lampião e ricardo iii: o sertão medieval

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Lampião e Ricardo III Lampião e Ricardo III: O sertão medieval, hipertextual e intercultural

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Luiz ZanottiLuiz Zanotti

Lampião e Ricardo IIILampião e Ricardo III:

O sertão medieval,

hipertextual

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

L953/Z33

Zanotti, Luiz, 19....-  Lampião e Ricardo III: o sertão medieval,hipertextual e intercultural

Edit. Catrumano - São Paulo,SP

2016116 p. : 21 cm

  ISBN :

1. História. 2. Literatura. 3. Lampião. 4. Cangaço. 5. Ricardo III.

CDD 900

978-85-64471-48-1

Copyright Luiz Zanotti

1ª Edição

Diagramação/ Arte final / Design

 Jurandir Barbosa

Revisão/ Copy Desk

Dr . Marli Silva Fróesª

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INTRODUÇÃO

O presente livro tem como base o projeto quefoi desenvolvido durante o período do meu estágio pós-doutoral na Universidade Federal de Minas Gerais(UFMG), de 01.08.2013 a 31.07.2014, sob asupervisão da Prof. Dra. Thaïs Flores Nogueira Diniz, pesquisadora com reconhecimento nacional einternacional no campo dos estudos de intermida-

lidade, interculturalidade, tradução e performance daobra de Shakespeare.

 Lampião e Ricardo III: O sertão medieval,hipertextual e intercultural , busca, através dos artigoselaborados, apresentar a interessante correlaçãoexistente entre o sertão nordestino brasileiro e o

 período feudal inglês, no sentido de relatar a sua basemedieval, a carnavalização, as influências geográficas,o fenômeno do cangaço, a intermidialidade e a inter-culturalidade.

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 Neste sentido, o projeto que inicialmente visavaampliar o âmbito das pesquisas sobre traduções

intersemióticas e culturais, no que tange aos estudos da produção cênica brasileira shakespeariana no Brasil,através da peça Sua Incelença Ricardo III   (2010),dirigida por Gabriel Vilela, em seu decorrer, incluiunovas obras para análise, tais como, a adaptaçãofílmica  Ricardo III   (1992), de Richard Loncraine, oespetáculo teatral Virgulino e Maria:  Auto de Angicos 

(2008), de Amir Haddad, o romance gráfico Lampião e Lancelot   (2008), de Fernando Vilela, Deus e o diabona terra do sol (1964) de Glauber Rocha e até mesmo ogrande romance de Guimarães Rosa Grande sertãoveredas (1958).

Estas inclusões foram fundamentais, tanto para

o estudo da intermidialidade ao comparar umespetáculo teatral com uma produção fílmica e osromances tradicional e gráfico, como levantou as possibilidades de exemplificar o cruzamento deculturas, mas especificamente entre a brasileira e a britânica, bem como ressaltar os aspectos demedievalidade, três características apontadas pelo projeto.

O primeiro artigo “A MULTIPLICIDADEINTERPRETATIVA EM GRANDE SERTÃO:VEREDAS ATRAVÉS DE UM DIÁLOGO ENTREWOLFGANG ISER E GUIMARÃES ROSA”apresenta exatamente a possibilidade de um sertãomultifacetado a partir dos conceitos de vazio,

negatividade e indeterminação apresentados peloteórico alemão Wolfgang Iser nas suas obras O ato deleitura v.1. (1996) e O ato de leitura v.2. (1999).

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A seguir, trazemos “ Ricardo III : entre o sertãomedieval e a Inglaterra dos anos 30”, uma análise da

tradução intersemiótica e cultural da obra de WilliamShakespeare através da montagem brasileira Sua Incelença Ricardo III   que foi dirigida por GabrielVilela (2010), comparando com a versão fílmica damesma obra dirigida por Richard Loncraine (1995), eestrelado por Ian McKellen. A mesma adaptaçãofílmica serve para analisar a exacerbação da violência

através dos artigos “A exacerbação da violência emRicardo III: de Shakespeare à Mckellen” e “RichardIII, Auto de Angicos e a intermediação da violência”,que compara a violência através da relação intermidialentre o cinema e o teatro.

Finalmente, “O Lampião de Fernando Vilela:nem herói, nem facínora... demasiadamente humano”

elabora uma interessante comparação cultural entre osertão medieval de Lampião e a Inglaterra medieval deSir Lancelote através de imagens dos anos 30,mostrando o caráter ambivalente das personagens, e principalmente de Lampião, que geralmente écaracterizado ou como um herói ou como um facínora,ou seja, enquanto para alguns autores, o cangaceiro éapresentado somente através de seu lado positivo deum revolucionário em luta contra o coronelato, paraoutros, o seu lado negativo de um bandido sanguinárioé ressaltado. Estas duas abordagens fazem como que a personagem perca toda possibilidade de uma análisemulti-interpretativa, o que a aproxima de uma visãocartesiana, onde se procura encontrar a verdade atrásde uma certa aparência.

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1. A multiplicidade interpretativa em

Grande Sertão: veredas através de

um diálogo entre Wolfgang Iser e

Guimarães Rosa..................................................

2. Ricardo III: entre o sertão medieval

e a Inglaterra dos anos 30...................

3. A exacerbação da violência em

Ricardo III: de Shakespeare à

Mckellen..........................................................................

4. Richard III, Auto de Angicos e a

intermediação da violência.................

5. O Lampião de Fernando Vilela:

nem herói, nem facínora...

Demasiadamente humano................

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1. A MULTIPLICIDADE INTERPRETATIVA EM GRA

SERTÃO: VEREDAS  ATRAVÉS DE UM DIÁLOGO EN

WOLFGANG ISER E GUIMARÃES ROSA

A teoria de Iser (1996, 1999) analisa o efeitoestético como relação dialética entre texto e leitor, umainteração que ocorre entre ambos, ou seja, ainda que setrate de um fenômeno desencadeado pelo texto, aimaginação do leitor é acionada, para dar vida ao que otexto apresenta e reagir aos estímulos recebidos. Neste

sentido, uma teoria do efeito estético é complementar auma estética da recepção.

(...) do ponto de vista epistemológico, essametáfora da interação designa uma instânciatextual que guia a recepção do texto e um leitorque "processa" ativamente o texto. Para Iser,quando produtiva, essa interação entre duasinstâncias (agencies) se apóia na negatividade ena indeterminação enquanto modos de contato. Da mesma maneira que um texto bem-sucedidoultrapassa as fronteiras das determinaçõeshistóricas e culturais, uma leitura produtiva processa e, com isso, muda ativamente o que é"manifesto" num texto. A determinação nos

decepciona num texto tanto quanto numa leitura.(...) qualquer transferência bem-sucedida dependedo limite até o qual o texto consegue ativar as faculdades que tem um leitor individual de perceber e processar. Aqui fica bastante evidenteque o modelo iseriano insiste em permanecer numalto nível de abstração e incorporação deelementos de diversas origens, nível no qual o

modelo coerente-mente não se envolve emdiscussões de ordem histórica, cultural ou psicológica. (SCHWAB citado em ROCHA, 1999, p.37)

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Assim, com a queda dos paradigmas dadicotomia aparência-essência na modernidade, aliteratura também se viu obrigada a uma mudança de

 paradigma, passando de uma simples busca damensagem e do sentido, para a recepção da literatura eo seu efeito sobre o leitor. “Não se tratava mais dedeterminar o que o texto significava, porém o queincitava nos receptores” (ISER, 1966a, p. 26).

Iser, no primeiro capítulo “Arte parcial- Ainterpretação universalista” do livro O ato de leitura 

apresenta a inadequação do gesto da interpretaçãoteórica da literatura que busca as significaçõesaparentemente ocultas nos textos literários, tomandocomo exemplo o conto The figure in the carpet  (1896),de Henry James.

Se o próprio Henri James tematiza a procura

 por significações ocultas nos textos, em umaantecipação por certo não consciente dos futuros modos de interpretação, pode-seconcluir daí que ele se referiu a pontos de vistaque desempenharam um papel importante em sua época. (ISER, 1996b, p. 23)

Assim, uma vez perdido o solo firme do“essencialismo” na interpretação, Iser vai trabalhar nasdiversas possibilidades de recepção de uma obraliterária elaborando a teoria dos efeitos (ISER, 1978, p.20-49). O texto deixa de ser o foco principal daanálise que passa para o leitor em sua interação com otexto, ou seja, considerado como um tipo de eventoque ocorre quando esse texto é "processado" no ato daleitura, temos o ponto de partida para odesenvolvimento da proposta de uma “antropologialiterária” por Iser.

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Esta mudança cria a necessidade de umainteração entre ambos no processo de leitura etransforma o texto num aspecto objetivo da vivência, isto

é, o objeto, considerado pela reflexão em seus diferentesmodos de ser dado: o percebido, o pensado, o imaginado,etc. na mente do leitor, e como nenhuma história pode sercontada na íntegra, o próprio texto é pontuado porlacunas e hiatos que têm de ser negociados no ato daleitura.

 Tal negociação estreita o espaço entre texto eleitor, faz com que o texto seja transposto para a

consciência do leitor através de uma estrutura básicaformada por vazios e negações, fazendo que o padrãotextual se revele como um jogo, uma interação entre oque está ou não expresso, estimulando o leitor a suprir oque falta.

Os vazios instigam a participação do leitor,

 fazendo com que inevitavelmente o texto exija um sujeito para poder existir. Nesse sentido, arelação entre texto e leitor se atualiza porque oleitor insere no processo da leitura asinformações sobre os efeitos nele provocados; emconsequência, essa relação se desenvolve comoum processo constante de realizações  (ISER,1996b, p.127).

Assim é importante enfatizar que enquanto alacuna (vazio) no texto ficcional induz e guia a atividadedo leitor com a suspensão da conectibilidade entresegmentos de perspectivas, possibilitando a participaçãodo leitor no texto, não através da internalização das posições do texto, e sim induzido a fazê-las agir; a

negatividade significa a não realização de um procedimento (que é esperado pelo leitor), isto é, a suarealização negativa com a intenção de empurrar o leitor para fora do texto.

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Talvez a melhor forma de explicar a freqüência eo alcance deste lugar vazio esteja no comentário deGerda Zeltner a respeito do noveu romance de Robert

Pinget:

Se no inicio o “Era uma vez” do mundo de fadasrepresentava o ponto de partida, agora está noinicio – de seu nouveu roman propriamente dito –um radical e incisivo “Não é mais”. Ali onde algo se perdera, começa a linguagem. A partir de“Sem resposta”, cada narração toma de forma peculiar a não existência como a sua precondição. (ZELTNER citado em ISER,1999b, p. 165).

Toda esta estrutura, segundo Gabrielle Schwabtraz um aspecto fundamental na obra iseriana que mostraa sua tentativa de evitar as armadilhas da manifestação

concreta e, em última instância, solapar qualquer formade determinação, e cita alguns argumentos de Iser: "Adeterminação (...) nos decepciona", e, "o que alinguagem diz é transcendido por aquilo que ela revela, eaquilo que é revelado representa o seu verdadeirosentido" (SCHWAB citado em ROCHA, 1999, p. 35).

A partir das premissas discutidas nos itensanteriores, ou seja, que a leitura é inexaurível, de quecada leitura é uma interpretação (característica imanentedo ser humano) e que a única forma de se limitar estainfinitude é o critério da coerência, dada a complexidadedo objeto, vali-me de varias leituras do romance,sucessivas e complementares, abordando a obra GrandeSertão: Veredas a partir de uma pequena amostragem deleituras (interpretações) de estudos críticos, plurais em

termos de suas abordagens, com diferentes focos devisão e que nos propiciaram diferentes resultados.

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A ambiguidade e a dicotomia é um assuntoapresentado por Marta Costa (1997) através doelemento água, que ao mesmo tempo é passivo e

feminino; a água também está ligada à formação davida, devido a seu incessante movimento de fluir, masaqui também aparece a sua dupla função, pois durantea imersão se liga ao aniquilamento, na perda de formae conseqüentemente a morte.

 É o rio Urucuia, espaço aquático inicial,

medial e final da trajetória de Riobaldo. À corde suas águas, a seu leito navegável, à regiãoque banha, soma-se a presença de Otacília,imagem idealizada da mulher amada, ninfa,dessas águas. Mas ele é também um rioambíguo. Se Otacília é a paz dos "remansos”do Urucuia, Diadorim é as suas sombras. Nesteespaço, quando criança e adolescente, Riobaldo adquiriu os elementos; que oqualificariam para a vida adulta: a cultura, adestreza nas armas, o anseio de uma vidacalma. Às suas margens surgem valoresopostos: o fazendeiro/o jagunço; o homem com"status" social/ o marginal; o bem estar/aaventura, o ficar/ o ir e vir . (COSTA, 1997, p.240)

Walnice Nogueira concordando com a ambigui-dade descrita por Costa, afirma em  As formas do falso (1972), que para ela após um sem número de leiturasrestou:

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O problema que ficou nas mãos foi o daambiguidade: como ela está construída estamatéria, em termos históricos (sertão, o homem

 pobre no meio rural brasileiro, seu estilo devida, sua maneira de enfrentar o mundo, o sistema de dominação vigente, a violência queo garante, no romance é privilegiado ocangaço, com o jagunço como figura central) eo imaginário (medieval no sertão brasileiro, seja na tradição oral, seja no romance de

cordel). (GALVÃO, 1972, p. 12).

 Numa perspectiva que procura abordar oromance a uma estrutura elíptica, Dilma Diniz (2006),apresenta os dois focos dessa “pretensa” elipse:Riobaldo e Diadorim, abordando o encontro dos doismeninos nas margens do rio de Janeiro, perto do rio

São Francisco, quando tinham mais ou menos quatorzeanos e já apresenta a ambiguidade presente na relaçãoentre os dois rios: um rio pequeno de águas claras,tranquilas e sem segredos, frente a um rio imponente,cujas águas são tumultuosas e escuras. Esta imagem serepete na condição dos meninos, com Riobaldo (frágil,tímido e de condição humilde) e Diadorim (corajoso, bem vestido e de boas maneiras, origem privilegiada).

Loyola (1997, p. 5) complementa dizendo queRiobaldo e Diadorim além das diferentes personali-dades, também possuam origens diversas; o primeiro,tendo vivido sob a proteção materna, desconhece aocerto sua paternidade, enquanto o segundo vive sob atutela do pai e do tio. Este é o ponto nodal que deflagraum processo tortuoso na vida de Riobaldo: Diadorim

com seu excesso de coragem e sua nobre descendência,exercerá sobre ele - excluído pelo destino do universomasculino - um eterno sentimento de submissão: "Maseu gostava dele, dia mais dia, mais gostava.

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Diga o senhor: como um feitiço? Isso. Feitocoisa-feita. Era ele estar perto de mim, e nada mefaltava. Era ele fechar a cara e estar tristonho, e eu

 perdia meu sossego" (GUIMARÃES ROSA, 1994, p.201).

Verifica-se que, nesse trecho que descreve oencontro dos dois meninos, estão reunidos todos ostemas que constituem e engendram a ficção: atravessia, a dicotomia bem/mal, masculino/feminino,coragem/medo, etc. Percebe-se também que o autor

dispersou pistas, na narrativa de Riobaldo, para sedecifrar o enigma, lançado como um desafio ao leitor,imerso no jogo labiríntico do texto.

Para acentuar a duplicidade dos personagens,vistos como os dois focos da elipse, pode-se assinalarque Riobaldo e Diadorim, apesar de suas diferenças, possuem algumas características em comum, como por

exemplo, o fato de pelo decorrer do romance, ambosaparecem com nomes diversos:

 Riobaldo é sempre Riobaldo, mas a esse nome se acrescentam outros, como Tatarana,“lagarta de fogo”, e mais tarde, o apelido deUrutu Branco, “serpente venenosíssima”,

depois de sua passagem pelas Veredas Mortas.Conhecido como Reinaldo no grupo de jagunços, tem o apelido de Diadorim para osíntimos, apelido que é derivado de seuverdadeiro nome: Maria Deodorina. Essa pluralidade nominal nos revela também acomplexidade e a riqueza polifônica da obra deGuimarães Rosa (DINIZ, 2006, p.8).

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Loyolla (2009) trabalha ainda esta ambigüidadeno que se refere ao relacionamento entre Riobaldo eDiadorim trazendo o aspecto da dualidade ativo-passivo,

masculino-feminino que permite a recorrência aos mitos primordiais, cujos heróis como Vaishvanara, Shiva, P'an-ku e Lao-kiun, tinham o olho direito ligado ao Sol e oesquerdo a Lua, sendo que a primeira correspondênciaaponta para o futuro, para o princípio masculino, para aautoridade e a segunda para o passado, regendoatividades associadas ao princípio feminino, àfecundação.

 Assim sendo Diadorim mostra-se benevolente eterrível ao mesmo tempo. Ao lado de sua formaameaçadora, em sua vontade inflexível de guerrear, apresenta-se uma forma graciosa. Aomesmo tempo em que não mantém uma posturade piedade diante do inimigo — conduta

 supostamente feminina — parecendo inumana, sustenta com Riobaldo um relacionamento ternoe de grande intimidade com a natureza,constituindo-se uma tensão entre a dimensãomortífera e a vital. (LOYOLLA, 2009, p. 9)

Assim, Diadorim, as vezes invoca a dor e o ódio eas vezes o júbilo e o amor, mas essa oscilação de papéisnão se restringe à personagem Diadorim; pois a própriaimagem do jagunço, assim como a do cangaceiro, éambígua em sua função. Como exemplo, podemos citar ocangaceiro Lampião, uma figura histórica que oscilaentre um personagem reconhecido como herói ouretratado como vilão.

