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Saberes, Narrativas e Conflitos na PESCA ARTESANAL (Orgs.) Winifred Knox Aline Trigueiro

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saberes e pesca artesanal

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  • Saberes, Narrativas e Conflitos na

    pesca artesanal(Orgs.)Winifred KnoxAline Trigueiro

  • (Orgs.)Winifred KnoxAline Trigueiro

    Saberes, Narrativas e Conflitos na

    pesca artesanal

    Vitria2015

  • Editora filiada Associao Brasileira das Editoras Universitrias (Abeu)Av. Fernando Ferrari, 514 - Campus de Goiabeiras CEP 29075-910 - Vitria - Esprito Santo - BrasilTel.: +55 (27) 4009-7852 - E-mail: [email protected]

    Reitor | Reinaldo CentoducatteVice-Reitora | Ethel Leonor Noia MacielSuperintendente de Cultura e Comunicao | Ruth de Cssia dos ReisSecretrio de Cultura | Rogrio Borges de OliveiraCoordenador da Edufes | Washington Romo dos Santos Conselho Editorial | Cleonara Maria Schwartz, Eneida Maria Souza Mendona, Giancarlo Guizzardi, Gilvan Ventura da Silva, Giovanni de Oliveira Garcia, Glcia Vieira dos Santos, Jos Armnio Ferreira, Julio Csar Bentivoglio, Luis Fernando Tavares de Menezes, Maria Helena Costa Amorim, Rogrio Borges de Oliveira, Ruth de Cssia dos Reis, Sandra Soares Della Fonte.

    Secretrio do Conselho Editorial | Douglas Salomo Comit Cientfico de Letras | Antnio Pires, Evando Nascimento, Flvio Carneiro, Goiandira Camargo, Jaime Ginzburg, Luiz Carlos Simon, Marcelo Paiva de Souza, Mrcio Seligmann-Silva, Marcus Vincius de Freitas, Marlia Rothier Cardoso, Paulo Roberto Sodr, Rosani Umbach Reviso de Texto | Roberta SoaresProjeto grfico, Diagramao | Anaise PerroneCapa | Aquarela de Agatha Knox Figueira sobre a foto de Joo Paulo IzotonReviso Final | As autoras

    Dados Internacionais de Catalogao-na-publicao (CIP)(Biblioteca Central da Universidade Federal do Esprito Santo, ES, Brasil)

    S115 Saberes, narrativas e conflitos na pesca artesanal [recurso eletrnico] / (orgs.) Winifred Knox, Aline Trigueiro. - Dados eletrnicos. - Vitria : EDUFES, 2015.229 p. : il.

    Inclui bibliografia.ISBN: 978-85-7772-276-1Tambm publicado em formato impresso. Modo de acesso:

    1. Pesca artesanal - Aspectos ambientais. 2. Pesca artesanal - Aspectos sociais. 3. Pescadores. I. Knox, Winifred. II. Trigueiro, Aline.

    CDU: 639.2

  • Publicao realizada com o apoio da Fapes 2014, da Edufes e da Ufes.Esta obra integra as atividades de pesquisa e extenso do Diretrio CNPqGrupo de Estudos e Pesquisa em Populaes Pesqueiras eDesenvolvimento no Esprito Santo (Geppedes).

    X q e t u W D C B M P s d

  • sumrio

    Apresentao e agradecimentos .................................................................... 9Prefcio ....................................................................................................................13Captulo 1 - A pesca artesanal no litoral no ES.Winifred Knox e Aline Trigueiro .....................................................................17Captulo 2 - A pesca artesanal na Baa de Guanabara e justia ambiental: uma proposta de nuances sociolgicas. David Gonalves Soares .....................................................................................51Captulo 3 - Pesca artesanal e atividades tursticas: complementaridades e conflitos. Solange Fernandes Soares Coutinho .............................................................85Captulo 4 - Minha jangada vai sair pro mar: continuidade de um trabalho secular do nordeste brasileiro. Cristiano Wellington Noberto Ramalho ...................................................111Captulo 5 - Gnero e pesca: o Conselho Pastoral da Pesca e sua contribuio na trajetria da Articulao das Mulheres Pescadoras. Maria do Rosrio de F. A. Leito ..................................................................139Captulo 6 - Aspectos do fenmeno jurdico entre os pescadores da Barra do Jucu, Vila Velha-ES. Mrcio De Paula Filgueiras ...........................................................................161Captulo 7 - O mar no est para peixe: a constituio do campo da conservao da biodiversidade e os conflitos de vises de natureza. Jernimo Amaral de Carvalho ......................................................................187Captulo 8 - Patrimnio, museus e cultura martima: o caso do museu do mar da vila de Sesimbra, Portugal. Lus J. Gonalves, urea Pinheiro, Joo Ventura, Andreia Conceio, Cristina Conceio, Cssia Moura .......................201Perfil dos autores .............................................................................................228

  • 9apresentao e agradecimentos

    livro que ora apresentamos fruto de nossa insero no debate acadmico em torno da pesca artesanal e das questes socioambientais no Brasil h pelo menos uma dcada. As vrias aes e os projetos que desenvolvemos entre os anos de 2011 e 2014 no Grupo de Estudos e Pesquisa em Populaes Pesqueiras e Desenvolvimento no ES (Geppedes) nos permitiram pensar sobre a importncia de divulgar os estudos sobre essa temtica. Foi quando lanamos a proposta de um livro no qual outros

    estudos pudessem ser includos a fim de oferecer um panorama da

    pesca artesanal realizada no litoral do Brasil.O objetivo principal desta obra sempre foi desde o momento inicial da divulgao do edital que selecionou artigos para comp-la o de trazer para a reflexo acadmica um problema atual: a situao das populaes pesqueiras que vivem e trabalham na costa brasileira. Exatamente por isso concentramos esta produo prioritariamente entre os pesquisadores e os grupos que estudam essa temtica no Brasil.

    Junto a este ensejo de promover reflexo sobre a situao das populaes pesqueiras do litoral, h tambm o desejo de divulgar as atuais pesquisas para aprofundar debates, consolidar grupos e

    O

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    constituir redes, principalmente entre aqueles que tm sinalizado questes tericas e prticas importantes que possam contribuir para os estudos a respeito das populaes pesqueiras. Desse modo, esta obra contm artigos de pesquisadores de vrias regies litorneas, o que permite uma ampla e consistente reflexo a partir das diversidades culturais, sociais e econmicas

    existentes. Tambm exibe problemticas com similaridades que do

    significativa relevncia ao tema dos impactos socioambientais nas regies da costa Nordeste-Sudeste do Brasil, nas quais as populaes pesqueiras tm sido altamente afetadas por transformaes socioeconmicas, culturais e tecnolgicas. So, ao todo, sete artigos descrevendo pesquisas entre o estado de Pernambuco e o estado do Rio de Janeiro. Acrescenta-se ainda um estudo sobre uma comunidade pesqueira do litoral de Portugal. Nele so mostradas as transformaes ocorridas na regio do sul de Portugal e as alternativas adotadas para a preservao da memria coletiva local. A localizao das regies abordadas pelos

    estudos aqui publicados consta na ilustrao a seguir (Figura 1).A conjuntura analisada nestes trabalhos nos remete basicamente s transformaes vivenciadas pelas populaes litorneas nas ltimas dcadas e procura promover a reflexo sobre

    as problemticas geradas por tais mudanas. De modo geral, os artigos tm em comum a discusso sobre os percursos de resistncia traados para a adaptao, a organizao e a luta pela sobrevivncia dos interesses desses grupos frente a processos globalizadores.

    Por fim, necessrio destacar que os nossos projetos de pesquisa e extenso tiveram apoio do MEC, da ProExt, da Ufes, da Edufes, da Fapes e do CNPq. Sem esses parceiros no teria sido

    possvel a realizao do trabalho de campo. preciso expor tambm que o Centro de Cincias Humanas e Naturais, o Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais e o Departamento de Cincias Sociais ofereceram apoio logstico e de infraestrutura ao Geppedes

  • 11

    por meio da cesso de uma sala, alm de terem sido mediadores na resoluo de outros processos. Ressaltamos ainda o trabalho

    dos assistentes editorias da Edufes. Desse modo, agradecemos a todos os que colaboraram de alguma forma para a publicao deste livro, principalmente aos pesquisadores que contriburam com os artigos, aos bolsistas do Geppedes e aos pescadores e pescadoras das comunidades pesquisadas.

    Figura 1 Mapas do Brasil e de Portugal sinalizando localizao das pesquisas dos artigos do livroFonte: IBGE, Brasil (http://www.ibge.gov.br/paisesat/) e Portugal Tour, 2014 (http://viajar.clix.pt/). Adaptao das autoras.

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    prefcio

    convite para apresentar o livro Saberes, narrativas e conflitos na pesca artesanal, de Winifred Knox e Aline Trigueiro, foi aceito em um momento de turbulncias

    desencadeadas principalmente em um espao fsico e social muito

    especial: a costa brasileira. No seria adequado usar o termo lugar, pois entendo que so muitos os lugares nesse espao que , cada vez mais, transformado, por grupos distintos, em lugares mltiplos nos quais diferentes insiders e outsiders disputam o acesso, a experincia e o cuidado.J se disse que o Brasil cresceu de costas para o continente, com os olhos voltados para o Velho Mundo. Hoje possvel dizer que o continente e o Mundo Globalizado esto com os olhos voltados para a costa. De um lado a busca por uma modernizao que aumente o

    fluxo das riquezas a partir do interior at o oceano e conecte-as mais

    rapidamente com o mercado global. De outro a explorao offshore de petrleo, que implica uma ligao direta e constante entre as plataformas na costa e o continente.

