magazine cult 33, manuel bandeira, abr de 2000

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Cult Magazine de cultura ,escrito en portugués. Sobre temas literarios.

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  • abril/2000 - CULT 1

    03 Notas

    04 EntrevistaSebastio Uchoa Leitefala sobre A espreita, seunovo livro de poemas

    REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA

    15 Redescoberta do BrasilEnsaio abre srie queinvestiga a identidadecultural brasileira

    29 Gaveta de GuardadosLeia onze poemasinditos do escritorAdemir Assuno

    O poeta Mrio de Andrade em 1932

    10 Entre LivrosJoo Alexandre Barbosaanalisa a evoluo poticade Sebastio Uchoa Leite

    28 Na Ponta da LnguaO professor Pasqualecontinua sua anlisedo Acordo Ortogrfico

    32 Turismo LiterrioEnsaio fotogrficosegue as trilhas deGrande serto: Veredas

    Luci

    ana

    Whi

    take

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    lha

    Imag

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    USP

    20 CapaCorrespondncia entreMrio de Andrade e ManuelBandeira recupera itinerriode uma amizade potica

    26 Bienal do LivroAs indicaes dosmelhores lanamentosda Bienal de So Paulo

    37 CriaoConhea a produodo designer e artistaplstico Jorge Padilha

    40 HomenagemEventos em Vienahomenageiam o escritorirlands Samuel Beckett

    44 Memria em RevistaUm retrato de CacildaBecker na So PauloMagazine de 1955

    45 DossiBrasil descobrea obra do escritorargentino Roberto Arlt

    64 Do leitorCartas, fax e e-mailsdos leitores de CULT

    Arqu

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    O poeta Manuel Bandeira em 1926

    O poeta SebastioUchoa Leite

  • CULT - abril/992

    AO L E I TORManuel da Costa Pinto

    Editor e jornalista responsvelManuel da Costa Pinto MTB 27445

    Editora de arteTatiana Paula P. Barboza

    DiagramaoRogrio RichardCristiane AlfanoAdriano MontanholiYuri Fernandes

    RevisoClaudia Padovani

    ColunistasCludio GiordanoJoo Alexandre BarbosaPasquale Cipro Neto

    ColaboradoresAdemir Assuno, Ana Helena Souza, CarlitoAzevedo, Carlos Adriano, Demtrio Magnoli,Fabio Weintraub, Heitor Ferraz, Horacio Gon-zlez, Joo Correia Filho, Jorge Padilha, LuisGusmn, Maria Paula Gurgel Ribeiro, RenataAlbuquerque, Ricardo Piglia

    CapaManuel Bandeira (foto do Arquivo-Museu deLiteratura Brasileira da Fundao Casa de RuiBarbosa) e Mrio de Andrade (foto do acervo doInstituto de Estudos Brasileiros da USP)

    Produo editorial e grficaJos Vicente De Angelo

    FotolitosUnigraph

    Circulao e assinaturasJos Cardeal do Carmo

    Departamento comercialMilla de Souza (Triunvirato Comunicao,rua Mxico, 31-D, Gr. 1.403 A, Rio de Janeio,CEP 20031-144, tel. 021/533-3121 524-0366,e-mail: [email protected])

    Distribuio em bancasFERNANDO CHINAGLIA Distrib. S/ARua Teodoro da Silva, 907 - Rio de Janeiro - RJCEP 20563-900- Tel./fax 021/575-7766/6363e-mail: [email protected] exclusivo para todo o Brasil.

    Assinaturas e nmeros atrasadosTel. 0800 177899. Alagoas, Bahia, Paraba,Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe:081/428-9701; Rio de Janeiro: 021/9613-7067; Paran e Santa Catarina: 041/352-6444;Rio Grande do Sul: 051/222-3649

    Departamento JurdicoDr. Valdir de Freitas

    Departamento financeiroRegiane Mandarino

    ISSN 1414-7076

    CULT Revista Brasileira deLiteratura uma publicaomensal da Lemos Editorial &Grficos Ltda. Rua RuiBarbosa, 70, Bela Vista SoPaulo, SP, CEP 01326-010tel./fax: 011/251-4300e-mail: [email protected]

    Diretor-presidentePaulo Lemos

    Diretora executivaSilvana De Angelo

    Vice-presidente de negciosIdelcio Donizete Patricio

    Diretor de marketingRobison Bernardes

    REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA

    NMERO 33 - ABRIL DE 2000

  • maro/99 - CULT 3ASSINATURASDISQUE CULT 0800.177899

    NO

    TA

    S

    Thomas Mann na Califrnia em 1947

    CULTon l i n eon l i n e

    www.lemos.com.br/cult

    Thomas Mann

    A editora Nova Fronteira d incio estems reedio de toda a obra do escritoralemo Thomas Mann, que nasceu em1875 na cidade porturia de Lbeck emorreu em Zurique (Sua) em 1955. Oprojeto comea com o volume Morte emVeneza/Tonio Krger, traduzido por ElosaFerreira Arajo Silva, e prossegue demaio at o final do ano com os ttulos Asconfisses do impostor Felix Krull, Sua AltezaReal e Os famintos (em traduo de LyaLuft), Os Buddenbrook, Dr. Fausto, Amontanha mgica e As cabeas trocadas (emtraduo de Herbert Caro), Carlota emWeimar (traduo de Vera Mouro) e comos trs volumes de Jos e seus irmos (emtraduo de Agenor Soares de Moura).Todos os livros tero um novo projetogrfico e reviso das tradues das obrasdo Nobel de literatura de 1929. Alm dis-so, a editora programa para setembro apublicao de Thomas Mann: Uma bio-grafia, de Donald Prater, em traduo deLuciano Trigo.

    Encontro capixaba

    A Faculdade de Filosofia, Cincias eLetras de Colatina (Esprito Santo) pro-move entre 29 de abril e 1 de maio o IVEREL (Encontro Regional dos Estu-dantes de Letras), com palestras, oficinas,cursos e mesas-redondas sobre o tema Asmltiplas possibilidades da lngua enquan-to veculo de cultura. Informaes e ins-cries podem ser obtidas pelo [email protected] ou pelos telefones 27/200-7533, 721-2335 (com Graziela) ou27/256-3916 (com Adriana).

    Almandrade

    Vai at 7 de maio, em Salvador, a expo-sio Ilustrando as Virtudes da Leveza,com pinturas, esculturas, objetos, dese-nhos, instalaes e poemas do artista eescritor baiano Almandrade. De tera-feira a domingo, de 12h a 20h, no Museude Arte Moderna da Bahia (av. Contorno,s/n, tel. 71/329-0660).Mrio Pedrosa

    O Memorial da Amrica Latina promoveeste ms homenagem aos cem anos denascimento de Mrio Pedrosa (1900-1981). No dia 3 de abril, s 16h, acontece aabertura da exposio de fotos, documentos,cartas e livros sobre o ensasta e crtico dearte. No dia 25 de abril, s 19h30, haver olanamento do livro Modernidade c de l,da srie Mrio Pedrosa (Edusp), e mesa-redonda com Otlia Arantes, FerreiraGullar, Aracy Amaral, Llia Abramo e JosCastilho Marques Neto. No dia 27 deabril, s 19h30, acontece reunio daAssociao Brasileira de Crticos de Arteem homenagem a Mrio Pedrosa. Oseventos acontecem na Biblioteca Latino-americana Victor Civita (Memorial daAmrica Latina, Av. Auro Soares de MouraAndrade, 664, So Paulo). Informaespelos telefones 11/3823-9605 e 3823-9612.

    Romance histrico

    O escritor e poeta Glauco Ortolano lanaeste ms, em So Paulo e Salvador, oromance histrico Domingos Vera Cruz Memrias de um antropfago lisboense noBrasil (editora Altana). As noites deautgrafo acontecem no dia 18 de abril,em So Paulo, s 18h30, na Livraria daVila (r. Fradique Coutinho, 915, tel. 11/814-5811) e no dia 19, em Salvador, s18h30, na livraria Grandes Autores Shop-ping Cultural (av. Dr. Adhemar de Barros,88, tel. 71/331-2248).

    Correo

    A data e o horrio do seminrio sobreGilberto Freyre promovido pelo Memo-rial da Amrica Latina e anunciado noDossi da CULT 32 foram alterados:o evento acontecer s 20h do dia 3 demaio na Biblioteca Latino-americanaVictor Civita (veja endereo na nota cima).Alm disso, o cientista poltico CelsoLafer no poder participar do encontro,no qual estaro presentes Antonio Dimas(professor de literatura brasileira naUSP), Ricardo Benzaquen de Arajo(autor de Guerra e paz: Casa-grande &Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos30, Editora 34), lide Rugai Bastos(professora de sociologia do Instituto deFilosofia e Cincias Humanas da Uni-camp) e Jos Mrio Pereira (editor daTop Books). Informaes pelos telefones11/3823-9641 e 3823-9822.

  • CULT - abril/20004

    e n t r e v i s t aLu

    cian

    a W

    hita

    ker/

    Folh

    a Im

    agem

    S E B A S T I O

    U C H O AL E I T E

  • abril/2000 - CULT 5

    Uma das mais acertadas definies

    sobre Sebastio Uchoa Leite s po-

    deria mesmo vir de um amigo de ju-

    ventude. Joo Alexandre Barbosa, na

    orelha crtica de Obra em dobras, que

    rene a poesia de Uchoa at 1988,

    escreveu: O poeta-espio espreita o

    mundo. Concentrava nessa pequena

    frase as diversas dobras dessa poesia

    marcada por um refinado humor e

    principalmente pela experincia de um

    homem que testemunha seu tempo,

    s vezes assustado com o cinismo e

    a seriedade exagerada da poca atual.

    Curiosamente, a definio citada tam-

    bm continha o ttulo do novo livro de

    Sebastio Uchoa Leite, A espreita, que

    acaba de sair pela coleo Signos, da

    editora Perspectiva, e sobre o qual o

    poeta fala nesta entrevista CULT.

    Heitor Ferraz

    Carlito Azevedo

  • CULT - abril/20006

    CULT Sebastio, voc est lanando um livro novo de poemas,A espreita, e j tem outro engatilhado? Voc normalmente planejaantecipadamente seus livros?

    Sebastio Uchoa Leite A espreita foi entregue editoraem 1997. Em maro de 1998 acrescentei Antdoto ao volume.So dois anos de espera, ou mais. No planejo livros. No sintoa menor necessidade de planejar. O livro geralmente vainascendo aos poucos, como Deus servido (segundoBandeira), e espero que o desenvolvimento, ou seja, a produodos poemas, d em algum sentido que me permita ter a sensaode que produzi algo unificado. E isso o que tem acontecidosistematicamente na minha produo potica. Nunca me senteie disse: vou fazer um poema sobre tal assunto. Os assuntos vmpara mim. No como ces atentos s minhas ordens, mas comogatos caprichosos, teimosos. Por causa disso, alguns crticosinsistiram muito nesse ponto, o de algumas idias me domi-narem, como Nelson Ascher, que falava em obsesses na minhapoesia. No sei se so obsesses, mas so fragmentos de mem-rias persistentes que vm ao meu esprito com mais freqnciae isso se reflete na produo potica, o que no quer dizer queeu esteja procurando esse efeito determinado que deu a Nelsona idia de obsesso. No estou buscando dar nfase a uma deter-minada impresso quando escrevo. Eu realmente vou escre-vendo aquilo que me ocorre na hora. Deixo de molho uns tempose depois modifico, visando a alguma expresso mais compacta.

    CULT Dentro deste tipo de mtodo, os livros acabamadquirindo individualidades muito fortes. No que A espreita sediferencia de A fico vida, de 1993?

