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letiraturasurda

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  • ARTIGO Literatura, Letramento e Prticas Educacionais

    Grupo de Estudos e Subjetividade

    ETD Educao Temtica Digital, Campinas, v.7, n.2, p.98-109, jun. 2006 ISSN: 1676-2592. 98

    LITERATURA SURDA Lodenir Becker Karnopp RESUMO O objetivo do presente artigo proceder a uma anlise dos livros de literatura infantil Cinderela Surda e Rapunzel Surda, focalizando os sentidos produzidos sobre identidades e diferenas. As anlises desses livros pretendem contribuir para a discusso da produo de uma literatura surda, que est vinculada s discusses sobre cultura e identidade. Na investigao desses materiais, os textos e as imagens produzidas evidenciam que os autores buscam o caminho da auto-representao do grupo de surdos, atravs da luta pelo estabelecimento do que reconhecem como suas identidades e suas diferenas. Tais evidncias esto no uso da lngua de sinais, em suas formas de narrar as histrias e/ou de adaptar histrias clssicas, tendo como base suas formas de existncia, suas formas de ler, traduzir, conceber e julgar os produtos culturais que consomem e que produzem. PALAVRAS-CHAVE Literatura surda; Cultura; Identidade; Lngua de sinais. DEAF LITERATURE

    ABSTRACT This article aims to present an analysis of the fairy tales, Deaf Cinderella and Deaf Rapunzel, focusing on the meanings produced from identities and differences. The analyses of these two books intend to give a contribution to the discussion on the production of deaf literature, which is linked to the discussions on culture and identity. In the investigation of these books, the texts and the images produced show that the authors seek the path to self- representation of the deaf community, through the struggle for the establishment of what they recognize as their identities and differences. Such evidences are in the use of sign language, in their ways of narrating their stories and/or of adapting classic fairy tales, having as a basis their existential ways of being, their ways of reading, translating, conceiving and judging the cultural products which they consume and produce. KEY WORDS Deaf literature; Culture; Identity; Sign language

  • ARTIGO Literatura, Letramento e Prticas Educacionais

    Grupo de Estudos e Subjetividade

    ETD Educao Temtica Digital, Campinas, v.7, n.2, p.98-109, jun. 2006 ISSN: 1676-2592.

    Nas ltimas trs dcadas, investigaes nas reas da educao e da lingstica tm

    proporcionado discusses sobre gramtica da lngua de sinais, sobre cultura e identidade surda

    (FERREIRA BRITO, 1993; QUADROS, 1997; SOUZA, 1998; SKLIAR, 1998, 1999;

    KARNOPP, 1999; PERREIRA, 2002; QUADROS e KARNOPP, 2004). Tais discusses

    tornam fecundas as reflexes e revelam tambm uma diversidade de concepes sobre surdo,

    lngua de sinais, ensino, cultura e fazer pedaggico. Especificamente no panorama brasileiro,

    possvel constatar ainda que para muitas pessoas torna-se irrelevante e, para outras,

    decididamente incmoda, a referncia a uma cultura surda. Em menor grau ainda, se discute

    a existncia de uma comunidade de surdos. Talvez seja fcil definir e localizar, no tempo e no espao, um grupo de pessoas; mas quando se trata de refletir sobre o fato de que nessa comunidade surgem ou podem surgir processos culturais especficos, comum a rejeio idia da cultura surda, trazendo como argumento a concepo da cultura universal, a cultura monoltica. No me parece possvel compreender ou aceitar o conceito de cultura surda seno atravs de uma leitura multicultural, ou seja, a partir de um olhar de cada cultura em sua prpria lgica, em sua prpria historicidade, em seus prprios processos e produes. Nesse contexto, a cultura surda no uma imagem velada de uma hipottica cultura ouvinte. No seu revs. No uma cultura patolgica. (SKLIAR 1998, p. 28).

    Em geral, em um contexto escolar ou clnico onde no se tolera a lngua de sinais

    e/ou a cultura surda h um completo desconhecimento dos processos e dos produtos que

    determinados grupos de surdos geram em relao ao teatro, ao brinquedo, poesia visual,

    literatura em lngua de sinais etc...

