[livro ufsc] introducao a linguistica aplicada

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Introdução à Lingüística Aplicada Mary Elizabeth Cerutti-Rizzatti Rosana Denise Koerich Adriana Kuerten-Dellagnelo Florianópolis, 2008. Período

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Introducao a Linguistica Aplicada

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  • Introduo Lingstica Aplicada

    Mary Elizabeth Cerutti-RizzattiRosana Denise Koerich

    Adriana Kuerten-Dellagnelo

    Florianpolis, 2008.

    2 Perodo

  • Governo Federal

    Presidente da Repblica: Luiz Incio Lula da SilvaMinistro de Educao: Fernando HaddadSecretrio de Ensino a Distncia: Carlos Eduardo BielschowkyCoordenador Nacional da Universidade Aberta do Brasil: Celso Costa

    Universidade Federal de Santa Catarina

    Reitor: Alvaro Toubes PrataVice-reitor: Carlos Alberto Justo da Silva

    Secretrio de Educao a Distncia: Ccero BarbosaPr-reitora de Ensino de Graduao: Yara Maria Rauh Muller

    Departamento de Educao a Distncia: Araci Hack CatapanPr-reitora de Pesquisa e Extenso: Dbora Peres MenezesPr-reitor de Ps-Graduao: Jos Roberto OSheaPr-reitor de Desenvolvimento Humano e Social: Luiz Henrique

    Vieira da SilvaPr-reitor de Infra-Estrutura: Joo Batista FurtuosoPr-reitor de Assuntos Estudantis: Cludio Jos AmanteCentro de Cincias da Educao: Carlos Alberto Marques

    Curso de Licenciatura em Letras-Espanhol na Modalidade a Distncia

    Diretora Unidade de Ensino: Viviane HeberleChefe do Departamento: Rosana Denise KoerichCoordenador de Curso: Maria Jos Damiani CostaCoordenador de Tutoria: Vera Regina de A. VieiraCoordenao Pedaggica: LANTEC/CEDCoordenao de Ambiente Virtual: Hiperlab/CCE

    Projeto Grfico

    Coordenao: Luiz Salomo Ribas GomezEquipe: Gabriela Medved Vieira Pricila Cristina da SilvaAdaptao: Laura Martins Rodrigues

  • Equipe de Desenvolvimento de Materiais

    Laboratrio de Novas Tecnologias - LANTEC/CED

    Coordenao Geral: Andrea LapaCoordenao Pedaggica: Roseli Zen Cerny

    Material Impresso e Hipermdia

    Coordenao: Thiago Rocha OliveiraReviso: Laura Martins RodriguesDiagramao: Thiago Felipe VictorinoPreparao de Grficos: Thiago Felipe VictorinoReviso gramatical: Rosangela Santos de Souza

    Design Instrucional

    Coordenao: Isabella Benfica BarbosaDesigner Instrucional: Felipe Vieira Pacheco

    Copyright@2008, Universidade Federal de Santa CatarinaNenhuma parte deste material poder ser reproduzida, transmitida e gravada sem a prvia autorizao, por escrito, da Universidade Federal de Santa Catarina.

    Ficha catalogrfica

    Catalogao na fonte elaborada na DECTI da Biblioteca da UFSC

    C411iCerutti-Rizzatti, Mary Elizabeth

    Introduo lingustica aplicada / Mary Elizabeth Cerutti-Rizzatti, Rosana Denise Koerich, Adriana Kuerten-Dellagnelo. Florianpolis : LLE/CCE/UFSC, 2008.

    68 p.ISBN 978-85-61483-05-0

    1. Lingustica aplicada. 2. Concepo habitual. 3. Concepo emancipadora. I. Koerich, Rosana Denise. II. Kuerten-Dellagnelo, Adriana. III. Ttulo.

    CDU 51

  • Sumrio

    Apresentao ................................................... 7

    Unidade A ......................................................... 9

    Introduo ........................................................................11

    Trajetria da Lingstica Aplicada: Breve Panorama 1. Histrico ......................................................................13

    2. LA: Um Olhar Sobre a Concepo Habitual dessa Disciplina .....................................................................15

    Unidade B ........................................................ 31

    Introduo ........................................................................33

    Ressignificao do objeto de estudo: do ensino de 3. lnguas para a sociedade em geral ..............................35

    A busca dos fios da rede: interpenetrao das 4. disciplinas no campo da Lingstica Aplicada ..........39

    O caminho em construo5. ..........................................43

    Unidade C ........................................................ 47

    Introduo ........................................................................49

    6. Lngua(gem) e cognio .............................................51

    7. Lngua(gem) e Sociedade ...........................................57

    8. Lngua(gem) e Ensino de Lnguas ..............................61

  • Consideraes Finais..................................... 65

    Referncias ..................................................... 67

  • ApresentaoCaro(a) aluno(a):

    Apresentamos a voc o material impresso da disciplina Introduo

    Lingstica Aplicada, que faz parte do rol de disciplinas da segunda fase

    do CURSO de LICENCIATURA em LETRAS ESPANHOL na modalidade a

    distncia.

    Na qualidade de introdutria, a disciplina oferecer um panorama desta

    rea de conhecimento cientfico multi/interdisciplinar a Lingstica Aplica-

    da procurando responder a questes essenciais como o que Lingstica

    Aplicada?, ou seja, Como a disciplina definida, conceituada por diferen-

    tes autores?, Como se deu a evoluo histrica da insero da disciplina

    nos cursos de Letras no panorama internacional e nacional?, Que conte-

    dos compem a disciplina?, Que reas de pesquisa so desenvolvidas em

    seu domnio?, dentre outras.

    Para tanto, este material estrutura-se em trs unidades de estudo. Na Unida-

    de A, discutimos o surgimento da Lingstica Aplicada, procedendo con-

    textualizao histrica desse processo. Ainda nesta Unidade, descrevemos

    a concepo que chamamos de habitual em Lingstica Aplicada, conce-

    bendo-a como disciplina usuria de teorizaes da lingstica terica. Trata-

    se de uma abordagem na qual convidamos voc a refletir em que medida,

    de fato, a atividade do lingista aplicado corresponde a essa limitao.

    Na Unidade B, nosso foco de estudo a concepo emancipadora da Lings-

    tica Aplicada, uma proposta que toma essa rea de estudo sob uma perspec-

    tiva mais ampla, requerendo status terico para a ao do lingista aplicado

    e concebendo esse recorte cientfico como necessariamente imbricado a ou-

    tras cincias, em uma perspectiva inerentemente dialgica e interdisciplinar.

    Finalmente, na Unidade C, o tpico de discusso remete a estudos contempo-

    rneos que envolvem cognio, sociedade, cultura e histria e ensino de ln-

    gua estrangeira. Nessa Unidade, tematizamos estudos da Lingstica Aplicada

    de ampla repercusso na atividade acadmica atual, enfatizando pesquisas e

    publicaes que se ocupam de questes pertinentes a esse espectro.

  • Esperamos que o contedo deste livro-texto contribua para situar voc em

    nosso campo de estudos e possa efetivamente instigar sua curiosidade so-

    bre os temas aqui topicalizados. Entender a lngua(gem) como objeto social

    e discutir a forma como os usurios se valem dela em sua atividade intera-

    tiva , de alguma forma, entender melhor o ser humano, afinal, em nossa

    compreenso, as lnguas surgiram, existem e se modificam para estar a ser-

    vio da sociabilidade e da cognio da espcie humana como tal.

    Mary Elizabeth Cerutti-Rizzatti

    Rosana Denise Koerich

    Adriana Kuerten-Dellagnelo

  • Unidade ALA: surgimento e concepo habitual

    mihimihii

    mihimmihh

    mihim

    llengualengnggug

    llenguallen

    zzunge

    zungeunge

    tongueonguelll

    tonguengue

    hh

    tongueeegua

    languenyelvnyelvnnyye vihiihi

    nyeyelvg

    nyelv

    ingualingnnguguamihimmih

    e

    liningua

    linguamgelv

    jezikzik

    kjezikjezikkueu

    ikjezik

    arerrero

    ararerooo

    areroo

    lngualnguazungeg

    lnguaj ik

    lnguauaua

    lnnguagg

    j

    dilaadilailad

    iladilaeaa

    dilalatt

    jazykj kj kkaa

    jazykjajaz iitt

    emahemuauauajjjja

    hemaenyelvar

    tungatuua

    j

    tungagagg

    ngatungngaijj

    lengualenguaangn al

    j dilakkk

    lenguangug

    gngg

    lingvongvouauaa llll

    lingvolin vog

  • 10

  • 11

    Introduo

    Ao final desta Unidade, voc deve ser capaz de reconhecer o per-curso da Lingstica Aplicada no mundo e no Brasil, bem como con-ceituar este campo de estudos no mbito das discusses empreendidas neste livro, definindo seu escopo no quadro das cincias lingsticas e identificando as suas reas de atuao e de desenvolvimento de pesqui-sas. Para tanto, nossa disciplina desenha, ainda que em linhas gerais, a trajetria histrica dessa cincia, bem como identifica seu escopo, foca-lizando o processo de ensino e aprendizagem de lnguas.

    Importa a ressalva inicial de que entendemos, para as finalidades deste estudo, a Lingstica Aplicada como campo e no mais como dis-ciplina. Essa compreenso deve-se s atuais propostas de trans/inter/indisciplinaridade que marcam as discusses dos lingistas aplicados, como poderemos ver na Unidade B deste livro, na qual particulariza-mos nosso entendimento acerca das distines entre os trs prefixos que distinguem conceitualmente a disciplinaridade.

    De todo modo e sob quaisquer perspectivas, refletir sobre Lingstica Aplicada requer, preliminarmente, considerar que a lngua(gem) ocupa lugar central na vida humana; afinal, ela que nos permite a simbolizao do real, uma vez que viabiliza a formao de conceitos, a abstrao e a organizao, em nosso sistema cognitivo, da realidade externa a ns. A linguagem permite-nos, ainda e fundamentalmente, a interao social, condio para a vida em sociedade.

    Em razo, sobretudo, dessas funes, a lngua(gem) tem sido, his-toricamente, uma questo muito estudada pelo homem, no entanto, somente no final do sculo XIX e no incio do sculo XX com a con-tribuio de Ferdinand de Saussure , estabeleceu-se oficialmente a ci-ncia lingstica, tendo como objeto de estudo a lngua(gem). Aps essa fase inicial de consolidao da Lingstica como cincia, em meados do sculo XX, comearam a surgir estudos que partiam da abstrao do conhecimento lingstico para a aplicao desse conhecimento em situaes reais de uso de lngua(gem). Desse movimento emergiu a Lin-gstica Aplicada como recorte dos estudos lingsticos.

    Por sistema cognitivo, para as finalidades deste estudo, entendemos o aparato que o crebro suporta e as ativida-des que nele se realizam. A informao entra no crebro pela via dos sentidos, e o c-rebro a processa, por meio da atividade sinptica, ou seja, das conexes entre as clulas nervosas.

    Parecem evidentes, nesse contexto, dois dos movi-mentos caractersticos dos estudos lingsticos ao lon-go de sua histria: o vis formalista e o vis socio-logista, encaminhamentos terico-epistemolgicos amplamente discutidos na disciplina Introduo aos estudos da linguagem.