    S.U.L. A fico vida nasceu nitidamente de uma experinciamarcante que foi uma experincia de doena. A primeira partedo livro, chamada Incertezas, reflete o perodo que passeinum hospital e no qual eu estive, no comeo, muito mal, emcoma na UTI, e sa do ar. O livro est marcado por isso. Asegunda parte mais misturada; e a terceira mais sistemtica,Anotaes. Ali, eu fiz uma srie de poemas muito semelhantesquanto fatura, os quais, estranhamente, parecem muito presos

    a um nico mtodo, mas so, na verdade, librrimos. J A espreitano tem essa unidade, os poemas divergem muito entre si quanto maneira de serem estruturados, embora tendam para uma coisaque , feliz ou infelizmente, o meu prprio carter. No ummodismo formal, o meu carter mesmo eu no sou de falarmuito, ento os poemas no so grandes, sou um rob mini-malista. No sou muito de espichar. Eles nascem de um certoinsight, uma certa atmosfera, e eu digo s aquilo que me parecenecessrio dizer. Eu seria totalmente incapaz de escrever o quese chama de um poema pico, uma ode, uma elegia de amor;definitivamente no sei cantar coisa alguma, a terra natal, o soloptrio, os grandes ideais, o amor, a justia, a esperana. Meucorao fraco no agentaria. Sei somente, como dizia WaltWhitman, cantar a mim mesmo, fazer coisas a partir daquiloque est me passando pela cabea ou est diante dos olhos. Dogrande Heine s guardei o senso crtico e irnico; o entusiasmoromntico pela vida, bem pouco.

    CULT Voc falou das sees de A fico vida. Neste novo livro,voc aboliu esse tipo de organizao. Por qu?

    S.U.L. Achei tudo desigual e heterogneo, mas resolvi: sabede uma coisa, eu vou deixar assim mesmo. Por que fingir queeu organizei a coisa? Ocorreu o seguinte: no comeo, eu estavacom um certo luto, digamos assim, mais interiorizado, maisvoltado para dentro. Estava produzindo coisas um poucosinistras. Quando tinha cerca de trinta poemas, percebi que otodo estava bem heterogneo. Conversei sobre isso com algumaspessoas. Por que voc no divide? Eu fizera isso nos outroslivros, mas decidi deixar como ele foi feito, e a ordem do livroseria a cronolgica, como foram escritos. Depois de ensaiaralguns ttulos, optei por A espreita. Talvez alguns poemas sugiramisso, mas no o clima do livro todo. De qualquer forma, conse-gue dar uma identidade ao livro. Ele diferente de A fico vidapor um motivo menos de composio que do momento em quese vivenciaram as coisas. Na velha classificao de Max Bensede poesia natural x poesia artificial, sinto-me mais do natural,como Bandeira (que era grande), mesmo admirando alguns

  • abril/2000 - CULT 7

    artificiais (mas no todos). Os livros so diferentes, porqueos vivi diferentemente. Lendo-os, voc descobrir vrios tiposde motivaes de um poeta natural apenas mdio.

    CULT De fato, percebe-se nos poemas uma mistura demotivaes, como observaes de rua, lances de memria ou deleitura.

    S.U.L. So motivaes completamente distintas. Como, porexemplo, Os trs in-seres ou O que se nega, que foram publi-cados no primeiro nmero da revista Inimigo Rumor e foramobservaes de rua. Esses seres existem, eles no foram inventados.Esto a, eu s fiz registrar a estranheza deles. Em Londres,passando por Charing Cross Street, vi um tipo que era umvagabundo estranho, todo coberto de andrajos mesmo, no roupasesfarrapadas, mas como se a roupa dele fosse construda de retalhosestragados, uma coisa esquisitssima. Era um homem-andrajo,um homem-espantalho, mas na poca, 1993, no escrevi nada.Essas pessoas existem no mundo inteiro e escrevi sobre essesseres anos depois. Eu tinha ficado impressionado em ver pessoasque vivem uma espcie de subvida. Esse indivduo estranho, deque falo em um dos poemas, virado para uma parede, existe mesmo.Ou existia. Pois ele desapareceu. Foi uma coisa muito estranha.Antes ele ficava de frente e pedia esmola e de repente passei poraquele edifcio Marqus de Herval, onde fica a Livraria LeonardoDa Vinci, aqui no Rio, e percebi que ele descera a rampa e passaraa ficar de costas para as pessoas, voltado para a parede. O que omximo da negao, da agressividade, como quem est dizendoeu no estou querendo saber da esmola de vocs. Um outro poemade observao, O campo o ninho do poeta [citao jocosa deCastro Alves], tem uma histria engraada. Estava num stio, nocampo, e de repente vejo a seguinte cena: estou andando, tem umalaguinho com uns patos. Chega uma espcie de tratador com arao dos patos e comea a jogar para o ar. Da os patos se transfor-maram de uma maneira espantosa. Vieram voando, em bando, seatropelando, naqueles vos rasteiros, e caram de chofre em cima darao. Davam bicadas uns nos outros, no tinham a menor educao,num salve-se-quem-puder total. E pensei: Patos do mundo inteiro,

    Uma voz do subsolo

    No entendo a minha doenaMenti sobre mim mesmoMenti de raivaQuem pode vangloriar-seDe suas doenas?Uma grande doseDe conscinciaNo s:Qualquer conscincia uma doenaRemoendo-se em segredo

    Outros sis: RecifeO quanto perco em luz, conquisto em sombra

    Carlos Pena Filho

    O sol a pinoCerto poeta conceptistaDisse que ele batiaEm OlindaComo se bateNuma porta a socosOutro disseQue de recusa ao solSe sustentavaMetforasQuais vveresOu era o sol final?O certo queSeja onde forDi finoPenetra como uma pontaE perfura tudo

  • CULT - abril/20008

    uni-vos. Isso a natureza, mas tambm um retrato nosso, anossa natureza, a humanidade assim tambm. Quando algumleu, me disse que se tratava de um poema poltico. , de certaforma trata-se de um poema poltico. Esses poemas nasceram deuma observao, de algo que estava dentro de meu campo deviso. No quer dizer que todos os poemas sejam assim. Noexijo isso. Se h unidade nos poemas, a unidade do observadore, digamos assim, idealizador. Observo, memorizo, lembro coisas,e o que d unidade a tudo, mais nada.

    CULT Esses poemas nasceram na rua, de coisas que voc viue elaborou. Mas existem outros que so referncias maisculturais, de um filme, de uma msica, de um quadro. Comovoc faz esses de referncia intelectual?

    S.U.L. Esse um processo misto. No um processo em queeu selecione as impresses no sentido de privilegiar algumas edesprivilegiar outras. Eu no seleciono, so as sensaes e asimpresses de coisas que eu vi, de sensaes que eu tive, visesde filmes, de um quadro, ou de uma lembrana de msica. So,na verdade, pequenas memrias que emergem ocasionalmentesem que eu as predetermine. s vezes, vm muito a propsito,s vezes nem to a propsito, parecem extravagantes, porqueemergem gratuitamente, podendo perturbar a leitura do poema,mas isso eu acho bom. Coisas que ficam claras demais, em geral,acabam enjoando. Elas no emergem toa. Surgem a propsitoda condio do momento histrico e pessoal que voc estvivendo e do cruzamento de vrios fatores. H um poema nesselivro, que se chama Spiritus ubi vult spirat [O esprito sopraonde quer]. O que esse poema? Quando eu estava trabalhandono IPHAN, num prdio do comeo da Av. Rio Branco, gostavade procurar almoo do outro lado da Av. Presidente Vargas.Um dia passei a notar uma louca que ia para o meio do trnsito,ficava entre os carros, no meio da rua, e levantava a saia. Edebaixo da saia no tinha nada, ela estava nua. Eu me lembreidisso em casa e ao mesmo tempo fiz uma associao, quer dizer,lembrei-me da frase o esprito sopra onde quer. O espritodaquela mulher soprava naquele momento para ela levantar a

    saia e mostrar-se. Associei isso ao filme Viridiana, de Buuel,no qual h uma cena fantstica em que os vagabundos invadema casa de Viridiana e fazem um esbrnia total. Eles esto sentadosnuma mesa da sala, de uma casa grande. Sentam-se e promovemuma espcie de Santa Ceia pardica, com um cego ao centrocomo Jesus Cristo. Uma mendiga vai para o meio da sala e bateuma foto deles. Mas, como que ela bate a foto? Ela levanta asaia e mostra o sexo. A cmara escura o sexo e os pentelhosnegros, mas eu no me sinto na obrigao de dar essa explicaono poema. Se o leitor sobrou, pacincia. Acho que h inmerospoemas no mundo em que voc no entende tudo. E acho quemesmo sem essa pista o poema vai funcionar do mesmo jeito.

    CULT Susanne Langer diz que a citao num poema tem deser intensificao de sentido, no condio de sentido. Oproblema quando uma citao vira condio o que no oseu caso. Podem existir poemas em que a condio de sentido voc ter visto o filme, mas, quando no uma condio, ficamais interessante...

    S.U.L. O que estou querendo dizer que o fato de a informaoser cultural ou nobre, ser gaiata ou de brincadeira, no importa,ela est misturada. Virei adepto da mistura, do anti-homogneo, eisso quase um princpio a partir de Antilogia. Abro o livro comuma citao de Tristan Corbire: mlange adultre de tout.Um princpio que diz que de agora em diante no vou maisselecionar. o que der e vier. Se voc for ver meus poemasanteriores, eles tendiam mais para a chamada dico nobre, paraa seleo, embora j contivessem elementos humorsticos maisdiscretos. Mas tendiam mais para uma certa postura de reflexo,meio metafsica. Era um pouco pretensioso, e eu era pretensiosocomo os jovens costumam ser e, talvez, at devam ser. Depois,fiquei menos serioso. Por que vou me mascarar? Eu sou assim.Se isso ser vagabundo, mesmo que seja, o que que se vai fazer?

    CULT O que que estava lhe motivando a assumir isso?

    S.U.L. Eu acho que o que motivou foi a vida. Posso dizer deuma maneira grossa que tive duas vidas: uma no Recife e outra

  • abril/2000 - CULT 9

    at eu chegar ao Rio, em 1965, com quase trinta anos de idade.E Antilogia um livro que nasceu entre meus trinta e quarentaanos. Mas s foi publicado quando estava com 44 anos. Ento,foi uma reestria tardia, porque passei 19 anos sem publicarnada de poesia e de repente fiz uma reestria. A vida que leveiantes era uma vida mais homognea, girava em torno de certosinteresses, as vivncias eram mais restritas, eu era um perso-nagem recolhido e problemtico nunca deixei de ser, mas eraparticularmente mais problemtico, ento, no sentido de queeu no me abria muito para as coisas de fora. E, ao chegar aqui,no Rio, comecei a levar na cabea e fui obrigado a mudar. Percebique a vida no podia ser to idealizada assim, de modo a sairtoda certinha. No que no se possa ser assim, h pessoas queconseguem ter uma vida toda projetada. Eu no consegui. Eaprendi que a adversidade quase uma necessidade que se impea voc. Ento, vi que a poesia que eu fazia, no que fosse falsa eu no renego nada do que fiz , no tinha mais a ver com aminha nova vida. Eu fiquei diferente e a citao de Corbireno foi gratuita nesse sentido. Ela marca todo esse perodo, nos de vida, mas tambm de produo.

    CULT Numa de suas palestras, voc comentou que a poesiacontempornea brasileira em vez de seguir por um caminhomais crtico, irnico e corrosivo estava indo por um lado maisreflexivo. Voc poderia falar mais sobre isso?

    S.U.L. No foi bem assim. Eu disse que est havendo entre ospoetas jovens mas no quero transformar isso numa bandeira uma seriedade muito grande que termina por essas pessoas selevarem a srio demais. Eu no sou contra a seriedade, nemacho que a poesia no deva ser sria, em alguns casos ela spode ser isso. No passado h vrios exemplos, como o deHlderlin. Na poca moderna houve o caso de Paul Celan, apoesia dele s poderia ser isso, no tinha sada, o homem teveuma vida trgica e a poesia foi um reflexo do que ele foi, ele nopodia fazer algo diferente do que fez: uma obra difcil, que retratao complexo universo dele, pessimista, amargo. Tanto assim que ohomem acabou se suicidando, ainda jovem, aos 50 anos. Acho

    Spiritus ubi vult spirat

    Atravessando em cmara rpidaA Presidente VargasDeparei-me susCom uma sobreviventeDo magrm ad hocDos orbes concentracionriosErguia a saiaMostrando a cmera escuraEntre os blidosBatia uma fotoO esprito sopra onde querIam todos radiososIndiferentesPara as mangedourasDepois a moral:Primum vivereDeinde philosophari

    que para ser um poeta assim, tem de ser para valer. No a seriedadeque vira uma postura do tipo ns somos poetas srios, essa agrande poesia e ns somos poetas importantes, que para mimsoa paradoxalmente cmica. Acho que os que esto levando issoa srio demais deveriam ter certo p atrs. S isso. Talvez sejaalgo idiossincrtico sentir isso, mas no momento seria melhor ojovem ser crtico em relao sua produo potica, crtico nosentido de ligar o desconfimetro para no cair no d de peitodisfarado.

