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Linguagem binária CONTOS VIVIANE DE SANTANA PAULO 1 Linguagem binária contos [email protected] Berlim, 2014

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Linguagem binária CONTOS

VIVIANE DE SANTANA PAULO

1

Linguagem

binária

contos

[email protected]

Berlim, 2014

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VIVIANE DE SANTANA PAULO

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Viviane de Santana (Viviane de Santana Paulo /São Paulo), poeta, tradutora e ensaísta, é autora dos livros,

Viver em outra língua (romance, Solid Earth, Berlim 2017), Depois do canto do gurinhatã, (poesia, editora

Multifoco, Rio de Janeiro, 2011), Estrangeiro de Mim (contos, editora Gardez! Verlag, Alemanha, 2005) e

Passeio ao Longo do Reno (poesia, editora Gardez! Verlag, Alemanha, 2002). Em parceria com Floriano Martins,

Em silêncio (Fortaleza, CE: ARC Edições, 2014) e Abismanto (poemas, Sol Negro Edições, Natal/RN, 2012).

Participa das antologias Roteiro de Poesia Brasileira - Poetas da década de 2000 (Global Editora, São Paulo,

2009) e da Antología de poesía brasileña (Huerga Y Fierro, Madri, 2007). Publica poemas em revistas e jornais

entre eles, Suplemento Literário de Minas Gerais, Inimigo Rumor, Jornal Rascunho, Poesia Sempre e Coyote;

assim como nas revistas Argos e Alforja (México). Em 2012, participa do VIII Festival Internacional de Poesia em

Granada, Nicarágua, e em 2016, do XX Festival Internacional “Noites de Poesia”de Curtea de Arges, Romênia.

Atualmente, vive em Berlim.

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Índice

Morte em Nova York 05

Nervos de Gaia 20

Janelas 23

Projeção lenticular micro

impressa do medo 35

De momento 44

Invocadora sem feitiços 48

Nas hastes das nuvens 57

Comendo as bolinhas da galáxia 67

Norberto M. Callado 71

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Morte em Nova York

Quando saí do subterrâneo da estação de metrô e subi as escadas, os

arranha-céus despontaram na imagem, no anverso do céu azul marinho de início de

noite. Abri o guarda-chuva para me proteger da garoa, caminhei até a esquina,

empurrando a mala preta. Uma canção perseverava na minha cabeça, dessas que se

ouve, casualmente, em casa, na loja de departamentos, na lanchonete, na rua,

dentro do avião. A canção se apodera da sonoplastia do cotidiano, te acompanha o

tempo todo. Não se tratava de uma melodia desagradável, mas se tornava

obsedante quando insistente. O táxi surgiu na hora certa (como quase nada nesta

vida, destruindo a teoria de ser impossível conseguir um táxi nesta cidade). A

surpresa foi grande que eu quase não entro. Quando ele estacionou após o meu

breve sinal, hesitei desconfiada do destino, da realidade, do motorista chinês.

Entrei, temendo que alguém fosse mais rápido e pegasse o meu táxi (cena que vi

em muitos filmes). O meu inglês tinha sotaque alemão, o do chinês, francês. Ele

nascera na Bretanha, em uma casa de pedra e madeira —, segundo entendi, ao me

contar enquanto dirigia —, agora a família vivia nos Estados Unidos. A canção

continuou na minha cabeça à medida que as ruas congestionadas passavam freadas

pela janela fechada escorrendo nuvem. Esquinas, semáforos, transversais se

multiplicavam. As luzes nédias se mexiam, gotejavam nas verticais dos edifícios

(não eram fios de chuva), piscavam (não eram enxame de abelhas coloridas,

cobrindo as fachadas dos arranhas-céus). O táxi parou na entrada do hotel. O chão

da recepção possuía um tapete fulvo, gasto. Mas os fiapos nas fímbrias eram

somente para aqueles que tropeçassem, como eu, e fossem obrigados a olhar para o

chão, não para a cara do recepcionista, magro, calvo, rugas fundas na fisionomia de

funcionário de hotel, atrás dos óculos.

— Boa noite! Fiz reserva pela internet. Meu nome é Antônia da Silva Zähe.

Deixei o tropeço para trás, comecei a me identificar para fazê-lo cumprir com o seu

papel de recepcionista de hotel modesto, ao invés de testemunhar alguém quase

beijando o chão.

— Sim, a reserva está feita. Seis noites. Aqui está a chave! Eu a

acompanho. Só esta mala? Para ser gentil ele pegou a mala que o seguiu obediente

como um cão. O elevador era estreito, tinha cheiro de ferro, nicotina resistente aos

anos e chuva velha. O corredor também cheirava assim, mas com formato de reta e

terceira porta à direita. Thank you! Exclamei após ele abrir a porta, me mostrar o

pequeno quarto, com espaço para uma cama de casal, o armário, a mesinha com

dois sofás. O banheiro era claro e minúsculo. O cheiro de chuva velha e ferro

persistia. A nicotina se desvanecera. Dei-lhe uma irrisória gorjeta. O que ele

esperava? O ruído alto da sirene de uma ambulância rasgou a escuridão acesa do

outro lado da janela oculta por uma cortina azulada. Abri as cortinas, mirei a

cidade. Mas eram apenas os outros edifícios, as luzes se mexendo, a rua lá

embaixo, esticada e negra, com os automóveis em cima, margeada pelas calçadas,

algumas árvores e seus passantes inquietos. Escutei a brisa de junho soprar desperta

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e fresca, movimentar as cortinas, calar-se cedendo lugar ao ruído abafado dos

automóveis transitando nas grandes avenidas, como o som do ronco de um

dinossauro de metal sonhando. A canção ressoava na minha mente. Eu estava

cansada, em consequência da longa viagem de avião, precisava dormir. Fechei a

janela. Tomei uma ducha rápida e joguei meu corpo lasso na cama.

No dia seguinte, eu iria ao lugar onde os arranha-céus nascem mais altos e

brilhantes, e almoçaria com o meu amigo grego, Zenos Angelopoulos. Esperava

que o sol me revelasse nichos fora dos guias turísticos, mas amanheceu chovendo.

Nas férias tudo se torna outra rotina, outras imagens, outro sabor e cheiros, a

realidade se transfigura em novidade e vigor, até mesmo um dia nublado e chuvoso

pode se converter em uma experiência extraordinária ou em uma aventura.

Com a claridade diurna o hotel adquiriu outro aspecto. Era uma construção

antiga carecendo de reformas. A decoração, uma mescla de nostalgia dos anos

trinta e liquidação de loja de móveis exibindo modelos encalhados que ninguém

compra por serem cafonas. Nenhum móvel combinava com outro, muito menos

com o tapete gabeh abóbora ou o oriental avermelhado, ou com os quadros

abstratos, os retratos de reis, rainhas que nunca existiram, mas parecidos com os da

Inglaterra ou Holanda. Havia uma sala de espera com sofás de couro gasto e

mesinhas destoantes. Ao atravessar a sala alcançava-se o local onde era servido o

café da manhã: ovos fritos com bacon, pão, geleia, frios e panqueca americana com

calda de bordo. Um casal holandês com duas crianças amarelas estavam à mesa da

frente, na retaguarda o casal de japoneses, discretos, falando baixo, encolhidos, e

um grupo de seis homens — russos? Tschecos? conversavam alto e riam. A

imagem que se podia captar do lado exterior da janela alta, encostada no teto, era

somente a de uma parede de cimento do edifício vizinho e os riscos diagonais e

transparentes da chuva grossa. Não era a agência de viagens onde trabalhei, em São

Paulo, no décimo primeiro andar, que igualmente possuía uma janela isenta de

paisagem, contrastando com a superfície da minha mesa feita de prospectos cheios

de praias azuis, montanhas verdes, cachoeiras, lagos e o mar. Eu era jovem e a

visão da parede reta e encardida de poeira me sufocava. Mas aqui não. A cor

plúmbea reluzente do paredão assumiu um brilho levemente prateado. Sentei-me à

mesa próxima da família italiana, de uma estante cheia de jornais do dia e revistas,

de uma gaiola de passarinhos, em um canto onde um vaso de plantas crescia.

Quando eu era criança não compreendia a razão pela qual os adultos aprisionavam

os passarinhos, justamente eles que possuem a imensidão para viver e voar,

migram de um hemisfério ao outro, sabem lidar com a liberdade (ao pássaro foi

concedido maior espaço, ao ser humano viver aprendendo a não devorar o outro).

A minha explicação pueril era a de que os adultos cobiçavam a liberdade dos

pássaros. Voltei a acreditar nisso olhando para a gaiola ao estender o guardanapo

leve e branco no meu colo. Pedi café com leite, suco de laranja fresco, panquecas

com calda de bordo. A mulata obesa anotou os pedidos, seguiu à mesa dos italianos

que também esperavam.

Cheguei atrasada ao encontro com Zenos, não pude calcular o tempo. A

cidade era desconhecida para mim e o primeiro dia não era de se esperar

pontualidade e orientação perfeitas. Perdi uma hora admirando a Grand Central.

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Os vitrais e as estrelas no teto lembram uma catedral, mas aqui ninguém reza, é

simplesmente um templo da transitoriedade onde passageiros se encontram e se

despedem. A dimensão da arquitetura reduz a efervescente multidão que se

prolifera como bolinhas de vitamina na superfície d’água, os passantes borbulham

em todas as direções. Porém, o espaço é grande, o ambiente não é esmagador como

em muitas estações centrais ferroviárias, nas grandes metrópoles. Ao sair à rua fui

invadida pelo cheiro misto de poeira, combustível e pólen de acer, pelos diversos

sons vibrantes de carros, ônibus, gente falando e baba de céu pingando. Abro o

guarda-chuva para segurar os pingos oblíquos, caminho até o restaurante distante

apenas algumas quadras dali.

Dentro do restaurante, Zenos disse estar feliz em me rever. Ele aparenta ser

mais jovem do que os cinquenta e três anos, com os cabelos grisalhos, sorriso

maroto. Havíamos nos encontrado apenas uma vez, em uma festa de hotel, em

Barcelona, há dois anos. Dançamos juntos uma música latino-americana. Trocamos

contato uma vez que ambos gostamos de música clássica. Tínhamos ido ao festival,

em Salzburgo, na mesma ocasião, mas lá não nos encontramos. Ou talvez tenhamos

passado um em frente ao outro, sentado ao lado do outro, na plateia, no repertório

de Tschaikowskis, Capriccio italien op. 45, regido por Nikolaj Znaider, e não nos

percebemos. Não sabíamos que existíamos. O encontro em Barcelona fora casual,

rápido, como acontece com os turistas transitórios (ele estava em uma viagem de

negócios), após três dias embarcou para os Estados Unidos (eu organizava a

próxima temporada dos intercambistas).

Zenos está se separando, é pai de dois adolescentes de dezesseis e dezenove

anos. Arrumou um apartamento no Brooklin. Contou-me enquanto o pato não

chegava.

Depois da separação do meu parceiro —, catorze anos vivendo juntos e um

aborto natural há quatro anos, pedi demissão do emprego. Aos quarenta e sete anos

engravidei pela primeira vez. Poderia ter dado certo, sou magra, faço esporte, não

fumo, bebo apenas socialmente, me alimento saudável. Porém, o médico explicou

que podia acontecer também com as mulheres jovens. Significa que algo está

errado com o feto e o corpo o expulsa. Não era incomum. Mas nenhum consolo

para mim. As mulheres jovens podem continuar tentando, eu não. Não tive filhos.

Trabalhei como coordenadora em uma instituição de intercâmbio estudantil,

durante quinze anos, agora sofro de síndrome de burnout. Passei a ganhar o

dinheiro do seguro de saúde, depois receberei o seguro desemprego. Durante esta

fase de dependência financeira do Estado alemão, sou obrigada a fazer um curso

profissionalizante e escolhi gerenciamento de eventos. Se não conseguir trabalho,

precisarei viver da ajuda social, o que não me agrada, quero evitar isso, na medida

do possível (nunca vivi à custa de ninguém). Antigamente eu era ambiciosa como

os salmões nadando contra a correnteza, a força e a determinação me faziam

desviar das pedras. No entanto, os resultados não foram os que eu realmente

buscava, a vida é cheia de surpresas e emaranhados. Em algumas situações as

coisas são mantidas apenas por um fio de cabelo. É ele romper e sentimos como se

tudo o que construímos ruísse, de uma vez. Estou com cinquenta e um anos, sete

fios de cabelos brancos que tiro com a pinça, algumas rugas profundas em volta

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dos olhos que se modelam mesmo quando não sorrio, e me mudei para outro

bairro, em Berlim, para um apartamento menor.

Cheguei a um ponto que mesmo quando é tarde demais para recomeçar não

há outra alternativa a não ser o risco, o medo, o trabalho que o recomeço implica.

Há sempre recomeços na vida, o que muda é a forma como os encaramos, a força

com a qual nadamos contra a correnteza.

Não narrei ao Zenos esta parte realista da minha biografia, simplesmente

lhe contei que sempre quis visitar Nova York e só agora tive a oportunidade. O que

era verdade. Esta viagem foi como um divisor de águas em minha vida.

A chuva cessou.

Zenos me levou para conhecer a horta, na cobertura do edifício do

restaurante: flores, alecrim, manjericão, árvores de ameixas, trilhas e bancos para

os moradores do edifício que cultivam a horta. Zenos foi trabalhar, continuei

passeando, de guarda-chuva aberto, pelas grandes avenidas.

Ao regressar sozinha ao hotel, tarde da noite, encontrei um casal de

conterrâneos, falando português, em cima do tapete de fiapos nas bordas. — Ah,

vocês são brasileiros? Interpelei-os impulsivamente.

— Sim. Pelo visto você também é!

— Estão chegando hoje? É a primeira vez que visitam Nova York?

— Sim, chegamos hoje. É a primeira vez.

Era o moço que falava. A esposa ou namorada permaneceu calada,

querendo resolver a chegada com o recepcionista. Percebi o distanciamento dela,

como se fosse uma ousadia eu ter puxado conversa. Ela deixava transparecer que,

não era só porque éramos brasileiros que tínhamos que ser amigos. Tratei de lhes

desejar boa estadia, o quanto antes, e pegar o elevador. No ambiente econômico do

meu quarto, cheirando a ferro e chuva, mas claro e limpo, me deitei na cama após a

ducha, permaneci ouvindo o murmulhar da chuva, contemplei a janela com as

cortinas escancaradas. Só era possível deslumbrar a ponta triangular do outro

edifício, um recorte do céu escurecido pela noite amadurecida. O abafado bulício

de ronco de dinossauro metálico vindo da rua penetrava na penumbra. A fisionomia

de Zenos surgia na minha lembrança, seus gestos, algumas frases, a voz, a

agilidade de sua mão com os palitinhos. Dormi um sono pesado.

Não voltei a ver o casal de brasileiros, nem durante o café da manhã, na sala

onde os outros hóspedes apareciam alternadamente, junto a novos rostos. Não pude

comentar com eles a notícia que eu havia lido na National Geographic, enquanto

esperava as panquecas, sobre a sensacional descoberta de uma espécie inédita de

pterossauro, no sul do Brasil. Um pássaro gigante, com crista óssea semelhante a

uma vela de barco aberta, que voava e botava ovos, há noventa milhões de anos, no

período do Crotácio, batizado com o nome de caiuajara dobruskii. No entanto, não

creio que se interessariam por isso! Sou eu que me interesso pela importância dos

vestígios, porque tudo deixa vestígios, é necessário saber descobri-los, interpretá-

los. Também vivemos dos vestígios, são os vestígios a viga do passado. O passado,

por sua vez, sustenta o presente.

No terceiro dia, entre prédio da ONU, Museu de Arte Natural, Time Square,

hambúrgueres e chuva, no terceiro dia encontrei casualmente o casal de brasileiros,

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no alto do Empire State Building, com uma pesada nuvem cor de chumbo na lateral

esquerda do horizonte e uma aresta de claridade, no rodapé do céu, que se mesclava

com o candil da água do Hudson River. Ao longe a gigantesca Estátua da

Liberdade ficava baixinha, igual um souvernir barato, em pé, na vitrine de uma

loja!

— Ah, vocês por aqui?! Desta vez a brasileira estava mais simpática e me

sorriu visivelmente contente em ver um rosto conhecido. — Que lindo o panorama!

Você não acha? Pena que choveu, mas agora esta nuvem escura, contrastando com

a luz, realça a paisagem. E finalmente parou de chover. Até parece em São Paulo

que garoa frequentemente! Isto é, antigamente, porque agora com o efeito estufa a

garoa estiou.

— Vocês também são de São Paulo? Quis saber somente por curiosidade.

— Sim. De Pinheiros.

— Minha família mora na Moóca. Eu vivo em Berlim.

— Legal!

Era ela quem respondia. O namorado ou marido estava distraído

fotografando a redondeza.

— Estou gostando demais da cidade. O transporte público funciona, há

recantos tranquilos, apesar da agitação. Do que eu mais gostei foram das pontes.

Acredito que as cidades que dependem das pontes para o acesso são mais

interessantes. As pontes adquirem importância essencial.

— A Tainá adora pontes! Sempre que viajamos ela procura fotografá-las.

Disse o namorado dela.

— Eu não tinha percebido isso. Gustavo que me chamou a atenção. Tainá

retrucou apoiada apoiada na grade de proteção, com os cabelos assoprados para o

lado por causa do vento forte.

— Sem dúvida, as pontes são essenciais, em todos os sentidos. Retruquei.

— Do que você está gostando?

Não sabia responder a esta pergunta de Tainá. Eu não havia pensado nisso,

ainda recolhia impressões e imagens.

Eles almoçariam em um restaurante natural que oferecia comida preparada

com produtos orgânicos e carne sem hormônio e antibióticos, na Amsterdam

Avenue, local recomendado por um amigo deles. Ficava a caminho do hotel, se eu

quisesse poderia acompanhá-los, de táxi. Aceitei e agradeci. Eu também tinha fome

e entrou água no meu tênis. Um carro, virando a esquina, espirrou uma poça inteira

nos meus pés. Seria melhor pegar um taxi!

Gustavo Bernardo havia estudado e trabalhado um ano em Nova York.

Então, não era a primeira vez que ele estava na cidade. Deve ter dito que sim,

quando o encontrei pela primeira vez, na recepção do hotel, somente para não

continuar a conversa. O casal se conhecia desde a época da faculdade, em São

Paulo, mas haviam se casado há apenas alguns meses, e encontravam-se em uma

espécie de lua de mel. Formavam um casal bonito e bem educado. Gustavo

Bernardo trabalhava em uma corretora de imóveis. Tainá C. P. Meirelles era

arquiteta, tinha vinte e seis anos. Sentados à mesa, ao lado da parede de tijolinhos

segurando quadros e o lambri cheio de bugiganga de enfeite, ela me contou que o

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marido estava prestes a inaugurar a sua própria corretora de imóveis. Ela acabava

de abrir o seu escritório de arquitetura, com mais dois sócios. Chegaram a salada de

salmão defumado, o salmão assado e o cheesbúrguer com batata frita. Continuamos

a conversa enquanto comíamos. Tainá possuía uma beleza singular, que prospera a

medida que a observamos. Os grandes olhos de cor indefinida, entre o verde e o

castanho claro, conforme a intensidade da luz, realçavam a boca carnuda e as

sobrancelhas altas. Os longos cabelos castanhos, lisos e fartos eram afastados com

um gesto típico e lento da mão esquerda. Gustavo era moreno, cabelos lisos e

curtos, possuía físico de esportista, os dentes perfeitos e polidos, falava muito ao

celular. Parentes e amigos telefonavam, indagavam sobre a viagem. Ele fazia o

lacônico relatório, mas longo o suficiente para atrapalhar a nossa conversa ou

prolongar o jantar mais do que o estipulado. Tainá me mostrou, no iPad Air, a foto

do filho de Gustavo, o menino de seis anos sorria com uma janelinha entre os

dentes.

— Ele é uma gracinha! Sou como uma segunda mãe para ele. A mãe dele

viaja muito por causa do trabalho. Marcelo passa mais tempo conosco do que com

a mãe dele. Ele é um amorzinho! Tainá sorria carinhosa e saudosa do menino.

Você tem filhos?

— Não, não tenho. Respondi o mais neutro possível, evitei deixar

transparecer qualquer frustração neste sentido.

Eu quero ter filhos, dois ou três. Não é Gustavo?

Gustavo Bernardo volta-se para ela e a beija no rosto. — Tudo o que você

quiser, meu amor! Quantos você quiser!

Mudei de assunto: — Vocês sabiam que descobriram uma nova espécie de

pterossauro, no Paraná?

— Você é paleontóloga? Perguntou-me Gustavo Bernardo.

— Não. Só achei interessante!

— Você trabalha com o quê? Quis saber Tainá.

— Com adolescentes em uma organização de intercâmbio estudantil. Não

disse que eu pedira demissão, evitei ter que dar explicações.

— Que maravilha trabalhar com adolescentes e crianças! Deve ser muito

divertido e gratificante. Tainá diz.

Mudei de assunto novamente: — O tempo está muito chato, chove toda

hora!

— É verdade! Tivemos azar. Espero que melhore nos próximos dias. Isso

nunca aconteceu, não é Gustavo?! Somente em Londres pegamos dois dias ruins.

Acredito que o tempo melhore. Tainá manuseava o iPad Air enquanto falava. —

Ah, olha aqui! Esta é a mãe do Marcelo. Ela ainda continua apaixonada pelo

Gustavo. Mas sou eu o amor da vida dele. Não havia ciúmes no jeito dela falar,

nem ressentimento. O iPad Air exibia o rosto de uma mulher bonita, cabelos pretos

curtos, olhos grandes escuros, pele alva e sorriso sério.

— Ela não se casou, não tem namorado? Perguntei por curiosidade, no

entanto, não queria ser indiscreta, não me interessava o triângulo amoroso entre

eles.

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— Ela tem namorado. Mas eu não me engano. Pronunciou a última frase e

fitou a tela, em voz baixa, mais para si mesmo do que para mim ou Gustavo que

atendera ao terceiro telefonema do Brasil, explicando que estava tudo bem,

estavam se divertindo, no momento, jantando em um restaurante.

Fomos embora de táxi, depois de passar um longo tempo, parados na

calçada da avenida, segurando os guarda-chuvas abertos, acenando para os táxis

que não paravam, desta vez, confirmando a teoria de que é quase impossível

conseguir um nesta cidade.

Deitada na cama, eu me virava de um lado ao outro sem conseguir dormir

graças à diferença de horário. A canção regressara profunda em algum algar do

meu cérebro. Comecei a urdir imaginações. Como seria a minha vida se eu fosse

mãe? Eu estaria levando o meu filho à escola, a casa dos amiguinhos, aos

aniversários dos amiguinhos. Estaria brincando de carrinho com ele, no chão do

seu quarto, lendo historinhas em português? Por muitos anos trabalhei com

adolescentes e pais preocupados com os seus filhos, fazendo planos para eles,

felizes com eles. Queria muito ter tido um filho! Mas o tempo passa e percebemos

o quão rápido diminui o prazo para realizarmos os nossos desejos, até que o prazo

se finda, e nos resta somente substituir os desejos infactíveis por outros que ainda

possam se tornar reais. O casamento com Julian Zähe não deixou muitos rastros,

além do sobrenome que eu não troquei, em razão de uma falha burocrática na

homologação do divórcio. Éramos jovens, estudantes. Ele estava apaixonado, eu

queria iniciar uma vida burguesa e exótica. Julian apareceu na agência de viagens,

naquela época, em São Paulo, para fechar o pacote para o nordeste. Jantamos

juntos, fomos a um motel, ele foi ao nordeste, voltou para a Alemanha. Depois de

um ano e sete cartas, fui encontrá-lo na Alemanha. Separamo-nos quatro anos mais

tarde, conheci Björn Ehrenberg, com quem convivi cartoze anos. Björn empolgara-

se com a possibilidade de ter um filho. O aborto foi um choque, mas Björn não

precisava desistir do desejo, aferrou-se a ele mais ainda. Separou-se de mim e

buscou, na internet, uma mulher mais jovem. Ajudei-o a elaborar o seu perfil, tirei

uma foto atraente dele, com a barba feita, os cabelos cortados, um meio sorriso,

forjei não estar sofrendo com o curso natural da vida. Björn se casou e tem uma

filha de dois anos, a mulher está grávida de novo. Na minha memória fluíram as

recordações das nossas viagens pela Europa, do seu jeito espontâneo, impulsivo e

egocêntrico. Os cabelos louros compridos, amarrados em um rabo de cavalo, que

ele usava quando jovem. A cara de "sem comentários" do meu pai quando o

apresentei, que mais queria dizer “melhor não fazer ressalvas para não piorar as

coisas”. Para o meu pai, homem que usava cabelos compridos, não era homem. Eu

tinha vinte e nove anos, a certeza de que nunca deixaria de amar Björn.

Passávamos meses viajando pelas cidades e pela natureza brasileiras. Lembrei-me

do dia ao regressar para a Alemanha, quando eu carregava um berimbau que Björn

insistiu em comprar. Ao desembarcar, no aeroporto de Frankfurt, pelo olhar curioso

do policial de fronteira, das pessoas a volta —, que nunca viram um berimbau —,

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imaginei que só poderiam estar deduzindo que eu seria uma índia, carregando arco,

— sem a flecha. Muitas coisas tinham ficado para trás. Se fosse possível voltar,

experimentar de novo a força, a naturalidade de nadar contra a correnteza... Peguei

no sono.

Para minha surpresa Zenos arrumou tempo, no dia seguinte (pensei que

precisasse trabalhar e cuidar da mudança). Combinamos de nos encontrar em frente

à Catedral de São Patrício. Mais uma catedral, no entanto, nesta podia-se rezar e

acender velas sob as altíssimas abóbadas góticas, respirar a fragância de incenso

com cheiro de canto gregoriano, ser atingido pela luz porosa e santificada que

penetrava dos vitrais coloridos. Minha religiosidade se reduziu, no entanto, a

apenas dar uma volta breve à margem dos santos, círios, bancos, altar, e refletir em

uma fração de segundos por que os homens inventaram Deus, por que não sou

capaz de imaginar uma vida sem um poder superior para me proteger do mal. Logo

saí da catedral para ir me encontrar com Zenos que me esperava do lado de fora, na

calçada.

Compramos sanduíches e fomos fazer piquenique no Central Park. Há um

palco onde são realizados concertos gratuitos ao ar livre, no verão. Como caiu uma

garoa, à tarde, o local não estava lotado como de costume. O crepúsculo

resplandeceu seco. Alguns ouvintes conseguiram lugar nos bancos, outros estavam

espalhados pelo gramado, a volta da toalha de piquenique estendida no chão. Duas

meninas de vestido rosa corriam, giravam dançando no espaço entre os bancos e o

palco. Um cara alto, negro, de tranças compridas rastafari, sentado no banco da

frente, tomava champanhe da garrafa, com mais dois amigos, movia a mão no

ritmo da opereta como se o indicador fosse a batuta. Sentamo-nos em um banco, na

lateral. Zenos tomou alguns parcos goles da pequena garrafa de vinho que

compramos. Estava dirigindo. Eu sentia a leveza se dissolvendo no meu corpo ao

tomar o restante. Não éramos dois artistas em um filme monocromático, com as

sombras fluídicas da noite se proliferando, contrastando com as sobras de luz,

movidas pela música de Sigmund Romberg, no Naumburg Orchestral Concerts.

Mais uma vez o violino, a voz soprano coloratura, o coro dos homens ressoaram,

propagaram-se por entre as árvores obesas do parque.

Recordei-me de Tainá, de repente, quando uma brisa fria tocou meu rosto.

Ela era o resumo da felicidade e juventude. Pensando nela, por coincidência, eu a

vislumbro sentada embaixo de um álamo, atingido por um jato suave de crepúsculo

rosado. Vestia uma blusa branca que reluzia semelhante a cetim. Sorria, mas não

parecia ser para mim, embora olhasse na minha direção. Não me vira! Onde estava

o Gustavo Bernardo? Não pude deixar de pensar que se ela continuasse sentada

direto no gramado, por muito tempo, ficaria com a bunda molhada e que eu

precisaria cumprimentá-la, no intervalo da música. A música cessou. Mas quando

fui me levantar ela se ergueu. Vi nitidamente que não era a Tainá. Era uma mulher

completamente diferente, nariz adunco, desengonçada, que caminhou até o palco e

seguiu em direção à rua. A blusa nem era branca e sim cinzenta.