  • 12

    Esta Unidade trata do processo histrico de delineamento da Lin-gstica Aplicada e a instaurao desse campo de estudos sob as bases do que optamos chamar, para fins desta disciplina, de concepo habi-tual, construto que se desenhou a partir dos anos cinqenta. Na prxi-ma Unidade, como aludimos na apresentao, discutiremos a concepo emancipadora da Lingstica Aplicada, a qual tem ganhado espao em reflexes contemporneas e ainda se mostra em fase de legitimao.

  • 13

    Captulo 01Trajetria da Lingstica Aplicada: Breve Panorama Histrico

    Trajetria da Lingstica Aplicada: breve panorama histrico

    Um resgate histrico da Lingstica Aplicada remete Segunda Grande Guerra, cenrio a partir do qual essa disciplina emergiu, o que se deu por duas razes centrais: por um lado, o pioneirismo foi instigado por atos de guerra (destacando-se o atentado a Pearl Harbor, em 1941) que evidenciaram a necessidade premente de se estabelecer comunica-o eficaz entre falantes de diferentes lnguas, aliados de guerra ou no. Por outro, o surgimento dessa disciplina deveu-se ao reconhecimento da ineficincia do mtodo de ensino e aprendizagem de lngua estran-geira Gramtica e Traduo , vigente na poca, que tinha como obje-tivo o desenvolvimento da habilidade de leitura, pautando-se no estudo de regras gramaticais e na traduo de listas de palavras para possibilitar a interpretao de textos. Podemos inferir que os esforos dos lingis-tas no desbravamento de novos caminhos nesse contexto deram vazo a trabalhos que hoje se caracterizam como o alvorecer da Lingstica Aplicada na condio de campo de estudos cientficos.

    Dentre esses trabalhos, est o primeiro volume do peridico Lan-guage Learning: a Quarterly Journal of Applied Linguistics (Aprendizado de Lnguas: um peridico trimestral de Lingstica Aplicada), encabeado por Charles Fries e concebido como um veculo de difuso de informa-es sobre o trabalho desenvolvido no English Language Institute (Insti-tuto de Lngua Inglesa), fundado naquela Universidade no ano de 1941.

    importante reiterar que o surgimento e os primeiros passos da Lin-gstica Aplicada aconteceram no ambiente da Segunda Guerra e no per-odo imediatamente ps-guerra, motivados por necessidades urgentes no campo do ensino e do aprendizado de lnguas estrangeiras. Dessa forma, tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra, a Lingstica Aplicada foi concebida como a consolidao de um enfoque cientfico ao ensino de lnguas estrangeiras, isto , como um oferecimento de solues cientficas para os problemas relacionados ao ensino de lnguas, denominando-se, assim, em sua origem, Lingstica Aplicada ao Ensino de Lnguas.

    1

  • Unidade A

    14

    Com bases fortemente fundamentadas na psicologia behaviorista, que preconizava o estudo do comportamento humano incluindo a aprendizagem em situaes de condicionamento provocado por repe-tidas aes de estmulo-resposta, o ensino e a aprendizagem de lnguas estrangeiras era, ento, tratado como uma atividade de formao de h-bitos, processo do qual surgiu o mtodo udio-lingual.

    No final da dcada de 1950, a Lingstica Aplicada passou a coe-xistir com a teoria lingstica gerativo-transformacional de Chomsky,

    contra a qual se rebelou. Nesse movimento, consolidou seu interesse

    primordial pela resoluo de problemas lingsticos e desenhou-se

    como uma cincia focada na lngua(gem) em uso, sob vrios aspectos concebida como no-produtora de teorias, perfil que caracterizou esse

    recorte de estudos cientficos ao longo das ltimas dcadas.

  • LA: Um Olhar Sobre a Concepo Habitual dessa Disciplina

    15

    Captulo 02

    LA: um olhar sobre a concepo habitual dessa disciplina

    A Lingstica, desde as teorizaes de Saussure mencionadas na se-o anterior, tem a lngua(gem) como objeto de estudo, entendida como sistema estrutural e como conveno social partilhada pelos usurios de uma determinada comunidade lingstica historicamente concebida. Ao estabelecer a lngua(gem) como objeto da Lingstica, Saussure no teria focalizado a fala, por conceb-la heterclita, isto , de difcil siste-matizao para estudo. Essa dificuldade estaria, entre outras razes, no fato de que os falantes tendem a imprimir, no uso que fazem da lngua, caractersticas pessoais de articulao, entonao, nfase etc. Agregue-se a isso a considerao de que os contextos em que tais usos se processam revelam caractersticas nicas sob o ponto de vista cultural, histrico e social, sem mencionar implicaes de intencionalidade que tipificam a fala, como, por exemplo, o uso de ironias e de linguagem figurada.

    Essas questes j foram discutidas em nosso curso, e ns as reto-mamos aqui porque entendemos que e a herana saussuriana tem sus-citado, desde a origem do estruturalismo, um olhar mais terico para os estudos lingsticos, havendo interpretaes no sentido de que estudar a lngua(gem) em uso corresponderia a uma opo menos cientfica dos profissionais da rea. Em nossa compreenso, no foi esse o objetivo de Saussure ao conceber a fala como heterclita, tanto que o Curso de Lingstica Geral registra a considerao desse terico acerca da neces-sidade de haver uma lingstica da fala.

    Se a Lingstica Aplicada emergiu de preocupaes caractersticas da Segunda Grande Guerra, na mesma poca, como registramos no fi-nal da seo anterior, ganharam fora estudos de natureza formalista, a exemplo das teorizaes gerativistas de Noam Chomsky, s quais j fizemos referncia em estudos anteriores em nosso Curso. Chomsky, a exemplo de Saussure, terico que toma a lngua em sua abstrao e no no uso que dela fazem os falantes de uma determinada comunidade lingstica em situaes reais de fala.

    2

    Na disciplina Introduo aos Estudos da Linguagem, voc j teve contato com o pensamento saussuriano. L, procuramos deixar cla-ro que no foi Ferdinand de Saussure que escreveu o Curso de Lingstica Ge-ral; quem o fez foram ad-miradores de seu trabalho. Logo, temos optado por referenciar o nome da obra e no o nome de Saussure.

  • Unidade A

    16

    Estamos retomando esse tema aqui porque concordamos com Raja-gopalan (2005) no entendimento de que os estudos lingsticos, a partir da Segunda Grande Guerra, sobretudo nos Estados Unidos, receberam vulto-sos recursos de pesquisa endereados a teorizaes lingsticas, no exata-mente de natureza aplicada, mas de natureza essencialmente formalista.

    Resgatando consideraes feitas na disciplina Introduo aos estudos da linguagem, lembramos que a vertente formalista, em nossa rea de es-tudo, ocupa-se com discusses sistmicas da estruturao das lnguas e/ou com reflexes acerca da imanncia dessas mesmas lnguas, concebidas sob a perspectiva internalista da constituio cognitiva dos sujeitos. Ex-pliquemos isso melhor. As investigaes de natureza formal, via de regra, no focalizam as lnguas em uso; ao contrrio, tomam-nas como objeto de estudo em sua natureza abstrata, potencial, idealizada. O que interessa no so os falante de carne e osso, que interagem em situaes reais de comu-nicao, mas falantes ideais, tomados abstratamente, e lnguas concebidas como sistemas passveis de serem detalhados em sua constituio interna.

    Assim, se, na primeira metade do sculo XX, predominaram estudos formalistas com base em Saussure, na segunda metade desse mesmo s-culo, ganharam espao expressivo estudos formalistas de base gerativista, os quais j foram objeto de nossa ateno em disciplina anterior nes-te Curso. Logo, a Lingstica Aplicada surgiu e se consolidou na mesma poca em que o pensamento de Chomsky se tornava mundialmente co-nhecido e aps dcadas de herana saussuriana. Podemos, a partir disso, inferir dificuldades inerentes ao processo de consolidao da Lingstica Aplicada, cujo objeto era a lngua(gem) em uso, em situaes reais de in-terao, ou seja, o foco oposto dos estudos saussurianos e chomskyanos.

    Como voc pode observar, a Lingstica Aplicada delineia-se como campo de estudos de base funcionalista, opondo-se a abordagens de cunho formalista. Em nossa reflexo, ocupamo-nos de contra-por a Lingstica Aplicada ao pensamento formalista chomkyano, e no o fizemos na mesma medida em relao ao formalismo de Saussure por razes de cronologia histrica.

  • LA: Um Olhar Sobre a Concepo Habitual dessa Disciplina

    17

    Captulo 02

    Sobre o perodo ps-Segunda Grande Guerra, escreve Rajagopalan (2006, p. 152):

    [...] a forma como as pesquisas lingsticas foram conduzidas nessa poca foi determinada pelas expectativas criadas em torno de suas possveis aplicaes. Por um lado, as agncias de fomento comearam a investir pesadamente em pesquisas lingsticas, es-perando resultados palpveis, como mtodos sofisticados de que-bra de cdigos secretos, traduo automtica e instantnea etc. Por outro lado, os pesquisadores foram cada vez mais atrados pela possibilidade e agradar as agncias, cujos interesses espec-ficos demandavam certos tipos de pesquisa em detrimento das demais e, dessa forma, recebiam mais verbas.

    Ainda que houvesse interesse pelos estudos aplicados, esse contex-to teria favorecido a no-priorizao de pesquisas de cunho sociolgi-co e antropolgico em favor de pesquisas de natureza formal, entre as quais, e sobremaneira, os estudos gerativistas de Noam Chomsky. As abordagens formalistas aproximaram a Lingstica das cincias chama-das naturais e, no entendimento de muitos estudiosos, tornaram mais cientficas as pesquisas desse campo.

    A concepo de que os estudos de base formalista conferem Lin-gstica maior cientificidade, em novo entendimento, deve-se ao foco na imanncia da lngua(gem), relativizando, se no denegando, o uso social a que se presta. As teorizaes de base gerativista contriburam de modo substantivo para a legitimao dessa concepo.

    O gerativismo chomskyano uma escola de pensamento que, histo-ricamente, prope representaes quase matemticas para as estruturas das lnguas. Trata-se da busca dos universais lingsticos, caractersticas compartilhadas por todas as lnguas do mundo e que, em tese, consti-

    O surgimento da Lingstica Aplicada aconteceu em meados do sculo XX, quando as influncias do pensamento estruturalista saussuriano comearam a dar lugar emergncia e consolidao do formalismo gerativista de Chomsky.

  • Unidade A

    18

    tuiriam uma Gramtica Universal com a qual todos os seres humanos seriam dotados como espcie, em sua condio inata; ou seja, as pessoas nasceriam com um conjunto de conhecimentos lingsticos comuns a todos os idiomas existentes.

    Mais uma vez Rajagopalan (2006, p. 153):

    Cabe ressaltar aqui que o carter cientfico que a lingstica passou a reivindicar a partir da revoluo chomskyana fazia com que os lingistas da gerao anterior os seguidores da lingstica estrutural [herdeiros de Saussure] parecessem meros amadores brincando de fazer cincia. [...] a lingstica [sob o olhar dos seguidores de Chomsky] s podia reivindicar o status de verdadeira cincia se conseguisse atingir, alm da adequao observacional e descritiva, uma adequao explanatria [...] E a adequao explanatria significava, para ele, fincar a competncia lingstica em princpios ainda mais abstratos.

