jornal do teatro #02

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02 lisboaMITE’06 D. Juan, e o infinito desejo de ser amado Electra, energia física e esplendor trágico 5 Heures du Matin, 8 cidades que despertam

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O Jornal do Teatro surgiu da vontade de experimentar, criar e dar espaços, a quem partilha o gosto pelo teatro. Das reflexões clássicas, à problemática da contemporaneidade, o Jornal do Teatro, do Teatro Nacional D. Maria II teve como principal alvo a reflexão sobre os tempos, que se mudam e evoluem e que, em última instância, são testemunhos ricos de cada época. De 2006, 2007 e 2008, período em que foi publicado, fez-se o retrato breve de uma ‘casa da cultura’ que é, antes de mais, uma casa aberta à sociedade e ao mundo.

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Page 1: Jornal do Teatro #02

02 lisboaMITE’06

D. Juan, e o infinito desejo

de ser amadoElectra,

energia física e esplendor trágico

5 Heures du Matin, 8 cidades

que despertam

Page 2: Jornal do Teatro #02

Musicalidades Romenas Um dos músicos mais respeitados da Roménia, Ioan Pop, líder da banda de música tradi-

cional Iza, aproveitará esta passagem por Portugal para dar a conhecer as sonoridades muito especiais da zona de Maramures, no noroeste do seu país. O grupo integra o elenco do espec-táculo “Electra” e dará um concerto único na noite de 4 de Julho, no final da representação.

Músicas no ÁtrioO’QuestradaOs O’Questrada apresentam, na Lisboa Mite’06, um espectáculo divertido e surpreen-

dente, no Átrio do TNDMII, todas as sextas-feiras, às 24h, até 26 de Julho.

Jazz às 24hJOANA MACHADO TRIO> 1 de Julho > ZUM TRIO> 8 de JulhoJOÃO PAULO ESTEVES DA SILVA> 15 de Julho > COMMUNION QUINTET> 22 de Julho

PREÇO COMUM> €5,00 e €3,00 para jovens < de 25 anos

Nós pelos olhos dos outros O jornal espanhol “El País” entrevistou o director artístico adjunto do Teatro Nacional,

José Manuel Castanheira, a propósito da Lisboa Mite’06 e dos projectos da nova gestão para o futuro deste espaço. Àquele jornal, Castanheira explicou que a Mostra Internacio-nal de Teatro é “a primeira ponte de internacionalização” do novo TNDM II, que se quer abrir à pluralidade e à diversidade da cena europeia e ibero-americana. “Queremos criar cumplicidades com directores, jovens autores, actores, centros dramáticos, teatros nacio-nais, festivais e técnicos”, conclui o arquitecto português.

O suplemento “El Cultural”, de dia 4 de Maio, congratulou-se com a nomeação do ce-nógrafo José Manuel Castanheira como director artístico adjunto do Teatro Nacional D. Maria II. E passamos a citar: “Entre os seus ambiciosos objectivos, conta-se o de melho-rar as relações culturais com Espanha. A sua colaboração mais recente foi com um dos nossos autores. Sanchis Sinisterra confiou-lhe a cenografia de ‘El Lector por Horas’, obra que encenou em Prato, localidade italiana cujo teatro público dirige.”

Próximos debatesGeorges Banu (5 de Julho); Emmanuel Demarcy-Mota (11 de Julho);José Sanchis Sinisterra (26 de Julho)Às 18h00 no Salão Nobre do Teatro Nacional.

EsplanadaO Teatro Nacional abriu finalmente as portas da sua fachada principal, que dá directa-

mente para a Praça D. Pedro IV. A esplanada estará aberta entre as dez da manhã e as dez da noite, para quem quiser tomar uma refeição ou simplesmente beber um café com vista para o Rossio.

Editorial

02 > lisboaMITE’06 > 02

Superando as nossas melhores expectativas, esta segunda publicação do jornal da Mite revela-nos, de uma forma muito clara, o modo como três das nossas ideias centrais já estão a ser concretizadas.