Zenos me levou ao hotel. Não sei por que receei encontrar Tainá, em cima

do tapete de fiapos nas fímbrias. Eu teria ciúmes se tivesse que apresentá-la ao

Zenos e ele visse o quanto ela era jovem e bonita. Meu temor era vago e irracional,

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Tainá certamente se divertia com o marido, na Broadway. Encontrei o casal de

japoneses, na recepção, devolvendo a chave e saindo.

Convidei Zenos para subir ao meu quarto. Era o que ele esperava e eu

também. Ele se encontrava vulnerável e suscetível, em virtude da separação. Não

se apagam vinte e três anos de convivência de um casal, da noite para o dia, muito

menos nos primórdios de um divórcio, mas é neste momento que as tentativas

despontam. No quarto estreito e cool, a lá Edward Hopper, ofereci-lhe uma bebida.

Tomamos alguns goles, conversamos escassas frases e nos entregamos como duas

frutas maduras caem do pé. Suguei sua língua até o sabor do uísque e do Martini se

desvanecer. Agarrei-me ao seu tórax, a leveza se apoderou do meu corpo,

libertando-me de algo que me sufocava há anos. “É muito bom ter você comigo,

Antônia”, ouvi a voz dele úmida e rouca tocando minha orelha. Antevi que

guardaria esta frase, na memória, por um longo futuro. Dormimos abraçados,

enrolados em nós e na coberta (e não éramos dois caroços apertados no interior de

um buriti).

Acordamos tarde. Amanheceu seco e claro, mas instável. Tomamos café em

uma padaria portuguesa que fazia os melhores pãezinhos franceses de Manhatan. A

garoa renasceu. Zenos precisou ir ao escritório e nos despedimos. Marcamos um

encontro para à noite. A chuva reforçou o meu plano de ir ao MoMA. Passei a

tarde surpreendida com Lygia Clark (mais uma conterrânea!), com os cantos, as

pontas, os entrelaçamentos das coisas a minha volta.

Ao conhecer Zenos Angelopoulos, em Barcelona, não imaginei que este

homem atencioso, de poucas palavras, meio tímido, que não sabia dançar, pudesse

me despertar um sentimento erótico. Ele era tranquilo demais para mim! Não me

recordo como chegamos a fazer um par dançando na pista, em meio aos outros

pares rodando. Ele levantava um pé de cada vez como se estivesse caminhando em

um campo minado. Zenos quis desistir pedindo desculpas. Insisti para continuar a

fim de amenizar sua frustração. Mas, em pouco tempo, voltamos a mesa. Para

compensar Zenos me convidou para jantar. Eu estava farta dos adolescentes, foi

interessante conversar com um homem maduro, viajado e de boa aparência.

Em Nova York, eu ansiava a noite para me encontrar com Zenos. Sentia-me

revigorada, entusiasmada com a realidade, como há muito tempo não acontecia

comigo, e as coisas a minha volta —, os ruídos, os movimentos, o sexo com Zenos

—, tornaram-se intensas, arremessando-me a um estado de vivência à flor da pele.

Nesta noite, a chuva renitente não parou nem mesmo ao chegarmos, quase

uma hora mais tarde, ao Village Vanguard, um bar de jazz famoso, aonde ele

costuma ir. De volta, na madrugada, as ruas continuaram encharcadas. O som do

sax, da canção Dreamin, dos The Heath Brothers, acompanhou o movimento do

automóvel e dos reflexos. Depois veio o piano, a flauta, o bass, a ponte Brooklyn, o

escuro brilhante da água e o estacionamento subterrâneo, no edifício onde Zenos

mora.

Ele me mostrou o apartamento de bom tamanho. O quarto de hóspedes não

estava pronto.

— Trouxe apenas as minhas roupas, meus livros e CDs, o aparelho de som,

a escrivaninha, e esta cômoda italiana, antiga e restaurada. Explicou.

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— Mas estou vendo que o mais importante você já tem. Este sofá é bonito!

— Ele é novo, comprei na semana passada. A cama também. Não é muito

divertido comprar móveis. Aliás, não gosto de fazer compras.

— Eu também não, principalmente fazer compras sozinha. Não é nada

divertido!

O ambiente possuía um aspecto de incompleto. Tomamos vinho branco

ouvindo Vinícius.

— Gosto de música brasileira. Conheço vários cantores.

— Estou vendo! Você possui mais CDs de música brasileira do que eu.

— Ouço muito Baden Powell também.

Entre um interlúdio e outro fui levada para o quarto. E nenhum cinza nem

vísceras de chuva pode calar o undíssono no meio das ondas do lençol.

Trepamos como espuma agarrada nas protuberâncias escorregadias dos

rochedos.

Amanheceu ensolarado (e não era uma linda manhã de carnaval), a branca e

transparente cortina de seu quarto não servia para impedir a claridade, apenas a

abrandava. Eram por volta das nove, Zenos tinha de ir ao escritório. O romantismo

da noite anterior fora substituído pela pressa e o café forte. Mas durante a

madrugada houve a cena dele cobrindo minhas costas com o seu corpo, cruzando

os dedos nos meus, dele me beijando a nuca. A minha imagem virando o rosto para

buscar a boca dele, o corpo contorcendo-se para entrelaçar minhas pernas nas dele.

É fácil acreditar na simplicidade da vida quando escutamos as batidas no peito de

alguém que queremos, quando auscultamos o pulsar de seus desejos mais íntimos.

Eu me dava conta de como ele, aos poucos, tornava-se essencial para mim, e não

desejei impedir isso, embora houvesse o risco da decepção, da saudade pungente

que nos invade quando perdemos ou nos distanciamos de quem amamos (e não

estávamos servindo de forésia um para o outro, para chegar aonde ainda não

sabíamos ao certo).

Planejei ir ao Ground Zero, neste dia, subir a Broadway, andar pelo High

Line, uma linha de trem inutilizada, transformada em parque estreito e comprido,

com canteiros de flores, plantas e bancos. Atravessei a Brooklyn Bridge com a

bicicleta do filho dele emprestada. Em Berlim, a bicicleta é o meu meio de

transporte, vou ao trabalho, às compras, ao médico, ao cinema, à opera, aos bares,

faça chuva ou sol. Somente quando a neve é escorregadia desisto de levar um

tombo. Veio-me a sensação de familiaridade pedalando pelas ruas de Nova York. E

me perdi, fui parar no gigantesco Central Park. Não consegui chegar ao lago da

Jacqueline, dei voltas pelas diversas trilhas, mas nenhuma delas me levou ao meu

objetivo, mesmo seguindo as instruções do GPS, no meu iPhone. Em vez disso,

conheci alguns canteiros estressados, outros de margaridinhas distraídas, gerâneos

azulados platônicos, violetas lilases pensativas. No final do dia, fui para o hotel

com a bicicleta dentro do táxi.

À noite, chegamos atrasados no The Full Shilling, apesar de Zenos ter

reservado a mesa, não conseguimos ficar. Os bares e restaurantes, no bairro

financeiro, estavam lotados de turistas e executivos da bolsa de valores, fregueses

se amontoavam na porta, a fila de espera se transformara em uma fila de bate papo,

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com gente segurando guarda-chuva desabrochado. Ele sugeriu um restaurante

grego, no Brooklyn. O local é bem frequentado, sem a agitação dos turistas. No

interior do restaurante pequeno e acolhedor, enquanto ele comia o bifteki –, bife de

carne moída recheado com queijo de cabra, e eu degustava o saganaki, queijo feta

assado, acompanhado de salada, Zenos me contou que seus pais ainda vivem. Os

três irmãos são casados e têm filhos. Formam uma família grande. A minha família

também é grande, em São Paulo. Somos descendentes de espanhóis que vivem

falando mal do Brasil. Meus tios são notórios nas críticas, tanto que o meu primo

cresceu se sentindo culpado por amar o país onde nasceu. Meu primo rebate: pelo

menos no Brasil não existiu um Franco! Meu tio fica nervoso: fomos nós que

descobrimos este continente! Como se ele realmente tivesse subido nas caravelas e

navegado até a praia da São Salvador, nas Bahamas. Meu tio ignora as façanhas

dos portugueses. Meu primo rebate: vocês que estragaram este continente!

Colombo nem espanhol era, foi um italiano desorientado! Na verdade, minha

família é racista, fala mal do feijão com arroz que o operário carrega na marmita,

fala mal do cheiro de suor dos brasileiros dentro do ônibus, fala mal da cor escura

que carregam na pele, do jeito que se vestem, do jeito que andam, dançam, do jeito

que falam. Somos a terceira geração a nascer no Brasil, que não fala o espanhol e

nunca visitou a Espanha. Sou a única na família que vive no exterior. E meu inglês

não permitiu que nos aprofundássemos em um assunto sobre emigração, família e

pátria. Zenos deu a entender que ama os Estados Unidos e a Grécia, apesar dos

problemas econômicos da Grécia, da corrupção, do mal caráter dos políticos.

Convidei-o para me visitar. Imaginei que até lá eu teria pintado o apartamento

novo, em Berlim, isto é, não é novo, é menor e mais barato do que o anterior.

Tornamos a brindar com as taças de vinho tinto, Gerovassiliou Evangelo, ano dois

mil e onze – o ano em que nos conhecemos.

Fomos para o seu apartamento.

Trepamos como fios de tapiz entrelaçados e desfiando, desfazendo-se dos

receios urdidos dentro de nós. Na modorra pós orgasmo, deitados na cama, rimos

zombando de nossas exigências eróticas, aferimos as chances de nos

reencontrarmos, em Berlim, em Barcelona, em Salzburgo, em São Paulo ou em

Nova York. Tecemos planos para o futuro. Dormimos abraçados (e não eramos

dois naufragados cuspidos pelas vicissitudes da vida).

Quando Zenos despertou eu estava acordada. Ele avisou, no escritório, que

chegaria mais tarde. Tomamos café na sacada delgada circundada por uma redoma

de vidro, que protegia do vento (não éramos dois pássaros ápteros perdidos na

transparência da liberdade). O sol parecia a respiração de uma baleia encalhada:

surgia e sumia em uma alternância de vida e silêncio, vida e silêncio. As rugas

cingindo nossos olhos desabrochavam e se atenuavam consoantes a intensidade da

luz. Conversamos banalidades, ao me despedir, na soleira da porta, Zenos me

beijou, repetindo o que havíamos combinado na sacada.

— Nos vemos hoje à noite. Você pode vir com as malas e partir daqui para

o aeroporto. Eu vou te buscar no hotel depois do trabalho.

— Ótima ideia! Mas não sei que horas chegarei. Por favor, telefone antes!

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Despedimo-nos com um beijo profundo. Assim que apertei o botão do

elevador e as portas se fecharam, ocorre-me ter me esquecido da chave. Possuo o

hábito de carregar a chave do hotel comigo. Voltei de elevador, ao sair, ouvi vozes

no corredor, caminhei lentamente, avistei Zenos falando com uma mulher, em

frente à porta de seu apartamento. Eles não me viram. Conversavam emocionados e

hesitantes. Zenos se afastou devagar para ela entrar. A porta se fechou. Imaginei

que poderia ser a sua ex-mulher, algo me fez acreditar que era ela. Talvez a

familiaridade entre eles ao se fitarem, a forma como se comportaram ou pelo

aspecto físico dela: parecia ter por volta dos cinquenta, loura, cabelos lisos até o

ombro, magra, elegante. Talvez por causa do gesto nervoso dela de levantar a mão

segurando uma chave, provavelmente a do carro. Realmente não era um momento

apropriado para eu bater na porta! Esperei cerca de uma hora sentada no rodapé da

grande parede de vidro, do outro lado do corredor, de onde eu avistava a

luminância do East River. Mas ela não saiu do apartamento. Fui embora.

No intervalo da chuva, com uma vista clara e azul, peguei o subway 7.

Desci em algumas estações, como a dos grafiteiros, dos irlandeses, dos indianos,

dos latinos, ou a do trecho fantasmagórico de ferro velho e oficinas mecânicas, até

a parada final dos asiáticos, no bairro Queens. Desci na Corona Plaza, para comer

tortillas, em uma pequena lanchonete vermelha e amarela, caminhei até a praça

conhecida como “Spaghetti Park”. O verdadeiro nome é William F. Moore Park,

mas depois que os italianos invadiram a região, ninguém a conhece por este nome.

A pequena praça é movimentada de velhinhos e pai de família que passam horas

tomando cerveja e jogando bocha. Minha intenção foi tirar fotos preto e branco dos

aposentados, sentados nos bancos, das bolas prateadas e luzidias rolando no solo de

areia pisoteada. A praça encontrava-se semi-deserta, ninguém jogava bocha

naquele dia, naquela hora, talvez por causa do tempo instável ou porque o horário

dos jogadores se encontrarem seria à noite. Somente alguns três anciões

conversavam lentos, sentados em um banco. Seguindo viagem, na área gigantesca

de oficinas mecânicas e ferro-velho, na Willets Point, eu não teria me espantado se

tivesse me deparado com um robô enferrujado, caminhando e afundando os pés nas

poças fundas de lama, tal era o surrealismo da região desolada, feia e ferrenha, mas

que me surpreendeu pela originalidade. Não havia estado em um lugar que tivesse

me exposto, cruamente, o obsoleto, o abandono, o imperfeito, o oxidado pelo

tempo. Segui viagem, na estação Flushing, não precisei ir longe do cruzamento da

Main St. com a Rossevelt Ave, e começou a chover de novo. Logo na boca do

metrô, as placas e os outdoors em chinês, japonês, coreano, tailandês, e a multidão

asiática circulando, foram o suficiente para serem captados pela câmara. Eram

tantas as placas nas fachadas dos edifícios que pareciam uma colagem, uma em

cima da outra, ao lado, embaixo, grandes, pequenas, quadradas, retangulares, largas

e estreitas. Havendo uma janela no meio delas ficava difícil reconhecer!

Mesclavam-se com os números chamativos dos preços rebaixados das mercadorias.

Aproveitei para comer rolinhos de verão, em um minúsculo vietnamita, e peguei o

metrô de volta.

Cheguei ao hotel exausta, com os filetes de nuvem escorrendo na borda do

guarda-chuva. Discuti com o recepcionista por causa da chave. Eu deveria pagar

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cem dólares se eu não a devolvesse. Deu-me uma réplica. Antes de eu pegar o

elevador perscrutei sobre o casal de brasileiros, se eles estavam no quarto.

— Os brasileiros? Ele repete com uma estranha expressão e fica mudo.

— Os brasileiros. Eles estão no quarto? Ele continua mudo. Imaginei que o

meu sotaque tivesse piorado com o cansaço. They are here? The Brazilian peaple?

Não é possível que uma frase tão simples como esta fosse difícil de entender. Ele

gaguejou algo ininteligível. Fiquei olhando para a cara dele, mais devido ao

cansaço do que à curiosidade. Estava quase pegando o elevador, desistindo de

procurar saber sobre o casal quando ele exclama: she is dead and he is not here

anymore. Retruquei um ah, ok! Subi para o quarto. Tomei uma ducha rápida,

coloquei o celular para despertar daqui a uma hora, caí na cama morta de cansaço.

O celular despertou, mas continuei na cama, por alguns minutos, refazendo as

cenas com Zenos, pensando no olhar reticente da mulher, nas noites que passamos

juntos, recompus a forma carinhosa como ele me fitava, seus gestos, algumas

frases: você poderia prolongar as suas férias e ficar mais alguns dias aqui comigo,

quem sabe para sempre?, o que vou fazer quando você partir? sentirei falta de

suas pernas musculosas.

Levantei e me arrumei. A qualquer hora Zenos podia telefonar. Ocorreu-me

o casal brasileiro de repente. Desci à recepção, indaguei novamente sobre o casal.

De novo o recepcionista fica mudo, fita-me como se eu fosse uma boneca de cera

anônima, destoante, no Madame Tussauds. — The Brazilians? Repeti com as

sobrancelhas erguidas. Finalmente ele responde, devagar, bem devagar: — She is

dead and he is not here anymore. Mas o que ele queria dizer com dead?

Realmente eu precisava melhorar o meu inglês! Subi ao meu quarto, peguei o

celular, inseri a palavra no dicionário alemão/inglês: dead era tot, gefühllos,

abgestorben. Sabia que dead significa morto, mas talvez tivesse outro significado

conotativo, fosse uma gíria, como “morta de cansaço”. Uma jovem, aparentemente

saudável, feliz e de férias, em uma cidade estrangeira, descobrindo coisas novas,

acompanhada do homem que ama, ela não poderia estar morta. Impossível, eu não

podia acreditar! A próxima palavra no dicionário era deadly, que significa mortal, a

próxima era deaf, que significa surdo. Talvez ela estivesse surda e eu me confundi.

Desci e fui falar com o recepcionista, desta vez com cautela e munida do

dicionário. — Sorry! I wanted to know about the Brazilian peaple. Após o

profundo suspiro ele repete a frase que eu já ouvira. Escrevo no papel e peço

confirmação. Yes, she is dead! Minhas pernas amolecem. Alguma coisa estava

errada nesta história, eu só sabia repetir Why?Why? Ele falou diversas coisas, mas

não explicou como havia acontecido. Regressei trêmula ao meu quarto. Sentei-me

na beirada da cama, mirei o escuro iluminado da janela. Não sei quanto tempo

permaneci inerte, aturdida, sem conseguir pensar em nada. Como se tudo deixara

de se mover, como se a realidade estivesse estática. Uma completa indefinição

esgotara o meu espírito.

Eu precisava fazer alguma coisa para combater minha letargia. Ocorreu-me

telefonar para o Consulado do Brasil. A princípio, não quiseram dar informação

nenhuma por telefone. Implorei, expliquei que eu era uma amiga que estava

acompanhando-os. Tainá morrera de aneurisma, em uma viagem de barco, em

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direção à Estátua da Liberdade, desmaiou e não voltou mais. A família tinha vindo

cuidar da burocracia. Por sorte, os nova-iorquinos tinham liberado o corpo rápido e

os documentos ficaram prontos antes do esperado. O corpo estava partindo, daqui a

dois dias. Indaguei se eu podia ajudar em alguma coisa. Não havia nada que eu

pudesse fazer, a família estava cuidando do traslado do corpo. Não foi possível eu

saber de mais detalhes. Desliguei atônita. Ninguém imagina que alguém morrerá

nas férias, apesar de a morte poder vir a qualquer momento inesperado,

inapropriado, apesar da morte ser extemporânea. Ninguém imagina que alguém

jovem, saudável e feliz, passando a lua-de-mel, possa morrer, de repente, sem

motivo compreensível.

O vácuo no meu estômago endureceu (não era uma pedra no meu caminho).

Zenos não atendeu ao celular, nem respondeu as mensagens que eu deixei

conforme a noite foi se intensificando. Deitei-me na cama, fixei o nada do teto

branco, sem conseguir chorar. Eu precisava buscar algo anódino, algo que

extirpasse o vácuo emético no meu estômago, um lugar onde eu pudesse ver gente,

desviar meus pensamentos. Saí à rua na tentativa de dirimir toda imaginação

atinente à morte inexplicável de Tainá. Fora apenas um encontro fortuito, somente

naquele breve jantar pudemos conversar longamente. Eu não a conhecia.

Poderia ter acontecido comigo, andando de bicicleta no Central Park,

comendo rolinhos de verão, na afinalada lanchonete da estação Flushing, dentro do

MoMA, diante do “Bicho em si”, de Lygia Clark, simplesmente fechar os olhos, e

desabar no chão. De um segundo para outro deixar de pertencer a este mundo.

Caminhando na calçada encontrei um mendigo pedindo esmola: um homem

envelhecido, estatura mediana, magro, mas vestido quase normalmente, não fosse o

rasgo no paletó na costura do ombro, a trouxa pequena com não sei o quê dentro

que ele carregava consigo. Dei-lhe dez dólares somente para trocarmos algumas

frases. Ele falava e falava e eu sorria para ele continuar falando, porque naquela

hora eu precisava mais dele do que ele dos meus trocados. Ele se foi de repente,

segui caminhando, prestei atenção para não me distanciar muito do hotel. A

videolocadora não era um lugar interessante, mas perdi longos minutos observando

a capa dos vídeos, os escassos fregueses que entravam e saíam. Encontrei

finalmente uma lanchonete, sentei-me no banco de estofado vermelho. Havia

alguns fregueses jovens, alegres, alguns velhos e executivos de terno e gravata,

outros sem terno e gravata. Mas a pedra não deixou de pesar no meu caminho,

mesmo depois de eu tomar um café com rum e o alto falante tocar uma canção,

repetidas vezes. Era a mesma que eu ouvira no avião e que ficou ecoando na minha

cabeça (Song of Zula, de Phosphorescent).

O silêncio de Zenos confirmou a minha suspeita de que aquela mulher era

realmente a ex-esposa dele, talvez tivessem reatado algum laço de felicidade

vinculado ao início da convivência deles, talvez algo provisório, com duração o

suficiente para arruinar nossa despedida.

Regressei ao hotel. No interior do quarto, me preparei para dormir. Tomei

uma aspirina para aliviar a dor de cabeça. Diferente do que eu esperava, dormi

profundamente e não sonhei nada.

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Às sete horas não havia quase ninguém na sala do café da manhã. Duas

moças espanholas também tinham as malas feitas. Aproximei-me, sem preâmbulos,

investiguei se iam para o mesmo aeroporto, sugeri pegarmos o táxi juntas. Elas

concordaram. Não se pode perder a oportunidade de economizar dinheiro quando

se está desempregado. Não consegui comer as panquecas, tomei apenas o café forte

e o suco de laranja fresco. Fui esperar o táxi, em frente ao hotel. A rua estava

nublada, úmida, o vento soprava vigoroso. A celeuma da avenida, na transversal,

invadiu-me os sentidos, os carros passando, as buzinas, o som de motor ligado se

misturavam. O hotel era localizado em uma rua de mão única e pouco comércio. O

vento cinza e úmido continuou soprando. Virei-me observando as fachadas dos

edifícios, fiquei surpresa ao ver o recepcionista deixar o seu posto e vir até mim. O

que ele queria? Será que devo pagar mais alguma coisa adicional? Fiquei

levemente assustada e alerta, refazendo as contas mentalmente, deduzindo que eu

realmente não estava devendo mais nada. Ele me mostrou uma presilha grande e

bonita dizendo ser de Tainá. Tinha sido esquecida em cima do criado mudo. Se eu

podia ficar com o objeto, ele não queria jogar fora ou dar para uma pessoa

desconhecida, com certeza o marido não voltaria para buscá-la. Eu não sabia o que

responder, estava aliviada por não ser uma cobrança e ao mesmo tempo queria ser

solícita. Peguei a presilha de cor castanha com fios dourados e vermelhos

entrelaçados, uma bijuteria rara (não era a miniatura da crista óssea de um

pteurossauro). Quando as espanholas apareceram na saída do hotel e o táxi na

calçada, prendi os meus cabelos lisos com a presilha e peguei minha mala para

entrar no automóvel.

No aeroporto, ao atingir a ala de controle do voo em direção a Frankfurt, se

eu não tivesse me virado abruptamente, talvez tivesse tido a oportunidade de me

certificar se era Zenos ou não o homem de cabelos grisalhos, magro, a barba rente e

os óculos, que observava a entrada do check in como se procurasse alguém para se

despedir e foi oculto por um grupo de chineses, não voltando a reaparecer. Precisei

seguir em frente, atrás de mim vinham os outros passageiros apressados,

empurrando malas com patas de rodinhas velozes. Ocupei-me em obedecer as

plaquinhas e instruções e encontrar o meu gate, entrar no avião, ficar satisfeita com

o lugar, ao lado da janela e do senhor alemão, risonho. Guardei a presilha na bolsa,

como se guarda um talismã. Foi com o impulso e a sensação de flutuar, que nos

abate na decolagem, que senti o redemoinho na barriga. Passada a diagonal, com o

avião na mira do horizonte azulado coagulado de bolotas brancas, encostei a cabeça

no encosto, evitei pensar nas brenhas indecifráveis da vida.

Em Berlim, o curso de gerenciamento de eventos me esperava —, e a

terapia, e eu precisaria pintar o pequeno apartamento alugado. A cozinha e a sala de

amarelo claro. Poderia pedir ajuda ao filho do turco, por um preço camarada. É

isso, amarelo claro!

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Nervos de Gaia

Ela precisava lutar contra o imenso amor que tinha para dar, ela possuía um

amor infinito e incondicional, maior do que pela sua própria vida. O desafio era ter

de lutar para não deixar este amor transbordar sem limite. Deus ou a Natureza ou o

Nhanderuvuçú, ou seja lá o que for, suscitou este instinto indelével e inexorável

dentro dela. No entanto, sem perceber, o amor transbordava e fluía abundante. Era

fascinante ver o filho pequeno dormindo no berço, engatinhando, brincando com os

carrinhos, pronunciando as primeiras palavras, conquistando os primeiros

progressos em sua vida. Educar é uma ciência, já dizia um velho amigo dela.

Educar é a maior das ciências, a mãe possuía agora a derradeira certeza. No início

tudo lhe pareceu simples: bastava amor, compreensão, um pouco de sensatez e os

problemas se resolveriam. Amor, compreensão. sensatez são a fórmula básica, mas

de longe apenas eles não bastam. E isso foi descobrir com a puberdade do filho,

com o desrespeito, a agressividade do filho constantemente irado. E todos a

confirmar que é assim mesmo, que isto passa com o tempo, que é necessário para o

ser humano definir a sua personalidade, que ele está descobrindo o seu lugar no

mundo, que nesta fase as células do cérebro se reestruturam, o número de

neurônios diminui e as conexões aumentam, as redes entre as células sofrem

alterações, começa a fase do amadurecimento do cérebro, por esta razão os

adolescentes passam por mudanças de humor, muitas vezes agem impulsivamente

ou desenvolvem tendência a comportamento de risco, que é a hora em que

realmente se rompe o cordão umbilical. No entanto, qualquer coisa que o filho

fizesse de errado a culpa era da mãe. A mãe que não sabe educar, não sabe reprimir

ou reprime demais, cede demais ou não cede, é muito presente ou é ausente, não

sabe ser mãe ou não sabe ser outra coisa a não ser mãe, só pensa na carreira ou não

sabe pensar em outra coisa a não ser no filho, não é compreensiva ou é

compreensiva demais, não demonstra amor ou demonstra de forma errada.

“A mãe é sempre a culpada de tudo”, foi a primeira frase dita pelo

psicólogo, quando Maria Amaú Mutter entrou no consultório, acompanhada de

Júlio Carlos: uma sala ampla, clara, com esculturas abstratas espalhadas pelos

cantos, como a de madeira, plástico e tecido, uma espécie de paraíso dos homens,

que poderia ser a do Bispo do Rosário. E uma reprodução de Munch de boca

aberta, na parede atrás do sofá. A mãe é sempre a culpada de tudo e, pelo visto,

somente ela e Kafka não sabiam disso. A frase soou-lhe estereotipada e superficial

uma vez que seria fácil resolver os problemas da condição humana se a mãe fosse a

culpada de tudo. Bastaria abarrotá-la de terapias e a Humanidade estaria salva. Mas

a Humanidade não é maravilhosa, está longe de ser (indubitavelmente não porque

as mães não sejam abarrotadas de terapias). O homem, isto é, o cérebro humano,

nunca deixou de ser um poço de incógnitas que nem mesmo os neurologistas,

psicólogos e filósofos conseguiram desvendar e provavelmente nunca conseguirão.

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VIVIANE DE SANTANA PAULO

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Por que a mãe? A mãe consegue desvendar determinados mistérios, entretanto, o

que está além de suas forças e não depende dela, infelizmente, ela não consegue.

“A Humanidade não estará salva mesmo que todas as mães sejam

perfeitas”, foi a essa conclusão que a mãe chegou quando abandonou a terapia com

o filho, isto é, o filho abandonou a terapia com o psicólogo de meia idade, olhar

desconfiado por cima dos óculos e sorriso compreensivo, e continuou infenso à

mãe, desobediente e hostil. Tudo o que ela queria era amar, amar sem precisar amar

menos ou pensar que está amando menos ou demonstrar que está amando menos.