    A nfase na dimenso centralizadora de uma cultura universal tem impossibilitado

    que crianas surdas possam ter uma insero em processos culturais existentes em

    comunidades de surdos. Por outro lado, so escassos, nos contextos escolares, materiais que

    tematizem a diversidade cultural, tendo em vista a possibilidade de leitura de outros textos, de

    outras imagens e de outras histrias do que significa ser diferente. Enfim, uma abordagem

    que possibilite outras representaes sobre os surdos.

    Ao afirmarmos que os surdos brasileiros so membros de uma cultura surda no

    significa que todas as pessoas surdas no mundo compartilhem a mesma cultura simplesmente

    porque elas no ouvem. Os surdos brasileiros so membros da cultura surda brasileira da

    mesma forma que os surdos americanos so membros da cultura surda norte-americana.

    Esses grupos usam lnguas de sinais diferentes, compartilham experincias diferentes e

    possuem diferentes experincias de vida. No entanto, h alguns valores e experincias que os

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    surdos, independente do local onde vivem, compartilham, ou seja: todos so pessoas Surdas

    vivendo em uma sociedade dominada pelos ouvintes. (WILCOX e WILCOX, 2005, p. 78).

    No falamos de literatura surda como algo localizado, fechado, demarcado. Falamos

    no sentido que Heidegger imprimiu aos locais da cultura quando considera que Uma

    fronteira no o ponto onde algo termina, mas, como os gregos reconheceram, a fronteira o

    ponto a partir do qual algo comea a se fazer presente( BHABHA, 2005, p. 19)

    A literatura surda comea a se fazer presente entre ns, se apresentando talvez como

    um desejo de reconhecimento, em que busca um outro lugar e uma outra coisa. A literatura

    do reconhecimento de importncia crucial para as minorias lingsticas que desejam afirmar

    suas tradies culturais nativas e recuperar suas histrias reprimidas. Esse fato, entretanto,

    nos aponta os perigos da fixidez e do fetichismo de identidades no interior da calcificao da

    cultura surda, no sentido de trazer um romanceio celebratrio do passado ou uma

    homogeneizao da histria do presente. No estamos falando de literatura surda no sentido

    de oposio ouvinte, mas direcionamos nossa anlise perspectiva apontada por Bhabha

    (2005) quando afirma privado e pblico, passado e presente, o psquico e o social

    desenvolvem uma intimidade intersticial. uma intimidade que questiona as divises binrias

    atravs das quais essas esferas da experincia social so freqentemente opostas

    espacialmente (BHABHA, 2005, p. 35). Ou, ainda, na perspectiva de Bauman (2005, p. 82): Sim, a identidade uma idia inescapavelmente ambgua, uma faca de dois gumes. Pode ser um grito de guerra de indivduos ou das comunidades que desejam ser por estes imaginadas. Num momento o gume da identidade utilizado contra as presses coletivas por indivduos que se ressentem da conformidade e se apegam a suas prprias crenas (...) e seus prprios modos de vida (que o grupo condenaria como exemplos de desvios ou de estupidez, mas, em todo caso de anormalidade, necessitando ser curados e punidos). Em outro momento o grupo que volta o gume contra um grupo maior, acusando-o de querer devor-lo ou destru-lo, de ter a inteno viciosa e ignbil de apagar a diferena de um grupo menor, for-lo ou induzi-lo a se render ao seu prprio ego coletivo, perder prestgio, dissolver-se... Em ambos os casos, porm, a identidade parece um grito de guerra usado numa luta defensiva: um indivduo contra o ataque de um grupo, um grupo menor e mais fraco (e por isso ameaado) contra uma totalidade maior e dotada de mais recursos (e por isso ameaadora). Ocorre, contudo, que a faca da identidade tambm brandida pelo outro maior e mais forte. Esse lado deseja que no se d importncia s diferenas, que a presena delas seja aceita como inevitvel e permanente, embora insista que elas no so suficientemente importantes para impedir a fidelidade a uma totalidade mais ampla que est pronta a abraar e abrigar todas essas diferenas e todos os seus portadores.

