foi a forma com que elafalou, que despertou minha curiosidade. Mesmo assim, não dei obraço a torcer. Mais brincando do que falando sério, eu a desafiei:

– Diga o meu primeiro nome, e o ano do meu aniversário, sópara me convencer.

Com os olhos muito sérios, ela disse que a origem do seupovo remonta a muitos milhares de anos. Apesar de estarem es-palhados pelos quatro cantos do mundo, não possuem o seu pró-prio país. E mesmo nos países dos outros, vivem apartados, em

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acampamentos, fiéis às suas origens e aos seus costumes.

– Os deuses nos abençoaram com o dom de prever o futuro.E esta é a única forma de garantir o sustento da nossa gente, jáque não plantamos, não temos criações de animais, não fabrica-mos e nem comercializamos nada.

Eu não sei o seu nome ou o ano do seu nascimento. Masposso dizer coisas sobre você, que apenas você sabe. Além deoutras, de que você nem desconfia.

Dei a ela os cinquenta reais. Pegando minha mão, ela faloude alguns fatos e de pessoas da minha infância e adolescência.Depois, durante alguns minutos, manteve-se em silêncio. Quan-do tornou a falar, sua voz estava diferente.

– Você não irá realizar qualquer dos seus sonhos. Não teráesposa e nem filhos. É só o que eu devo lhe dizer.

Ela conseguiu me tirar do sério, e eu estava prestes a ofendê-la de alguma forma. Mas, a tristeza que eu vi nos olhos dela,calou minha revolta.

– Eu sinto muito. Mas, você pagou para ouvir a verdade.

E quando eu, virando-lhe as costas, já me afastava, ela gritou:

– Você irá morrer no ano que vem, no dia 18 de setembro.

Mesmo com a voz de bom senso repetindo vezes sem contanos meus ouvidos, que aquilo era bobagem, uma certeza me fa-zia acreditar que a profecia se realizaria. Nem sei como chegueiaté em casa. Deitado na minha cama, eu pude ver toda a minhavida passar diante dos meus olhos. E só quando os primeiros

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raios de sol chegaram até minha janela, eu compreendi que sótinha uma coisa a fazer.

Criei para mim um plano de onze meses. Pediria demissãodo meu emprego, para pegar a grana da rescisão. Venderia o apar-tamento, e o carro novinho. Depois, sem nada que me prendes-se, iria viver intensamente a pouca vida que ainda me restava.

E é exatamente o que eu venho fazendo desde então. Dor-mia em uma cidade e acordava em outra. Saltei de pára-que-das, voei de asa-delta, fiz pesca submarina, escalei montanhas,e pratiquei canoagem. Só que para viver a vida que eu pedi aDeus, gastei até o meu último centavo. Desde o mês passado,estou usando o limite do meu cheque especial. Não tinha al-ternativa, depois que estourei todos os meus quatro cartõesde crédito. Preocupado, eu?

Da varanda da suíte presidencial deste hotel cinco estrelas,observo as ondas do mar quebrando nas pedras, doze andaresabaixo. Soprando a fumaça azulada do meu charuto cubano, bebomais um gole da carézima champanhe francesa. Definitivamen-te, estou em paz com o mundo. Afinal, se tudo correr bem, euvou morrer amanhã. Sem casa, emprego ou automóvel, e deven-do uma nota preta, o azar vai ser se, no dia depois de amanhã, euainda estiver vivo.

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Tarde demais

Antes que soasse o alarme do relógio, ele levantou-se, certode que, se não o fizesse agora, o sono arredio iria nocauteá-lo.

– Tarde demais companheiro.

Enquanto olhava, oito andares abaixo, a rua ainda desertaàquela hora da madrugada, acendeu o primeiro cigarro do dia. Ea velha vontade de jogar tudo para o alto, bateu ainda mais forte.

– Tarde demais companheiro.