Desejava amar, que este amor excrescesse, invadisse as aflições mais intrínsecas no

espírito do filho e ele não abusasse deste sentimento para se transformar em um

Nero.

Sentada no sofá da sala, com o brilho fosco do sol lânguido no vidro da

janela empoeirada, veio-lhe à consciência que amar não é só amar, depois do choro

—, consequência de um desentendimento com o filho que queria mais dinheiro

para sair, sempre mais e mais, gritando obstinado com a boca encostada no ouvido

da mãe, quase mordendo-lhe a orelha, como Stawrogin fez com a orelha do

Ossipowitsch, ou quase engolindo-a por inteiro, como Zeus engoliu Metis.

A mãe escondera a carteira de dinheiro atrás dos livros na estante. Fez as

compras pela manhã, foi ao supermercado duas vezes, subiu dois andares de escada

com as compras pesadas, limpou o apartamento, colocou a roupa na máquina, tirou

a roupa da máquina e a estendeu no varal, fez o almoço, lavou a louça, e despertou

o filho, várias vezes, pedindo para ajudar-lhe, para levantar-se que isso não são

horas de continuar na cama. Discutiu com o filho três horas e meia —, depois do

almoço, quando ele finalmente se levantou.

A erística tenaz do filho, per fas et per nefas, a deixou zonza. O filho se

colocou na frente da mãe, impediu-a de deixar a sala, ir ao banheiro ou telefonar ou

sair. Colocou-se na frente da mãe, como uma muralha intransponível, com a

tenacidade insensata em receber as respostas que ele queria ouvir, gritou e quebrou

coisas.

Os fios de cabelo da mãe moveram-se agitados com as lufadas de ar que

escapavam da boca do filho. Ela virou-se de costas. Os gritos doíam-lhe o ouvido.

As lufadas acertavam-lhe a nuca e ellembrou-se dos dentes de Ugolino roendo a

nuca de Ruggieri. Vieram os socos na parede. Se pudesse tolerar melhor os

berros... A mãe odeia gritos, são primitivos quando não são para pedir socorro ou

avisar alguém do perigo. Odeia gritos! Ela não conseguiu se refugiar no banheiro e

o filho continuou gritando em seu ouvido.

As escapatórias são ínfimas e uma questão de sorte.

Amar nunca foi simplesmente amar. Era ela quem havia parido esta criatura

que agora gritava em seu ouvido? Lembrava-se de sua doçura, as bochechas

gordas, as travessuras inocentes de menino, o apego à mãe, de como o havia

embalado nos braços ao som da melodia de Beethoven, Mozart, Villa-Lobos, de

como brincaram de luta em cima da cama, de trenzinho no tapete da sala e os

trilhos de madeira serpenteavam o chão. Recordava-se de quando o levava à praia

onde ele brincava com a pazinha e o balde na areia, de quando saíam de bicicleta

para passear, faziam piquenique no parque.

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Veio-lhe à mente as brigas com o marido na frente da criança, de como

protegeu o filho para não precisar testemunhar as discórdias dos adultos, de como

se conteve para não dar ao marido as respostas à altura ou xingá-lo de impropérios,

de como colocou panos quentes nas discussões para não piorar a situação, e

mudou-se, o mais rápido possível, para poupar o filho das gritarias do pai.

Amar nunca foi simplesmente amar. Amar é o mais difícil e complexo de

todos os sentimentos. A derradeira conclusão que a forma, a quantidade e a

qualidade do amor são os desafios maiores na vida, fez seu corpo embrandecer do

jeito que o corpo amolece depois de um trabalho extenuante, como se tivesse

lutado boxe com um adversário robusto. Um cansaço pesado e fundo dominou-lhe

o corpo, entorpeceu-a, deixou-a rendida e resignada. Não sabia, sinceramente não

conhecia o método mais adequado para amar sem amar menos, e ter a consciência

pesada por estar amando menos ou querer amar menos, e ter a consciência pesada

por querer amar menos ou pensar que está amando menos e não estar amando

menos por não conseguir amar menos ou ter de demonstrar que está amando menos

quando se está amando mais ou que está amando mais quando, no fundo, o filho

não merece ou não pode, neste momento, ter a incontestável certeza de ser por

demais amado. Não conhecia o método porque só sabia amar desta maneira que

estava no fundo dela, sem fórmulas e teorias. E desejava que fosse assim: sem

repreensão do seu amor, sem luta, sem ódio. Mas Deus, a Natureza, o

Nhanderuvuçú, ou seja lá o que for, fez o amor assim intrincado e difuso, ao ponto

de ela, após três horas e meia de discussão e coisas quebradas no apartamento, ela

não cedeu. Estava com forte dor de cabeça, com os olhos inchados, e cochilou no

sofá, sonhou com o intenso azul de mar, imenso, maculado de espumas brancas e

porosas, que alguns respingos chegavam a flutuar.

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Janelas

A primeira vez que eu vi o programa, se bem me recordo, foi no dia em que

despertei com o melancólico ruído do dedilhar da chuva no vidro da janela,

mesclava-se à candente voz de Charlotte pronunciando o meu nome. Donato,

acorda! Bom dia! Senti os lábios dela pousarem leves e breves nos meus. Acorda,

Donato Rotiel Borgues, senão você vai perder a hora.

— Ah, não! Está chovendo! Os dedos da chuva insistiam na janela.

— Sim, as plantas precisam de chuva. Ela me consolou ao mesmo tempo

que se despedia de mim. Tchau, eu já vou.

— Não vou poder ir de bicicleta hoje. Constatei desanimado.

— Quer que eu te leve de carro? Mas você tem de se apressar.

— Não, não precisa não, obrigado! Vou de metrô. Ela estava debruçada

sobre mim ainda deitado na cama. Não usávamos cortinas na janela devido ao

longo inverno embebido de escuridão. No entanto, na primavera clareava mais

cedo, a luz excessiva incomodava. Mas apreciávamos ser incomodados pela

claridade sobeja e a celeuma dos pássaros cantando.

— Não me aperte assim! Você está amassando a minha roupa. Queixou-se

Charlotte. Tchau. Bom trabalho! Ela me deixava e ia embora. Charlotte Werther

entrava mais cedo do que eu no trabalho. Era disciplinada. Eu chegava atrasado

quase diariamente.

Levantei, tomei a ducha e fiz o café que sorvi em grandes goles, em pé,

segurando a caneca quente, diante da porta de vidro que dava para o alpendre. Eu

contemplava, do segundo andar, os espelhos partidos no chão da rua refletindo

pedaços das fachadas das casas antigas, as sacadas com vasos de plantas e flores, e

o outdoor nas entranhas de uma obra. Era uma propaganda de cerveja com o

grafite-bigode na cara sorridente do jovem e ao fundo a paisagem crepuscular

flavescente com sabor de aventura e férias. Mantive a vã esperança de que a chuva

passasse até a hora de eu sair, mas engrossou. Precisei pegar o metrô.

Subi as escadas cheias de gente, na estação Zoologischer Garten, e

circundado pela multidãozinha debatendo-se, saindo dos vagões, cruzando

direções, fui compelido a pensar sobre as diferenças de ontem e de hoje. As

diferenças surgiam irremediáveis, um dia nunca era igual ao outro, embora

tivéssemos a impressão de que nada havia mudado, porque o que mudara não nos

interessava e ansiávamos outras mudanças, as radicais que nos remetiam à

realização dos nossos desejos. Estas mudanças eram as mais difíceis! Enquanto

estas mudanças não aconteciam eu ficava com essas minimalistas, como por

exemplo, encontrar outros passageiros dentro do vagão ou não ver a moça de salto

alto, casaco de couro e pele, bolsa de marca de grife, que vez ou outra aparecia

entre os passantes. Comprei um sanduíche de pão com presunto, tomate e alface, e

um copo de coffee to go. Fui sentado no banco do metrô tomando o café e comendo

o sanduíche.

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Era 2014, ano em que as manifestações políticas se sucediam, contra a

bolsa de valores, contra os bancos, e em certos países as manifestações tinham

começado. Época das queixas de cidadãos nas ruas e de um Amarildo Dias de

Souza sumir nas mãos da polícia carioca, além dos outros que sempre

desapareceram e desaparecerão nas mãos da polícia de países lentos com a justiça.

Época de compartilhar a realidade no Facebook e de possuir mais de trezentos

amigos.

Era nove e um, e eu uma ostra no interior da sala de um escritório. O

telefone tocava e eu ouvia a voz da pessoa com suas dúvidas em relação ao

requerimento do documento. Eu era de responder as indagações mais simples.

Minhas respostas eram evidentes. Há algo de perverso em um mundo

desnecessariamente fácil, baseado em indagações que não são uma busca porque o

óbvio da resposta não oferece espaço para interpretações diferentes.

Neste dia, pedi um livro emprestado ao Umberto di Rose, o italiano, magro,

alto, miope, que veio à minha sala fazer a atualização do Windows XP. Era função

do Steven Jobbys, mas eu não suportava a arrogância deste cara, que não passava

de um puxa saco e só conseguia ascensão na firma por causa de seus servicinhos

particulares de informática à chefia! Pedi ao Umberto, programador e amante da

literatura. O passa tempo de Umberto consistia em montar páginas na internet

contendo as obras preferidas dele. Montou os sites de Dante, Goethe e Guimarães

Rosa, Grandes Sertões Veredas, repletas de pastas, abas e links com janelas

carregadas de imagens geográficas ou ilustrações, referências biobibliográficas e

cinematográficas, e assim por diante. Umberto me revelou que trabalhava na

página de Pirandello e a próxima seria Geórgicas.

Umberto, sentado à minha mesa digitava qualquer coisa no teclado, olhava

para a tela concentrado nos movimentos luminosos do monitor, não me falou se

emprestaria o livro ou não. Mas, sem tirar os olhos da tela, fazendo o backup dos

meus arquivos, começou a discursar sobre a necessidade de se ter livros em casa,

enfileirados na estante, dando de cara com o dono. O e-book era para leituras

rápidas, que não carecem de anotações nas margens ou escritas em pedaços de

papeis avulsos esquecidos no meio das páginas, que não carecem de

sublinhamentos ou dobras de páginas.

Umberto prosseguia com o monólogo, certificava-se ao mesmo tempo, de

haver espaço livre suficiente no disco rígido. Havia no mínimo 3000MB de espaço

disponível para instalar a versão de 64 bits do Windows 8.1.

— No meio de um livro você pode encontrar uma nota de dinheiro

esquecida, uma anotação interessantezinha rabiscada e com letrinhas quase

ilegíveis, que pode ser trabalhada e transformada em uma obrinha literária, uma

folha de álamo vermelha de outono, o tíquete do cinema, e lembrar-se daquele

filme, agora antigo, e da ocasião em que você esteve no cinema com o/a amigo/a

que sumiu do mapa ou o/a amigo/a leal ou o/a namorado/a ou o/a amante —, falava

mencionando o masculino e feminino —, o tíquete do teatro (lembrar-se da peça e

da ocasião em que você esteve no teatro em uma noite, por exemplo, cinza e fria), o

número do telefone de um/a amigo/a, que você nunca telefonou não se sabe o

motivo. Não é agora que você vai telefonar só porque encontrou o papelzinho no

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meio do livro, em uma época em que todo mundo anota número de telefone direto

no celular. Mas você não quer ficar com o seu celular cheio de números de pessoas

que você mal conhece. E continuou: ...além dos trechos sublinhados que você pode

reler e refletir a razão que te fez marcá-los, reler as anotações e perceber que são

supérfluas e não precisariam estar “estragando” o livro, mas reconhecer a sua

própria letra denunciando que o livro te pertence e as anotações incorporam algo

como marcar o território. E aí você não empresta o livro para ninguém, com

vergonha da pessoa ler as anotações. Mas quem possui a necessidade endógena de

ter os livros em casa, enfileirados na estante, evita emprestá-los. Para ele o livro é

alienável!

Umberto di Rose era um porre! Presumi e me arrependi de ter feito o

pedido. É compreensível a sensação de segurança ao possuir o livro em casa, no

seu próprio reino, e ter a possibilidade de pegá-lo a qualquer hora do dia ou da

noite, entre as tarefas domésticas, depois de um dia de trabalho, no intervalo de

algum filme, na metade da tarde de um domingo tedioso, em uma manhã de

sábado, ainda na cama, no fundo de uma madrugada de insônia. Nada mais seguro

do que ter a certeza de que o livro está na estante, à disposição de teus anseios,

curiosidade, solidão, inteligência, sensibilidade, durante vários anos. Sem

mencionar a beleza e o material da capa, a aparência de cada livro com tamanho e

espessura individuais. Mas não é por isso que ele não pode me emprestar um livro,

porra!

— Tá bom, Umberto, já entendi! Não se preocupa não. Não era importante

e eu ainda estou terminando de ler outro livro. Obrigado mesmo assim!

Umberto digitou algo no teclado, abriu janelas, fechou janelas. Seus

movimentos eram rápidos, parecia tocar um allegro maestoso, para piano em D-flat

major, de Khachaturian. Passados vários minutos aproximou-se a um

Brasileirinho, de Azevedo. Ele usava uma munhequeira no punho direito para

aliviar a dor causada pela tendinite.

— Falaram-me que não era complicado atualizar o Windows XP, mas estou

vendo que não é verdade. Ainda bem que eu te chamei!

— Demora um pouco, mas não é complicado. Estou fazendo outra coisa.

Quero te mostrar isto aqui. Feche a porta!

Tive receio de que ele fosse me ilustrar algum tedioso passo de informática,

que não me interessava. Mesmo assim fechei a porta e voltei a ficar em pé, ao seu

lado, verificando os procedimentos sem entender nada.

— Ponha os óculos 3D!

— Não sei onde guardei. Ah, na gaveta! Lembrei, abri a gaveta e peguei os

óculos Samsung 3D SSG-3700CR/XC. Coloquei-os. De repente uma gigantesca

janela se abriu a minha frente e invadiu a sala, expandiu-se como o universo de

Lamaître, e a antiga biblioteca adquiriu contornos nítidos, semelhante à da

Alexandria antes de pegar fogo. Se bem que não a conheço, creio que ninguém

sabe como era. Minto. Não era como a da Alexandria, era como a sala teológica do

Mosteiro Strahov.

— Caralho, Umberto, o que é isso?

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— É um programa especial, em 3D, que estou desenvolvendo. Não revele a

ninguém! Estamos no ambiente de trabalho e como você sabe, recebemos ordens

de não fazer nada particular no horário do expediente. Mas eu queria mostrá-lo.

Na minha frente a ampla sala retangular materializou-se magnífica,

margeada por altas estantes, e o teto ornamentado com estuques e afrescos barrocos

coloridos exibia passagens da Bíblia, havia uma mesa ao centro e seis grandes

globos terrestres e celestiais nas laterais, feitos de cobre e sustentados pela armação

de madeira talhada lustrosa, como o Globo Blaeu ou Coronelli, o chão de assoalho

de madeira dourada brilhava.

— Puta que pariu, cara, que esplêndido!

— Não fique aí parado sem se mexer. Você pode se movimentar pela

biblioteca, pegar os livros e vê-los sentado à mesa nas laterais. Você só tem dez

minutos e espero que ninguém entre na sala neste ínterim.

O chefe não chegava antes das dez e meia. Eu estava atônito, minha

percepção procurava abranger todas as estantes, mas eram muitas. Seria necessário

bem mais do que dez minutos para manusear os livros.

— Anda logo, Donato, o programa apaga automaticamente após dez

minutos. Eu te disse que ele ainda não está pronto.

Mas como eu podia me apressar se eu estava paralisado? E como eu podia

avaliar algo tão maravilhoso em uma fração de dez minutos? Umberto não

desviava a atenção do monitor, seus olhos estavam fixados na tela.

Despertei do enleio da perplexidade e dei alguns passos inseguros sobre o

assoalho luzidio, entrei na biblioteca. Parei diante da estante: vi a epopeia de

Gilgamesh nas doze tabuletas de barro; a Tora; a Bíblia; o Alcorão; os escritos de

Confúcio; os manuscritos com a tradução do tibetano para o mongol das escrituras

budistas, Kanjur e Tanjur; o Códice de Dresden; Ilíadas e Odisseia de Homero; Os

Sermões do Padre Anchieta; A Trágica História do Dr. Fausto, de Marlowe;

Hamlet; A Divina Comédia; Os Aneis de Niebelung; As Cartas dos Trovadores;

Kojiki, de Ō no Yasumaro; Eugene Onegin; a primeira edição da Encyclopédie.

E em seguida não pude ver mais, a Beatriz bateu na porta e entrou sem

esperar a resposta. A imagem desapareceu num passe de mágica. Não sei se

Umberto havia dado o comando ou se os dez minutos haviam se esgotado. Só não

desapareceu o espanto na minha fisionomia o que a fez estranhar.

— Credo, Donato, que cara é essa? Estou atrapalhando alguma coisa?

— Não, não. Eu só levei um susto.

— Com o quê? Vocês estão fazendo alguma coisa que não devam? Ou eu

sou tão horrorosa assim?

— Não. Quer dizer sim. Não que você seja horrorosa! Nós é que estamos

fazendo o que não devemos. Sorri para disfarçar. Sabia que se eu dissesse a

verdade a atraente Beatriz, trajada com um vestido justo preto, usando os cabelos

compridos louros em um rabo de cavalo e saltos altos, não acreditaria em mim.

— Ah, não quero nem saber o que é para não servir de cumplice. Disse ela

brincando. Assine o seu holerite, por favor! Você também, Umberto! Eu já vou

deixar vocês com os seus segredos. Beatriz nos entregou os papeis. Não comenterei

sobre o meu salário baixo que eu ganhava há anos e que não condizia com a minha

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produtividade e eficiência comprovadas. Pronto, já fiz o comentário! Era difícil de

evitar o pensamento de mau agouro cada vez que eu assinava o holerite. Guardei a

minha cópia na gaveta. Umberto dobrou a sua e colocou-a no bolso.

A vertigem ainda não tinha me abandonado, agora adicionada à sensação de

injustiça pelo salário baixo. Beatriz saiu da sala e fechou a porta. Voltei-me para o

Umberto.

— Umberto este programa é fantástico! Você ficará milionário!

— Não se entusiasme tanto assim! Faz anos que não consigo passar disso:

dez minutos. Não consigo prorrogar o tempo e nem ampliar as opções de comando.

Além disso, faltam muitos livros na biblioteca. Me inspirei em um conto de

Borges.

O telefone tocou. Era o Stevens informando que o Umberto deviria

comparecer na sala dele. A chefia o procurava. Passei o recado. Antes de sair ele

instalou a ferramenta PCmover Express (software responsável pela migração dos

dados), deixou o meu computador fazendo o download da versão do programa e

dos novos updates, e instruiu-me a reiniciá-lo assim que ele terminasse.

Foi tudo tão rápido e um tal de me chamarem para executar essa ou aquela

tarefa que passadas algumas horas não me restou outra alternativa a não ser

abrandar a perplexidade.

Não saí para o almoço.

Alexandre Groesse entrou na minha sala para indagar sobre a minuta do

contrato para a filial no Brasil. As papeladas haviam sido analisadas e enviadas ao

departamento competente. Esperava-se uma resposta que demorava. Como se uma

resposta deste tipo fosse algo banal que não necessitasse de antecedentes,

documentos, assinatura e carimbos, como se não fosse uma questão de leis e

regulamentos.

Trabalhei a tarde toda, digitei cartas, emiti documentos, carimbei, copiei,

arquivei... —, mas a burocracia existia até mesmo em Uruk, ao sul da

Mesopotâmia, há três mil anos antes de Cristo. Na megacite, sem eletricidade,

computador, telefone, caneta, já se usavam os carimbos, os registros escritos com

caracteres cuneiformes nas tabuinhas de barro: lista dos reis, registro de alimentos e

escravos, epopeias. Isso prova que as coisas mudam, mas não mudam, trocam a

casca, a polpa é a mesma. O homem está para a burocracia como os macacos para

os galhos. Thomas Hobbe que o diga ao reconhecer que o homem não passa de um

ser selvagem e egoísta ao estar desprovido das leis, dos regulamentos, dos

registros, dos acordos, dos contratos redigidos, impressos, assinados, carimbados,

copiados, escaneados, salvos no disco rígido, no USB flash drive (e mesmo provido

deles o homem continua um ser egoísta, porém dotado agora de um egoísmo

civilizado, justificado por leis e burocracias).

Após o expediente encontrei Umberto, embaixo de uma bétula carregada de

brotos de folhas verdes, na calçada, em frente à empresa, e o interpelei.

— Umberto, queria ver este programa de novo.

— Não sei se vai dar, cara! Eu não deveria ter te mostrado. Ainda não está

terminado e é um segredo. Alguém pode roubar a minha ideia e conseguir

prorrogar o tempo e ficar milionário no meu lugar.

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— Não se preocupe que não vou revelar a ninguém. Só queria dar mais uma

olhada com calma. Talvez na minha casa, algum dia que você tenha tempo.

— Não sei! Não tenho muito tempo à disposição. Os gêmeos dão muito

trabalho e a Mathilde anda doente estes dias.

— Não. Não precisa ser hoje, nem amanhã. Algum dia desses!

Não era verdade, deveria ser o mais breve possível. Eu estava ansioso para

rever a biblioteca. Não faz mal que durasse apenas dez minutos. Eu poderia reabrir

a janela cem vezes, se fosse necessário. Mas não demonstrei a minha impaciência.

Ele poderia interpretá-la mal e negar-me de vez a oportunidade.

— Tudo bem, Donato, eu te falo quando der.

Peguei o metrô e fui para casa. Ventava forte e gelado. Dentro do vagão

consegui um lugar para sentar e vim lendo, no eBook Readers Devices, um destes

livros bons que conduz a gente em suas estações de histórias e cenários, e a gente

corre o risco de não perceber que chegou a estação na qual a gente tem de descer,

indo parar três ou cinco estações adiante, dar-se conta quando as portas estão se

fechando e, finalmente, descer e pegar o metrô, vindo do lado oposto, e regressar

até chegar ao destino certo.

Em casa, a Charlotte estava mais interessada em preparar o penne com

molho branco e salmão do que no meu comentário sobre uma biblioteca virtual

inacabada e inacessível.

— Mas você não está de dieta? Perguntei ao sentir o cheiro apetitoso do

molho.

— Já fiz dieta a semana inteira. Hoje quero comer algo cheio de

carboidrato, gordura e delicioso.

— Eu vou nessa! Charlotte possui problema de peso e eu de calvície aos

trinta e sete anos. Nada grave, dizemos um ao outro.

Jantávamos a mesa da sala, tomávamos vinho branco e comíamos a massa

quando sugeri fazermos um jantar para um colega meu de trabalho. Nos quatro

anos que moramos juntos eu nunca havia convidado ninguém da empresa. Alguns

amigos nos visitavam esporadicamente, mas geralmente estávamos ocupados e

reservávamos os dias livres para viajar.

— Não sei, Donato! Esta semana tem reunião com os diretores do museu da

Suíça. Estamos organizando uma nova exposição e preciso preparar a apresentação

PowerPoint para a minha chefe. Tenho de incluir três slides e gráficos que ainda

não estão prontos. Até trouxe serviço para casa. Quem é este colega, eu o conheço?

— Sim. É aquele que estava com a esposa e os gêmeos na festa de Natal, no

restaurante árabe. Lembra?

— Ah, sim! Conversei pouco com eles. Mas os gêmeos são umas

gracinhas! Para dois garotos de cinco anos eles se comportaram bem.

— E que tal fazermos o jantar na quinta? Eu preparo tudo. Você não precisa

se preocupar com nada. E eles não ficarão até tarde por causa das crianças.

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— Eu preferia deixar para a outra semana. Sempre que temos reunião com

diretores é um nervosismo total no escritório. E realmente há muito trabalho agora.

— Mas você não terá que se preocupar com nada, Schatz! Como eu já disse,

eu preparo tudo. Você só precisa conversar um pouco e sorrir. O resto é comigo!

— Ainda acho melhor deixarmos para a outra semana.

— Ok, Charlotte! Vamos fazer assim, se eles tiverem tempo nessa semana,

eu faço tudo, senão deixaremos para a outra.

Meu estratagema consistia em atrair o Umberto ao meu apartamento,

envolvê-lo em uma conversa descontraída, falar um pouco sobre o trabalho, mas

não muito para não entediar as mulheres; um pouco sobre arte, mas não muito para

não entediar a Mathilde, a esposa do Umberto que é enfermeira; um pouco sobre

crianças, mas não muito porque não tínhamos nenhuma, e por fim levá-lo ao meu

escritório com o pretexto de mostrar-lhe as fotos da estadia em Florianópolis e

solicitar-lhe que abrisse o programa. Com a comida eu não me preocupava.

Planejava encomendar alguma coisa pronta: patê grego, folhas de uva recheadas,

pão turco, queijo e vinho francês, panna cotta de sobremesa encomenda no italiano

da esquina de casa.

No dia em que Umberto aceitou o convite para jantar em casa fui trabalhar

pedalando pela ciclovia da Potsdamer Strasse, apesar da garoa flutuante pairar no

ar como uma névoa e manchar a paisagem de cinza, umedecendo a minha cara.

Peguei uma brecha nos congestionamentos. Desta vez, não me deparei com a

caminhonete entregando mercadoria estacionada na ciclovia, nem com o ponto de

ônibus cheio e gente espalhada na ciclovia, nem com o passageiro abrindo a porta

do carro estacionado sem verificar se há bicicleta percorrendo a ciclovia. No

escritório, liguei o computador e fui pegar um café para tomar com o lanche

comprado no caminho. O computador não funcionava direito. Esperei até o

Umberto chegar.

— Umberto, estou com problemas de travamento no Firefox. Você poderia

dar uma passadinha na minha sala? — Agora não dá, meu irmão! Irei lá pelas onze. Enquanto isso faça a

limpeza de cookies e cache e reinicie o Firefox! Se não der certo verifique os

plugins e reinstale o Firefox! Talvez assim você o desbloquei.

— Acho melhor você fazer isso. Pode ser que eu faça alguma coisa errada e

aí estraga tudo.

— Não é complicado não!

— Eu sabia que não era complicado. O problema com o Firefox veio a

calhar para ser usado como pretexto e eu atraí-lo à minha sala, criando a

oportunidade de entrar de novo na biblioteca.

— Vou tentar, Umberto, mas de qualquer maneira venha às onze verificar

se está tudo correto.

— Você também pode fazer o resete, restaure todas as preferências para

padrão do Firefox.

— Não, isso não sei fazer não!

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— É só clicar no botão Firefox, ir para o dub-menu ajuda e selecionar

dados para suporte. Depois acessar o menu ajuda, digitar about:support na barra de

endereços para abrir a página Troubleshooting information. — Não, cara! Não vai dar certo. Eu te espero às onze. — Ok. Deixa prá lá. Eu passo aí depois.

Ele não veio às onze, meia hora depois estava na minha sala. Disse ter

arrumado um tempo, mas estava com pressa. Executaria o serviço rapidamente. E

logo sentou-se em frente ao computador e começou a fazer o resete. Hesitei um

instante em pedir para colocar o programa fantástico, com receio dele perceber a

minha agonia. Eu desconhecia o motivo pelo qual eu havia sido o previlegiado em

vê-lo.

— Você nem sequer chegou a fazer a limpeza dos cookies, Donato!

— Eu ia fazer isso agora. Não esperava que você viesse tão rápido.

Enquanto os cookies estavam sendo apagados e ele esperava o computador

terminar o comando perguntei-lhe por que havia me mostrado o programa das

bibliotecas.

— Foi só pra me deixar curioso e ansioso, Umberto? Você sabia que eu ia

gostar e não te deixaria mais em paz.

— Não pensei nas consequências. Confesso que fui impulsivo. Mas eu

queria saber a opinião de alguém e as circunstâncias te escolheram.

— Ah, quem bom! Que sorte a minha, hein?! E será que não dá pra me

mostrar mais uma vez? Só mais uma vez? Não vou perguntar mais.