    Heitor FerrazHeitor FerrazHeitor FerrazHeitor FerrazHeitor Ferrazjornalista e poeta, autor de Resumo do dia (Ateli Editorial) e A mesma noite (Sette Letras)

    Carlito AzevedoCarlito AzevedoCarlito AzevedoCarlito AzevedoCarlito Azevedopoeta, autor de Collapsus linguae (Lynx), As banhistas (Imago)

    e Sob a noite fsica (Sette Letras)

  • CULT - abril/200010

    EN

    TR

    EL

    IV

    RO

    S

    O primeiro livro de SebastioUchoa Leite, Dez sonetos sem matria, de 1960 e rene poemas dos dois ltimosanos da dcada anterior. Seriam, portanto,quarenta anos precisos de trabalho com apoesia, se o trabalho com a poesia fosseapenas contado pela seqncia dos anos., por isso, melhor dizer anos de publi-cao ou, melhor ainda, anos de uma de-finio do poeta que agora convergempara o aparecimento deste novo livro, Aespreita (1993-1998). Para a leitura maiscabal do poeta, portanto, a perguntaessencial parece-me ser: o que se passouentre os Dez sonetos sem matria e o livrode agora?

    De uma perspectiva meramente cro-nolgica, a resposta est, sem dvida, nolivro publicado em 1988, Obra em dobras,que rene, alm do primeiro, os outroscinco livros do poeta at aquela data, isto, Dez exerccios numa mesa sobre o tempo eo espao (1958-1962), Signos/Gnosis eOutros (1963-1970), Antilogia (1972-1979), Isso no aquilo (1979-1982) eCortes/Toques (1983-1988), devendo-seacrescentar os dois outros livros publi-cados depois daquela data: A uma incgnita(1989-1990), de 1991, e A fico vida(1991-1992), de 1993, embora este ltimo

    tenha as datas entre parnteses apenas aofinal de cada poema, e no depois dottulo, como ocorre com os demais livros.

    Em toda esta datao, apenas umafalha de seqncia: o ano de 1971, preci-samente quando, entre Signos/Gnosis eOutros e Antilogia, parece ocorrer umatransformao substancial na obra dopoeta. Mas isto j nada tem a ver comcronologia, e sim com a prpria figuradesenhada, ou design, como prefeririamos mais moderninhos, pela potica deSebastio Uchoa Leite. E , sem dvida,a apreenso desta figura que possibilita amelhor resposta para a pergunta de incioque agora repito com variao: o que sepassou entre o primeiro livro e este lti-mo de agora?

    Falei antes em transformao subs-tancial, e no em mudana, exatamentepara acentuar que o que ocorre na pas-sagem entre os trs primeiros livros e ostrs seguintes tem mais a ver com umaespcie de potencializao de traos quej estavam presentes nos trs primeirosque com um abandono ou substituiopor outros trazidos pelos trs ltimos. Sque, em poesia, como se sabe, potencia-lizar significa mais do que reforar, poisimplica um rearranjo de componentes da

    linguagem na instaurao de novas estru-turas significativas.

    Deste modo, se nos dois primeiroslivros dos anos 60 a relao com a realidadese fazia por intermdio de um domnio, porassim dizer, confiante das formas poticas(e o uso do soneto, sob a epgrafe de Valry,no primeiro livro, marca inconfundveldesta confiana) na explorao de tpicosonde est sempre presente uma voz quebusca esclarecer articulaes temporais ouespaciais, pessoa lrica que pesa em excessoe que no se desvincula de uma figuraherdada de poesia, no terceiro livro h umacomo que fragmentao da personalidadeque, no se satisfazendo com as formasanteriores e perdendo a confiana, faz im-plodir a linguagem atravs de rompimentossobretudo lxicos.

    Basta, como exemplo, examinar atransformao que se registra na passagementre o belo e solene poema Teoria do cio,ltimo do segundo livro, e o explosivoSolinrcia, primeiro do terceiro. Seperguntas e respostas mais ou menosretricas se sucedem no primeiro, movidaspor aquele cio figurativo da primeira estrofe,misturando transcendncias e observaescasuais, em que o lirismo ainda um veculoconfivel, em Solinrcia no h mais

  • abril/2000 - CULT 11

    Joo Alexandre Barbosa

    A corroso da objetividade realizada pelospoemas de A espreita uma interiorizaoda marginalidade da pessoa lrica que foi

    sendo conquistada nos sucessivos livros deSebastio Uchoa Leite

    Joo

    Lei

    te

    respostas porque no h perguntas e tudono seno afirmaes imperativas criando,entre aquele lirismo e a linguagem, o espaocido de uma stira mordaz a tudo o que ,ou era, confivel, inclusive aquele cioanterior, agora rebaixado a inrcia e tdio.

    Sendo assim, ao solene da Teoria, emque, no entanto, j se insinuava a des-confiana (Para que serves seno indagar/a essncia da poesia ou a essncia da pulha/se so a mesma coisa?), agora se substituio auto-sarcasmo: A tua metatsica/ perfeitae contrafeita.

    Em Signos/Gnosis e Outros, como se opoeta ajustasse contas com aquela figuraherdada de poeta, chame-se ela Valry, Rilkeou Lorca, Drummond, Bandeira ou Cabral,e iniciasse o trabalho de corroso da pessoalrica que somente a corroso da linguagemda poesia pode proporcionar. Mas nestelivro o processo de recusa se d ainda comreferncia a temas e usos da linguagempotica, como possvel ler nos poemasSignos/Gnosis, Retorno/Transtorno ouNon Possumus e no livro seguinte, Anti-logia, que a linguagem se volta explicitamentecontra tudo o que significava a heranacultuada nos primeiros livros.

    Agora, sob a epgrafe de TristanCorbire (mlange adultre de tout/

    trop cru, parce quil fut trop cuit,/.../trop russi comme rat), azeita-se amquina de contrariedades do poeta, en-grenagem capaz de triturar qualquer queseja a fable convenue do lirismo (...). Nomais apenas, como ainda ocorria no livroanterior, uma desmontagem dos arcanosda linguagem potica, mas uma, porassim dizer, decomposio das relaesentre linguagem e poeta, em que ascircunstncias histricas que foramresponsveis pela instaurao de umaimagem de poesia e de poeta so tambmsubmetidas acidez de um verso quealmeja ser o estilete flaubertiano, comoest no segundo poema, No me venhamcom metafsicas.

    E nada escapa ao estilete agora con-quistado neste livro: sejam as grandesidias ou a crtica delas e autores comoBertolt Brecht, Mallarm, Augusto dosAnjos ou Gregrio de Matos, na primeiraparte da obra, sejam lemas ou estilemasculturais, na segunda, sejam as figuraesdo prprio poeta, na terceira, em que setornam agudas as separaes entre poesiae persona lrica, por onde a antilrica objetivada numa antipessoa (...).

    A recomposio dessas relaes, mas jconquistado o necessrio distanciamento

    por uma linguagem potica capaz deintegrar as mais diferentes formas deexperincia, seja pessoal, seja cultural, vaiocorrer nos dois livros seguintes dos anos80: Isso no aquilo e Cortes/Toques. O quequero dizer que, nestes dois livros, depoisdo extremo a que chegou a crtica doprprio lirismo em Antilogia, SebastioUchoa Leite encontra, por assim dizer, osespaos e os tempos adequados para oregistro de um certo modo de ver, sentir epensar a realidade, atravs do qual vailevando a condio desajeitada da poesia edo poeta que se sabem restos e fragmentosde uma histria.

    Por isso mesmo, aquilo que era acidez,sobretudo com relao a poticas herda-das, passa a ser uma espcie de episte-mologia porttil com que o poeta buscaconhecer os versos, e sobretudo os rever-sos, de um discurso de inscrio metafricade presena no mundo. Da os vampiros, osassassinos, os mandries, as mulheres-panteras, os cnicos e suas representaesnos filmes, nos jornais, nos comics, que noapenas so veculos de extrao para umapoesia de fato (para usar um termo de que osassim chamados formalistas russos se utiliza-vam para designar uma literatura presa representao do real), como estabelecem

    Luci

    ana

    Whi

    take

    r/Fo

    lha

    Imag

    em

    Raro entreos raros

  • CULT - abril/200012

    um paralelo fundamental com toda aenorme massa de informao erudita deautores e obras que comparecem nospoemas, compondo um, por assim dizer,tempo literrio prprio ao poeta.

    A partir dos dois livros publicados noanos 90, A uma incgnita e A fico vida,deste modo, poder-se-ia dizer que aquiloque passa a ser dominante na poesia deSebastio Uchoa Leite o trabalho quaseagnico de deixar que sobre, na superfciedesgastada das tradies lricas, um sinalde presena contrariada de poesia. Mas,ateno!, no uma presena envergo-nhada em que se pudesse apontar resqu-cio daquela mauvaise conscience to do gos-to dos existencialistas dos anos 40 a 60 epor onde, como resultado, surgissem ver-sos fraudadores travestidos de metafsicassuspeitas e etreas expresses. No: pre-sena contrariada significa a conscinciade que se escreve por entre escombros,runas de uma tradio e que, por isso,talvez, h a desconfiana de que, em seulugar, poderiam melhor funcionar outrosmeios de representao, tais o cinema, osjornais ou os comics. Mas como a expres-so mesmo a potica, ento que se reali-ze sem bajulaes e, ao contrrio, apon-tando sempre para os desvios a que estetipo de expresso est sujeito. Sobre a des-confiana paira sempre o iminente perigoda dissoluo, comeando pela mais forte,isto , a metafrica, contra a qual se voltaa mquina irritada (para roubar umametfora de Drummond!) do poeta.

    Em A uma incgnita h um poemaemblemtico neste sentido, Cisne, emque aquela dissoluo trabalhada pelanarrativa das transformaes sofridaspelo tpico nas tradies romntica e ps-romntica:

    PrimeiroO cisne se evadeDepois um cisne de outroraDepois torcemO pescoo da plumagemA eloqncia da linguagemEnfim torcemO pescoo do cisne

    Antes de se evadir na poesia ps-romntica de Gautier e, sobretudo, na deBaudelaire, onde encontra o seu paro-xismo, o cisne e o poeta, ou melhor, a con-dio do poeta, se identificam por traossemnticos que se encarregam da tessiturametafrica; depois, e onde comea otexto presente, sobretudo com Mallarm,o topos , pode-se dizer, interiorizado, eno mais aponta apenas para a condiodo poeta, mas para a prpria poesia, numacontoro em que a identificao se dentre plumagem e linguagem, imantadas,no poema de Sebastio Uchoa Leite, pelaeloqncia. Em seguida, reduzido suacondio primordial de metfora, o toposressurge desnudo de metaforizao, expostaa sua condio de ave, apenas um pescooque se torce.

    Deste modo, a dissoluo da metfora,ou sua liqidao, se faz pela passagem dopoeta por entre os restos da prpria histriada poesia, e no por vagas intenesantimetafricas, o que significa oredimensionamento de sua linguagem nosentido em que os versos do poema, inte-grando os termos da tradio (cisne, evade,outrora, plumagem, linguagem), encontram asua resistncia nos dois termos introduzidos

    por Sebastio Uchoa Leite na cadeia dametfora histrica: torcem e pescoo, agorasim, para dizer com Paul Ricoeur, ametfora viva do poema.