    Assim, a literatura surda tem apontado o hibridismo cultural. Peter Burke (2003, p.

    53) cita Edward Said e considera que hoje, o termo hibridismo aparece com freqncia em

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    estudos ps-coloniais. Neste sentido, todas as culturas esto envolvidas entre si e nenhuma

    delas nica e pura, todas so hbridas, heterogneas. nessa perspectiva que tratamos a

    literatura surda.

    Um outro ponto que gostaramos de destacar que consideramos oportuna a

    realizao de estudos que problematizem, nos textos literrios, os discursos que apresentam a

    surdez como deficincia, como falta, como patologia. Entendemos que esses discursos

    produzem e reproduzem representaes que interferem diretamente nas prticas educacionais

    e sociais. Nenhuma linguagem neutra, nenhuma linguagem "brota da natureza"... Ela

    marcada pelas contingncias pragmticas, pelas prticas dos sujeitos que a criam e recriam

    continuamente (SILVEIRA 2002, p. 20).

    A nfase na anlise dos discursos, utilizada na presente anlise de textos de literatura

    infantil sobre surdos, est vinculada a uma dimenso produtiva dos discursos, alinhada a uma

    abordagem que inspirou os Estudos Culturais e os estudos ps-estruturalistas a chamada

    virada lingstica, cuja nfase o papel central conferido linguagem nos fenmenos

    sociais. A linguagem passou a ser considerada como constituidora da realidade e no como

    um simples reflexo, sendo que uma das funes da anlise do discurso, na vertente da anlise

    crtica de inspirao foulcaultiana, passou a ser a anlise da forma de regular socialmente a

    produo discursiva em nossa sociedade (LUKE, 2000; FAIRCLOUGH 2001; GILL 2002

    etc...).

    Diferentes artefatos culturais so produzidos no sentido de dar sustentao a

    determinados discursos sobre os surdos. Entre eles, destacamos a literatura infantil que est

    presente em diferentes contextos sociais, sendo a escola um espao privilegiado da leitura

    desses materiais. Nos ltimos anos, essa literatura tem sido foco de pesquisas na rea da

    educao justamente por sua insero e disseminao nas escolas, entre professores e alunos,

    tanto como material de instruo como de lazer.

    Alm disso, so praticamente inexistentes textos de literatura infantil que tematizem a

    questo da lngua de sinais e da cultura surda. Quais so os livros que apresentam as

    narrativas que circulam entre os surdos? Quais histrias so contadas e recontadas em lnguas

    de sinais na comunidade surda? Que representaes dos surdos e da surdez esto presentes

    nessas narrativas?

    O objetivo do presente texto proceder a uma anlise dos discursos sobre os surdos e

    a surdez presentes nos textos e imagens da literatura infantil, focalizando os sentidos

    produzidos sobre identidades e diferenas. Alm dessa investigao, pretende-se registrar a 101

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    experincia de produzir histrias em lngua de sinais, atravs da publicao em verso

    bilnge (lngua de sinais brasileira e lngua portuguesa) desse material, com o objetivo de

    discutir tambm as temticas recorrentes, a representao de surdos e da surdez que surgem

    nas histrias investigadas.

    As anlises dos livros de literatura infantil, bem como o registro das histrias

    sinalizadas, pretendem contribuir para a discusso sobre a produo da literatura surda, que

    est vinculada discusso sobre cultura e identidade.