Renomados historiadores e antropólogos, tais

como, Luitgarde Barros (2000), Frederico Mello (2005)e Maria Christina Machado (1978), entre outros, possuem diferentes visões sobre este assunto,

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sendo que os primeiros ressaltam o seu caráter ligadoao banditismo, enquanto Machado apresenta, dentro deuma perspectiva marxista, Lampião não como um fato

isolado, mas sim como o resultado de uma época emque se processava a luta surda, empreendida pelovaqueiro contra o senhor da terra. (MACHADO, 1978, p. 6).

Antonio Candido também ressalta as diversasambiguidades e o caráter dinâmico das que seestabeleceram na obra, tais como: ambiguidade dos

tipos sociais, que participam da cavalaria e do banditismo, a ambiguidade afetiva, que faz o narradoroscilar, não apenas entre o amor sagrado de Otacília eo amor profano da encantadora “militriz” Nhorinhá,mas entre a face permitida e a face interdita do amor,simbolizada na suprema ambiguidade da mulher-homem que é Diadorim; ambiguidade metafísica, que balança Riobaldo entre Deus e o Diabo, entre arealidade e a dúvida do pacto, dando-lhe o caráter deiniciado no mal para chegar ao bem, ambiguidadeinicial e final do estilo, popular e erudito, arcaico emoderno, claro e escuro, artificial e espontâneo.(CANDIDO citado em MARÇOLLA, 2009, p. 3).

Estas ambiguidades imbricadas têm paraHeloisa Starling a sua interpretação na própria situação

econômica e social do país, que por ser deficitária, possui uma população que parece habitar uma zonalimítrofe onde as relações humanas remetem à precariedade, à intermitência e à reviravolta, e cujasfronteiras encontram-se perpetuadas pelo entrecru-zamento das referências, pela confusão dos registrosétnicos e culturais, pela produção de híbridos, pelo

entrecruzamento do vivido e da ficção, pela mistura dosagrado e do profano, sem que uma clivagem radicalvenha a separar qualquer um desses termos(STARLING, 2009, p. 6).

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Toda esta ambiguidade que enche Riobaldo dedúvidas acaba por permitir a Peron Rios (2009) afirmarque Riobaldo sem nunca ter “certeza de coisa

nenhuma” pode ser chamado do “Hamlet do sertão”.

 Eu careço de que o bom seja bom e o rúimruím, que dum lado esteja o preto e do outro obranco, que o feio fique bem apartado dobonito e a alegria longe da tristeza! Quero ostodos pastos demarcados... Como é que posso

com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meiodo fel do desespero. Ao que, este mundo é muitomisturado...  (GUIMARÃES ROSA, 2009, p.307)

Outra ambiguidade que, de uma forma geral,

desperta o imaginário dos leitores é a ambiguidade denomes, uma ambiguidade que já aparece no título(nome) do romance, seja na contraposição entre aimensidão do sertão com as veredas como no própriosignificado da palavra vereda, uma palavra equívoca,que tanto pode significar um lugar aprazível como umlugar infernal.

Leonardo Almeida (2009) vai se apoiar natabula smaradigma, para notar que no fragmento“Ouro e prata que Diadorim aparecia ali”(GUIMARÃES ROSA, 2009, p.405) se configura adistribuição entre o masculino e o feminino que se fazda seguinte forma: “masculino: o sol, ouro, o fogo, oar, o rei, o espírito de enxofre; feminino: a luz, a prata,a terra, a água, a rainha, o espírito de mercúrio”

(BRANDÃO citado em ALMEIDA, 2009). Ouroassociado ao princípio masculino e ao espírito deenxofre; a prata ao princípio feminino e ao espírito demercúrio.

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Para Almeida, estes símbolos heráldicosconsubstanciam a “união dos contrários”, mas indo um pouco além, Maria Cristina Machado (2003, p. 66-67)

 já denunciava esta ambiguidade ao trazer os váriossignificados do nome Diadorim, seja como Diabo(Diá), seja como Deus (Déa); ou ainda Dia, em suasconotações de tempo, luz, brilho (de ouro). Assim, onome Diadorim traz a possibilidade de se seguir tantoo bem quanto o mal; demonstrando a ambivalência das proposições.

 Na tentativa de visualizar o processo pelo qualo real, o fictício joga com o imaginário nessas diversasleituras, é interessante notar que Loyolla (2009, p.6)apresenta a pedra ametista, como um elemento queajuda a elucidar o comportamento ambíguo deDiadorim, que às vezes é dócil e às vezes é seco, pronto para matar e vingar. Esta pedra corresponde na

astrologia ao planeta Vênus que faz duas aparições nasduas extremidades do dia, sendo por isso conhecidocomo estrela da manhã e estrela da tarde, o que fazdele um símbolo de morte e renascimento. “Comodeusa da tarde, sob a influência da lua, favorece oamor e a volúpia — uma divindade do prazer; comodeusa da manhã, em virtude de seu parentesco com osol, preside os atos de guerra e massacre. Assim emDiadorim, ora suas qualidades guerreiras se impõem,ora ela se permite ao prazer” (LOYOLLA, 2009, p.6).

Essa dualidade estrela da manhã e estrela datarde parece ser uma das grandes coincidências entreesta interpretação proposta por Loyola e o comentárioefetuado por Schollhamer (ROCHA, 1999, p. 118), para quem, Gotlib Frege (1978) tem uma grande

influência na teoria de Iser:

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que aqui se quer tirar: o leite que a vaca não prometeu”(GUIMARÃES ROSA, 2009, p. 312), elaborando ahipótese de que Grande sertão: veredas, pode ser

entendido, entre muitas outras possibilidades, como asurda tentativa de iluminar uma visão do Brasil econvertê-la em palavras, por meio da contemplaçãoespantada de um mundo arcaico, longínquo, fechadosobre si mesmo, supostamente imóvel e mítico — osertão.

A afirmação categórica do jagunço Riobaldo

Tatarana, logo no início de sua narrativa em Grande sertão mostra claramente a ligação do inferno com umsertão seco, árido e paupérrimo, onde graça a doença, afome, a ignorância, o misticismo e a violência:

 A gente viemos do inferno – nós todos –compadre meu Quelemém instrui. Duns lugares

inferiores, tão monstro-medonhos, que Cristomesmo lá só conseguiu aprofundar por umrelance a graça de sua sustância alumiável, emas trevas de véspera para o Terceiro Dia. (GUIMARÃES ROSA, 2009, p. 67)

Dessa forma, o sertão de Guimarães assume a

imagem de um inferno, que por sua vez, também émultidimensional, pois, não é somente um lugarmarcado pelo abandono, pela instabilidade e peladesordem, pois ele também está dentro do homem. Adimensão interna do sertão dentro da gente, paraLeonardo Almeida (2009), se apresenta muito maiscomo um possível modo de construção da personalidade de Riobaldo, ou seja, a maneira pelaqual a psique do jagunço é engendrada. A metáfora poética do “grande sertão”, assim como a psique, é

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é recortada por incontáveis “veredas”. Essa imagem poética do “grande sertão” acaba por ultrapassar aimagem de uma região geográfica e delimitada, paraadquirir características humanas. O sertão, em sua

imaginação, seria simultaneamente psíquico (alma) efísico (mundo).

Starling (2009, p. 4) propõe ainda uma outradimensão para o sertão que é o vazio, pois ao concordarcom “Sertão: estes seus vazios” (GUIMARÃES ROSA,2009, 36), que trazia, segundo ela, a reflexão de Riobaldoa respeito do vazio da experiência nacional brasileira,

afirma:

(...) falta alguma coisa nessa geografiaimaginada que é a nação, existe algo lá que aindanão está terminado. Uma espécie de paisagemoriginal em duplicada, o Sertão é, nesse caso,u m a i m a g e m e s p a c i a l e s i m b ó l i c ainquietantemente vazia, de contornos etonalidades previamente demarcados porleituras antagônicas: em uma delas, a maisconhecida, Sertão representa a força primitiva deuma região ainda em trânsito entre natureza ecultura, dominada pela resistência ao moderno eimersa na tradição; em outra imagem, o sinal seinverte e o Sertão preserva algo da gênese da

nação produzindo, se não um gesto, um lugar fundador na cena imaginária da nacionalidade — uma espécie de começo histórico marcado nãomais pela chegada do português e pela ocupaçãodo litoral, mas pela conquista de sua própria einterminável vastidão interior.  (STARLING,2009, p.4)

Assim, uma lógica de determinações fixas nãoconsegue jamais penetrar nesse mundo em ebulição permanente, o que faz Marçolla (2009, p. 6) apresentar oconceito de “porosidade poética” que pressupõe a

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 permeabilidade e o trânsito entre níveis ordinários eextra-ordinários de realidade através da imaginação,dos vazios e do indeterminado, indicando a pluralidade

de níveis sob os quais a narrativa de Riobaldo pode serlida tornando o sertão multidimensional (nasincontáveis dimensões do real) frente a um universoordinário (cartesiano).

Para Marçolla (2009, p.6), Guimarães Rosachega a negar a dicotomia conhecimento científico xconhecimento do senso comum, o que de certa formavai de encontro à proposta de Iser de que a ficção e arealidade não são um par de opostos, pois a ficção dizalgo que os sistemas excluem e não pode ser vistacomo um simples contraposto da realidade, pois elacomunica algo sobre a realidade.

Antonio Candido (1983), também aborda ocaráter multidimensional constitutivo de GrandeSertão  apontando três elementos estruturais que

comporiam a obra: a terra (ligada ao espaço, ao meiofísico, à natureza – e também cenário das apresen-tações do “fantástico”), o homem (agente que atua nanatureza) e a luta (resultado do conflito entre oshomens que se situam no espaço físico). SegundoMárcia Morais (MORAIS citado em MARÇOLLA,2009) a leitura de Candido aponta para a paráfrase da

estrutura de Os sertões, de Euclides da Cunha – no quese refere ao poder recíproco da terra e do homem.Entretanto, se há uma tese que aproxima as duas obras,uma antítese as separa: enquanto homem, terra e luta(problema) são tratados de modo lógico e sucessivo emOs sertões; em Grande Sertão  estes se apresentamentrelaçados e expressam um caráter dual, ambíguo e

complexo, que se traduz em um movimento dinâmicoentre as suas múltiplas esferas, tornado uno e coerente pela habilidade poética de Rosa.

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 Assim vemos misturarem-se em todos os níveis oreal e o irreal, o aparente e o oculto, o dado e o suposto. A soberania do romancista, colocado na

 sua posição-chave, a partir da qual são possíveistodos os desenvolvimentos virtuais, nos faz passar livremente duma esfera à outra. Acoerência do livro vem da reunião de ambas, fundindo o homem e a terra e manifestando ocaráter uno, total, do Sertão-enquanto-Mundo.(CANDIDO, 1983, p. 305-306)

Para Benedito Nunes (NUNES citado emMARÇOLLA, 2009, p.6) o discurso poético de Grande sertão  está ligado à elevação metafísica, sendoimpregnado de tradições heterodoxas como ohermetismo, concepções gnóstico-cabalísticas ealquímicas que, por sua vez, estariam misturadas comreferências a livros taoístas, bramânicos, induístas e

 budistas (relacionadas à teosofia).Esta dimensão metafísica podem ser verificadasnas próprias palavras de Guimarães Rosa, que em suahistórica entrevista à Günter Lorenz onde fala da profundidade da alma e da eternidade:

 Em outras palavras: Gostaria de ser umcrocodilo, porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. (...) Amoainda mais uma coisa de nossos grandes rios: suaeternidade. Sim, rio é uma palavra mágica paraconjugar eternidade.  (ROSA citado emCOUTINHO, 1983, p.72)

Essa “metafisicalidade” do sertão roseano

 permite Loyolla (2009, p.8) afirmar que o Grande sertão  poderia ser lido, desse modo, como um constante fluxode ideias organizadas por um homem a respeito domundo que o cerca.

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Importante notar que, se há um “metafisicar”, umexercício especulativo por parte de Riobaldo, por maisinstáveis que sejam suas conclusões, há de haver um

método empregado nesse esforço.Toda es ta mul t ip l ic idade remete ao perspectivismo, que Gilvan Fogel, num ensaio sobre o perspectivismo de Nietzsche, expõe da seguinte forma:

 Afinal, qual o ser, a essência da mesa, da laranja?(...) Atrás das coisas? Além delas?(...) Bem, se aessência de uma coisa está “atrás” ou “além”dela, então a coisa não é mais coisa! Eu corto alaranja, desfaço-a em gomos e não encontro o seudentro, o seu mais profundo. (FOGEL, 2003, p.18-19)

O que Fogel questiona é que ao se rachar umamesa, encontra-se serragem, madeira, pedaço de mesa,tudo que já não é mais mesa, ou seja, encontra-se

somente superfície: onde é que está a essência, o miolo, ocaroço profundo da mesa? O ser das coisas está na suaaparência, no seu modo de ser possível. No exemplo dalaranja, para um botânico, ela é seu nome científico; parao sitiante, sua sobrevivência; para os garotos, pode seruma bola de futebol ou uma arma, se arremessada. Averdade é que a laranja não é tão tranquilamente laranja,não é tão uniforme, e sua identificação depende da perspectiva do observador.

Outro aspecto constante nas várias leituras deGrande Sertão está numa incessante comparação dohomem com a natureza, que aparece desde a formagenérica: “Sertão: é dentro da gente” (GUIMARÃESROSA, 2009, p. 435) até nas personagens, como é o casode Diadorim que muitas vezes é confundida com o vento,a neblina, o rio, as pedras, as flores e os animais(principalmente aves):

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“Diadorim me pôs o rastro dele para sempre emtodas essas quisquilhas da Natureza” (GUIMARÃESROSA, 2009, p. 33).

Dentro ainda, desta aproximação com anatureza, o “verde” de “Naqueles olhos e tanto deDiadorim, o verde mudava sempre, como a água detodos os rios em seus lugares ensombrados”(GUIMARÃES ROSA, 2009, p. 405) que para Loyolla(2009), como veremos, será uma das pistas deixadas por Guimarães Rosa sobre a feminilidade de Diadorim;

 para Machado (2003, p. 60) é o verde mutável, da corda “água de todos os rios”, o que inclui o próprioRiobaldo:

 A frequência em que se dá a referencia aelementos aquáticos: rio, lagoa, chuva, neblina,mar, orvalho, e a seus complementos: peixe,

 sapo, sede, o sol, em si mesma não seria suficientemente significativa se nãocompusesse, em termos qualificativos, uma redede significações que aprofunda, paradigmaticamente, os termos temporais,cinéticos, amorosos e religiosos e míticos danarração de Riobaldo. (COSTA, 1977, 235)

Essa referência a elementos aquáticos pode serestendida à relação entre a personagem Diadorim e aimagem das aves que é para Loyolla (2009, p.6) desuma importância, pois para Riobaldo o fato de pensarou ver um pássaro é lembrar ou fazer aparecer o outro,e cita como exemplo o trecho em que seucompanheiro, desaparecido em combate, reapareceapós vários dias. “Demorei bom estado, sozinho, em beira d’água, escutei o fife dum pássaro: sabiá ou saci.

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De repente, dei fé, e avistei: era Diadorim quechegando, ele já parava perto de mim” (GUIMARÃESROSA, 2009, p. 330).

Seguindo o seu raciocínio Loyolla chega avislumbrar a possibilidade de uma interpretaçãoincomum para o nome Diadorim: “(...) o seu nome poderia ser entendido como uma possível corruptela dotermo andorinha (andorim, conforme o léxicoriobaldiano)” (LOYOLLA, 2009, p.6). Esta passagemtraz claramente as inúmeras possibilidades de leitura, pois Loyolla a partir de um mesmo gatilho “fictício”

imagina Diadorim como uma andorinha ao invés dediabo; deus; dar; dia em suas conotações de tempo, luz, brilho; dor, etc. (MACHADO, 2003, p.69).

Esta antropomorfização do sertão parece ser umobjetivo da ficção de Guimarães Rosa, uma vez, que emum dos momentos de sua entrevista concedida a GüntherLorenz, afirma: “ Riobaldo é o sertão feito homem. (...)

melhor, é apenas o Brasil”  (ROSA citado emCOUTINHO, 1983, p. 96).Além dos assuntos trabalhados até agora,

existem infinitas outras leituras, entre elas, algumas quetivemos a oportunidade de verificar e que utilizam outrasabordagens, tais como o trabalho de Susana Moreira deLima (2009) que trabalha a velhice e espiritualidadecomo fio condutor de sua investigação, focando(imaginando) a figura do velho narrador e sua relaçãocom o saber e com o narrar; pois para ela: “O protagonista é, sobretudo, uma personagem que pensa eo tema “pensamento” é que se encontra sempre presentena obra de Guimarães Rosa” (LIMA, 2009).

Walnice Nogueira Galvão apresenta GuimarãesRosa como um escritor que estaria “ficcionalizando” o

sertão como um universo medieval, da mesma maneiraque a história, a antropologia e a sociologia tendiam afazer, seguindo uma tradição da literatura oral e dosromances de cordel, sendo que o próprio imaginário

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 popular dos sertanejos estaria enviesado por esta“medievalidade”.

