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LAURENCE PARA SEMPRE u m f i l m e d e X AV I E R D O L A N Adaptation : la gachette

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LAURENCE PARA SEMPRE

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Festival de Cannes 2012 Un Certain Regard Prémio de Interpretação Feminina (Suzanne Clément)

Festival Internacional de Cinema de Toronto Prémio Cidade de Toronto – Melhor Filme Canadiano

u m f i l m e d eX A V I E R D O L A N

LAURENCE PARA SEMPRE

LE MONDECAHIERS DU CINÉMA LES INROCKS LE FIGAROSCOPELIBÉRATION

Nos anos 90, Laurence anuncia à namorada, Fred, que deseja tornar-se numa mulher.

Contra todas as adversidades, e até contra si próprios, enfrentam o preconceito dos amigos, ignoram as advertências das suas famílias, e con-frontam as fobias da sociedade que estão a ofender.

Tentam, durante 10 anos, sobreviver a esta transição e embarcam numa viagem épica que, sem que o saibam, poderá custar a Fred e Laurence a sua relação.

S I N O P S E

Nos anos 90, vivi com a minha mãe nos arredores de Montréal. Na escola, eu era uma estrela com o privilégio de faltar às aulas para poder participar, uma vez por outra, num anúncio publicitário ou num filme. Do ponto de vista dos meus colegas, eu fazia parte do mundo do espectáculo. A verdade é que a minha relação com o cinema era superficial: tirando os clássicos da Disney, a minha iniciação à Sétima Arte limitou-se às grandes produções de Hollywood, eficazes mas sem alma, dobradas em francês, que o meu pai me levava a ver (muitas vezes para apreciar a qualidade da dobragem, que era como ele ganhava a vida). A minha mãe nunca gostou destas excursões, por desconfiar da influência que esses filmes poderiam ter em mim. Mais tarde, fui-me convencendo de que ela os terá responsabilizado pela minha adolescência violenta e indisciplinada.

Apesar de tudo isso, foi a minha mãe que me levou ao meu baptismo cine-matográfico. Em Dezembro de 1997, tinha eu 9 anos, fui com ela ao, infelizmente já de-saparecido, Le Parisien. Ao longo dessa noite, senti como se estivesse a passar a alta velocidade por todas as “primeiras vezes” que a vida tem para oferecer: apaixonei-me por um homem, por uma mulher, pelo guarda-roupa, pelos cenários, pelas imagens... Senti a agitação que acompanha uma genuína e ambiciosa grande história, contada com respeito pelas regras, mas também inteligente, épica e sensacional.

Não exagero se falar em choque cinematográfico, e percebi nesse momento que tinha de aprender a falar inglês o mais rápido possível, para poder representar em filmes americanos. Foi também nesta altura da minha vida que comecei a vestir mais séria e frequentemente a roupa da minha mãe, sem que ela alguma vez me tivesse im-pedido. Passava cada vez mais tempo dentro da minha imaginação, evitando o mundo real no qual me sentia rejeitado pelos outros miúdos da minha idade, coleccionando falsos amigos graças à minha notoriedade, e criando uma carapaça de arrogância que me isolava. Este choque cinematográfico foi, só recentemente me apercebi disso, uma revelação: não só sabia agora que queria que queria ser actor e realizador, mas, tal como este filme espantoso que acabara de ver, queria que os meus projectos e sonhos fossem ilimitados, e desejava que o amor inabalável que eu testemunhara no ecrã fosse, um dia, meu.

Quinze anos mais tarde, vejo LAURENCE PARA SEMPRE, e noto que é a repre-sentação secreta da minha infância. Mas quero ser claro: não desejo tornar-me numa mulher e o meu filme é uma homenagem à derradeira história de amor: ambiciosa e impossível, um amor que imaginamos sensacional, infinito, um amor que não ousamos desejar, um amor que apenas os filmes, os livros e a arte oferecem.

LAURENCE PARA SEMPRE é uma homenagem ao período da minha vida, antes de me tornar realizador, em que tive de me tornar num homem.