Não era verdade. Assim que eu terminei de falar antevi que eu nunca mais o

tiraria da cabeça.

— O programa não está pronto e está com defeito. Não adianta entrar em

uma biblioteca cujos livros estão pela metade, desorganizados, e faltam várias

obras. Você só pode ler as primeiras páginas. Não serve um programa assim!

— Sim, pra mim serve sim. Eu só quero olhar. Não tenho tempo de ler estes

livros. Quero apenas dar mais uma olhadinha, nada mais. Qual é, cara? Quebra essa

pra mim!

Umberto mirou-me indeciso e não atendeu ao meu pedido. Mas aceitou ir

jantar em casa.

Lembro-me de não ter conseguido dormir bem na noite de quarta para a

quinta. Acordei ansioso, suado e cansado. Trabalhei inquieto e tranquilizei-me

somente após passar no mercado e chegar em casa.

Naquela noite, a voz de Charlotte alcançou a cozinha ao abrir a porta e

exclamar hallo. Escutei-a tirar os sapatos no corridor, depositar a bolsa sobre o

móvel, ao lado do cabideiro, e pendurar o casaco de meia estação no cabide,

justamente no momento que eu jogava o pacote vazio de sopa de champignon knorr

no fundo da lata de lixo. Charlotte não costumava comprar comida industrializada,

acreditava nos efeitos saudáveis dos alimentos biológicos e na melhor qualidade

dos produtos. Não podia saber que a sopa era de pacotinho.

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— O que você está cozinhando? Ela se aproximou de mim e me beijou leve

na boca.

— Estou preparando uma sopa de champignon. E joguei dentro da panela os

champignons frescos cortados, para disfarçar a sopa de pacote.

— Não sabia que você sabia fazer sopa de champignon! Ela estava surpresa.

— Há muitas coisas a meu respeito que você ainda não sabe. Retruquei

sorrindo maliciosamente.

— Espero que sejam só coisas boas, Schatz!

Os convidados chegaram pontuais e, para o meu alívio, sem as crianças.

Sentamo-nos à mesa, na sala de estar. Brindamos o encontro com o château haut-

brion, carbanet sauvignon, e servi a sopa que foi bastante elogiada. Comemos os

espetinhos de carne de carneiro assada e salada. E no final das fatias de pão com

queijo, frios e patês, Charlotte foi à cozinha pegar a sobremesa. Mathilde a ajudou

levando a louça suja para ser substituída pelos pratinhos. A retirada das mulheres

favoreceu-me a colocar o meu plano em ação. Eu queria cercá-lo como na Batalha

de Gaugamela. Solicitei ao Umberto que me acompanhasse até meu escritório para

eu mostrar-lhe a foto do apartamento que estávamos comprando, em Florianópolis.

Umberto considerou interessante a nossa iniciativa e comentou que talvez ele

também se prontificasse a comprar um imóvel no Brasil. O computador estava

ligado e passei as fotos, ilustrei uma ou outra curiosidade da região, as praias, as

montanhas, relatei sucintamente sobre as papeladas e leis, e sem terminar o

assunto, perguntei-lhe: e já que estamos aqui sozinhos, você poderia abrir o

programa de novo? Esta é a última vez que eu te peço.

— Donato, já te disse, o programa não está pronto.

— Eu sei, mas acontece que na empresa eu estava tenso, com receio do

chefe chegar e, no fundo, não consegui ver nada.

Umberto ficou em silêncio, mantinha o olhar em um ponto fixo no monitor,

exatamente na onda macia de uma praia onde eu e a Charlotte aparecia na tela, à

direita, vestidos de trajes de banho, descalços, usando óculos escuros, sorrindo

abraçados.

— Está bem, Donato, esta é a última vez.

A seriedade contida em sua voz me intimidou, mas o espanto foi logo

desvanecido pela minha felicidade em ter conseguido o que eu queria. Levantei-me

e ofereci-lhe a cadeira. Ele sentou-se e iniciou o concerto no teclado. Coloquei os

óculos 3D e a biblioteca expandiu-se diante de mim estupefato.

Sabendo que eu disponha de apenas dez míseros minutos queria ver o

máximo possível. Vi O Conto de Genji, de Murasaki Shikibu; Um tratado sobre as

línguas Khoisan e outro sobre os idiomas nilo-saarianas; o Pui, escrito no idioma

africano Soninke (um conjunto de canções heróicas dividido em doze partes), e o

Dausi, do legendário Reino de Gana (poema épico de cento e cinquenta versos

isentos de metrificação regular); um escrito mitológico em niimiipuutimt (língua do

povo indígena Nez Percé, natural do bacia do Rio Columbia); a reprodução da

Tabuleta de Baška (escrita no alfabeto glagolítico); uma folha do manuscrito

Corpus Aristotelicum, e um texto sobre política; vi Prólogo, de Laércio. E me

adveio Sócrates e Platão que eu esperava estivessem por ali, e estavam. Mas

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alguma coisa aconteceu. Outra janela maior abriu sobrepondo-se a essa e começou

a expandir-se no espaço onde eu me encontrava. Algo como uma catedral

abrigando a alta cúpula de onde a claridade germinava, tal qual a Biblioteca

Britânica. Fui tomado por uma forte vertigem, o espaço girou. Surgiu mais uma

janela sobrepondo-se a essa e expunha a ampla e elevada ala com a majestosa

cúpula ornamentada de estuques, afrescos e vitrais, nas laterais duas escadarias de

mármore convidavam a subir para a outra ala repleta de pilares gregos, também de

mármore, com o capitel coríntio exibindo a profusão de rebentos e folhas de

acanto, o solo era coberto por mosaíco florístico e geométrico, como a entrada da

Biblioteca do Congresso.

A tontura ainda influenciava a minha visão. Será que devido ao vinho?

Umberto caprichou no programa! Pensei. Ao entrar por uma porta ou portal eu me

encontrava em outra biblioteca. Subi escadas, desci escadas e escadarias largas e

estreitas que poderiam ser as de Escher. Mas as de Escher se entrecruzam, não

possuem saídas, diferentes dessas que afluem a outras alas, salas, patios e paços.

Entrei por uma porta que foi dar na Biblioteca de Moscou, outra em uma pequena

sala da biblioteca com o telhado azul, em Anadyr, cujo vendaval volátil soprava a

neve no reverso da janela embranquecida e causou-me arrepios de frio. Desci uma

escada de nove degraus que foi dar em uma sala, na Biblioteca de Ulaanbaatar. Saí

por uma porta lateral e atingi a pequena biblioteca de Niquinohomo, com o

ventilador ligado no teto. Desci três degraus e fui parar em um ensolarado e quente

pátio de cimento, atravessei-o e adentrei na biblioteca de Macondo (pela varanda

pude ver a árvore florindo borboletas amarelas que voavam em um enxame cada

vez que o sopro da brisa clara a atingia). Saí por uma trilha que cingia um lago de

vitória-régias, atravessando a estreita ponte de nós de corda grossa e entrando em

uma construção de cimento e madeira atingi a ala que parecia ser a do teto

inclinado da Biblioteca da Floresta, no Acre.

Não sabia que direção seguir no interior deste programa que mais

assemelhava ser de Dédalo do que de Umberto di Rose: cidadão italiano, casado,

pai de gêmeos, emigrante, analista de sistemas, funcionário subalterno em uma

multinacional, amante da arte e literatura e simplesmente meu colega de trabalho.

Abri mais uma porta que me levou à sala pequena e modesta da biblioteca de

Ushuaia, no instante de um ocaso azul escuro, vermelho e ametista rutilar no

horizonte. Atravessei uma pequena ponte de madeira ladeada por plantas e fui

chegar à Biblioteca Stanton. Ao sair, caminhei pelo paço episcopal e abri a grande

porta de madeira esculpida e fui me encontrar no piso tridimensional quadricular da

Biblioteca da Abadia Beneditina de Admont. A arquitetura barroca ainda me causa

imensa admiração! O teto é adornado por grandes afrescos que exibem imagens

bíblicas do juízo final, as estantes brancas são contornadas e enfeitadas por pinturas

douradas, e das altas janelas a dramática claridade engendra-se entre as estantes. E

da mesma forma a Biblioteca da Abadia de São Galo me impressiona! Os afrescos

e os estuques no teto, as estantes emolduradas pelos esbeltos pilares gregos de

mármore escuro, o solo formado por mosaíco de madeira de carvalho são

fascinantes! É como a Biblioteca do Mosteiro de Wiblingen, visitada por mim e

Charlotte, na época em que vivíamos juntos, no feriado do dia primeiro de maio de

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2008. Foi um mês quente, seco e cheio de sol. E a beleza arquitetônica da

Biblioteca do Mosteiro de Wiblingen permaneceu gravada na minha memória.

E prossegui, acessei outras e outras bibliotecas como em um calendoscópio.

Eu me movia em três planos de gravitação interligados por escadas, portas, pátios,

arcos, elevadores horizontais. Entrei na Biblioteca Mário de Andrade, onde eu

costumava ir, no intervalo do almoço, quando era jovem e trabalhava de office boy

para uma firma, no centro de São Paulo. Saí dali e cheguei de repente a um pátio

cujo solo era de piso cor lápis-lazúli, atravessei-o como se eu andasse sobre a

superfície de um mar profundamente azul e ausente de ondas, subi dois degraus,

olhei para o alto e vislumbrei as esplêndidas muqarnas de ladrilhos azuis,

suspensas no alto como estalactite, minha visão desceu para as paredes de azulejos

esmaltados cobertos de arabescos e bismillah, em forma de flores, com o dizer: Em

nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso, e alcancei o que me pareceu ser a

biblioteca da Mesquita de Jameh.

Agora eu me encontrava em uma sala adjacente, cheia de tapetes persas no

chão e senti-me feliz em poder sentar em um divã do leste e oeste, para descansar e

averiguar a minha situação.

Meu celular marcava cinco horas da madrugada. Eu já estava sete horas no

interior do programa? Será que Umberto conseguiu reparar o defeito? E agora

como eu faço para sair? Meu celular não possuía conexão. Mas eu estava em meu

apartamento no bairro Wilmersdorf, não estava? Havia algo errado com a data, não

era mais a mesma, pelo registro do meu celular haviam se passado sete semanas.

Ou sete anos? Eu não entendia por que eu ainda me encontrava no interior das

bibliotecas e comecei a raciocinar uma razão lógica: a) o meu celular estava com

defeito; b) Umberto tentava desligar o programa e não conseguia; c) ele havia

reparado o defeito e o fechamento do programa consistia em que o próprio usuário

buscasse sozinho uma saída no meio da miríade de bibliotecas; d) Umberto reparou

o programa e esqueceu de dar-me as instruções de saída; e) eu deveria ficar

tranquilo e não procurar a saída e esperar que o Umberto fechasse o programa; f)

eu deveria apenas deleitar-me com as leituras que estavam à minha disposição e

esquecer que eu manuseava um programa; g) eu deveria ter enloquecido, sofrendo

do mal de Alonso Quijano, com a diferença que eu não saía lutando contra moinhos

de vento, apenas me imaginava encafuado nas bibliotecas do mundo, abraçado à

impossível missão de ler todas as obras essenciais da Humanidade, e estas janelas e

bibliotecas não passariam de fruto da minha imaginação. Eu mesmo deveria estar

na cama sonhando, no meu apartamento, em Berlim, e a qualquer momento

despertaria à realidade verossímil.

Para uma tecnologia que absorve, desta forma, o usuário no interior das

imagens estereocópicas seriam necessários, além de outros recursos, pelo menos,

105 terabytes de memória e 2 petabytes de espaço em disco rígido e a mais

aperfeiçoada técnica 3D. Meu computador era bom, mas não possuía tal

capacidade, era um Apple MacBook Air, 13 polegadas: 256 GB, Processador Intel

Core i5, dual-core a 1,4 GHz, Turbo Boost até 2,7 GHz, Intel HD Graphics 5000, 4

GB de memória, 256 GB de armazenamento flash com base em PCIe1. Não

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compreendo como Umberto conseguiu desenvolver o programa sem o hardware

específico!

As obras dispostas nas estantes das miríficas bibliotecas estão completas, é

só lê-las, mesmo em um idioma estrangeiro. A tradução ocorre simultânea em cima

do texto, em kwadi, em tupi ou jês, em xakribá, em one, em cassúbio, em

sichuanês, em sânscrito, em punjabi ou urdu, em wiyot, em soyot, em te’un, em

barzani judeu neo-aramaico, em sogoo, em birgid e assim por diante em todas as

línguas existentes e extintas.

Leio os livros como se a vida dependesse disso e eu não precisasse de outra

coisa. Não sinto fome ou sede. Eu leio.

Vez ou outra, uma suave saudade passa como brisa no meu rosto, como a

saudade da minha mãe, professora de corte e costura aposentada, arrumando-se em

frente ao espelho na porta do guarda-roupa, vestida com blazer MNG Barcelona

big pied cinza claro, com padronagem de pied poule e dois bolsos, modelagem reta

com mangas longas e gola alfaiate, e vestido tubinho vermelho, minha mãe me

dizia que a vida é de alinhamentos, muitas vezes o avesso da coisa direita, cheia de

costura galoneira, zigue zague, pontos overloques, pespontos, alinhavos, ponto

corridor, chuleado, e que sua geometria são as curvas; saudade de um episódio feliz

de quando eu era menino e brincava na praia, com os meus primos, cavoucando a

areia acreditando chegar do outro lado do planeta; saudade de meu pai, tios e avós

arrastando a rede no mar prateado de Peruíbe, trazendo-a cheia de sirís e peixes; do

brilho nácar das escamas do peixe pulando dentro da pia; de ver a esfera do sol

alaranjado erguendo-se de trás das ondas; dos jogos de futebol no pátio do colégio

onde os dentes de leões cresciam nos interstícios do cimento rachado; saudade dos

olhos negros opala de Iracema da Luz Diottyma, minha primeira namorada;

saudade de uma concha borboleta presa na areia; dos caroços de jabuticabas

cuspidos e transformados em estrelas negras no chão; das faichas vermelhas,

amarelas, rochas, rosas, dos campos de tulipas, nas autoestradas, a caminho da

Holanda; da minha mão segurando o volante do automóvel e a outra acariciando a

mão de Charlotte, sentada ao meu lado; saudades do dia em que despertamos de

manhã no quarto de uma pequena pensão, no pé da montanha, nas Dolomitas, com

as flores no parapeito das janelas; de banhar o olhar no riacho verde escorrendo das

pedras e findando-se em um lago esmeralda; saudade da voz sensual da Charlotte

pronunciando meu nome ao ouvido no instante do orgasmo.

Fortuitamente as recordações afluem à minha memória e eu suspiro

nostálgico.

No mais, leio. Eu leio A Origem das Espécies, de Darwin; Al-Kitāb al-

muḫtaṣar fī ḥisāb al-ğabr wa-l-muqābala (livro do cálculo algébrico e

confrontação), de Abū ‘Abd Allāh Muhammad ibn Mūsā al-Khwārizmī; os versos

do Avesta, de Zaratustra; Pachatandra, de Vishnu Sarma; Calila e Dimna (Os

Cincos Princípios, a versão das fábulas hindus de Vishnu Sarma traduzidas para o

árabe por Ibn al-Mukafa); Decamerão, Os Ensaios de Montaigne; Cosmos, de

Humboldt; Popol Vuh; Innumerabiles Fabulae, de Herodot; eu leio… E se eu não

morri, ainda estou aqui, no interior de um software que apresenta todas as

bibliotecas do mundo —, lendo, até hoje.

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Projeção lenticular micro impressa do medo

Passo de relance. Manhã cinza. Dentro da estação de metrô Zoologischer

Garten a luz desfaz amanhecer, entardecer ou anoitecer. Não vem ao caso! O que

me chama a atenção é o outdoor da bela face da mulher divulgando um creme

antirrugas. Pelo menos é o que eu penso logo de cara ao contemplar a face perfeita,

meio de perfil, maquiada, com um meio sorriso de satisfação e harmonia nos lábios

vermelhos. Mas conforme caminho em direção à outra plataforma e, observo o

outdoor, dependendo do ângulo, ele se altera. A outra parte do rosto transforma-se

em algo grotesco, descarnado como uma caveira, com os dentes escancarados, a

pele podre e os ossos à mostra. E imediatamente desvio o olhar para logo em

seguida examinar com mais atenção. Será que estou ficando louca? Será que faz

parte da propaganda? Será que sou a única que reparou nisso? Os passageiros

apressados passam a minha frente, vestidos de casacos pretos ou cinzas tufados de

pena de ganso, calçados com os pesados sapatos de inverno, carregando bolsas

grandes ou mochilas, e não se espantam com a horrenda imagem e ainda me

conduzem no meio do fluxo.

O expediente me chama. A automatização é mais forte. É difícil deixar de

ser a pecinha insignificante dentro do sistema quando você não passa de uma

pecinha insignificante dentro do sistema e tudo dentro do sistema te leva a ser uma

pecinha insignificante. Chego à outra plataforma com a cabeça repleta de deduções

banais em relação ao estranho outdoor e o metrô aparece. Na porta, vejo a imagem

da propaganda: um homem, em pé, bem vestido, boa aparência, com um gato fofo

nos braços. Não há tempo de eu ler sobre o mote. Enquanto espero os passageiros

descerem, foco minha atenção no assento vazio na direção em que devo ir antes de

eu perder o lugar. E o gato fofo começa a mostrar as garras e os ameaçadores

dentes-de-sabre e transformar-se em um selvagem felino esmilodonte, com os seus

pelos e pele despencando do corpo de ossos escuros e pútridos. Algo advindo do

Malebolge. O homem continuou lindo e sorridente. Será que estou dentro de um

filme de terror? Não seria nada mal algo que destoasse da mesmice típica do

sistema. Mas é uma hipótese fictícia! Eu não posso estar fazendo parte de um filme

de terror sem as devidas câmaras e o diretor em volta dando-me as coordenadas

sobre o que eu devo dizer, fazer, movimentar, como eu devo me espantar, se com

um berro e os olhos arregalados, abrindo a boca e erguendo as mãos à cabeça, se

com um berro e as mãos na boca, se com os olhos arregalados, sem berro e sem

mão na cabeça ou na boca. Não, não pode ser um filme de terror! Talvez uma

criativa propaganda de um novo game lançada por uma companhia internacional de

marketing. Ou coisa da minha cabeça devido ao estresse, devido à colega de férias

e eu sobrecarregada com tarefas de outros departamentos, à saudade de minha

família distante, à minha mãe doente, ou por causa da briga com meu namorado.

Há anos que Felix e eu estamos e não estamos juntos. Ele mora em

Munique, devido ao seu bom emprego. E eu, em Berlim, devido ao meu bom

emprego. Era a vez dele de vir me visitar, mas faz seis meses que não vem.

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Discutimos no skype: “as últimas vezes fui eu que te visitei. Combinamos de nos

revezar. Por que você está criando dificuldades?”

— Não é dificuldade. Se você quiser eu vou no próximo final de semana,

mas neste eu tenho um compromisso importante. É aniversário do Paul e ele vai

fazer uma festa. É melhor você vir ao invés de eu ir aí. Se você quiser eu pago a

passagem! A questão não era a passagem, nem o aniversário do Paul, nem o

casamento da Ingrid, nem o jogo de boliche com a turma do Thomas, nem a

viagem para a Suíça com a turma do Thomas, nem andar de caiaque com a turma

do Thomas. O problema é que Felix está cada vez mais afastando-se dos meus

amigos e de mim.

— Felix, você não entende, sempre haverá um bom motivo para eu ir a

Munique te visitar. Acontece que também existem vários bons motivos para você

vir me visitar e nos últimos meses você não veio. A Carla também está fazendo

aniversário. Você se lembra dela? Da outra vez, o jantar na casa dela estava

maravilhoso e teve música ao vivo. Lembra-se dos dois brasileiros tocando bossa

nova e chorinho no violão? Então, agora é a sua vez de vir e você não vai se

arrepender, prometo. Digo o prometo com a voz sensual e maliciosa. Sinto falta do

corpo nu de Felix em cima do meu, do músculo do seu abdômen pesando no meu

ventre. Não adiantou. Discutimos cara a cara no skype. Ele não veio.

Sento-me no banco do metrô. Leio algumas páginas do jornal. Desço na

estação certa. Vez ou outra desço em uma estação anterior e caminho. Desta vez,

não observei nenhum passante fugaz, nem as rugas das fachadas das casas antigas,

nem a ponte por cima do canal do Spree, nem o voo dos patos anatidae, nem os

barcos ancorados na sombra da outra ponte, nem as amareladas folhas de cinco

dedos, caídas no chão, dos bordos margeando as calçadas. Compro um pãozinho na

padaria turca da esquina e vou ao escritório.

Trabalho as oito horas.

Ao pegar o metrô de volta para casa, sentada no banco, lendo o jornal e

quase cochilando, por entre a fresta dos meus olhos semicerrados, vislumbro a

perna da mulher em carne viva, isto é, morta, podre, um carnicão. O que é isso?

Assustada abro meus olhos. A imagem distorcida desaparece. A mulher desce.

Na estação Zoo, observo melhor o outdoor com a mulher de hoje de manhã.

Talvez eu estivesse enganada. Com a correria e o sono seria possível a confusão.

Não me enganei. A face putrefata da mulher continua ali. Não posso ficar parada

sem ser empurrada pelos passageiros que descem e sobem e os que passam

apressados. Para não correr o risco de ser empurrada para dentro do vagão e ter de

andar em direção oposta, saio dali. Penso que talvez fosse uma destas propagandas

políticas precavendo contra creme antirrugas à base de química ou contra

experimentos com animais ou mostrando a transitoriedade da vida ou o lançamento

da nova versão do dishonored, desenvolvida pela Arkane Studios e publicada pela

Bethesda Software, por exemplo.

No dia seguinte, ao ir trabalhar e descer do metrô, na estação Zoo, conforme

caminho, a linda mulher transforma-se em uma caveira. Os ossos cinzentos e

podres aparecem na metade da outra face. É pior do que no dishonored. Caminho

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como se não tivesse me dado conta de nada de anormal, afinal os demais

passageiros seguem apressados e indiferentes.

Trabalho as estipuladas oito horas.

Após o expediente volto para casa. Não sem antes dar de cara com o

homem bonito e o gato sinistro na porta do metrô. Hesito em entrar, mas os outros

passageiros entram sem se incomodar com o felino mostrando as garras e os dentes

afiados, com partes do corpo descarnadas e a carne putrefata, e as escuras veias e

artérias à mostra, o plexo exposto. Contraio-me no interior do meu casaco de

inverno estufado, e entro. Viajo apreensiva, antevendo a face horripilante da

mulher me esperando na plataforma do U9. Lá está ela. Evito olhar para aquele

lado e tenho sorte, o metrô está parado, com as portas abertas. Na estação do bairro

onde moro não tem nada de seres anômalos e perniciosos!

Nesta noite, sonho algo esquisito. Na verdade tive um pesadelo: os

monstros me perseguiam. Sem carne esfolada, sem aparência horrorosa, não eram

caveirosos. Não os encontrava por aí tentando invadir o quarto pela janela ou

arrombando a porta, como em um filme de suspense com a Nicole Kidman

vomitando, ou no meu encalço em alta velocidade dentro do carro atrás do meu.

Não estavam correndo vindo em minha direção como um lobisomem babando

raiva, com os dentes afiados. Não sobrevoavam minha cabeça, cagando como um

bando de pássaros loucos. Não subiam com patas aracnídeas a minha perna. Não se

contorciam ofídicos debaixo da coberta. Não usavam máscara nem carregavam

uma foice na mão. Não eram zumbis alienados. Eram invisíveis. E eu nem os teria

percebido não fossem a minha respiração acelerada, o meu inevitável medo que me

dominava, muitas vezes, de manhã ou à noite ao colocar a cabeça no travesseiro ou

no meio da madrugada, quando os monstros me despertavam, sem ruído, levando-

me a virar-me de um lado ao outro na cama, de um lado ao outro. Se não fossem

cuspirem pensamentos necrotizantes eu nem saberia que eram monstros da pior

espécie. Destes que te fazem acreditar que a felicidade é comprável e somente para

os outros, que te fazem acreditar que tudo está perdido, que você não serve para

vencer e que o que você faz dá errado, que a sua vida é um lixo e que o seu futuro

já virou passado. Se não fosse meu desespero suscitar forças e eu conseguir lutar,

inventando saídas através da criatividade eu nem saberia o quanto esses monstros

são inocentes.

Acordo. E a sensação de desconforto dissipa-se no decorrer do dia.

Temo que o episódio se repita ao ir trabalhar. Não foi bem o caso! Foi pior!

Desço do U9, para fazer a baldeação na Zoo, e sigo em direção à escada rolante,

convencida de que a transformação do outdoor é apenas o efeito de uma

propaganda criada sob a técnica lenticular de impressão que possibilita a sensação

de profundidade e a alteração da imagem conforme o ângulo do observador. Desta

vez, a mulher do outdoor começa a me perseguir com a cara dividida entre

caveirosa e linda. Finjo que não a percebo. Pode ser que eu realmente esteja

imaginando coisas e não quero passar vergonha na frente dos outros. Em todo caso,

tomo precauções. Nunca se sabe! Ando mais rápido, observo-a de soslaio, seguro a

minha bolsa mais firme. Pode ser uma nova estratégia de furto dos bandos de

romenos ou búlgaros ou russos que andam assaltando os passageiros nas estações

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principais: a pessoa se distrai com o monstro e não cuida da bolsa. Não poderia

ser? Ou era a horrorosa mendiga imunda e magérrima que costuma perambular

pelas plataformas e dentro dos vagões, vendendo o jornal de rua ou pedindo

esmola.

Por sorte, encontro um colega de trabalho. É um grande alívio! Sorrio-lhe

sincero como eu nunca havia sorrido ao encontrá-lo pela manhã. Pelo contrário, é

um colega chato, que fala mal de todos no escritório, intrigante, preguiçoso, e por

isso procuro evitá-lo.

Somos os primeiros a chegar à firma. Concentro-me em escrever alguns e-

mails importantes, pela manhã, e dar uma espiada nas páginas eletrônicas dos

jornais alemães e brasileiros. Mas Santos Pier costuma entrar na minha sala e

estorvar minha rotina, interrompe-me e fala mal de outra colega: — Mas viu! Ela

veio me perguntar onde estava o documento. E eu sei lá onde estava o documento!

Por que ela veio me perguntar? Eu sei por que ela veio me perguntar. Ela quer me

acusar de ter extraviado o documento. Ela pensa que eu sumi com o documento e

fica me perguntando, na frente do chefe, para o chefe pensar que eu sumi com o

documento. Ela é uma víbora, ela é falsa e traiçoeira. Mas eu vou desmascará-la.

Tome cuidado com ela!

— Mas Santos, não é isso! Ela também me perguntou se eu estava com o

documento. Poderia ser que estivesse comigo, por engano. Isso acontece, eu já

peguei o documento de outra pessoa, na copiadora, por exemplo, por engano, e só

percebi depois. Ela estava perguntando para todos se alguém, por um acaso, viu o

documento.

— Não, eu sei por que ela me perguntou. Ela quer me acusar. Mas eu já

estou preparado.

— Eu também já perdi um documento e tive que perguntar se alguém havia

visto. Torno a repetir.

— Ela fica pensando que eu fico pegando documento dos outros. Não pego

documento de ninguém. E não adianta vir me acusar! Estou preparado!

Para interromper a interpretação deturpada de Santos Pier exclamo: — Eu

preciso escrever um e-mail importante, Santos. Você me dá licença?!

— Escrever e-mail importante?! Você acha que estou aqui porque não tenho

nada que fazer, que eu não tenho e-mails importantes para escrever?

— Não. Com certeza você deve ter muito mais trabalho do que eu. Minto

para contornar a situação e poder me livrar dele amigavelmente. Tê-lo como

inimigo é possuir uma chateação atrás da outra e ser alvo de intrigas.

— Eu também tenho muitos e-mails importantes para responder, por isso

chego cedo. Sou o primeiro a chegar e o último a sair. Trabalho bastante e possuo

muitas responsabilidades. Sou o mais antigo da casa.

— Com certeza, Santos!

— Então, você acha que eu entro na sua sala só para fazer fofoca, que não

tenho mais o que fazer?