João Lopes, por sua vez, traz uma crítica política

à Guimarães Rosa, que segundo ele, nunca foi muitoreceptivo à racionalidade cartesiana, iluminista ecientífica, e que ao ser empurrado por um contexto brasileiro em que as temáticas da modernização do país edo desenvolvimento do interior se tornaram preponderantes, não podia deixar de ficcionalizar essestópicos da história nacional, e o faz através de umareação de suspeita e cautela a toda esta dinâmica

otimista, se perguntando se seria possível o império dalegalidade sem fraudes e particularismos, e se a violênciano campo e na cidade seria contida.

Conclusão

A título de conclusão deste trabalho, mas não da

leitura de Grande Sertão, uma vez que, conforme pudemos observar nos comentários da maioria dosleitores, Grande sertão  possui uma infinidades delacunas e negatividades a serem preenchidos pelaimaginação; podemos afirmar que a partir das reflexõesrealizadas, notamos que o romance de Guimarães Rosa propicia ao leitor novas experiências, dentre as quais,uma que é bastante evidente que é a da consciência sobrea infinitude do ser.

Esta infinitude pode ser notada, logo no inicio doromance:  “Lugar sertão se divulga: é onde os pastoscarecem de fechos; onde um pode torar dez, quinzeléguas, sem topar com casa de morador; e ondecriminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho deautoridade” (GUIMARÃES ROSA, 2009, p.3). Assim,

uma vez que “Sertão: é dentro da gente” (GUIMARÃESROSA, 2009, p. 435), o ser também não tem fechos, éconstituído por grandes distâncias, é um lugar sem lei, ouseja:

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“O sertão está em toda a parte” (GUIMARÃES ROSA,2009, p. 4).

A infinitude encenada pelo ser (tão) humano de

Guimarães Rosa traz consigo toda uma indeterminação,sem respostas prontas, que não visa a impor pensamentos, mas sim a propô-los ao leitor, e ao mesmotempo faz a sua intervenção no mundo, convida o leitor atambém fazê-lo, pois como pudemos observar namultiplicidade de leituras, o romance só vai adquirir umdeterminado sentido a partir da participação do leitor.

Essa infinitude, que é tão bem apresentada por

Jorge Luiz Borges, que em Dom Quixote, de PierreMeinard, imagina um poeta francês que se propõeescrever o Quixote: não parafraseá-lo ou comentá-lo,mas escrevê-lo. Segundo Borges, o projeto foi concluídocom êxito, e submete à apreciação do leitor um trecho dolivro, na versão de Ménard, confrontando-o com o trechocorrespondente, na versão de Cervantes, e tomando o

cuidado de dizer que a primeira versão é “quaseinfinitamente mais rica” que a de Cervantes.(ROUANET, 1987, p. 225)

Assim, é importante verificar a impossibilidadede tornar determinada toda a imprevisibilidade queintegra esse processo, pois como existe um sem-númerode interações possíveis, delineadas pela experiência deleitura e de mundo de cada um dos leitores, elas vão gerarmúltiplas e imprevisíveis reações, ou seja, pois no eventode cada leitura o “não-dado” ou o indeterminado vai setornar “determinado” pela imaginação do leitor.

O romance de Guimarães Rosa traz um complexo papel para o leitor, graças a uma desordem intencional, àcontradição e aos paradoxos, levando-o a um processo denegação dialética dos pressupostos esses herdados da

tradição realista.

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Pode-se dizer que nestes “sertões” conformeAntonio Candido, “há de tudo para quem souber ler, enela tudo é forte, belo, impecavelmente realizado. Cada

um poderá abordá-la a seu gosto”. (CANDIDO, 1978, p.121.), ou ainda que: “A narração de Riobaldo, a cadaleitura, renova-se e enriquece-se. E assim como as águasde um rio, leva o analista a uma travessia constante nuncadeixando prever em que ponto da outra margemconseguirá chegar” (COSTA, 1977, p. 256).

 Mas Grande sertão não possibilita somente estamultiplicidade de (re) leituras, pois ele nos dá aoportunidade de trabalhar com aquilo que Iser (inROCHA, 1999, p. 221) chama de ficcionalidade -coexistência ou simultaneidade de elementosmutuamente excludentes - ou como Oscar Wilde indica:“uma verdade na arte é uma afirmação cujo opostotambém é verdadeiro” (WILDE citado em ROCHA,1999, p. 216).

Guimarães Rosa mostra com a coexistência deelementos mutuamente excludentes que a lógicadicotômica não deve ser vista como a única alternativa para apreensão do real, conforme pudemos observar noitem 3.1. e que é altamente esclarecedora na tensãoconstante que aproxima e afasta elementoscontraditórios e aparentemente incompatíveis queaparece no fragmento: “Família. Deveras? É, e não é. Osenhor ache e não ache. Tudo é e não é… Quase todomais grave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! Seidesses.” (GUIMARÃES ROSA, 2009, p. 9)

Sob essa perspectiva teórica, o leitor é convidadoa rever alguns aspectos e reelaborar ideias, tais como orompimento com visões dicotômicas como bom e ruim,

feio e belo, uma vez que apresenta os tais atributos numamesma pessoa:

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o sertão de Guimarães tanto pode ser local físico emMinas Gerais como a imagem de um ser (tão)existencial.

Enfim, pode-se afirmar que Grande Sertão:Veredas  evita os aspectos ontológicos do sertão, privilegiando a indeterminação, mostrando a incríveladerência da teoria de Iser ao romance rosiano, pois,em literatura, a encenação torna concebível aextraordinária plasticidade dos seres humanos, que por possuir uma natureza determinável, podem expandir-se

no raio praticamente ilimitado dos padrões culturais,ou seja, é da natureza humana e sua multiplicidade de padrões culturais possibilitar formação ilimitada econtínua do ser humano e, portanto da leitura ( einterpretação).

Enfim, o texto de Guimarães Rosa convida oleitor para uma experiência, para uma profundareflexão existencial sobre a vida onde se: “Viver é perigoso, então interpretar é preciso”.

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2. RICARDO III: ENTRE O SERTÃO MEDIEVAL

E A INGLATERRA DOS ANOS 30

O ensaio tem como objeto de análise principal oespetáculo Sua Incelença Ricardo III (2010), umaadaptação brasileira para o palco de  Ricardo III   deWilliam Shakespeare, que foi dirigida por GabrielVilela. O espetáculo é parte integrante de um projetocultural elaborado pelo grupo potiguar “Clowns deShakespeare” que tem como linha de pesquisa a

comicidade na obra do dramaturgo inglês. Aconcretização cênica de Sua Incelença Ricardo III  subverte o protocolo tradicional ao trazer o sertãomedieval para um espetáculo que mistura umadiversidade de estéticas que abrangem o teatro, adança, a música, a ópera e a pantomima, e trabalha afusão do texto de Shakespeare com as linguagens de

meios da cultura popular como o circo e os ritoscarnavalescos. A montagem de Gabriel Vilelaapresenta um interessante exemplo do teatro nocruzamento das culturas. Entre as infinitas perspectivas possíveis de sua análise, optamos por analisar ointeressante relacionamento entre os aspectos feudaisexistentes no sertão nordestino na época do fenômeno

cangaço e o período medieval inglês, bem comocomparar a forma escolhida para a sua representaçãona apresentação do grupo potiguar com o adaptaçãofílmica do mesmo texto realizada por RichardLoncraine em 1992.

Segundo Jacques Heers (1991, p. 239), a

conquista da América pelos europeus foi estabelecidade acordo com um modelo medieval que já havia sidoutilizado nos impérios coloniais criados pelos europeusno Oriente.

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Desta forma, segundo o autor, a colonização daAmérica pelos ibéricos no século XVI apresenta, emtodos os sentidos, traços medievais. Esta opinião é

seguida pelo pesquisador mexicano Luis Weckmann(1994, p. 21), que afirma que os espanhóis trouxeram para o México uma cultura essencialmente medievalderivada da Península Ibérica.

Em termos brasileiros, Marcos del Roio (2006, p.166) afirma que o feudalismo se caracterizaria pelolocalismo econômico e político que dificultava aconstrução do Estado Nacional a partir de um Brasil rural

e latifundiário que se apresentava como um “entrave parao desenvolvimento”. Esta ideia também era comungada,segundo Vera Feline (1989, p. 227) por historiadorescomo Oliveira Vianna que conferia os aspectos feudaisda metrópole na colônia: senhor de engenho cercado da plebe colonial, rendeiros, ligados pelo laço do contratode locação, e Malheiros Dias, que por sua vez, enfatizava

o aspecto formal da situação jurídica das capitaniashereditárias que remontava ao direito do Portugalmedievo.

O sertão feudal 

Sua Incelença Ricardo III abriu o XX Festival deCuritiba, no dia 29 de março de 2010 para um teatrolotado. A peça foi apresentada numa arena montada noLargo da Ordem em Curitiba, com a criação de umasólida arquibancada nos moldes circenses paraacomodar o público, tornando-se, a partir de então, umespaço teatral alternativo e livre das amarras do palcoitaliano e aproximando o espetáculo dos moldes do teatroelisabetano que surgiu entre 1587 e 1642 a partir de três

elementos básicos: a língua inglesa moderna, o teatro emseus aspectos de facilidades técnicas e assimilação decertas características do teatro clássico.

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Assim, quase duas décadas depois da estreia deRomeu e Julieta do Grupo Galpão, que resgatava asorigens populares de Shakespeare no teatro de rua, o

diretor Gabriel Vilela volta a construir um espetáculomesclado entre a cultura popular brasileira e o universoelisabetano, apresentando num só espetáculo umateatralidade barroca, o imaginário nordestino, cenário,música e figurinos surpreendentes.

Desta forma, é importante observar que a escolhado sertão nordestino por parte de Vilela não foi feita ao

acaso pois a semelhança entre a Inglaterra medieval e osertão, como vimos rapidamente, é um fato jáobservado entre vários pesquisadores e, principalmentese levarmos em conta o fenômeno do coronelismo queaconteceu no sertão nordestino brasileiro entre osanos...e anos.....Mas se podemos falar em feudalismonos anos 20 no Brasil, este fenômeno já havia sidoextinto na Inglaterra, pois segundo Barbara Eliodora(p. 24), historicamente, o fim da Idade Média naInglaterra é datado de 1585, data da batalha deBosworth Field, onde morreu Ricardo III, saindovitorioso Henrique VII, o primeiro Tudor, ondeacontece a ascensão da monarquia nacional, com aconsequente perda de poder das grandes casas feudais.

Assim, o feudalismo remonta ao fenômeno docoronelismo no sertão brasileiro, um sistema queconcentrava o poder em mãos de alguns homens de pouca ou quase nula bagagem intelectual, mas que porinfluências político-econômicas, obtinham de fato oude direito, uma patente de coronel. Como afirma VeraFerreira e Antônio Amaury (XXX, p. 15): “Essesindivíduos privilegiados pelo poder, eram senhores e

reinavam absolutos na vastidão de seus domínios”.O Estado, o centro de poder, estava localizado no

sul, fazendo com que na região Nordeste, os governoslocais fossem frágeis e carentes.

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 No Brasil, o Estado sempre foi instituição precária, o que possibilitou a sociedade ter um aspectoganglionar que de um lado suscitavam a concentração

em núcleos, da vida social, núcleos que guardavamentre si independência quase absoluta e estimulavam aconsolidação de agencias de autoridade privada. Osenhor de engenho, o caudilho, o coronel são símbolosda debilidade do poder político, provas da força do poder privado. (COSTA PINTO, 1980, p. 28).

Esta falta de um poder central explica, por

exemplo, a violência da vendeta, um costume que foiexercido de cima abaixo na sociedade medieval inglesaaté meados do século XIII, quando a nobreza seconstituiu definitivamente como um corpo hereditárioe tendeu a reservar para si, como um sinal de honra,todas as formas de recurso às armas. Os poderes públicos (príncipes e juristas) proibiram a vendeta

 porque contrariava o monopólio estatal do uso daviolência. Então, eles vão propor a renúncia a qualquervingança, o que era praticamente impossível,moralmente inconcebível de se impor a uma casta deguerreiros, fazendo que ela fosse, quando muito, umaregra apenas para o resto da população. A violência setornou então um privilégio de classe, pelo menos, em princípio. “Só os fidalgos podem guerrear”(BEAUMANOIR citado em BLOCH, s.d., p. 159).

Para alguns autores clássicos como Vitor NunesLeal, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Luiz Aguiar daCosta Pinto e Amaury de Souza, o uso da violência nosertão brasileiro é quase um monopólio das classessenhoriais (BARROS, 2000, p.22). Mas para Amauryde Souza (citado em BARROS, 2000, p. 23), em fins

do sec. XIX, afrouxaram-se os controles sociais dasociedade patriarcal e o seu virtual monopólio do usoda violência soçobrou, disseminando-se até os estratosmais baixos da população rural.

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Surge, então o cangaço, como expressão deviolência, independente e frequentemente dirigidacontra os senhores patriarcais. (BARROS, 2000, p. 22-

23) A vendeta na sociedade sertaneja diz respeito a posição de cada individuo era determinada e garantida pelo grupo de parentes a que pertencesse, por via dasolidariedade da família, que impondo a noção deresponsabilidade coletiva fazia com que pode seranalisada como: “uma violência coletiva que põe

frente a frente grupos e não indivíduos LAMMENScitado em COSTA PINTO, 1980, p. 5)”.Ao desencadear a vingança, a família lutava por

seus interesses, sua honra, seu culto, pela integridadedos seus membros – tudo sem o que não poderiasobreviver. Daí a violência brutal da vendetta que nãotem as mesmas características da pena de Talião:“Olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé”, pois nela o vingador não procura necessariamenteo autor do delito que é vingado, mas sim toda a famíliaadversária.

Se o culpado é um ancião, por exemplo, vingar-se nele é desperdiçar vingança; há que abater o chefeda família, ou outro varão, o que representa aeliminação de um braço forte para a réplica, que já se

espera. Para vingar um dos seus não basta a morte deum adversário. Dois, dez, vinte, a família inteira, semnenhuma consideração, há de ser abatida. (COSTAPINTO, 1980, p. 6)

O vendeta acontece dentro do fenômeno docoronelismo onde “Nos domínios rurais, a autoridadedo proprietário de terras não sofria réplica”, ressalta

Sérgio Buarque de Holanda, acrescentando que “tudose fazia consoante sua vontade, muitas vezescaprichosa e despótica” e que “o engenho constituíaum organismo completo e que, tanto quanto possível,

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se bastava a si mesmo” (HOLLANDA, 1971, p.48).Otítulo de senhor de engenho, observou um cronista daépoca, podia ser considerado tão alto como os títulos

de nobreza dos grandes do reino de Portugal(HOLLANDA, 1971, p.58)Outro interessante fator é a vendeta que vigiu na

Idade Média, em todo o seu período, e especialmente aera feudal, onde os homens viveram sob o signo davingança privada. A vendeta cabia, em primeiro lugar,como o mais sagrado dos deveres, ao indivíduo lesado,

tendo sua origem nas burguesias que, pela sua própriaindependência, em relação aos grandes Estados, puderam manter uma longa fidelidade aos pontos dehonra tradicionais. Um rico florentino tendo sidoferido de morte por um dos seus inimigos, fez o seutestamento no qual não receou incluir um legado em benefício do seu vingador, se algum aparecesse(BLOCH, p. 163).

 A violência medieval

A vendeta é de suma importância para tratar um paralelo entre Sua Incelença e o Ricardo III deShakespeare, principalmente se utilizarmos o conceitode escudo ético conceituado pelo pesquisador

Frederico Pernambucano de Mello. Para Mello (2005, p. 120), o escudo ético diz respeito ao destaque dado pelos cangaceiros a um verdadeiro estribilho em que seconstituíam as respostas destes diante de indagaçõessobre os motivos por que se entregavam àquela vida.Invariavelmente invocavam ofensas sofridas, dandoênfase à consequente necessidade de vingá-las, num

imperativo a que o sertanejo sempre se mostravasensível e compreensivo.

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 Antônio Silvino costumava, em conversa,apontar Desidério Ramos, um dos matadoresde seu pai, e filho do principal matador, José

 Ramos da Silva, como o responsável pela suavida de cangaceiro. Lampião, alegandovelhas questões sobre propriedade de reses eo assassínio do pai, citava respectivamente José Saturnino e José Lucena de Albuquerque Maranhão, como igualmente responsáveis pelo seu destino de guerra. (MELLO, 2005, p.

120) Na medida em que o vilão shakespeariano de

Vilela assume a figura de um duplo entre a chamada“incelença”, um coronel nordestino, mas que tambémguarda todas as características atribuídas à Lampiãotais como ser um homem corcunda, com a pernaesquerda muito maior que a direita, o conceito doescudo ético é aplicável ao Ricardo Cangaceiro, poisLampião é retratado por muitos cronistas, como NertanMacedo, como um homem de índole boa que, somenteapós ter perdido um ente querido de forma violenta etraiçoeira, resolve fazer justiça com as próprias mãos,o que pode ser verificado no fragmento do texto:

[...] o velho José Ferreira acordava sempre muito cedo. E em certa ocasião,depois do aviso que lhes deram os filhos,levantou-se da rede e foi soprar o fogo para fazer café. [...], mal teve tempo dealçar a cabeça, para ver de onde partiamaqueles disparos. E quando os filhos

menores acorreram, encontraram-notombado numa poça de sangue. [...] Nessamadrugada nasceu realmente Lampião. (MACEDO, 1975, p. 38)

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Além disso, o próprio Ricardo III de Shakespeare parece utilizar o escudo ético quando no prologo expõeas razões de suas maldades, parecendo ser alguém que

objetiva uma vingança contra a sociedade por ter nascidocom defeitos físicos:

 RICARDO (Duque de Gloucester) — [...] Maseu, sem jeito para o jogo erótico, nem paracortejar o próprio espelho, que sou rude, e aquem falta a majestade do amor para memostrar perante uma ninfa; eu que não tenho

belas proporções, errado de feições pelamalicia da vida; inacabado, vindo ao mundoantes do tempo, quase pelo meio, e tão fora demoda, meio coxo. [...] Já que não sirvo paradoce amante, para entreter esses infelizes dias,determinei tornar-me um malfeitor . (SHAKESPEARE, 1993, s/p.)