X A V I E R D O L A NN O T A D O R E A L I Z A D O R

Fred está em choque. Fred está em fuga para a frente. A identidade sexual de Laurence alterou-se. Começou do zero. Alterou a identidade sexual do casal. E foi um grande abanão para a identi-dade de Fred. Mas eles nem sequer o sabem. São prisioneiros um do outro. Fred podia ter levado uma outra vida. Fred é uma mulher que se atira de cabeça. Fred gosta de ser uma mulher que se atira de ca-beça. Apesar de si própria e dos outros. Ela tem dúvidas, ela acredita, ela salva-se. Ela sabota-se a si própria. Fred perdeu o homem da sua vida. Ele não morreu, ele não desapareceu.

Contudo, é como se enfrentasse a morte: Fred e Laurence já não exis-tem. Fred é uma mulher à deriva, à procura da sua identidade.

L A U R E N C E A L I A

F R E D B E L A I R

M E L V I L P O U P A U D

S U Z A N N E C L É M E N T

V I S T A S P E L O S A C T O R E SA S P E R S O N A G E N S

Laurence James Emmanuel Alia... Laurence Alia... Laurence. 35 anos de idade? 41? 45? Homem, depois mulher.

Laurence parece viver num estado impossível. Aquilo que rapida-mente ficamos a compreender é que este é um homem corajoso. Um herói. Um super-herói que se disfarça de mulher para melhor conseguir enfrentar o mundo e as suas injustiças. Para que os outros possam fi-nalmente vê-lo como ele se vê a si próprio. Com a ajuda de um par de aliados (Fred, a mulher da sua vida, e a literatura) e finalmente capaz de viver a vida que quer, Laurence opta por lutar: contra o olhar moralista dos outros, contra as instituições, o preconceito e a intolerância. Contra a própria natureza. Laurence vai levar esta batalha até ao fim, até dentro de

si próprio, até finalmente perceber qual é o seu lugar no mundo. Qual é, realmente, o seu lugar. Porque, é verdade, Laurence é uma mulher corajosa, que acredita na liberdade. Ou, ainda mais simples, a liberdade de existir.

Julienne tinha sonhos e ambições, gostava de rir e tinha, indubitavelmente, algum talento.

Mas os anos foram passando, e o amor extinguiu-se. Ju-lienne retirou-se da vida. Afastou-se dos acontecimentos, dos outros, de si própria. A sua enorme tristeza marcou-a profunda-mente, embruteceu-lhe a memória, tornou-lhe o presente inex-istente. Nada acontece, nada a comove. Discutir com o marido parece ser a única coisa que a desperta deste coma, quase como que um choque de violência, apesar da sua passividade geral.

Talvez Julienne se tenha tornado no seu próprio fantasma, mas Laurence precisa da sua mãe, por mais imperfeita que ela possa ser. O filho está a transformar-se numa mulher? E depois? Porque não? Ela já viu isto antes. Nada a surpreende, nada a choca. Julienne rendeu-se à velhice há muito tempo... Já não tem esperança.

E contudo...

O Xavier ofereceu-me o papel de Stéfanie em 2009, dois anos antes de o filme ser feito. Passei muito tempo a sonhar com ela, a imaginá-la.

Stéfanie representa, antes de mais, aquele laço único e pro-fundo que estabelecemos com a família. Elas são as pessoas que nos conhecem intimamente, são a definição de amor incondicional. Stéfanie é sociável, primária, protectora e adora a irmã, Fred. É um cão de guarda. Educada no seio de uma família tradicional, revoltou-se contra a normalidade. Como todos os marginais – especialmente aqueles que foram abençoados com um saudável sentido de sacrifício – recriou-se a si própria, rejeitando tudo aquilo que dela era esperado e foi, por isso, rejei-tada pela mãe. A filha de burgueses conservadores tornou-se lésbica, femini-sta, desprezando a sua educação recorrendo à vulgaridade e ao niilismo. Em teoria, deveria ser a melhor amiga de Laurence. Paradoxalmente, custa-lhe muito aceitar que este marginal tenha um lugar na privacidade da sua família.

Como todas as personagens de Xavier, a melhor forma de se expressar e ser compreendida é através do seu brilhante sentido de humor, que é, julgo eu, uma bem-vinda contribuição para o cânone brilhante e irreverente deste autor.