    Esses dois fluxos trouxeram novos atores e novos sentidos para algumas disputas antigas pelo controle de espaos costeiros chamados de orla martima. Um primeiro conjunto poderia ser

    identificado por uma tenso entre modernidade e tradio na

    O

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    pesca, presente, por exemplo, na dualidade semntica existente nas categorias artesanal e profissional, as quais foram recentemente

    redefinidas no Registro Geral da Pesca como profissional artesanal

    e profissional industrial. Quando outros qualificadores entram em

    cena (tradicional ou local, por exemplo), essa tenso pode ser

    amplificada, ou amortecida com polticas de gesto de recursos

    marinhos renovveis, como as reservas extrativistas. Parte desse processo est descrito no artigo O mar no est para peixe: a constituio do campo da conservao da biodiversidade e os conflitos de vises de natureza, de Jernimo de Carvalho, sobre os processos de construo da gesto da Reserva Extrativista Marinha do Corumbau. Dentro desse mesmo campo de disputas, o artigo Aspectos do fenmeno jurdico entre os pescadores da Barra do Jucu, Vila Velha-ES, de Mrcio Filgueiras, apresenta como saberes locais, ou

    hbitos tradicionais, dificilmente so compreendidos adequadamente pelo universo jurdico, representante de uma modernidade desejada, porm muito pouco aplicada.

    A orla tambm palco de outras disputas. Os lugares tradicionais de pescarias e pescadores sempre foram disputados por novos atores e significados. A paisagem e o espao da costa, pouco apreciados no passado, ganharam novos sentidos e foram gradativamente apropriados pelo mercado. Mecanismos de proteo, ou regulao, entraram em cena para tentar ordenar o acesso a recursos e organizar o aproveitamento da orla. A especulao imobiliria e as indstrias do veraneio e do turismo tornaram-se novos vetores de conflito. O artigo Pesca artesanal e atividades

    tursticas: complementaridades e conflitos, de Solange Coutinho, aponta interessantes caminhos para a harmonizao entre esses significados, seja atravs de uma ressignificao, seja por meio de

    uma melhor compreenso sobre os mesmos.H, entretanto, algumas disputas por espaos e atores que so inconciliveis e, no passado, j representaram o desaparecimento

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    de alguns grupos de pescadores da beira da praia. Em geral, so processos de modernizao que envolvem busca pelo controle absoluto do espao e grandes mudanas na paisagem, como a instalao de estruturas porturias. No artigo Um estudo da pesca artesanal no Esprito Santo: o campo de desenvolvimento outsider e a excluso dos insiders, Winifred Knox e Aline Trigueiro apresentam de forma insofismvel os dilemas e desafios desse processo no estado do Esprito Santo, mas cuja anlise pode ser replicada para a orla do Rio de janeiro, para o sul da Bahia, para Santa Catarina, para o Cear...

    Deve ficar claro, como mostram as autoras, que esses processos de desenvolvimento produzem efeitos em cascata: no apenas os espaos objetivados para realizar mudanas so alterados, mas tambm toda a paisagem e o formato do entorno.

    Ao tomar como objeto de anlise os conflitos dos pescadores

    artesanais com a movimentao e o refino de petrleo na Baa de Guanabara, David Soares discute, no artigo A pesca artesanal na Baa de Guanabara e justia ambiental: uma proposta de nuances sociolgicas, a profunda alterao promovida por diversos atores

    sociais no campo semntico das representaes desses espaos. Isso porque os oleodutos e gasodutos que impactam os pescadores artesanais da Guanabara esto presentes em espaos imobilizados por polticas diversas, como unidades de conservao e terras indgenas do norte fluminense e do norte capixaba, obedecendo ao pensamento

    de que o fluxo do oceano para a costa deve ser o mais curto possvel,

    assim como seu trajeto por terra at os centros beneficiadores e/ou

    consumidores.No fundo, todas essas tenses revelam traos marcantes de nossa cultura e os mecanismos de circulao de novos signos e significados. Como superar gargalos de infraestrutura, modernizar a paisagem e aumentar a renda sem um processo de mudana social dirigida? Mas os artigos Minha jangada vai sair pro mar: continuidade de um trabalho secular do Nordeste brasileiro, de Cristiano Ramalho,

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    e Gnero e pesca: O Conselho Pastoral da Pesca e sua contribuio na trajetria da Articulao das Mulheres Pescadoras, de Maria do Rosrio Leito, mostram como a mudana social dirigida acaba sempre ganhando novos significados por parte do quadro cultural local, que, por sua vez, alterado no processo, tornando a previso inicial um enorme fracasso. As jangadas e os jangadeiros, antteses de uma pescaria moderna motorizada e tecnologicamente amparada por sonares, sistemas de posicionamento por satlite, guinchos e outros , continuam ocupando um lugar social e cultural importante em comunidades de pescadores. Em outra dimenso, no universo das colnias de pesca organizadas no Brasil com ideologias exclusivamente masculinas, o lugar da mulher foi proativamente sendo alterado at uma pescadora conquistar a presidncia de uma Colnia de Pesca em Itapissuma, Pernambuco, nos idos de 1989.

    At que ponto a orla resiliente? Quando as mudanas se tornam irreversveis? No h respostas fceis se que existem! Mas o artigo Patrimnio, museus e cultura martima: o caso do Museu do Mar da Vila de Sesimbra, Portugal, de Lus Jorge Gonalves, urea da Paz Pinheiro, Joo Ventura, Andreia Conceio, Cristina Conceio e Cssia Moura, nos traz de Portugal mais especificamente da Vila de Sesimbra um relato de como o conceito de patrimnio cultural pode existir ao lado do patrimnio ambiental e no ser dizimado pelo desenvolvimento econmico.

    com esse alento, com um estado de esprito positivo, que sado a oportunidade e o empenho das organizadoras em editar este livro, que mesmo em um momento turbulento capaz de apontar, no horizonte, sinais de bonana alcanveis por todos ns. Boa leitura!

    Ronaldo Lobo, Rio de Janeiro, 05/06/2013.

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    Captulo 1

    A Pesca Artesanal no Litoral do ES

    Winifred Knox Aline Trigueiro Introduo

    presente artigo traa uma anlise da situao socioecon-mica e cultural da pesca artesanal no Esprito Santo. O es-tudo se concentra na situao das comunidades pesqueiras de Vitria, Vila Velha, Linhares, Regncia e Anchieta. A base de in-vestigao foram registros produzidos por diferentes instituies e

    dados produzidos no estado do Esprito Santo na ltima dcada. Tais informaes foram comparadas com as informaes e os registros colhidos pelo Geppedes no ano de 2012 por meio de oficinas, entre-vistas e coleta de imagens nos municpios citados. Os trabalhos de campo tiveram uma ou mais incurses chamadas coloquialmente pela equipe de mobilizaes.

    Foram utilizadas informaes disponveis em vrios institutos de pesquisa que trabalham com levantamentos de dados sobre o estado do ES e a questo da pesca. O Plano Estratgico de Desenvolvimento da Agricultura Capixaba, o Estudo Setorial da Pesca Marinha (2007) e o Relatrio do Macro Diagnstico da Pesca Martima do Estado do Esprito Santo (2005) tornaram-se fontes fundamentais para a composio deste trabalho.

    O

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    Estruturalmente, este artigo compe-se de uma sistematizao dos dados coletados na pesquisa realizada no ano de 2012, de algu-mas comparaes com estudos relacionados denominadas diferen-tes narrativas sobre o mesmo tema e de indicaes das principais reclamaes e demandas mencionadas pela populao pesqueira du-rante os trabalhos de campo.

    Para finalizar esta introduo, faz-se necessria uma breve explicao sobre a metodologia utilizada. Os trabalhos de campo nas comunidades eram basicamente constitudos de contatos e reunies com os pescadores e as pescadoras. As mobilizaes in loco em cada um desses lugares eram realizadas, inicialmente, por meio de entre-vistas com roteiro semiestruturado, quando coletvamos os depoi-mentos de pescadores e pescadoras e de lideranas formais e infor-mais. O roteiro tinha quatro eixos centrais: (a) a vida e a memria da

    pesca no local onde o entrevistado habita; (b) as principais mudanas

    vivenciadas na atualidade por ele, sua famlia e sua comunidade; (c)

    os principais problemas identificados na atividade da pesca; (d) as principais causas e possveis solues. O registro foi feito por meio de gravador e/ou cmera filma-

    dora. Nos encontros seguintes, foram realizadas oficinas de trabalho, as quais reuniram pescadores, pescadoras e lideranas da pesca. Eles refletiram juntos sobre as principais mudanas ocorridas na ativida-de nos ltimos anos (os seus problemas e as suas causas). Atravs de uma atuao dialgica, foram redigidas as indicaes dos principais problemas e suas causas em um computador cuja tela era projetada em um quadro a partir de um equipamento projetor. Essas oficinas foram realizadas nas associaes de pesca ou de moradores, nas co-lnias ou em suas adjacncias.

  • 19

    Figura 2 Mapa da zona costeira do ES com as regies trabalhadas pela pesquisaFonte: http://www.terrabrasilis.org.br/ecotecadigital/index.php/estantes/mapas. Adaptao das autoras.

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    Figura 3 Pescadores na Ilha das Caieiras, Vitria, ES, BrasilFoto de Joo Paulo Izoton, membro do Geppedes.

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    O Esprito Santo e a pesca artesanal costeira

    O Esprito Santo possui uma linha de costa de 521 km e aproximadamente 460 km de extenso (informaes do Plano Es-tratgico de Desenvolvimento da Agricultura Capixaba, Estudo Se-torial, 2007). Esse litoral constitudo de catorze municpios com

    cerca de cinquenta comunidades e distritos de pescadores. Segun-do Freitas Neto e Di Beneditto (2007), existiam 58 comunidades.