    Expliquemos isso melhor. O programa de investigao cientfica de Noam Chomsky comeou com a chamada Teoria Padro, um con-junto de regras de reescrita em formato de arborizaes: representaes esquemticas com desdobramentos da posio horizontal para a posi-o vertical, as quais mostravam todas as subdivises existentes em uma orao. Essas regras traduziriam a representao das sentenas possveis em uma lngua; eram compostas de ncleos nominais e ncleos verbais com todos os seus desdobramentos.

    Vejamos um exemplo simples dessas arborizaes.

    Uma orao, sob essa perspectiva, apresenta como constituintes bsicos um sintagma nominal (SN) e um sintagma verbal (SV). Observemos o que cada qual das siglas significa:

    O = orao

    SN = sintagma nominal

    SV = sintagma verbal

    Det = determinante

    N = nome

    V = verbo

  • LA: Um Olhar Sobre a Concepo Habitual dessa Disciplina

    19

    Captulo 02

    Nesta rvore, podemos visibilizar as relaes existentes entre os vocbulos que formam cada um dos sintagmas. As estruturas ora-cionais, porm, sob essa perspectiva terica, podem ser bem mais complexas, apresentando um maior nmero de elementos, como sintagmas preposicionais e sintagmas adjetivais.

    Tais conjuntos de regras, no entanto, com o tempo mostraram-se muito complexos e passaram a viabilizar representaes de estruturas inexistentes nas lnguas. Houve, ento necessidade de enxugamento progressivo das teorizaes. Da Teoria Padro, Chomsky passou para a Teoria Padro Estendida, uma tentativa de reduo do nmero de regras. Os problemas, no entanto, continuaram, e o enxugamento pros-seguiu at haver um abandono das regras de representao em favor da defesa da existncia de princpios gerais a todas as lnguas, inatos nos seres humanos, e parmetros especficos de cada idioma.

    Trata-se de implicaes da Teoria de Princpios e Parmetros, que apregoa, na essncia, que o ser humano nasceria com uma Gramtica Universal formada de princpios especificados, comuns a todas as lnguas (o fato, por exemplo, de todas as lnguas terem ncleos nominais e n-

    As meninas

    Det N

    liam os livros.

    V SN

    SN SV

    Det N

    O

  • Unidade A

    20

    cleos verbais), e parmetros subespecificados que precisariam ser mar-cados a partir das caractersticas de cada lngua (o fato, por exemplo, de, no portugus, podermos preencher ou no a posio de sujeito Joo saiu ou, apenas Saiu. o que no acontece no ingls.) (RAPOSO, 1992)

    Por que estamos fazendo esse registro? Para mostrar a voc que, a exemplo do que registramos sobre Rajagopalan (2006) em refern-cia anterior, o programa chomskyano tornou-se cada vez mais abstrato, mais matemtico, aproximando-se muito das teorizaes das cincias naturais, o que conferiu Lingstica status diferenciado dentre as ci-ncias humanas, afinal ela gozava de formalizaes exatas, precisas, de abstrao pura.

    Essas consideraes permitem-nos inferir que o fortalecimento da viso formalista nos estudos lingsticos, evidenciada, sobretudo, na se-gunda metade do sculo XX, com Noam Chomsky e seus seguidores, projetou a lingstica, no mundo inteiro, como um campo de estudos eminentemente formal, insistimos, quase matemtico. O grande suces-so do programa gerativista e a excelncia reconhecida do pensamento de Chomsky parecem ter sido fatores determinantes para a estigmati-zao de grande parte dos estudos lingsticos de base sociocultural e histrica, ou seja, os tericos que tratavam a lngua como representao cultural, no raro, viraram alvo de preconceito.

    Muitos pesquisadores, desde ento, passaram a conceber os estudos da lngua tomada como objeto social uma atividade menor de pesquisa. A expresso metafrica Isso perfumaria., usada para designar tais estudos de base social, tornou-se recorrente nos bastidores de muitas universidades, revelando, em grande medida, concepes de cincia de fundamentao positivista.

    Expliquemos isso melhor. O formalismo de Chomsky trazia con-sigo nveis de dificuldade bastante expressivos para que fosse compre-endido, isso porque se ancorava em representaes muito complexas, e poucos estudiosos nelas se embrenharam com tenacidade suficiente para domin-las de fato. Logo, o nvel de dificuldade e de abstrao pas-sou a ser concebido por muitos como sinnimo de cincia, porque im-plicava verificao, neutralidade e quase uma assepsia, um isolamento

  • LA: Um Olhar Sobre a Concepo Habitual dessa Disciplina

    21

    Captulo 02

    rigoroso de fatores externos como sociedade, cultura e histria, variveis que, nesse viso, comprometeriam a exatido das teorizaes. a partir dessa configurao que a Lingstica, como comentamos anteriormen-te, aproximou-se muito das chamadas cincias naturais.

    Nesse contexto, dada a prevalncia e o status da abordagem forma-lista, a Lingstica Aplicada, um estudo ainda em busca de legitimao, encontrou srias dificuldades para se colocar como campo produtor de teorias, sendo relegada aplicao de teorizaes abstratas e formais; mais uma vez, na viso de grupos de determinados estudiosos, um cam-po menor. Cabia Lingstica Aplicada tomar emprestadas, da lings-tica formal, teorias abstratas prestigiadas para, com base nelas, propor alternativas de soluo a questes prticas de uso da lngua(gem). Como conseqncia, o trabalho dos lingistas aplicados ganhou conotaes de atividade menos complexa e, possivelmente por isso, menos cientfica.

    Definies clssicas do conta dessa dimenso. Cabia Lings-tica Aplicada, sob esse olhar, enderear o conhecimento lingstico a algum objeto, no constituindo, ela mesma, um estudo terico em si, mas to-somente a colocao em uso de teorias previamente dadas. As-sim, sob essa perspectiva, no era um campo de estudos potencialmente capaz de criar teorias; cabia-lhe apenas dar aplicabilidade a teorias pro-duzidas nos estudos formalistas.

    O lingista aplicado, desse modo, seria um consumidor ou um usu-rio de teorias; estaria focado no estudo da lngua e da lingstica no que concerne a problemas prticos, tais como lexicografia, traduo, pato-logias da fala, ensino de lnguas, entre outros enfoques. (KUMARAVA-DIVELU, 2006). Widdowson (1996, p. 125), nessa linha de raciocnio, definiu a Lingstica Aplicada como [...] uma rea de investigao que procura estabelecer a relevncia de estudos tericos da linguagem para problemas cotidianos nos quais a linguagem est implcita.

    Nessa discusso, alguns tericos avanaram, considerando a Lings-tica Aplicada como [...] investigao terica e emprica de problemas reais nos quais a linguagem uma questo central [...] (BRUMFIT, 1995, p. 27, grifo nosso); ou seja, no descartaram a ao terica do lingista aplicado, mas, mesmo assim, em nosso entendimento, tomaram-no especialmente

  • Unidade A

    22

    na condio de usurio de teorias produzidas na lingstica terica, nesse caso, a lingstica formal, em franca expanso e evidncia no mundo intei-ro na segunda metade do sculo XX, como j insistentemente aludimos.

    Esse olhar que chamamos de habitual, remete, pois, Lingstica Aplicada concebida como estudo que toma formalizaes tericas j conhecidas e discute em que medida tais formalizaes podem contri-buir para a compreenso de fenmenos lingsticos situados na socie-dade. Nessa perspectiva, a escola tem sido o destinatrio mais freqente das pesquisas em Lingstica Aplicada, j que os processos de ensino e aprendizagem de lngua materna ou de lnguas estrangeiras envolvem fundamentalmente a lngua(gem) em uso.

    Sobre isso, Signorini (1998) argumenta que a LA, nessa fase aplica-cionista, tratava das questes lingsticas de maneira fragmentada, prio-rizando o enfoque em problemas de natureza terico-disciplinar. Em nome da integridade do aparato conceitual e terico-metodolgico, ou seja, temendo violar as proposies dos lingistas tericos, o lingista aplicado, no raro, simplificava a complexidade do objeto de investiga-o. Para fazer isso, procurava desemaranhar as linhas da rede, purificar um objeto de natureza hbrida, isto , limp-lo das tantas variveis que naturalmente o compem; afinal, a condio sociocultural e historica-mente complexa da lngua em uso no parece passvel de estudo sob as lentes de teorias puristas.

    Na dcada de 1980, por exemplo, no Brasil, emergiram, muito for-temente, consideraes sobre a necessidade de rever postulados de en-sino e aprendizagem da lngua focados nas normalizaes gramaticais. Luft (1986), em uma obra j clssica chamada Lngua e liberdade, pu-blicada por LP&M Editores, aludiu a teorizaes formalistas da poca para propor uma reviso radical na abordagem gramatical normativa que vigorava na concepo escolarizante de lngua de ento; isto , bus-cou referenciais na teoria formalista para contrapor-se ao modo como a escola ensinava lngua materna.

    A obra foi objeto de ateno em grande parte das escolas do pas, e a tese que veiculava ganhou, de imediato, a adeso de inmeros professores de lngua materna no Brasil inteiro: importava mudar a prtica de ensino de lngua portuguesa, e isso se justificava, em boa parte, luz de teoriza-

  • LA: Um Olhar Sobre a Concepo Habitual dessa Disciplina

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    Captulo 02

    es formalistas da poca. No caso especfico dessa obra de Luft, um dos principais eixos de argumentao era a distino entre gramtica interna-lizada (que remetia ao conceito de Gramtica Universal, de Chomsky) e gramtica normativa, entendida como no-cientfica e excludente.

    Vrios estudiosos, sobretudo nas dcadas finais do sculo passado, debruaram-se sobre a discusso da necessidade de rever princpios nor-teadores da atividade escolar em lngua materna, movidos, tais estudio-sos, por teorizaes lingsticas de carter mais formal. Estudos sobre leitura, por exemplo, fundamentaram-se em pesquisas da Psicolingsti-ca de abordagem internalista, que descrevia modelos de processamento cognitivo como a informao entra no crebro, e o que o crebro faz com ela , particularizando o funcionamento da memria, da per-cepo e de outros itens.

    Angela Kleiman, no livro Oficina de leitura, publicado pela editora Pontes e amplamente conhecido por professores da rea de Letras, dedi-ca todo um captulo para descrever o processamento cognitivo da leitu-ra sob essa perspectiva internalista inferncias sobre o funcionamento do crebro no ato de ler.

    Discusses na rea da alfabetizao, por exemplo, tambm se valeram, e ainda o fazem, de teorias dessa mesma natureza para chamar a ateno acerca da necessidade de desenvolvimento da conscincia fonmica na aprendizagem da leitura e da escrita. Psicolingistas aplicados, como Marce-lino Poerch e Leonor Scliar-Cabral tm publicaes diversas sobre o tema.

    Nas ltimas dcadas do sculo XX, pesquisas na rea da Sociolin-gstica e na rea das teorias de texto e de discurso comearam a focali-zar de modo mais efetivo a lngua em uso e as implicaes da atividade enunciativa e interacional; ou seja, passaram a dar destaque s aes dis-cursivas em contextos especficos, preocupando-se com as implicaes de sentido depreensveis dessa abordagem. O foco desses estudos passou a ser os sujeitos interactantes, isto , os seres humanos em situaes reais de fala.