J U L I E N N E A L I A

S T É F A N I E B E L L A I R

N A T H A L I E B A Y E

M O N I A C H O K R I

Num filme onírico como LAURENCE PARA SEMPRE, a música é a antí-tese de um ornamento – é uma das estrelas.

Os cenários, o guarda-roupa, os diálogos, os penteados, os adereços... Tudo o que rodeia os actores é como uma erva daninha que pode ser arran-cada a qualquer momento se estiver a interferir com os desempenhos. E, de-pois, desaparece, se assim for necessário. Mas a música não é palpável, não está lá quando estamos a filmar, não obedece a ninguém, não sente pressão para agradar. A música também não é um pretexto para o realizador exibir a sua colecção de discos. Além de oferecer um contributo rítmico no continuum espaço-tempo de um filme que atravessa uma boa parte da década, estas canções acompanham as minhas personagens ao longo das suas vidas, em-bora possam não corresponder ao meu gosto pessoal. Estas canções relem-bram às personagens quem elas são, e quem amaram. Elas revelam o que foi esquecido, mitigam os medos, recordam as personagens das mentiras sem importância e das ambições esquecidas. A música é a única constante nas variáveis das suas vidas.

E para nós...A música chega-nos com condições e consequências, como uma com-

pleta estranha ou exibindo um ar de suspeita familiaridade. Tem sobre nós o poder de usar as nossas emoções privadas para tornar os seus objectivos públicos. É o único elemento cinematográfico que não é controlado pelo re-alizador, actores ou operadores de câmara, que assombra a história do filme até à sua exibição na sala de cinema, onde todos os indivíduos, que trazem a sua própria relação pessoal com as canções, contextualizam para si próp-rios a música. Há algo de profundamente satisfatório quando vemos um filme feito por alguém que não conhecemos, mas a quem de repente nos ligamos através da partilha íntima de uma canção, de segredos, sonhos de criança, momentos passados a caminhar pela rua, a ouvir a mesma canção vezes sem conta, convencendo-nos do nosso valor, momentos passados a tentar apanhar o comboio, a enterrar a nossa mãe, ou a chorar por causa de um romance de Verão.

Diz-se que a música é alma de um filme por uma única razão: é a der-radeira partilha com os espectadores.

A M Ú S I C A

Pareceu-me natural que este filme se desenrolasse na década que me educou. Julgo que a década final do século XX era o terreno ideal para dar à luz um filme sobre género: nesta época, os preconceitos acerca da homossexualidade começavam a desa-parecer, o pânico começava a dar lugar a uma compreensão acerca da crise da SIDA, a Cortina de Ferro começava a cair, e era oferecida liberdade a um mundo em choque. Tudo era permitido.

Para Laurence Alia, parece a altura lógica para sobreviver e prosperar. Mas a sua transexualidade, talvez o último dos derradeiros tabus, leva-o a descobrir um novo mun-do de telhados de vidro.

Mesmo hoje, um professor transexual é motivo de preocupação para os pais, que receiam que os filhos sejam expostos a ideais e estilos de vida anti-conformistas. Mesmo a pessoa mais sofisticada tem prazer em apontar para um transexual no meio da rua. Os guetos identitários ainda são hostis para o terceiro sexo.

Se a transexualidade representa a derradeira expressão da diferença, ou da alteri-dade, então os anos 90 oferecem o ponto de vista perfeito - 12 anos depois – para per-cebermos quão longe, ou não, chegámos. LAURENCE PARA SEMPRE deseja participar, ainda que fugazmente, neste debate.

MONTRÉALMontréal é um lugar cosmopolita e sofisticado. O ambiente desta cidade, mesmo

nos anos 90, pareceu-me o lugar perfeito para dar início à aventura de um homem que deseja tornar-se numa mulher.

A arquitectura pouco heterogénea e não original da cidade oferece uma paisagem ordenada e barroca, os guetos miseráveis e arredores insularizados ilustram os diversos universos que se acotovelam neste filme: os burgueses, os marginais, o burlesco. Mon-tréal oferece tanta diversidade que quase somos levados a acreditar na possibilidade de coabitação pacífica.