Em primeiro lugar, o conceito da Mostra como espaço de laboratório que seja per-manente e desenvolva projectos entre cada edição. Gil Vicente é o autor ideal para ligar Espanha e Portugal através da relação entre a Companhia de Teatro Clássico de Madrid e o Teatro Nacional D. Maria II. Este é o primeiro passo na troca de experiências entre as duas entidades, uma cumplicidade que queremos aprofundar e voltará a dar frutos muito proximamente.

Em segundo lugar a ideia de que todo o trabalho de experimentação e de laboratório tem de ter como suporte e eixo central a matéria humana. O teatro é das poucas lingua-gens sociais onde o homem está no centro, e daí o respeito e o lugar de excelência que tem de se dado aos intérpretes. A homenagem simbólica que fizemos aos actores do Nacional é um acto fundador desse respeito que passa, também, pelo reconhecimento da importância da nossa memória e pela valorização das tradições.

Finalmente, e como terceiro eixo, é a constatação de que a experimentação só pode ter sucesso se funcionar em espaços abertos, como não se cansa de dizer Peter Brook. A di-namização e abertura do Teatro Nacional ao exterior, concretizada num gesto tão simples como foi a inauguração da esplanada virada para o Rossio, uma das praças mais multi-culturais de Portugal, é um sinal claro do que queremos fazer, principalmente quando a multiculturalidade e a mestiçagem são eixos centrais do nosso projecto.

Carlos FragateiroJosé Manuel Castanheira

DIRECÇÃO> Carlos Fragateiro

e José Manuel Castanheira

COORDENAÇÃO> Pedro Mendonça

COORDENAÇÃO EDITORIAL> A. Ribeiro dos Santos

REDACÇÃO> A. Ribeiro dos Santos,

Margarida Gil dos Reis, Ricardo Paulouro

COLABORADORES> José Camões, José Pedro Serra

DOCUMENTAÇÃO> André Camecelha

GRAFISMO> Nuno Patrício

FOTOGRAFIA> Margarida Dias

PROPRIEDADE> TNDM II, SA

IMPRESSÃO> Mirandela Artes Gráficas

Ficha Técnica

mostra internacional de teatroo grande teatro do mundo

Espectáculos legendados em português.

Debates> Conferências> Cinema> Músicas no Átrio às 24h>

www.teatro-dmaria.pt

RESERVAS>[email protected]> 21 325 08 35Informações> 21 325 08 27

Odisseia

Page 3: Jornal do Teatro #02

29>30> JUNHO 01>02> JULHO > 02 > lisboaMITE’06 > 03

Próximos espectáculos >D. Juan >

Mais de 400 anos depois de Jean-Baptiste Poquelin de Molière ter escrito “Dom Juan”, o Teatro do Bolhão, do Porto, traz à Lisboa Mite’06 uma versão muito especial deste clássico da dramaturgia que, desde a sua es-treia absoluta, em 1665, não mais deixou de conhecer reinterpretações ao longo de qua-tro séculos de História do Teatro.

Aborrecido com a recente proibição de levar à cena “O Tartufo” – em que criticava a hipocrisia da classe religiosa – Molière de-cidiu, em jeito de retaliação, conceber uma peça em torno de um herói indiferente a qualquer tipo de autoridade. Dom Juan é um verdadeiro espírito livre, um homem que não se deixa condicionar por regras nem pode-res, indiferente aos deveres políticos, sociais, religiosos e, até, paternais. Um herói que deixou a sociedade francesa profundamente desconfortável e que levou os críticos a apon-tar a leviandade do autor, sugerindo mesmo tratar-se de um homem imoral!

Para que a coisa não se tornasse dema-

siada acintosa, Molière decidiu “matar” o protagonista no fim da peça, para apaziguar as consciências. Como quem diz acalmem-se, pois o prevaricador será punido para tran-quilidade de todos.

António Capelo, director do Teatro do Bo-lhão, diz que decidiu montar o texto porque é uma das linhas programáticas da sua com-panhia: levar à cena autores de referência da dramaturgia e literatura universais. Casos de Bertolt Brecht, Samuel Beckett, Miguel de Cervantes, Alfred de Musset, Molière... Mas também porque Dom Juan é “um mito por demais fascinante”, tratado por autores tão significativos como Tirso de Molina, Zorilla, Mozart, Strauss, Shaw ou Byron.