    Porm, o Relatrio 1 do Ministrio da Pesca e Aquicultura (MPA)

    divulgou, em 2010, a existncia de 48 comunidades pesqueiras. Essa mudana nos dados pode indicar a transformao nas reas costeiras que esto se urbanizando. Pode sugerir tambm, entre

    outras questes, as dificuldades de levantamento de dados nessas comunidades, a falta de um modelo padro para o levantamento das estatsticas e as deficincias de vrias ordens durante as coletas de

    dados. Ressalte-se tambm que o estado possui 36 portos de em-barque e desembarque de pescado. Segundo o mesmo relatrio, existem aproximadamente 11.600 postos de trabalho gerados pelo esforo de pesca no Espri-to Santo, divididos entre as atividades de captura extrativa marinha e continental. Se somados os setores de captura e comercializao,

    estima-se um total de 69.720 trabalhadores com empregos diretos

    e indiretos. Os catorze municpios litorneos do ES so no sentido de norte a sul Conceio da Barra, So Mateus, Linhares, Aracruz, Fun-do, Serra, Vitria, Vila Velha, Guarapari, Anchieta, Pima, Itapemi-rim, Maratazes e Presidente Kennedy. Em todos eles h forte presen-

    a da atividade pesqueira na costa martima.A importncia da pesca artesanal realizada no mar relatada em vrios trabalhos. Do ponto de vista da produtividade apesar das

    deficincias na coleta e sistematizao dos dados do desembarque

  • 22 X q e t u W Saberes, Narrativas e conflitos na pesca artesanal D x X C B M P s x d

    pesqueiro , sabe-se que a pesca de pequena escala representa um nmero expressivo da frota pesqueira total em todo o pas. As sociedades pesqueiras, assim denominadas por diver-sos autores (MALDONADO, 1993; BRETON, 1981; CORDEL, 2001 e 1989), tm ocupado o litoral brasileiro h centenas de anos. Consti-turam ao longo dos tempos uma vivncia com estrutura econmica e temporal, at certo ponto, distante da lgica capitalista. Por viverem prximas da natureza, estabeleceram ao longo dos sculos um ethos carregado de regras e prticas sociais de respeito ao ciclo vital dos recursos pesqueiros. Conforme estudos indicam (BOURDIEU, 1989), tendem a resistir s mudanas quando so pressionadas pelos pro-cessos globalizadores (CANCLINI, 2003).

    A pesca artesanal tem sido definida por uma produo de

    baixa escala (ANDRIGUETTO FILHO, 1999) e tem se caracterizado, ao longo dos sculos, no Brasil, como aquela exercida por pequena tripu-lao e barcos no maiores do que 15 metros. Porm, essa produo representa a maior parte do pescado consumido no pas e envolve grande parte da populao de pescadores/trabalhadores. Portanto, a questo da pesca artesanal mostra-se interligada s questes sociais e alimentares. Ao longo do tempo, principalmente das ltimas dcadas, as alteraes nas condies de vida e de trabalho das populaes pes-queiras artesanais tm causado dificuldades manuteno dessa ati-vidade e de seu saber acumulado. Exemplo especfico disso: tanto a moradia na faixa beira-mar quanto o local de trabalho no mar e no oceano Atlntico tm sofrido um adensamento populacional e ocupa-cional. No caso da moradia, percebe-se um fenmeno global presen-te em todos os continentes de ocupao da faixa litornea por meio do primeiro ou segundo domiclio de residentes, de veranistas ou at de especuladores imobilirios. A ocupao pela indstria do turismo

    e pela instalao de outros tipos de indstrias tambm de significa-tiva importncia nesse contexto. No caso do trabalho, encontram-se

  • 23

    as ocupaes dos mares e oceanos em vrias regies do mundo para a explorao dos recursos marinhos ou de recursos do fundo dos oce-anos, o que tem provocado manifestaes em contrrio, vide as aes da ONG Greenpeace no Mxico e na Rssia1. Essas manifestaes tm difundido a informao de que consideram a explorao de combus-tvel fssil nos oceanos como danosa ao meio ambiente, pois a mesma tem provocado danos irreversveis aos recursos marinhos. Em nossos

    estudos, a ocupao do oceano Atlntico na chamada Amaznia azul

    tem se intensificado nas ltimas dcadas pelas pesquisas e explora-es petrolferas em vrios pontos da costa brasileira2, fato que tem afetado a vida marinha e as atividades pesqueiras.

    Segundo os pescadores, a intensificao da movimentao e ocupao no espao pesqueiro prximo costa a principal causa para os recursos pesqueiros terem decrescido. Depoimentos de pescadores:

    isso, ns temos problemas demais, viu? O primeiro problema que a gente tem umas traineiras aqui que vem de Santa Catarina e to acabando com nossa pesca aqui. Pescaria que voc consegue fazer em quarenta anos, uma vida de pesca, em um dia eles conseguem fazer todo esse pescado... setenta toneladas de peixe em dois dias pra lotar uma traineira e o tamanho do peixe que ela pega, entendeu?... (Pescador, ES. 2012). Os pescadores reclamam que os pesqueiros esto cada vez mais longe da costa, o que inviabiliza muito a pesca de ir e vir diariamente, pois os barcos precisam navegar muito alm da zona

    prxima da costa para chegarem aos pesqueiros. Fora o fato de que relatam uma escassez do pescado, necessitando esperar mais tempo para pegar os peixes.

    1 Verificar Greenpeace e a poluio dos mares pela extrao de petrleo. http://www.greenpeace.org/brasil/pt/Noticias/Ativistas-do-Greenpeace-Mexico-sao-inocentados/ http://www.greenpeace.org/brasil/pt/Noticias/Parlamento-Russo-vota-anistia-nesta-quarta/2 Os investimentos em petrleo no Brasil aumentaram muito aps a descoberta do pr-sal em 2008. Mas no tem se restringido explorao em guas profundas. Ver http://www.greenpeace.org/brasil/pt/Noticias/Controversos-investimentos-em-petroleo/

  • 24 X q e t u W Saberes, Narrativas e conflitos na pesca artesanal D x X C B M P s x d

    Sobre a pesca antigamente:E: Onde voc costumava pescar com seu pai? : Hein? Eu pescava aqui perto de Tubaro, ali do lado do Tubaro onde a gente gostava mais de pescar em rede de espera e camaro, e dava mais. Naquela poca era muita fartura que tinha, voc bota a rede, , ns bota a rede. Voc sabe na sada da Curva da Jurema ali? Ns botava a rede ali, matava curvina, sarda, anchova, mas era caixa no era, era fartura de peixe, voc botar a rede ali no pega, botava a rede ali, bota o cercamento, e quando dava de manh cedinho tirava, era muito peixe mas tambm era poucos barco entendeu? (Pescador, ES. 2012). Os barcos, para irem muito alm da costa prxima terra fir-

    me, precisam ser maiores e mais preparados, com mais instrumentos. Para isso, os barcos tm sido aumentados com reformas em estaleiros de barcos artesanais. Tambm novos instrumentos nuticos esto sendo incorporados a eles, como o GPS, a sonda e o sonar, o que tem feito com que a atividade pesqueira tenha novos processos sociais e tecnolgicos. Observa-se, portanto, a modernizao de certos procedi-mentos, efeito da introduo de inovaes tecnolgicas. No entanto,

    no verificvel a completa transformao na natureza artesanal

    da atividade. O primeiro aspecto a permanncia de traos arte-sanais no empreendimento, cujo fundamento ainda chama a aten-o pela forma de aquisio do conhecimento de modo prtico e direto, orientado e acompanhado por mestres experientes. E esses saberes so adquiridos no meio ambiente, local do qual se depende para a sobrevivncia imediata e o qual se pretende preservar para garantir permanentemente os recursos naturais (Diegues, 1998, 2001). O segundo aspecto que esse conhecimento normalmente se caracteriza pelo modo holstico como a relao entre o sujeito e o universo pesquisado/vivenciado percebida (ROU, 2000). Por

    fim, ainda so observadas formas elementares da organizao do trabalho, como a baixa diviso social do trabalho e as fortes relaes de parentesco nas mais tradicionais relaes sociais de produo.

  • 25

    A pesca artesanal no Esprito Santo conforme

    narrativas oficiais

    Figura 4 Mapa do Esprito Santo com dados sobre a atividade pesqueiraFonte: www.mapasparacolorir.com.br, 2014. Adaptao das autoras. A frota pesqueira do Esprito Santo considerada a maior

    frota de pesca ocenica do pas (Relatrio 1, 2010) por contabilizar

    um contingente de 2.486 barcos motorizados e 11.517 pescadores

    ativos. O setor de pesca marinha contribuiu, em 2005, de acordo com o Macro Diagnstico3, com dezoito mil toneladas de pescados cap-turados em guas marinhas. Calcula-se que, em vrios pontos desse

    extenso litoral, parte significativa da populao ainda viva exclusiva

    ou indiretamente da pesca artesanal.

    3 Macro Diagnstico da Aquicultura e Pesca 2005.

  • 26 X q e t u W Saberes, Narrativas e conflitos na pesca artesanal D x X C B M P s x d

    Entre Conceio da Barra e So Mateus existem, segundo os ltimos estudos disponveis do setor4, onze comunidades pesqueiras e duas Colnias de Pescadores (Z1 e Z12) abrigando um contingente

    de 2.008 pescadores ativos e uma frota pesqueira de 390 barcos mo-torizados. Entre os municpios de Linhares e Aracruz h um total de oito comunidades e/ou distritos e duas colnias de pescadores (Z6 e Z7) com uma frota de 215 barcos de pesca motorizados e um contin-gente de 950 pescadores ativos. Na regio metropolitana, entre os municpios de Fundo, Serra, Vitria, Vila Velha e Guarapari, constam dezessete comunida-des e/ou distritos com atividades na cadeia produtiva da pesca. A ati-vidade pesqueira nessa regio composta por 1.054 barcos de pesca o que corresponde a algo em torno de 42,40% da frota capixaba e por um contingente de 2.662 pescadores ativos representando algo

    em torno de 23,11% dos pescadores capixabas. Nessa regio esto as Colnias de Pescadores Z-2, Z-3, Z-5 e Z-11 concentrando o maior nmero dessa representao. A regio possui uma indstria proces-sadora de exportao de pescado, um terminal de pesca pblico, uma cooperativa de pesca e uma associao atuante no setor, alm de con-tar com a sede do IBAMA-ES, a Capitania dos Portos, a SEAP/PR, o INSS e outras instituies ligadas ao setor.

    Os municpios de Anchieta, Pima, Itapemirim, Maratazes e Presidente Kennedy, ao sul do estado, concentram uma frota de 827 barcos de pesca motorizados e tm um contingente de aproximada-mente 5.897 pescadores, distribudos em 22 comunidades ou distri-tos. Tambm renem quatro colnias de pescadores com atividades de aquicultura, associaes atuantes e uma escola de pesca em regi-me de semi-internato voltada para filhos de pescadores. Alm disso,

    concentram a maior frota de lagostas do estado.