    Mais uma vez, entretanto, precisoacentuar, como j se fez anteriormente,que este trabalho de corroso no serealiza apenas no nvel da construo, masimplica o deslocamento da pessoa lricapara fora de um eventual culto potico, oque, por um lado, permite o exercciopleno da auto-ironia, ou mesmo do auto-sarcasmo, e, por outro, amplia o lequedas informaes cabveis no poema,eliminando de uma vez por todas osprivilgios potico-temticos. (...)

    Neste sentido, de grande alcance ottulo do livro publicado em 1993: A ficovida traz para o espao do poema tudo aquiloque ficara marginalizado pelos desafiosenfrentados na procura de uma dicopessoal. A prpria diviso do livro apontapara o modo pelo qual as ambivalnciasentre poesia e experincia so aceitas eresgatadas por essa dico: Incertezas,Informes e Anotaes, prologadas por umnico texto, A fico morte. Se na primeiraparte a questo da doena e da morte tratada, quase sempre, pelo ngulo da ironiade quem se busca ver sem dramaticidades,embora recolhendo a intensidade deexperincias-limites, na segunda, em que ottulo tanto serve para aquilo que se veiculacomo contedos culturais quanto pelomodo como so dadas as informaes, massobretudo na terceira parte das Anotaes, aruptura entre pessoa lrica e composiopotica, aprendida e praticada nos livrosanteriores, acentuada pela utilizao deum verso cada vez menos obediente aoscortes ditos poticos e mais prximos deum ritmo prosaico.

    Na verdade, os poemas em prosa in-formativos da segunda parte encontram asua continuidade na presena dominante,

    A espreitaSebastio Uchoa LeiteColeo SignosEditora Perspectivatel. 11/885-838896 pgs. preo no definido

  • abril/2000 - CULT 13

    por exemplo, dos enjambements dos textosde doze a quatorze versos da ltima.Desvinculando-se do lirismo pessoal, ainformao potica dada pela revelaodas possibilidades inesperadas construdaspor uma lgica da realidade que se suportasobre a do imaginrio. Ou melhor: opotico est naquilo que foi possvel extraircomo relaes inesperadas entre os dadosda realidade. (...)

    So de uma espcie semelhante os cin-qenta e sete poemas de A espreita que, defato, parecem dar continuidade s Anotaesdo livro anterior, embora existam peculia-ridades no ltimo livro que devam ser ressal-tadas como novas conquistas da potica deSebastio Uchoa Leite.

    A continuidade est, sobretudo, noritmo e num imaginrio que desconfia dasanalogias de razes metafricas, pendendomais para os smiles metonmicos, emborao uso do enjambement seja mais discreto,no obstante a mesma recusa do encan-tatrio que possa trazer, disfarado, ofascnio das transcendncias.

    Por outro lado, a grande peculiaridadedo novo livro est, precisamente, em recu-perar o efeito potico por entre osmecanismos daquela prosa conquistada noslivros anteriores, sabendo resguardar osvalores analgicos que ainda mais acentuama marginalidade do lirismo com respeito representao trao, a meu ver, central dapotica de Sebastio Uchoa Leite, e queaqui atinge o seu apogeu.

    No se trata mais de tematizar a mar-ginalidade aqueles monstros de todaordem convocados pelo poeta em vriospoemas anteriores , mas de subtrair alrica a fim de deixar passar, pela lingua-gem do poema, a condio terminal dapoesia como veculo de representao darealidade. Da o teor de objetividade e, porassim dizer, pictrico que se encontra emgrande nmero de poemas de A espreita

    sem que, no entanto, desapaream ainquietude, as incertezas de uma lin-guagem cujo domnio sempre precrioem face dos mistrios do mundo. aconscincia daquilo a que me referi comocondio terminal da poesia que, alimen-tando as incertezas, instaura o clima deinquietao e de suspeita que corri asobjetividades.

    Assim, por exemplo, a leitura que faz,no poema Eros cruel, da representaoda cena bblica em que Judith degolaHolofernes, o general de Nabucodonosor,apreende no apenas a tenso ertica quelevou ao gesto, mas deixa passar o frmito,a inquietao do espectador incluso narepresentao de tal modo que o fun-damental passa a ser a prpria maneiraenviesada de olhar a cena:

    O queEspreita nas trevasFascnio difcilJudith corta HolofernesA cabeaSemicerradosOlhos osCabelos lbiosSemi-abertosBreve o bustoLbricaHbris xtaseDa morte crua

    Neste caso, portanto, mais do queos fragmentos pictricos registradospelos estilhaos de linguagem que so oscurtos versos do poema, aquilo queorganiza o texto a presena insidiosa deuma figura sem nome, referida no inciocomo o que/ espreita nas trevas quetanto pode ser o fascnio difcil doterceiro verso quanto a instigao para atranscrio verbal da cena bblica. Dequalquer modo, o que fica mais do que atensa relao entre erotismo e crueldade:

    , sobretudo, o clima de suspeita e deapreenso com que a relao percebida.

    Sendo assim, a corroso da objeti-vidade, que ocorre em numerosos poemasdeste livro, no uma sada para a subje-tividade, mas uma interiorizao damarginalidade da pessoa lrica que foisendo conquistada nos sucessivos livrosde Sebastio Uchoa Leite, dando comoresultado uma poesia que existe nosinterstcios entre a lucidez e a claridadede uma dico densa e despojada e adramaticidade de uma percepo daquiloque se conserva nas regies ensom-breadas dos desajustes, das inadequaese das deformidades da existncia. Numpoema do livro anterior, Anotao 2:Uma palavra, o poeta referia a esdrxulapercepo de Clarice Lispector comrespeito ao gosto da palavra amndoae sua precedncia de dez anos ao mesmogosto por Paul Celan e transcrevia umverso do poeta romeno, perguntando-seno fim do poema:

    Diria melhor eleQue escreviacom som-bras escritas porpedras?

    Ora, este mesmo gesto potico parecedominar grande parte dos poemas destelivro, onde o que espreita nas trevas,ainda que seja com os sentidos voltadospara as luzes do Nordeste, como acontecenos poemas em que trata do Recife, deCandeias ou de So Jos da Coroa Grande, uma espcie de substituto inaltervel dapessoa lrica de livros mais antigos.

    Na verdade, por todos os poemas destelivro passa o sentido de que no existe luzsem uma sombra que a da prpria pessoalrica agora assumida em sua marginalidadeessencial, como est dito, por exemplo, nopoema A luz na sombra:

  • CULT - abril/200014

    Joo Alexandre Barbosa um dos maiores crticos

    literrios do pas, autor de A metfora crtica e As iluses

    da modernidade (pela editora Perspectiva), A imitao

    da forma e Opus 60 (Livraria Duas Cidades), A leitura do

    intervalo (Iluminuras) e A biblioteca imaginria (Ateli

    Editorial). Professor de teoria literria e literatura compara-

    da, foi presidente da Edusp, diretor da Faculdade de

    Filosofia, Letras e Cincias Humanas e Pr-reitor de Cultura

    da USP. Joo Alexandre Barbosa assina mensalmente esta

    seo da CULT, cujo ttulo foi extrado de sua mais recente

    antologia de ensaios, publicada pela Ateli Editorial.

    Juan

    Est

    eves

    Sbito do outro lado Vejo-o projetadoNo espaoDeste ladoOs focos sobre almofadasUma luz amarelaOs quadros tambmEsqulidoAmarelomagroNa sombraDo alm-vidroVida em-siUniverso invisvelVazioCorpo absortoEm quedaNa sombra-silncio

    Deste modo, a reduo da pessoa lricaa uma sombra que se projeta por entre fei-xes de luz da conscincia, ao mesmo tempoem que torna objetiva a prpria presenade suas relaes com o mundo, intensificao ambiente de suspeio que uma lingua-gem potica de fragmentos retira de umdiscurso aparentemente descritivo. ,portanto, uma espcie de construo daprpria sombra a partir dos valores lumi-nosos da palavra, bem na esteira da poticadevastada de Paul Celan. Mas que sombra esta seno a do desajuste entre uma cons-cincia da marginalizao do poeta, en-quanto possibilidade de linguagem, e odomnio de uma dico que foge da auto-complacncia marginal? No queSebastio Uchoa Leite se queira marginal: que a sua potica, extremando a crtica dolirismo, pe margem da experincia coma palavra o fulcro enunciador da tradiolrica. Neste sentido, uma poesia radi-calmente marginal porque tira do centroda comunicao potica um sujeito deenunciao e, em seu lugar, prope umenunciado que j surge problematizadopelas relaes entre sujeito e objeto lricos.

    Aquilo, portanto, que aparece como espreitaem vrios textos deste livro a metamorfosedessas relaes, e no uma atitude ainda aser conquistada que estaria, por exemplo,se o seu ttulo fosse submetido contrao: espreita. Assim, no poema que leva porttulo a prpria palavra:

    uma espcie de CrberoNingum passaNo escapa nadaOlho centralFixo espreitaBoca disfaradaQue engole rpidoSem dar tempoDepois dormeAplacado

    Ou mesmo naquele poema em que ottulo j faz parte do texto, embora aqui sejaainda mais explcita a condio de espreita:

    (Ele, em geral

    Prefere enfiar-seNo cantoParadoComo uma vboraAntes do boteObserva

    CaladoO passar do tempoPelos relgiosControladoPassa pelas folhasDo livro entreabertoO midondiceDo medo)

    Sendo assim, possvel dizer que no um poeta espreita, mas uma poesia de espreita,isto , uma poesia que existe, ainda existe,por entre as frestas da histria de desastres erunas que a da poesia depois de Celan, deTrakl ou da literatura em geral aps assombrias meditaes de um Dostoivski que comparece em dois poemas deste livro, bastando, para isso, enviesar um modo deolhar e de criar relaes que no sepretendem de antemo poticas.

    Uma potica rara mais do que de rari-dades que, desde a desmaterializao dossonetos dos anos 60, foi aprendendo as liesque separam os poetas raros dos ralos atser capaz, como neste livro, de deixar passaras sombras por caminhos feitos de pedras.Um raro entre os raros.

    A ntegra deste ensaio est publicadacomo Prefcio do livro A espreita, de

    Sebastio Uchoa Leite

  • A INVENODA PTRIA

    No ensaio queabre a srie

    Redescobertado Brasil, o

    gegrafoDemtrio

    Magnoli mostracomo os relatos

    histricos, osdiscursos

    literrios einstrumentos da

    geografia como omapa poltico doEstado sofreram

    apropriaesvisando a

    constituio denarrativas

    nacionais queoperam uma

    fundaoimaginria da

    ptria e inventamuma tradio na

    qual cadapersonagem ouacontecimento

    encontra seupapel na marchada nacionalidade

    Demtrio Magnoli

    REDESCOBERTA DO BRASIL

    ndio flechando uma ona,leo de Johann Moritz Rugendas

  • a sua obra Mecenato pombalino epoesia neoclssica, publicada

    recentemente pela Edusp, Ivan Teixeiramostra como a apropriao romntica deO Uraguay representou no precisamenteuma leitura do pico de Baslio da Gama,mas um recorte antolgico em seu texto,uma seleo e uma amputao quetransformou o secundrio (a estria dosndios) em principal, e o principal (a marchade Gomes Freire contra os Sete Povos) emsecundrio. A tradio estabelecida por esserecorte produziu uma verso que, aindahoje, aquela que informa os jovensestudantes, nos bancos escolares.

    Independentemente de todos os outrosmritos da obra de Ivan Teixeira, sobre osquais no estou profissionalmente treinadopara emitir opinio, esse achado inscreve-anum esforo multidisciplinar de crtica deuma tradio crtica enraizada entre ns. Ohistoriador Lucien Febvre explicou no seu

    Honra e ptria, h pouco editado pelaCivilizao Brasileira, que a nao uma realidade psicolgica profunda (...)que modela rigorosamente todos osindivduos no interior do seu quadro (...),detentora de um patrimnio cultural doqual participam todos os seus membros.Mas essa realidade psicolgica e essepatrimnio no so coisas que simplesmenteexistem, como querem os nacionalistas: soconstrues histricas. A tradio crtica que me refiro constituiu, no Brasil, a fontedessas construes.