Mesmo que Montréal, particularidades à parte, pareça a típica cidade norte-americana da Costa Leste, é, contudo, um lugar único: ocasionalmente taciturna, mas animada por uma população curiosa, ingénua, embora poliglota, com uma humildade e inexperiência típicas do Québec, contudo mundana na ambição e sede de viver.

Para mim, todas as histórias começam em Montréal. Quando escrevo, gosto de saber as coisas de cor: os nomes das ruas, as lojas, as casas que as rodeiam, e as ati-tudes das pessoas que as habitam.

Ainda em crescimento e aspirando à idade adulta, Montréal é um lugar inspirador, cheios de pessoas esperançosas. Um lugar onde as ideias e os ideais não sentem ver-gonha, porque a cidade ainda não os envergonhou.

O lugar ideal para Laurence e para o seu plano sobrenatural.

O S A N O S 9 0

Qual foi a sua inspiração para este filme ?

Estávamos a regressar a Montréal, depois de dois dias de rodagem de “J’ai Tué Ma Mère” no campo. Eu vinha de carro com a Anne Dorval e alguns elementos da equipa. Estávamos a falar disto e daquilo quando uma das assistentes de guarda-roupa desatou a falar de um antigo amante. Uma noite, o namorado disse-lhe que queria tornar-se numa mulher. Tive a impressão que este choque, sem dúvida diferente para cada casal que passa por ele, não era um exclusivo dela. Mas pelo tom da sua voz, as suas emoções e a honestidade com que ia falando, consegui imaginar o que seria ter um amigo, um familiar ou um amante que, de um dia para o outro, desafia o impossível e, por isso, lança uma terrível suspeita sobre todos os momentos partilhados em conjunto. Nessa noite, escrevi 30 páginas. Sabia que título teria e como seria o final. Apesar de tudo ter avançado rapidamente, fui escrevendo lentamente, entre filmes, quase sempre à noite, no sul dos Estados Unidos. Pensando melhor, numa série de estados diferentes.

À semelhança de “J’ai Tué Ma Mère” e “Amores Imaginários”, este é também um filme autobiográfico?

Sim e não. Não, porque eu não sou transexual. Essa questão está arrumada. E sim, completa-mente, porque todos os meus filmes até à data – e não consigo imaginar que venha a ser diferente no futuro – são autobiográficos ou, pelo menos, profundamente pessoais. É-me impossível não confiar e seguir o meu instinto no que toca aos meus filmes. Em boa verdade, não acredito que exista verdadeira ficção em cinema. Existe invenção, mas o realizador não resiste a pôr um pouco de si nos seus filmes. Eu, por acaso, ponho imenso [de mim], para o melhor e para o pior. Quero lá saber se soa egocêntrico ou narcisista. Recuso-me a aborrecer as pessoas falando sobre coisas que desconheço, coisas que não domino. Não sou nem preguiçoso nem pouco ambicioso, mas, por agora, prefiro ficar-me pelas coisas que conheço: o conforto do auto-conhecimento, a severidade do julgamento dos outros, contra o qual lutamos sozinhos, sem amigos ou aliados. As pessoas que viram os meus filmes podem ter a certeza que me conhecem pessoalmente. Quando comecei a fazer filmes foi, em grande parte, para ter trabalho como actor, para garantir que ninguém se esqueceria de mim. Mas depois, quando comecei a realizar, apercebi-me que esse receio iria prevalecer neste trabalho. É nesse sentido que todos os meus filmes são, em certa medida, autobiográficos, porque ninguém é ingénuo ao ponto de recusar a oportunidade de deixar a sua marca ao longo da vida. Nós oferecemos as nossas memórias individuais ao altar da memória colectiva para não sermos esquecidos, e dessa forma entregamo-nos à vida real que segue o seu curso, naturalmente. E filme após filme, vamos lembrando cada vez menos e viramo-nos para nós próprios. E, em breve, os nossos filmes só falarão de cinema.