    4 Plano de Desenvolvimento da Agricultura Capixaba 2007/2025 Setor da Pesca Marinha.

  • 27

    Em relao aos problemas diretamente relacionados ati-vidade pesqueira, em 2007, o plano estratgico para pesca marinha enumerava vrias dificuldades, dentre as quais a falta de atracadouro adequado para o desembarque do pescado carncia apontada por todas as comunidades. Outros problemas relatados foram a falta de esclarecimento da classe quanto necessidade de guardar a docu-mentao que comprove o tempo de trabalho visando ao direito

    aposentadoria e a baixa escolaridade. Segundo esse plano estrat-gico, em 2007 havia tambm a reclamao por parte dos pescadores de que as instituies governamentais no atendem satisfatoria-mente s necessidades do setor pesqueiro. Esses trabalhadores tam-bm se queixavam de que os empreendimentos para o setor no con-templavam os anseios culturais das comunidades pesqueiras, assim

    como a ausncia de cursos profissionalizantes para o aprimoramen-to dos meios de captura e manejo do pescado. J eram sinalizados em

    2007 os conflitos com a atividade petrolfera e porturia, bem como as divergncias frente s normas reguladoras dos mtodos de pesca; a falta de dilogo interinstitucional no setor pesqueiro; a ausncia de ordenamento dos recursos marinhos e costeiros quando destina-dos construo de infraestrutura para o setor ; a tenso entre as instituies que regulam as relaes trabalhistas de pescadores tri-pulantes, armadores pescadores e armadores de pesca, e a ausncia de gesto interna das associaes.

    O plano estratgico tambm sinalizava que, como resultado da falta de infraestrutura e de logstica voltada para o setor de pesca, havia o fenmeno da migrao, do abandono e da fragmentao de famlias de pescadores na busca de outras atividades no pesqueiras.

    Alm dos problemas j referidos anteriormente, ressaltem-se ainda aqueles resultantes da intensa ocupao da faixa costeira pelo turismo, pela industrializao, pela instalao de portos e por todos os outros que vm a reboque destes, os quais sero abordados mais adiante.

  • 28 X q e t u W Saberes, Narrativas e conflitos na pesca artesanal D x X C B M P s x d

    Na busca por delinear uma soluo para esses problemas visualizados no perodo de 2005 a 2007, o referido documento suge-riu a concluso da primeira etapa do terminal de pesca na microrre-gio-03, localizada no distrito de Itaipava, em Itapemirim a fim de manter o aportamento das 305 embarcaes de pesca naquela loca-lidade , assim como a construo de mais quatro terminais de pesca pblicos at 2025. Para sensibilizar e deliberar assuntos relativos aos principais problemas do setor, a criao da Cmara Setorial da Pesca foi sinalizada e envolveu a participao de todos os membros da ca-deia produtiva do pescado, inclusive caranguejeiros. No entanto, apesar da representatividade do estudo realizado no plano estratgico, nota-se que o setor ainda no conseguiu resolver mais da metade desses problemas anteriormente relatados. Podemos dizer que alguns deles, ao contrrio de decrescer,

    aumentaram principalmente os conflitos decorrentes da instalao de novos investimentos, como os grandes empreendimentos que tm sido implantados na rea litornea do Esprito Santo. A planilha do item 5 mostra que muitas das reclamaes continuam porque os problemas e suas causas no foram enfrentados ou solucionados.

    O Ministrio da Pesca e Aquicultura (MPA), criado em 2008, no parece ter alterado essa situao no sentido de enfatizar a importncia do atendimento das demandas da pesca artesanal.

    No se pode afirmar que vai conseguir alterar a histrica situao de abandono registrada por muitos autores (Silva, 1998; Cordel, 2001; Diegues, 2001) ou se esforar para no adotar uma poltica restrita

    pesca industrial. No site do MPA, h o registro da importncia social e econ-mica da pesca:So eles os responsveis por 60% da pesca nacional, resultando em uma produo de mais de 500 mil toneladas por ano... So milhares de brasileiros, mais de 600 mil, que sustentam suas famlias e geram renda para o pas, trabalhando na captura dos peixes e frutos do mar, no beneficiamento e na comercializao do pescado.

  • 29

    Porm, isso no torna evidente a realizao de planejamento e execuo de polticas de incentivo para o setor da atividade pesqueira. Somente nos ltimos anos, com tmidas aes de apoio s associaes comunitrias de vilas pesqueiras, tem havido um movimento contrrio com finalidade de combater a falta de incentivo

    para a pesca artesanal. Exemplos desse novo empenho tm sido aplicados no insumo subsidiado do leo dos barcos, na realizao do censo da pesca e das estatsticas pesqueiras que tm sido feitas nos ltimos anos, alm do controle maior do registro dos barcos. Mas ainda constam antigos problemas, como a pouca divulgao dos resultados do censo e das pesquisas, o que favorece informaes divergentes que impedem a percepo e a anlise adequada da dinmica que as comunidades tm vivenciado.

    A pesca e os planos de desenvolvimento na rea

    litornea

    A baixa ateno ao setor da pesca artesanal sugere que haja uma concepo equivocada de desenvolvimento, fundamentada na ideia econmica que considera as atividades de base familiar como incapazes de gerar riquezas e melhorias, como se o problema fosse sempre de quantidade e no de qualidade. Mesmo com as diferenas que cercam cada campo, Abramoway (1992) verifica na pesca artesanal similaridade com a agricultura camponesa ao fazer uma abordagem sociolgica rural. No se trata da forma como esse trabalho se d, nem da forma como gerida essa riqueza. H um preconceito de que a pesca artesanal uma pesca de baixa escala e, consequentemente, no gera autonomia, bem estar ou riqueza. Esses trabalhadores no so percebidos como produtores de riquezas. Enquanto para a pesca artesanal pouco investimento dis-ponibilizado, a faixa litornea do estado tem sido local de instalao

  • 30 X q e t u W Saberes, Narrativas e conflitos na pesca artesanal D x X C B M P s x d

    de grandes empreendimentos e de grandes modificaes socioam-bientais, com insero de investimentos e de atividades produtivas e/ou extrativas nas imediaes das comunidades de pescadores arte-sanais nas ltimas dcadas. Os chamados grandes projetos de desen-volvimento (RIBEIRO, 2008; LATOUCHE, 2009) tm sido articulados,

    planejados e implantados nessa rea. As grandes inseres econmicas no litoral do Esprito Santo podem ser identificadas pela indstria de energia de petrleo (plata-formas em alto-mar com estrutura porturia na costa do estado), pela indstria porturia de importao e exportao, pelas indstrias side-rrgicas (ArcelorMittal, Vale, Companhia Siderrgica de Ubu e Samarco)

    e pela ocupao intensa da rea litornea por parte do setor turstico.

    Alguns dos problemas j contam com dcadas de existncia. Mas um novo e mais impactante problema tem sido proposto pelos projetos de desenvolvimento do estado. Refere-se ao licenciamento de um conjunto de portos para a exportao de commodities. A possi-bilidade de criao dos portos uma alternativa para superar o gar-galo da exportao nos portos brasileiros. Com a aprovao da Lei

    n 8.630, de modernizao dos portos brasileiros, a privatizao dos mesmos possibilita o controle do capital privado, alm da possibilida-de de concesso e terceirizao de servios. No Esprito Santo, atualmente, h em torno de duas dezenas de portos em estudos para seu licenciamento e implantao. Segundo mapa divulgado pela Frente Parlamentar Ambientalista da Assem-bleia Estadual, que se acercou de informaes do Iema, h dezoito solicitaes de avaliao de impactos ambientais para a construo dos portos ao longo do litoral do estado, o qual j possui nove portos em funcionamento, sendo que um se encontra em construo. Se os

    vinte portos que esto em estudos forem aprovados significar, em

    mdia, um porto a cada cinquenta quilmetros na costa. Parece, portanto, mais uma vez que o nexo Estado-capital, como mostra Harvey (2011), apenas refora mais ainda a concentra-

  • 31

    o de capital, a assimetria de poderes, a injustia social e ambiental e, por consequncia, a socializao dos problemas. Alm disso, pelos

    relatos aqui expostos, possvel refletir como ficar o mar costeiro, com tantas vezes mais navios, mais dragas e impedimentos sendo im-postos a todos os que j se utilizavam daquele mar muitos anos antes.No caso do Esprito Santo, porm, as questes dos impactos ambientais no se fazem presentes nos discursos desenvolvimentis-tas governamentais. No h destaques para essa questo no proje-to da ONG ES em Ao5, entidade que agrega o interesse de diversas grandes empresas acerca da poltica estadual. Essa ONG se apresenta

    com a proposta de ... alm de participar da elaborao do Plano de

    Desenvolvimento Esprito Santo 2025, a partir de 2009, (...) atuar in-tegralmente voltada para o fortalecimento das propostas do Plano, por meio de aes que estejam alinhadas com as estratgias e metas do Esprito Santo 2025. Seus membros so representantes das em-presas Fibria, ArcelorMittal, Samarco, Vale, Odebrecht, TV Capixaba, Rede Gazeta e outros com faturamento anual no to grande. Paradoxalmente, na outra ponta social a que produz o dis-curso trabalhista (caso da federao dos pescadores) tambm no h referncia aos impactos ambientais de tais propostas, fato que alm de no mostrar a vontade de enfrentamento dessa federao, tambm no mostra o esverdeamento das questes trabalhistas tal como salienta Lopes (2006).

    Ao que parece, o iderio do progresso impe-se e sua ve-emncia parece tornar invisveis as questes sociais envolvendo co-munidades de pescadores e de pequenos pescadores artesanais. Podemos dizer que vrios setores da sociedade do Esprito Santo tm se organizado para reivindicar um estudo de impacto ambiental e indicar que no somente as populaes pesqueiras, mas toda a regio costeira seria impactada.

    5 A ONG ES em Ao pode ser conhecida no site http://www.es-acao.org.br/index.php?id=/sala_de_imprensa/materia.php&cd_matia=2904.