    Pesquisas que objetivam registrar, escrever, filmar e divulgar a produo literria de

    surdos encontram, em geral, os seguintes dilemas: as dificuldades da traduo ou talvez o

    desconhecimento da lngua de sinais e das situaes cotidianas dos narradores, do significado

    de suas lutas, de sua lngua, dos costumes, da experincia visual e das situaes bilnges.

    possvel, no entanto, encontrar formas de escrever e apresentar as histrias que traduzam a

    modalidade visual que os surdos utilizam para narrar suas histrias de vida, piadas, mitos,

    lendas..., sem perder o movimento que as mos produzem, as expresses corporais e faciais

    que vo construindo e desvendando o enredo, as personagens, o cenrio. Para isso,

    acreditamos que necessrio produzir material bilnge (lngua de sinais e lngua portuguesa),

    coletar histrias contadas por surdos e garantir a participao de surdos e intrpretes no

    processo de traduo de histrias sinalizadas. Interessa-nos, portanto, na anlise de materiais

    que estamos produzindo e analisando, fazer um registro do mundo surdo de suas diferenas

    lingsticas e culturais e trazer tona o cotidiano, as lutas, e as reivindicaes lingsticas,

    sociais e educacionais dessa comunidade.

    Cabe considerar que inmeras histrias so contadas em lnguas de sinais pelos

    surdos, mas que no so registradas em livros para a divulgao e leitura das mesmas em

    escolas de surdos e na comunidade em geral. Nesse sentido, utilizamos a expresso

    literatura surda para histrias que tm a lngua de sinais, a questo da identidade e da

    cultura surda presentes na narrativa. Literatura surda a produo de textos literrios em

    sinais, que entende a surdez como presena de algo e no como falta, possibilitando outras

    representaes de surdos, considerando-os como um grupo lingstico e cultural diferente.

    A LIBRAS uma lngua visual-gestual e recentemente seus usurios tm utilizado a

    escrita em seu cotidiano. Sign Writing a forma de registro das lnguas de sinais e raras so

    as obras literrias produzidas atravs dessa escrita. No entanto, na LIBRAS, encontramos

    uma vasta e diversificada histria de literatura popular, presentes em associaes de surdos,

    em escolas, em pontos de encontro da comunidade surda. Grande parte dessa literatura tem 102

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    sido registrada em fitas de vdeo na LIBRAS ou, ento, traduzida para a lngua portuguesa. As

    narrativas, os poemas, as piadas e os mitos que so produzidos servem como evidncias da

    identidade e da cultura surda. Wilcox e Wilcox (2005, p. 101) afirmam: A comunidade

    surda bilnge. H muitos trabalhos em ingls de poetas Surdos, escritores de peas,

    novelistas e ensastas que os estudantes de segunda lngua podem ler com o intuito de se

    familiarizarem com a cultura e a experincia Surda.

    De todo modo, alm do Sign Writing, a escrita da lngua portuguesa hoje faz parte do

    mundo surdo, indispensvel aos surdos brasileiros para a defesa dos seus interesses e

    cidadania. H quem pense que a escrita pode contribuir para a destruio da riqueza em

    sinais; mas a escrita, por si s, no necessariamente um fator contrrio. Pode-se pensar na

    escrita como a busca por traduo das razes culturais, associada a outras formas de arte,

    como teatro e vdeo.

    Alm da escrita, outras formas de documentao, como filmagens so fundamentais

    para o registro de formas lingsticas que vo se perdendo ou se transformando. Para uma

    comunidade de surdos manter o leque de possibilidades artsticas e expresses da lngua de

    sinais, os registros visuais so indispensveis na criao de bibliotecas visuais e podem

    contribuir para uma escrita posterior, com tradues apropriadas.

    O SURDO NOS TEXTOS LITERRIOS

    fato que, em geral, os livros de literatura infantil tm diferenas entre si, segundo a

    criatividade dos compiladores, sua compreenso do grupo estudado, dos costumes, da lngua.

    raro, por inmeros motivos, que as obras registrem e resgatem o cotidiano de pessoas

    surdas. Silveira (2000), ao concentrar sua anlise na produo de livros de literatura infantil

    que tematizam a surdez, verificou que os autores retratam o surdo como deficiente auditivo,

    perfeitamente integrado comunidade ouvinte, sendo usurio de uma lngua oral. No texto

    Contando histrias sobre surdo(as) e surdez, a autora1 analisa sete livros destinados s

    crianas em que essa temtica se faz presente e conclui que a viso dos surdos e da surdez em

    tais obras se compe a partir da representao medicalizada, vista como deficincia, mas

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    1 Os livros analisados por Silveira (2000) foram: Audio (SUHR & GORDON, 1998); Os cinco sentidos (BOSMANS, 1997); A gente e as outras gentes (LIMA, 1995); Nem sempre posso ouvir vocs (ZELONKY, 1988); A letreria do dr. Alfa Beto (CARR, 1988); Dor de dente real (TRABBOLD, 1993); O livro das palavras (AZEVEDO, 1993).