E N T R E V I S T A

Neste seu terceiro filme, escolheu rodear-se de profissionais com mais experiência, nomeadamente no design de produção e na fotogra-fia. Foi o elevado orçamento do filme – LAURENCE PARA SEMPRE custou oito vezes mais que “J’ai Tué Ma Mère” – que o fez ir ao encontro destes veteranos?

De todo. Apenas fiquei entusiasmado com a ideia de trabalhar com pessoas tal-entosas – sejam actores, técnicos, artistas ou operadores de câmara – e estou mais interessado nos seus instintos, gosto e conhecimento do que o seu ego ou humildade. De filme para filme, vamos construindo uma equipa. Uns ficam, outros saem. Há muito tempo que queria trabalhar com o Yves Bélanger, que é director de fotografia. É um artista louco. É bem-falante, apaixonado e culto – fomos ao encontro um do outro. A Anne Pritchard, a designer de produção, é muito criativa e sofisticada. Já trabalhou com o Louis Malle, e o de Palma. Nunca a vou deixar. E o François Barbeau, que desenhou oito peças do guarda-roupa do filme, é um mestre com quem ainda tenho muito para aprender. Seria estúpido sentir-me intimidado por pessoas com tanta experiência para oferecer e partilhar. Juntos, podemos tornar um filme melhor, transformá-lo, fazê-lo ex-pandir e contrair até ao mais pequeno detalhe. Para ser franco, não me dou tão bem com pessoas da minha idade. Parece ser uma constante não intencional da minha vida. E receio que pudesse desrespeitar um director de fotografia que tivesse 25 ou mesmo 30 30 anos. No Belanger, na Pritchard e no Barbeau, a inteligência e a experiência são tão óbvias que somos forçados a ouvir, perceber e calar a porra da boca.

Além de ser o argumentista e o realizador do filme, também criou o guarda-roupa e fez a montagem. Esta abordagem poderá ser um sinal de um estilo polivalente e de uma forma de fazer filmes auto-centrada?

Autocentrada...? Hum, sim. Viagem ao centro de mim próprio, vamos lá! Sim, a minha abordagem pode definir-se, em boa medida, como polivalente. Mas será isso negativo? E eu paro sempre quando sei que estou a ir além das minhas capacidades. O cinema é a sétima arte e a soma das outras seis. A moda, claro, é a filha esquecida desta história. Em todo o caso, creio que nos devemos interessar por todas elas para podermos compreendê-las. Estou a aprender gradualmente a dominar duas ou três delas, e estou radiante por poder incorporar as outras sem ter de ser eu a fazê-lo. Afinal de contas, optei pelas mais onerosa de todas as artes, e parece-me lógico que, muito embora um filme seja concebido por uma única cabeça, ganhe forma através de um colectivo.

Após um visionamento de “Amores Imaginários” na Bélgica, uma senhora disse-me que se eu continuasse a fazer “tudo” nos meus filmes, arriscava-me a afundá-los, já para não falar de me estar a privar do talento dos outros e a privar os outros de trabalho. Ela estava genuinamente ofendida por este sentimento de individualismo. Eu respondi que o que as outras pessoas precisavam era de fazer os seus próprios filmes, e que, quando eu estou a trabalhar no meu filme, sou livre de fazer o que bem entender, sobretudo quando julgo que tenho algum talento para mostrar ou, pelo menos, alguma coisa de pessoal.

O guarda-roupa e a montagem são dois departamentos completamente diferentes, e tomei-os a meu cargo porque ambos me apaixonam. Um pintor não pinta com um colorista, um especialista em texturas, um consultor técnico, um executivo responsável pelos pincéis e um encarregado de limpar cavaletes. No cinema, o processo requer a colaboração de outros artistas. Mas, idealmente, continua a ser o filme de uma única pessoa, de um criador.

Quais foram as suas influências neste filme ?