    Nesse perodo, de modo mais evidente, disciplinas dos estudos lin-gsticos como a Sociolingstica, a Lingstica Textual, a Anlise do Discurso, a Anlise da Conversa, a Etnolingstica, entre outras, poten-

    Por perspectiva internalista, compreendemos os estudos que focalizam o funciona-mento da mente/crebro, entendendo as relaes sociais, no em sua complexi-dade, mas to-somente como input (entrada de informa-es) para o processamento da informao no sistema cognitivo.

  • Unidade A

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    cializaram o estudo de dimenses sociais, culturais e histricas do uso da lngua. Essas disciplinas, tendo em comum a concepo de lngua como objeto social, redundaram em importantes teorizaes cujo impacto se evidenciou em estudos aplicados. Essa repercusso incidiu sobre a con-cepo habitual de Lingstica Aplicada, contribuindo para modific-la. A recorrncia de publicaes nessas reas trouxe novos olhares sobre a condio de usuria de teorias atribuda at ento Lingstica Aplicada.

    Discutamos alguns exemplos que ilustram esse processo. Magda Soares, na obra Linguagem e escola, uma publicao bastante conhecida da editora tica, livro de 1986, valeu-se de teorizaes sociolingsticas de William Labov para defender a necessidade de respeito, por parte da escola, variedade de fala dos alunos.

    Angela Kleiman, autora j citada anteriormente, em um livro, por ela organizado e bastante referenciado, cujo ttulo Os significados do letramento, publicao da editora Mercado das Letras, pautou-se, nessa obra, em estudos de natureza etnogrfica na rea da lngua, realizados por pesquisadores como Heath (1992) e Street (1984). Dentre os objeti-vos de Kleiman, infere-se o intuito de chamar a ateno dos educadores para as limitaes de um modelo de letramento centrado em uma con-cepo erudita e excludente da lngua escrita. A diferena entre essas abordagens e as abordagens formalistas e internalistas , sobretudo, a adoo de um olhar voltado para a lngua como objeto social e, dife-rentemente do que se verificava at ento, a adoo de uma postura que requer status de teorizao, uma Lingstica Aplicada que comeava a se colocar como produtora de teoria.

    O conceito de letramento objeto de importantes discusses na modernidade, entendido como fenmeno que focaliza os usos so-ciais da escrita nas diferentes sociedades, quer sejam mais grafo-cntricas ou menos grafocntricas; isto , mais centradas na escrita (a exemplo das grandes metrpoles) ou menos centradas na escri-ta (a exemplo de pequenos vilarejos). Assim, trata-se de um novo olhar sobre os usos da escrita, no mais tomando tais usos como sinnimos de cultura elevada ou erudio, apenas, mas conce-bendo-os em sua funcionalidade social.

  • LA: Um Olhar Sobre a Concepo Habitual dessa Disciplina

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    Captulo 02

    Esse novo olhar considera de que modo sujeitos alfabetizados, analfabetos, mais escolarizados ou menos escolarizados lidam com a escrita em seu dia-a-dia.

    Expliquemos melhor nosso entendimento desse processo. O amplo espectro de publicaes tericas na rea do texto e do discurso e no que diz respeito variao lingstica, realidade dialetal e s questes ideo-lgicas subjacentes valorizao desses dialetos e variedades viabilizou pesquisas e estudos sobre a realidade escolar de ensino da lngua. Esse contexto favoreceu a socializao de importantes contribuies na rea e significou um avano rumo valorizao dos estudos da lngua toma-da como objeto social e no apenas como objeto formal.

    Nomes como Joo Wanderley Geraldi, Srio Possenti, Mrio Perini e Luiz Percival Leme Britto, entre tantos outros expoentes, so emble-mticos na produo de estudos que suscitaram profundas reflexes na atividade pedaggica com lngua materna no Brasil, reivindicando mu-danas na configurao historicamente dada ao ensino de portugus. Geraldi (2001, p. 2) escreve: Nas dcadas de 80 e 90, o ensino de lngua materna tornou-se um tema constante de pesquisas, congressos, deba-tes, cursos, seminrios e, obviamente de muitos livros. Esses estudos, no entanto, se tomados sob a concepo habitual de Lingstica Aplica-da, no produziram teorizaes; usaram teorias lingsticas para tratar de questes do cotidiano. Fica nosso questionamento acerca da verdade dessa ausncia de teorizaes cientficas, ou seja, no haveria, de fato, produo terica nesses estudos? A resposta seguramente depende do que entendemos por cincia.

    Duas obras de Geraldi tm tido impacto significativo na escola: Portos de passagem, uma publicao da editora Martins Fontes, e o livro O texto na sala de aula, obra organizada por ele e reeditada mais recentemente pela tica. Perini, por sua vez, destaca-se, nesse contexto, por uma publicao da editora tica intitulada Sofrendo a gramtica, na qual discute o ensino da norma padro da lngua portuguesa.

    No faremos distino, para fins desta disciplina introdu-tria, entre texto e discurso, concebendo-os como a co-locao da lngua em uso. Outras disciplinas de nosso curso trabalharo essa ques-to de modo mais rigoroso.

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    J Possenti tem sido referenciado na escola em razo especial-mente da obra Por que (no) ensinar gramtica, uma publicao da editora Mercado das Letras. Leme Britto, enfim, amplamente conhecido na rea da educao, principalmente em razo do livro A sombra do caos, publicao tambm da editora Mercado das Le-tras. No informamos, aqui, o ano dessas publicaes em razo de suas recorrentes reedies. A maior parte delas data da segunda metade da dcada de 1980 e incio da dcada de 1990.

    Mais recentemente, estudiosos como Marcos Bagno e Stella Maris Bortoni-Ricardo tm imprimido um ritmo de discusses, em boa me-dida poltico, advogando em favor do respeito variao lingstica e do (re)conhecimento desse fenmeno na atividade escolar. A atuao desses lingistas revela preocupao em dialogar com o processo educa-cional de modo a repercutir em favor de uma ao educativa ancorada em teorias lingsticas.

    Bagno tem duas publicaes muito conhecidas e divulgadas nas escolas: Preconceito lingstico, obra com vrias reedies pela edi-tora Loyola, e A lngua de Eullia, igualmente reeditada vrias ve-zes pela editora Contexto. Bortoni-Ricardo, por sua vez, tem tido penetrao nas escolas com a obra Educao em lngua materna, uma publicao da editora Parbola.

    Outro recorte que merece nossa ateno nesta discusso so os es-tudos de gneros textuais / discursivos. Muitos lingistas, hoje, vm se dedicando a pesquisas sobre essa questo. O fundamento da maioria deles so teorizaes de Bakhtin, filsofo da linguagem que estudamos na disciplina Introduo aos estudos da linguagem. As consideraes de Bakhtin sobre gneros chegaram ao Brasil na segunda metade do sculo XX e, desde l, vm inspirando um conjunto expressivo de investigaes lingstico-aplicadas, incluindo as formas como os gneros textuais ou discursivos so focalizados na escola. Mais uma vez, trata-se de uma ao da Lingstica Aplicada que toma teorizaes dos estudos lingsti-cos para explicar ou descrever o cotidiano.

    No faremos, para fins desta disciplina, distines tericas

    entre gneros textuais e gne-ros discursivos, conceitos que

    constituem foco de ateno e polmicas entre os estudiosos

    do tema.

  • LA: Um Olhar Sobre a Concepo Habitual dessa Disciplina

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    Captulo 02

    Sobre gneros, Bakhtin (2003 [1979], p. 261) escreve:

    Todos os diversos campos da atividade humana esto ligados ao uso da linguagem. Compreende-se perfeitamente que o carter e as formas desse uso sejam to multiformes quanto os campos da atividade humana [...] O emprego da lngua efetua-se em forma de enunciados (orais ou escritos) concretos e nicos, proferidos pelos integrantes deste ou daquele campo da atividade huma-na. Esses enunciados refletem as condies especficas de cada referido campo no s por seu contedo (temtico) e pelo esti-lo da linguagem [...] mas, acima de tudo, por sua construo composicional.

    O autor prossegue em sua reflexo, assinalando que o contedo, o estilo e a construo composicional esto vinculados, de modo insepa-rvel, ao todo do enunciado e atendem a especificidades de um deter-minando campo do uso da linguagem. Evidentemente, cada enunciado particular individual, mas cada campo de utilizao da lngua elabora seus tipos relativamente estveis de enunciados, os quais denominamos gneros do discurso. (BAKHTIN, 2003 [1979], p. 262, grifos do autor).

    O autor chama ateno para a riqueza e a diversidade dos gneros do discurso, o que decorre das infinitas possibilidades do uso da lin-guagem na atividade humana. Destaca, ainda, a significativa heteroge-neidade desses gneros, tanto orais como escritos, mencionando desde os dilogos que ocorrem no dia-a-dia (variveis em funo do tema, da situao e dos participantes) at documentos oficiais, manifestaes cientficas e literrias. Reconhecendo essa significativa heterogeneidade, o autor adverte: No se deve, de modo algum, minimizar a extrema heterogeneidade dos gneros discursivos e a dificuldade da advinda de definir a natureza geral do enunciado. (p. 263)

    Mais um campo de pesquisas nessa rea que merece registro a chamada Lingstica de corpus, um ramo dos estudos lingsticos que se ocupa de coletar e explorar corpora, ou seja, [...] conjuntos de da-dos lingsticos textuais, coletados criteriosamente com o propsito de servirem para a pesquisa de uma lngua ou variedade lingstica. [...] (SARDINHA, 2000, p. 1) Nos estudos da lingstica de corpus, coletam-se dados de lngua em uso e, a partir desse olhar na prtica interacional,

  • Unidade A

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    so feitas teorizaes; logo, a teoria posterior prtica, o que coloca as teorizaes na dependncia da anlise dos usos da lngua.

    Corpora uma expresso latina, plural de corpus. Corpus um con-junto de dados coletados para finalidades de anlise. Determinadas ver-tentes da Lingstica Funcional, por exemplo, realizam pesquisas que coletam informaes em peridicos da grande mdia com o intuito de mapear novos usos para itens lexicais da lngua, como substantivos, ad-jetivos, verbos e advrbios. Esses processos requerem grande nmero de dados que legitimem concluses acerca de tais novos usos. Tomemos, guisa de exemplo, a palavra horrores trata-se de um substantivo pluralizado que vem assumindo, de modo efetivo, a funo de advrbio de intensidade, em enunciados do tipo Comi horrores! Mapear essas mudanas requer detectar grande nmero de incidncia de tais usos no cotidiano dos falantes, da a necessidade de organizao de corporas.

    Escreve Rajagopalan (2006, p. 160):

    O que torna a proposta da lingstica de corpus particularmente interessante neste sentido que, antes de qualquer outra coisa, ela questiona um dos postulados da lingstica tradicional (te-rica), com base em uma perspectiva de ordem eminentemente prtica [...]. O surgimento da lingstica de corpus evidncia de que o progresso nesse campo de atuao relativa linguagem d-se em oposio postura de promover a teoria sempre em primeiro lugar.

    Importa particularizar, aqui, as expressivas mudanas pelas quais vm passando a Lingstica Textual nos ltimos anos, possivelmente uma das reas mais reveladoras da atividade do lingista aplicado. Conside-rando o significativo crescimento das neurocincias, a Lingstica Textu-al no Brasil vem evidenciando uma busca crescentemente mais visvel de interface com as cincias cognitivas estudos que focalizam o funciona-mento do crebro no processo de apropriao de conhecimento.