  • 32 X q e t u W Saberes, Narrativas e conflitos na pesca artesanal D x X C B M P s x d

    O campo de desenvolvimento:

    retricas e idealizaes

    Os destacados indicadores de desenvolvimento econmico do Esprito Santo tm garantido uma ampla visibilidade capixaba no cenrio nacional na medida em que o Produto Interno Bruto (PIB) do estado est entre os mais altos do pas, resultado dos investimentos de grande porte nas ltimas dcadas por grandes empresas nacionais e multinacionais dentre elas a Petrobras, a Aracruz Celulose (atu-al Fibria), a Vale e a ArcelorMittal e tambm dos investimentos de mdio e de pequeno porte, decorrentes ou no dos investimentos de grande porte (IGLESIAS, 2010). Isso tem provocado transformaes econmicas, socioculturais e ambientais no estado, as quais propor-cionam mudanas nos estilos de vida de diferentes populaes e alte-ram a paisagem e os ecossistemas de vrias regies do estado.

    Segundo o Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN), a produ-o industrial do Esprito Santo obteve um crescimento acumulado de 24,92% nos primeiros onze meses de 2010 em comparao ao mesmo perodo de 2009, alcanando o primeiro lugar quanto ao nvel de desenvolvimento entre os estados e, inclusive, em relao m-dia de desenvolvimento nacional, que, por sua vez, atingiu um nvel de crescimento acumulado de 11,1%. Esses dados foram divulgados

    pelo IJSN em parceria com o Instituto Brasileiro de Geografia e Esta-tstica (IBGE) no ms de novembro de 20106.Uma anlise histrica sobre os aspectos da economia do es-tado nos ltimos quarenta anos induz a pensar o quo estruturante tem sido a questo do crescimento econmico em termos locais7. A 6 De acordo com a pesquisa realizada em 2010, a indstria capixaba cresceu aproximadamente 25% a mais do que em 2009, alcanando uma larga vantagem sobre o segundo lugar, o estado do Amazonas, o qual obteve 16,9% de crescimento acumulado. Na sequncia, esto os estados de Gois (16,8%), Minas Gerais (15,8%), Paran (15,16%) e Pernambuco (11,2%). Ver: http://www.ijsn.es.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=818:espirito-santo-obteve-o-maior-crescimento-industrial-entre-os-estados-brasileiros-em-2010&catid=105:noticias-gerais&Itemid=294. Acesso em: fev. 2011.7 Ver Zorzal, 2010; Siqueira, 2010.

  • 33

    ideia do crescimento econmico no se configura apenas em senti-do objetivo nos projetos que esto sendo encampados em todo o territrio , mas tambm em termos simblicos. Ou seja, possvel

    identificar o ideal do desenvolvimento ecoando por entre as falas de distintos grupos (os agentes do planejamento, os polticos, os empre-srios, dentre outros grupos sociais locais), cada qual produzindo

    justificativas e acenando para valores e interesses prprios.Alm dos dados disponibilizados pelas agncias de pesqui-sas especializadas, h tambm regularidade na divulgao de tais in-formaes pela mdia impressa local. Um exemplo o do artigo De

    norte a sul, novos polos de negcios se formam no Estado (publicado no jornal A Gazeta em 8/8/2010), onde so encontradas referncias detalhadas sobre a localizao dos empreendimentos de grande por-te j instalados ou em vias de instalao no estado. A acepo polos, grafada no ttulo do artigo, diz respeito capacidade de descentrali-zao desses negcios em vrios ramos na mesma regio e, tambm, sua diversidade. Destacam-se, segundo o texto, o polo gs qumico

    (regio norte do estado), o polo petrolfero (litoral sul), o polo side-rrgico (regio sul do estado), o polo naval (em Aracruz), o polo de

    logstica (Grande Vitria), o polo de energia (em Viana) e o polo de

    tecnologia (Vitria).Merece destaque o fato de que os dois principais jornais do estado, A Tribuna e A Gazeta, publicam matrias habitualmente, sina-lizando positivamente, e insistentemente, para esse projeto por meio da divulgao de grande quantidade de empregos que sero disponi-bilizados a partir da instalao de indstrias e portos, alm de sal-rio acima da mdia nacional. A campanha para (in)formar sobre os portos no estado foi marcada por atuao ideolgica, como se v nos exemplos a seguir.

  • 34 X q e t u W Saberes, Narrativas e conflitos na pesca artesanal D x X C B M P s x d

  • 35

    Figuras 5 e 6 Notcias relacionadas construo de portos no ESFonte: A tribuna, 7/12/2012, capa e pgina 3.

  • 36 X q e t u W Saberes, Narrativas e conflitos na pesca artesanal D x X C B M P s x d

    A ttulo de exemplo, em A Tribuna do dia 7/12/2012 l-se na manchete de capa que 9 portos no estado vo abrir 25 mil empregos. A reportagem ocupa cinco pginas no interior do jornal. Um dos ttulos, inclusive, anuncia: Salrios de at R$ 14 mil em portos no Estado. A informao de que haver a abertura de 25 mil empregos com a construo de nove portos no litoral do Esprito Santo antecede a explicao de que tais portos custaro ao governo federal R$ 13,3 bilhes. Mas no h nenhum questionamento acerca desses nmeros tanto da estimativa de 25 mil postos de trabalho quanto da avaliao dos custos desses portos para o governo , pois no h fonte de referncia ou clculos estatsticos embasando-os. Tambm no h referncia sobre a produo desses portos ou o

    lucro que eles proporcionaro. Os textos tambm no fazem meno sobre quem utilizaria tais portos e para quem se deslocar o capital lucrativo. importante, desse modo, enfatizar que os assuntos que compuseram a reportagem constituem-se num conjunto feito para informar e, mais do que isso, formar uma opinio claramente positiva em relao ao contedo veiculado uma espcie de justificativa sobre os gastos que sero pagos por todos os cidados do Esprito Santo. O leitor induzido a unir as informaes e a pensar que a

    construo dos portos proporcionar apenas benefcios, como a

    gerao de empregos com salrios altos. Isso facilitado por meio das manchetes, da diagramao, das declaraes favorveis das autoridades envolvidas e dos contedos similares.

    A narrativa dos pescadores

    Na sequncia, apresentada uma breve sistematizao dos problemas descritos pelos pescadores durante a realizao das oficinas e a identificao de suas causas. Esses problemas esto

    exercendo impacto direto sobre a atividade pesqueira no estado.

  • 37

    Problemas CausasNos pesqueiros tradicionais (baa de Vitria e Vila Velha), hoje, no se pode mais pescar;

    Falta do pescado (cad o peixe?).

    Aumento do custo e do tempo para pescar pela necessidade de barcos maiores para ir mais longe ao mar.

    Perodo do defeso no adequado reali-dade da pesca.

    Dificuldade para ter a licena de pesca de camaro.

    Dificuldades para tirar os documentos para legalizar a embarcao e a licena para pes-ca; falta de informao e divulgao quanto ao defeso e quanto legislao ambiental frente aos modos tradicionais de pesca e coleta/processamento dos mariscos.

    Prejuzo com o material de trabalho (pela danificao que o abalroamento de grandes navios provoca).

    A dragagem do porto de Vitria;

    A pesca predatria (traineiras) e os grandes empreendimentos tais como portos (construo e expanso, incluindo dragagem), extra-o de petrleo e gs (incluindo plataformas e estudos ssmicos) e atividade porturia (movimentao de navios cargueiros). Situao encontrada em Vitria, Anchieta, Regncia e Linhares, alm da ausncia de fiscalizao das traineiras e do esporte aqutico.

    Impactos socioambientais (poluio dos mangues, assoreamento dos rios, lixo e resduos metlicos jogados ao mar pelos navios cargueiros).

    Praticamente todas as comunidades reclamaram do que conside-ram uma inadequao do perodo de defeso.

    No caso da Ilha das Caieiras, na baa de Vitria, a lei ambiental proibiu a pesca para os pescadores artesanais.

    Burocracia; falta de conhecimento (informaes desencontradas e divergentes); rigidez da legislao ambiental; excesso de institui-es e rgos que atuam na pesca, como Capitania dos Portos (Mi-nistrio da Marinha), IBAMA (Ministrio do Meio Ambiente), SEAP (Secretaria Especial da Pesca Ministrio da Pesca e Aquicultura), Secretaria Estadual da Agricultura e Pesca, Iema (Instituto Estadual do Meio Ambiente) e Polcia Ambiental (MMA). O resultando disso so as prticas de desobedincia s leis e s proibies, ter que pescar escondido por no ter conseguido a licena.

    A atividade porturia e as atividades de manobra de navio quando a Petrobras faz as pesquisas ssmicas.

    No participao dos pescadores na pro-posta e no planejamento dos projetos de desenvolvimento e infraestrutura. Especula-o imobiliria como a que est acontecen-do intensamente na praia de Itapo.

    Oposio do poder pblico cultura da pes-ca artesanal e s condies de trabalho nela empregadas.

    As propostas de urbanizao no incluem a participao dos pes-cadores da praia de Itapo, em Vila Velha. Assim, a modernizao que os gestores planejam para a rea no os inclui como mora-dores ou como trabalhadores do local. Por exemplo: confiscam as mesas de madeira onde os pescadores fazem a limpeza do pescado. A urbanizao da praia de Itapo inclui ciclovia, chuvei-ros e iluminao especial. Esses equipamentos so suspensos no trecho em que os pescadores moram.

    Favorecimento dos grandes empresrios da pesca.

    Uso da associao para interesses pessoais (desmobilizao das pessoas vinculadas associao).

    Aqui no se diferencia muito causa e resultado.Descrena dos pescadores em resolver seus problemas por terem tido muitas gestes que no deram certo, lideranas que no representavam os reais interesses da comunidade; projetos que param com a mudana de governo; os novos lderes no do continuidade e culpam a desarticulao da comunidade.