Durante a preparação deste filme, comprei dezenas de revistas e livros de arte e fotografia no MOMA [Museu de Arte Moderna de Nova Iorque], e em diferentes lojas da especialidade em Nova Iorque e Montréal. Encomendei várias revistas de moda e docu-mentação no eBay e na Amazon, para fazer pesquisa para o guarda-roupa. Tenho de referir a [influência de] Nan Goldin, de forma geral, além de centenas de outros fotógra-fos cujos nomes agora não me recordo. E Matisse, Tamara de Lempicka, Chagall, Picas-so, Monet, Bosch, Seurat, Mondrian (para os enquadramentos), Klimt (para o esquema de cores, a uniformidade cromática de certas partes do filme: o período castanho, o período dourado, o período malva). Em relação a filmes, há um tributo muito breve, mas bem preciso, a Marlon Brando em “Um Eléctrico Chamado Desejo”, e uso frequente-mente grandes planos que foram inspirados em “O Silêncio dos Inocentes” de Jonathan Demme (pouca profundidade de campo, câmara fixa, a sensação de estar a ser obser-vado, grande proximidade). Quanto ao ritmo e à ambição, fui inspirado por “Titanic” de James Cameron.

Seja como for, tudo o que leio, vejo ou oiço é motivo de inspiração, mesmo que não seja do meu gosto ou estilo – julgo que é bastante normal. Tudo o que é belo, co-movente e bem acabado deveria, em teoria, inspirar-nos através de palavras e imagens espontâneas. E não tenho nenhum complexo com isto porque sei que aquilo que me in-spira não é o que me influencia, apenas comove-me. Admirar algo que exerce influência sobre nós, através da sua destilação no nosso universo, nos nossos sonhos, na nossa linguagem, na nossa geração, nos nossos valores, nas nossas feridas, nas nossas re-spectivas fantasias... O que é frequente emergir é algo diametralmente oposto àquilo que entrou, ao ponto de a inspiração se tornar irreconhecível. É o “telefone estragado” da imaginação. Em tudo o caso, já se fez tudo antes.

Enquanto realizador, tenho muitas ambições, mas nunca fingirei ter inventado um estilo ou uma escola de pensamento. Desde os anos 30 que já tudo foi feito. Então e agora? Cheguei à conclusão que o meu trabalho é contar uma história e contá-la bem, dar a essa história uma direcção que lhe assente bem e que seja merecedora dela. O resto, seja inventado ou roubado, é a simples prova de que não há nada mais difícil do que ter uma ideia.

C R Í T I C A S

[...] LAURENCE PARA SEMPRE em nada rompe com o que Dolan já nos mostrou. Barroco nas formas, ocasionalmente histriónico nos diálogos e com alma de grande teledisco, o filme acompanha retalhos da vida de um professor que vive um dia a dia arrumado. Trabalho, uma relação estável... Mas que desde sempre sentiu que nascera com o corpo errado. O processo de transição, a forma como a mulher com que vive, a família e colegas reagem evoluem entre saltos no tempo, porém sob uma condução narrativa que partilha um permanente diálogo com uma demanda de sons e imagens que faz afinal do filme um corpo que se afirma essencialmente como uma experiência estética (o que não significa, note-se, um abafar do tema, antes juntando esse texto ao contexto, um diluindo-se no outro).

Se a personalidade compósita que é expressão natural de uma linguagem em formação na era da informação – onde tantos dados circulam e podem ser assimilados – tem aqui a sua mais evidente expressão de um “eu” ainda em construção, as citações continuam a morar sem receio no cinema de Xavier Dolan. Das folhas que caem do céu como no “Written In the Wind” de Douglas Sirk ao desfile de rostos e poses como na versão do teledisco de “Fade To Grey” dos Visage que está disponível no DVD antológico da banda, LAURENCE PARA SEMPRE herda elementos de uma genética que, afinal, é o DNA que constrói este olhar. Junta-se ainda a música de uns Fever Ray, Depeche Mode, Tindersticks, Kim Carnes, Beethoven ou Duran Duran (dando maior visibilidade que nunca ao brilhante “The Chauffeur”, a canção do álbum Rio que nunca foi single – e devia ter sido), somam-se olhares que por vezes abandonam a medula da narra-tiva para observar gentes e lugares ao seu redor e uma espantosa composição do protagonista por Melvil Poupaud, e encontramos em LAURENCE PARA SEMPRE uma das melhores supresas deste ano. É que, depois do passo em falso de “Amores Imaginários”, a ambição evidente deste projeto poderia ter acabado num verdadeiro tropeção. Pelo contrário, e mais que nunca, mostra porque em Xavier Dolan podemos encontrar uma das vozes mais interessantes da sua geração.