— De jeito nenhum! Você estava falando sobre o documento extraviado.

Não creio que isto seja fofoca. Se não me engano, o documento já foi encontrado,

ontem, no final do expediente. Estava com o chefe.

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— Ah! Foi encontrado! E estava com o chefe! E ela tentando me

incriminar. E você me diz isso só agora?

— Foi só agora que me ocorreu. De manhã eu não raciocino muito bem!

Realmente, não me ocorreu antes. Eu não atribuí a mínima importância a isso.

Sabia que o documento seria encontrado.

— Não é só de manhã que você não raciocina muito bem não!

Lanço lhe um olhar severo. Finalmente Santos Pier deixa a minha sala.

É aconselhável evitá-lo por essas e outras desconfianças que ele cria na

cabeça dele. Procuro restringir o nosso relacionamento aos assuntos do trabalho.

Geralmente, ao encontrá-lo no metrô finjo que não o vejo e entro em outro

vagão ou caminho lento para ele não me ver, me oculto atrás de um grupo de

pessoas ou desvio, simulando que vou à padaria. Desta vez não. Quase corro para

os seus braços.

— Santos! Que bom te encontrar aqui. Bom dia! Tudo bem? É de se esperar

que ele me fite surpreso por causa da minha inabitual simpatia dedicada a ele, mas,

como sempre, contente em encontrar alguém para falar mal de outro alguém.

— Tudo bem e você?

Como o meu colega—, baixinho, gordinho, de óculos, com a pasta

de executivo na mão, vestido com o casaco preto fino e não o fofinho, porque o

fofinho o deixa mais gordo ainda—, nada menciona sobre a anomalia na minha

retaguarda, resolvo ficar quieta e esperar a reação dele.

— Pensei que eu estivesse atrasada, mas vejo que estou no horário. Avisto o

relógio público, pendurado no teto da plataforma, marcar sete e quinze da manhã.

Volto o olhar para ele e percebo que possui a fisionomia petrificada,

embranquecida, e está mudo, estado que não pertence ao seu temperamento natural.

Será que ele percebeu o monstro? Então, não sou a única? Porque o resto dos

passageiros continua perambulando pela plataforma e, com exceção de alguns

poucos que parecem acelerar os passos, é como se não estivesse acontecendo nada.

Mantenho a cautela. — Você está vendo esta pessoa atrás de mim? Ao invés de

perguntar: “Você está vendo este monstro atrás de mim?”

— Estou e acho melhor sairmos daqui o mais rápido possível!

Um frio me atinge a barriga como um jato. Então, ele também percebeu?!

Viro-me para trás e o monstro abre a boca putrefata de onde sai o bafo

pestilento e insuportável e o ranger gutural, escuro e fundo, junto à rajada forte de

vento que levantou os fios do meu cabelo. Neste momento meu colega pega a

minha mão e me arrasta para longe dali. Não sei como arrumou agilidade,

gordinho e com o casaco comprido, mas ele corre e ainda me segura pela mão.

Conseguimos descer a escada rolante e ir parar na outra plataforma. Paramos

ofegantes em uma esquina, atrás de uma parede, que separa as plataformas.

— O que é isso?

Ele não responde. Precisa descansar. Vê-se que não tem preparo físico para

correr. Está sem fôlego. E eu sem paciência, nervosa, amedrontada. — O que é

isso? O que é isso? E, confusa, verifico a plataforma, constato que os passageiros

continuam seguindo seus trajetos. — O que está acontecendo? Sem captar um

sinal de anormalidade, a não ser eu e o meu colega e o monstro, começo a duvidar

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da capacidade de percepção da realidade também do meu colega. Será que além de

mim ele também está maluco?

— Precisamos tomar cuidado e sair daqui. Vamos pegar o ônibus! Ele me

diz.

— Mas o que está acontecendo?

— É a primeira vez que você se depara com um deles?

— Um deles quem?

— Um destes monstros?

— Eu nunca me deparei com monstro nenhum. Não existem. Alguém deve

estar fazendo alguma brincadeira. Isso só existe em filmes!

— Não é a primeira vez que eu me deparo com um deles. Já há anos que

isso acontece. Eles são horríveis!

— Como acontece? O que acontece? Não estou entendendo nada, continuo

confusa e nervosa. Meu coração bate acelerado.

— Estes monstros. Eles aparecem. Não sei por quê, mas de vez em quando

aparecem e nos perseguem querendo nos aniquilar.

— Perseguem quem? Quem eles querem aniquilar?

— Nós.

— Quem? Eu e você? Logo penso que a ele poderia ser. Mas a mim? Eu

que não fiz mal a ninguém, que sempre sou simpática, procuro ajudar as pessoas,

não tenho dívidas, não falo mal dos colegas, que outro dia dei três euros para o

mendigo vendendo o jornal de rua dentro do metrô. Não, eu não. Ele poderia ser,

mas eu não!

— Como aniquilar? Que história é essa?

— Não tenho tempo de te contar agora. Precisamos sair daqui e pegar o

ônibus? Como se o ônibus fosse um lugar sagrado à prova de demônios & outros

monstros S.A. — E por que os passageiros estão calmos? Ele pega a minha mão,

aperta-a com força, chega a machucar. — Você está me machucando!

— Temos que sair daqui! Temos que sair daqui! É melhor sair.

Caminhamos apressados para o final da plataforma, indo parar na

Hardenbergstrasse ou Budapesterstrasse (não sei direito o nome destas ruas pelas

quais sempre passo e de tanto conhecê-las nunca presto atenção em seus nomes).

Temos que dar a volta na estação, pela parte terrestre, evitando os subterrâneos,

para alcançar a praça onde ficam os pontos dos ônibus.

— Por que os outros estão calmos? Isto é para mim a prova de que nós

estamos malucos e os outros são os normais.

— Os outros não estão calmos. Eles também veem os monstros e fogem

deles. Mas fingem que não veem. Os outros conseguiram desenvolver uma técnica

refinada para simular tranquilidade.

— Como assim, não estou entendendo?!

— Não temos tempo para explicações. Talvez dentro do ônibus. De novo o

bendito ônibus. Que ônibus é esse, meu Deus! Parece que é a salvação.

Não é a salvação. Depois de subirmos no ônibus, de conseguir um lugar nos

últimos assentos, sentarmo-nos e o ônibus partir, meu colega começa a contar: —

Olha os outros também percebem estes monstros, não todos, mas...— , fala em tom

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confidencial, com voz baixa, e não termina. A cabeça de uma passageira, sentada

mais adiante, vira-se para trás e pudemos ver a parte deteriorada de sua face:

pedaços de carne soltam dos ossos esburacados, as veias estão rompidas para fora.

A criatura abjeta está dentro do ônibus.

Meu colega estarrecido cessa de falar. Eu engulo em seco e não sei se desço

no próximo ponto ou se permaneço e aguardo as instruções do meu colega que

parece ter conhecimento deste fenômeno. Além disso, não posso deixá-lo para trás,

ele está me ajudando, mas a sua obesidade o impediria de pular o degrau do ônibus

e sair correndo.

O ônibus para no ponto, olho para meu colega esperando a reação dele. Ele

adivinha o meu pensamento interrogativo e responde: — Não adianta a gente fugir

agora. Ela vai nos alcançar!

— O que devemos fazer?

— Vamos continuar aqui e fingir que não estamos percebendo nada. Assim

como a maioria dos passageiros. Veja! As pessoas fingem que não percebem nada.

As pessoas estão aparentemente imperturbáveis. A moça, sentada ao lado

do monstro, lê o livro e nem ergue as pálpebras para ver quem está ao seu lado. O

cheiro incômodo e fétido da criatura invade o interior do ônibus.

— Mas, Santos, você pode me explicar direito o que está acontecendo?

Indago com voz trêmula, quase sem mover os lábios, sem mover a cabeça ou meus

olhos fixados na paisagem urbana. Evito levantar suspeitas.

— Não sei te explicar, sei que estes monstros estão por aí, nos aterrorizando

e exterminando, mesmo assim a maioria finge que não vê. Eu também não entendo,

mas deixei de buscar uma razão. Passei a me preocupar em criar uma estratégia

para não ser pego. Até agora sempre deu certo. Pode ser uma questão de sorte!

— Santos, pode ser que eles pensem como nós e não querem admitir porque

os outros vão pensar que eles são loucos. Eu também fingi que não os via.

— No começo eu me assustava, fugia, trancava minhas portas e janelas, não

saía de casa, sofria ataques de pânico. Me cagava de medo! Não dormia e comecei

a criar paranoias e mania de perseguição. Tentei conversar com a minha família

sobre isso, mas ela me chamava de louco. Tentei falar com aqueles que haviam

notado algo, mas me encaravam espantados e negavam ter visto algo e se

afastavam de mim, como se eu fosse o monstro.

— Mas acho que existem pessoas que realmente não os veem! De outra

forma, não sei como explicar esta passividade! Desconfio que elas existam, que

não possuem a capacidade de enxergá-los! Por isso estão calmas.

Ele me ignora e continua falando: — Cheguei a pensar que era coisa da

minha cabeça e que eu estava realmente maluco. Paguei a maior grana a um

psicólogo e fiz uma terapia. A terapia só serviu para eu me certificar de que não

estou louco e que malucos são estes covardes que não tem coragem de admitir que

veem estes monstros, que também têm medo, não sabem explicar de onde surgem

estes monstros e como combatê-los.

O ônibus segue o trajeto e é como se eu percorresse a eternidade. A

paisagem passa lenta pelo vidro da janela embaçada por causa do dia úmido e cor

de chumbo, como uma película de celuloide rodando em um cinetoscópio. Na

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curva para a direita surge o Palácio do Bellevue, ao lado direito as árvores nuas e

os pinheiros escuros do Tiergarten desértico, mais adiante a boca aberta da Casa

das Culturas do Mundo, e os automóveis circulam com os faróis acesos.

Após quarenta e cinco minutos chegamos sãos e salvos no ponto, na esquina

da rua onde o escritório se localiza. O monstro execrável não se virou para trás. A

moça sentada ao lado dele desceu três pontos anteriores ao nosso. Um senhor se

sentou no lugar dela. O ônibus parou no ponto, abriu a porta, descemos. A criatura

não se moveu.

Possuo motivos para evitar que meus colegas me vejam chegando junto

com Santos. Estamos atrasados, logo nós que somos os primeiros a chegar. Não dá

outra, todos questionam o motivo do atraso! “Ah! Perderam a hora? O relógio não

despertou?” É o comentário da Maria Clara.

— Dormiram juntos? Estão chegando juntos! Fala o Roberto, se corrigindo

em seguida: — É brincadeira, hein? Não me levem a mal!

Ninguém se dá conta da minha aparência lívida, meu estado de alerta e o

cansaço profundo. Santos vai para a sala dele e quase não nos falamos no decorrer

do dia. Mergulho nas minhas tarefas após ter tomado um copo de água com

aspirina, e decido não pensar mais no ocorrido.

E vou embora de táxi.

Adoeci dez dias úteis. Estive com estafa e a convicção de que não

conseguiria mais raciocinar direito, sofrendo de ataque de pânico, insônia, e

enxaqueca. E cheguei a pensar que a culpa não seria dos monstros que não sabiam

fazer outra coisa a não ser assustar. A culpa seria das circunstâncias na minha vida

que se mantinham estarrecidas. E ainda precisava aprender que a paciência é a mais

essencial das sabedorias. As minhas preocupações continuavam e o medo de

envelhecer sozinha em um país estrangeiro, longe de minha família. Em casa,

termino de ler um livro, assisto televisão, a filmes na internet, faço pipoca doce,

telefono para alguns amigos, almoço kassler com batata e chucrutes no restaurante

alemão, perto de casa, tomo vinho, compro tortas de morango e framboesa, e vou

dormir de madrugada.

Sinto falta do Felix, vivo das lembranças dele como o eco vive da

reprodução de si mesmo.

No final da licença médica precisei ir trabalhar. Levanto cedo, me arrumo,

tomo café com duas fatias de pão integral com queijo de cabra e compota de

amoras. Pego o metrô e sigo até a estação Zoo, faço a baldeação, e é grande o meu

alívio ao me certificar que o outdoor da mulher não se encontra mais lá. Em seu

lugar a propaganda da Embratur: a imagem do Pão de Açúcar, o céu azul e um

surfista segurando uma prancha maior do que ele. Subo as escadas e caminho em

direção à outra plataforma.

Sou a primeira a chegar ao escritório, ligo o computador e preparo um café

na cozinha. Regresso à minha sala, sento-me à mesa e concentro-me nos e-mails.

Costumo deixar a porta da minha sala entreaberta, pela fresta posso ver quem

chega e escutar os ruídos. A porta se abre e meu colega entra abruptamente. Ao vê-

lo um grito agudo escapa da minha garganta e minha respiração fica estocada, a

xícara cai da minha mão trêmula e o líquido escuro esparrama-se no carpete.

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A cara descarnada e putrefata de Santos (a garganta, o nariz e a orelha

mutilados) — sorri para mim.

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De momento

O vício de linguagem é horrível para um escritor como o álcool para um

médico. As mãos tremem, não se acerta o alvo, o paciente pode morrer. Não se

deve deixar de estar atento para as ciladas que deturpam o pensamento,

naturalmente precisa-se tentar extingui-lo ao escrever (o vício de linguagem, não o

pensamento). No entanto, é como um carrapato, gruda e contamina o texto, o

estado de espírito, o disco rígido, as glândulas linfáticas, as artérias femoral e tíbia.

Repetem-se determinadas construções e sinônimos, surge uma mesmice monótona,

cíclica. O desafio é a metábole, falar a mesma coisa de formas diferentes, com

sinônimos diversificados e abranger outra perspectiva.

Mas não é para falar disso que as palavras me acometeram. Qualquer vício

é depravação! No momento o garçom traz três cervejas, dois sucos de abacaxi com

hortelã, duas taças de vinho tinto e uma caipirinha à mesa envolvida pela penumbra

concebida pela iluminação fosca. Apenas uma quinta-feira depois do expediente e a

comemoração atrasada de um aniversário, algo não planejado em que se consegue

reunir um número razoável de amigos, no tradicional restaurante italiano no centro,

em um ambiente com as paredes carregadas de fotografias emolduradas, preto e

branco, dos famosos que jantaram aqui, na Avanhandava. E porque a noite deixou

de chover no meio do final da tarde. As luzes dos postes e dos automóveis circulam

com um brilho seco, sem a reprodução de pedaços de paisagens em poças d’água

no meio do piche ou dos buracos nas calçadas.

Um daqueles centros de cidade latinoamericanas: abarrotados de lojas, de

outdoors, coagulado de passantes, de gente saindo do trabalho, correndo para pegar

o ônibus, o metrô, a lotação, gente indo à faculdade, gente indo se encontrar com

outra gente em algum bar ou restaurante ou cinema.

Os convidados não passam de alguns módicos colegas, funcionários da

empresa de seguro, com planos específicos de saúde odontológica, seguro de vida e

previdência, e uma amiga íntima do aniversariante. Quase todos na casa dos trinta e

cinco, homens e mulheres solteiros, casados, com filhos, sem filhos, com exceção

de dois mais velhos, casados, com filhos, bem humorados e joviais, auxiliares de

escritório em uma construtora.

Um deles coleciona caneta tinteiro comum e possui algumas repetidas por

esta razão deu-a de presente em um ato espontâneo. A caneta Lamy studio black,

comprada durante uma viagem a Europa, pouco uso, possui o bico grosso para a

sua letra pequena.

A presenteada fui eu que estou sentada ao lado dele e que possui a fama de

ser escritora porque — por quê? Porque escrevo. Mas não sou a autora ou o autor,

tão pouco o aniversariante, sou apenas a personagem, alguém criado para existir

apenas na imaginação de quem me escreve.

A pessoa ao meu lado lê alto o que acaba de ser escrito em um pedaço de

papel improvisado e acha graça. A dissonância desponta nos risos dos outros que

resolveram achar graça também.

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— Era só para experimentar a caneta nova! Ao que parece é boa, Aruana,

porque você começou a escrever e não para mais. Ouve-se mais risos e comentários

supérfluos.

— Tudo indica que parece ser uma escritora de verdade, pois não para de

escrever! Outro comentário vindo do ponto y no plano cartesiano da mesa. Como

se escrever sem parar fosse uma condição para se ser escritor. Ora essa! Um dia

conheci um escritor que escrevia simplesmente pouquíssimo. Se não fosse essa

nesga de literatura ninguém descobriria que se tratava de um verdadeiro escritor.

São poucos os que sabem reconhecer nele o verdadeiro escritor, aqueles que o

reconhecem são geralmente os que escrevem em demasia experimentam diversos

estilos e gêneros, e abordam temas variados —, e admiram-no, idolatram-no.

Não é fácil ser um escritor e escrever pouco, não ser escravo das palavras

escritas, estar livre, não ser refém da inspiração. Não ter de interromper o que faz e

pegar papel e caneta e se pôr a escrever.

O escritor que não escreve está relaxado, em harmonia com o seu meio.

Quando lhe dá na telha escreve, quando não lhe dá não escreve. Não se preocupa

com o vício de escrever, não se sente obrigado a esculpir os pensamentos nas

palavras, incorporá-los na semântica. Ele vive em paz. Observa a realidade e cria

esporadicamente. Vez ou outra formula algo no papel, mas no geral permanece

tudo no interior de sua mente. Faz um esboço e planos de concluir um romance ou

poema ou ensaio ou conto ou aglomera tudo e o transforma em fragmentos. Não há

nada melhor do que publicar fragmentos. Mas se não concluir nem sequer os

fragmentos isto não significa nenhuma crise existencial. Por ter planejado, pensado,

criado mentalmente já valeu a pena. E algumas anotações sempre se realizam e um

ou outro fragmento sempre se publica.

Não se iguala ao escritor que vive escrevendo, dominado pela criação, pela

veemência em escrever que quase não consegue fazer outra coisa, escreve com

tanta afeição e gosto que quase se esquece de todas as demais atividades na vida:

cuidar da família, ir trabalhar, encontrar-se com os amigos, que quase não consegue

viver uma vida comum, aproveitar o momento factual, sair, ir ao cinema, ao teatro,

jantar fora, assistir àquela partida de futebol, à novela. Ele está escrevendo em casa

ou a caminho de casa ou no escritório ou parado em alguma estação de metrô, ou a

mesa em um restaurante no centro da cidade comemorando atrasado um

aniversário. Está escrevendo escrevendo escrevendo como se as palavras escritas o

dominassem. Sossega somente quando coloca o pensamento no papel. Escritores

assim são estranhos! Vivem matutando. Meditam sobre tudo e se expressam

através da escrita. São críticos e inquietos, embora aparentem ser distraídos. São

conscientes de que escrever é inútil, mesmo antes de Sartre escrever que escrever é

uma atividade inútil, não constrói edifícios, não presta serviços de seguro, não

tampa cáries, não alimenta, e, em alguns casos, é prejudicial a ponto de

determinadas sociedades proibirem e aprisionarem os escritores. E quanto mais os

proíbem, quanto mais são perseguidos, mais escrevem, mais são obcecados pela

escrita, porque escrever para eles é elementar como a necessidade de falar,

alimentar-se, ler, descobrir novos continentes, pisar na lua, inventar máquinas.

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Os escritores que não escrevem são pessoas comuns, descontraídas,

encontram-se no meio de nós como qualquer outro sujeito respeitoso e inteligente.

São pessoas resolvidas que, no mínimo, sabem solucionar os seus problemas. São

boas companhias, integradas em seu meio, conversam temas interessantes,

interagem com o grupo, fazem comentários inteligentes, articulam-se bem.

Com os escritores que não cessam de escrever, eles não têm tempo. Vez ou

outra se esquecem de fazer comentários ou pensam que fizeram verbalmente, mas

ocorreu dentro da cabeça deles que não deixa de matutar sobre tudo, como se tudo

fosse sinônimos e antônimos, associações, desenlaces e criação. Há momentos em

que imergem na realidade e irritam-se com a superficialidade cotidiana. São

infensos à superficialidade. Mas fazer o quê? Escrever —, tudo para eles se finda

em escrever. Escrever contra tudo e para tudo apreender. Veneram a complexidade,

adoram os desafios de lidar com as controvérsias, a profundidade e os conflitos

humanos e com as características da língua.

Os escritores que não escrevem não exageram, abominam este tipo de

hipérbole. Descobriram que a originalidade não se baseia no prolixo. Possuem a

sábia erudição de reconhecer que é preciso ceifar as redundâncias, o entediante e o

hermenêutico. Mesmo que se enganem e, em determinados casos, não se trata

disso, mas de uma ínfima vastidão de literatura, pura e simplesmente um prato

cheio. Os escritores que não escrevem usam certo aspecto da citação de Stefan

Zweig em favor próprio: nenhum artista é durante as vinte e quatro horas de seu

redundante cotidiano ininterruptamente artista, todo o essencial, o duradouro que

ele cria sucede somente nos instantes escassos e breves de inspiração. Realmente,

esses escritores não se deixam inspirar por qualquer coisa, nem tudo os instigam.

Criam somente em momentos relâmpagos e, no entanto, (e aqui distanciam-se da

citação de Zweig), são escritores o tempo integral: proferem palestras, concedem

entrevistas e não perdem a mais insignificante oportunidade de conversar sobre a

sua criação.

E eu não quero parecer um destes escritores que não cessam de escrever e

não conseguem terminar de pegar o metrô e ir para casa. Ainda mais quando sou a

personagem! Não quero parecer um destes escritores que ficam sentados em um

banco da estação intermediária com o bloco de anotação escrevendo, captando o

raciocínio antes que desapareça no meio do redemoinho de associações e

conclusões. E o metrô passa, as portas se abrem, passageiros descem, sobem, as

portas se fecham, outros passageiros chegam e esperam. Ainda mais quando o

jantar já terminou, os convidados interagiram-se, riram, elogiaram a comida,

tomaram mais duas rodadas de bebidas. O aniversariante agradeceu os presentes.

Fizeram promessas de novos reencontros, combinaram irem ao cinema, na próxima

semana, reclamaram da chuva e do vento e do congestionamento. Alguém ficou

insatisfeito com o molho da salada, mas logo foi compensado com o saboroso

molho da carne e da massa macia com queijo derretido dentro. Deram conta de que

um dos convidados foi ao banheiro e demorou a regressar. O assento ficou vazio

por largo tempo, o que casionou agitação nos convidados e comentários negativos

como “se quiser escrever que escreva em casa”, “não acredito que alguém tenha

tanta coisa assim para escrever, na certa é só para se exibir”, “pode ser que não

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esteja escrevendo, mas com dor de barriga. Seria bom que alguém fosse verificar”,

“se tivesse com dor de barriga já teríamos a notícia, acabei de vir do banheiro e ela

não estava lá”, “talvez tenha ido embora sem avisar”, “não, a bolsa ainda está aí na

cadeira”, “e se foi raptada?”, “que besteira, talvez tenha saído para fumar um

cigarro”, “ela não é fumante”, “então não sei, acho sem educação um

comportamento deste”, “é, antissocial mesmo!”, “é como eu disse, se quer escrever

que escreva em casa e não em lugares públicos”, “mas também, porque você foi dar

a caneta tinteiro de presente?!”, “achei que não era uma caneta boa”, “seria melhor

Aruana não ter vindo, então.”

Não, eu não quero parecer um destes escritores que não param de escrever e

depois de regressar à mesa, guardar o bloco de anotações apinhado de frases e

rasuras e uma letra ilegível, sorrir e “olá, gente! Acho que vou tomar mais uma

caipirinha! Ah, melhor não, estou me sentindo um pouco tonta, demorei a encontrar

o caminho de volta à mesa”, explicação mais plausível do que dizer que saiu do

restaurante e sentou-se em um degrau da escada do prédio ao lado, onde pode ser

atingida pela claridade conivente de uma lâmpada fluorescente e escrever sem ser

interrompida, extravasando os pensamentos impulsivamente. Escrever, este vício

irrefreável!

Riram com a explicação simples de eu ter me demorado no banheiro e me

seduziram a tomar mais uma caipirinha para, enfim, ser mais social, engraçada,

extrovertida, para entreter os outros convidados. Afinal, só eu ainda não havia

cumprido com o meu papel de convidada de entreter os outros convidados. Ainda

mais que permaneci incógnita durante longos minutos.

E para reparar o mau comportamento pede-se um prato cheio, toma-se a

caipirinha e procura-se desenvolver uma conversa relaxada, leve, escavar piadas do

fundo da memória, contar casos hilários do dia-a-dia no trabalho, e sorri-se e sorri-

se. E no final tudo dá certo porque a noite termina com aquela aldraba pendurada

no obscuro do sonho —, o sonho que é nativo da ficção. O cinema ficou marcado

para o sábado. E por fim, todos levam os dois beijinhos de todos se despedindo.

E a personagem consegue pegar o último metrô para casa, depois de ter

passado uns cinco, e consegue um assento livre onde se senta e continua

escrevendo e escrevendo e escrevendo sob o eco do pensamento como o som tenaz

das rodas de ferro batendo nos trilhos.

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Invocadora sem feitiços

Quando se envia um e-mail para o pai com a explicação que, no Natal, seria

melhor não presentear o filho com jogo eletrônico, porque ele joga até de

madrugada e isso atrapalha o desempenho dele na escola, espera-se que haja

compreensão. Principalmente quando se pede para não comentar com o filho que a

sugestão partiu da mãe, a fim de que não haja desentendimentos entre filho e mãe.

Eu não poderia imaginar que o meu e-mail fosse comentado pelo meu próprio

filho, passados dois dias, e que ele discutisse comigo, de madrugada, no corredor

do apartamento: — Eu não jogo muito, você exagera, você não tem noção das

coisas, é problema meu se jogo ou não. Meu filho e eu brigamos.

Levantei-me às duas e quinze da madrugada para ir ao banheiro. Não sem

antes ter sido desperta pela música de Stravinsky, no rádio. Durmo com o radio

ligado em uma estação de música clássica. Pego no sono, mais fácil, embalada pela

melodia, mas também sou desperta por um tom mais agudo de fagote, dos pratos de

choque, trombones, tímpanos, e ultimamente tem sido Stravinsky. Já é a terceira

vez que acordo com Le Sacre, harmonizando-se com a minha conflitante situação,

como nos desenhos animados Tom e Jerry, Pernalonga, Mickey Mouse, Pato

Donald repletos de Khachaturian, Shostakovich ou Tschaikowskys! Meu filho é da

geração da Era do Gelo, Os Incríveis, Madagascar, Toy Story, dos filmes de

animação em computação gráfica, do estúdio Pixar. Fui ao banheiro e reparei na

fresta de luz que emanava por debaixo da porta fechada do quarto. Abro a porta e o

surpreendo jogando ao computador, como eu imaginava. Antes de eu ir dormir

expliquei-lhe o quanto isso é prejudicial à saúde e que não conseguirá acordar às

sete. Ele concordou, assegurou-me que desligaria o computador. E agora discute e

não entende por que fico nervosa se é apenas um jogo.

— Duílio, você jogou das seis horas da tarde até às duas da manhã! :-o

— Não fico jogando o tempo todo como você afirma! Fiz outras coisas, dei

alguns telefonemas, fui ao banheiro, comi. Não fiquei só jogando. o.O

— ocê não faz nada para a escola, não lê um livro, não faz lições, não

estuda. Só fica jogando. >:(

— Isto não é verdade, mãe. Hoje à tarde fui visitar meu amigo. Você fala

para o meu pai que sou viciado em games e é mentira. Não fico jogando. Faço

outras coisas. -_-

— O que você faz, Duílio? :/

— Vou à escola, vou visitar os meus amigos. :^o

— Você não vai à escola coisa nenhuma, não faz um esporte, não lê um

livro, não estuda. Só visita os amigos e joga no computador. X(

— Eu só jogo um pouco. Sou um dos poucos que jogam. Meus amigos

jogam muito mais do que eu. O:-)

Realmente, meu filho joga pouquíssimo, se eu for comparar com o

australiano que passou mais de cento e vinte horas e sete minutos jogando call of

duty: black ops II. E questiono qual a noção de tempo? O que é o tempo para

alguém que joga ininterruptamente uma semana a fio? O que é o tempo? Um

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mistério, insubstancial e onipotente. Uma condição do mundo dos fenômenos, um

movimento, que se incorpora e se mescla na existência do corpo no espaço e em

seu movimento. Haveria tempo se não existisse movimento? Se o movimento não

existisse, também o tempo não existiria? Com qual velocidade de movimento se

vive em frente a uma tela de computador submerso em um game? Qual a noção de

vida e de juventude? Como um indivíduo reflete sobre si e o seu meio

permanecendo estagnado em frente a tela de um computador jogando

incessantemente durante vários dias? Se ele sabe lidar com as palavras? Se

consegue narrar um breve trecho cotidiano de sua vida? São as palavras, as leituras

que formam o pensamento. Sem as palavras não há reflexão e comunicação, sem

elas surgem o estio, a erosão, o deserto. Os epígonos desta geração serão

monásticos isolados dentro de um quarto em frente a um monitor. O que significa a

realidade para os jogadores de game? :-?