    O Uraguay foi recepcionado, no sculoXIX, pela crtica romntica engajada noprojeto de construo do Brasil. No seuResumo da histria literria do Brasil, de1825, Ferdinand Denis propunha elev-lo, junto a Caramuru, condio deprecursor da literatura nacional. Asguerras guaranticas, que so o seu tema,originaram-se do Tratado de Madri,

    firmado entre as coroas ibricas, quecolocou os Sete Povos no interior doterritrio colonial portugus. Esse tratado,tal como o pico de Baslio da Gama, foisubmetido apropriao dos constru-tores do Brasil, que lhe conferiram umsentido completamente diverso do seusignificado original o acerto de limitescoloniais tornou-se marco de fundao doterritrio brasileiro.

    Euclides da Cunha interpretou-o comoa glorificao da mais extraordinriamarcha colonizadora que se conhece,fazendo a nao brasileira ser tributria dasentradas e bandeiras. Arajo Jorge, bigrafodo Baro do Rio Branco, enalteceu a figurade Alexandre de Gusmo, riscando, distncia de quase dois sculos, as fronteirasque deram ao Brasil a sua configuraoatual. Ainda hoje, aprendemos na escola queo corpo da ptria ganhou uma certido debatismo no ano de 1750 e que o diplomata

    N

    Grupo Camac na floresta, 1815-1817, gravura de J. Lips e Maximilian Wild-Newied Mata virgem, desenho de Johann Moritz Rugendas(sculo XIX)

    CULT - abril/200016 CULT - abril/200016

    REDESCOBERTA DO BRASIL

  • portugus Alexandre de Gusmo (provi-dencialmente nascido no Brasil) derramoua gua batismal. Jaime Corteso, bigrafode Gusmo, sugeriu que por volta de1746 o grande diplomata deve ter entradona conscincia duma unidade geogrficae econmica do Brasil a defender.

    Jules Michelet, o historiador genialda Revoluo Francesa, nascido em 1798,definiu o seu ofcio como o de ummagistrado dos mortos: Eu conferi amuitos mortos to esquecidos a assistnciada qual eu mesmo necessitarei. Eu osexumei para uma segunda vida. Hoje, elesvivem conosco, que nos sentimos seusparentes, seus amigos. Assim se faz umafamlia, uma cidade compartilhada entreos vivos e os mortos.

    A cidade de Michelet a nao. Asnarrativas nacionais servem como fun-daes imaginrias da ptria. Elasmanufaturam a nao, que , no fim das

    contas, uma memria coletiva, um passadofabricado, uma tradio inventada. Essasnarrativas oferecem uma segunda vida, umasegunda chance aos mortos, que podemfinalmente falar e agir como contem-porneos dos vivos, desprendendo-se de seutempo, dos significados da sua poca, econtribuindo para a construo da cidadecomum. Atravs da voz emprestada dohistoriador, os mortos assumem os papisque lhes cabem na encenao do passado,na montagem de uma tradio, na trajetriaorientada para um fim.

    A cidade de Michelet serviu comobero e ideal do movimento romntico.O romantismo enraza nas tradiesimemoriais num passado to remotoe misterioso que s pode ser apreendidopelos sentimentos, pela afetividade epela emoo a comunidade de destinosobre a qual se ergue a nacionalidade. um acaso significativo que o filsofo

    alemo Herder, um dos pais domovimento romntico, tenha sidovtima da mistificao de Mac Phersone celebrado Ossian, que jamais existiu,como expresso primordial da almaescocesa.

    Os arquitetos da cidade de Micheletno foram apenas os historiadores. NaEuropa, as histrias de cavalaria (porexemplo, as de Sir Walter Scott) teceramlinhagens nacionais ancoradas numaIdade Mdia cavalheiresca, na qualavultam os valores aristocrticos da honrae da guerra, enquanto a pintura paisagsticafixava as imagens e os cenrios nacionais,conferindo identidades naturais para aFrana, a Alemanha, a `ustria, a Hungria,a Noruega...

    A contribuio da geografia nodeveria ser esquecida. O estabelecimentodas fronteiras polticas nacionais deman-dou o desenvolvimento da cartografia de

    Os ndios da Amaznia adorando o Deus Sol, leo de Franois Auguste Biard (sculo XIX)

    abril/2000 - CULT 17abril/2000 - CULT 17

    REDESCOBERTA DO BRASIL

  • limites e estimulou a difuso dos mapas,pela primeira vez, para um pblicoamplo. A figura do corpo territorial daptria, vista do alto e situada numamoldura geogrfica estvel, introduziu-se ento no domnio da percepocotidiana. O mapa poltico do Estadoalou-se, com a bandeira e o hino, condio de smbolo patritico. Asctedras universitrias de geografia e, emseguida, o ensino escolar da disciplinadedicaram-se a descrever o territrionacional, conferindo-lhe uma unidadenatural, estruturando-o em regiesidentificveis e oferecendo inventrios dassuas paisagens e dos seus recursos.

    No Brasil, a construo da cidadecoube elite do Imprio. Desde muitocedo, essa elite concluiu que o novoEstado independente, uma monarquiatropical atravessada pela funda cicatrizda escravido, precisava de uma histria,

    uma geografia, uma literatura e um pai-sagismo. No empreendimento, o papelmais destacado foi desempenhado peloInstituto Histrico e Geogrfico Brasi-leiro (IHGB), presidido desde 1849 ata proclamao da Repblica por D.Pedro II. No IHGB reuniam-se ossenadores, ministros, conselheirosde Estado e diplomatas, que eramtambm intelectuais, como Franciscode Varnhagen e Capistrano de Abreu,cientistas, como o alemo Carl vonMartius, e escritores, como GonalvesDias e Gonalves de Magalhes.

    Como escrever a histria do Brasil?Essa questo abriu, em dezembro de1838, a primeira sesso do IHGB. Postoem termos micheletianos, o problemaconsistia em produzir um enredo no qualos mortos pudessem representar seuspapis na marcha da nacionalidade.Como explicou Fernando Novais (no

    prefcio a Na Bahia, contra o Imprio, aobra inspirada de Istvn Jancs), quandoa nao o objeto do discurso histo-riogrfico, o anacronismo representauma dificuldade quase insupervel e,no caso do Brasil, se consubstancia naidia de que a nao estava j inscrita naviagem fundadora de Pedro `lvaresCabral, quer dizer, como se a colonizaose realizasse para criar uma nao, e ochamado perodo colonial vai sendoreconstitudo como algo tendente a forjara independncia, num curioso exercciode profecia do passado.

    Na sesso inaugural, Martius sugeriu umplano ambicioso, que enfatizava as contri-buies de ndios e negros, antecipando amitologia das trs raas que celebra-se, com ojbilo dos 500 anos redondos, nesse ms deabril. Os ndios (ou melhor: a imagemcavalheiresca do ndio) ganharam seu lugarna cidade bem antes que os negros, condenados

    Carregadores de caf a caminho da Cidade,Rio de Janeiro, 1826, aquarela de Jean Baptiste Debret

    Desenho de von Martius para a litografia Forma de animais naAmrica tropical

    CULT - abril/200018

    REDESCOBERTA DO BRASIL

  • a aguardar o fim da escravido. A literaturaromntica conferiu-lhes o papel que, naEuropa, coube aos cavaleiros medievais e oshistoriadores da literatura incorporaram nova tradio tambm os ndios do passado,como os de O Uraguay.

    Na Europa, uma nao prvia,corporificada nas liberdades e privilgiosda nobreza, serviu como argamassa paraa construo das naes contemporneas.O truque das narrativas consiste emidentificar uma nica linha evolutiva,fazendo emergir a Frana de mil anosdo general De Gaulle, uma Noruega quecelebra os ancestrais vikings, uma Srviaque chora os mortos da batalha medievalde Kosovo Polje...

    No Brasil, no existia nada comouma nao prvia e, talvez por isso, aprpria natureza tenha desem-penhado funes to essenciais namanufatura da nao. Eis uma pista para

    Redescoberta do Brasil uma srie de ensaios em queensastas, crticos literrios epesquisadores das reas decincias humanas discutem a convite da CULT questesrelativas noo de iden-tidade nacional. A srie temincio neste ms em que secomemora o Descobrimentodo Brasil e se estender atdezembro, contribuindo assimpara uma reflexo que percor-re a cultura brasileira e que seintensifica por ocasio dos 500anos do encontro Brasil-Portugal. Os ensaios da srieRedescoberta do Brasil teropor objeto autores fundamentaispara a discusso desse tema,como Euclides da Cunha, Mon-teiro Lobato, Srgio Buarque deHolanda, Roberto DaMatta eDarci Ribeiro. O segundo ensaioda srie (a ser publicado emmaio) sobre o pensador dacultura brasileira ManuelBonfim, que ser analisado porRoberto Ventura, professor deteoria literria na USP, autor dolivro Estilo tropical (Companhiadas Letras) e um dos idea-lizadores da srie Redes-coberta do Brasil. A edio dejunho trar um ensaio de JooAlexandre Barbosa sobre oscrticos e historiadores daliteratura Jos Verssimo e SlvioRomero.

    Srie abordaidentidade nacional

    se compreender a importncia assu-mida, no alvorecer do Imprio, pelosrelatos antigos de viagens (a Carta deCaminha e os escritos coloniais de Perode Magalhes Gndavo e GabrielSoares de Souza foram finalmentepublicados), pelo paisagismo dosviajantes que tematizam a exubernciados trpicos e pela figurao romnticado ndio nos Timbiras, na Confederaodos Tamoios, no Guarani ou em Iracema.Martius, por sinal, era naturalista, nohistoriador. Na poca da primeirasesso do IHGB, ele preparava apublicao do Flora Brasiliensis, quecontinha o primeiro mapa das zonas devegetao brasileiras. Um tijolo namuralha da cidade.

    Demtrio MagnoliDemtrio MagnoliDemtrio MagnoliDemtrio MagnoliDemtrio Magnolidoutor em geografia humana pela USP e autor, entre

    outros livros, de O corpo da ptria: Imaginao geogrfica epoltica externa no Brasil (1808-1912).

    Lagoa das Aves, no rio So Francisco, desenho atribudo a Carl Friedrich Phillip von Martius(sculo XIX)

    abril/2000 - CULT 19

    REDESCOBERTA DO BRASIL

  • CULT - abril/200020

    Escondam no Correio o ouvidoDireito, o esquerdo nos Telgrafos,

    Quero saber da vida alheia,Sereia.

    Mrio de Andrade

    As cartas que mando pra voc sosuas. Se eu morrer amanh no quero quevoc as publique. Nem depois da mortede ns dois quero um volume como oepistolrio Wagner-Lizt. Essas coisas po-dem ser importantes, no duvido, quandose trata dum Wagner ou dum Lizt que fi-zeram arte tambm pra se eternizarem. Euamo a morte que acaba tudo. O que noacaba a alma e essa que v viver con-templando Deus. (de Mrio de Andradepara Manuel Bandeira, 25/01/1925).

    Para nossa felicidade, o destinatriodas cartas de Mrio de Andrade noatendeu ao pedido do missivista com-pulsivo, adivinhando, sob a mscara damodstia, o esforo guau por ele rea-lizado no sentido de nos legar um dosmais significativos documentos da vidaintelectual brasileira deste sculo. Provadisso a publicao da correspondnciaentre Mrio de Andrade e ManuelBandeira, primeiro volume de umacoleo organizada pelo Instituto deEstudos Brasileiros (IEB), da Uni-versidade de So Paulo, em parceria coma Edusp, e que permite, graas divul-gao da correspondncia passiva do

    escritor mantida sob lacre, inacessvel consulta, at 1995, por um desejo doprprio Mrio, preocupado em resguar-dar a intimidade alheia , reconstituir oitinerrio de uma amizade e, a partir da,recuperar o clima de uma etapa impor-tante de nossa histria literria.