    A dcada de 1990 considerada por muitos como a dcada do crebro em razo do expressivo aumento de estudos acerca da ativi-dade cerebral. Exames de neuroimagem gradativamente mais refinados e mais acessveis contriburam e tm contribudo para a otimizao de

  • LA: Um Olhar Sobre a Concepo Habitual dessa Disciplina

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    Captulo 02

    estudos nesse campo. Diante do novo quadro que vem se desenhando desde l, atividades acadmicas relacionadas com o processo de cons-truo de sentidos na interao mediada por textos vm perseguindo maior rigor explicativo com base nas neurocincias.

    Essa busca de aproximao, ainda que dificultada pelas restries de equipamentos para programas de pesquisa em cincias humanas, traz consigo o intuito de estudar os processos de construo de sentidos por ocasio da textualizao luz da atividade neuronial, ou seja, conside-rando as conexes entre as clulas nervosas implicadas no processo de aprendizagem. Ingedore Villaa Koch, um dos maiores expoentes da Lin-gstica Textual no Brasil, em escritos recentes, tem advogado em favor dessa aproximao, fazendo aluses explcitas a vertentes de estudo que consideram o funcionamento biolgico e fisiolgico do crebro humano.

    Parece-nos difcil, enfim, dizer que o conjunto desses estudos, quer estejam eles situados na rea da Sociolingstica, da Psicolingstica, da Anlise do Discurso entre outras disciplinas, no implique produo de teoria, limitando-se aplicao e uso de teorizaes da lingstica te-rica. Como podemos observar, o que est em discusso, na concepo que aqui chamamos de habitual da Lingstica Aplicada o seu status terico e a sua autonomia. Da forma como vem sendo tradicionalmen-te concebida, essa rea dos estudos lingsticos tem sido tomada como aplicadora de teorias da Lingstica como cincia, o que a destituiria da condio de produtora de teorias e, entendemos, da prpria condio de cincia. Outra caracterstica ser vista como disciplina derivada da lingstica terica e no como um campo autnomo de estudos.

    Essa concepo habitual vem sendo objeto de questionamentos substantivos de estudiosos da rea, sobretudo nos ltimos anos. Tais questionamentos tm subjacente a reivindicao de uma transformao no modo como a Lingstica Aplicada concebida no meio em que se insere. Reivindica-se uma mudana da condio de rea derivante da lingstica terica para a condio de rea autnoma, produtora de teo-ria e de conhecimentos. Esse o tpico de discusso na prxima Unida-de deste livro.

  • Unidade BLA: ressignificao do objeto de estudo e interdisciplinaridade

  • 33

    Introduo

    Vimos, na Unidade anterior, que a Lingstica Aplicada, na segun-da metade do sculo XX, foi concebida como usuria de construtos da lingstica terica. Sob essa perspectiva, estavam bem delimitados os territrios das diferentes disciplinas: a Lingstica Textual, a Psicolin-gstica Aplicada, a Lingstica de Corpus etc., cada qual procedendo, a seu modo, a tais aplicaes tericas. Essa concepo aplicacionista e fracionada vem sendo objeto de discusso entre os lingistas aplicados da modernidade. Parece voz corrente a busca pela ressignificao do ob-jeto de estudo da Lingstica Aplicada, tanto quanto, em boa medida, a busca pela ruptura das fronteiras disciplinares bem marcadas at pouco tempo nesse campo.

  • 35

    Captulo 03Ressignificao do Objeto de Estudo: do Ensino de Lnguas para a Sociedade em Geral

    Ressignificao do objeto de estudo: do ensino de lnguas para a sociedade em geral

    Discutir a nova postura da Lingstica Aplicada implica considerar reflexes que vm sendo empreendidas sobre prticas de investigao nesse campo, a exemplo do que propem Signorini e Cavalcanti (1998). Tais reflexes tm potencializado nova compreenso sobre a atividade do lingista aplicado. Segundo Rojo (2007), isso se d especialmente em razo da delimitao do interesse primrio de pesquisa em Lingstica Aplicada, agora um universo que transcende o ensino de lnguas; da discusso dos tipos de objetos de pesquisa selecionados, agora na socie-dade em geral; e do debate acerca do carter inter ou transdisciplinar das investigaes, antes, disciplinares.

    Para essa pesquisadora, [...] parece haver um consenso entre os diferentes autores sobre as duas primeiras questes o interesse prim-rio de pesquisa e os objetos selecionados para estudo , mas um conflito de posies e definies no que tange ao carter inter, multi, pluri, trans ou indisciplinar das pesquisas. (ROJO, 2007, p.1761, grifos nossos) Em nosso entendimento, esse conflito traz consigo implicaes que tm a ver com a forma como a Lingstica Aplicada foi concebida ao longo da segunda metade do sculo XX. Tem relaes, ainda, com o fato de a condio de campo interdisciplinar suscitar polmicas em torno das fronteiras e dos contornos do que seja cincia, tomada, na maioria das vezes, sob um olhar positivista segundo o qual, sob vrios aspectos, cada cincia deve ater-se a seu objeto de estudo e a seu mtodo de aborda-gem, ambos devidamente delimitados e especificados.

    Para Rojo (2007), a atividade do lingista aplicado na ltima dcada tem convergido com o interesse em entender, explicar ou solucionar proble-mas, objetivando a criao ou o aprimoramento de solues para tais pro-blemas, tomados em sua contextualizao, em sua relevncia social, o que confere s solues condio de conhecimento til a participantes sociais efetivos. Assim, [...] a orientao para o problema como abordagem domi-nante na LA substituiu gradualmente a orientao para a teoria. (p. 1761)

    3

    Discusses sobre interdisci-plinaridade constituem um tema complexo, na maioria das vezes, concebido como tangente apenas ao cam-po da educao. Trata-se, porm, de uma reflexo que ganhou terreno am-plo, sobremodo entre as cincias humanas e sociais, especialmente a partir da segunda metade do sculo XX, evocando formas de ver, sentir e estar o mundo. Um olhar interdisciplinar supe que a anlise de um acontecimento, de um fe-nmeno especfico, tem di-menses sociais, naturais, histricas e culturais. Esse olhar implica uma compre-enso do mundo de forma holstica, em sua rede in-finita de relaes, em sua complexidade.

  • Unidade B

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    Desse modo, o embate clssico entre a produo de teorias e o uso de teorias, a que fizemos referncia na Unidade anterior, d lugar prio-rizao de problemas para os quais o lingista aplicado prope-se a bus-car solues. A questo : no se trata de qualquer problema definido teoricamente mas de problemas com relevncia social suficiente para exigirem respostas tericas que tragam ganhos a prticas sociais e a seus participantes, no sentido de uma melhor qualidade de vida, num senti-do ecolgico (ROJO, 2006, p. 258).

    Inferimos que essa postura implicita um posicionamento pol-tico, uma concepo de conhecimento que revela preocupao com a repercusso no entorno, isto , uma produo de conhecimento que, de algum modo, contribua para qualificar a vida humana. Moita-Lopes (1998 apud ROJO, 2007), nesse sentido, atenta para a responsabilidade social da pesquisa, argumentando que tal responsabilidade estende-se desde o recorte do problema o que merece, de fato, ser estudado at a prpria estrutura da investigao. Considerar a atividade cientfica sob essa perspectiva implica, assim, promover mudanas na seleo e no enfoque dos objetos a serem investigados.

    Escreve Rojo (2007, p. 1762):

    Trata-se, ento, de se estudar a lngua real, o uso situado da lin-guagem, os enunciados e discursos, as prticas de linguagem em contextos especficos, buscando no romper esse frgil fio que ga-rante a viso da rede, da trama, da multiplicidade, da complexi-dade dos objetos-sujeitos em suas prticas.

    Como podemos observar, a redefinio do objeto de estudo da Lin-gstica Aplicada foge, em grande medida, das relaes quase biunvo-cas que estabelecia com o ensino de lnguas no incio de seu processo de instaurao como disciplina de estudo. Agora, esse campo do conheci-mento extrapola o universo escolar para ganhar espao na sociedade em seu desenho mais amplo, focalizando os usos da lngua nas diferentes instncias, nos diferentes contextos, nas mais variadas interaes e nos problemas suscitados nesses universos mltiplos.

    Ao final de suas consideraes, na citao anterior, Rojo (2007) faz aluso a inter-relaes entre diferentes disciplinas, componente dessa

  • Ressignificao do Objeto de Estudo: do Ensino de Lnguas para a Sociedade em Geral

    37

    Captulo 03

    nova viso da Lingstica Aplicada, mas, diferentemente do que se d com a redefinio do objeto de estudo, tais inter-relaes so motivo de embate, como veremos na seo a seguir.

  • 39

    Captulo 04A Busca dos Fios da Rede: Interpenetrao das Disciplinas no Campo da Lingstica Aplicada

    A busca dos fios da rede: interpenetrao das disciplinas no campo da Lingstica Aplicada

    Signorini (1998, p. 101), a exemplo de outros estudiosos da rea, advoga em favor da ruptura de fronteiras em Lingstica Aplicada no que diz respeito a uma viso disciplinar. A autora critica a tradio analtica que compartimenta o conhecimento e que zela para que no haja interpenetraes cada cincia deve manter-se nos limites de seu objeto de conhecimento e de seu mtodo. Segundo a autora, preciso contemplar [...] a mistura que tece o mundo, ou tecido inteirio das naturezas-culturas, isto os elementos hbridos em que se entrelaam o mundo dos objetos e o mundo dos sujeitos, agenciados (ou envolvidos) numa mesma trama ou rede atravs de um fio frgil [...].

    E o que isso significa de fato? Em nosso entendimento, a Lingstica Aplicada, na contemporaneidade, prope reviso de seu objeto de estudo, distinguindo-se da concepo habitual a que nos referimos na Unidade anterior, para assumir uma postura de dilogo com as diferentes cincias na investigao de problemas social, cultural e historicamente relevantes.

    Essa ressignificao exige que o estudo da lngua em uso transcen-da fronteiras disciplinares para promover o imbricamento entre diversas reas do conhecimento. Desse modo, a Lingstica Aplicada transita da condio de mais uma disciplina dos estudos lingsticos para a condio de campo de conhecimento, que se erige em uma perspectiva inter/multi/pluri/trans disciplinar e no bojo da qual vrias disciplinas se entretecem, se enovelam.

    Com relao a tal trama, esse novo olhar sobre a Lingstica Apli-cada suscita polmica entre os prprios lingistas aplicados no que diz respeito natureza do dilogo entre as diferentes disciplinas.

    4

  • Unidade B

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    Moita-Lopes (1998 apud ROJO, 2t007, p. 1763) escreve:

    [...] no se pode fazer LA transdisciplinarmente. Pode-se, con-tudo, como lingista aplicado, atuar em grupos de pesquisa de natureza transdisciplinar que esto estudando um problema em um contexto de aplicao especfico para cuja compreenso as intravises do lingista aplicado possam ser teis.

    Mas o que significa, de fato, a transdisciplinaridade que Moita-Lo-pes nega?