— Faz meses que estou pedindo para você trazer o boletim da escola e você

não traz. A professora me escreveu um e-mail informando que você continua

faltando. As suas notas estão péssimas. Você está prestes a ser expulso do colégio

por desistência. E você se dá ao luxo de jogar até as duas da manhã. É esta vida de

parasita que você quer levar? :-L

Meu filho começa a ficar nervoso >:), a levantar a voz e a insistir que ele

não ficou jogando, que ele não é viciado em games, e que eu reajo exageradamente

– eu, que preciso levantar a cabeça para fitar o jovem alto, magro, com o início de

um bigode acima dos lábios, o maxilar largo, a voz engrossando, o caroço de Adão

começando a se sobressair. E assim a discussão perdura até as quatro da manhã,

com o meu desespero crescendo, porque também eu preciso levantar cedo, e a

minha certeza de ele não ir à escola instala-se nas minhas premunições. Chego a

refletir: se eu tivesse fingido não ter percebido nada e deixado de reclamar quem

sabe assim ele teria ido à escola? Um dia a mais seria um ganho, um diazinho que

fosse! E agora é um dia para assomar ao montante de dias que ele não vai. Se

permitir que fique jogando até as duas ou três horas da madrugada, ele não vai à

escola por não conseguir levantar cedo. Se reclamo, ele não vai por causa da

discussão.

Teseu usa o fio de Ariadne para sair do labirinto do Minotauro. Não possuo

linha, não tenho a saída marcada, não sou a Equidna, muito menos a Kerana. Mas

me sinto presa em um labirinto 3D, visualmente deslumbrante graças à tecnologia

do software motor gráfico frostbite. E o monstro não é uma criatura com cabeça de

touro e corpo humano ou corpo de jiboia e duas patas (Mboi Tu'I), ou corpo de

lagarto e sete cabeças de cão (Teju Jagua), ou corpo de sucuri com dois chifres

(Moñai), é apenas o absurdo contemporâneo renderizado.

Cheguei uma hora mais cedo ao trabalho. Acordei com o despertador e,

segundos depois, tornei a pegar no sono. Ao despertar novamente pensei que eu

havia dormido meia hora a mais e me levantei apressada. A preocupação de eu

perder a hora e chegar atrasada me fez confundir os ponteiros. Chamei o Duílio,

mas como era de se prever ele não se levantou. Saí precipitada para não pegar os

infalíveis congestionamentos nas grandes e inevitáveis avenidas. Ainda eram seis e

quarenta.

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O segurança abriu a porta, entrei no elevador e saí no sétimo andar, indo até

a minha sala, na empresa do Grupo Capobe S/A, instalada no Centro Empresarial.

— Bom, dia! Cumprimento o faxineiro ao entrar na minha sala, sigo à mesa

e ligo o computador ao som do aspirador de pó sendo arrastado pelo faxineiro que

me responde bom dia através da mímica já que o ruído do aspirador engole, além

do pó, a sua voz. Penetro no universo de controle de estoques de acoplamentos,

mangueiras hidráulicas, roletas e raspadores, pneus industriais, rolamentos e

correias.

Criamos os nossos filhos com base em um mundo que não mais existe. O

nosso mundo, no qual crescemos, não existe mais. E não conhecemos, por

completo, o mundo dos nossos filhos. Com o avanço acelerado, frenético e caótico

da tecnologia somos incapazes de dominar o mundo deles. Antigamente os pais

possuíam todo o poder sobre os filhos e os filhos orientavam-se nos pais. Hoje em

dia não possuímos mais este poder. Nossos filhos percebem o quanto somos

impotentes diante do progresso revolucionário, intenso e transitório. :-? É a

explicação de Ulisses Pernambuco, meu colega de trabalho, sentado a minha frente,

no horário do almoço, no restaurante árabe, no complexo B do Centro Empresarial,

com dois pratos de esfirras de queijo e de carne e salada de tabule diante de nós. As

mesas a nossa volta estão ocupadas por homens de terno e gravata e mulheres de

meias finas e salto alto. Meu colega é um homem bom, de boa aparência: barba

rente, os óculos de armação moderna, a estatura mediana e a barriga, modesta para

os seus quarenta e sete anos.

Ulisses e eu compartilhamos a mesma preocupação, ele é casado e possui

três filhos, mas está melhor do que eu. Seus filhos, apesar de jogarem games, vão à

escola!

O complexo B fica no ângulo que capta as árvores da praça embaçada pelo

dia nublado de hoje. Comi pouco devido à preocupação com a disfuncionalidade do

meu filho e depois do almoço, ao descer as escadas rolantes, concluo que em parte

somos como nossos pais porque fomos orientados por eles, mas nos diferenciamos

deles conforme a sociedade evolui. A juventude sempre será uma juventude

perdida para a geração anterior. Os valores e os dogmas não permanecem os

mesmos graças aos progressos tecnológicos e econômicos e isso faz com que certos

aspectos das próximas gerações se oponham aos das antecedentes. Por outro lado,

sem as experiências dos mais velhos também não progredimos, pensei parada na

escada rolante.

Chegou o fim do ano e Duílio foi passar o Natal com o pai. Meus irmãos

foram com a família para a casa da mamãe e eu quis aproveitar o feriado para viajar

ao nordeste. Decisão que não agradou a minha mãe.

— Ora, mamãe! Venho aqui quase todo mês. O Roberto e a Marta estarão

com você, além das crianças. O Toni, a Sara, a Paula e a Vanessa estarão aqui

também. A casa estará cheia de gente.

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Ela mora sozinha. É viúva, tem sessenta e cinco anos, está bem de saúde e

possui as amigas da igreja. Eu e meus irmãos a visitamos e a levamos para passear

ou viajar. Mamãe e eu temos um relacionamento difícil, ela me critica

constantemente, sempre exige algo de mim e eu não consigo satisfazê-la. Eu me

dava melhor com o meu pai e foi difícil para mim quando ele faleceu. Mamãe e eu

tomamos café na sala. Pela porta da sacada entra o som da rua enfraquecido pela

altura do apartamento e a forte brisa morna assopra o leve guardanapo indo cair no

tapete.

— Mas é Natal, minha filha. Natal se passa com a família.

— Pode ser que antigamente era assim, mas hoje em dia é outra coisa. Além

disso, não sou religiosa, mamãe.

Pego o guardanapo e o coloco sobre a mesinha. Não me sirvo dos biscoitos

de goiabada feitos por ela, apesar de serem deliciosos.

— É por isso que tudo dá errado na sua vida, Cibele. Você é a única

separada na família. Seu ex-marido não se preocupa com o filho e nem paga a

pensão. E você acha que pode dar conta de tudo sozinha.

— Ora, mamãe, isto acontece nas melhores famílias!

— Na minha época as coisas eram bem diferentes, Cibele, bem melhores!

— Eu sei mamãe! Concordo para evitar que ela comece a listar tudo o que

era melhor na época dela e a me explicar como este mundo está perdido.

— E você não vai comer nenhum biscoito?!

Pego um para satisfazê-la, mordo-o e mastigo a massa macia, doce e

esfarelada que desmancha na boca enquanto flagro a pesada nuvem abóbora no

canto superior da esquadria da porta de vidro aberta.

Cresci ouvindo a mamãe dizer que na sua época tudo era melhor: as

brincadeiras, as peladas nas ruas, empinar pipa, o jogo de queimada, brincadeira de

esconde-esconde, pega-pega, os raros brinquedos (de madeira e de pano), as poucas

bonecas, o namoro ao pé do portão, no sofá da sala vigiado pelos pais e irmãos

mais velhos, a ida ao cinema, até o casamento era melhor: o respeito entre o marido

e a esposa, entre os filhos. E eu não perdia a oportunidade de dizer: mamãe, a

senhora não entende que cada época possui a sua peculiaridade, o seu desafio?

Mesmo que na sua época tenha sido melhor, isto não resolve nada! Não podemos

retroceder no tempo. Mamãe se calava, não como quem cedesse, mas como quem,

tácita, se convencesse de que realmente estava tudo perdido nos tempos de hoje.

Passei uma semana na praia, em uma pousada simples, em Morro de São

Paulo, onde o café da manhã, incluía um delicioso beiju de coco na folha de

bananeira, e era servido nas mesas de vime, na varanda, que dava para um pequeno

jardim com gramado e palmeiras. No canto esquerdo, no hall de entrada da

pousada, havia uma mesa com um computador para hóspedes. Falei com a família

no skype. Contei à minha irmã sobre um paquera e omiti que o homem era casado e

estava com a mulher e duas filhas. Era só um jogo de olhares, para eu me sentir

desejável, ainda gostosona com os meus quarenta e um anos e me esquecer de que

estou sozinha desde há seis anos, desde quando o Maurício foi trabalhar em

Wolfsburgo e prometeu vir me buscar, depois de três meses, quando o apartamento

e as papeladas para o meu visto fossem preparados. Os três meses se passaram,

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depois mais três, depois aumentaram as distâncias entre as respostas dos meus e-

mails, ele demorou um dia para responder, em seguida dois, três, quatro, cinco e,

por fim, não veio mais resposta. Cheguei a ficar preocupada, imaginei que pudesse

ter acontecido um assalto à mão armada, um rapto ou atropelamento, coisas tão

familiares em nosso cotidiano urbano brasileiro, que fica difícil acreditar que em

outros países é diferente. Telefonei para a Volkswagen, em São Bernardo do

Campo, indaguei sobre o bem estar do funcionário brasileiro, engenheiro, enviado

à matriz, por dois anos. Não havia nada de errado com o mencionado funcionário.

Vim a saber que a taxa de criminalidade naquela cidade, no noroeste da Aemanha,

é baixíssima. Foi aí que eu deixei de enviar e-mails e deletei o Maurício do meu

facebook e da minha cabeça.

Na tela do computador vejo a imagem da mamãe, sentada no sofá assistindo

à novela, a dos meus cunhados preparando a ceia com a ajuda das minhas tias, a do

Piaimã, um pequinês, irritando-se com as crianças, as crianças se irritando com ele,

e a do meu irmão prendendo-o no quarto dos fundos. O tempo em São Paulo estava

bom: um pouco nublado, um pouco de sol, um pouco de frio, um pouco de calor,

um pouco de garoa.

E eu, tranquila debaixo da sombra morna e clara do guarda-sol,

contemplava através dos óculos escuros o movimento do mar e das nuvens

roxeadas, lia um artigo no jornal dizendo que o Brasil era o país onde o mercado de

jogos eletrônicos mais cresceu no mundo. E eu imaginava a felicidade dos

acionistas da Nintendo, da Sony e da Microsoft, os chefes comemorando os lucros

altos, rindo, segurando taças de champanhe, na festa de fim de ano, em um hotel

luxuoso, com suas famílias e colegas de trabalho. =D>

Quando as férias terminaram e Duílio regressou, perguntei-lhe o que havia

ganhado de presente e brigamos de novo. Meu filho me responde que eu não

deveria dar tal sugestão ao pai dele, que são raras as vezes que ele joga durante a

madrugada. Fico mais furiosa com o pai do meu filho do que com ele. Meu filho

não cumpre com as obrigações, não respeita minhas orientações e instruções,

exime-se da responsabilidade. Às vezes, concorda com os meus sermões, afirma

entender e mudar de comportamento e age fazendo o contrário.

Ele ganhou um celular. :) O pai poderia presenteá-lo com o que achasse

melhor desde que não fossem jogos para o playstation ou xbox. Ele já possui o

suficiente! Mesmo que ninguém possua uma diversidade suficiente de games

quando de seis em seis meses novos games são lançados no mercado. E as firmas

concorrentes não querem ficar para trás e também lançam as suas novidades e

upgrades pouco antes do Natal, com modalidades de pagamento parcelado até doze

vezes.

A minha vontade era de fazer a mesma coisa que o rapaz canadense fez

depois de comprar o Play Station e sair da loja Best Buy, em Montreal: lançou-o

com toda fúria ao chão, na dureza do cimento, diante da longa e expectante fila,

pisoteou em cima dos hardwares espatifados.

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Eu acreditei que a situação entre mim e o meu filho fosse melhorar no novo

ano. Fiz tantos desejos para isso, vesti-me de branco e acendi duas velas para a

Iemanjá, na noite abafada, na praia Morro de São Paulo! E pareceu haver uma

transformação benéfica nas primeiras semanas, meu filho estava frequentando a

escola e fazendo as tarefas. Mas ao entrar o segundo mês voltei a receber os e-mails

da professora reclamando da ausência dele. Converso com o meu filho e, mais uma

vez, tudo fica esclarecido: ele passará a ir à escola. Mas não vai.

É uma fuga da realidade!” :| Diz Ulisses, no intervalo do almoço, no

restaurante do complexo B, com o prato de canelone pela metade. O vozerio é

grande assomado ao ruído metálico dos talheres nos pratos. Mas que realidade? Se

hoje em dia a realidade é virtual, computadorizada? É a realidade que nos absorve

para o seu mundo virtual e destrói a outra realidade, a paralela, a não virtual? É a

realidade lutando contra a realidade? Meu colega de trabalho comenta que o

importante é a família, a união e o amor da família para se contraporem a qualquer

tipo de realidade. :-?

Mas o que é a realidade? Desconfio que a realidade é um sistema inventado

pelo homem. Inventamos levantar cedo cinco dias na semana para ir à escola,

aprender determinadas coisas e desaprender outras, inventamos o diploma e o

trabalho, inventamos ganhar dinheiro, comprar um apartamento, constituir uma

família, ter filhos, e inventamos que esta é a melhor realidade. As outras são

aquelas nas quais uma dessas invenções não dá certo. Existem as realidades

golpeadas pelo destino e uma tragédia interfere no trajeto natural desta invenção,

como o acidente ou a doença ou a morte de um ente querido. A nossa realidade é

um sistema inventado pela sociedade em que vivemos e que dificilmente tolera a

invenção de realidades diferentes. Julgamos a nossa realidade a verdadeira. E me

questiono se a nossa realidade é realmente a realidade ou não passa de um sistema

inventado por nós e que nos distancia cada vez mais da realidade que deveríamos

viver? Aquela que consiste em não perdermos a consciência das coisas que

verdadeiramente são essenciais na vida? O amor ao próximo, a confiança, a saúde,

a solidariedade? Meu filho nega viver na realidade que eu invento para ele e

mergulha em uma virtual, vivida e visível somente no monitor.

O zunido dos fregueses famintos e falantes se expande no espaço aberto

iluminado pelo teto de vidro. O sol lânguido é abatido por uma ligeira e inofensiva

garoa percebida por aqueles que deixarem o complexo B e saíram para os outros

complexos, atravessando a pátio de passagem de cimento margeada pelo gramado.

Mais tarde choveria filetes compridos e delgados encharcados de água que

escorreriam pela transparência do vidro com o mesmo ritmo monótono e constantes

da linguagem binária verticalizada no monitor.

É um labirinto cheio de caminhos. Certifique-se de que a sua configuração é

satisfatória e mesmo não sendo você é obrigado a jogar. Primeiro aperte o enter e o

console de chat se abre. Ao digitar esta mensagem aparece outro level que é

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exatamente o mesmo que este. Envie mensagens ao “monstro” digitando /whisper

ou /w, no console de chat, e a mensagem desejada. Se você não quer repetir várias

vezes a mensagem, digite /reply ou /r para enviar uma mensagem automática.

Compartilhe as suas mensagens com o monstro, se é que se pode chamar de

monstro a criatura que habita o centro do labirinto, e você só ganha bônus quando o

monstro apreende a sua mensagem. O que é difícil. Digite o enter e aparecem

outras perspectivas do lugar onde você se encontra no interior do labirinto. Para

aquele momento em que palavras não bastam você possui toda uma gama de

emotes, mas que raramente lhe ajudam a se expressar com o monstro. No entanto,

são um recurso para se expressar nos campos dentro e fora do labirinto. Digite

/joke, /dance, /taunt ou /laugh na janela de chat que fará com que você realize uma

ação interligada com o monstro e as exigências do mundo fora do labirinto.

Embora você esteja preso no interior do labirinto, você sempre possuirá contato

com o mundo fora do labirinto que invoca as suas ações. Esses emotes também

podem ser vinculados a teclas de atalho no menu opções, para serem usados no

momento certo durante o jogo. O monstro não se move, não possui o objetivo de

lhe destruir e nem você possui o objetivo de destruí-lo. Neste jogo não é necessário

causar danos ao inimigo nem perseguir os oponentes. A sua meta é tirar a venda

dos olhos do monstro e encontrar a saída do labirinto. O desafio reside nos

comandos. Os comandos não funcionam racionalmente, as diretrizes dos códigos às

vezes funcionam, outras não, e as mensagens são bloqueadas ou chegam e não

surtem efeito. E você fica estático no mesmo lugar ou dá voltas sem chegar a lugar

nenhum no interior do labirinto. @-)

Acordo às duas e cinquenta da madrugada com o som irritante dos

trombones e dos pratos. Desligo o rádio. Aproveito para verificar se o meu filho

está dormindo e vou até o corredor. Da fresta da porta fechada de seu quarto emana

a luz azulada delicada e movente. É como se eu abrisse a porta e entrasse em um

novo gráfico, em um level completamente inédito e extraordinário, que se abre

todas as madrugadas. Não bato na porta, não entro no quarto. Pretendo evitar uma

discussão, às três da manhã, cujo final já conheço. Volto, andando com a ponta dos

pés, para o meu quarto e me deito na cama. Fecho os olhos para pegar no sono o

mais breve possível e fugir da realidade. :-SS Mas não consigo dormir nem impedir

minha mente de desenvolver associações desadequadas, ruminações, lamurias,

estratégias de punições, e um manancial de subterfúgios. De manhã eu o desperto. Ele não se levanta.

— Você ficou jogando até de madrugada, Duílio! :-(

— Não. Eu estava dormindo. :^o Duílio está na cama enrolado na coberta

como uma espiga de milho.

— Vi que você estava jogando. X(

— Não quero falar sobre isso! [–(

Resignada e cansada da noite mal dormida me arrumo e saio para ir

trabalhar. Chego atrasada e não consigo me concentrar no serviço. Felizmente, não

havia muitas tarefas e nenhuma delas foi complicada. Fiquei o dia inteiro torcendo

para que terminasse rápido para eu poder ir dormir. Mas tive que ir à reunião de

pais. À noite, na escola, os professores e o diretor certificam-se de que eu

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realmente não considero um desperdício gastar a mensalidade se o meu filho não

frequenta a escola. Por outro lado, há uma lista de espera de outros alunos

interessados na vaga. É um mau exemplo para os demais. Se conversei com o pai

do meu filho? E me garantem que o jogo eletrônico só é problema quando a criança

já possui problemas. E que não devo culpar a Nintendo, a Sony e a Microsoft. Por

fim, ficou decidido que este semestre seria a última chance.

— Somos reféns dos nossos próprios filhos. :| Diz meu colega de trabalho,

no almoço. Ele pega com perfeição oriental o nigirizushi com o palito e pede para

eu lhe passar o molho de soja, no restaurante japonês, na praça da alimentação do

shopping, localizado no complexo D, subindo a pé as escadas rolantes enguiçadas,

virando à esquerda, entrando em um pequeno corredor. Em um cantinho situam-se

cinco mesas ao longo da parede de vidro. A minha preferência é escolher a mesa

próxima à janela como se eu sofresse de síndrome de díptero. Somos como duas

moscas, comendo de palitinhos, grudadas na claridade.

— Em certos casos é mais difícil educar filho único do que três. Ele precisa

do pai e você de se libertar dessa preocupação excessiva, senhora Cibele Iara

Sypave. Talvez você o esteja sufocando! :-? Ouço Ulisses complementar e

engasgo-me com o arroz do makizushi. Tusso deixando de comentar algo e mudo

de assunto tossindo. Não sei o que pensar, além do mais, o meu esgotamento

emocional chegou ao ponto de eu atingir o estoicismo. Começo a cogitar a

possibilidade de tudo ser assim mesmo e que tanto faz. L-) Tusso de novo e falo

sobre a falta de liderança do nosso chefe e o novo projeto para reorganizar os

arquivos do estoque e ofereço-lhe o resto intacto no meu prato.

— Você não quer mesmo, Cibele? Não gostou?

— Estão bons, eu é que não estou com fome. Pode pegar! Realmente, não

estou com fome.

— Mas você não comeu nada!

— Estou de dieta! Menti. Não quero que o meu colega fique com pena de

mim ou preocupado.

Distante, na paisagem exterior, alguns pássaros voam e o frenético

movimento dos automóveis, circulando na larga avenida, penetra por entre os

galhos verdes e tufados das árvores. Através do vidro veem-se pedaços da

velocidade dos ônibus, dos carros e do alongado metrô, mas não se percebe o

bulício, a celeuma fica completamente do lado de fora, como se a cidade fosse

suavizada pelo silêncio!

O viagem branca foi criado para aqueles que não conseguem a solução para

o problema. É uma alternativa para substituir a realidade, enquanto a realidade não

deixa de ser um obstáculo. No viagem branca existem somente as palavras, os

gestos e os atos. Não há pontos, apenas caminhos para o oásis. Não há uso de

armas, upgrades de emotes, luta com monstros, tiros, explosões, destruição. Não há

enredo nem tesouro a ser encontrado. O desafio consiste em vagar no deserto de

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areia branca a procura do oásis. Mas você pode encontrar alguns ambirengues

(povo nômade que emigra pelo deserto), que lhe ajudam a encontrar o oásis como

também lhe desorientam, conforme o seu grau de discernimento, já que os

ambirengues não possuem moral nem ética fixas. Donos de uma profunda

sabedoria, que por ser tão profunda é ambígua e ambivalente, tudo o que fazem ou

dizem é carregado de sentido duplo. O comando círculo envia chamadas para

outros jogadores, através do símbolo circular na tela que se expande enquanto o

botão for apertado (semelhante aos círculos da superfície d´água quando uma pedra

é atirada). O comando x faz com que você voe como uma fênix de plumas

madrepérolas e apreenda a planície de suas dúvidas. O oásis significa a serenidade,

com tudo aquilo que a serenidade significa, @-) e o território limitado da ilusão,

com tudo aquilo que a ilusão implica.

Acordo voando com a melodia In Paradisum, de Jenkins, embalada pelas

nuvens cristalinas no céu embranquecido pela tênua claridade, o som da harpa cai

feito pétalas sobre meu rosto suavizado pelo sonho, In paradisum deducant te

angeli. E continuo planando até o coral terminar. Desligo o rádio. As partículas de

areia branca impedem meus olhos de se abrirem. A claridade da manhã cai em

filetes no assoalho. Em qual realidade eu me encontro, se são as ilusões que tornam

a realidade suportável? A realidade sem as ilusões não passa de conformismo. E a

realidade virtual se diferencia da ilusão por não ter sido criada por cada um de nós,

mas por um bando de funcionários das indústrias de entretenimento. Sou eu mesmo

que crio a minha ilusão?

Preciso me levantar, mas meu profundo cansaço me impede e continuo na

cama enrolada na coberta feito bicho desamparado no emaranhado do ninho, :-& e

procuro voltar a voar. 8->

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Nas hastes das nuvens

Existem três edifícios de quinze andares, um encostado ao outro, seguindo

para os fundos do terreno. Ao lado dos edifícios, construídos de forma transversal,

há um pátio longo e espaçoso e um jardim com palmeiras, plantas e flores: boca de

leão, a gérbera, a canarana, a bromélia, o jasmim, o bastão do imperador. O

arquiteto judeu da Vila Higienópolis soube otimizar o espaço. Por fora parece um

edifício comum, sem nada de espetacular. Ao entrar e atingir o pátio com dois

patamares de altura, de onde se pode avistar o jardim, percebe-se a funcionalidade

e a singela beleza da construção. No final das tardes os velhinhos dos prédios

costumam se sentar nos bancos e conversar. Barrado pelos outros edifícios vizinhos

o sol estica os raios alcançando o jardim algumas horas, na parte da manhã, o resto

do dia o jardim é coberto por uma sombra clara e fresca. Na parte final dos prédios

se encontra o playground, também a sala de jogos, com mesa de pingue pongue e

futebol de mesa. A entrada para a garagem subterrânea fica ao lado esquerdo.

Dona Helena Maria Silveira Bartelli gostou da Vila Higienópolis, logo no

dia da visita, acompanhada do vendedor da imobiliária, assim que entrou no longo

e espaçoso pátio admirou o jardim, chegando ao requintado hall de entrada, onde

subiu com o elevador no décimo quarto andar. Foi o terceiro objeto que visitou

naquele bairro. E quis fechar o negócio o quanto antes. Houve outros interessados,

mas os Bartellis ofereceram uma porcetagem adicional. A reforma no banheiro foi

necessária para tirar a antiga banheira nada prática, aumentar a janela, que dá para a

lavanderia, e trocar os azulejos rachados. Dona Helena lamentou ter de tirar os

azulejos portugueses com as flores azuladas, mas sairia dispendioso restaurá-los.

As rachaduras eram profundas. A família entrou no apartamento dois anos antes do

nascimento da Lena. Os vizinhos os acolheram amavelmente. Foi um tal de

convidar o jovem casal para jantar no apartamento de um, de outro, que chegou a

ser estressante, uma vez que os jantares deviam ser retribuídos, como é usual no

meio burguês, e para alguns vizinhos judeus devia-se preparar a comida kasher. O

que é complicado para quem não é judeu. Mas os Bartellis descobriram o

Supermercado K, na Barra Funda, e concentraram-se em um único cardápio, fácil

de preparar: o cuscuz kasher com berinjela kasher, vinho kasher, e um bolo de

amêndoas, comprado pronto, no supermercado kasher. E os convidados traziam os

pratos, talheres e copos, porque a louça usada para se comer alimentos carnívoros

não pode ser usada para comer os alimentos derivados do leite. E o casal, quando

não jantava no apartamento de alguém, oferecia jantares em seu novo lar.

Os mais notáveis, à primeira impressão, são os Nogueiras. Um casal de

meia idade, filantrópico, que arrecadam dinheiro no final do ano para presentear os

funcionários da Vila Higienópolis: o manobrista que, além de manobrar, limpa os

vidros e a bosta dos pardais de cima do capô dos carros, sem ninguém pedir; o

jardineiro que vem quinzenalmente com mudas de flores da Amazônia, sem

ninguém pedir as mudas exóticas e raras; as faxineiras que limpam os halls, o pátio,

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os elevadores, as escadas, a garagem; o confiável porteiro que trabalha de terno e

gravata, sem necessidade de ele vir de terno e gravata; o síndico também

encarregado de consertar algo aqui e ali, troca lâmpadas, coloca óleo na porta da

garagem, e vem trocar a lâmpada, dar um jeito no chuveiro do banheiro, na

máquina de lavar roupa, no piso, arruma aqui e ali dentro do apartamento quando

alguém pede.

As reuniões dos proprietários ainda são realizadas, a cada dois meses, na

sala de reuniões, atrás da sala de jogos, com sofás e poltronas, uma grande mesa

rústica de madeira de lei maciça, fabricada no Embú das Artes, uma geladeira e a

mesinha de vidro que foi sucesso da coleção Tok Stok. A geladeira é para os

vinhos, garrafas de conhaque, uísque, a mesa para os queijos, pão com patês, e a

reunião serve para um bate-papo. Quando surge uma opinião divergente, cada um

esclarece o seu ponto de vista, e terminam com uma rápida votação. O

contentamento é geral.