 No entanto, não é somente o costume da vendeta,que aproxima as duas sociedades pelo elo medieval poisna Idade Média a violência medieval era vista como algonormal e até mesmo louvável como podemos ver nosversos colhidos pelo pesquisador Marc Bloch (p. 307):

  Muito me agrada o alegre tempo da Páscoa -que faz chegar as folhas e as flores; - eagrada-me ouvir a alegria - das aves que fazem ressoar - os seus cantos pelo arvoredo.[...] - e agrada-me quando os batedores-fazem

 fugir as gentes e o gado; - e agrada-me,quando vejo, atrás deles - uma grande massade homens de armas que vêm juntos; e o meu

coração alegra-se - quando vejo fortescastelos cercados - e as sebes destruídas e

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tombadas - e o exército, na margem, - todarodeada de fossos, - com uma linha derobustas estacas entrelaçadas ... - Clavas,

espadas, elmos de cores, - escudos, vê-lo-emos feitos em pedaços - desde o começo docombate- e muitos vassalos feridos juntamente, - por onde andarão à aventura oscavalos dos mortos e dos feridos. - E quandoentrar no combate, - que cada homem de boalinhagem - não pense senão em partir cabeça

e braços; - pois mais vale morto do que vivo evencido. [...] quando vejo, enfim, os mortosque, nas entranhas, - têm ainda cravados osrestos das lanças, com as suas flâmulas».

Esta personalidade guerreira parece ser forjadadesde cedo no sertanejo, Frederico Pernambucano deMello (2005, p.21), fala do traço cultural que forja a personalidade sertaneja que é a sua indiferença no tratocom o sangue dos animais de corte, uma característicada atividade pecuária que é predominante na região. Omenino sertanejo acostuma-se desde cedo com a presença do sangue, algo corriqueiro no sangramentodo boi ou do bode para o preparo da carne-de-sol. 

Esse atributo de uma vida entremeada porviolência pode ser comprovado no romance Sem leinem rei (1988), de Maximiliano Campos, na personagem Antônio Braúna:

Viver ali era duro, não comportava fraquezas. Ele parecia ter nascido marcado para ver sangue e violência durante toda a sua vida. A

imagem do irmão morto, tendo o corpo furado de balas e com uma imensa mancha no peito parecendo uma papoula vermelha, nãolhe saía da cabeça.

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Também ainda não deixara de sentir a tapa quecarregava no rosto, e que fizera correr em filetesde sangue a sua vergonha. Tudo lhe surgia de

vez, atormentando-lhe a vida. Sabia que o seuexistir seria assim, e que iria também fazercorrer o sangue dos seus inimigos. Tinha quevingar. Era a maneira de atenuar o seu sofrerrude, assim aprendera desde cedo. [...] Iriaatacar o inimigo, o temido coronel da Barra,chefe político do município. Mas, se a sua forçaera menor, compensava a sua inferioridade com

o desejo de lavar as desonras, as perseguições eafrontas. (CAMPOS, 1990, p. 11)

O clima e a cultura tropical 

 No entanto, apesar de todas estas semelhanças, amontagem brasileira preferiu trabalhar Ricardo III  dentro

de um universo lúdico do picadeiro do circo, dos palhaçosmambembes e das carroças ciganas numa montagemrepleta de sarcasmo, humor e ironia, bem de acordo comas palavras de seu diretor Gabriel Vilela lembrando Mariode Andrade e a afirmação de Brecht que não existe possibilidade de moral em alguém com fome:

O Ricardo III foi construído a partir da libidodo ator que o interpreta. A gente é'macunaíma', e utilizamos muito a libido. Não podemos montar um personagemdepressivo. Só vale para uma possíveladaptação alemã, quem sabe. Eles são mais sérios. Nós, não. Somos artistas da sobrevivência. A fome vem antes da moral e

do direito.

¹ Em entrevista para a Gazeta do povo durante o Festival de teatro de Curitiba.

² Amir Haddad em entrevista a mim concedida no teatro.

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Esta referencia a uma adaptação alemã seenquadra perfeitamente ao  Ricardo III   de RichardLoncraine, que apesar de ter os mesmos defeitos

físicos apresentados pelo Ricardo nordestino, éiconicamente ligado à figura de Hitler. O filme étransportado para os anos 30, através de uma mídiacinematográfica que permite a Loncraine criar umaconvincente realidade dos anos 30, estabelecendo umaincrível historicidade através de uma superabundânciade detalhes visuais, tais como as limusines Bentley, os

cigarros Abdula, os revólveres Sten e os edifíciosconstruídos num estilo arquitetônico quase fascista.Assim,  Ricardo III   de Loncraine foi, em grande

 parte, produzido num estilo que Jack Jorgens (1991)chama de modo realista, o que, em sua tipologia,significa filmes “teatrais” que simplesmente transferem performances teatrais para a tela e versões filmadasque re-imaginam substancialmente a peça em termosde estética e recursos na nova mídia. O filme realistashakespeariano é caracterizado por um tipo de atuaçãomeio naturalista, cinematográfica e editada, que éusada na maioria dos filmes de Hollywood.

Os personagens são representados como“pessoas reais”, com maquiagem e figurino plausíveis,e os filmes relatam a narrativa fácil de ser aceita semchamar a atenção para a mídia. Esses filmes não são,obviamente, realistas no sentido de imitar nenhumaexperiência atual de mundo; mas essas convençõescinematográficas, tal como a continuidade de edição etrilhas sonoras, são tão universais que elas, ao menos,são percebidas pela maioria dos espectadores.

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Esta diferença no tratamento de Ricardo III estána raiz do comportamento dos dois povos, pois oimportante dramaturgo Amir Haddad1  afirma que

quando Shakespeare buscava o “tesão da vida”localizava a sua peça no Mediterrâneo onde existem osdias ensolarados e a magia pode acontecer, masquando queria retratar a dor, a sua escolha era sempreelaborar o relato na Escócia ou na Inglaterra.

 No entanto, talvez, a melhor imagem dassemelhanças e diferenças no encontro entre a

medievalidade do sertão brasileiro e a Inglaterramedieval esteja no romance gráfico criado peloilustrador e autor brasileiro Fernando Vilela que relatao encontro entre Lancelot, um dos cavaleirosmedievais da Távola Redonda do Rei Arthur e ocangaceiro Lampião.

A capa do livro Lampião e Lancelote (vide figura1) já indica a contraposição que se seguira por todo oromance entre a predominância da cor prateada paraLancelote e a paisagem medieval inglesa, e a cordourada para Lampião e o sertão nordestino.

1 Amir Haddad em entrevista a mim concedida no Teatro Act durante uma

oficina.

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FIGURA 1

A cor prata, para Ad de Vries (p. 425) significa a pureza, a inocência, uma consciência pura, como podeser verificado, na utilização do cálice de prata nas

cerimônias religiosas, e também sabedoria (a língua do justo tem a cor prateada). Além disso, a cor pratalembra o feminino, a lua e a noite em oposição aodourado do masculino, do dia e o sol. O dourado estáligado ao elemento fogo, que segundo Bachelard(1999, p. 2-3), associa-se às crenças, às paixões, aoideal, à filosofia de toda uma vida.

Para Bachelard (1999, p. 12), o fogo tem umcaráter duplo que, ao subir das profundezas dasubstância se oferece como amor, e torna a descer àmatéria e se oculta, latente, contido como o ódio e avingança. Dentre todos os fenômenos, é realmente oúnico capaz de receber tão nitidamente as duas

valorizações contrárias: o bem e o mal. “Ele brilha noParaíso, abrasa no Inferno.” (BACHELARD, 1999, p.12)

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Assim, a imagem da Inglaterra medieval (figura2) é prateada e sombria, um território dividido emreinos independentes, onde alguns registros históricos

apontam para um guerreiro chamado Arthur, que posteriormente entraria gloriosa e definitivamente paraa história, sob a máscara do famoso rei Arthur e seuscavaleiros da Távola Redonda.

FIGURA 2

Enquanto o sertão nordestino aparece emdourado (figura 4), dominado pelo sol e pelo gado.Sertão reportado por Euclides da Cunha em Os Sertõesque relata a história deste povo sofrido que habita osertão brasileiro, uma região de terras não cultivadas.Um vasto território onde não havia cercas delimitandoas propriedades. As cercas só eram usadas para proteger a roça do gado, e onde os vaqueiros setrajavam com uma indumentária sui generis feitainteiramente de couro (BARROS, 2000, p. 46).

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Vilela ressalta o caráter medieval das duassociedades, mas frisando também as suas diferençasatravés da coloração das duas personagens porque se avestimenta de Lampião é da cor do cobre, uma corquente que remete a de Lancelote é de cor prata.Apesar desta aparente semelhança dada a partir do

caráter feudal destas duas sociedades, existe uma sériede diferenças, entre as quais, uma diferença muitogrande: o clima. No sertão brasileiro existe o predomínio do clima quente e seco enquanto na aInglaterra de Lancelot, a temperatura é fria e aumidade é alta.

Conclusão

A tradução, transposição, adaptação e outrasoperações intersemióticas ou intertextuais da obra deShakespeare permite retomar, repetir, contestar,criticar, comparar, relacionar obras de diversas mídias,culturas, línguas, ideologias, possibilitando, atravésdeste mosaico auto-reflexivo que é o significado da própria literatura, o estabelecimento (criação) de novose inusitados significados que abarcam não somente aobra em si, mas todo um contexto sócio/cultural/polí-tico.

FIGURA 4

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3. A EXACERBAÇÃO DA VIOLÊNCIA EM 

RICARDO III : DE SHAKESPEARE À MCKELLEN

A película a ser analisada – Ricardo III  (1992), deIan McKellen e Richard Loncraine – se inscreve numadas mais importantes de todas as práticas hipertextuais: aadaptação fílmica. Segundo Gérard Genette, asadaptações, de uma forma geral, possuem uma elevadaimportância histórica, seja pelo acabamento estético decertas obras que dela resultam, seja pela amplitude e

variedade dos procedimentos nelas envolvidos (2006, p.27).Os estudos de adaptação, para Linda Hutcheon,

vão além da tradução semiótica de romances para filmese, abarcam quase tudo: estórias de poemas, peças, pinturas, óperas, músicas e dança que sãofrequentemente adaptadas de uma mídia para outra(2006, p.XI). Simone Murray concorda com Hutcheon,

no sentido de que os estudos de adaptação transcenderamo seu status inicial relegado às margens dos estudosliterário/cinematográficos (2007, p.23). A adaptação noSéculo XXI recebeu as marcas de respeitabilidadeacadêmica, o que pode ser percebido no extenso númerode cursos de pós-graduação e de graduação que tratam dotema, bem como a atenção a ele dispensada pelas

 publicações de grandes editoras acadêmicas, como o jornal acadêmico Literature/Film Quarterly e o recémlançado Journal of Adaptation Studies.

Essa proliferação de hipertextos, uma dascaracterísticas da arte contemporânea, tem a sua baseteórica no enunciado de que  toda obra de arte possuirelações intertextuais não apenas, de uma forma direta,com outras obras de arte de estatuto igual ou comparávele, sim, de uma forma indireta, com todas as obras que

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que influenciaram essas obras de igual estatuto: “Demaneira mais direta: qualquer texto que tenha dormidocom outro texto, dormiu também, necessariamente,

com todos os outros textos com os quais este tenhadormido” (STAM, 2003, p.226). Neste universo de adaptações, a obra de

Shakespeare continua a inspirar cada nova geração pelo fato de possuir uma rara qualidade estética, portrabalhar uma visão de mundo ampliada e por suaincrível atualidade. Universalidade e atualidade que possibilitam a sua adaptação para as mais variadasmídias, reescrita através de novas formas e enfoques de produção desenvolvidos, pois, assim, como argumentao pesquisador francês Jean Pierre Sarrazac (: “Escreverno presente não é contentar-se em registrar asmudanças da nossa sociedade, é intervir na conversãodas formas” 2002, p.34).

 Nesse quadro contemporâneo de adaptações da

obra de Shakespeare,  Ricardo III   de McKellen1  é uminteressante caso de adaptação de um textodramatúrgico de Shakespeare que, antes de alcançar asua mídia final (o cinema), passa por uma primeiratransformação ou experiência através da dramaturgia.Sir Ian McKellen, um dos maiores atoresshakespearianos, afirma, na contracapa do livro que

escreveu sobre essa sua experiência, que gostaria de passar todos os dias do resto de sua vida filmando Ricardo III . O resultado desse desejo é uma obra detirar o fôlego, num filme estrelado por ele e dirigido por Richard Loncraine, que transforma a elogiada produção teatral de  Ricardo III , encenada no Royal National Theatre, em duas horas de magia fílmica.

1 Apesar da direção ser de Richard Loncraine, a realização

como um todo parece ser objetivo de McKellen que além deatuar, é o roteirista junto com Loncraine.

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 Ricardo III: de Shakespeare à Mckellen

O texto original de Ricardo III  foi escrito entre

1592 e 1593 e é denominado A tragédia de Ricardo III ,dando clara ênfase ao processo de causa e efeito e àtotal responsabilidade de cada personagem por seusatos. Essa peça dá início às grandes tragédias que odramaturgo iria realizar e faz parte dos dramashistóricos em que Shakespeare fala do teatro e darepresentação do mundo. A obra foi elaborada a partir

de um personagem que utiliza a dissimulação parafazer o mal. O autor, ao eleger um vilão para protagonista, acaba se defrontando com alguma perdado potencial trágico. Diferentemente de  Hamlet   e Macbeth  que, segundo Raymond Willians,confrontam-se com as inescrutáveis forças morais danatureza e são destruídos por esta mesma natureza - e

não pela sociedade - , a morte do vilão Ricardo III, nofinal da peça, adquire o significado de uma puniçãomerecida, dada pela própria sociedade (2002, p.165).

Para evitar a aproximação com o melodrama,Shakespeare constrói o seu protagonista como um personagem fascinante, por sua capacidade dedissimulação e ousadia, que acaba por arrebatar oespectador que, se não se envolve emocionalmentecom o personagem, acaba por estabelecer uma ligaçãocom ele, através da curiosidade em saber se Ricardo IIIirá ou não conseguir alcançar os seus propósitos,aclarados logo na primeira cena do primeiro ato,através de um monólogo dirigido diretamente à plateia.

 No início do monólogo, Ricardo III conta seus planos em relação à coroa, estipulando o que ele quer e

como pensa obter.

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A partir de então, no decorrer do espetáculo,Ricardo não se comporta como um vilão diante dosoutros personagens, mas representa o papel de tímido e

injustiçado, sempre através da uma admirávelcapacidade de dissimulação. Ricardo III   foi muitas vezes criticado por

alguns julgarem que sua estrutura de confronto entre o bem e o mal fosse excessivamente formal. No entanto,Tom F. Driver afirma que, ao contrário de um simplesmelodrama, Shakespeare busca elaborar sua obra a

 partir de uma visão abrangente, universal e histórica,que possibilite o entendimento do restrito e dotransitório, movendo-se numa atmosfera de memória,decisão e expectativa (1960, p.105). Harold C.Goddard chama a atenção para a jovialidade egenialidade de Shakespeare em sua impressionanteconstrução de  Ricardo III , que o crítico consideracomo o clímax e conclusão dos oito dramas históricosescritos pelo dramaturgo (1951, p.35-40).

Além disso, Peter Saccio aponta para a misturade estilos, com a linguagem que se apresenta comosublime e retórica nas falas de Richmond; comomundana e cômica, nos acontecimentos do segundoassassinato; e, entre esses dois extremos, nocaprichoso, artificial e autodirigido discurso de Ricardo III   (1997, p.157). Assim, a linguagem e aestrutura se unem para criar uma forma que expressauma ação essencialmente temporal e histórica naconcepção. Enfim, independentemente de sua análisecrítica, a verdade é que Ricardo III , desde a sua estreia,tem sido extremamente popular em termos de público(Bloom. In: RAFFEL, 2008, p.196). Essa popularidade

ocasionou inúmeras transposições de  Ricardo III  paraoutros meios, tais como o teatro, o cinema, a ópera, omusical e o balé.

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A adaptação de McKellen trabalha de forma arelativizar o imenso mistério envolvido com relação à personalidade Ricardo III e as circunstâncias em que

assumiu o trono. É importante notar que, com a derrotade Ricardo III na batalha de Bosworth, Henrique VII,ao assumir o trono, provavelmente fez com que oshistoriadores de sua corte retratassem o rei derrotadocomo um tirano que merecia ser deposto pelorepresentante da família Tudor.