    Celani (1998 apud ROJO, 2007, p. 1763) escreve:

    Transdisciplinaridade envolve mais do que a justaposio de ra-mos do saber. Envolve a coexistncia em um estado de interao dinmica, o que Portella (1993) chamou de esferas de coabita-o. [...] Novos espaos de conhecimento so gerados, passando-se, assim, da interao das disciplinas interao dos conceitos e, da, interao das metodologias.

    Trata-se, enfim, da ruptura de limites, da interpenetrao entre as diferentes disciplinas de estudo, o que provoca a construo de novos conceitos, agora comuns a todas ou a parte dessas mesmas disciplinas. O enfoque transdisciplinar no se limita a emprstimos conceituais en-tre as disciplinas, mas a construes conceituais conjuntas. D-se uma simbiose, um processo de unio, de perda de oposies, e no apenas uma interface, uma justaposio.

    Nessa nova fase da Lingstica Aplicada, parece no haver embates quanto ressignificao do objeto: o foco, agora, no se limita ao ensino de lnguas, estende-se a problemas social, cultural e historicamente rele-vantes, para os quais o lingista aplicado busca solues. Seguramente, porm, h embates sobre os fios da rede: de que modo essa nova aborda-gem promove o dilogo entre diferentes disciplinas de carter aplicado? Trata-se de transdisciplinaridade (o que supe simbiose, perda de oposi-es entre as disciplinas), de interdisciplinaridade (o que supe interfa-ces entre as disciplinas) ou indisciplinaridade (o que supe negao das disciplinas como tais)? Nosso propsito, nesta abordagem introdutria, seguramente no dar respostas a essa questo, mas registrar a exis-tncia dessa discusso sob tais perspectivas. Inferimos tratar-se de um

  • A Busca dos Fios da Rede: Interpenetrao das Disciplinas no Campo da Lingstica Aplicada

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    Captulo 04

    caminho em construo, o qual, dadas as profundas mudanas que traz a reboque, demanda tempo para equilibrao e legitimao.

    Rojo (2007, p.1763, grifos da autora), por exemplo, distingue prti-cas transdiciplinares e prticas interdisciplinares:

    [...] prticas de investigao interdisciplinares enfocam o objeto a partir de mltiplos pontos de vista disciplinares, com ou sem interao entre esses pontos de vista, mas no chegam a (re)con-figurar o objeto no campo de investigao da LA, constituindo-o como complexo, isto , como um todo mais ou menos coerente, cujos componentes funcionam entre si em numerosas relaes de interdependncia ou de subordinao. J os percursos transdis-ciplinares de investigao geram configuraes terico-metodo-lgicas prprias, isto , no coincidentes com, nem redutveis s contribuies das disciplinas de referncia.

    Segundo a autora, enfim, os percursos transdisciplinares de investiga-o produzem teoria no campo aplicado e no simplesmente a consomem. Em nossa compreenso, no entanto, a questo mais importante no a dis-cusso que define se a nova Lingstica Aplicada transdisciplinar, inter-disciplinar ou indisciplinar, mas o fato de que esse novo olhar traz consigo o convite para a permeabilidade entre diferentes reas do conhecimento na busca de solues para problemas lingsticos socialmente relevantes.

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    Captulo 03O caminho em construo

    O caminho em construo

    O novo status que a Lingstica Aplicada constri paulatinamen-te representa, com a licena da metfora, um rompimento do cordo umbilical mantido com a lingstica terica, mais precisamente, um rompimento com a condio de disciplina derivada de. Moita Lopes (2006) defende ardorosamente essa nova condio, sugerindo um posi-cionamento, sob muitos aspectos, poltico. Esse estudioso prope uma concepo de Lingstica Aplicada que transcenda a clssica discusso entre aplicao da lingstica e lingstica aplicada. Escreve ele:

    A compreenso de que a LA no aplicao da lingstica agora um trusmo para aqueles que atuam no campo [...]. Tendo come-ado sob a viso de que seu objetivo seria aplicar teorias lings-ticas [...], a LA j fez a crtica a essa formulao reducionista e unidirecional de que as teorias lingsticas forneceriam a soluo para os problemas relativos linguagem com que se defrontam professores e alunos em sala de aula. O simplismo aqui claro. Como possvel pensar que teorias lingsticas, independentemen-te das convices dos tericos, poderiam apresentar respostas para a problemtica do ensinar e do aprender em sala de aula? Uma teoria lingstica pode fornecer uma descrio mais acurada de um aspecto lingstico do que outra, mas ser completamente inefi-ciente do ponto de vista do ensinar e do aprender lnguas. (p. 18)

    Moita Lopes (2006) segue sua reflexo denunciando o que chama de equvoco aplicacionista, decorrente, segundo ele, do entusiasmo que a lingstica despertou em seu surgimento no incio do sculo XX. O que aconteceu, segundo esse estudioso da rea, foi uma compreenso apres-sada e pouco lcida de que tal aparato terico poderia focalizar questes que estavam alm de seu prprio alcance. Da, ento, ser possvel explicar essa relao unidirecional entre teoria lingstica e a prtica de ensinar/aprender lnguas, tpica da chamada aplicao da lingstica, que no con-templa [...] a possibilidade de a prtica alterar a teoria [...] (p. 18 e 19)

    O autor chama ateno para o fato de que, no Brasil, a Lingstica Aplicada tem ganhado territrios para alm da sala de aula, tais como empresas, clnicas de sade, delegacias de mulheres. Assim,

    3

  • Unidade B

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    [...] a questo de pesquisa, em uma variedade de contextos de uso da linguagem, passou a ser iluminada e construda interdiscipli-narmente. Tal perspectiva tem levado compreenso da LA no como conhecimento disciplinar, mas como INdisciplinar [...] ou como antidisciplinar e transgressivo (p. 19, grifos do autor)

    Para os estudiosos que, como Moita Lopes, movem-se na reivindi-cao de um novo status e de um novo perfil para a Lingstica Aplicada, preciso considerar que essa rea, contrariamente ao que propunha a concepo habitual, tem um construto que objetiva encaminhar solu-es para os problemas com os quais se defronta ao focalizar a lngua em uso. A Lingstica Aplicada cria inteligibilidades sobre tais proble-mas, a fim de que alternativas para esses contextos de uso da linguagem possam ser vislumbradas. Assim, ao que parece, a concepo de que esse ramo de estudos no produz teorizaes precisa ser criteriosamente revisto, porque no parece mais ser essa a questo central.

    Mais uma vez Moita Lopes (2006, p. 21):

    A necessidade de repensar outros modos de teorizar e fazer LA surge do fato de que uma rea de pesquisa aplicada, na qual a investigao fundamentalmente centrada no contexto aplicado [...] onde as pessoas vivem e agem, deve considerar a compreen-so das mudanas relacionadas vida sociocultural, poltica e histrica que elas experienciam.

    Essa Lingstica Aplicada contempornea seria, no entendimento desse pesquisador, mestia, ou seja, capaz de interagir com outras reas do conhecimento como a antropologia, a sociologia, a etnografia. Trata-se da necessidade de explodir a relao entre teoria e prtica, porque [...] inadequado construir teorias sem considerar as vozes daqueles que vi-vem as prticas sociais que queremos estudar; mesmo porque, no mun-do de contingncias e de mudanas velozes em que vivemos, a prtica est adiante da teoria [...] (MOITA LOPES, 2006, p. 31) A Lingstica Aplicada, nesse novo contexto, toma o sujeito social como heterogneo, fragmentado, um sujeito historicamente inserido em um contexto [...]

    Rajagopalan (2006) entende que esteja se formando um consenso entre os estudiosos da Lingstica Aplicada de que cabe a esse ramo

  • O Caminho em Construo

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    Captulo 03

    de estudos evoluir da condio de mediador das relaes entre a Lingstica, tomada em seu isolamento cientfico, e a sociedade, marcada pela necessidade de solues prticas para seus problemas. papel da Lingstica Aplicada contempornea

    [...] intervir de forma conseqente nos problemas lingsticos cons-tatados, no procurando possveis solues numa lingstica que nunca se preocupou com os problemas mundanos (e nem sequer tem inteno de faz-lo), mas teorizando a linguagem e formas mais adequadas queles problemas. [...] Dito de outra forma: a LA precisa repensar o prprio lugar da teoria e no esperar que seu co-lega terico lhe fornea algo pronto e acabado para ser aplicado (RAJAGOPALAN, 2006, p. 165, grifos do autor).

    Como podemos observar, trata-se de uma proposta de efetiva mu-dana em relao concepo habitual de Lingstica Aplicada. Entende-mos que essa mudana tem subjacente um posicionamento claramente poltico que confere aos estudos desse campo comprometimento com a busca de solues para problemas de cunho social relevante. O foco da guinada que observamos nesse campo de estudos no mais a dicotomi-zao entre produo de teoria e uso de teorias, mas o olhar sobre tais pro-blemas e o estudo de formas trans/inter/indisciplinares de resolv-los.

    Em nossa compreenso, trata-se de um movimento rumo a uma Lingstica Aplicada que se assume cientificamente como um novo campo de estudos, transcendendo a condio de disciplina dos estudos lingsticos e se propondo a dialogar com outras cincias e a produzir teorizaes nas inteligibilidades que apresenta para os fenmenos estu-dados em seu objeto: a problematizao da lngua em sociedade.

    Nessa discusso, parecem substancialmente relevan-tes as formas de conceber o ser humano, a socieda-de e a lngua. Sobre essa questo, entendemos v-lida a remisso a estudos clssicos da Escola russa, a exemplo de teorizaes de Lev Vygotsky e de Michael Bakhtin sobre o papel da linguagem na constituio do homem, o que segura-mente transcende dimen-ses localistas ou limtrofes deste ou daquele aspecto da natureza humana em nome de tom-la em sua integralidade.

  • Unidade CLA: temticas, estudos e abordagens atuais

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    Introduo

    Nas duas Unidades anteriores discutimos o surgimento da Lin-gstica Aplicada e a movimentao rumo a novas formas de conceber esse campo. Nesta terceira e ltima Unidade, faremos registros pontu-ais sobre estudos, pertinentes rea em questo cujo desenho remete busca de solues para problemas lingsticos socialmente relevantes, em uma perspectiva de imbricamento entre diferentes disciplinas que, de alguma forma, topicalizam a lngua(gem). O foco da discusso sero as seguintes reas: lngua(gem) e cognio, lngua(gem) e sociedade e lngua(gem) e ensino de lnguas.

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    Captulo 06Lngua(gem) e Cognio

    Lngua(gem) e cognio

    Relaes entre lngua(gem) e pensamento sempre instigaram lin-gistas, psiclogos, antroplogos e etngrafos, para citar apenas alguns dentre os tantos profissionais que se ocupam de estudar o ser humano. A linguagem organiza o pensamento? O pensamento precede a lingua-gem? A linguagem articula-se ao pensamento to-somente por ocasio do processamento de sada da informao do sistema cognitivo que o crebro suporta? Que relaes so essas exatamente?

    As respostas so tantas quantas forem as perspectivas terico-epistemolgicas sob as quais tomemos a questo. Recorramos ao Curso de Lingstica Geral, que, em 1916, registrou a clebre frase atribuda a Saussure: Bem longe de dizer que o objeto precede o ponto de vista, di-ramos que o ponto de vista que cria o objeto [...] (CLG, 2000 [1916], p. 15); ou seja, dependendo das teorias a que nos filiemos, explicaremos de um modo ou de outro a realidade que se d a conhecer.