O que fazer com tantos presentes que dona Helena ganhou na gravidez da

Lena? “Eliane, por favor, leve para uma instituição de caridade que a senhora

conhece. A Lena já está grande e estas roupinhas não lhe servem. Nem cheguei a

usar! Estes brinquedinhos também podem ser levados. São muitos!” Pedia dona

Helena à vizinha. Dona Eliane Nogueira conhece as instituições de caridades dos

bairros pobres, ela costuma recolher as roupas usadas dos moradores do prédio e

doar para as instituições.

No andar de baixo mora um velhinho, viúvo, que a Lena e o Toni, filho do

outro vizinho, costumam ir visitar. O velhinho não se importa que as crianças

batam em sua porta. Lembram os seus netos que moram no Rio e raramente vem

para o sul. Seu filho, depois de casado, dedica-se mais à família da esposa. As

crianças abrandam a solidão e a monotonia do viúvo. Principalmente o Toni que

faz diversas perguntas. Toni ficou curioso quando o velhinho lhe propôs jogar

dama. Só conhecia nintendo e games. Jogar um jogo em cima de uma mesa, sem

precisar atirar em ninguém, sem efeitos especiais, luzes piscantes, movimento

eletrônico, som, era algo inédito para ele. Lena achou chato. Não se interessou, ela

gosta é de ficar sentada na cadeira de balanço, vendo televisão. Não sem antes

perguntar ao velhinho, como em um ritual, sempre que se senta na cadeira: — Por

que o senhor não se senta mais na cadeira?

— Não me sento mais porque ela se balança.

— Mas é uma cadeira de balanço?!

— Eu fico tonto quando me sento nela, é como se eu tivesse em um navio

em alto mar. Tudo se balança. Não tenho mais idade para isso

Lena não entende a razão, não entende essa de não ter idade para isso ou

aquilo. Mas imaginar estar em alto mar, em um navio, a atrai. Assim ela se senta na

cadeira e se balança, tentando se transferir para o alto mar, o que não é possível por

causa da televisão ligada com o volume alto. O velhinho não possui boa audição. A

mãe de Lena a proíbe de assistir televisão com o volume alto e antes de fazer a

lição de casa.

Toni se cansou de jogar dama e passou a ensinar o velhinho a jogar

nintendo. O velhinho nunca ganha uma partida e Toni acha engraçado.

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Em uma terça-feira à tarde o velhinho foi sentar-se no banco do jardim,

como está acostumado a fazer, e encontra uma revista erótica em cima do banco.

Quem deixa uma playboy em cima do banco do jardim? Onde esse mundo vai

parar? E as crianças? Pensando no bem e na moral das crianças, sobretudo na Lena

e no Toni, o velhinho sobe para jogar a revista no lixo de seu apartamento, lá

nenhuma criança poderia encontrá-la. No elevador, dona Marta perscruta-o de um

jeito estranho, depois de cumprimentá-lo e ver a revista na mão dele. É de se

esperar que dona Marta comece a imaginar coisas depravadas e maliciosas, ela

sempre pensa mal dos outros, e se espreme no canto do cubículo como se ele fosse

querer estuprá-la. Ora vejam! A dona Marta, com a cara cheia de plástica, perfume

penetrante, e cabelos tingidos de louro!

Dona Marta também é viúva, os filhos a visitam diversas vezes, o que não é

do agrado de dona Marta. O neto mais novo, de quatro anos, corre pelo

apartamento e mexe em tudo. Quebrou um vaso e uma escultura de porcelana, uma

taça de cristal, um copo de vidro, a preciosa e famosa luminária art deco, trazida

dos Estados Unidos pelo filho, a de vidro verde que se vê sobre a mesa dos chefões

nos filmes, um colar de esmeralda no pescoço de dona Marta, na sua festa de

setenta e quatro anos, e entupido a pia do banheiro com a tampa de borracha de um

vidro de cosmético. Por isso dona Marta prefere ir visitar os netos, nas datas

religiosas e nos feriados do que tê-los correndo pelo apartamento, quebrando a

decoração.

O elevador para no nono andar e a porta se abre, o senhor Roberto entra,

mas não repara na revista que o velhinho segura na mão. Ele chegou do trabalho

cedo hoje, parece preocupado. Mal cumprimenta os vizinhos e desce no décimo

primeiro. O senhor Roberto sempre troca um dedo de prosa sobre o tempo, o

trânsito, a violência nas ruas, os preços dos alimentos, do combustível. Dona Marta

percebeu que ele não puxou conversa e interpretou este silêncio como sendo uma

reprovação contra o velhinho com a revista proibida. Dona Marta desce no mesmo

andar do velhinho e antes de entrar em seu apartamento, “seu sem vergonha. Vou

fazer uma reclamação com a administração”, exclama ela e fecha a porta na cara

dele parado no corredor, segurando a chave no buraco da fechadura de sua porta e

na outra mão a revista. “Mas é uma doida mesmo!” Conclui ele e entra no seu

apartamento.

O senhor Roberto é o marido de dona Josiane, tem três filhas lindas, de

cinco, sete e dez anos. Vez ou outra ele encontra Lena na rua, voltando sozinha da

escola. Ele para o carro e pergunta se ela quer uma carona. Lena aceita. “Onde já se

viu deixar a menina andar na rua sozinha!” Reprova ele. O senhor Roberto almoça

em casa frequentemente e zela pela segurança de suas filhas, não permitindo que

saíam sozinhas à rua, teme algum rapto. A esposa busca as filhas na escola. Sempre

que possível ele trás a Lena ou alguma outra criança da vizinhança de carro para

casa. Os pais de Lena agradecem e, muitas vezes, convidam a família para jantar.

São bons amigos.

Certo dia o senhor Roberto deu carona para a Lena, mas no meio do

caminho lembrou-se de ter de regressar ao escritório para pegar os documentos da

separação. “Você não se importa Lena? Não vai demorar muito. Eu me esqueci de

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pegar uns papéis!” Lena não se importa. Tudo menos chegar em casa e ter de fazer

a lição antes de ver televisão. O senhor Roberto não quer o divórcio, está abalado.

E as suas adoradas filhas? Precisa conversar com a esposa. Josiane não poderia

querer acabar com o casamento por ter se apaixonado por um colega de trabalho

dela, na empresa de marketing. Roberto considera irresponsável da parte de

Josiane, que é dezenove anos mais nova do que ele. Parou no estacionamento

refletindo sobre a juventude de Josiane, o novo amante dela. Esqueceu-se de Lena

sentada ao seu lado. — Você não vai pegar os papeis?

Ele desperta do enleio. — Ah, claro! Vamos!

Quando Lena chega em casa atrasada foi logo contando à mãe, — eu vim

com o senhor Roberto e ele parou no estacionamento.

— Vá já almoçar e depois fazer a lição de casa. A sua mãe não se levanta da

cadeira, a mesa do computador, no home office, de frente para a sala, onde trabalha

e logo mais sairá para encontrar um cliente e entregar os cálculos para o

financiamento da compra de três apartamentos na cidade.

— Você deve fazer a tarefa de casa antes de eu sair.”

— Por quê?

— Porque eu quero!

— Por que você quer?

— Porque tem que ser assim!

— Por que tem que ser assim?

— Lena, não me enche e faça o que eu estou mandando, ouviu? Senão você

vai ficar sem televisão.

Lena se sente como se tivesse de possuir o mundo dentro de si. Não é

possível possuir o mundo. Ela não sabe o que é o mundo, muito menos o tamanho

de sua dimensão e complexidade, não sabe que é abissal e feito de miríades de

mundos inacessíveis em seu interior. Só conhece o seu próprio e esse é o mundo de

uma menina de oito anos e meio, gordinha, bonitinha, inteligente, travessa e

inquieta. E não tem medo, não o medo de enfrentar a vida, a concorrência. Lena vai

à luta. Sobretudo quando Martim passa, no pátio do prédio, todas as manhãs da

semana, e ela o encontra segurando o paletó, usando os óculos escuros ray ban, a

gravata amarrada no pescoço, a camisa branca engomada e impecável, a pasta de

executivo na outra mão. O sorriso de Lena abre feito um pedaço de melancia.

— Quando eu crescer eu vou me casar com você!

Martim vive no mesmo prédio, o último do pátio, considerado o dos

moradores mais animados. — Ok! Vou esperar por você, Lena! Martim responde

sorrindo. E em seguida, aparece, caminhado atrás dele, uma mulher bonita, magra,

bem vestida, de salto alto, óculos escuros que também sorri para Lena. — Ah! Que

gracinha! Mas Lena a observa com um olhar furioso. Martim é o galã do prédio,

tem uma namorada atrás da outra. As mulheres mais velhas não o culpam por isso,

ele realmente é um rapaz atraente, simpático, bem de vida e inteligente. As

mulheres mais velhas, como a mãe de Lena, tem pena do “pobre rapaz” com estas

“barbies” correndo atrás dele. E falando em barbie a orelha de Lena se levanta.

“Onde é que ele arruma tanta barbie?” Uma hora é uma barbie morena; outra, loira,

ruiva, cabelos crespos, cabelos lisos, curtos, compridos. Mulheres de tipos

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diferentes, mas todas altas, magras e bonitas. Lena, apesar do ciúme, fica fascinada

pelas mulheres. “Quando eu crescer vou ser assim bonita igual elas!” Martim julga

Lena uma menina engraçada, um pouco inconveniente por não perder a

oportunidade de se aproximar dele, trocar algumas palavras e de assegurá-lo de que

se casará com ele quando crescer.

Hoje de manhã Martim não dispõe de tempo e está mal humorado. A

mulher que o acompanhou, ontem à noite, saiu mais cedo do que ele. Uma moça

baixinha, magra, de uma beleza indefinida. Se é que se pode chamar de beleza os

cabelos curtos lisos, os olhos esverdeados, o rosto sem maquiagem, usando óculos

de grau, as roupas relaxadas (jeans e camiseta), e um olhar firme e sério. Lena

passa por ele, no pátio do prédio, com o seu habitual sorriso enxerido, “olá,

Martim!”, e ele não responde, não olha para ela. Pensa na mulher que teve a

ousadia de sair sem acordá-lo, sem deixar o número do telefone e de apenas ter-lhe

escrito uma mensagem curta e grossa em um bilhete: valeu! Valeu? Ele a conheceu

em um bar, é garçonete, ela contou-lhe que estuda comunicações durante o dia, e

que terminaria o turno as duas da manhã. Esperou-a para tomaram um drink em

outro bar e foram para o apartamento dele. Não é o seu tipo. Ele a convidou

porque, se o colega não tivesse dito, “é uma gracinha! Vai cair na minha rede!”,

Martim não teria prestado a atenção nela. Nunca procura as mulheres, elas que o

procuram no dia seguinte, mas hoje à noite irá ao bar, quer saber qual é desta

garota sem graça que de alguma maneira aguça o seu instinto e sentimento. Lena

repete, “olá, Martim!”, poderia ser que não tivesse ouvido. Ele não responde, não

olha para ela. O sorriso de Lena murcha como um balão sem ar e ela abaixa a

cabeça.

Lena caminha pela calçada, por volta do meio dia e quinze, com o sol

quente e a celeuma da cidade no auge, voltando da escola, carregando a mochila

cheia de livros nas costas ela avista o senhor Roberto passando de carro. Para a sua

surpresa ele não para. Finge que não a vê? O senhor Roberto está nervoso.

Conversou com a esposa na noite passada e hoje, no café da manhã. Soube que o

amante de sua mulher não passa de um artista talentoso que não tem onde cair

morto. Josiane deve pensar bem se realmente quer a separação. As meninas ficarão

com ele. Josiane poderá visitá-las. Ele está disposto a pagar uma pequena pensão,

para Josiane não morrer de fome, afinal é a mãe de suas adoráveis filhas. Poderá

viver no apartamento de dois cômodos que ele aluga, no bairro vizinho. No

entanto, prefere perdoá-la (afinal é jovem, irresponsável e bonita), e esquecer tudo.

Josiane deverá pedir demissão no trabalho hoje mesmo.

Não, o senhor Roberto não vê Lena caminhando sozinha na calçada. Está

com pressa em chegar ao apartamento e indagar à esposa o que decidiu, se ela

pediu a demissão ou não.

A decepção de Lena é grande e, em casa, Lena discute com a mãe.

— Vá almoçar e depois fazer a lição de casa.

— Por quê?

— Porque eu quero!

— Por que você quer?

— Porque tem que ser assim!

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— Por que tem que ser assim?

— Lena, não me enche!

— Eu é que estou cheia desta casa, desta família. Ninguém gosta de mim.

Eu vou embora, viu? Vou pegar as minhas coisas e vou embora!

— Ah, é? Vai embora pra aonde?

E a discussão termina porque Lena não sabe para aonde. Fica muda, com as

bochechas vermelhas de raiva, com fome, sem vontade de fazer lição de casa, e

sem um lugar distante para fugir.

No entanto, no final da tarde, a mãe regressa do compromisso de negócios e

não a encontra em casa. Lena não almoçou e a mala da escola está intacta. A mãe

vai ao apartamento do velhinho, mas só encontra o Toni. — Não vi a Lena hoje,

dona Helena! Dona Helena pergunta ao porteiro e ele informa que a Lena saiu

sozinha. Para aonde ele não sabe.

A Lena sumiu. É de madrugada quando os pais chamam a polícia. E, no dia

seguinte, indagam na vizinhança, na redondeza, e telefonam para os amiguinhos da

escola, se alguém viu a Lena. Ninguém sabe da Lena.

A polícia, dois homens uniformizados e barrigudos, perambulam

lentamente pela sala do apartamento dos Bartellis, e explicam que poderia ser um

rapto, que geralmente em casos como este, em que o raptor não pede dinheiro, pode

ser alguém da família, alguém próximo, um vizinho, um amigo.

— Não, não possuímos inimigos, a família é unida e os vizinhos são

maravilhosos. Não é ninguém próximo. É algum louco da rua. Algum louco. Por

favor, façam alguma coisa, por favor. Implora dona Helena aflita e o choro é

inevitável. O pai se contém. Alguém precisa manter a cabeça fria neste momento.

A verdade é que a polícia não tem nenhuma pista.

O pai de Lena contrata um detetive particular, com escritório no centro,

cinco quarteirões do edifício. Um homem alto, encorpado, barba por fazer, camisa

fora da calça, suado, papa no queixo, sentado atrás de uma escrivaninha cheia de

papéis, com uma secretária que mais parece uma dona de casa do que alguém que

soubesse lidar com arquivos e organização de agenda, por volta dos sessenta anos,

gordinha, de óculos, usa um vestido com grandes estampas de girassóis, e fumante.

O ajudante de detetive, aquele que sai às ruas fazer perguntas, fotografar, perseguir

esposas traidoras, é um homem esportivo, jovem, moreno, masca chiclete e usa

óculos escuros falsificados.

— Há algum vizinho que não gosta de vocês? Alguém da família com

algum comportamento estranho? O ajudante de detetive está agora sentado no sofá

da sala dos Bartelli, anota algo no bloco, masca o chiclete, com os óculos escuros

pendurado na gola da camisa.

— Já disse à polícia que não possuímos inimigos, a família é unida e os

vizinhos são maravilhosos. Não é ninguém próximo. É algum louco da rua. É um

louco desconhecido, doente mental. Dona Helena possui as mãos trêmulas, os

olhos inchados e vermelhos de quem chorou e não conseguiu dormir, e o marido a

abraça.

O ajudante de detetive incomoda a vizinhança fazendo perguntas

indiscretas, usa um método pouco profissional que consiste em afirmar que fulano

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de tal comentou o que não insinuou, como: dona tal disse que você é mulherengo

ou o senhor tal disse que o senhor abusa da boa vontade dos Nogueiras ou a

senhora tal disse que o senhor é um pedófilo ou o senhor tal contou que o senhor

trai a esposa, é verdade?

Os pais de Lena visitam os hospitais da redondeza.

Com a suspeita semeada no inconsciente, passados dois dias a mãe de Lena

começa a fazer mau juízo dos vizinhos. Dona Helena caminha pelo pátio, para

pegar o carro na entrada do edifício e ir ao escritório do detetive, quando avista

Martim vindo em direção oposta. Não seria este rapaz bonito, inteligente, rico,

vestido de terno e gravata, com uma namorada atrás da outra? Pensa dona Helena.

Martim caminha até o hall do elevador. — Lamento muito o que aconteceu, dona

Helena, se eu puder fazer alguma coisa me avise, por favor. Estou com o

pensamento na Lena. Diz ele com o semblante entristecido.

— Com o pensamento na Lena? Na Lena? Seu pedófilo assassino! O que

você fez com a minha filha? Onde está a minha filha? O que você fez, o que você

fez? Dona Helena está fora de si, grita e agride Martim que deixou cair a pasta de

executivo para segurar os punhos de dona Helena. Gabriel, filho do Sr. José, o

antigo porteiro, testemunhando o ocorrido, através da televisão transmisoras das

imagens captadas pelas câmaras de segurança, corre o longo e espaçoso pátio para

chegar ao hall do último prédio e apaziguar a briga.

O senhor José, o antigo porteiro, trabalhou quarenta e um anos, vestido de

terno e gravata, antes de atravessar a rua, em uma linda quarta-feira de manhã, e

um aldi o lançar para cima, como uma pluma, e para o chão, como uma pedra.

Permaneceu meio ano em coma e despertou quando o filho o visitava. O senhor

José recebeu alta e desde então vive na cama de sua casa, sendo tratado pela esposa

e os filhos. Gabriel é o filho mais novo e ainda solteiro. É um rapaz honesto e

solícito, de bom humor e as velhinhas da Vila Higienópolis o adoram. Dona Eliane

Nogueira e o marido apoiam o jovem pagando as mensalidades da faculdade de

química, situada na periferia da cidade.

— Dona Helena, se acalme! Se acalme, dona Helena! Gabriel fala com a

voz branda e consegue distanciar dona Helena de Martim, espantado, desnorteado,

e sem palavras. Gabriel fez com que ela se sentasse na poltrona bege do

sofisticado hall, em cima de um tapete ocre, atrás da mesinha de mármore branco

com um vaso alojando seis copos-de-leite rosa. Martim ficou parado. Dona Helena

chora desesperadamente.

E ninguém se dá conta de que a porta do elevador se abre e o velhinho

aparece. Percebendo a situação estranha e vendo a mulher em prantos: — O que

está acontecendo?”

A pergunta faz com que dona Helena se vire para ele: — Seu velho

monstro! Onde você escondeu a minha filha, onde? Seu pedófilo louco. Onde está a

minha filha? E dona Helena só não consegue se levantar do sofá e esmurrar o

velhinho porque o porteiro a segura repetindo, — se acalme, dona Helena, se

acalme! Assim como o Martim, o velhinho ficou chocado e sem ação.

O senhor Roberto surge no hall para pegar o elevador e, do mesmo jeito, é

alvo das acusações de dona Helena: — Eu mato você. Eu mato você, seu pedófilo.

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Eu vou te matar, eu juro que eu vou te matar. Devolve a minha filha. Devolve a

minha filha. Seu louco! Por que você ficou parado no estacionamento? Você

abusou dela, eu sei. Eu te mato! Dona Helena grita incontrolável.

— Dona Helena se acalme, por favor, se acalme! Gabriel continua

segurando dona Helena se contorcendo de ódio e histeria no sofá, pronta para se

livrar das mãos fortes do jovem e atacar todo os três inertes e desnorteados.

O marido de dona Helena é chamado pelo celular.

— E você? Você vigia todos os nossos passos aqui, Gabriel. Você conhece

todos os nossos movimentos. Foi você que raptou a Lena. Ela não saiu sozinha

coisa nenhuma. Você a raptou, Gabriel. O que você quer? Dinheiro, é isso o que

você quer? Seu criminoso! Seu bandido vivendo as custas dos Nogueiras!

Nem mesmo o Gabriel foi poupado das acusações medonhas de dona

Helena.

— Se acalme, dona Helena! Se calme!

Eles a levam para o apartamento e dão-lhe um sedativo. Ela dorme o final

da tarde ensolarada, com as bocas-de-leões brancas no jardim formosas como

nunca! E dorme a noite inteira. A suave noite emite o som abafado dos automóveis

nas grandes avenidas pontuadas pelas luzes elétricas.

Mas as desconfianças continuaram crescendo como planta perene

reproduzida por sementes, rizomas e o enraizamento dos nós caulinares basais se

alastrando no terreno da agonia de dona Helena. Basta uma ínfima semente de

desconfiança e maldade para ela se alastrar conforme a fertilidade do terreno.

E a vizinhança fica sabendo do ocorrido. Alguns consideram um

desrespeito, uma loucura, outros começam a também desconfiar dos vizinhos. Os

filhos não podem mais brincar no apartamento das outras crianças, os vizinhos mal

se cumprimentam, olham com desconfiança uns para os outros. Realmente, aquele

rapaz bonito, inteligente, rico, com uma namorada atrás da outra, não é normal. É

um perverso, certamente que abusa das mulheres. E o velhinho com a revista

pornográfica na mão, ele sempre anda pelo pátio com uma revista pornográfica na

mão. É um perigo! E o senhor Roberto, por que a esposa quer se separar dele? Com

aquele ar melancólico, sempre dando carona para as meninas do edifício,

preocupado com elas. Por qual razão superprotege as filhas? E a dona Marta, com a

cara cheia de plástica, perfume penetrante, e cabelos tingidos de louro, que não

gosta de crianças, reclama delas na menor oportunidade, e a dona Marta que se

queixa de tudo?

Os mal-entendidos e fofocas maldosas aumentam. Agora um reclama do

outro por bobagem: alguém deixou o saco de lixo no corredor dos fundos e se

esqueceu de levar para baixo, alguém recebeu visita de madrugada e fez ruído no

corredor, alguém jogou lixo no elevador (um lenço de papel usado que

provavelmente caiu no chão desapercebido), alguém estacionou o carro na garagem

do outro, alguém não devolveu os trocados emprestados. Contratempos que nunca

deixaram de fazer parte do relacionamento entre os vizinhos e ninguém, a não ser a

dona Marta, se queixava. Agora todos se opõem, fazem exigências, reclamam

escrevendo e-mails antipáticos para a administração da Vila Higienópolis.

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No terceiro dia do sumiço da Lena, em uma tarde de quinta-feira, a família

está reunida na sala. Os pais de dona Helena, que vivem em uma casa em Embu,

vieram imediatamente para ajudar a filha com os nervos, e estão sentados no sofá

acinzentado, com as fofas almofadas azuis e bordô espalhadas no encosto. O

detetive, sentado no outro sofá, toma café, sem jogar fora o chiclete, anota algumas

coisas em um bloco. Dois policiais uniformizados e barrigudos estão em pé

conversando com o pai de Lena também em pé, ao lado da mesa de jantar. A mãe

de dona Helena toma o café sentada na poltrona, sem saber o que dizer para

consolar a filha nervosa.

De repente, ouve-se um ruído na fechadura da porta. Todos se viram para o

pequeno orifício de onde germina o barulho da chave girando. Lena abre a porta da

sala, entra sem se dar conta do cenário inusitado na sala, sem enxergar as pessoas

ali reunidas. — Ninguém gosta de mim, eu sei! Fiquei dois dias fugida, na casa da

Silvia e ninguém foi me procurar. Ninguém gosta de mim! Mas eu voltei mesmo

assim.” E caminha chorando para o fundo do corredor entrando no quarto e

batendo a porta.

Os personagens reunidos na sala estão estáticos: a mãe com a mão suspensa

no ar, prestes e limpar uma lágrima no rosto, assim como a avó ficou com a xícara

de café erguida; o detetive de boca aberta na iminência de mascar o chiclete, a

caneta com a ponta no papel; o pai de dona Helena, sentado, de olhos arregalados,

com a mão no ar (explicava mais uma vez qual a roupa que Lena vestia no dia do

desaparecimento): os policiais uniformizados e barrigudos, parados, com as mãos

na cintura.

Silvia é a filha de uma antiga babá de Lena. Há anos que não possuem

contato, mas Lena se lembrou dela e de seu endereço, na periferia da cidade. A mãe

de Silvia é solteira, muito ocupada, e não tem tempo de desconfiar que Lena fugiu

de casa e não avisou a mãe ou de telefonar para a mãe de Lena e confirmar se ela

lhe deu permissão de visitar a amiga. A mãe da Silvia trabalha o dia todo e chega

tarde, pensou que a Lena viesse visitar a filha às tardes, depois da escola, como as

outras amiguinhas faziam, e algumas pernoitavam. No terceiro dia foi trabalhar de

babá em um edifício próximo da Vila Higienópolis e levou Lena para a casa dela,

deixou-a em frente ao prédio.

A alegria e o alívio dos pais são inenarráveis! Depois da alegria a mãe

quase brigou com a filha, no entanto, o pai, de cabeça mais fria, desaconselhou-a a

criar novo conflito. O importante é que a filha está em casa, sã e salva, nada de

temível aconteceu, tiveram um final feliz e agora poderiam rir da história.

Dona Helena não ralhou com a filha, mas rir da história não pode. Precisou

se desculpar com o Martin, com o velhinho, com o senhor Roberto, com o Gabriel.

Mas a vizinhança não voltou a ser a mesma, os moradores amigos deixaram de ser

espontâneos. Reina o medo dos outros interpretarem as suas atitudes como algo

errado, prestam atenção no comportamento e nas palavras e procuram não

confidenciar intimidades.

Os vizinhos na Vila Higienópolis eram leais, gentis, e compartilharam a dor

de dona Helena, tentaram ajudá-la no que fosse possível. Hoje, alguns não mais a

cumprimentam.

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Talvez o tempo tivesse o poder de amenizar e normalizar o relacionamento

dos vizinhos. Os pais de Lena não quiseram esperar os eventuais benefícios do

tempo e se mudaram para um edifício, do outro lado do bairro. Dona Helena sabe

que esta rachadura não é como a dos azulejos no banheiro. Não basta trocar os

acontecimentos, a eiva permanecerá. O pai de Lena, com a cabeça mais fria,

acredita que acontecimentos que desembocam em uma inesperada envergadura

fazem parte das pequenas e inevitáveis tragédias da vida. E para a tragédia pode ser

suficiente uma pena em cima da torre de cartas de baralho para tudo desmoronar!

A vizinhança no novo prédio para onde a família Bartelli se mudou não é

tão simpática, os moradores são reservados e formais, e Lena é a única criança no

prédio.

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Comendo as bolinhas da galáxia

Em um domingo cinza com o vento gelado, apesar de ser verão, no interior

de um restaurante, resplandece a imagem da mulher sentada sozinha, à mesa ao

lado da janela. Talvez seja cedo para um domingo, o restaurante está quase vazio.

O cinza deve ter recolhido os fregueses no aconchego de suas casas. Pode ser que o

freguês, sentado a mesa em frente a da mulher, pense que ela tenha vindo buscar

refúgio de uma batalha cotidiana irremediável: briga com o namorado ou com o

marido ou com o filho ou filha ou simplesmente com a solidão ou não se trata de

nada mais do que o estranho costume de tomar café da manhã sozinha, em um

restaurante cinza e domingo ao lado da janela.

O freguês está acompanhado de uma mulher sentada de costas para a

freguesa sozinha. Ao homem, deste ângulo, foi lhe proporcionada a possibilidade

de flagrar uma realidade esquiva em relação à freguesa sozinha. E ele a observa,

curioso, entre uma mordida e outra no croissant, um gole e outro de café, uma frase

esporádica e outra respondendo aos comentários de sua companheira. E questiona

sobre o que a mulher sozinha poderia estar refletindo quando o olhar dela viaja

para o outro lado da ampla janela de vidro, sem jamais alcançar o cruzamento da

Wexstrasse com a Prinzregentstrasse, sem jamais alcançar os passantes, as mesas

dispostas na calçada, os carros estacionados, outros circulando, o balanço das

folhas obesas das faias, o entra e sai da padaria, na esquina, a correria de duas

crianças estrangeiras na calçada... Em que território desconhecido aquele olhar

longínquo poderia estar penetrando? O homem sabe que apenas descubrirá suas

próprias deduções. Não busca respostas, toma um Frühstück com ― sua esposa?