  • 38 X q e t u W Saberes, Narrativas e conflitos na pesca artesanal D x X C B M P s x d

    Os pescadores narraram a dificuldade atual para encontrar o

    peixe. Falaram que o peixe sumiu, que o peixe ficou mais esperto,

    que no morde a linha facilmente, que tm que esper-lo mais, etc.

    comum essa narrativa ser contraposta a um tempo do passado em que havia muito peixe e era comum voltar com o barco lotado de peixe aps uma pescaria de apenas algumas horas. Porm, tambm comum a avaliao de que eles no tinham o que fazer com tanto peixe e que o peixe era muito barato porque no tinham como vend-lo diretamente ao consumidor. Com a diminuio da quantidade de

    pescado prximo da costa, o caminho aos pesqueiros est ficando mais longo, mais demorado, mais custoso e mais perigoso para seus pequenos barcos. Estes, por isso, tm sido substitudos por barcos

    maiores e mais equipados. As causas sugeridas por eles para explicar a diminuio do pescado nos pesqueiros tradicionais prximos costa foram: a intensa movimentao de navios prximos aos pesqueiros da costa e da boca da baa de Vitria; a frequente dragagem para aprofundamento do fundo, e a atuao das traineiras prximas costa.

    Ns tamo sofrendo porque tem uma draga ali que ela t passando em cima do nosso pesqueiro, porque t abrindo o canal na baa de Vitria, ela t abrindo de ponta a ponta, ento nossas pescaria passava por ali, n? Ento ela t passando por cima, t quebrando todo o fundo [...]. Tem dois ano que a draga t ali por cima, e depois que ela for embora, demora mais dois ano pra recuperao desse terreno. muito difcil...(recuperar o fundo marinho...). A o pescador tem que procurar outro lugar pra pescar, entendeu? Pescador, ES. 2012

    ... isso (a dragagem) at j foi denunciado no IBAMA e o Iema, porque eles (a empresa de dragagem) to pegando a lama toda ali do fundo, e esto..., sabe que primeiro tem que ter uma pessoa do Iema dentro (a fiscalizao), obrigatrio, n? Mas no tem ningum, ento de noite mesmo, eles pega na baa de Vitria, e quando chega aqui na frente, eles joga tudo fora. E quando chega l no lugar onde tm que jogar, ele (o barco) j t fazendo curva pra voltar. Eles na beira, ali, j levanta tudinho (a lama). Isso aqui os

  • 39

    pescadores tm reclamado comigo direto,[...] (esto) jogando lama em cima dos pesqueiro, atrapalhando a coisa todinha... Impacto ambiental essas duas draga dentro da baa de Vitria, que t quebrando tudo. Pescador, ES. 2012L em Aracruz to fazendo aquele porto l que grande pra danar, ns no consegue parar nada, ns vai entrar com a ao e... Pescador, ES. 2012Para os entrevistados em Anchieta, as dragagens executadas pela empresa Samarco tambm interrompem e impedem a vida marinha (PEREIRA, 2014).Para os entrevistados em Regncia, ao norte do estado, as pesquisas ssmicas da Petrobras so devastadoras para os recursos marinhos, como j salientamos em outros trabalhos (TRIGUEIRO,

    KNOX, 2013).Assim as atividades porturias, com movimentao de navios e constantes dragagens, so apontadas como as principais causas para o desaparecimento dos peixes nessa regio prxima costa e para o problema da perda de material de pesca, como redes e outros apetrechos de trabalho. Alm disso, a maioria dos entrevistados reclamou da presena das traineiras margem da costa, burlando a legislao ambiental. Dizem que a fiscalizao sabe da existncia delas, mas, mesmo assim, elas continuam sendo usadas para pesca em lugares proibidos devido falta de fiscalizao. Referem-se

    s traineiras como sendo de propriedade de um senador. Essa informao no pode ser comprovada, mas o fato que ela indica o poder poltico acima da legislao e, por isso, indica tambm a assimetria de poder existente entre os pescadores artesanais e a pesca industrial.Para os pescadores, o defeso representa um problema, no uma soluo. Isso porque eles raramente percebem, de forma concre-ta, um aumento de produtividade na extrao do pescado no perodo seguinte ao tempo de proibio de pesca. No argumento utilizado, os

    pescadores comentam sobre a extralocalidade que a proibio tem,

  • 40 X q e t u W Saberes, Narrativas e conflitos na pesca artesanal D x X C B M P s x d

    ou seja, sobre o fato de essa proibio no se referir especificamente

    s condies biolgicas e geogrficas daquela localidade e perodo. Por

    isso, no acreditam na eficcia da interrupo da extrao. Com a ho-mogeneizao do perodo do defeso independente da geografia regio-nal, o resultado esperado com a medida decresce em sua credibilidade. Talvez tambm seja a falta da mesma que diminua as possibilidades de que o defeso seja praticado por todos e em toda a sua extenso.

    Aqui nunca se bateu (a polcia no fiscalizava) na baa de Vitria. Os pescadores jogavam sua tarrafa aqui, jogava sua redinha... A da eu conversei, vem c, voc sabe o que impacto ambiental? Impacto ambiental o cara pegar trs carapebinha? Voc acha que isso impacto ambiental? O dia que parar de passar essas dragas a, os peixe voltam tudo. O problema no rede, uma tarrafinha que o cara joga no... Pescador, ES. 2012

    Essas narrativas nos permitem saber que houve um tempo em que se pescava nos lugares onde hoje proibido. Tais narrativas, a partir do olhar do pescador, criaram a inveno da proibio da pesca e inverteram os verdadeiros causadores de impacto ambiental.

    Dificuldades de toda sorte de exigncia burocrtica so rela-tadas. Ao que parece h uma divergncia de normas e exigncias en-tre agncias fiscalizadoras, reguladoras e credenciadoras martimas

    e ambientais.

    ... olha, tem barco aqui..., ns temos. Sessenta por cento dos barcos no tem licena de camaro, porque eles (os rgos responsveis) no do, tem mais de vinte anos que eles no do... a burocracia, tudo aqui ruim... Pescador, ES. 2012

    Somando-se ao conflito de posies, regras e normas das agn-cias, h ainda a baixa escolaridade e a falta de acesso aos meios infor-mativos digitalizados e disponveis na web. Por isso, esses trabalhadores fazem questo de enfatizar as dificuldades para ter a licena de pescador

    de camaro e para obter os documentos que legalizam a embarcao.

  • 41

    Eles reconhecem a falta de participao dos pescadores na luta pelos seus interesses e analisam que as causas desse problema se devem a um conjunto de fatores: falta de vontade do poder pblico para ouvir o que eles, pescadores, tm a dizer e a opinar; manipulao das questes que os envolvem por parte do governo e dos polticos, e m gesto das associaes de pescadores, ressaltando a pouca vontade para o bem comum nas lideranas e a priorizao de interesses individuais. No municpio de Vila Velha, em relao participao, por exemplo, os pescadores falaram da conduta de agentes municipais: estes, claramente, atuam contra a presena daqueles na beira-mar, desmobilizando-os, provocando divergncias, cooptando lideranas, seja para expuls-los de suas moradias, seja para impedi-los de vender diretamente o pescado ao consumidor nas barracas montadas na areia da praia, perto do calamento. No so mostradas alternativas.

    As aes que demonstram isso so o confisco das barracas, por exemplo, para impedir a atividade de venda do peixe, assim como a no urbanizao da rea em que moram, em frente praia de Itapo, como a no instalao de chuveiros, de ciclovia e de outros servios instalados em outras partes dessa praia.

    As narrativas em confronto: as mudanas nos

    ltimos anos

    Nos documentos de uma dcada atrs, citados anteriormen-te, no h referncia dificuldade de encontro de peixes nos pesquei-ros. Porm, esses registros j continham reclamaes sobre as ativi-dades ssmicas e a movimentao de navios na rea de pesca. Nada foi feito para minorar essa situao, que, bem ao contrrio, tem se intensificado proporo que mais atividades ssmicas so realiza-das. O que tem sido feito so medidas compensatrias propostas por

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    empresas. Porm, elas no chegam a solucionar o problema, visto que no h possibilidade real de a rea explorada no fundo do mar voltar ao seu estado original. Sobre o processo de negociao das compensaes que en-volvem as associaes das regies impactadas e as empresas causa-doras de impactos, h uma srie de dificuldades a serem contornadas.

    Percebe-se que a fragilidade da organizao e as dificuldades inter-nas na gesto poltica dos interesses coletivos aumentam conside-ravelmente com o aliciamento e a manipulao que as instituies e empresas exercem sobre as lideranas.Todos esses problemas, ao permanecerem inalterados por tantos anos, permitem depreender que essa situao resultado de uma poltica pblica pesqueira deficiente. Projetos como a proposta de criao de uma cmara de assessoramento da pesca at hoje no se efetivaram em todos os municpios litorneos.Apesar de os documentos conterem indicaes de que os pescadores estavam aumentando a capacidade tecnolgica e, portan-to, a possibilidade de realizao da pesca mais ocenica, nota-se que a presena de grandes barcos/traineiras na costa afeta diretamente os pescadores artesanais. Alm disso, a presena de moradias, de inds-trias e de portos beira-mar, em quantidade muito maior, sem inves-timento em infraestrutura bsica e planejamento adequado, provoca grandes impactos sociais e ambientais. Percebe-se na anlise dos temas elencados pelos pescadores a capacidade de mapear com clareza os problemas que circundam a atividade e a necessidade de fazer denncias ao poder pblico para produzir efeitos significativos. Alguns depoimentos mereceram des-taque e foram citados no artigo.Nota-se tambm a baixa exequibilidade das propostas de so-lues estratgicas presentes nos documentos oficiais para o setor

    pesqueiro e menos ainda para os pescadores artesanais.

  • 43

    Os pescadores reconheceram o forte impacto nos recursos pesqueiros devido colocao de redes de espera de modo inadequado e irregular. E essa pode ser considerada tambm mais uma das vrias causas para o decrscimo da quantidade de peixes prximo da costa. Consideram tambm que a crescente quantidade de barcos nos ltimos quarenta anos pode ter provocado maior invaso na faixa costeira e ter produzido a percepo de menor quantidade de peixe pescado por barco. Como no h estatsticas de desembarque pesqueiro acompanhando essas ltimas quatro dcadas, no se pode conferir por meio dos dados disponveis a percepo narrada pelos pescadores.Os trabalhadores do mar comunicaram tambm que as informaes contraditrias, divergentes e conflitantes entre os diversos rgos que tratam do setor pesqueiro (Ministrio da Pesca, IBAMA, Capitania dos Portos, Iema, Secretaria de Agricultura, as diversas secretarias ambientais e a polcia ambiental) prejudicam muito a difuso correta, ou pelo menos homognea, de informaes e fazem o mosaico institucional parecer mais catico.Complementando o quadrante institucional da pesca referido como catico visto que produz muita informao e muita burocracia, confunde mais do que ajuda , h ainda na organizao dos pescadores regionais a tendncia de formar muitas agncias de representao/proteo/credenciamento. Nesse sentido, h uma

    reproduo da complexa ramificao de instituies nas associaes

    de filiao/representao dos pescadores para as atividades da pesca, tais como as associaes de moradores e de pescadores, as colnias de pescadores e duas federaes de pescadores uma coligando as associaes de pescadores e a outra reunindo as Colnias de Pesca.