“George Steiner considera que é o único mito ‘não grego’ que conquistou um lugar central na cultura ocidental. Dom Juan é uma personagem conhecida mesmo para aqueles que nunca o ‘viram’ em nenhuma das suas versões teatrais ou cinematográficas, mas identificam através dele, na linguagem co-

mum, um certo tipo de homem e reconhecem o significado do termo D. Juanismo.”

Sobre o facto de ser um criador japonês a encenar “Dom Juan”, Capelo explica: “O japonês Kuniaki Ida traz para o espectáculo todo um universo de linguagens e referên-cias múltiplas resultantes do cosmopolitismo da sua própria experiência pessoal e profis-sional. No espectáculo cruzam-se o excesso operático, o despojamento oriental, o barroco europeu e a sua paixão por Ingmar Bergman. Acima de tudo, o criador nutre um profundo amor pelos seus actores, o que também se nota em cena.”

Um teatro para o Porto

Fundado em 2003 por um grupo de doze profissionais de várias áreas da criação e produção teatral associados à Academia Con-temporânea do Espectáculo (ACE), o Teatro do Bolhão tem, nos últimos três anos, pro-curado, com sucesso, implantar-se no tecido

cultural do Porto. O êxito explica-se, dado o repertório acima de suspeita: para além dos clássicos, o grupo tem ainda levado à cena textos contemporâneos de pendor realista (como a peça “Quem Tem Medo de Virginia Woolf?”, de Edward Albee, que trouxe ao Tea-tro da Trindade) e criações pluridisciplinares assinadas pela encenadora e coreógrafa Joa-na Providência. E dada a sua estreita ligação à ACE, é-lhe relativamente fácil integrar, nos seus projectos, jovens profissionais que re-novam os seus quadros artísticos e técnicos.

Mas para a implantação do Teatro do Bo-lhão tem também sido fundamental o progra-ma de itinerância da companhia, que circula sistematicamente por cerca de quinze teatros municipais. Uma itinerância que agora se quer alargada a Lisboa. António Capelo está particularmente satisfeito com este convite. “A nossa participação na Mite vem proporcio-nar à companhia uma oportunidade rara de tornar o nosso trabalho mais visível.”

Teatro do Bolhão traz à Lisboa Mite’06 um espectáculo do japonês Kuniaki Ida, a partir de Molière

Porque é impossível odiar Dom JuanUm dos aspectos mais fascinantes da obra de Molière é que os seus heróis são

complexos e não lineares, apresentando, simultaneamente, características posi-tivas e negativas. Dom Juan é, nesse aspecto, paradigmático. O mesmo homem que seduz e abandona mulheres umas a seguir às outras é, também, o homem que, vendo o seu semelhante em perigo, não hesita em pegar em armas para o defender. O homem que nunca paga as suas dívidas é o mesmo que, tomado de piedade, dá uma esmola a um pobre que nada tem de seu. E é esta duplicidade que o torna eternamente fascinante.

Um autor imortalNada faria prever que Jean-Baptiste Poquelin, nascido no seio de uma família

burguesa e que estudou no seminário, acabaria por fazer vida no teatro. Mesmo depois de ter adquirido a sua licença para exercer Direito, deixou a profissão para fundar a companhia L’Illustre Théâtre juntamente com a sua amante, Madeleine Béjart. Perante o fracasso do projecto, Molière, como decidiu chamar-se, não teve alternativa senão viver das digressões na província, mas pouco a pouco foi ga-nhando reputação. Depois de se tornar o favorito do Rei, a sua fama e fortuna ficaram garantidas. “Dom Juan” é uma das peças que escreveu já na maturidade.

Um homem decide pôr tudo em causa: a religião, as obrigações sociais, os deveres para com a família. Ele chama-se Dom Juan e fascina multidões há mais de quatro séculos A. Ribeiro dos SantosD. Juan

e o infinito desejo de ser amado

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Embora os poemas homéricos nunca refiram a personagem Electra, a Odisseia conhece bem o mito dos adúlteros amores entre Clitemnestra e Egisto, a morte de Aga-mémnon às mãos destes, depois de regres-sar triunfante da guerra de Tróia, e ainda a vingança de Orestes pela morte do pai, ma-tando quem o matou, sem, no entanto, se referir explicitamente ao matricídio, aspecto que não é explorado na epopeia. (...)