N u n o G a l o p i m , S O U N D + V I S I O N

No cinema falsamente superficial de Dolan há um duplo impulso: um estilo rui-doso e uma distância irónica (...) que formam uma vizinhança discordante e sempre em ruptura. Os seus filmes lembram uma boca com lábios pintados de vermelho, de onde jorram cruéis verdades sobre o amor, os sentimentos e a dificuldade de viver.

Com LAURENCE PARA SEMPRE, o jovem realizador do Québec Xavier Dolan arrisca-se a surpreender aqueles que viram os seus dois primeiros filmes (“J’ai Tué Ma Mère” e “Amores Imaginários”). LAURENCE PARA SEMPRE é, para nós, o seu melhor.

[...] O seu gosto por cores vivas dá à mais pequena cena uma estilização procurada e desejável: a do glamour hollywoodiano. Os seus excessos de juventude e a sua megalomania encontram aqui um sentido, na sua obstinação de querer, a qualquer preço, reunir dois seres humanos que não podem ser unidos. [...] No fundo, Dolan regressa a um certo cinema, o de um período um pouco incerto na Hollywood do início dos anos 70, presa entre o fim do clas-sicismo e o início da modernidade (...). Ele restitui a este género um pouco menor uma certa juventude e novidade.

O filme que daqui resulta é um monstro desconcertante. De um lado, a fúria barroca (...). Do outro, um bom e velho melodrama familiar que está à altura do cânone: primado do romanesco, exposição límpida do conflito, respeito pelo fio narrativo, diálogos apurados, cenas de coragem patéticas.

J e a n - P h i l i p p e T e s s é , C A H I E R S D U C I N É M A

J e a n - B a p t i s t e M o r a i n , L E S I N R O C K U P T I B L E S

J a c q u e s M a n d e l b a u m , L E M O N D E

Ao trabalhar com dois estupendos actores – Melvil Poupaud e Suzanne Clement – [Dolan] cria uma relação no ecrã que soa autêntica e transborda de emoção.

Em Maio, em Cannes (...) Xavier Dolan declarava à [agência noticiosa] AFP que a sua terceira longa-metragem era a sua obra “mais bem conse-guida, mais completa, mais acessível e mais comovente “. Passemos ao lado do carácter presunçoso deste juízo. O realizador do Québec de apenas 23 anos tinha razão.

No mínimo, é um manifesto arrojado apontado aos críticos que, como eu, disseram que o realizador era só estilo e pouca substância.

M i k e G o o d r i d g e , S C R E E N I N T E R N A T I O N A L

C l é m e n t G h y s , L I B É R A T I O N

K a r i n a L o n g w o r t h , L . A . W E E K L Y

Melvil Poupaud Laurence AliaSuzanne Clément Fred BelairNathalie Baye Julienne AliaMonia Chokri Stéfanie BelairSusie Almgren A jornalistaYves Jacques Michel LafortuneSophie Faucher Andrée BelairMagalie Lépine-Blondeau CharlotteDavid Savard AlbertCatherine Bégin Mamã RoseEmmanuel Schwartz Baby RoseJacques Lavallée Dada RosePérette Souplex Titi RosePatricia Tulasne Shookie Rose

Argumento & Realização Xavier DolanProduzido por Lyse LafontaineDirectora de Produção Carole MondelloCo-produtores Nathanäel Karmitz, Charles GillibertDirector de Fotografia Yves Bélanger, C.S.C.Música Original NoiaChefe de produção Anne PritchardGuarda-roupa Xavier DolanGuarda-roupa Original François BarbeauMontagem Xavier DolanGravação de Som François GrenonDirector de Som Sylvain BrassardMistura de Som Olivier Goinard

M i k e G o o d r i d g e , S C R E E N I N T E R N A T I O N A L

F I C H A A R T Í S T I C A

F I C H A T É C N I C A

K a r i n a L o n g w o r t h , L . A . W E E K L Y

Canadá/ França, 159’, 35mm, Cor, 1,33:1, Dolby Digital, 2011

Distribuído por Alambique

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