Dessa forma, McKellen vai seguir o estereótipodo personagem Ricardo III como um homem corcunda,com a perna esquerda muito maior que a direita, ecaolho; detalhes que, ao serem apresentados por SirTomas Moore em seu livro,  História de Ricardo III, transformou essa imagem de vilão numa “verdadehistórica”. Ian McKellen traz este Ricardo III para osanos 30, oferecendo a problematização de como podeser feita uma adaptação do texto de Shakespeare, com

as diferenças entre a  performance  teatral e as possibilidades técnicas do cinema (enquadramento,edição etc.), e como a imagem de uma visãosuplementar pode substituir o texto shakespeariano.

Assim,  Ricardo III   foi, em grande parte, produzido num estilo que Jack Jorgens (1991) chamade modo realista, o que, em sua tipologia, significa

filmes “teatrais” que simplesmente transferem performances teatrais para a tela e versões filmadasque re-imaginam substancialmente a peça em termosde estética e recursos na nova mídia. O filme realistashakespeariano é caracterizado por um tipo de atuaçãomeio naturalista, cinematográfica e editada, que éusada na maioria dos filmes de Hollywood.

Os personagens são representados como“pessoas reais”, com maquiagem e figurino plausíveis,e os filmes relatam a narrativa fácil de ser aceita semchamar a atenção para a mídia.

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Esses filmes não são, obviamente, realistas nosentido de imitar nenhuma experiência atual de mundo;mas essas convenções cinematográficas, tal como a

continuidade de edição e trilhas sonoras, são tãouniversais que elas, ao menos, são percebidas pelamaioria dos espectadores.

 A nova onda de filmes shakespearianos,buscando por um pedaço do grande públicode Hollywood, se apoia nas condições

hollywoodianas, fazendo com que o Otelo de Parker seja anunciado pela Columbia Pictures como um suspense-erótico, o que otorna tão acessível como Atração Fatal. Ainda, enquanto os outros novos filmes deShakespeare empregam essas convenções queestão no centro das atenções, num caminho

inconsciente e de fácil aceitação, Ricardo IIIabraça e explora essas convenções para fazerum surpreendente e imaginativo filme shakespeariano que pode ser verificado emcada polegada do filme. (LOEHLIN, 1997, p.75.)

 Ricardo III  tem como um de seus hipotextos a produção teatral homônima, dirigida por Richard Eyre,com Ian McKellen como Ricardo III, o que despertouo desejo de Kellen para uma versão fílmica daerformance, uma vez que uma produção teatral só

sobrevive na memória daqueles que estiveram pessoalmente ou no palco, ou na plateia, ou na produção. Dessa forma, uma primeira tentativa de

registro da obra se deu pela sua própria gravação. No entanto,

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O caminho mais óbvio de se preservar uma performance ao vivo é a menos satisfatória, Ricardo III foi gravado ao vivo através de

três filmadoras, sendo que essas filmagens são apresentadas simultaneamente no museuConvent Garden, o que possibilita que ovisitante edite, assim como a plateia,mudando o seu foco de atenção pelas trêsimagens. Se esse sistema tem alguma serventia em termos acadêmicos, ele não

captura muito do impacto da cena original.[...] Hamlet, que foi gravada para a televisão, parece mais um comentário gravadoacontecendo através da performance do queuma peça teatral, o que pode só interessaraos estudantes do texto, mas não para quemquer encontrar Hamlet e não Ian McKellen.

(MCKELLEN, 1996, p.7)McKellen pretendia fazer uma versão fílmica

da peça, tendo, no entanto, o conhecimento de quemuitos atores que protagonizaram alguma adaptaçãode Ricardo III  de Shakespeare, antes dele, não haviamconseguido êxito de público, citando, como exemplodisso, Al Pacino na adaptação  Looking for Richard ,mas, lembrando, como grande exceção, a transposiçãoefetuada por Lawrence Oliver do palco para a tela deseu Ricardo III  (MCKELLEN, 1996, p.7).

Frente a esse desafio, McKellen buscou acolaboração de Loncraine, surpreendentemente, umdiretor de anúncios de televisão e filmes comerciaissem possuir nenhuma experiência na dramaturgia

shakespeariana ou mesmo teatral. Contudo, foi a partirda produção teatral de Richard Eyre que o filmeassume a sua mais importante escolha interpretativa:

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a realocação da ação para a Inglaterra dos anos 30 e aapresentação de Ricardo III como um ditador fascista.Embora o filme explore o paralelo histórico mais

 pontualmente do que a produção teatral faz, e a performance de McKellen no palco, por se apresentar deuma maneira mais formal e elaborada, resulte em algofalso ou artificial, sem dúvida, a sua performance nofilme é menos óbvia e mais efetiva (LOEHLIN, 1997, p.67).

 Numa abordagem realista, Loncraine explora

uma série de poderosas imagens, sendo, a mais óbvia, omomento em que no Ricardo III é aclamado rei peloscidadãos. A mídia cinematográfica permite a Loncrainecriar uma convincente realidade dos anos 30,estabelecendo uma incrível historicidade através de umasuperabundância de detalhes visuais, tais como aslimusines Bentley, os cigarros Abdula, os revólveres

Sten e os edifícios construídos num estilo arquitetônicoquase fascista.  Ricardo III , em sua versão teatral, nãoconseguia o mesmo efeito, uma vez que a década detrinta era representada principalmente pelo vestuário, oque resultava em algo que parecia ter sido estabelecidoarbitrariamente. De uma maneira geral, para o críticoJames Lohelin, como já observado, o filme pode serdef in ido como a mescla de dois gêneroscinematográficos principais: filme sobre a tradição britânica e o filme americano sobre  gangsters (1997,s/n).

Uma traição ao texto Shakespeariano?

Para a pesquisadora Thais Flores Diniz, a maioria

das adaptações (fílmicas) tem sua origem em umanarrativa, e o que se entende normalmente por adaptaçãoé, pois, a versão cinematográfica de uma obra de ficção(1999, p.41).

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Essa é a razão de, ao se abordar o tema daadaptação, pensar-se prioritariamente em uma fonteliterária. Assim, o processo de adaptação vem sendo

visto como unidirecional – caminhando sempre doliterário para o fílmico – e priorizando o primeiro emdetrimento do segundo.

Em consequência, o estudo da adaptação tendeu ase concentrar na comparação entre os dois tipos de textose na medida do sucesso alcançado pela transferência deum para o outro. Em síntese, a preocupação dos críticosvem sendo verificar a fidelidade do filme à obra de

ficção, isto é, se o filme consegue captar todos oselementos da narrativa, enredo, personagem etc.

Dentro deste panorama, muitas adaptações daobra de Shakespeare ainda continuam a ser analisadas e julgadas a partir da proximidade ou afastamento do texto,num processo onde a fidelidade à obra ocupa um lugar privilegiado. Entretanto, o pesquisador Robert Stam

discorda desta visão moralista das adaptações deromances ao cinema, pois, para ele, a linguagemconvencional da crítica tem sido profundamentemoralista, rica em termos que sugerem um desserviço àliteratura, tais como “infidelidade”, que carregainsinuações de pudor vitoriano; “traição”, que evoca perfídia ética; ou “deformação”, que sugere aversãoestética e monstruosidade; mas poderiam, muito bem,

serem substituídas por expressões positivas que nãoignorassem o que foi “ganho” (2006, p.20).

 Neste sentido, podemos afirmar que a obra a seranalisada não constitui nenhuma perda com relação àobra original, pois ela pertence a uma rede infinita dehipertextos que são criados através das diferentes mídias

e culturas e não necessariamente se constituem como tal.

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A pesquisadora Thais Flores N. Diniz, em seuartigo “Shakespeare Transcultural”, afirma que:

O fato de Shakespeare estar sendo constante-mente traduzido em várias línguas e culturas,através de vários meios de comunicação,dentre eles o cinema, traz consigo a vantagemde que ao se verificar que o tratamento dadoà ordem foi diferente em cada filme, podemosconcluir que esse elemento puramente

cultural mostrou-se crucial para amanifestação criativa dos vários tradutores. (2013)

Diante destas considerações críticas, pode-sedizer que  Ricardo III   de McKellen faz parte de umacomplexa e infinitamente grande rede de trabalhosartísticos (hipertextos) que dialogam entre si emdiferentes mídias, linguagens e paisagens. Dentro desta perspectiva trabalharemos com a ideia que um textosofre uma transformação quando de uma adaptaçãofílmica, ou seja, o resultado é sempre uma nova leituraque proporciona um novo texto, com diversos graus deaproximação ou distanciamento em relação ao texto-fonte, sendo que:

 A operação de passagem da linguagem de ummeio para outro implica em consciênciatradutora capaz de perscrutar não apenas osmeandros da natureza do novo suporte, seu potencial e limites, mas, a partir disso, dar o salto qualitativo, isto é, passar da mera

reprodução para a produção. (PLAZA, 2003, p.109)

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Mas, apesar de o conceito de adaptação mais ampla-mente difundido ser o que se refere a filmes cujashistórias foram narradas por obras literárias, esse

conceito vem se ampliando para abranger outrostextos, não apenas os literários. Para Patrice Pavis, oconceito de adaptação pode ter vários sentidos, entreeles o da transposição ou transformação de uma obrade um gênero em outro ou de um romance em uma peça, por exemplo (1999, p.10).

Esta relação entre textos se torna ainda mais

abrangente se usarmos o conceito de texto definido porBarthes:

[…] um campo metodológico de energia, uma produção em processo, que absorve o leitor eo escritor juntos; [...] não uma sequência de palavras que expressa um único sentido

teológico mas um espaço multidimensional noqual uma variedade de escritas, ou nenhumadelas original, se funde e se contrapõe.  (In:DINIZ, 1999, p.43)

 Na mesma direção, Clüver menciona que todasas artes, a música, pintura, escultura, fotografia,desenho, cinema, literatura etc., podem ser pensadasem termos de textos passíveis de serem lidos (2001, p.351). Porém, Diniz lembra que o que ahipertextualidade enfatiza não são as similaridadesentre os textos, mas as operações transformadorasrealizadas nos hipotextos, sendo que algumas delasdesvalorizam e trivializam os textos pré-existentes,outras reescrevem-nos em outro estilo; outras

reelaboram certos hipotextos cuja produção é, aomesmo tempo, admirada e menosprezada (1999, p.44-45).

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Outras, ainda, modernizam obras anteriores,acentuando certas características do original. Todavia,em muitos casos, o que se transpõe não é uma única

obra, mas todo um gênero. Um conceito abrangente dehipertextualidade inclui, portanto, os remakes, as sequels, as versões revisadas de westerns, os pastichesgenéricos, as reelaborações e as paródias.

Além disso, a adaptação não se limita à compa-ração dos aspectos semióticos, pois este fenômeno pode ser visto como uma manifestação de um processo

cultural em constante mutação.O conceito de adaptação deve ser ampliadocomo sendo um processo dialógico, complexo emultidirecional, que inclui os conceitos deintertextualidade, tradução intersemiótica, traduçãocultural e hipertextualidade.

 A exacerbação da violênciaA nova leitura de  Ricardo III ,  oferecida por

McKellen, logo nos primeiros momentos, apresentauma das características do seu filme, qual seja, aexacerbação da violência em relação a outrasadaptações fílmicas como a montagem estadunidensede 1912, dirigida por James Keane e estrelada pelolegendário ator teatral Frederick Warde, ou amontagem efetuada por Lawrence Oliver, logo após ofinal da Segunda Guerra Mundial. O primeiro registrocinematográfico mostra um tanque adentrandoviolentamente a sala de estar onde o príncipe Edward(dinastia Tudor) está jantando:

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Como a aparição do tanque não poderia serregravada ou repetida, quatro câmeras filmaram a sua única solitária entrada, que é

 seguida pelo “off” de uma respiraçãoritmada através de uma mascara de gás. Dessa forma, num primeiro momento o rostode Ricardo III está mascarado, uma formaapropriada para mostrar os seus sentimentoscom relação ao mundo.  (MCKELLEN, 1996, p.46)

Loncraine, desde o início, vai buscar aviolência, através do realismo cinematográfico, naimagem efetiva de um tanque de guerra, emcontrapartida à concretude cênica do teatro, que éefetuada através de um personagem que existe comoimaginário na atividade mental do espectador, pois, no palco, só encontramos homens, madeira, pano, gestos, palavras reais, colocados como “imagens” que devemser consideradas analogicamente como metáforas. Aadaptação fílmica traz, em sua origem, uma diferençade estilos entre ela e a versão teatral, pois, para DenisGuénoun, o cinema realiza o imaginário em imagensefetivas:

 Não basta apresentar o análogo de um objeto para que este substituto tenha direito, em sentido próprio, à denominação de imagem.[...] As imagens do cinematógrafo tornam-seimagens efetivas [...], relegando todas asoutras espécies de imagem à situação de“imagens” por metáfora. [...] Uma imagem

não é uma ficção. Imago não é fictio. Nemuma alegoria, nem um símbolo, nem um signo, nem um substituto figurado da coisa.(2004, p.102)

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Essa constatação acarreta duas consequências:qualquer coisa passa diretamente do corpo para aimagem sem que haja qualquer subjetividade

formadora, como é o caso de uma pintura, onde existea transferência de medidas, de linhas ou de volumes, por contato, por contiguidade do corpo com a formadepositada; e a imagem do “morto”, uma imagem queatesta o passado, dá testemunho do ausente, uma vezque este ausente esteve presente no lugar atual edeterminado pela sua ausência.

Conforme Guénoun,

[...] a fotografia atesta sem refutação possívela presença do que esteve ali e se ausentou. A fotografia dá a ver a presença – por default –do que está morto, ou, ao menos, do instanteque se foi irremediavelmente. [...] Há dupla posição conjunta: de realidade e de passado.[...] O que ilustra a observação abissal de Barthes a respeito da foto, mais quecentenária, de um condenado a morte antesda execução: ele está morto, e ele vai morrer .(2004, p.105)

Dessa forma, o cinema recebe, pela fotografia,sua impressão do real, e, assim, partilha de umaconaturalidade com o referente. Tudo se passa como seo cinema tivesse libertado o imaginário do espaçomental onde estava confinado, para lhe dar estatuto deente objetivo. O cinema é o imaginário realizado,

confiscando o imaginário de um teatro que estava coma cena cindida em duas:

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(i) existentes práticos (atores, cenários, adereços, luzes,etc.) e existentes imaginários (personagens, históriasetc.). O cinema realizou as produções imaginárias da

cena, dando-lhes existência concreta, assegurando asua independência, a libertação em relação à cena e osseus protocolos. (GUÉNOUN, 2004, p.107-110)

Ainda na sequência do início, a exacerbação daviolência acontece na figura de um soldado,identificado depois como Ricardo III, que sai dotanque e assassina o velho rei indefeso que seencontrava rezando sobre a sua cama:

 Através das chamas e da fumaça acre, Ricardo, o duque de Gloucester, em seuuniforme de batalha e com uma máscara de gás que encobre o seu rosto, sai por cima dotanque de guerra, liderando algunscomandados. Dois dos ajudantes de ordem do príncipe Edward são rapidamente alvejados pelos invasores. Ricardo checa se o príncipeestá mesmo morto e então aparece entrandoatravés de uma porta dupla. Ele as deixaabertas. Tremendo, rezando uma oração, ovelho rei. Ele procura pela figura apagada nocorredor. Uma saraivada de balas sai de sua

metralhadora Stein e o corpo do velho rei caiatrás da cama com o impacto das balas.(MCKELLEN, 1996, p.47)

 Na continuidade, Richard tira a sua máscara degás revelando que o personagem foi desenvolvidoiconicamente, ligado a Hitler pelo seu corte de cabelo e

forma do seu bigode, mas, no entanto, o seu uniformeo identifica com um oficial de alta patente, como SirOswald Mosley, o carismático líder da União dosfascistas da Grã-Bretanha.

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A violência vai continuar por toda a película, namaioria das vezes apresentando com detalhes cada umdos assassinatos encomendados por Ricardo III e

 possibilitando a problematização desta violênciaexacerbada a partir do conceito do “espaço da morte”,construído pelo antropólogo americano MichaelTaussig. O “espaço da morte” deve ser interpretado comouma importante criação do significado e da consciênciaem sociedades onde a cultura do terror floresce.

Para Taussig, a cultura do terror é nutrida natrama formada entre o silêncio e do mito, a ênfase do ladomisterioso está no rumor finamente tecido em teias derealismo mágico (1993, p.19).

Ricardo III cria o seu “espaço da morte” comoforma de impingir um temor mental agudo e, em grande parte, da agonia física da morte, numa íntimadependência mútua entre a verdade e a ilusão e entre omito e a realidade;

tudo isto relacionado com o metabolismo do poder,fazendo com que ele assuma o trono da Inglaterra semgrande resistência pelo desaparecimento dos príncipesherdeiros.

Conclusão

Apesar da exacerbação da violência queaproxima o Ricardo III  “nazista” do gênero fílmico deguerra do cinema americano, McKellen consegue deixarclara a relação entre violência e poder no caminho deRicardo III até o trono e acaba por tornar a obra deShakespeare mais acessível para o público em geral docinema, que sai com a ilusão da alma lavada, pois, afinal,o vilão se suicida, num castigo exercido por uma força

divina, sem nem mesmo ser preciso que o mocinho sujeas suas mãos.