  • 44 X q e t u W Saberes, Narrativas e conflitos na pesca artesanal D x X C B M P s x d

    Apontamentos finais

    Restam perguntas acerca do tipo e do sentido de desenvolvi-mento que se quer implantar e, a partir disso, definir onde empreen-d-lo e como faz-lo. Em primeiro lugar, o que se observa que o de-senvolvimento ainda uma ideia geralmente restrita ao crescimento econmico quantificado por indicadores econmicos como o PIB (ELI

    DA VEIGA, 2008; KLICKBERG, 2010). No estado do Esprito Santo tem vigorado um modelo de de-senvolvimento econmico restrito quase exclusivamente ao cresci-mento econmico nas trs ltimas dcadas. Apesar das crticas feitas pelos movimentos ambientalistas ausncia de um modelo de desen-volvimento sustentvel, observa-se que os processos de implantao ou de expanso dos grandes empreendimentos no estado tm ocor-rido muito distantes da ideia de sustentabilidade, aproveitando-se, ao contrrio, do grau de polissemia e fluidez que essa noo carrega para facilitar sua incluso nos discursos dos agentes do desenvolvi-mento. Isso tem provocado, na prtica, um nmero cada vez maior de impactos ambientais, alm de um nmero equivalente de problemas sociais, pois o desenvolvimento econmico por si s no tem trazido o desenvolvimento humano, educacional e cultural, ou ainda a elimi-nao da pobreza. Por isso emergem problemas relacionados alte-rao brusca de modos de vida e de condies de trabalho de popula-es que, at ento, eram reconhecidas como tradicionais.O homem economicus moderno e racional em oposio ao tradicional criado no seio da sociedade capitalista tem caracters-ticas determinadas pela expanso e dominao de outros mercados, assim como da natureza. Desse modo, a utilizao da ideia do desen-volvimento ou da lei do progresso acaba se constituindo numa neces-sidade criada, tornando-se um instrumento ideolgico. Observa-se ao longo do litoral do Esprito Santo um tipo de desenvolvimento cuja finalidade extralocal. Ou seja, os nveis de in-

  • 45

    teresse nacional e internacional de desenvolvimento sobrepem-se aos interesses genuinamente locais. A criao de territrios de proteo e excluso na forma de unidades de conservao tem ocupado espao considervel nos mo-vimentos ambientalistas regionais, os quais veem a criao de uni-dades de conservao como estratgias de barganha poltica para a conservao ambiental frente ao impacto dos grandes projetos. Origi-nalmente, os pescadores no consideravam essa uma boa possibilida-de, visto que o mar considerado de todos (MALDONADO, 1994). No entanto, devido ao fato de o mar estar sendo dividido e apropriado, pode-se dizer que a criao de territrios comea a ser uma discusso entre os pescadores devido aos grandes desafios que tm enfrentado no s no estado do Esprito Santo como acabamos de relatar , mas em vrias outras regies da costa brasileira.Os problemas anteriormente relatados ameaam o trabalho e o modo de vida dos antigos residentes, promovem grandes e, mui-tas vezes, violentas transformaes socioculturais locais e, em vrios casos, a expulso dos residentes nativos junto com a emergncia de conflitos socioambientais situaes semelhantes s de alguns estu-dos realizados ao longo da faixa costeira brasileira (FUKS, 2001; RA-MOS, 2009; MORAES, 2004; MOTA, 2004; LIMA, 1997; KNOX, 2009) e

    s que sero mostradas ao longo deste livro.

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  • 51

    Captulo 2

    Justia ambiental e os pescadores na Baa de Guanabara: uma proposta de nuances

    sociolgicas

    David Gonalves SoaresIntroduo

    ste artigo se prope a analisar o grau de pertinncia de alguns pressupostos analticos encontrados em um modelo terico de grande projeo e recrutamento nas cincias sociais brasileiras sobre o tema dos conflitos ambientais. Faz-se referncia aqui aos pressupostos tericos da chamada escola estrutural-construtivista do conflito ambiental8. Eles esto associados, ntima e explicitamente, ao quadro interpretativo do movimento por justia ambiental. A noo de justia ambiental, surgida no contexto dos movimentos sociais norte-americanos e transplantada s nossas terras, vem dando novo significado questo ambiental e ao

    papel dos conflitos ambientais. Sob a forma de uma aproximao entre as lutas pelos direitos civis e sociais e a luta ambientalista, os movimentos por justia ambiental vm renovando os discursos 8 Expresso utilizada por Carneiro (2010) para designar uma linha de estudos nas Cincias Sociais sobre a temtica do meio ambiente, que tem sido uma das mais influentes na produo nacional e que vem se baseando, mormente, nas ideias bourdieusianas e nas suas readequaes para a temtica ambiental. No mencionado artigo, Carneiro demonstra que h uma hegemonia de suas interpretaes e modelos de anlise na apresentao de trabalhos nos ltimos anos no grupo de trabalho sobre meio ambiente dos encontros da ANPOCS (Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Cincias Sociais).

    e

  • 52 X q e t u W Saberes, Narrativas e conflitos na pesca artesanal D x X C B M P s x d

    ambientalistas mais tradicionais, ao question-los por sua nuclear ateno cooperao social em prol de uma inconsistente noo

    de sustentabilidade verificvel nas representaes hegemnicas do

    chamado desenvolvimento sustentvel.

    Segundo essas interpretaes, os conflitos ambientais, objetos deste artigo, so expresses de uma estrutura social antagnica que se assenta na extrema desigualdade de condies sociais, polticas e econmicas entre grupos e classes sociais, manifestando-se plenamente em suas condies ambientais de existncia. Os conflitos

    ambientais (tambm denominados socioambientais) so gerados, dentre outros motivos9, pelo aporte de empreendimentos privados ou pblicos em regies com populaes vulnerveis, cujas atividades e prticas sociais passam a ser ameaadas pela operao de indstrias e empreendimentos sujos ou excludentes do ponto de vista do

    acesso aos recursos ambientais. Esse conjunto de teses supe que pela exacerbao dos conflitos ambientais poder-se-ia promover uma discusso pblica sobre os rumos do desenvolvimento, em direo a processos de politizao da questo ambiental, em detrimento do olhar economicista com que esta vem sendo hegemonicamente referenciada. Tais teses pressupem que o discurso crtico desenvolvido pelo movimento em consonncia com as aes coletivas locais de resistncia e defesa dos lugares pode produzir nveis de mudana social, ao deslegitimar prticas, leis e procedimentos que permitem que os mais pobres sejam frequentemente penalizados pelas decises que acarretam impactos ambientais.

    9 So interminveis as discusses acerca do conceito de conflito ambiental e dos tipos de conflitos considerados ambientais. Algumas classificaes e tipologias podem ser encontradas em Herculano (2006), Ferreira (2005), Alonso & Costa (2002), entre outros. Intentamos no polemizar o conceito e pens-lo simplesmente a partir de dois elementos essenciais: a) um fenomnico, relacionado aos conflitos de uso de recursos naturais; e b) outro que poderia ser alocado mais prximo de uma perspectiva construtivista, na qual os conflitos so denominados pelos agentes de ambientais, em que noes, categorias, argumentos, direitos acionados levam em considerao representaes de meio ambiente e sustentabilidade, normalmente veiculadas nas inmeras arenas pblicas: judicirio, mdia e outras.

  • 53

    Esse modelo terico endossado por parte das literaturas sociolgica e antropolgica, as quais vm chamando ateno para os diferentes usos e prticas sociais de grupos locais em relao aos sistemas naturais, interpretando-os, assim, como distintas formas de apropriao social da natureza. Essas interpretaes, denominadas

    frequentemente de projetos distintos de sociedade ou modelos

    de sustentabilidade (ZHOURI et al., 2005), enfatizam o papel das comunidades tradicionais nos conflitos ambientais. Desse modo, agregam contornos mais ricos e inclusivos s formulaes originais do movimento por justia ambiental, cujas origens remontam dcada de 1980 nos Estados Unidos.A denncia da injustia ambiental em nossas terras, segundo tais interpretaes, no estaria relacionada apenas aos malefcios da

    poluio txica e aos riscos desproporcionais infligidos s populaes

    menos afluentes ou a grupos tnicos urbanos. Esse seria o mote

    principal do movimento criado nos EUA. No contexto brasileiro, o estado de injustia ambiental tocaria tambm o problema das comunidades extrativistas localizadas nas fronteiras de expanso das relaes capitalistas: comunidades tradicionais, portadoras de direitos culturais e identitrios prprios, como os seringueiros, ribeirinhos, indgenas e pescadores artesanais. O artigo avalia em que medida esse modelo terico pode ser considerado para se pensar as reaes dos diversos grupos extrativistas investidos em conflitos ambientais. Para tanto,

    realizamos uma anlise processual do conflito estabelecido, entre os anos 2000 e 2011, pelos grupos de pescadores da Baa de Guanabara, no Rio de Janeiro, e a empresa Petrobras. Questionamos, com apoio do caso emprico, at que ponto as reaes coletivas de alguns desses grupos podem ser associadas s reaes relacionadas s lutas ecologistas locais, como sugerem as perspectivas tericas dominantes anteriormente mencionadas.