    Amizade, preciso que se diga,marcada por diferenas de temperamentoe pela incorruptvel lhaneza de seus pro-tagonistas. Amizade, portanto, afeita polmica, fruto de uma intimidade queno se priva do mundo, mas, ao contrrio,nele se aquece pela conscincia inten-sificada de suas contradies. Amizadealgo assemelhada ao amor mundi de quenos fala Hannah Arendt ao se referir figura de Lessing, amor a este espaointermedirio entre os homens que, com-primido em tempos sombrios (a frater-nidade dos prias, em que se verifica umahumanidade invisvel, sem ressonnciapblica ou significao poltica), dilata-se na amizade autntica pela ao dis-cursiva. Entre a verdade e a amizade,Lessing sempre escolheu a primeira, va-riou seus argumentos tendo mais em vistaseu poder de incitao ao discurso, seuefeito no mundo, que sua lgica interna;o pensamento como instrumento para semover em liberdade no mundo (e nocomo ersatz psicolgico de liberdadesconfiscadas).

    Como no lembrar, em Mrio, dacuriosidade perpetuamente em via desatisfao, de suas convices transi-trias, sua busca incessante em face daqual as respostas representariam o des-canso em vida, parar mais detestvel quea morte1? Com a diferena talvez de queMrio nunca se liberta completamenteda coao exercida pela necessidade decoerncia, donde a imensido de expli-caes pontuando cada gesto ou afirma-tiva seus e a fora com que retruca s afir-mativas vibrantes de Bandeira com umaanlise muito de mquina, cheia de rodi-nhas cada uma bem no lugar, cheia de po-lias, cheia de relgios etc. (p. 362).

    Comentando as estratgias de di-vulgao do modernismo, as rixas entrepanelas literrias, batendo-se em defesada lngua brasileira, discutindo poemas,quadros, composies musicais, patentena correspondncia a flexibilidade nasposies crticas assumidas por Mrio; atendncia a tomar partido considerandoo efeito moral de suas declaraes.Flexibilidade que, por um lado, se vinculaao desejo de sinceridade (de comunicaorente s modulaes da personalidade, ssensaes que renascem de si mesmassem repouso na alma desse que tre-zentos, trezentos-e-cinqenta) e, poroutro, constitui fonte de sofrimento paraum sujeito, como bem observa Bandeira,

    Sereias daPublicao da correspondncia entre Mrio deAndrade e Manuel Bandeira reconstitui oitinerrio da amizade entre dois dos maiorespoetas modernistas e recupera um perodofundamental da histria literria do Brasil

    Fabio Weintraub

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    assaz dependente do meio amical: Quedirei a respeito dos teus aborrecimentos?Devo passar-te o meu displicente pessi-mismo? (...) sinto teres necessidade domeio amical para criares. Mas o meioamical no existe! Tu devias aprender apassar sem amigos, amigos literatos. Comliteratos e artistas s h duas atitudespossveis: 1a ser intratvel, isto , guardariseno absoluta de nimo; 2a ser irnico,no levar nada a srio, danar de ombros.A 1a atitude , sem dvida alguma, a me-lhor, a mais nobre. Requer, porm, umafora de corao acima das nossas pos-sibilidades sentimentais. Ou ento serduro. Nem eu nem tu somos assim (p.138).

    No intercmbio epistolar com omesmo Bandeira, amigo cuja estaturaintelectual se ombreava com a de Mrio,o escritor paulista era compelido a aban-donar o tom pedaggico paradoxal-mente responsvel pela universalidadedesse discurso, espcie de mise en scnedirigida a um interlocutor abstrato, des-colado das circunstncias especficas quedesencadeiam a carta , a retrica sedu-tora com que enredava os admiradoresmais moos para dar lugar reflexomacha, estribada na erudio comum eem afinidades de ordem moral, dis-cusso dos diferentes projetos criativossustentados por ambos. O que no

    significava necessariamente simetria nasrelaes nem ausncia de conflitos. Nocampo dos comentrios aos poemas, M-rio mais comedido que Bandeira (levaquase um ano para comear a comentar-lhe os versos) e tambm mais inclinado,sobretudo nos anos iniciais da correspon-dncia, a acolher os conselhos do amigopernambucano. Alm disso, ressente-seamide com a ironia de Bandeira, quenem por isso deixa de dizer o que pensa,declarando-se mais amigo da obra queda pessoa de Mrio. No pequena adistncia, percebida por Bandeira, entreo desejo de franqueza expresso por Mrioe a sua capacidade real para suportarcrticas. Escreve Bandeira: O conceitoque sempre fiz de sua sensibilidade moralera exato: eu no lhe posso falar comosinto, no poderei nunca dizer-lhe meupensamento inteiro, ainda quando vocme pea franqueza at o fim... (p. 382).Ou: ... voc com o seu amor pelo homeme seu ardente desejo de se comunicar e deser compreendido e gostado, quereria sercompreendido e gostado com perfeita cr-tica em todos os aspectos, detalhes e nuan-ces do seu pensamento e sentimento. Todaincompreenso ou compreenso parcial,que digo?, mesmo uma relao imperfeitade compreenses machuca (p. 397).

    Eis trechos da correspondncia quedo bem a medida do tom despachado de

    Manuel Bandeira, mais espontneo queo amigo autovigilante2. Escrevendo depijama e chinelas, Manu manda oamigo merda sempre que necessrio,refere-se aos versos do Mrio anterior aPaulicia desvairada como coisa de ado-lescente que no trepou, com uma brutaternura por ser feio (p. 247) e ao moder-nismo como uma putinha intrigante queapareceu para desunir os amigos (p.327). Discorda reiteradas vezes dainteno apostlica subjacente s aesdo amigo, defendendo-se tambm dasrecriminaes que este lhe faz, seja quan-to ao recurso ironia considerada porBandeira a forma mais despretensiosade ensinar, mais delicada e mais hericaporque d gente a aparncia de mau emvez de superior e pedante (p. 381) , sejaquanto ao sentimentalismo excessivo; oque lhe d ganas de reagir e cair pororgulho ferido no mais meleca, cocada-puxa e baba de moa de todos ossentimentalismos (p. 260).

    Se estou dando maior destaque scartas de Bandeira porque elas consti-tuem a parcela da correspondncia que es-tava indita at agora (as escritas por M-rio j estavam disponveis desde 1958) eporque tornam mais evidente a cons-tituio desse dilogo como um espaoficcional ou o carter de encenao deque se reveste essa escrita (p. 14), como

    CorrespondnciaMrio de Andrade &

    Manuel BandeiraOrganizao, introduo e

    notas deMarcos Antonio de

    MoraesIEB/Edusp

    736 pgs. R$ 65,00

    vida alheia

    Ao lado, Mrio de Andradeno Peru, em 1927. Napgina oposta, ManuelBandeira nos anos 20.

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    afirma, no excelente ensaio introdutrio,o organizador do volume, MarcosAntonio de Moraes. Encenao noapenas de uma naturalidade que, fora dascartas, no tinha a mesma vigncia, masainda expediente que, respondendo personalidade multifacetada de Mrio(tambm ele, semelhana de Macuna-ma, um escritor sem carter por excessode caracteres3), pe a nu a naturezaproblemtica, o aspecto fluido, mutante,do gnero epistolar: ora aproximando-sedo ensaio, ora da crnica e do conto, orado testemunho biogrfico.

    Mas como isso se d mais concre-tamente? Acompanhemos, por exemplo,o problema da lngua brasileira. Meninados olhos de Mrio de Andrade, a defesade uma lngua autctone no pode serencarada, conforme nos ensina Rosen-feld, como um problema exclusivamenteesttico-literrio, ou como expresso deum nacionalismo supra-regional e cos-mopolita, mas se liga ao problema maisntimo da descoberta da prpria iden-tidade atravs da procura da identidadenacional 4. Donde o tom veemente comque contesta as acusaes de Bandeiraquanto sistematizao artificial5, sembase em fatos da linguagem. As razesalegadas por Mrio em defesa prpriaso as mais diversas. Algumas vezes,justifica a sistematizao dizendo que

    sem ela seria um escritor sentimental-mente popular, e no o escritor culto eliterrio (p. 182) que pretendia ser. Nou-tras afirma estar simplesmente proceden-do por deduo lgica, filosfica epsicolgica (p. 566), o que Bandeiraatalha ponderando que a lngua no exa-tamente uma criao lgica, pelo menosno de uma lgica individual, e que a tallgica filolgica assunto para gram-ticos, no para escritores, que, por seuturno, s podem influir na lngua pelogosto da expresso (p. 567). Mais fre-qentemente admite ter cometido exa-geros para dar coragem aos demais incor-rendo em erros teis, passveis de reti-ficao ulterior.

    Essa positivao do erro, ou justifi-cao da arbitrariedade, prende-se jreferida capacidade de sacrifcio da coe-rncia no apenas em nome das exignciasformativas e crticas do momento his-trico, mais ainda das contingncias pes-soais a que no poderia se furtar sem pre-juzo autenticidade da expresso. E precisamente nessa volubilidade de carter momentos de euforia acompanhados decrises de conscincia, culpas, retrataese muita auto-anlise , mas que sempresupe a permanncia ltima da intenosincera, como nos adverte o saudosoCacaso6, que reside o trao distintivo dareflexo marioandradina.

    Parte significativa da correspondnciarevela os bastidores do texto literrio,fonte privilegiada de informaes sobreo processo criativo dos autores. Pelo con-fronto de variantes possvel apreender aobra de arte como campo de foras anta-gnicas, recuperando-se o movimentoangustiado que marcou sua gnese.

    Do lado de Bandeira, vamos encontrara primeira verso de poemas que se incor-poraro mais tarde obra potica, algunspoemas inditos e, o que mais curioso,determinadas imagens, cadncias, frasesou fragmentos de frase que, sem consti-turem versos propriamente ditos, do aconhecer de modo inequvoco o pathoslrico do autor por serem, talvez, secre-es oriundas do mesmo lenho de perso-nalidade.

    Exemplos? Aqui no Recife estounum quarto engraado, de telha-v e chode tijolo, dando prao Capiberibe, Capi-baribe, deslizando sem rudo, onde asbarcaas passam em silncio e onde oscoqueiros, magricelas com ar cansado desujeito que andou muito e no tem ondesentar, deixam uma sombra to gostosa(p. 338). Ou: Est um tempo safado.Chuva mida desde anteontem. Ontemenfurnei o dia inteiro. Hoje precisei sair tarde comprei 1$500 de presunto, doisovos e uma garrafa de caninha de Angrados Reis. Voltei pra casa na boca da noite

    Creio nas afinidades eletivas. Sou teu irmo desde uma nuncaesquecida tarde de domingo, em que num txi o Guilherme disse-me do aparecimento do Carnaval e recitou de cor alguns versosesparsos de tua obra. No dia seguinte procurei o livro. Quando,para ler a Paulicia na casa do Ronald, exigi dos amigos tuapresena, no foi porque tivesse a curiosidade de te conhecerfisicamente. Foi para um reconhecimento. Emprego a palavra coma sutileza dos poetas japoneses nos seus haicais. Com todas assignificaes e associaes que ela desperta. E da em diante essereconhecimento no cessou de aumentar, florir, frutificar. Hoje s, eno te ofenders com a metfora, s uma propriedade minha.Mrio de Andrade a Manuel Bandeira22 de maio de 1923

    Mrio de Andrade em fotografiaprovavelmente datada de 1938

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    fritei os ovos em cima do presunto mandeiantes e depois dois clices da caninhaacendi o charuto e me senti feliz des-graadamente feliz! (p. 304). Como nopensar, lendo este ltimo trecho retiradode uma carta de 1926, no Poema s paraJaime Ovalle, includo em Belo Belo(1948)?