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    supostamente compensvel pelo uso do aparelho auditivo e pela leitura labial, conjugando-

    se tais aspectos a uma viso compensatria da deficincia. No se pode deixar de registrar, entretanto, que todos os livros analisados foram escritos por ouvintes, que narram a surdez a partir de seus filtros sociais, de suas experincias de certa forma alheias ao cerne da vivncia culturalmente imersa na surdez. (SILVEIRA 2000, p. 202)

    Alguns materiais tm surgido recentemente, aproximando a tradio em sinais com as

    formas escritas. Um exemplo disso o livro de literatura infantil Tibi e Joca uma histria

    de dois mundos (BISOL 2001), que narra a histria de um menino surdo em uma famlia

    com pais ouvintes que comeam a usar a lngua de sinais. O texto explora o visual (o

    desenho) e, alm da histria registrada na lngua portuguesa, h um boneco-tradutor que

    sinaliza a palavra-chave que vai dando seqencialidade histria. Outros exemplos so os

    livros Cinderela Surda (HESSEL; ROSA; KARNOPP 2003), Rapunzel Surda

    (SILVEIRA; ROSA; KARNOPP 2003), Ado e Eva (ROSA; KARNOPP 2005) e Patinho

    Surdo (ROSA; KARNOPP 2005) que registram histrias dos clssicos da literatura, a partir

    de uma cultura visual, em que ocorre uma aproximao com as histrias de vida e as

    identidades surdas. Concentraremos nossa anlise, neste texto, nos livros Cinderela Surda e

    Rapunzel Surda.

    Traduzir as histrias que so contadas em lngua de sinais na comunidade de surdos

    foi o objetivo inicial dos autores dos livros de Cinderela Surda e Rapunzel Surda. Para

    isso, foram filmadas algumas histrias contadas em lngua de sinais, durante a programao

    da comunidade surda na Feira do Livro de Porto Alegre. As histrias narradas por surdos

    foram traduzidas para a Lngua Portuguesa com a participao constante de dois surdos e uma

    intrprete.

    CINDERELA SURDA E RAPUNZEL SURDA

    Cinderela Surda e Rapunzel Surda so duas histrias que fazem uma releitura dos

    clssicos da literatura e apresentam aspectos da lngua, cultura e identidade. A apresentao

    dos textos est numa verso bilnge, ou seja, as histrias esto escritas em portugus e

    tambm na escrita da lngua de sinais (Sign Writing). As ilustraes acentuam as expresses

    faciais e os sinais; elementos que traduzem aspectos da experincia visual.

    Sobre os livros de literatura surda, no Brasil, Lebedeff (2005, p. 179) afirma:

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    As propostas anteriormente descritas foram extremamente vlidas, pois eram os primeiros passos de uma tentativa brasileira de aproximao da literatura com a cultura surda. Entretanto, foi apenas em 2003 que apareceram no mercado editorial os primeiros textos impressos escritos por surdos e para surdos que refletem aspectos interessantssimos da cultura surda, atravs de uma intertextualidade intencional.