    Por que estamos discutindo essas questes? Nesta Unidade, propo-mo-nos a apresentar a voc estudos, possibilidades, exemplos de proble-mas lingsticos socialmente relevantes para os quais a Lingstica Apli-cada, tomada em sua nova acepo, busca respostas. Uma dessas questes diz respeito forma como se processa o desenvolvimento cognitivo dos homens em se tratando das relaes que estabelecem com a lngua escri-ta, o que implica discutir a interao entre linguagem e pensamento.

    Vygotsky (2000 [1984]) entende a lngua(gem) como organizadora do pensamento, j fizemos aluso a essa funo no incio deste estudo, no entanto, quer comunguemos com esse terico da aprendizagem acer-ca dessa concepo, quer concordemos com Piaget (1999 [1986]), para quem o pensamento precede a linguagem, quer tomemos uma perspec-tiva inatista como a de Pinker (2002), segundo a qual o pensamento se-ria, em grande medida, amorfo, ou quaisquer outras perspectivas teri-cas acerca dessas relaes, parece certo haver profunda interao entre o ato de pensar a formao de conceitos e a simbolizao/internalizao do real e o uso da lngua(gem).

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  • Unidade C

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    Jean Piaget

    Para Jean Piaget o pensamento precede a linguagem, a qual se limi-ta a transform-lo na direo de uma abstrao mais mvel, per-mitindo a simbolizao do real. A linguagem vista como necess-ria, mas no suficiente para explicar o pensamento e a construo das operaes lgicas.

    Steven Pinker

    Steven Pinker advoga em favor do que chama de mentals, con-ceito potencialmente capaz de dar conta da caracterstica amorfa do pensamento. Para o autor, o pensamento no se organiza sob forma de linguagem, tanto que podemos traduzir um mesmo pen-samento por meio de formas lingsticas diversas.

  • Lngua(gem) e Cognio

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    Captulo 06

    Essas relaes subjazem a estudos aplicados que problematizam um conjunto de questes relacionadas cognio, a exemplo de implicaes de aprendizagem em diversas reas, neuropatologias, neurofisiologia da linguagem, aquisio e desenvolvimento de linguagem, mobilidade em sociedades grafocntricas, capacidade de abstrao e simbolizao etc. Nesse mbito, o tratamento de tais questes, se considerado o vis contemporneo da Lingstica Aplicada, demanda a busca por respostas para problemas instigantes sob o ponto de vista das sociedades, fazen-do-o em uma perspectiva trans/inter/indisciplinar.

    Tomemos um exemplo ilustrativo para deixarmos mais claras nos-sas impresses sobre esses processos: os estudos sobre letramento e os estudos sobre alfabetizao. Historicamente, considerava-se que uma pessoa era letrada quando dotada de grande erudio, ou seja, quan-do detinha, em profuso, informaes de cultura escolarizada. Com a disseminao da escrita, a partir da inveno da imprensa e, mais re-centemente, com a potencializao dos textos escritos, motivada pela globalizao e pelas redes de computadores, as sociedades vm apresen-tando usos crescentemente mais elaborados, diversificados e intensos da lngua escrita, expondo sujeitos de todos os nveis de escolarizao, tanto quanto sujeitos no-escolarizados, a tais usos.

    Nesse contexto, tem surgido uma problemtica lingstica, so-cial, histrica e culturalmente relevante: Como sujeitos analfabetos ou pouco escolarizados conseguem mover-se em sociedades cada vez mais centradas na escrita? Essa centralizao parece evidente nas ruas das grandes cidades, tomadas de informao escrita; na substituio dos te-lefonemas por e-mails e torpedos e, at mesmo, na transformao por que passam as aulas na educao a distncia, por exemplo, as aulas so escritas pelos professores e lidas pelos alunos.

    A busca de respostas para as implicaes dessa questo no pde ser empreendida pela cincia Lingstica nos limites de sua condio cientfica. notrio que a problemtica traz consigo implicaes de na-tureza cultural que demandam conceitos de antropologia, sociologia, etnografia, entre outras disciplinas. Esse necessrio imbricamento fez surgir novos conceitos, no apenas justapostos, mas fruto da ruptura de fronteiras entre essas disciplinas e a Lingstica Aplicada.

  • Unidade C

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    A redefinio do conceito de letramento um bom exemplo disso. Lingistas aplicados como ngela Kleiman, Leda Tfouni e Magda Soa-res, entre outros, em interface com estudos de antroplogos como Brian Street e David Barton, e com etongrafos como Shirley Heath, sociali-zaram suas impresses sobre novos olhares acerca dos usos sociais da escrita. Essa socializao tem contribudo na construo de explicaes possveis para a forma como analfabetos e sujeitos pouco escolarizados conseguem transitar nas sociedades grafocntricas atuais, apresentando alternativas para ressignificar a compreenso desse fenmeno.

    Hoje, a concepo de letramento como usos sociais da escrita motivados por ancoragens polticas, sociais e histricas, denota a forma como as diferentes culturas lidam com a lngua escrita, contrapondo-se ao posicionamento clssico de estudiosos como Angela Hildyard, David Olson e Patrcia Greenfield, dentre outros pesquisadores, cuja argumen-tao fez crer a muitos interessados na rea que culturas escolarizadas seriam superiores a culturas grafas no que respeita capacidade de abstrao do real. Posturas como essas potencializaram equvocos rela-cionados valorao e hierarquizao de culturas a partir do maior ou menor domnio da palavra escrita.

    Publicaes em Lingstica Aplicada tm tido impacto significativo na minimizao do estigma de populaes historicamente tidas como menos capazes de abstrair a realidade, como inferiores sob o ponto de vista cognitivo, como pertencentes a construtos antropolgicos menos complexos que comunidades intensamente usurias da escrita. Isso, em nosso entendimento, somente vem sendo possvel porque a Lingstica Aplicada enovelou-se com outras cincias na busca de respostas a esse fenmeno socialmente relevante.

    Tomar letramento sob o vis de prticas de uso social da escrita tem permitido a lingistas aplicados como Angela Kleiman denunciar um modelo autnomo de letramento, concebido como erudio, ao qual todos os sujeitos, em tese, deveriam ascender sob pena de serem tidos como menos capazes. Em oposio a esse modelo, lingistas aplicados apregoaram a existncia de um modelo ideolgico de letramento, segundo o qual cada sociedade e cada cultura lidam com a escrita de uma forma diferente, no mais complexa nem menos complexa, apenas singular.

  • Lngua(gem) e Cognio

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    Captulo 06

    Essa perspectiva no exime, naturalmente, a busca por padres crescentemente mais refinados de trato com a lngua escrita, mas nega a existncia de um padro nico, para estabelecer padres internos a cada cultura e to-somente a elas correspondentes. Assim, no parece mais vi-vel comparar e hierarquizar culturas tendo a escrita como parmetro.

    Questes relacionadas alfabetizao constituem outro foco de interesse de psicolingistas aplicados, no que diz respeito s relaes entre linguagem e cognio, sobretudo em pases em desenvolvimento, nos quais se verifica um contingente expressivo de cidados excludos de usos mais refinados da lngua escrita por conta do no-domnio do cdigo alfabtico.

    Essa uma questo que diz respeito escola, mas que atinge a socie-dade como um todo, dadas suas implicaes com os processos de cidada-nia. Trata-se de um problema relevante sob o ponto de vista social, ques-to para a qual a Lingstica Aplicada tem buscado respostas, em interface com disciplinas da Educao, focadas em teorias de aprendizagem, tan-to quanto, hoje, em interface com disciplinas das neurocincias, cujos construtos tericos tm mostrado, de modo crescentemente mais preci-so, como se d o processamento neural da informao no crebro. Isso sem mencionar disciplinas como a antropologia e a sociologia, as quais evidenciam centros de interesse e particularidades culturais dos sujeitos que, a exemplo do que propunha Paulo Freire na dcada de 1980, tm de ser considerados no desencadeamento de iniciativas de alfabetizao.

    Esses so apenas dois focos de problematizao de interesse do lin-gista aplicado no que concerne s relaes entre linguagem e cognio. Poderamos nos alongar em outras tantas questes cuja abordagem traz consigo qualificao de vida do ser humano em sua insero social, cul-tural e histrica, mas limitamo-nos a essas por conta da natureza intro-dutria desta disciplina.

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    Captulo 07Lngua(gem) e Sociedade

    Lngua(gem) e sociedade

    Seguramente, em nosso entendimento, uma das questes mais apai-xonantes nos estudos da lngua(gem) so as relaes entre lngua e socie-dade, considerando que, como propunha Vygotsky (2000 [1984]), uma das funes da linguagem o intercmbio social. No mbito dessa discus-so, uma srie de problemas relevantes convida o lingista aplicado ao. Discutamos um dentre eles: a existncia de uma norma padro de fala, cuja vigncia estigmatiza usurios da lngua que dela no se apropriam.

    Signorini (2006), por exemplo, reflete sobre a lngua(gem) na socie-dade democrtica, defendendo a legitimidade da lngua em uso e no a legitimidade de determinados usos da lngua. Escreve a autora:

    A igualdade entre os falantes, independentemente das posies numa dada ordem sociolingstica, primeira e fundamental para que se coloque a questo da legitimidade da lngua em uso [...], pois anterior a toda a hierarquizao. Nesse sentido, trata-se de uma radicalizao do conceito lingstico de falante autorizado [...], herdado da antropologia: sua condio de falante ou seja, sua capacidade de interagir verbalmente no coletivo o que legi-tima os usos que ele faz dessa mesma lngua. No so determina-dos usos que ele faz da lngua, ou determinadas formas que utiliza, que o legitimam como falante competente daquela lngua. (p.171)

    Essa discusso remete conhecida polmica que acompanha a cha-mada norma padro de fala, sobremodo, desde meados do sculo XX. Mas que problemas socialmente relevantes podem situar-se nesse cam-po das relaes humanas? Quaisquer padronizaes de natureza cultu-ral implicam, na maior parte das vezes, estigmatizao de determinados sujeitos alijados desse padro. Quando se padronizam os usos de uma lngua, emerge a tendncia de valorizao dos usurios a partir de sua maior ou menor aproximao em relao a esse padro.

    Na disciplina Introduo aos Estudos da Linguagem, discutimos questes de sociolingstica relacionadas variao nos usos da lngua e pudemos observar que, via de regra, as populaes menos escolarizadas so aquelas que constituem alvo mais recorrente do preconceito lingsti-

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  • Unidade C

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    co, em razo, possivelmente, do fato de que os processos de escolarizao e apropriao da erudio tendem a mudar a forma de falar dessas po-pulaes: dificilmente, por exemplo, um falante mantm o uso de formas como aucre e bassora aps um intenso processo de escolarizao.

    Expliquemos melhor nosso entendimento desse fenmeno. Pare-ce notrio que o lingista aplicado, nessa nova concepo, ocupa-se de problemas sociais relevantes, buscando, por exemplo, solues para o estigma social que comumente reveste populaes menos escolarizadas em se tratando dos usos da lngua. Contrapor-se existncia de um padro nico seria, no entanto, a forma mais funcional de encontrar soluo para tal estigma? De novo Signorini (2006, p. 171):

    [...] a lgica vigente coloca em litgio [...] a pressuposio de inter-compreenso como pano de fundo ou projeo do que possvel ou desejvel na comunicao social e trabalha com a idia de que, somente com a padronizao das formas lingstico-discur-sivas, se estabelecem as condies mnimas de interlocuo com-preensiva, no sentido de produtiva, entre os falantes da lngua nacional.