    De repente, uma linha como a queencerra a carta de 26/dez/1925 A vida um milagre. O nico milagre. sur-preende-nos no incio de Preparaopara a morte, poema de Estrela da Tarde(1960): A vida um milagre./ (...)/ Bendita a morte, que o fim de todos osmilagres. Assim como surpreendente,considerando o tom desbocado que Ban-deira adota ao longo da correspondncia,observar a substituio ocasional de umpalavro num poema como Desafio:(...) Uma s coisa faltava/ No meu barcoremador:/ Ver assentada na proa/ A bundado meu amor! (na verso final dessepoema, destinado Lira dos cinqentanos,de 1940, a bunda cede lugar ao vultoda amada). Outras vezes, o que se nosoferece a descrio pormenorizada daambincia de certos poemas: as crianasda rua do Curvelo, em Santa Teresa, oslupanares da Lapa, paisagens de infnciamisturadas com restos da leitura de outrospoetas; tudo galvanizado por altasvoltagens de erotismo.

    Do lado de Mrio de Andrade,destacam-se as tenses permanentes entrelirismo e inteligncia, arte pura e arteinteressada, desfibrando muitas vezes oordenamento lrico pela intromisso deinterpelaes condoreiras, enumeraesdescritivas e rompantes discursivos,conforme nos adverte o professor SergioMiceli7. difcil imaginar que entretemperamentos assim diversos pudesseocorrer troca to intensa de idias, desugestes tcnicas no plano da fatura dosversos, discusses sobre traduo, almde tentativas um tanto selvagens, postoque saborosas de psicanalisao rec-proca a partir de poemas e outros escritos(vale lembrar que ambos foram leitoresatentos de Freud e que Bandeira chegoua acompanhar aulas do psiclogo polonsWaclaw Radecki e a demonstrar interessepelo trabalho da psiquiatra Nise daSilveira, de quem foi vizinho, no hospitalde Engenho de Dentro8).

    Belo ainda perceber o lirismoinvoluntrio de certas passagens episto-lares nas quais, em contraste com aszonas de silncio9 nessa amizade fun-dada sobre bases intelectuais, se verificauma poderosa impregnao de objetos,situaes e paisagens pela presenasingular de cada um dos missivistas.Penso na Remington de Mrio, em cujometal gostava de encostar a testa para

    sentir-lhe o friozinho, batizada com onome de Manuela, homenagem aomelhor amigo, e acariciada (como umcavalo em que se passa a mo para aman-sar) quando os poemas custavam a sair.10

    Penso tambm, como mais um sinal dessaimpregnao afetiva, no sofrimento deMrio quando da mudana de Bandeirada casa de Santa Teresa (o famosoendereo da rua do Curvelo 51, para ondetantas cartas se habituaram a seguir).Sofrimento causado no s pelo que talmudana indiscretamente revelava dapobreza em que vivia Manu, mas pelasensao de uma diminuio no carterdo companheiro exilado de sua paisagemmoral. De modo amplo, penso na pre-sena mais difusa e constante de um ami-go conscincia do outro, levando Ban-deira a confisses do tipo: (...) quandoescrevo sempre imagino voc me lendo(p. 326), paralela afirmao de Mriode que falar de um livro ou de um poemano passa dum jeito da gente manusearum carter, beijar na boca uma alma degente como a gente e to diferente noentanto (p. 340).

    Da mesma forma, vrias pginas sogastas com discusses sobre polticaliterria: crticas ao provincianismo pau-lista e carioca, ao oportunismo de sujeitoscomo Graa Aranha (posando, semmrito para tanto, de lder do movimento

    Antes de entregar os meus versos tipografia, mandei-os a voc,pedindo-lhe que os criticasse: o meu desejo era que voc fizessecom eles o que eu, a seu pedido, fao com os seus: umaespinafrao isenta de qualquer medo de magoar ou melindrar crtica de sala de jantar de famlia carioca, de pijama e chinelo semmeia. Voc tirou o corpo fora e limitou-se a aconselhar a supressode um soneto. Se voc tivesse me dado outros conselhos, o meulivro sairia mais magro porm certamente mais belo.Manuel Bandeira a Mrio de Andrade27 de dezembro de 1924

    Manuel Bandeira no Beco dos Carmelitas,Rio de Janeiro, nos anos 50

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    modernista), s malandragens de Mon-teiro Lobato como editor; articulaocom jovens valores de outros estados(como Drummond, em Minas; CmaraCascudo, em Natal; Augusto Meyer,Murilo Mendes etc.); colaboraes ass-duas em revistas, jornais; palestras, via-gens etc.

    Cumpre todavia notar que, se halguma semelhana nas dificuldadesenfrentadas por Mrio e Bandeira e aque-las que hoje se colocam para o escritorcontemporneo, totalmente outras so asformas de reao a tais dificuldades,principalmente no que diz respeito perda de ressonncia pblica desse deba-te. No se escrevem mais cartas abertascom a mesma honestidade e entusiasmodemonstrados pelos nossos modernistas:a poesia vai se integrando de modo pac-fico ao mercado e conquistando reconhe-cimento por intermdio de lobbies junto mdia e universidade; no mais pelotrabalho paciente de crtica e decantao.

    Nesse sentido, talvez valha acom-panhar de perto as vicissitudes da idiade sacrifcio sustentada por Mrio ao longoda correspondncia. Sacrifcio da arte emnome da vida, com assuno do papelingrato de palmatria-do-mundo, emcontrapartida indiferena dissipadorados amigos ricos, ao lado de quem foimais difcil permanecer aps a fase des-trutiva do movimento modernista:Quando foi pra destruir, tempo em que

    a blague e o esprito valem mais que osaber, estvamos todos juntos. Porm de-pois esse tempo passou. Eu fui o maissacrificado, jurei pra mim que havia deprovar que no era o cabotino besta quepensavam e que a verdade em que est-vamos era justa e propcia. (...) certoque eles tm mais dotes que eu. Dotesinatos. Porm, e talvez seja a minha infe-rioridade a causa da minha maior digni-dade ( quase certo que ), eu trabalhei.Eu me dei um destino (...) e eles ficaramsem se dar destino (p. 246). Sacrifcio,trabalho e destino que acabaram por acen-tuar a distncia entre Mrio e seus parespaulistanos tambm no que se refere feio nacional da literatura por elesempreendida.

    O que no passar despercebido porBandeira, como se pode ver no co-mentrio deste ao Pau-Brasil de Oswald:O que est dentro o bom Oswald,empregando a tcnica de Kodak deCendrars. Pena aquela prosa prefacial cafezista e importante (...) Ele sente ecritica deliciosamente o Brasil, mas nofundo pouco Brasil. Pau-Brasil tra-duo de Bois du Brsil. Acho voc maisIbirapitanga (p. 238). Por vezes, o alts-simo senso de dever leva Mrio a secastigar por ter criado poemas, como osdo Remate de males (1930), os quais, semas cores de anncio com que fun-cionavam dentro de uma nacionalidade(p. 515), teriam perdido a serventia

    social. Acabrunhado com isso, no se dei-xa convencer pelo argumento de Bandeirade que todo artista genuno tem aosocializante mesmo quando pensa estarbatendo a punhetinha mais pessoal nafamosa Torre. (p. 516)

    Quando, entretanto, o Mrio artistadeixa de se sotopor ao apstolo, a coisamuda de figura. Em obras como Macu-nama, livro desinteressado aos olhosde seu criador (ele mesmo sentindo-seincapaz de julg-lo), o problema doengajamento e da gratuidade na obra dearte sugere novas articulaes. EmMacunama, o descompromisso com oimediato, indispensvel ao trabalho inte-lectual militante, pode significar umautocomprometimento que no se con-funde com o andar nas nuvens ou qual-quer tipo de evaso esteticista, assegura-nos Cacaso. Pois Macunama, prosse-gue o crtico, justamente por seu carterde jogo desinteressado (...) ainda obrainteiramente engajada, mas um engaja-mento no imediato nem instrumental,um engajamento da forma. Engaja-mento no-retrico no qual a liberdadecomparece como condio prvia, e nocomo finalidade exterior, pois s osobjetos e as atitudes livres podem secomprometer de modo descondicionadoe adulto, independente e responsvel. 11

    Seguir na esteira dessas consideraesseria tarefa para um outro momento, exi-gindo maior espao expositivo. Por ora

    A sinceridade sem vergonha que omodernismo s vezes usou um erro.Da aquela minha dvida expressa noprefcio do Losango cqui, se temos odireito de chamar de poemas aos nossosmovimentos lricos. Eu tambm meentusiasmei pela sinceridade sincera naarte. A Escrava que de princpios de1922 diz isso. Hoje eu me entusiasmomais pela sinceridade artstica que porser artstica no deixar de serpsicolgica, e real. A histria queversos a gente faz pros outros lerem.Mrio de Andrade a Manuel Bandeira29 de dezembro de 1924

    Mrio de Andrade em caricaturade Nssara (1934)

    Manuel Bandeira em caricaturade Foujita (1932)

    ReproduoReproduo

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    basta saber que elas definem uma dasprincipais linhas de fora da corres-pondncia e permitem entender commaior exatido a questo do direito pesquisa esttica permanente, bem comoaquilo que no fim da vida Mrio chamarde tcnicas dinmicas do inacabado,propiciadoras de uma arte mals12, vol-tada para a crtica e para a superao dosengessamentos contemporneos.

    Por fim, uma ou duas palavras sobreo aparato de notas. Simplesmente umagostosura, para falar como Mrio. Nos pela quantidade formidvel deinformaes que precisam, para o leitormenos familiarizado, as circunstnciasmais particulares, o entorno especficode cada carta (pessoas, livros, lugares,datas, acontecimentos...), como tambmpelos confrontos com outros documentos outras cartas, artigos, entrevistas quefazem meno ao tema abordado emdeterminado momento , alm decomentrios humorados do organizadore, mais espaadamente, pequenos vosinterpretativos.

    Pelo cruzamento de correspondnciasse podem constatar variaes no trata-mento de um mesmo assunto de acordocom o interlocutor visado. Da que, quei-xando-se a Bandeira da dura convales-cena aps uma cirurgia a que sesubmeteu para retirada de hemorridas,Mrio prefira, ao relatar o mesmo inci-dente para Anita Malfatti, inventar, por

    delicadeza com a interlocutora feminina,uma apendicite, modificando a origemdo mal sem minimizar a descriovoluptuosa do sofrimento (cf. n. 91, p.313).

    Noutras passagens, espanta o deta-lhismo, as mincias a que desce o ano-tador ao descrever, por exemplo, umaedio do Vita nuova, de Dante, perten-cente biblioteca de Mrio de Andrade.Como se no bastasse a meno a umdefeito na capa do livro causado pelacensura postal, deparamo-nos ainda comuma referncia a Antonio Candido (porcoincidncia apresentado a Mrio nomesmo dia em que chegara o tal livro),que lembra a revolta do escritor ante oestrago decorrente da truculncia doEstado Novo (cf. n. 168, p. 255).

    Aqui e ali topamos com uns poucoserros de reviso: palavras que escaparam atualizao ortogrfica adotada comocritrio para a presente edio, refernciassem anotao, notas com a numeraotrocada e outras distraes de somenosimportncia (perdoveis numa iniciativaeditorial dessa monta).

    Comemore-se, ento, o aparecimentode mais essa pea do enorme puzzle espi-ritual deixado por Mrio de Andrade eque, com dilatar-lhe o legado, reverbera amuiraquit de sua presena e segue espa-lhando o poeta pela cidade, saudade.

    Fabio WeintraubFabio WeintraubFabio WeintraubFabio WeintraubFabio Weintraubpoeta e editor, autor de Sistema de erros (Pau-Brasil)

    NOTAS1 Advertncia, em Losango cqui (1926).

    2 A conscincia de Mrio sempre divididaentre o desconforto pelas imperfeies formaise o desejo de influir sobre os companheiros;entre o mau cabotinismo aquele ligadoexclusivamente a motivos baixos, de ordemsexual e/ou moral e o cabotinismonobilitante, aquele que sobrepe s idias-fonte finalidades hericas, procura dasinceridade total. Ver Do cabotinismo inO empalhador de passarinho SP: LivrariaMartins Editora, 1944, pp. 71-74.