    A anlise feita por Lebedeff (2005, p. 179) inclui o texto e as imagens das duas

    histrias infantis. Diz a autora: Os textos, que so duas histrias infantis Cinderela Surda (...) e Rapunzel Surda (...) foram escritos por dois estudantes universitrios surdos e por uma Doutora em lingstica que apresentam no texto inseres que vo desde dados da histria dos surdos como adaptaes das histrias cultura surda. Por exemplo, no texto da Cinderela surda o prncipe estuda no Instituto de Educao de Surdos de Paris, com o Abade de L Epe (...) que foi a primeira instituio escolar para surdos, bem como um defensor do ensino atravs da lngua de sinais, inaugurando um mtodo denominado gestualismo ou mtodo francs (Snchez, 1990). Outra adaptao bem interessante realizada na Cinderela Surda o fato de que a protagonista deixa cair sua luva no baile, no o sapato (Fig. 2). Com certeza, as mos so muito mais importantes e o cair da luva emprega muito mais dramaticidade para os surdos do que perder um sapato.

    Sobre Cinderela Surda, alm dos itens analisados por Lebedeff, importante

    mencionar o fato de que foi proposital a referncia infncia da menina Cinderela e do

    prncipe. O texto assim inicia: Cinderela e o prncipe eram surdos e aprenderam a Lngua

    de Sinais Francesa quando eram pequenos (HESSEL; ROSA; KARNOPP, 2003, p. 6). A

    necessidade de explicar que Cinderela aprendeu a Lngua de Sinais com a comunidade de

    surdos, nas ruas de Paris, evidencia a forma como a maioria dos surdos adquire e desenvolve

    sua lngua, ou seja, uns com os outros, em lugares informais, com outros usurios dessa

    lngua. Outro fato recorrente na comunidade surda o de compartilhar as histrias de vida, ou

    seja, se nasceu surdo, quando entrou em contato com outros surdos, quando comeou a usar a

    lngua de sinais etc...

    Na histria de Cinderela Surda, os personagens heris Cinderela, o prncipe e a fada

    so surdos. A criao desses personagens aponta ao leitor a necessidade de se pensar a

    possibilidade de se utilizar uma outra lngua na sociedade. Uma lngua que no permanea

    nos pores, mas que esteja em evidncia, para ser vista, para ser utilizada, para ter prestgio.

    Na histria h ainda o registro da ateno visual dos personagens surdos ao ambiente,

    por exemplo, quando o relgio marcasse meia-noite, Cinderela deveria voltar para casa. A

    moa ficou atenta ao relgio da parede. Diz o texto: De repente, Cinderela olhou para o relgio da parede e viu que j era quase meia noite. Com medo ela fez o sinal de TCHAU e saiu correndo. O prncipe segurou

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    sua mo e ficou com uma luva, enquanto ela tentava sair correndo. (HESSEL; ROSA; KARNOPP, 2003, p. 24)

    A insero da luva, em substituio ao tradicional sapatinho de cristal, est associada

    ao smbolo por excelncia da comunidade surda. A utilizao de luvas brancas em

    manifestaes polticas e sociais bastante freqente. Luvas remetem s mos, que apontam

    os sinais e a lngua dos surdos.

    Rapunzel Surda tematiza a aquisio da linguagem e a variao lingstica nas

    lnguas de sinais. Quando nasceu, a menina foi raptada pela bruxa e viveu muitos anos

    isolada em uma torre. Diz o texto: Passaram-se os anos, Rapunzel cresceu e a bruxa percebeu que a menina no falava, mas tinha uma grande ateno visual. Rapunzel comeou a apontar para o que queria e a fazer gestos para muitas coisas. A bruxa ento descobriu que a menina era surda e comeou a usar alguns gestos com ela. (SILVEIRA; ROSA; KARNOPP, 2003, p. 12)

    Isolada em uma torre, Rapunzel tinha contato somente com a bruxa. Essa histria faz

    referncia aos estudos de aquisio de linguagem que salientam que crianas surdas, expostas

    lngua de sinais, adquirem de forma espontnea tal lngua. Nessas situaes, crianas surdas

    adquirem a lngua de sinais que est sua volta sem nenhuma instruo especial, pois esto

    em ambiente lingstico adequado. Elas comeam a produzir sinais, mais ou menos na

    mesma idade em que as crianas ouvintes comeam a falar, e apresentam um

    desenvolvimento lingstico adequado, ou seja, crianas surdas produzem balbucio manual,

    enunciados com um nico sinal, enunciados com dois sinais e, a partir da combinao de

    sinais, comeam a formar sentenas simples. No entanto, na histria de Rapunzel, no h um

    ambiente lingstico para a aquisio e o desenvolvimento da lngua de sinais, no h usurios

    da lngua at que ela encontre o prncipe e tenha assim contato com a lngua visual-gestual.