Em todo caso uma companheira. A outra mulher é que o atrapalha com sua

presença individual e ausente, com a idade indefinida entre os trinta e quarenta

anos, as rugas de preocupação traçadas na testa. Muito raro ela cruza o olhar com o

dele e logo segue viajem às profundezas. E ele deduz que é isso o que o incomoda:

a ousadia de ela vir ao restaurante trazendo o abismo que segreda dentro de si,

mesmo ele não sabendo que a razão do abismo é ela estar magoada por ter se

desentendido com o marido, logo em um domingo de manhã, sinônimo da mais

religiosa tranquilidade, e saiu de casa para interromper a discussão e poder

espairecer.

O homem pensou que um restaurante que oferece um Frühstück completo,

familiar, sob um preço razoável (paga-se um valor fixo e pode-se comer quanto

quiser), e uma variação de frios, frutas, pães integrais, ovos, müsli e geleias,

realmente não fosse lugar para alguém aparecer carregando o seu abismo.

Os Frühstückes estão na moda, os fregueses podem ficar até as quatro horas

da tarde tomando o café-da-manhã que se transforma em almoço. Alguns locais

oferecem uma sopa, pasta ou um arroz com legumes e carne. A bebida não é

incluída.

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O café da manhã, no restaurante mexicano, em Schöneberg, frequentado

pelos moradores da redondeza, possuí Frühstück completo e suco fresco de laranja.

Depois das duas horas da tarde pode-se experimentar o chili com carne.

A mulher desacompanhada não veio tomar o café da manhã nem

experimentar o substancioso chili com carne. E não percebe que, talvez, alguém

possa reparar que partes de seu abismo estejam aparecendo, como a alça de um

sutiã de cor destoante ou um decote profundo, meio vulgar e ao mesmo tempo

atraente. Se tivesse percebido não estaria caindo cada vez que sua atenção voa à

claridade da janela, feito mosca resignada com o obstáculo intransponível.

Ele percebe que ela não permite que o seu olhar permaneça um instante a

mais na haste dos olhos dele, momento em que ele teria a chance de lhe comunicar:

o refúgio não precisa ser nenhum esconderijo onírico, pode ser no vórtice da

própria realidade. Ela passa a mão nos cachos dos cabelos escuros e compridos e

parte de novo, enquanto ele vai e volta com o olhar, desgastando a rocha.

De relance ela se dá conta de se tratar de um homem de meia idade, cabelo

cinza, usa óculos, olhar perscrutador que, vez ou outra, a examina discreto, sentado

em frente a mulher de cabelos louros, crespos, compridos até o ombro, podendo ser

o pai dela, ou o marido, namorado, amante, amigo, primo, tio. Ela não sabe! E

temendo o perigo de ele captar alguma lasca da sua angústia ela pega o Smartphone

Samsung Galaxy SII Duos TV Cinza Desbloqueado Tim GSM da bolsa, para ser

uma pessoa contemporânea como qualquer outra. Começa a mexer no celular, a

escrever mensagens irrelevantes para as amigas e, em seguida, deletar. Pensa em

telefonar para alguém, mas em um domingo de manhã muitos estão dormindo.

Consegue falar com uma conhecida com quem não tem mais contato há algum

tempo. Conversam sobre as últimas novidades que demonstram que nada mudou. A

amiga revela que o emprego é o mesmo, o salário baixo é o mesmo, a falta de

tempo é a mesma, a doença da mãe é a mesma, a monotonia com o marido é a

mesma. E ela distorce as novidades, contou estar tudo na mais perfeita ordem: o

bom salário, o bom marido, o bom apartamento, as boas promoções de viagens, no

site da opodo, para o sul da Europa, as esporádicas visitas aos sogros simpáticos e

saudáveis, em Ostfriesland, no norte da Alemanha—, região cheia de bovinos,

moinhos e forte vento tenaz, a salutífera saudade da família em Feira de Santana—,

região semiárida quente, cheia de caatinga e cactos comestíveis, o bom

desenvolvimento dos sobrinhos sorridentes nas fotos, no facebook, a dedicação à

família da mãe divorciada, a bondosa namorada jovem do pai. Entretanto, a

conversa não perdura além disso, a amiga precisou desligar. Mas ela simula

continuar a conversa ao samsung galaxy, pronuncia algumas frases e move a

cabeça como se falasse com alguém. Quer anular a desconfiança daquela sondagem

alheia, desnortear os pensamentos interrogativos do homem sentado adiante.

Dissimula os cem anos de solidão que está sentido, após a desavença com o

marido. Procurou no display de quatro polegadas, com resolução de 480 x 800

pixels, algumas notícias bizarras como, “um jovem se tornou sensação na web ao

ser registrado no que está sendo chamada “a selfie mais perigosa do mundo”,

feita durante uma corrida de touros em Houston, no estado do Texas (EUA). O

jovem foi flagrado segurando o celular virado para si mesmo, enquanto tentava

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escapar dos animais furiosos que corriam pela pista” — e vê a foto do jovem

correndo dos touros segurando na mão o celular apontado para a lateral de sua face

e, ao mesmo tempo, filmando os cornos do touro —, ela pensou que uma distração

destas poderia ter custado a vida dele: filmar a si mesmo em uma hora de extremo

perigo, somente para mostrar a frívola coragem aos amigos!

E ela começa a jogar Pacman.

Outros fregueses entram no restaurante. Um grupo de jovens senta-se a

mesa, na ala direita, uma família, com dois adolescentes, escolhe o lugar próximo

ao bufê. As mesas que se encontram entre eles continuam abióticas. Aumenta o

ruído de vozes e talheres tilintando, assim como a frequência do garçom que passa

para retirar a louça usada.

O homem se levanta várias vezes para ir até o bufê, ao contrário de sua

companheira que se levantou apenas uma vez, come pouco, e toma bastante café. A

mulher desconhece que o homem é casado há duas décadas com a mulher a sua

frente, não têm filhos, apenas dois gatos british shorthair, porque a esposa insistiu.

São funcionários públicos, possuem uma vida isenta de inseguranças financeiras,

viajam todo ano de férias para um país diferente, fazem cooper ao longo do

Volkspark e, entre outras atividades de lazer, vão ao cinema. Dialogam sobre o

filme Cosmópolis e o romance de Don DeLillo. “É a lógica do mercado que

controla tudo, é o crescimento progressivo e desenfreado do mundo capitalista que

leva ao inevitável colapso financeiro e psicológico”, o homem comenta com a

esposa. Ora mas o que isso tem a ver com a dramaturgia em relação à mulher que

está ali, mexendo apreensiva no celular? O homem desconhece que o banco, para o

qual o marido da mulher trabalhava, faliu e ele está há seis meses desempregado.

Não sabe que o marido dela está em casa sentindo-se desorientado e, por conta

disso, começou a fazer reformas inadiáveis no apartamento, como arrumar a

cozinha e pintar os quartos, e começou a beber. Mas que a razão verdadeira da

desavença com o marido não foi por causa da crise econômica que não deixa de

existir seja no começo, no meio ou no fim do século que for! Foi pela sensação de

distanciamento entre eles que há tempos arraigava-se. A constatação de que cada

um medrou para lados opostos, e os pequenos conflitos domésticos inflaram e

proliferam-se a ponto de não haver acordo nem mesmo para escolher a cor da tinta

de parede. Ela querendo ter filhos, ele não querendo, ela querendo viajar para a

América Latina, ele não querendo, ela querendo amarelo suave, ele cinza gelo. Ele

querendo ir morar em Ostfriesland, ela não querendo, ele querendo jogar vôlei, ela

aulas de tango, ele querendo chegar em casa e permanecer em frente ao

computador, ela conversar. Vivem em plena primavera de conflitinhos

desabrochados. Desvaneceram-se as recordações dos momentos em que seu corpo

correspondia ao dela como palha e chama. O erotismo dos beijos de língua no

fundo da boca, a vivacidade dos planos para o futuro, das risadas, dos encontros

com os amigos e com a família, das viajens, dos filmes assistidos, dos jantares, dos

passeios de bicicleta pelos campos de Ostfriesland viraram vestígios arqueológicos

na memória. Cada um se contraiu na sua invertebrada solidão, no interior do

automatismo espiral calcário, e vivem um com o outro, sem ser um para o outro.

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A marmelada adocicada de damasco francês combina com a fatia de queijo

brie! Seria mais fácil ter encomendado o Frühstück, com uma taça de sekt, e não

permanecer duas horas com uma xícara de cappuccino cuja espuma retarda a

esmorecer e insiste em existir como a floração das algas em uma gota de praia.

E também isso pode ser um risco, quando as horas se acumulam demais.

O homem conclui que a mulher estabelece algum misterioso pacto com as

horas. Certamente são cúmplices ou a tábua de salvação de algum naufrágio. De

qualquer forma, as horas têm um papel crucial, e ainda não imagina o que poderia

ser ou talvez imagine: o passar do tempo serve para deslocar as pedras.

Agora o homem se habituou à presença ausente da mulher, já não se sente

mais curioso. É como se há tempos conhecesse a tentativa dela de escalar as

paredes, os voos distantes que ela dispõe a efetuar, a aparente indiferença diante do

olhar questionador dele, a dissimulação com o samsung galaxy. A imagem da

mulher se integra no ambiente do restaurante, amadurece extemporânea no olhar do

homem, como fruta no pé, pronta para deixar de ser inacessível. Culpa dos minutos

que foram passando ávidos e refazendo as imagens e conclusões.

Ela se sente aliviada de não mais ser o alvo das observações do

desconhecido, deposita o celular sobre a mesa e entrega-se às intrínsecas quedas,

tomando um cappuccino frio.

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Norberto M. Callado

O irmão morreu em um acidente de automóvel ao regressar de uma festa de

casamento. A família estava dentro do carro. Por sorte, somente ele morreu. Não se

pode falar em sorte em um caso assim, mas sendo um caso assim, no qual a família

estava no automóvel, e a filha e a esposa ficaram presas na ferragem, esperando a

ambulância que demorava a chegar (porque nestes casos as ambulâncias, por mais

céleres que sejam sempre demoram a chegar), e somente um morreu, por causa do

pescoço —, falamos em sorte pelos outros estarem vivos e choramos quem morreu.

A colega de trabalho teve de viajar, às pressas, àquele país das cidades e

autoestradas violentas. Passou duas semanas cuidando do enterro, do luto, da viúva

que nunca trabalhou (o falecido era arrimo de família), das sobrinhas adolescentes

órfãs de pai. Quando a colega de trabalho regressou daquele país das cidades e

autoestradas violentas, chegou à repartição, os demais colegas foram lhe expressar

os pêsames, as palavras de ânimo, e a ouviram contar como tudo aconteceu: o

caminhão não desviou, provavelmente o caminhoneiro barrigudo, suado e mole,

dormiu ao volante. A família havia contratado um motorista justamente porque o

falecido beberia alguns copos de cerveja e caipirinha na festa. O falecido bebeu

cerveja e caipirinha, mas não era de perder o controle, ficava mais alegre e tagarela

do que o habitual, tirando as sobrinhas e as filhas para dançar forró. Elas queriam

dançar Justin Biber, mas cederam. O tio ou o pai era divertido, jovial. O motorista

contratado era um conhecido da família, homem confiável e abstêmio. A

autoestrada era perigosa, por esta razão pegaram um atalho. Neste atalho recém-

reformado, com sinalização, iluminação e asfalto bons era proibido andar

caminhões. O motorista contratado não imaginava que um veículo proibido fosse

se deslocar vertiginosamente para a frente do Fox, motor 1.6 VHT de 104 cv de

potência e 15,6 kgfm, direção hidráulica, roda aço 15”, de torque com etanol,

câmbio manual de cinco velocidades, e o Fox capotasse derrapando vários metros,

com as brilhantes faíscas do capô espocando no asfalto, como estrelinhas festivas,

chocar-se contra o ferro do acostamento que se rompeu e o carro rolar o matagal

íngreme, indo parar debaixo de um pequizeiro, – árvore comum na região mineira,

que farfalhava com o vento fresco e forte da noite fria.

Após o relato não houve mais pormenores sobre o destino e os planos da

família do falecido, a curiosidade havia sido saciada. Aos poucos, os colegas de

trabalho voltaram-se para as suas tarefas.

Anita Magdalena Teegen, uma mulher baixa, pele flácida, cabelos cor de

palha, separada, mãe de dois rapazes, sobressaíra-se na alcateia dos colegas

solícitos, com maior compaixão, movida pelo impulso altruísta de ternura para com

a desconsolada colega. Fez-lhe chá, ajudou-a com o arquivo, manteve a voz suave

ao lhe falar, e manifestou-lhe as três frases primordiais de condolências: sei que

você vai superar esta perda. Deus sabe o que faz e o que é melhor para cada um de

nós. Sei que dói muito perder alguém que amamos, mas não se preocupe, pois o

tempo cura todas as feridas. Anita Magdalena relaxou no serviço porque

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necessitava consolar a colega e exigia indiretamente que os outros também a

consolasse, mas não tanto quanto ela própria.

Imke Wulsten chegou a reclamar da pouca variedade de chá quando esteve

na cozinha, apenas preto e de hortelã. Mas calou-se antes da água borbulhar, o

vapor subir, pendurar-se no ar e desaparecer. Vendo que Anita Magdalena

preparava o chá Imke abriu a porta do armário para pegar um saquinho. — Não

gosto de nenhum destes dois! Não tem chá de frutas? Vou ter de comprar um e

guardar na minha sala. Mas quem é Imke para opor-se a alguma coisa? Imke, alta,

loira, cabelos compridos, lisos, esbranquiçados nas têmporas, divorciada, mãe de

uma filha adulta, é conivente com Anita Magdalena em tudo o que ela pensa ou

faz. O comentário foi para agradá-la, Imke sabe que a outra não gosta destes

sabores. Como esperado, Anita Magdalena concordou movendo a cabeça, embora a

pequena cozinha sem janela, com uma geladeira, um armário, um micro-ondas, um

fogão e uma mesa com espaço para duas cadeiras não fosse um mosteiro e ela

pudesse falar alto, fofocar, dar gargalhada como nos dias anteriores —, mas em

respeito à desconsolada colega usou a mímica, e a seriedade na fisionomia para

dizer que era preciso comprar outros sabores. E saiu levando o chá quente, como

uma enfermeira segurando um medicamento. Deparou-se com Francisco Saat, no

corredor, vindo em sua direção, ele lhe pediu o favor de também lhe preparar um

chá. O jovem solteiro é ciumento, ocioso, não perde a oportunidade de ser

incluindo nas amabilidades alheias.

— Francisco, este chá é especial. Não vou poder fazer um para você hoje.

Creio que você entende, não é?! Explicou-lhe Anita com controlada reprovação.

Francisco entendia, censurou a sua falta de tato, logo se recompôs, cogitou

levar também um chá para a desconsolada colega. E entrou em uma das sete salas

que era a sua. Mas pensando melhor: talvez Anita Magdalena lhe pudesse prepará-

lo mais tarde? Francisco não levou chá para a desconsolada colega, quem levou foi

a Imke e a desconsolada colega se viu com duas taças de chá em cima da mesa, e

não tomou nenhuma. Não gostava de chá. Mas disse que o tomaria mais tarde,

esperava esfriar um pouco.

O chefe chegou por volta das dez horas, também pronunciou as frases de

condolência à desconsolada colega e subiu, ao segundo andar, para a reunião da

chefia. Os funcionários entravam diversas vezes na sala do chefe no encalço da

assinatura dele, por isso o chefe possuía o hábito de trabalhar com a porta aberta.

Além disso, em uma moderna repartição pública não era necessário o controle

acirrado. Todos conheciam suas responsabilidades e funções, executavam suas

tarefas da melhor maneira possível. Mas na ausência de qualquer chefe todo

subalterno se sente mais à vontade, é um comportamento congênito impregnado no

DNA do subalterno, impossível de ser extraído. Com o retorno do chefe, pouco

antes do intervalo do almoço, a habitual rotina havia sido recuperada.

Um dos colegas, no entanto, não conseguiu restabelecer a rotina desde que

proferiu à desconsolada colega a única frase que lhe afluiu espontânea à mente:

meus pêsames! Queria ter dito ou feito algo que realmente confortasse e não soube

de que maneira. Compreendia que o peso das palavras consiste na leveza, a pesada

leveza torna as palavras persuasivas. Não é a sensatez o sentimento que faz a

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Humanidade progredir. A leitura de Rousseau, embora parca (apenas um artigo no

jornal abordando um livro do filósofo), havia lhe ensinado ser a compaixão o

sentimento fundamental para a evolução da Humanidade. Mas era tão difícil! Não

era o seu irmão que havia morrido, não era a sua família que estava aflita. Há muito

tempo não se deparava com a presença da morte nas proximidades de seu

cotidiano.

Existem cidades onde a morte é algo corriqueiro, fazendo as pessoas

perderem a sensibilidade para a dor alheia, para o valor da vida. Norberto

Mendonça Callado viveu em uma cidade assim, em que os acidentes de automóvel

matam por minuto. A cada semana, ao ir ao trabalho ou ao regressar do trabalho,

Norberto via um corpo coberto por jornal estendido no piche ou na sarjeta das

avenidas. A ponta do jornal, que não estava empapada de sangue flutuava leve,

inócua e inofensiva movida pelo vento. Os acidentes eram diversos e milhares,

como atropelar o jovem de bicicleta, arrancar-lhe o braço direito, fugir do local do

acidente dirigindo em alta velocidade, e estacionar o automóvel adiante para jogar

no lixo o braço do jovem caído no banco traseiro, no estofado sujo de sangue.

Continuar se distanciando do local do acidente até ficar tão longe como se o

culpado nunca tivesse passado por ali. O jovem sem braço sobreviveu, um moço de

dezoito anos, quarto filho de uma família de migrantes do sul, cursando mecânica

industrial. O braço nunca foi encontrado e sem braço o jovem não poude continuar

o curso de mecânico. Ninguém soube se o culpado pelo acidente aprendeu que não

se joga braço de gente no lixo, que deve ser conservado em saco plástico com gelo

ou envolvido em pano limpo, guardado em um recipiente com gelo, até seis horas

após a amputação. Desta forma o braço podia ser reimplantado no corpo. Depois de

seis horas é tarde demais!

Ou nestas cidades violentas sucediam os homicídios notificados na

televisão, na rádio, ou no portão da vizinhança, ou no hall de entrada dos edifícios.

Os homicídios eram de recrudescente e hedionda banalidade, iníquos até o

extremo, como atear fogo em uma jovem dentista, em seu consultório, porque ela

não teve dinheiro no banco no instante em que foi roubada. Os assaltantes

assassinos pegaram o cartão de banco dela, obrigaram-na a revelar a senha. Ao

tentarem sacar o dinheiro na caixa automática, não tinha. Voltaram ao seu

consultório, onde a deixaram amarrada e amordaçada na cadeira, e lhe atearam

fogo. A jovem dentista era filha única, com trinta e um anos, possuía um

empréstimo no banco utilizado para abrir o consultório novo, e ela fazia o

expediente até oito ou nove horas da noite, e nos sábados, para pagar o empréstimo.

Existem países que transformam a vida do indivíduo em algo insignificante

e substituível.

Há vários anos que Norberto M. Callado não vive em uma cidade violenta.

Onde reside atualmente são raros os acidentes de automóvel e os homicídios. Aqui

as pessoas morrem de velhice, sozinhas, no conforto de um modesto apartamento

alugado. Faz anos que ele não toma conhecimento de uma notícia funesta, como a

que a colega lhe deu há duas semanas.

Norberto M. Callado mora sozinho, é divorciado, possui um filho de quinze

anos que reside em uma cidadezinha, no sul do país. Ele raramente visita o filho. É

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cansativo viajar oito horas de trem, fazer conexão na estação ferroviária principal

para pegar o trem regional. Ou é cansativo viajar uma hora de avião, em seguida

com o trem regional até a cidadezinha. Ou é dispendioso alugar um automóvel.

Sendo assim, quase não visita o seu único filho, mantém apenas um contato

esporádico pelo telefone. A família e os parentes vivem no país das cidades e

autoestradas violentas, com eles também mantém apenas um contato esporádico

pelo telefone.

Ele não conseguiu se concentrar nas tarefas porque não sabia como não

parecer hipócrita tendo apenas dito uma única curta frase, e não tendo nada de

diferente a acrescentar. Teve medo de dizer algo mais profundo e aquele fundo ser

atingido por alguma lasca de palavra ígnea, emergir de lá um pranto de compaixão

instantâneo e forte. Queria ter os olhos secos, mostrar segurança e força. Como não

alcançou nada disso, isolou-se em sua sala e se concentrou na tabela Excel.

Norberto M. Callado executava com afinco suas tarefas, nem sequer saiu

para o almoço, comeu um sanduíche de queijo com tomate, que ele preparou na

estreita cozinha. Logo voltou à sala para mergulhar na planilha de controle de

almoxarifado e inventário, para registrar, fiscalizar e gerir a entrada e saída de

material.

A administração do controle do almoxarifado ou do inventário é importante,

se não for bem dimensionada é possível ficar sem material. Um serviço efetuado

por Norberto durante vinte e um anos teve agora o grande peso da responsabilidade

caído sobre os seus ombros como duas mãos grossas de gigante, como as mãos que

tecem o rude trabalho, compelindo-o a permanecer de porta fechada, encerrado nos

limites do cárcere voluntário, conferindo e calculando. Sem poder evitar que os

demais colegas imaginassem que ele seria insensível, esquisito, ambicioso a ponto

de não querer ser molestado pelos outros passando pelo corredor, encontrando a

triste colega, também passando pelo corredor, sendo alvo de um sorriso solidário e

de conforto. Sobretudo Anita Magdalena fazia resplandecer o seu semblante de

piedade.

Norberto não. Norberto M. Callado se mantinha cada vez mais retraído na

sala, como se a liberdade fosse um pequeno cubículo sufocado pelas estantes com

as pastas, a mesa cheia de documentos, o computador ligado, a lâmpada acesa, o

carpete escuro com duas nódoas pós-modernas de café, próximas ao pé da mesa, a

cadeira giratória de rodinhas, Interstuhl Champ 3C02, o telefone mudo. Ninguém

precisou falar com Norberto, ninguém entrou em sua sala, ninguém sentiu falta

dele circulando pelo corredor, como os demais colegas trabalhando de porta aberta,

falando alto, atendendo ao telefone, entrando e saindo um da sala do outro.

A triste colega se envolveu com as papeladas e consultas, ignorou suas

próprias olheiras escuras, a aparência cansada, e secava uma lágrima e outra que

escapava imperceptível, ansiosa para que terminasse esta segunda-feira e o seu

marido pudesse vir buscá-la de carro, com os três filhos, para irem jantar no

restaurante preferido da família.

No interior da sala do Norberto o silêncio se dilatava como se estivesse

vazia, embora o ruído esporádico de Norberto digitando algo no teclado se

expandisse na quietude do espaço e o tempo abrangesse todas as formas de matéria

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e energia ali. O som proveniente do lado oposto da porta cerrada penetrava no

ambiente abafado pela madeira de pinho compensada unidirecional, como se viesse

de um habitat distante, o eco de um passo acarpetado verde musgo ou de uma

palavra desmanchada se fragmentava na fresta inferior da porta. Norberto pouco se

dava conta dos sinais originários do escritório em pleno funcionamento.

Permaneceu a tarde inteira sentado em frente ao computador ou rodava com a

cadeira à esquerda onde ficava a mesa abarrotada de papeis inúteis que Norberto

ainda não tinha jogado no lixo: minutas, documentos inválidos, cópias e anotações.

A organização de Norberto se limitava a juntar os papeis em uma pilha. Uma ou

duas vezes ao ano, antes de sair de férias, fazia uso da praticidade do cesto de lixo.

Norberto M. Callado não deixou a sua sala nem mesmo para ir ao banheiro

em nenhum momento desta tarde. Dava a impressão de que nunca mais seria apto a

abandonar o refúgio e fosse viver para sempre entre as quatro paredes de sua sala.

O tempo para Norberto havia se prolongado, os ponteiros do relógio se

arrastavam, se houvesse um relógio com ponteiros. Norberto controlava o tempo

mirando o canto direito inferior da tela do computador onde os números passavam

devagar, um por cima do outro, como tartarugas cegas e cansadas. No entanto,

poucos minutos antecedentes ao final do expediente o tempo encolheria.

Isolado em sua sala, Norberto era a metáfora de um astronauta gravitando

desconectado da nave, perdido no espaço estrelado. Anita Magdalena era uma loba

alfa rondando a porta da sala do Norberto, sorrateira procurava escutar as

atividades de Norberto, ansiosa para se certificar da esquisitice do colega e

propagar aos demais a atitude benéfica dela para a desconsolada colega.

Imke chegou a criticar o distanciamento do Norberto quando foi pegar água

na cozinha e encontrou Anita Magdalena, — ele nem sequer lhe dirigiu mais a

palavra. Mas quem é ela para reclamar? Só fez o comentário porque Anita

Magdalena mencionou algo semelhante ao lhe entregar uma cópia.

— Pelo que eu sei, ele só falou bom dia para ela. Não procurou ajudá-la em

nada e se fechou na sala. Parece que nem veio trabalhar hoje. Que falta de

compaixão!

O dia do outro lado da janela escurecerá lentamente, a garoa diagonal e

metálica cairá no final do expediente, no instante em que Norberto caminhará um

quarteirão, ao longo do parque predileto dos corvos que se põem a crocitar e a

sobrevoar rente à cabeça dos passantes nas calçadas. Norberto carregará dentro da

mochila o guarda-chuva portátil, os óculos de grau usados nos dias nublados e

crepúsculos queimados cinza como cinzas, nos quais enxerga tudo embaçado. E se

irritará com os corvos pousados nas copas dos plátanos, caminhando pelo gramado

ou sobrevoando a sua cabeça. Norberto tem medo da ave feia, escura, com o bico

fino e comportamento ameaçador. Justamente no horário que ele termina o

expediente e sai da repartição precisa andar por aquela calçada, à margem do

parque, onde a ave ou demônio que negrejas aparece em bando! Norberto virará a

esquina, mais à frente, para descer devagar as escadas, com o seu pesado corpo

obeso, e entrará na estação do metrô.

Mas não é hora de se prever a garoa programada para o final do dia ou o

cansaço que dominará o corpo de Norberto e a sua mente, após um dia de trabalho

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extenuante. Ele executará o serviço de dois dias em apenas um, no estrito período

de oito horas. O metrô virá atrasado e lotado. Ele esperará o próximo, mas também

este virá cheio sendo impossível conseguir um lugar para se sentar. Norberto ficará

em pé os quarenta minutos do trajeto até a sua estação, onde descerá e caminhará

dois quarteirões até o seu prédio. Chegará em casa abatido pela exaustão, com forte

dor de cabeça, febre e fome. Após o banho, a sopa em lata de frango com legumes,

tomará a aspirina e se deitará cedo, sem assistir ao noticiário e à série policial.

Na repartição, Norberto M. Callado se sentiu angustiado o dia inteiro, sem

querer se sentir angustiado, sem saber o que fazer para não se sentir angustiado —,

um náufrago na ínfima ilha no oceano da imperfeição e vulnerabilidade humana.

Porque consolar não é uma arte para qualquer um. E não conseguir

concretizar o seu propósito não é exclusivo dos fracos. E fraco nem sempre é

aquele que deseja fazer o bem e não consegue. E o bem não é sempre aquilo que

está explícito, pode também estar implícito em um gesto não composto ou em uma

palavra tácita. E uma palavra tácita não é sempre o silêncio ou uma palavra não

dita, pode ser um isolar-se em uma sala e trabalhar. E trabalhar não é sempre

cumprir com as obrigações, pode ser contemplar da janela os voos brancos, o

grasnar das gaivotas, um barco esperando abrir as comportas da eclusa para seguir

adiante, o vento movendo as folhas das árvores ancoradas na margem do canal, os

bancos plantados de frente ao encrespar d´água, os funcionários das empresas

sentados nos bancos tomando sol gelado a espera de findar a hora do almoço. E

contemplar pode ser refletir alguns eternos minutos sobre a perda de cada um em

nós e a nossa perda em cada um.