Vinte anos de trabalho policial gritavam nos seus ouvidosque os mocinhos estavam perdendo a guerra. Foi até o quarto dofilho. Ele não dormira em casa. Lembrou quando sua esposa le-vou o garoto para ele. Dias antes ela ligara, dizendo que já nãoconseguia mais controlar o filho. E ele, que abandonara o lar hámais de sete anos, se viu às voltas com aquele rapaz que ele co-nhecia tão pouco. Mas, é aquela revolta muda, a mesma que eletantas vezes viu nos olhos de garotos que ele vinha prendendo,que faz com que ele se preocupe tanto. Na ânsia de provar quesão livres, os jovens escravizam-se, tornando-se peças descartá-veis da criminalidade. E o resultado disso, ele testemunha todosos dias nas ruas. E por achar que na próxima ocorrência poderádefrontar-se com seu filho, morto ou preso, é que ele agora vivecom medo. E esse medo está lhe tirando o sono, noite após noi-te, e prejudicando seu trabalho como policial. Isso, e a culpa desaber que, ao falhar como pai, condenou o filho irremediavel-mente. E dentre todas as dúvidas que povoam o seu mundo, eletem apenas uma certeza: tanto para ele quanto para o filho, agorajá é tarde demais.

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As vampiras

Depois de horas preso no trânsito comum das noites de sexta-feira, vindo de uma chatíssima reunião de negócios na Barra daTijuca, tudo o que eu queria era chegar logo em minha casa, e cairnos braços macios e carinhosos da minha mulher. Mas o destinotinha outros planos para esta noite. As duas estavam ali paradas,com ar desolado, acenando em vão para os táxis que passavam emdisparada. Mesmo eu sendo um cara legal, sempre pronto a um atode generoso desprendimento, não teria parado. Mas, começava achover, e todo carioca sabe que, quando chove, os táxis somemcomo que por encanto. Isso e o fato de que, estando ali quentinho,o desconforto delas começou a fazer com que eu me sentisse cul-pado. Já no carro, elas apresentaram-se como universitárias, indopara sua festa de formatura, em Botafogo. Realmente, as duas esta-vam deslumbrantes em seus vestidos de noite. Jovens, lindas e in-teligentes, fizeram com que eu me sentisse um herói, encantadaspor meu gesto de bondade. Eu poderia tê-las deixado no prédio,em Copacabana, onde apanhariam outra colega, e seguido o meucaminho, ao invés de aceitar subir para um drinque de comemora-ção. Mas, afinal, elas insistiram tanto...

Só voltei para casa, cinco dias depois. Totalmente desmemo-riado, não soube dizer o que tinha acontecido depois de uma taçade vinho tinto. Ou melhor, antes de “apagar”, eu acho que ouviuma voz rouca, sussurrando no meu ouvido:

– Seja bem-vindo ao ninho das vampiras!

Eu posso ver pelo seu sorriso, que você não acreditou nestahistória. Infelizmente, minha mulher também não. E agora, euvou morar onde?

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O lado escuro da rua

Foi por causa da sexta-feira, dia sagrado para a turma doescritório que, num barzinho ali perto, festejava o final de se-mana. Apesar dos convites insistentes dos colegas, ele nuncaia. Mas hoje, sem mais nem menos, resolveu ir. Beberia ape-nas um chope, decidiu, e jogaria um pouco de conversa fora.Só para não bancar o chato.

Depois, ainda teve a chuva fina, colando a camisa no corpo,enquanto o paletó, distraído, descansava no ombro. Passos incer-tos o levaram através da viela. Ele, que jamais passava por ali,preferindo o caminho mais longo, até o lugar onde estacionava ocarro. Mesmo com a cabeça zonza e os pensamentos confusos,uma sensação de quase-perigo tentava acordar seus sentidos. Eraum beco estreito e pouco iluminado. A maior parte dos postes,inúteis, com lâmpadas quebradas. De cada lado, casas que as som-bras ocultavam podiam ser adivinhadas, como presenças amea-çadoras. E, mais que tudo, o silêncio denso e frio. Pensou emvoltar. Afinal, quanto já caminhara? Talvez já estivesse quase nofinal da ruela. De repente, o negro da noite o envolveu, como emum abraço indesejado. Neste trecho, não havia lâmpadas. Pen-sando ouvir um ruído às suas costas, voltou-se. Rodou em voltade si mesmo, sentindo-se ameaçado, buscando compreender aorigem do seu medo. Agora, já não sabia sequer de onde viera oupara onde iria, com o início e o fim da viela embaralhados defini-tivamente. Neste momento, imóvel, encharcando-se de chuva,ele teve certeza que a sua vida terminaria ali. Quando sentiu quemãos sem corpo o tocavam, deixou que um grito lhe escapasseda garganta. Depois, nada.

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Este livro foi produzido em Araruama – RJ, peloProjeto Livro Pronto que permite ao escritor iniciante

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