    Naquele ambiente, ela utilizava alguns gestos ou apontava para o que queria.

    Duas histrias que tematizam a importncia da lngua, cultura e identidade surda.

    Remetem-nos tambm, essas histrias, ao fato de os surdos pertencerem a uma comunidade

    que, em situao de fronteira, acarreta.

    Estar total ou parcialmente deslocado em toda parte, no estar totalmente em lugar algum (ou seja, sem restries e embargos, sem que alguns aspectos da pessoa se sobressaiam e sejam vistos por outras como estranhos), pode ser uma experincia desconfortvel, por vezes perturbadora. Sempre haver alguma coisa a explicar, desculpar, esconder ou, pelo contrrio, corajosamente ostentar, negociar, oferecer e barganhar. H diferenas a serem atenuadas ou desculpadas ou, pelo contrrio, ressaltadas e tornadas mais claras. As identidades flutuam no ar, algumas de nossa prpria escolha, mas outras infladas e lanadas pelas pessoas em nossa volta, e

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    preciso estar em alerta constante para defender as primeiras em relao s ltimas. H uma ampla probabilidade de desentendimento, e o resultado da negociao permanece eternamente pendente. Quanto mais praticamos e dominamos as difceis habilidades necessrias para enfrentar essa condio reconhecidamente ambivalente, menos agudas e dolorosas as arestas speras parecem, menos grandiosos os desafios e menos irritantes os efeitos. Pode-se at comear a sentir-se cheiz soi, em casa, em qualquer lugar mas o preo a ser pago a aceitao de que em lugar algum se vai estar total e plenamente em casa. (BAUMAN, 2005, p. 19-20)

    A experincia de viver em contato com duas ou mais lnguas pode possibilitar o

    movimento das pessoas em universos lingsticos diferentes. Alm disso, essa constante

    transgresso de fronteiras pode lhes permitir

    [..]espiar a inventividade e a engenhosidade humanas por trs das slidas e solenes fachadas e credos aparentemente atemporais e intransponveis, dando-lhes assim a coragem necessria para se incorporar intencionalmente criao cultural, conscientes dos riscos e armadilhas que sabidamente cercam todas as expanses ilimitadas. (BAUMAN 2005, p. 20)

    CONCLUSO

    A literatura surda est presente na comunidade surda e socialmente relevante o

    registro dessas histrias, pois pode proporcionar, principalmente s escolas, um material

    baseado na cultura das pessoas surdas. O trabalho de registro de histrias contadas por

    surdos, apresenta toda a complexidade exposta anteriormente. primeiro passo, porm,

    registrar a fico e o imaginrio dessa comunidade, envolvendo surdos e tradutores, no

    registro das histrias em sinais.

    Nas histrias analisadas, os autores buscam, enfim, o caminho da auto-representao

    do grupo de surdos na luta pelo estabelecimento do que reconhecem como suas identidades,

    atravs da legitimidade de sua lngua, de suas formas de narrar as histrias, de suas formas de

    existncia, de suas formas de ler, traduzir, conceber e julgar os produtos culturais que

    consomem e que produzem.

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    LODENIR BECKER KARNOPP Doutora em Lingstica e professora adjunta do Curso

    de Letras e do Programa de Ps-graduao em Educao da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA, Canoas, RS). Intrprete da Lngua de Sinais Brasileira.

    E-mail: [email protected]

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    LITERATURA SURDALodenir Becker Karnopp

    RESUMOPALAVRAS-CHAVEDEAF LITERATURE

    ABSTRACTKEY WORDSCINDERELA SURDA E RAPUNZEL SURDALODENIR BECKER KARNOPP