  • 54 X q e t u W Saberes, Narrativas e conflitos na pesca artesanal D x X C B M P s x d

    Estrutural-construtivismo e justia ambiental

    A perspectiva construtivista do conflito ambiental privilegia o modo pelo qual os atores percebem e constroem problemas ambientais e seu desdobramento em conflitos sociais. No geral, as posies mais construtivistas procuram demonstrar a impossibilidade de se pensar em uma realidade ambiental externa s conscincias individuais e coletivas. Nesse sentido, s possvel falar de uma natureza que exista para os grupos humanos, uma natureza socializada. E por ser sempre socializada, a natureza concebida como

    de mltiplas apropriaes pelos mltiplos grupos sociais existentes. Essas apropriaes sociais se desenvolvem na dobra tanto material quanto simblica da experincia. Configuram vises de mundo que

    podem coexistir marcadas por conflitos ou sem choques substanciais. Pertencentes a essa perspectiva, os trabalhos de Acselrad (2001, 2004, 2005, 2009) e Herculano (2002, 2006), dentre outros, apresentam esforo de sistematizao de uma abordagem da questo ambiental centrada nas noes de conflitos ambientais e justia

    ambiental. O ncleo de seus argumentos a desconstruo crtica das perspectivas dominantes sobre o tema, dos paradigmas da modernizao ecolgica e do desenvolvimento sustentvel. Para Acserald (op. cit.), por exemplo, os conflitos ambientais ocorrem em virtude do choque entre as diferentes formas de apropriao social da natureza, por distintos grupos sociais, suas culturas materiais e sistemas simblicos, que coexistem ou ameaam coexistir em uma mesma localidade, regio ou pas. Dado que no espao social os atores possuem quantidades e qualidades diferenciadas de recursos (materiais, polticos e organizacionais), o resultado das tenses, dos movimentos de resistncia e mesmo de um confronto iniciado , em geral, determinado por essa diferena relacional, apesar de haver reservas de contingncia de acordo com as capacidades dos atores locais em subverter o consenso do jogo.

  • 55

    A referncia principal aqui a de campo social, postulada por Bourdieu (1983, 2004) como um espao de jogo polarizado entre agentes que ocupam posies dominantes e dominadas e que, valendo-se de estratgias de conservao ou de subverso, travam lutas concorrenciais em torno do capital especfico de cada campo. Destacando a necessidade de se perceber a relao dialtica entre estruturas e estratgias, ele afirma, de um lado, que as posies dos agentes so previamente estabelecidas pela estrutura do campo em questo, que, por sua vez, guarda homologias estruturais com os campos sociais e polticos mais gerais, e, de outro, que essa luta concorrencial se d dentro dos limites da doxa (do consenso), dos interesses comuns que esto na base dos conflitos.

    Nesse modelo de anlise, os conflitos ambientais tendo como atores principais empresas, governos, ONGs e populaes locais ocorrem no interior de um campo de foras definido como

    ambiental, no qual esto em disputa significados e representaes

    acerca do meio ambiente. Sabe-se que o poder de impor significados est diretamente relacionado com as posies diferenciadas dos atores na estrutura social: estruturas duplas, tanto cognitivo-perceptiva quanto poltico-material. Portanto, os atores em posies vantajosas na escala de poder tendem tambm a obter vantagens na imposio de seus significados, na definio dos consensos. A doxa vem sendo, assim, formada por noes relacionadas sustentabilidade, ao meio ambiente e ao desenvolvimento.

    Se o Estado e o empresariado foras hegemnicas no projeto desenvolvimentista incorporam a crtica insustentabilidade do modelo de desenvolvimento, passam a ocupar tambm posio privilegiada para dar contedo prpria noo de sustentabilidade. (ACSELRAD, 2001, p. 30)

    As diferenas de poder e recursos simblicos manifestam-se concre-tamente na espacializao dos riscos e da destruio ambiental. Os

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    conflitos ambientais explicitam, assim, as relaes de fora de um campo ambiental mais amplo, campo que movimenta os atores so-ciais tanto a partir dos discursos quanto a partir das prticas mate-riais. Nesse campo, os agentes hegemnicos utilizam estratgias de conservao dessas relaes desiguais, enquanto cabe aos atores no hegemnicos mover recursos organizacionais e simblicos que trans-formem as representaes sociais durante o problema ambiental.Mas como faz-lo seno mediante o estabelecimento de amplos movimentos sociais? Esses movimentos precisam apresentar novos discursos e significados, que enunciem como ilegtima uma

    situao que costumeiramente concebida como natural. Precisam tambm construir e valorizar novas identidades, pressuposto lgico da luta por novos direitos (SORJ, 2001, 2004). Percebe-se nesse sentido a construo alternativa de outra matriz discursiva que nos ltimos anos vem inegavelmente ganhando terreno: a matriz discursiva da equidade, que transfere a discusso de um meio ambiente uno, comum e de responsabilidade de todos, para enfatizar os jogos sociais que produzem desigualdade e extrema injustia ambiental.A questo das identidades est no cerne da problemtica abordada aqui. O movimento por justia ambiental almeja declaradamente a construo do que, na terminologia desenvolvida por Castells (1999), seria um movimento baseado em identidades de

    projeto. Como esse autor descreve, tal movimento seria desenvolvido

    por aqueles que buscam a redefinio de suas posies na sociedade, e, ao faz-lo, almejam a transformao de toda a estrutura social diferentemente dos movimentos baseados em identidades de resistncia, por exemplo, que tendem a criar comunas, protees

    socialmente circunscritas. O movimento por justia ambiental estaria exatamente nessa passagem da luta de resistncia dos grupos sociais localizados para um projeto de resistncia global, para a

  • 57

    construo de uma identidade de projeto, a partir do lema poluio desproporcional para ningum10. Todavia, se essa a estrutura cognitivo-normativa do movimento, na prtica, como as lutas individualizadas de resistncia podem ser interpretadas no interior desse quadro? Em que medida pode ser identificada nas aes coletivas de grupos impactados, sejam eles tradicionais ou no, uma luta funcional em defesa da preservao do meio ambiente? At que ponto tais aes coletivas seriam sintomas de uma mudana paradigmtica proposta pelos movimentos que pregam a justia ambiental? Na busca por seus interesses de sobrevivncia e reproduo social, estariam eles sendo funcionais para uma luta ecologista e para processos de mudana que, julga-se, tornem a sociedade mais sustentvel? Em caso positivo, que

    mecanismos so acionados na passagem das aes locais, dos conflitos locais, de seus interesses imediatos na luta, para a construo de um movimento baseado em uma identidade de projeto? Para promover

    uma reflexo terica sobre essas questes, apresentamos a seguir o

    caso do conflito ambiental entre grupos de pescadores localizados na Baa de Guanabara e a empresa Petrobras por ocasio dos anncios dos empreendimentos do Complexo Petroqumico do Rio de Janeiro.

    Os pescadores artesanais da Baa de Guanabara e a

    contnua precarizao de suas atividades

    A apresentao de alguns elementos da reproduo social dos pescadores da Baa de Guanabara requer uma contextualizao para elucidar os termos e os sentidos de suas aes nos confrontos recentes, objetos deste trabalho. Tambm contribui para explicar as restries

    10 A mudana paradigmtica e o aspecto fortemente crtico do movimento por justia ambiental so representados no lema NIABY (Not in anybody backyard), em clara aluso ao conhecido movimento NIMBY (Not in my backyard).

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    s aes coletivas que demarcaram a situao desses pescadores at o incio da dcada de 2000. Para isso, importa descrever os dilemas vivenciados no ambiente da Baa de Guanabara, relacionados s proibies e restries atividade da pesca em virtude da degradao ambiental, da desconcertada gesto ambiental do territrio e das relaes institucionais e cotidianas com os atores que interagem no mesmo espao com diferentes e conflitantes interesses.

    Figura 7 Baa de GuanabaraFonte: Imagem LANDSAT S-23-20_2000. Disponvel em https://zulu.ssc.nasa.gov/mrsid/mrsid.pl.

  • 59

    A atividade pesqueira na Baa de Guanabara realizada ma-joritariamente de maneira artesanal. A maior parte dos pescadores utiliza barcos a remo e alguns motores de baixa potncia, sem meios para a conservao do pescado, usando como principais petrechos de pesca as redes, as garateias e os espinhis. A comercializao feita principalmente por terceiros que se dirigem aos locais de desembar-que, pois os pescadores no possuem meios de conservar a produo, tendo que se sujeitar a vend-la a preos baixos. Em face da precariedade do trabalho na pesca, cada vez mais comum que os pescadores, sobretudo os mais novos, se empenhem em outras atividades. Na pesquisa realizada por Giuliani et al. (2005), 64% dos pescadores entrevistados que atuam junto rea de Proteo

    Ambiental de Guapimirim tinham outra ocupao. Boa parte dos pes-cadores acumula, com a pesca e a captura de caranguejos, uma srie de outras atividades, principalmente trabalhos temporrios e ocasionais como biscates na construo civil, na coleta de garrafas plsticas e na venda de caranguejos e pescados. A situao de moradia desses pes-cadores extremamente precria. Muitas vilas antigas de pescadores

    tornaram-se ambientes de moradias suburbanas ou favelas.

    Figura 8 ESEC Guanabara e APA GuapimirimFonte: http://www4.icmbio.gov.br/apaguapimirim/?id_menu=41.

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    Na regio de Mag, Rio de Janeiro, Chaves e SantAnna (2003)

    avaliaram os processos de trabalho e a vida dos pescadores. Muitos deles apresentavam problemas de sade, como doenas de veiculao hdrica e de vetores, alm de transtornos mentais. Algumas enfermi-dades chegaram a ocasionar mortes. Para os autores, essas ocorrn-cias se devem basicamente s questes econmicas e situao de total desamparo em que a categoria se encontra. Albano Silva, um dos informantes de nossa pesquisa, diz ser patente que a precariedade do trabalho e os resultados econmicos da pesca para os pescadores individuais tm ocasionado problemas de sade pblica. Rosa e Mat-tos (2010), que traaram o perfil de parte dos pescadores e catadores existentes na Baa de Guanabara, sobretudo daqueles localizados no interior da baa, concluram seu trabalho deste modo:

    A pesca na Baa de Guanabara resiste apesar da intensa degradao e esses trabalhadores precisam de um esforo maior para compensar a diminuio do pescado e do caranguejo no mangue. Para isso, alm de uma longa jornada de trabalho para conseguir o mximo de aproveitamento no mar ou no mangue, eles recorrem a outras atividades para buscar a sobrevivn