    O que isso quer dizer exatamente? Compreendemos que a autora condena a desconsiderao de que, falando do modo como o fazem, os usurios de uma lngua se entendem em seus espaos de interao social, independentemente de esse falar corresponder ou no a um pa-dro pr-estabelecido. A observncia do padro de fala, por sua vez, no assegura a comunicao entre diferentes sujeitos; eles so plenamente aptos a se comunicarem em seus prprios usos, mesmo que tais usos destoem da norma padro.

    Prossegue Signorini (2006, p. 171-172):

    A inverso dessa lgica vigente [ o uso da norma padro que assegura a comunicao em um pas] fundamental, pois nos permite melhor compreender por que variao e concorrncia de formas lingstico-discursivas, num contexto sociocultural no-estagnado, no so sinais de perda, decadncia ou crise nos usos da lngua ou na competncia dos falantes e sim nos modos de conceptualizao e descrio do construto lngua, tanto pelo sen-so comum quanto pela mdia e demais instituies comprometi-

  • Lngua(gem) e Sociedade

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    Captulo 07

    das com a manuteno do princpio liberal republicano, herdado do Iluminismo e da Revoluo Francesa, de fazer equivaler ln-gua legtima e lngua comum a todos os cidados.

    Essa fala da autora, em nosso entendimento, visibiliza, com bastante preciso, o caminho que o lingista aplicado busca seguir na modernidade: agir, assumindo posicionamentos polticos evidentes, quando necessrio, em favor da qualificao de vida do homem, mesmo que isso represente contraposio ao chamado status quo. Retomemos, ainda mais uma vez, a voz de Signorini, por meio da qual essa postura fica bastante explicitada.

    No mbito do Estado-nao liberal republicano, essa igualdade [neutralizao das diferenas entre os usurios da lngua pelo domnio da norma padro] algo a ser conquistado individual-mente por cada falante por meio do letramento escolar: por meio da escolarizao, todos podem apropriar-se das formas e funes valorizadas pelo Estado e demais instituies e, assim, conquis-tar a igualdade de condies na comunicao social. Mas como esse um objetivo sempre postergado para a maioria, inclusive os escolarizados, acaba funcionando como uma espcie de libi que vai sempre justificar a diferena congnita irredutvel que des-qualifica a maioria dos falantes enquanto falantes autorizados e, conseqentemente, enquanto interlocutores, agentes, cidados. (2006, p. 172)

    Discusses sobre os usos da lngua e as relaes desses usos com o preconceito lingstico e com a cidadania so, via de regra, de grande interesse da Lingstica Aplicada, dada a condio de maior ou menor status, maior ou menor aceitao social, maiores ou menores oportuni-dades de empregabilidade que esto subjacentes a essas discusses. Usar a variante padro, no raro, implica gozar de efetivo espao de voz na sociedade contempornea e, o oposto, ou seja, no domin-la, segura-mente traz implicaes negativas para o sujeito.

    Signorini (2006), na citao imediatamente anterior, ressalta que o letramento escolar, ou seja, um processo efetivo e qualificado de edu-cao, potencialmente permite ao sujeito apropriar-se da norma padro de fala. Como bem pontua a autora, no entanto, em pases como o Bra-sil, a excelncia do processo de escolarizao no uma realidade para as populaes mais pobres, o que significa, em grande medida, que a es-

  • Unidade C

    60

    cola pode no lhes facultar o domnio da variedade de fala de prestgio.

    Como, ento buscar solues para esse problema? Vrios cami-nhos tm sido apontados por lingistas aplicados, desde o bidialetalis-mo para a transformao (apropriar-se da variedade de prestgio como mais uma forma de falar) de que trata Soares (1986), at a reviso da polarizao diglssica (no-hierarquizao, no-diviso, no-classifi-cao dos modos de falar, os quais se interpenetram constantemente), proposta por Signorini (2006).

    Essa, no entanto, uma discusso que deixamos para outras instn-cias, j que, aqui, nosso objetivo to-somente aludir a temas, estudos, focos de interesse da Lingstica Aplicada em sua nova configurao. A discusso da hegemonia da norma padro de fala e o preconceito que o no-domnio dessa norma suscita parecem ser, de fato, problemas social-mente relevantes que merecem a ateno do lingista aplicado de agora.

  • 61

    Captulo 08Lngua(gem) e Ensino de Lnguas

    Lngua(gem) e ensino de lnguas

    Um terceiro e ltimo foco que abordaremos nesta Unidade so as relaes entre lngua(gem) e ensino, bastante evidentes por sua prpria constituio histrica. Nesta seo, discutiremos em que medida a Lin-gstica Aplicada, em sua nova configurao, tem interesse por tal tema, que, na poca do surgimento desse campo de estudos, constituiu item prioritrio na agenda do lingista aplicado.

    Em nosso entendimento, esse interesse da Lingstica Aplicada pelo ensino de lnguas sempre h de existir, sobretudo no que diz respeito formao de profissionais da rea, quer sejam eles de lngua materna, quer sejam de lnguas estrangeiras. Justificamos tal entendimento no fato de que, da qualificao da atividade docente, depende, em boa medida, a excelncia do processo de letramento escolar a que fizemos aluso na se-o anterior. Assim, se o lingista aplicado contemporneo efetivamente ocupa-se de questes socialmente relevantes, precisa manter sua ateno na escola, instituio que tanto pode emancipar ou limitar o sujeito, de-pendendo da qualidade e da natureza do processo que empreende.

    Nesse universo de formao do professor de lngua, uma das ques-tes que parece aflorar mais efetivamente a dimenso sociocultural e scio-histrica dessa formao.

    Rojo (2006, p. 262) escreve:

    Diferentes matrizes de atividade e diferentes atividades de lin-guagem [...] tero efeitos diversos na constituio das formas de ao e das formas de dizer a ao (linguagem) [...] Embora essa seja uma posio largamente aceita no paradigma scio-histri-co de investigao (social, psicolgica, psicolingstica), ela no deixa de envolver algumas questes de fundo, ainda em elabo-rao por diferentes enfoques: a relao entre ao, linguagem e pensamento; a interseo entre as prticas sociais e as prticas individuais; o mecanismo de apropriao das prticas sociais por sujeitos em processo de constituio. (grifos da autora)

    8

  • Unidade C

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    Ainda que a autora no trate especificamente da formao docente, possvel iluminar nossa discusso com o pensamento de Rojo uma vez que a a apropriao de prticas sociais por sujeitos em processo de consti-tuio implica, em grande medida, comportamento lingstico mediado pela escola. Assim, em se tratando de ensino e aprendizagem de lnguas, surge flagrante a necessidade de que os docentes compreendam a impor-tncia de situar, em contextos efetivos de sentido, as prticas por meio das quais buscam a proficincia de seus alunos na lngua objeto de estudo.

    Tal contextualizao implica considerao de premissas sociocultu-rais e scio-histricas, a exemplo do lugar social ocupado pelos aprendizes, do status que a lngua objeto de aprendizagem ocupa nesse lugar social e da forma como os sujeitos empreendem suas interaes sociais nessa lngua.

    Nesse processo, o lingista aplicado tem diante de si problemticas instigadoras como o acesso dos diferentes sujeitos ao idioma objeto de aprendizagem e a apropriao desse idioma por parte de tais sujeitos em situaes significativas de comunicao. Ao lingista aplicado interessa conhecer as prticas escolares, na busca de respostas relacionadas ao funcionamento da linguagem, comportamento que se distingue dentre os diferentes usurios da lngua. Ao lingista aplicado cabe focalizar a heterogeneidade do processo, tendo, no entanto, por base a dimenso homegeneizadora da prtica escolar.

    Kleiman (2006, p. 2) registra:

    [...] se eu quero ensinar o bilhete na escola, eu tenho que ensinar o objeto que o mesmo para todos. Mas, cada vez que eu escrevo um bilhete, ele diferente. Cada pessoa que escreve um bilhete tem enunciao, contextos, objetivos diferentes. E, como lingis-ta aplicada, eu estou interessada na relao desse texto com o contexto, que sempre diferente, sempre heterogneo. Mas, se eu quero ensinar, eu vou precisar de alguns pontos comuns, no posso ficar no dspar, eu tenho que achar a semelhana.

    Kleiman (2006) defende ser papel do lingista aplicado fomentar o que chama de letramento profissional para o professor, em seu local de trabalho. Segundo ela, para o letramento no local de trabalho, o que interessa que o leitor ou escritor traga seus conhecimentos para uma atividade relevante, neste caso, da esfera profissional.

  • Lngua(gem) e Ensino de Lnguas

    63

    Captulo 08

    Segundo a autora, uma outra esfera importante a do letramento acadmico, que forma o aluno para a pesquisa, para a busca de informa-o, permite uma abertura para a aprendizagem constante. Essa concep-o de letramentos mltiplos, situados e diferenciados, registra Kleiman (2006), evidencia como a ao do lingista aplicado pode contribuir na busca de respostas para grandes desafios da atividade docente no ensino e aprendizagem de lnguas.

    Em seu entendimento, o professor deve ser responsvel por seu pr-prio processo de formao, mas precisa ter suportes e tipos de contextos f-sicos para fazer esse trabalho. A universidade tem de ajudar nesse processo, porque a formao desses professores no independente de outras redes de formao e de conhecimento, autnoma no sentido de que so os pro-fessores os que fazem as perguntas, os que decidem o que querem saber, mas a ao do lingista aplicado, preocupado com problemas socialmente relevantes, deve considerar esse compromisso das agncias formadoras.

  • 65

    Consideraes Finais

    Esperamos que tenham ficado claros para voc os dois recortes sob os

    quais os estudos da Lingstica Aplicada so tomados modernamente. O

    primeiro deles, que optamos por chamar, aqui, de concepo habitual, v

    esse ramo de estudos como uma espcie de interface entre os estudos da

    lingstica terica e a realidade social. Sob essa perspectiva, a Lingstica

    Aplicada opera com o uso de teorizaes lingsticas prontas na interpre-

    tao e no estudo da realidade da lngua em uso, ou seja, em fenmenos

    lingsticos socioculturalmente situados, cujos protagonistas so sujeitos

    histricos concretos.

    Essa concepo, no entanto, vem sendo objeto de ferrenha crtica por parte

    de um significativo grupo de lingistas aplicados que defendem ruptura

    com esse comportamento e com essa viso, propondo uma Lingstica

    Aplicada que no dicotomize teoria e prtica, mas que as tome dialetica-

    mente, como mutuamente influenciveis.

    Signorini (2006) defende percursos de investigao de natureza transdis-

    ciplinar, dilogos da Lingstica Aplicada com outros campos do conheci-

    mento, o que exige abertura para que os princpios orientadores de uma

    teoria ou prtica possam transformar o campo com o qual dialogam, sem

    que isso signifique apenas o emprstimo de conceitos e categorias, nem a

    reduo de uma teoria ou disciplina outra.

    Cientes da distino entre essas concepes acerca da Lingstica Aplicada,

    concordamos com o pensamento de Moita Lopes e de Rajagopalan na cr-

    ti