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 Referências:

CLÜVER, Claus. Estudos Interartes: introdução

crítica.  Trad. do inglês de Yung Jung Im e ClausClüver. In: BUESCU, Helena Carvalhão; DUARTE,João Ferreira; Gusmão, Manuel (orgs.).  Florestaencantada: novos caminhos da literatura comparada. Lisboa: Dom Quixote, 2001. pp.333-362.DINIZ, Thaïs F.N.  Literatura e Cinema: da semiótica

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4. RICHARD III, AUTO DE ANGICOS E A

INTERMEDIAÇÃO DA VIOLÊNCIA

Os espetáculos a serem analisados – Richard III  (1995), de Richard Loncraine, e Virgolino e Maria: Auto de Angicos  (2008), de Amir Haddad – sãotransposições dos textos teatrais  Richard III  (1992) deRichard Eyre, e  Auto de Angicos (2006), de MarcosBarbosa, respectivamente. A razão de utilizarmos otermo transposição está ligada à formulação

apresentada por Genette:

 A transformação séria, ou transposição, é, sem nenhuma dúvida, a mais importante detodas as práticas hipertextuais, principal-mente – provaremos isso ao longo docaminho – pela importância histórica e pelo

acabamento estético de certas obras que delaresultam. Também pela amplitude e variedadedos procedimentos nela envolvidos.(GENETTE, 2005, p.51)

Em nossa análise, trabalharemos ainda,considerando não só  Richard III   de Eyre, como  Auto

de Angicos, de Barbosa como hipotextos dosespetáculos analisados, mas também  Ricardo III  (1993) de William Shakespeare e  Lampião, o rei docangaço (1965) de Carlos Coimbra, o que também estáde acordo com Genette, pois, para ele, essa proliferação de hipotextos tem a sua base teórica noenunciado de que toda obra de arte possui relaçõesintertextuais, não apenas, de uma forma direta, comoutras obras de arte de estatuto igual ou comparável, esim, de uma forma indireta, com todas as obras queinfluenciaram essas obras de igual estatuto:

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“De maneira mais direta: qualquer texto que tenhadormido com outro texto, dormiu também,necessariamente, com todos os outros textos com os

quais este tenha dormido” (STAM, 2003, p. 226).

Ao iniciar a nossa analise pelos hipotextosmais semelhantes, ou seja, Ricardo III  de Shakespearee  Auto de angicos, notamos que apesar desses doistextos teatrais se referirem à personagens históricaseles possuem uma imensa diferença temporal, o que

 possivelmente fez com que Shakespeare tivesse que se basear numa história pouco menos clara do que a deLampião. É importante ainda notar o imenso mistérioenvolvido com relação à sua personalidade e ascircunstancias que assumiu o tronoi. Além disso, com aderrota de Ricardo III na batalha de Bosworth,Henrique VII ao assumir o trono, provavelmente fezcom que os historiadores de sua corte retratassem o reiderrotado como um tirano que merecia ser deposto pelo representante da família Tudor.

Dessa forma Ricardo III vem sendo descritocomo um homem corcunda, com a perna esquerdamuito maior que a direita, e caolho de um dos olhos;detalhes que ao serem apresentados por Sir TomasMoore em  História de Ricardo III   transformou essaimagem de vilão numa “verdade histórica”. Por outrolado, devido à proximidade e os novos recursostecnológicos, se a imagem verdadeira de Ricardo IIIserá para sempre um mistério a ser desvendado,Lampião ao ter o seu registro fotográfico elaborado porBenjamin Abrahão, as suas ações noticiadas pelaimprensa e possuir testemunhos orais de pessoas que

com ele conviveram, deveria ter adquirido uma formamais nítida e cristalina, o que no imaginário das pessoas não aconteceu.

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 No que tange à representação nas diversasmodalidades artísticas, de uma forma geral, Lampiãoassume uma infinidade de papéis e caracterizações,

que vão desde a sua apresentação como uma pessoasuave e delicada interiormente, mas que a miséria e ainjustiça social fez com que embarcasse numa vida decrimes sem volta, uma espécie de “Robin Hood dossertões”, que de uma forma geral é a tônica daliteratura infantil, como por exemplo,  Lampião e Maria Bonita: o Rei e a Rainha do Cangaço (2005), de

Liliana Iacocca; até a sua retratação como uma pessoa possuidora de uma violência impar, como no texto Derradeira Gesta, Lampião e Nazareno:  Guerreandono Sertão (2007) de Luitgarde Barros que  desmenteesse lado "Robin Hood" do cangaceiro, mostrando queos pequenos proprietários rurais do nordeste fugiam delá para o sul do país, não por causa da seca, mas porque Lampião ameaçava o mais pobre e a suasobrevivência.

Essa verdadeira fragmentação da personalidadede Lampião mostra que a realidade histórica das personagens pouco pode acrescentar a uma análiseliterária, sendo muito mais importante a imagem que a personagem ocupa no imaginário coletivo. Lampião, bem antes de morrer, já era tratado como herói, um

nobre salteador, que tomava dos ricos para dar aos pobres, inspirando poemas, músicas e livros. Uma das poucas exceções na época foi a propaganda de umremédio que chegou a comparar os males que elecausava à sociedade com os distúrbios provocados pela prisão de ventre. Mas a referência ao cangaceiro comofigura nociva era exceção.

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Assim, podemos verificar uma relação no quetange ao aspecto imaginário popular versus contexto deuma época, entre os textos, pois, Marcos Barbosa, assim

como Shakespeare, transformou todo o rumor e históriaacerca da personagem Lampião em um drama e mito,direcionando a plateia para fora da história e trazendo oseventos e temas da peça de acordo com a sua relevância para a realidade de sua época, retomando a morte dosdois cangaceiros em Angicos, com uma mudançafundamental sobre o hipotexto de Carlos Coimbra, noque diz respeito à forma da apreensão moral do mito, a

 partir de um novo Zeitgeist  que se apresenta.Dessa forma, Marcos Barbosa transpõe a

lendária relação entre Lampião e Maria Bonita para acontemporaneidade, transformando os protagonistas,que dentro do mito do Cangaço, às vezes assumem a posição de assassinos sanguinários, enquanto em outrassão tidos como heróis, em um casal discutindo assuntos

cotidianos e sonhos. No entanto, se esses dois hipotextos citados possuem claramente fatores de convergência, o mesmonão pode, a princípio, ser verificado nas obras de arte deLoncraine e Haddad, pois mesmo com a transposiçãoefetuada por Ian McKellen, que trouxe Ricardo III paraos anos 30, o que o aproximou da época de Lampião, asdiferenças são bem grandes, pois, apesar de mais próximas no tempo, possuem diferenças intransponíveisno aspecto midiático e no estilo adotado.

O filme Richard III  traz uma interessante questãode como pode ser feita uma adaptação do texto deShakespeare, mostrando as diferenças entre a perfomance teatral e as possibilidades técnicas docinema (enquadramento, edição, etc.) e como a imagem

de uma visão suplementar pode substituir o textoshakespeareano.

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 Richard III  foi em grande parte produzido numestilo que Jack Jorgens (1991) chama de modo realista, oque em sua tipologia significa filmes “teatrais” que

simplesmente transferem perfor-mances teatrais para ate la e versões f i lmadas que re- imaginamsubstancialmente a peça em termos de estética e recursosna nova mídia.

O filme realista shakespereano é caracterizado por um tipo de atuação meio naturalista, cinemato-gráfica e editada que é usada na maioria dos filmes deHollywood. As personagens são representadas como“pessoas reais”, numa maquiagem e figurino plausíveis,e os filmes relatam a narrativa fácil de ser aceita semchamar a atenção para a mídia. Esses filmes não são,obviamente, realistas no sentido de imitar nenhumaexperiência atual de mundo; mas essas convençõescinematográficas tal como a continuidade de edição etrilhas sonoras são tão universais que elas ao menos são

 percebidas pela maioria dos espectadores.

 A nova onda de filmes shakespereanos,buscando por um pedaço do grande público de Hollywood, se apóia nas condiçõeshollywoodianas, fazendo com que o Otelo de Parker seja anunciado pela Columbia Picturescomo um suspense-erótico, o que o torna tãoacessível como Atração Fatal. Ainda,enquanto os outros novos filmes deShakespeare empregam essas convenções queestão no centro das atenções, num caminhoinconsciente e de fácil aceitação, Richard IIIabraça e explora essas convenções para fazerum surpreendente e imaginativo filme

 shakespeareano que pode ser verificado emcada polegada do filme. (LOEHLIN,1997, s/n.)

 

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 Richard III  , como vimos, tem como hipotexto a produção teatral homônima, dirigida por Richard Eyrecom Ian McKellen como Ricardo III, o que despertou o

desejo de Kellen para uma versão fílmica da performance, uma vez, que uma produção teatral sósobrevive na memória daqueles que estiveram pessoalmente, ou no palco, ou na platéia, ou na produção:

O caminho mais obvio de se preservar uma performance ao vivo é a menos satisfatória, Ricardo III foi gravado ao vivo através de três filmadoras, essa filmagem é apresentada simultaneamente no museu Convent Garden, oque possibilita que o visitante edite, assim comoa platéia, mudando o seu foco de atenção pelastrês imagens. Se esse sistema tem alguma serventia em termos acadêmicos, ele nãocaptura muito do impacto da cena original. [...]

 Hamlet, que foi gravada para a televisão, parece mais um comentário gravadoacontecendo através da performance do queuma peça teatral, o que pode só interessar aosestudantes do texto, mas não para quem querencontrar Hamlet e não Ian MacKellen.(MACKELLEN, p. 7).

Dessa forma, McKellen pretendia fazer umaversão fílmica da peça, tendo, no entanto, oconhecimento que muitos atores que protagonizaramalguma adaptação de Richard III  de Shakespeare antesdele não haviam conseguido êxito, cita como exemplo AlPacino na adaptação Looking for Richard  e lembra comogrande exceção a transposição efetuada por LawrenceOliver do palco para a tela de seu  Richard III  (MCKELLEN, 1996, p. 7).

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Frente a esse novo desafio, McKellen buscou acolaboração de Loncraine, surpreendentemente umdiretor de anúncios de televisão e filmes comerciais sem

 possuir nenhuma experiência na dramaturgiashakespereana ou mesmo teatral. Foi a partir da produção de Richard Eyre que o filme assume a sua maisimportante escolha interpretativa: realocando a ação para a Inglaterra dos anos 30 e apresentando Ricardo IIIcomo um ditador fascista. Embora o filme explore o paralelo histórico mais pontualmente do que a produçãoteatral faz e a performance de MacKellen no palco, por seapresentar de uma maneira mais formal e elaborada,resulta em algo falso ou artificial, sem dúvida a sua performance no filme é menos óbvia e mais efetiva(LOEHLIN, 1997, s/n).

 Numa abordagem realista, Loncraine explorauma série de poderosas imagens, sendo a mais óbvia, o

momento em que no Ricardo III é aclamado rei peloscidadãos. A mídia cinematográfica permite a Loncrainecriar uma convincente realidade dos anos 30,estabelecendo uma incrível historicidade através de umasuperabundância de detalhes visuais, tais como aslimusines Bentley, os cigarros Abdula, os revólveresSten e os edifícios construídos num estilo arquitetônico

quase-fascista.  Richard III   em sua versão teatral nãoconseguia o mesmo efeito, uma vez que a década detrinta era representada principalmente pelo vestuário, oque resultava em algo que parecia ter sido estabelecidoarbitrariamente. De uma maneira geral, para o críticoLohelin, o filme pode ser definido como a mescla de doisgêneros cinematográficos principais: o filme sobre a

tradição britânica e o filme americano sobre gangsters.

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O espetáculo teatral Virgolino e Maria: Auto deAngicos, como vimos, tem como um dos seushipotextos, o filme  Lampião, o rei do cangaço, mas

Haddad, ao invés de produzi-lo através do padrão realistado cinema, que como veremos adiante, foi chamado denordestern, traz para o palco a novidade de apresentar ocasal de cangaceiros Lampião e Maria Bonita, longe dos padrões estereotipados que prevaleceram nas maisdiversas áreas artísticas. Dentro dessa perspectiva,Virgolino e Maria, ao não optar por retratar a personagemLampião, utilizando a mesma estética realista

apresentada por Loncraine, já se distancia enormementedo fime Richard III .

O gênero nordestwestern  ou nordestern apresentado em Lampião, o rei do cangaço se estruturanum abrasileiramento do western  americano, sendocomposto por filmes ambientados na região nordestina,espaço onde se verificou a ocorrência do fenômeno

cangaço. Esse gênero fez o encantamento da platéiaatravés da oferta de uma temática brasileira, daindumentária original e do forte esquema musical, apesardo esquema simplório no estabelecimento dodesenvolvimento do conflito.

Assim, nesse sentido Haddad recria o texto deBarbosa, se afastando dos estereótipos de Lampião eMaria Bonita e o re-nomeia de Virgolino e Maria: Autode Angicos, trazendo para o palco, não apenas a lenda,mas também dois seres humanos tão iguais a tantosoutros. Essa concepção estética se afasta não só do filme Lampião,o rei do cangaço que em sua estética dramática busca criar a ilusão da personagem para o público, mastambém do Auto de Angicos, que apesar da transposiçãodo mito para a realidade atual efetuada por Barbosa,

ainda apresenta uma forte característica dramática que pode ser notada através da sua estrutura dialógica.

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O trabalho de Haddad vai se tratar da supressãoda ilusão dramática e dirigir os atores para umaencenação mais épica, numa estética não-dramática,

que não mais permite que o ator incorpore a personagem, ao mesmo tempo, que denúncia a formadramática como uma dramaturgia a serviço daideologia dominante.

Uma das estratégias utilizadas por Haddad para romper com essa perspectiva dramática do hipotexto Auto de Angicos está em evitar o excesso de realismo,

não caracterizando as personagens com roupas decangaceiro ou com características físicas de MariaBonita e Lampião. Assim, de acordo com Haddad, nasua produção, Virgolino é encenado por MarcosPalmeira – que está longe de ter um biótipo nordestino –, sem puxar pela perna e sem o problema do olhovazado, enquanto o papel de Maria, ao invés de ser

representado por uma mulher tipicamente nordestina,foi entregue a Adriana Esteves, uma “menina loirinhasuburbanai”.

A releitura do mito de Lampião efetuada porHaddad desvela o véu da ilusão proporcionado pelocinema. Além disso, se conjugam linguagens cênicasem relação de intermidialidade, tais como a música popular, o gestual (junto com a iluminação e ocenário), a arte ritualística como na abertura peça,quando dois contra-regras desempacotam o cenárioenquanto cantam a música  Acorda Maria Bonita, docangaceiro Volta Seca, e chamam o público para cantare acompanhar com palmas a música, mostrandoclaramente que o espetáculo não vai buscar os recursosda mimesis.

i Conforme entrevista concedida por Haddad em primeiro de junho de 2008.

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Richard III, de uma forma totalmente contrária,logo nos primeiros momentos apresenta o registrocinematográfico de um tanque adentrando a sala de

estar onde o príncipe Edward (dinastia Tudor) esta jantando:

Como a aparição do tanque não poderia serregravada ou repetida, quatro cameras filmaram a sua única solitária entrada, que é seguida pelo “off” de uma respiraçãoritmada através de uma mascara de gás. Dessa forma, num primeiro momento o rostode Ricardo III está mascarado, uma formaapropriada para mostrar os seus sentimentoscom relação ao mundo  (MCKELLEN, 1996, p. 46).

Loncraine desde o início vai buscar o real

cinematográfico na imagem efetiva de um tanque deguerra, em contrapartida à concretude cênica do teatroque é efetuada através de uma personagem que existecomo imaginário na atividade mental do espectador, pois no palco só encontramos homens, madeira, pano,gestos, palavras reais, colocados como “imagens” que podem ser consideradas analogicamente como

metáforas.O teatro está na cabeça. Sua existência éimaterial. Materialmente só há atores no palco [...], com figurinos, acessórios,movimentos e palavras que são concretudes. Diante da cena, espectadores, também elesconcretos. O teatro se forma neles,mentalmente, pelo suposto encontro de suas fantasias. É sempre, em fim de contas, umteatro interior. (GUÉNOUN, 2004, p. 102).

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Dessa forma, além de uma diferença de estilosentre o filme realista  Richard III   e o não-dramáticoteatro de Haddad, existe uma profunda diferença

midiática, pois, para Guénoun, o cinema realiza oimaginário em imagens efetivas:

 Não basta apresentar o análogo de um objeto para que este substituto tenha direito, em sentido próprio, à denominação de imagem.[...] As imagens do cinematógrafo tornam-seimagens efetivas [...], relegando todas asoutras espécies de imagem à situação de“imagens” por metáfora. [...] Uma imagemnão é uma ficção. Imago não é fictio. Nemuma alegoria, nem um símbolo, nem um signo, nem um substituto figurado da coisa. (GUÉNOUN, 2004, p. 102)

Essa constatação acarreta duas consequências:qualquer coisa passa diretamente do corpo para aimagem sem que haja qualquer subjetividadeformadora, como é o caso de uma pintura, onde existea transferência de medidas, de linhas ou de volumes, por contato, por contiguidade do corpo com a forma

depositada; e a imagem do “morto”, uma imagem queatesta o passado, dá testemunho do ausente, uma vezque este ausente esteve presente no lugar atual edeterminado pela sua ausência. 

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[...] a fotografia atesta sem refutação possívela presença do que esteve ali e se ausentou. A fotografia dá a ver a presença – por default –

do que está morto, ou, ao menos, do instanteque se foi irremediavelmente. [...] Há dupla posição conjunta: de realidade e de passado.[...] O que ilustra a observação abissal de Barthes a respeito da fotoi , mais quecentenária, de um condenado a morte antesda execução: ele está morto, e ele vai morrer .