    3 cf. ROSENFELD, Anatol Mrio e ocabotinismo in Texto/Contexto SP:Perspectiva, 1985, p.190.

    4 op.cit., pp.186-187

    5 Por exemplo, colocando o pronome oblquosempre antes do verbo quando o brasileirose caracteriza exatamente pela instabilidadedo tal oblquo, conforme nos explica Bandeira(p. 180).

    6 BRITO, Antnio Carlos Ferreira de (Cacaso) Alegria da casa in No quero prosa Campinas, SP: Editora da Unicamp, Rio deJaneiro, RJ: Editora da UFRJ, 1997, p. 185.

    7 MICELI, Sergio Nosso hino debrasilidade in Jornal de Resenhas DiscursoEditorial / USP/ Unesp / UFMG / Folha deS. Paulo, 12/fev/2000, p. 2. Tal truncamentodo fluxo lrico pela introduo de cacos mimetizado perfeio pelo prprio Bandeirano poema Variaes sobre o nome de Mriode Andrade, em Mafu do Malungo (1948).

    8 Que vontade tive de me lanar de cabeapra baixo na psicologia quando segui as aulasdo Radecki! Mas cad foras para freqentaro laboratrio de Engenho de Dentro duranteo dia? Estudar psicologia em livros... nonmerci!, p. 381

    9 No que houvesse interditos ou seqestrosna exposio mtua, mas compromisso como essencial, o que afasta a concepo sen-timental da amizade como conhecimentointegral; como esclarece o prprio Mrio deAndrade em carta de 7/abr/1928, p. 386.

    10 Conforme declara o escritor no Inquritoliterrio para Editora Macaulay in Entrevistase depoimentos (org. Tel Porto Ancona Lopes) SP: T. A. Queiroz, 1983, pp. 39-41. Nacorrespondncia com Manuel Bandeira taltexto referido pgina 201, na nota 41.

    11 BRITO, Antnio Carlos Ferreira de(Cacaso) Alegria da casa in No queroprosa Campinas, SP: Editora daUnicamp, Rio de Janeiro, RJ: Editora daUFRJ, 1997, p. 194.

    12 Ver ANDRADE, Mrio O banquete SP: Duas Cidades, 1989.

    Macunama chegou e eu gostei dele. Eu estava de p atrs com oheri. Voc deve ter notado que quando voc me falava nele euno mostrava l muito entusiasmo. Me parecia que voc estavapreparando uma bruta caceteao em cima da gente. Me explico:voc me dizia que era uma histria escrita sobre lendas doAmazonas. Ora quase todas essas lendas me aporrinham, umdefeito meu, eu luto pra me emendar mas qual. Bem entendido noso todas que me aporrinham: so principalmente as que explicama origem das coisas. Porque que cai orvalho de manhzinha, el vem uma historiada comprida com uns nomes filhos da puta pelomeio. Sei da importncia enorme de tudo isso, mas qu que hei defazer, como dizia Macunama, me aporrinha. Agora as sacanagens,as histrias de bicho, etc., isso comigo. Comecei a ler e a gostar.Manuel Bandeira a Mrio de Andrade31 de outubro de 1927

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    So Paulo sedia ltimaEntre os dias 28 de abril e 7 de maio

    acontece a 16 Bienal Internacional

    do Livro de So Paulo. Veja nestas

    pginas a lista dos principais

    lanamentos confirmados pelas

    editoras at a data de fechamento

    dessa edio de CULT.HISTRIA

    Histria da histria do BrasilFrancisco IglsiasEditora Nova FronteiraO historiador Francisco Iglsias, morto no anopassado, analisa as tentativas de se escrever umahistria do Brasil, desde o perodo colonialat os dias de hoje, revelando os diferentesmomentos de nossa historiografia.

    Histria de PortugalOrg. de Jos TengarrinhaEditora UnespAutores portugueses e brasileiros contam ahistria de Portugal desde a Idade Mdia at aRevoluo dos Cravos.

    Atravs do BrasilOlavo Bilac/Manuel BonfimCompanhia das LetrasTextos do poeta parnasiano e do pensador dacultura brasileira organizados por MarisaLajolo.

    O novo sculoEric HobsbawnCompanhia das LetrasEnsaio do historiador britnico, autor de A eradas revolues.

    O universo, os deuses, oshomensJean-Pierre VernantCompanhia das Letras

    Obra do historiador francs que autor deestudos clssicos sobre a mitologia grega.

    POESIA

    O rumor do tempossip MandelstanEditora 34Rene contos do poeta sovitico, traduzidosdiretamente do russo por Paulo Bezerra.

    A poesia de VillonTraduo de Sebastio Uchoa LeiteEduspPoemas do genial escritor, bomio e fora-da-leifrancs do sculo XV, que sintetiza a passagemda Idade Mdia para era moderna.

    A aventura brasileira de BlaiseCendrarsOrg. de Alexandre Eullio e Augus-to CalilEduspDiferentes registros da experincia brasileira dopoeta franco-suo que teve intenso contato comos modernistas de 22.

    FICO

    O heri devolvidoMarcelo MirisolaEditora 34Contos virulentos e anrquicos de um dos maistalentosos escritores da literatura brasileira con-tempornea.

    ExtinoThomas BernhardCompanhia das LetrasRomance do escritor austraco, um dos maisimportantes autores do sculo XX.

    A trguaMrio BenedettiMartins FontesRomance do escritor e poeta uruguaio, um dosgrandes nomes da literatura latino-americanacontempornea.

    Negro dorso do tempoJavier MarasMartins FontesRomance do escritor espanhol, autor de Todasas almas.

    CRTICA LITERRIA

    Ao vencedor, as batatasRoberto SchwarzEditora 34/Duas CidadesReedio do clebre ensaio de Roberto Schwarzsobre Machado de Assis.

    1930, O modernismo e a crticaJoo Luiz LafetEditora 34/Duas CidadesReedio de ensaio sobre o pensamento crticode intelectuais como Alceu de Amoroso Lima,Agripino Grieco e Octavio de Farias acerca domodernismo.

    16 Bienal Internacionaldo Livro de So PauloData: 28 de abril a 7 de maioLocal: Expo Center Norte (r. JosBernardo Pinto, Vila Guilherme)Horrio: 10h s 22hIngressos: R$ 5,00 (adultos) e R$2,50 (estudantes); entrada francapara professores e funcionrios deescolas, menores de 12 anos emaiores de 65 anosInformaes: tel. 11/283-1866Site: www.bienaldolivrosp.com.br

  • abril/2000 - CULT 27

    Bienal do Livro do sculoO cactos e as runasDavi Arrigucci Jr.Editora 34/Duas CidadesReedio do livro em que o crtico analisapoemas de Murilo Mendes e Manuel Bandeira.

    Diferena e negao na poesiade Fernando PessoaJos GilRelume DumarO ensasta moambicano analisa a obra do poetaportugus luz das teorias de Gilles Deleuze.

    FILOSOFIA

    Gilles Deleuze: Uma vidafilosficaVrios autoresEditora 34Rene conferncias sobre o filsofo francs.

    Metafsica do amor emetafsica da morteArthur SchopenhauerMartins FontesObra do filsofo alemo, autor do clssico Omundo como vontade e representao.

    ENSAIO

    Pedagogia da indignaoPaulo FreireEditora UnespCartas e inditos do educador Paulo Freire.

    Nosso sculo XXI - Notas sobrearte, tcnica e poderesJanice CaiafaRelume DumarUma anlise da sociedade contempornea, desuas configuraes e grupamentos perpassadospelos meios de comunicao e pela interna-cionalizao das tcnicas de produo.

    ARTES PLSTICAS

    Conversas com PicassoBrassaCosac & NaifyAs memrias do fotgrafo relativas ao perodoem que trabalhou no ateli do pintor espanhol,

    freqentado por personalidades como Sartre,Camus, luard e Cocteau.

    O ateli de GiacomettiJean GenetCosac & NaifyO escritor e dramaturgo francs relembra suaamizade e convivncia com o escultor suo.

    Louise Bourgeois: Desconstruo dopai/Reconstruo do paiLouise BourgeoisCosac & NaifyEnsaios, entrevistas e cartas da artista francesaradicada em Nova York sobre sua arte e sobresua atormentada relao com o pai.

    TEATRO

    O cerejalA gaivotaAnton TchkovEduspOs dois livros trazem as peas teatrais que, aolado de As trs irms e Tio Vnia, constituem opilar da obra dramatrgica do escritor russo.

    CULT na BienalVisite o estande da revista CULT e da Lemos Editorialna Bienal Internacional do Livro de So Paulo: PavilhoVermelho, av. Capistrano de Abreu, estande 201.

    Homenagem a Joo CabralA editora Nova Fronteira homenagear o poeta Joo Cabral de MeloNeto, morto no ano passado, com o lanamento de uma edioespecial de Morte e vida severina e Outros poemas para vozes e deuma caixa contendo sua poesia completa em dois volumes Serial eantes e A educao pela pedra e depois , acompanhados de um CDem que o poeta recita seus poemas. A editora relana ainda Idiasfixas de Joo Cabral de Melo Neto (org. de Flix de Athayde), com"verbetes" sobre temas recorrentes na obra do escritor (Recife, Sevilha,poesia e crtica, concretismo etc.).

    MSICA

    A gerao romnticaCharles RosenEduspEnsaios de um dos maiores pesquisadores dalinguagem musical do Ocidente, que se dedicaaqui anlise da esttica do romantismo.

    MEMRIA

    O caminho de San GiovanniItalo CalvinoCompanhia das LetrasCinco relatos impregnados pela memriapessoal do escritor italiano, autor de As cidadesinvisveis.

    Cartas a Nelson AlgrenSimone de BeauvoirEditora Nova FronteiraAs cartas de Simone de Beauvoir ao escritornorte-americano Nelson Algren, com quem acompanheira de Sartre manteve um rela-cionamento paralelo durante quase vinte anos.

  • No foram poucos os leitores (e osprofessores presentes a algumas palestrasde que participei recentemente) que mepediram que desse mais detalhes sobre oAcordo Ortogrfico da Lngua Portu-guesa, assunto tratado na ltima ediode CULT.

    Como estamos no ms das festas peloDescobrimento, das quais certamenteparticiparo autoridades da comunidadelusfona, no difcil que volte baila aquesto de colocar em vigor o Acordo.

    Vale a pena repetir: o Acordo no vige,e talvez nunca venha a viger, j que noh sinal de que se concretize o artigo 3:O Acordo Ortogrfico da LnguaPortuguesa entrar em vigor em 1 dejaneiro de 1994, aps depositados os ins-trumentos de ratificao de todos os Es-tados junto do Governo da RepblicaPortuguesa. Os tais instrumentos de ra-tificao ainda no foram depositados. E1994 j vai longe.

    Vejamos algumas discrepncias doAcordo. Elimina-se (apenas, nas paroxto-nas) o acento (hoje obrigatrio) na basedos ditongos abertos ei e oi, que ocor-re em palavras como idia e herico.O motivo da eliminao? Existe oscilaoem muitos casos entre o fechamento e aabertura na sua articulao, diz o texto.Em outras palavras: nos vrios domniosda lngua portuguesa, no h uniformidadena pronncia de alguns desses ditongos.Em Portugal, l-se combio; no Brasil,combio. Sem a regra, o leitor fica livrepara pronunciar do jeito que lhe peculiar.

    At a tudo bem, no fosse estadeterminao: facultativo assinalar

    O ACORDO ORTOGR`FICO 2Pasquale Cipro Neto

    com acento agudo as formas verbais dopretrito perfeito do indicativo, do tipoammos, louvmos, para as distinguir dascorrespondentes formas do presente doindicativo (amamos, louvamos), j que otimbre da vogal tnica/tnica abertonaquele caso em certas variantes do por-tugus. Moral da histria: como nos v-rios domnios da lngua portuguesa hquem diga Ontem encontrmos sua pri-ma e h quem diga Ontem encontramossua prima, pode-se colocar acento quan-do se quiser indicar que a pronncia ado-tada a aberta.

    Quer dizer que no caso dos ditongos,como a pronncia oscila, no se