(GUÉNOUN, 2004, p.105)

Dessa forma, o cinema recebe pela fotografiasua impressão pelo real, e assim partilha de uma co-naturalidade com o referente. Tudo se passa como se ocinema tivesse libertado o imaginário do espaço mentalonde estava confinado, para dar-lhe estatuto de ente

objetivo. O cinema é o imaginário realizado,confiscando o imaginário de um teatro que estava coma cena cindida em duas: (i) existentes práticos (atores,cenários, adereços, luzes, etc.) e existentes imaginários(personagens, histórias, etc.). O cinema realizou as produções imaginárias da cena, dando-lhes existênciaconcreta, assegurando a sua independência, alibertação em relação à cena e os seus protocolos.(GUÉNOUN, 2004, p. 107-110) 

Mas, apesar de toda essa diferença midiáticaentre o teatro de Haddad e o cinema de Loncraine, éimportante lembrar que essa diferença de mídia nãoassegura uma montagem menos real para a peça, pois,Haddad lembra que, assim como uma mera re-contextualização do texto ou mudança midiática,necessariamente não determina uma abordagem cênicamais contemporânea e como exemplo comenta arespeito da montagem baiana de Auto de Angicos,

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que se distanciou bastante de uma perspectiva épica, para adotar uma encenação dramática, com as personagens Lampião e Maria Bonita caracterizadas,

ou seja, buscando a “personificação” do ator a partir detrajes do cangaço, defeitos físicos de Lampião, e assim por diante. Dessa forma, Haddad, assim como Gatti(citado em SARRAZAC, 2002, p. 34), acredita que é preciso intervir na conversão das formas, pois cadaassunto tem uma teatralidade que lhe é própria.

Haddad afirma ainda em sua entrevista, que

evitou a todo custo o “diálogo realista”, buscandoexprimir melhor a densidade de sentimentos que moveos personagens e, sobretudo, valorizar a corpo, omovimento livre dos atores sem marcações, assimcomo no seu teatro de rua. “Seja num ambientefechado ou de rua, o espetáculo tem que proporcionaruma verdade para cada um dos espectadores que deveser apresentada nua e crua, e não colocada como umaessência que poucos poderão atingir”.

Dessa forma, Haddad se afasta da característica“nordestern” de Lampião, que traz implicitamente uma justificativa para a violência da personagem, comonum dos hipotextos de  Lampião, o rei do cangaço, oromance  Lampião: Capitão Virgulino Ferreira (1975)de Nertan Macedo que descreve o cangaceiro, comoalguém de índole boa, que somente depois de teralgum ente querido morto, resolve fazer a justiça comas próprias mãos:

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[...] o velho José Ferreira acordava sempremuito cedo. E em certa ocasião, depois doaviso que lhes deram os filhos, levantou-se da

rede e foi soprar o fogo para fazer café. [...],mal teve tempo de alçar a cabeça, para ver deonde partiam aqueles disparos. E quando os filhos menores acorreram, encontraram-notombado numa poça de sangue. [...] Nessamadrugada nasceu realmente Lampião.(MACEDO, 1975, p. 38)

Essa justificativa de vingança, de uma certaforma, aproxima de novo Lampião de Ricardo III, que pode ser analisado como alguém que objetiva umavingança contra a sociedade (Natureza) por ter nascidocom defeitos físicos:

RICARDO ( Duque de Gloucester ) — [...]

 Mas eu, sem jeito para o jogo erótico, nem para cortejar o próprio espelho, que sou rude,e a quem falta a majestade do amor para memostrar perante uma ninfa; eu que não tenhobelas proporções, errado de feições pelamalicia da vida; inacabado, vindo ao mundoantes do tempo, quase pelo meio, e tão fora de

moda, meio coxo. [...] Já que não sirvo paradoce amante, para entreter esses infelizesdias, determinei tornar-me um malfeitor. (SHAKESPEARE, 1993, s/p.)

Podemos verificar essas semelhanças comrelação ao fator “vingança” em  Lampião, o rei do

cangaço  e  Richard III   a partir da teoria dahipertextualidade desenvolvida por Gérard Genetteque afirma:

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Um palimpsesto é um pergaminho cuja primeira inscrição foi raspada para se traçaroutra, que não a esconde de fato, de modo

que se pode lê-la por transparência, o antigo sob o novo. Assim, no sentido figurado,entende-remos por palimpsestos (maisliteralmente hipertextos), todas as obrasderivadas de uma obra anterior, portransformação ou por imitação. Dessaliteratura de segunda mão, que se escreve

através da leitura, o lugar e a ação no campoliterário geralmente, e lamentavelmente, não são reconhecidos. Tentamos aqui exploraresse território. Um texto pode sempre ler umoutro, e assim por diante, até o fim dos textos. Este meu texto não escapa a regra. Quem ler por último lerá melhor.(GENETTE, 2005, p. 8)

 No entanto, nesses movimentos de afastamentoe aproximação entre estas duas obras de arte – baseadas em Ricardo III, “legítimo” rei da Inglaterra, eem Lampião, que se autodenominou “rei do sertão” –existe uma total aderência do aspecto tirânico das duas personagens, uma vez que Ricardo III assume uma postura nazista, um homem sem sentimentos, que logona abertura do filme mata o velho rei indefeso que seencontrava rezando sobre a sua cama:

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 Através das chamas e da fumaça acre, Richard, o duque de Gloucester, em seuuniforme de batalha e com uma mascara de

 gás que encobre o seu rosto, sai oor cima dotanque de guerra, liderando algunscomandados. Dois dos ajudantes de ordem do príncipe Edward são rapidamente alvejados pelosinvasores. Richard checa se o príncipe estámesmo morto e então aparece entrando

através de uma porta dupla. Ele as deixaabertas. Tremendo, rezando uma oração, ovelho rei. Ele procura pela figura apagada nocorredor. Uma saraivada de balas sai de suametralhadora Sten e o corpo do velho rei caiatrás da cama com o impacto das balas.(MCKELLEN, 1996, p.47)

 Na continuidade, Richard tira a sua mascara degás revelando que a personagem foi desenvolvidaiconicamente ligada a Hitler pelo seu corte de cabelo eforma do seu bigode, mas, no entanto, o seu uniformeo identifica como um oficial de alta patente como SirOswald Mosley, o carismático líder da União dosfascistas da Grã-Bretanha. 

Essa comparação com Hitler, o que reforça ocaráter violento das duas personagens, parece ser o ponto central da mediação entre as duas obras de arte, pois Rodrigues de Carvalho (s/d) apresenta, Lampiãocomo possuidor de uma crueldade comparável a Hitler,e passivo de ser classificado, dentro dos quadros da psicopatologia, num quadro de sadismo: “Isto me faz

 pensar que não há uma só humanidade, mas duas:

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a do Bem e a do Mal. Felizmente pertencemos a primeira, pois nos repugna praticar semelhantes barbaridades” (PEREIRA da SILVA citado em

CARVALHO, s/d., p. VII).Apesar de Haddad evitar essa dicotomia“positivista” entre o bem e o mal, embora o texto deBarbosa não caracteriza Lampião como uma simplesvítima da miséria e da injustiça social, preferindoapresentar o lado romântico de um homemapaixonado, o autor não deixar de também evocar a

imagem de uma pessoa com uma violência impar,como aparece na passagem que Maria Bonita lembrade um homem que Lampião matou:

MARIA.  Amarrar o miserável do barbudonum poste e arrancar os olho dele a faca comas criança tudo vendo. Sangue espirrando pratodo lado... Não precisava daquilo não.VIRGOLINO.  Era o castigo dele.MARIA.  Castigo dele era morrer. Pronto. Não tinha que arrancar os olho do homem,ele ainda vivo, gritando, não. Depois aindaestourou a bala os dois olho largado nochão... Pra quê?VIRGOLINO.   É para dar o exemplo do

traidor. Os outro sertão afora escuta que eu fiz aquilo, já não me trai mais.MARIA. Tanto que eu pedi pra tu parar .VIRGOLINO .  Se eu for parar toda vez quetu pede...(BARBOSA, 2006 , p.23)

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Dessa forma, apesar das diferenças de estilo ede mídia, existe entre o espetáculo não-dramáticoVirgolino e Maria  e o cinema realista de McKellen,

um fator de intermediação incontestável, que é oconceito de “espaço da morte” do antropólogo MichaelTaussig, para quem:

O assassinato, a tortura e a feitiçaria são tãoreais quanto a morte. O tema não trata daverdade do ser, mas o ser social da verdade. Não é verificar se os fatos são reais, mas a

 política de sua interpretação e representação. A enorme energia da historia confinada no“era uma vez”. A história que mostrava ascoisas como elas “realmente eram” revelou- se o narcótico mais forte do nosso século(Benjamin). (TAUSSIG, 1993, p.15)

Taussig lembra que o processo de pensar geranovos começos, retornando a seu objeto originalseguindo uma rota sinuosa, sendo que uma dascaracterísticas do terror é a inefabilidade, pois, àmedida que não se consegue com palavras construiruma narrativa para esta sensação, o homem começa aimaginar, a construir alegorias (imago). Taussig

conceitua o “espaço da morte” como uma importantecriação do significado e da consciência em sociedadesonde a cultura do terror floresce. Quem está paramorrer nas mãos do algoz, não acontece só fora doindividuo , acontece dentro, criando uma ambiência para o leitor (TAUSSIG, 1993, p. 19-25).

Dessa forma, as culturas do terror são nutridas

 pelo na trama formada entre o silêncio e do mito, aênfase do lado misterioso esta no rumor finamentetecido em teias de realismo mágico, fazendo com queRicardo III assuma o trono da Inglaterra, sem grande

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 No entanto, mesmo essa convergência entre asduas obras de arte acaba por se esvair, pois, comovimos Haddad evita dar uma sentença moral a respeito

de Lampião, trazendo junto com toda a violênciatambém uma faceta humana, pois assim como nohipotexto  Baile perfumado  (1996) de Paulo Caldas eLírio Ferreira, mostra o ambiente familiar entre oscangaceiros que riem, brincam, se divertem,cozinham, comem, lêem, dançam, fazem vaque- jadas, bebem água como pessoas normais, tal

como na passagem que Maria sugere uma festa para Lampião:

MARIA.  É só pra animar. Pra tu não ficardesse jeito. Gosto de ver tu assim não.VIRGOLINO.  Depois nós conversa.MARIA.  Tu fala com Pedro de Cândido,manda arranjar um sanfoneiro.VIRGOLINO. Sanfoneiro? MARIA.  Não pode não?VIRGOLINO.   É festa grande que tu estáquerendo, é?MARIA.  Grande, não. Festa pouca. Agora,custa arranjar um sanfoneiro? Melhor que ficarbatendo forró em argola de fuzil.

Virgolino, brincando, levanta seu Mauser e procura a argola.[...]VIRGOLINO.  Olê, muié rendeira. Olê, muiérendá. Tu me ensina a fazer renda que eu teensino a namorar/ (BARBOSA, 2006, p. 9)

Assim, Haddad, ao trazer momentos da

intimidade do casal ao palco, e se utilizar dessehipotexto de Abrahão evita a perspectiva deRichard III, que apresenta em sua configuração umadefinição extremada entre o bom e o ruim,

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e que a partir da constatação do caráter multifacetadodo homem conceituado por Hall, ficou sem sentido.Essa relação dicotômica entre o bem e o mal, foi

abordada pelo filosofo alemão Friedrich Nietzsche em Para além do bem e mal , que ao examinar civilizaçõesde épocas passadas, depreendeu certos traços que são justamente distintos, que culminam em dois tiposfundamentais de moral, mas que não são mutuamenteexclusivas, pois se mesclam até mesmo no interior deuma única alma humana:

 Acrescento desde logo que, em todas ascivilizações superiores e mais mistas, entramtambém em cena ensaios de mediação entreambas as morais, e ainda mais freqüentemente a mescla de ambas e orecíproco mal-entendido, e até mesmo, àsvezes, seu duro “lado a lado” – até no mesmohomem, no interior de uma única alma. (NIETZSCHE, 1981, p. 215)

Para Nietzsche, o escravo, o ressentido, o fraco,concebe primeiro a idéia de “mau”, com que designaos nobres, os mais fortes do que ele – e então, a partirdessa idéia, conclui, através da antítese, a concepção

de “bom”, que se atribui a si mesmo. O forte, por suavez, concebe espontaneamente o principio “bom” a partir de si mesmo e só depois cria a idéia de “ruim”como “uma pálida imagem-contraste”. Do ponto devista do forte, “ruim” é apenas uma criação secundária,enquanto para o fraco “mau” é a criação primeira, o atofundador de sua moral.

Assim, podemos dividir a abordagem do temaLampião a partir de dois grandes grupos: A partir daimpossibilidade da convivência entre o bem e o mau,como podemos perceber em Lampião;

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ou conforme Nietzsche, como uma questão perspec-tiva, que é mostrada em Virgolino. No espetáculo deHaddad, esse novo circuito de sentido é o próprio

contexto teatral contemporâneo, que afrouxa asamarras do teatro dramático de sentido único, umteatro que institui determinadas verdades que não possibilitam qualquer tipo de reflexão e que não proporciona as mínimas condições e perspectivas demudança.

Enfim, o público de Virgolino e Maria, ao

deixar o teatro, leva em si, uma experiência única, e percebe que o cangaceiro tem o seu lado Virgolino,como também tem o lado Lampião, e muitos outros eque o futuro é uma grande rede de possibilidades,enquanto o público de Richard III sai com a ilusão daalma lavada pois afinal o vilão se suicida no final, numcastigo efetuado por uma força divina, sem nemmesmo ser preciso que o mocinho suje as suas mãos.

1 O que ocorreu provavelmente a partir do assassinato de doissobrinhos herdeiros diretos ao trono, na época, menores de idade.1 O apogeu da vida do cangaceiro se deu entre 1920 e 1938.1 O neologismo Nordestern é uma criação do pesquisadorSalvyano Cavalcanti de Paiva (CAETANO, 2005, p. 11)1 Conforme entrevista concedida por Haddad em primeiro de

 junho de 2008.1 Trata-se da foto de Lewis Payne por Alexander Gardner (1865)

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5. O LAMPIÃO DE FERNANDO VILELA: NEM HERÓI,

NEM FACÍNORA... DEMASIADAMENTE HUMANO.

A capa de Lampião e Lancelote (vide figura 1) já indica a contraposição que se seguira por todo oromance entre a predominância da cor prateada paraLancelote e a paisagem medieval inglesa, e a cordourada para Lampião e o sertão nordestino.

FIGURA 1

Como veremos no decorrer deste estudo, a cor prata, para Ad de Vries (p. 425) significa a pureza, ainocência, uma consciência pura, como pode ser

verificado, na utilização do cálice de prata nascerimônias religiosas, e também sabedoria (a língua do justo tem a cor prateada). Além disso, a cor pratalembra o feminino, a lua e a noite em oposição aodourado do masculino, do dia e o sol.

Para Gaston Bachelard (2002, p. 9), estadiferença entre o feminino e o masculino também sereflete nos elementos água e fogo, pois o elementoágua é mais feminino é mais uniforme e constante queo fogo.

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Ele simboliza as forças humanas maisescondidas, mais simplificantes, tais quais as forçasimaginantes da mente que, no impulso da novidade,

escavam o fundo do ser. Como pondera Bachelard(2002, p. 9):

 É nela que materializamos os nossosdevaneios; é por ela que nosso sonho adquire sua exata substância; é a ela que pedimosnossa cor fundamental. Sonhando perto do

rio, consagrei minha imaginação à água, aágua é verde e clara, a água enverdece os prados. (...) Não é preciso que seja o riachoda nossa casa, a água da nossa casa. A águaanônima sabe todos os segredos. A mesmalembrança sai de todas as fontes.

O elemento fogo, ainda segundo Bachelard

(1999, p. 2-3), associa-se às crenças, às paixões, aoideal, à filosofia de toda uma vida. Deve-se tomarcuidado com um pensamento eminentemente objetivo,sob o risco de jamais se alcançar uma atitude objetiva.O fogo conduz sempre ao aprisco poético, onde osdevaneios substituem o pensamento, onde os poemasocultam os teoremas. Porém, Bachelard pergunta: “O

que é o fogo?”, e ele mesmo responde que, ainda hoje,as intuições do fogo permanecem presas a uma pesadatara e, apesar de toda racionalidade científica, ele aindaestá presente em nossa alma (ou se preferirem psique).Existe ainda uma secreta idolatria pelo fogo, uma psique que guarda os vestígios do homem velho nacriança, da criança no homem velho, do alquimista no

engenheiro.

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Em A psicanálise do fogo, o filósofo buscaexplicar as seduções que falseiam as induções, avalorização imediata da substância, o caráter objetivo e

subjetivo do fogo, seus valores não discutidos, seucaráter duplo que,

ao subir das profundezas da substância seoferece como amor, e torna a descer àmatéria e se oculta, latente, contido como oódio e a vingança. Dentre todos os

 fenômenos, é realmente o único capaz dereceber tão nitidamente as duas valorizaçõescontrárias: o bem e o mal. Ele brilha no Paraíso, abrasa no Inferno.”  (BACHELARD,1999, p.12)

Com relação ao romance propriamente dito, a primeira aparição é imagem (figura 2) de uma

Inglaterra (na época Bretanha) medieval, prateada esombria, um território dividido em reinosindependentes, onde alguns registros históricosapontam para um guerreiro chamado Arthur, que posteriormente entraria gloriosa e definitivamente paraa história, sob a mascara do famoso rei Arthur e seuscavaleiros da Távola Redonda.

FIGURA 2

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As primeiras referências a Arthur vêm do norteda Bretanha. Ele teria nascido por volta de 475, na pequena aristocracia da província. Com exatos 20

anos, montou um grupo de cavaleiros que saqueava aCornualha e Devon. Naquela época, o seu bando não passava de um exercito pessoal, até o momento em quecomeçaram as campanhas realmente sérias, no iniciodo século VI.

Villela, assim como a maioria dos cantadoresnordestinos, antes de mais nada, pede licença para a

falar do cavaleiro Lancelote (figura abaixo) que eleapresenta cavalgando entre castelos medievais. Umcavaleiro bom, nobre, forte e delicado, que não temmedo de enfrentar nenhuma batalha.

Lancelot é um dos cavaleiros da TávolaRedonda do Rei Arthur, mas parece não possuirnenhuma ligação com a realidade inglesa da época e, portanto, é fruto da ficção, mas uma ficção antiga ecom profundas implicações históricas, pois Artur e osseus cavaleiros estão dentro do imaginário inglês, eainda hoje, não há maior honraria do que ser nomeado

cavaleiro pela rainha da Inglaterra.

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 Na sequencia (figura 3), Villela traz Guineveree Morgana, duas das principais personagens dosromances da Távola Redonda, que para Jean Markale

(p. 40), simboliza a confrontação entre a religião cristãe as práticas herdadas do druísmo num verdadeirochoque de culturas. Guinevere era uma piedosa rainhacristã, enquanto Morgana é uma bruxa vilã que servia para demonizar a religião e os ritos pagãos da culturacelta.

FIGURA 3

Conforme vários textos da época, Morganaseria meio-irmã do rei Arthur e ao longo de toda lendase esforça para prejudicá-lo, fosse aprisionando-o,fosse fazendo de tudo para matá-lo, a fim de recuperaro poder que julgava usurpado. A rainha Guinevere,esposa do Rei Arthur, era o extremo oposto, com o seunome em galês Gwenhyfar sendo bastante revelador:“branca aparência”, que remete diretamente à purezada cor prata.

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Para Jean Markale (p. 43), Morgana tinha umsentimento de frustração em relação à esposa do irmão.Ela era apaixonada pelo belo Lancelote e não tolerava

que ele fosse o escolhido da rainha. Nesta perspectiva,apesar de Guinevere aparecer como uma anti-Morgana,ela também amava Lancelote apaixonadamente, numarelação adultera, o que obviamente é pouco conforme àidéia de uma rainha católica

O virar da pagina mostra um sertão nordestinodourado (figura 4), dominado pelo sol e pelo gado.

Sertão reportado por Euclides da Cunha em Os Sertões que relata a história deste povo sofrido que habita osertão brasileiro, uma região de terras não cultivadas.Um vasto território onde não havia cercas delimitandoas propriedades. As cercas só eram usadas para proteger a roça do gado, e onde os vaqueiros setrajavam com uma indumentária  sui generis  feitainteiramente de couro (BARROS, 2000, p. 46).

FIGURA 4

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A importância do gado que remete a própriaorigem do sertanejo, pois para muitos pesquisadores, ohomem chegou ao sertão deixando para trás o

sedentarismo, uma forma de vida inspirada na produção agrícola para iniciar o chamado “ciclo dogado”. Mas esta pecuária tem pelo menos uma grandediferença da pecuária litorânea ou do resto do país.Conforme podemos observar na figura 5, através dasimagens dos mandacarus, o sertão é uma região carentede água.

Por este motivo, o sertão traz todas asimplicações da vida nômade, a necessidade da buscade novos pastos, haja vista, o rápido desgaste nessasáreas semi-áridas. O isolamento característico dohomem desta região está ligado a esta forma de criaçãode gado que não comporta o trabalho massificado. Ocriador era um homem individualista, autônomo,improvisador e, sobretudo, livre. É importante tambémobservar que, distante da dos traços culturais do sul doBrasil, a personalidade sertaneja também é constituídana indiferença no trato com o sangue devido à predominância da atividade pecuária. “O meninosertanejo muito cedo banhando-se de sangue, ajudandoo pai a sangrar o boi ou o bode para o preparo dacarne-de-sol” (MELLO, 2005, p. 21).

FIGURA 5

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 No meio destes mandacarus, Vilela apresentauma série de cangaceiros, “homens sem temor derisco”, que herdaram a valentia de seus antepassados,

uma população que foi obrigada a lutar contra osindígenas locais e até mesmo animais ferozes, ficandoisolada e empobrecida.

 Na sequencia da ilustração (Figura 6) que seencontra na pagina seguinte, Vilela finalmenteapresenta Lampião juntamente com Maria Bonita,sendo fiel à imagem do casal cangaceiro, que bemantes de serem assassinados em Angicos pela patrulhavolante, já havia se transformado numa figura lendáriano panorama sociocultural brasileiro devido não só aosseus feitos, mas também devido a uma mídia ávida denotícias sensacionalistas e de todo um trabalholiterário, onde predominava a literatura de cordel, semdúvida uma das fontes de referência para o romance.

 No que tange aos estudos históricos em relaçãoa esta personagem, eles apresentam uma série deabordagens perspectivas que vão desde a suaapresentação como uma pessoa honesta e trabalhadora,mas que a miséria e a injustiça social fizeram com queembarcassem numa vida de crimes sem volta, até a sua

retratação como uma pessoa extremamente violenta.

FIGURA 6

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Um fator de suma importância na pesquisahistórica a respeito de Lampião diz respeito à proximidade temporal com o fenômeno, o que

significa dizer que foram possíveis a obtenção deentrevistas com uma série de pessoas que tiveramcontato real com Lampião. Também é mister demencionar um grande volume de fotos, filmes ereportagens efetuadas por uma mídia ávida de noticiassobre o cangaceiro. A verdade é que talvez nenhumaoutra personagem histórica brasileira tenha sido tão

“explorada” como o cangaceiro nordestino.Todavia, apesar desta propalada proximidade,renomados pesquisadores, tais como, Luitgarde Barros(2000), Frederico Pernambucano de Mello (2005), RuiFacó (1983) e Maria Christina Machado (1978), entreoutros, possuem diferentes visões sobre este assunto.Barros e Mello ressaltam o seu caráter ligado ao

 banditismo

1

, enquanto Machado e Facó Machadoapresentam, dentro de uma perspectiva marxista,Lampião não como um fato isolado, mas sim como oresultado de uma época em que se processava a lutasurda, empreendida pelo vaqueiro contra o senhor daterra. (MACHADO, 1978, p. 6).

A jornalista Vera Ferreira, neta de Lampião, emseu livro De Virgolino à Lampião (1999), vai trabalharesta discrepância entre os historiadores propondo umahistória do cangaço onde existam, pelo menos, doisLampiões:

[...] um (real) que teve a sua existência real,que viveu todas as vicissitudes que um homema margem da lei experimenta, e outro (mítico)que foi criado a partir de cada façanhaefetiva ou inventada.

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 Este é um produto coletivo que vai cada vezmais sobrepujando o primeiro. Há umaabundante literatura sobre o cangaço, mas

 poucos oferecem um quadro histórico mais oumenos completo. Tem-se praticado em tornodo cangaço ainda uma espécie de história dotipo tradicional, ancorada nos heróis e nos seus grandes feitos, que faz com que a sua participação no imaginário continuecrescendo. (FERREIRA, 1999, p. 10)

Seja lá qual for a perspectiva adotada, todas as biografias de Lampião têm invariância de uma ordemde dados, também salientados pelos informantes: eraum exímio cavaleiro. Almocreve, cruzava as fronteirasde Pernambuco, Alagoas e Sergipe, cujos caminhos percorria com intimidade, conhecendo como a “palma

da mão” a rede de rios e riachos que abastecia oMoxotó e o Pajeu. Palmilhava os pés de serra, grotas esocovões, deslocando-se na catinga com a naturalidadedos experimentados vaqueiros do Pajeú. (BARROS,2000, p. 85)

Porém, se o fato de Lampião tiver sido umacriança pobre é aceito de uma maneira geral, mesmoesta infância e juventude de uma criança sertaneja, passa a ser ideologizada. Maria Machado afirma queele desde muito menino, pelo fato de ter assistidomuitas rixas no sertão, onde o coronel sempre levava arazão, já criava conceitos cada vez mais rígidos contraos potentados. Machado apresenta como argumentoum poema atribuído a Lampião:

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Se os homem desse aos viventeO que açambarca os banqueiro

 E dividisse as quintanda

 E tudo dos masoquero Neste mundo de miséria Não havia cangaceiro (MACHADO, 1978, p. 36)

Esta opção de obter a justiça através daviolência, que para Machado é causada por umarevolta infantil só vai fazer crescer com o processo de

desenvolvimento de Lampião. Outro fator preponderante na formação do cangaceiro está na suaorigem numa região atormentada pelas secas, uma paisagem árida. Neste ambiente sujeito à longos períodos de estiagem, acabam por empurrar muitos dosseus habitantes para o cangaço como meio de vida.

Mello (2005, p.190) chama a atenção para acorrelação entre a seca, as agitações políticas e arapinagem cangaceira, pois a seca promovia adesarticulação da incipiente estrutura governamental.O pesquisador oferece como argumento o editorial doJornal do Recife, edição de 5/12/1926, onde é relatadoque nos sertões de Pernambuco estavam surgindooutros bandos, que assim como o bando de Lampião,estavam fortemente armados e municiados,depredando e arrasando tudo nas suas passagenssinistras.

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 FIGURA 7

O dourado dá lugar á cor preta, que para AdVries (p. 50) está relacionado com a sombra, com anoite e com própria morte. A morte que, como vimos,está impregnada na cultura sertaneja. A noite, por sua

vez, para as pessoas que não têm uma casa para moraracaba por se transformar num verdadeiro animalselvagem que vai causar o medo (BACHELARD,2003, p. 172).

 Naquela época, o panorama não poderia sermais sombrio e mortal, com os coronéis, donos degrandes latifúndios no Nordeste, com total autoridade

sobre os sertanejos e com poderes de vida e mortesobre eles não podiam permitir que a sua autoridadefosse colocada à prova: qualquer tipo de agressãogerava uma resposta ainda mais violenta, como porexemplo, exterminar totalmente a família do agressor.

Vilela, assim como Machado (1998, p. 37),mostra um Lampião e seus cangaceiros como homens

em luta contra o coronelato: “homens que lutavam porque não chegaram a conheceram a justiça. Fizeram,então, a justiça com as próprias mãos.

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Eram os fora-da-lei. Mas onde realmente estavaa lei? No bolso dos ricos ou no porrete do coronel?”

A cena seguinte volta para a Inglaterra que,

segundo o autor, vivia nas trevas da Idade Média, oque é realçado com a utilização da cor preta que predomina metade da ilustração. Lancelote vaicavalgando pelas terras do Vale do Lago Sagrado ondevivia a feiticeira Morgana, que frustrada da possibilidade de tê-lo para si, lançou um feitiço nopformato de uma nuvem branca, pela qual se adentrou o

cavaleiro (Figura 7), passando por um portal do tempoe chegando ao sertão nordestino.

FIGURA 8

O cavaleiro passa a cavalgar pelo sertãonordestino até o momento em que se defronta comLampião (Figura 9). Este encontro se dá primeiramente

 pela mistura das cores prata e ouro.

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Lampião ao avistar o cavaleiro, em meio aocalor nordestino, ordena-o a parar, iniciando umdiálogo dominado por insultos mútuos.

Os encontros de Lancelote e Lampião, e da EraMedieval com o sertão, promovidos por Vilela podeser também verificado através da literatura de cordel.Como sabemos, a literatura de cordel é uma espécie de poesia popular que é impressa e divulgada em folhetosilustrados com o processo de xilogravura. Escritos emestilo épico, os versos do cordel, naturais filhos das

gestas medievais, dos romances de cavalariatransplantados da Península Ibérica, fecundaram alíngua e o imaginário das populações sertanejas(BARROS, 2000, p. 14).

FIGURA 9

Os cordéis chegaram ao Brasil no século XVIII,

mas hoje, ainda é possível, encontrá-los sendo vendi-dos em algumas regiões pelos próprios autores, sendoque, algumas vezes, estes poemas são recitados em pú- 

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-blico, ou, até mesmo acompanhados pelo som dasviolas. A sua especificidade advinda de ser umaimportante fonte de memória popular vai influenciar

vários escritores nordestinos, tais como: João Cabralde Melo, Ariano Suassuna, José Lins do Rego eGuimarães Rosa.

Estes pequenos livretos são escritos através deuma linguagem simples, com uma tendência de se usaros recursos humorísticos no tratamento de fatos davida cotidiana da cidade ou da região, tais como:

festas, disputas políticas, fatos pitorescos, assuntosreligiosos, atos de heroísmo e vilania. Percebe-se,todavia, que não obstante a aparente simplicidade dalinguagem, muitos poemas de cordel possuem umalinguagem rebuscada, muito distante da parcimônia de palavras, um elemento típico da sociedade sertaneja.

Luitgarde Barros (2000, p. 14), apresenta comohipótese para este fenômeno, a influência da próprialiteratura em seu estilo épico, proveniente das gestasmedievais e dos romances de cavalaria transplantadosda Península Ibérica, que fecundaram a mãe agreste, alíngua e o imaginário das populações sertanejas.Ainda, segundo Barros (2000, p. 156), no processo deheroificação do cangaceiro, ainda é importante lembrara contribuição trazida pelo cordel no sentido daaproximação dos feitos do cangaço às façanhasmedievais que são relatadas no livro  História deCarlos Magno e dos Doze Pares de França  quedurante tanto tempo circulou pelo Nordeste, inspirandocantores e poetas populares. Os cordelistas adaptaramalguns elementos advindos das gestas medievais àcatinga como príncipes vestidos com gibão, pelejando

 pelos sertões nas derrubadas de boi, numa luta detrabalho e força esperando alcançar com a vitória o premio cobiçado, uma donzela:

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 A travessia de setenta e sete léguas decatinga, enfrentando onça e boi brabo,levaria um valente a um distante castelo onde

vivia uma princesa. Amarrando o cavalo nocopiá de uma taipa, o rapaz olha ao longe atransfiguração da princesa, filha do fazendeiro. As moças direitas, filhas dehomens de bem, são princesas daqueleshomens das armas, ainda presos a algunsantigos valores (BARROS, 2000, p. 157). 

Esta aproximação medieval com Carlos Magnoé também lembrada por Curran (1988, p.69), quecompara o modelo narrativo do herói-cangaceiroAntonio Silvino de Leandro Gomes de Barros com a personagem Carlos Magno no livro medieval. O poetatirou dois episódios para criar dois clássicos do

romance de cordel: A Batalha de Oliveros comFerrabraz e A prisão de Oliveros.Câmara Cascudo citacasos de sertanejos cujos filhos se chamam CarlosMagno, Rolando ou Oliveros. Na literatura de cordel, ovaqueiro, o valente sertanejo e o cangaceiro têm traçosde Carlos Magno ou de seus cavaleiros, embora usemchapéu de couro, o gibão e as perneiras do interior, emvez de armaduras de da espada de aço. Veja-se o quediz Antonio Silvino nesta cena de Gomes de Barrosque lembra Roncevalles:

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A luta termina através de uma mistura entre osertão e a Era Medieval, que já observamos noscordéis, com Lampião numa armadura maior que ele, eLancelote com os trajes de Lampião. Lampião pega asanfona e começa a tocar um xaxado em homenagem aLancelote. Esta ligação do cangaço, e em particular deLampião com a música, ao trazer consigo a imagem deum cangaceiro possuidor de um lado romântico forte,reforça a figura de Lampião como um homem bom eamoroso que o destino desviou dos caminhos do bem.Esta imagem de Lampião como um homem de bons

sentimentos vai receber um reforço a partir da canção Acorda Maria Bonita  composta por Volta Seca eregistrada em disco fonográfico em 1957.

A luta das nove páginas anteriores é substituída por seis paginas onde todos dançam, desde Lampiãocom Guinevere, Maria Bonita e Lancelote até omomento em que a feiticeira Morgana desgostosa com

o rumo dos acontecimentos, resolve acabar com a festae através de uma magia colocou todo mundo nestecordel de Vilela.

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Assim, Vilela consegue quebrar a visãodicotômica herói-bandido de Lampião relativizando posições pragmáticas na sua obra a partir da escolha dadiversidade de cores/símbolos (cores preta, dourado e

 prata), da utilização de várias linguagens (verso,sextilha do cordel sertanejo, prosa, narrativa épica), derecursos gráficos (carimbo e xilogravura), ou ainda deelementos intertextuais. Para os defensores de Lampiãocomo um bandido onde só podemos encontrar aviolência e a atrocidade, ele mostra o cangaceiro com pouca paciência e que por qualquer motivo fútil, como

a discussão com Lancelote, parte para o caminho daviolência. Para os que acreditam na “boa índole” eleoferece o lado humano de um indivíduo que não foimais violento do que o cavaleiro Lancelote, umexemplo paradigmático de herói medieval, e assimcomo o cavaleiro é capaz de ter um grande amor poruma mulher.

 Neste aspecto aparece a imagem de umnordestino generoso e justo, cruel e tolerante, prudentee arrojado, que soube com esse comportamento meiocontraditório manter a ordem no seu bando.

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Um cangaceiro que era um líder, mas queapesar de ser um condutor duro e inflexível, foi capazde amar com ternura uma mulher, a quem foi fiel e

companheiro.

* * *

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 Referências bibliográficas

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