O nome de Electra aparece pela primeira vez no “Catálogo das Mulheres”, obra atri-buída a Hesíodo e que se situa nas primei-ras décadas do século VI a.C.; na tradição anterior aos tragediógrafos, onde o nome de Electra se vai substituindo ao de Laódice, o relevo deve ser dado à “Oresteia” de Es-tesícoro, poema de que apenas possuímos breves fragmentos mas onde, com toda a probabilidade, se encontrariam alguns dos principais motivos da casa dos Atridas (...).

É, todavia, com os trágicos que o desti-no dos descendentes de Atreu em geral, e o mito de Electra em particular, atingem o relevo que o tempo fará ecoar. Das tragédias que chegaram até nós (...) são quatro as que traçam um perfil de Electra (...): “Coéforas” de Ésquilo, “Electra” de Sófocles, “Electra” de Eurípides e ainda “Orestes”, também de Eurípides. (...).

Em “Coéforas”, (...) o papel de Electra é, de algum modo, secundário, limitando-se a servir de apoio à inamovível convicção de Orestes em vingar o pai. Ao contrário, na peça homónima de Sofócles, Electra surge fulgurante, facho ardente de revolta, de ódio e de desejo de vingança (...). Esculpida numa marmórea severidade, num brônzeo despo-jamento, Electra representa a voz do Hades, a reivindicação do sangue paterno derrama-do que exige (...) reparação. (...)

Não é injusto dizer que as peças de Eu-

rípides perderam a austeridade da Electra sofocliana; afirmam-se de uma forma mais “dramática”, no sentido em que a acção ga-nha em peripécias, tornando-se em muitos aspectos “romanesca” (...). Em “Electra”, encontramos um surpreendente cenário: a filha de Agamémnon, espoliada dos seus bens e do seu estatuto pelos assassinos de seu pai, é a humilíssima esposa de um modesto lavrador que, consciente da humi-lhação desta relação imposta por Egisto (...), se mantém afastado da mulher, não consu-mando os esponsais e preservando assim a virgindade de Electra. (...)

Depois dos Gregos, o rasto de Electra tem ressurgido frequentemente ao lon-go dos caminhos do tempo e da história. O último século foi particularmente fértil em relação ao ressurgimento da mítica Electra. Poetas (cito, apenas entre os nossos melho-res, Sophia de Mello Breyner), romancistas,

dramaturgos deram nova força e novo rosto ao maldito destino da casa dos Atridas, ora recriando globalmente os factos (Jean-Paul Sartre, “Les Mouches”) ou a eles mais sub-tilmente aludindo (T. S. Eliot, “The Family Reunion”), ora centrando-se no perfil da obstinada e violenta filha de Agamémnon (Giraudoux, “Électre”; Margueritte Yource-nar, “Électre ou la Chute des Masques”). A lista de autores e de textos seria muito lon-ga. Destaco, contudo duas obras: a ópera de Richard Strauss, “Elektra”, com texto de Hugo von Hofmannsthal, pela convulsão mu-sical aliada à profunda intensidade trágica da acção que, mau grado algumas diferen-ças, bem deve ser aproximada da “Electra” de Sófocles (...); a trilogia de Eugene O’Neill, “Mourning becomes Electra”, certamente uma das mais pujantes recriações do mito no século XX. Latejando por detrás de ambas as criações, (...) está a mais importante notí-

cia (...) da viragem do século XIX: a psicanáli-se. Ao salientar a importância determinante de pulsões inconscientes na modelação da vida psíquica, a psicanálise descentrou o homem relativamente a si próprio e à sua “razão” como sede da sua mais profunda identidade; o homem exilou-se de si próprio, constituindo-se num olhar reflexivo, como um imenso enigma. Ao contrário da tragédia grega, o herói não está já às mãos do desti-

no, da fatalidade e dos deuses; agora, são os becos da alma, os sinuosos abismos da sua vida psíquica que o interrogam e desafiam. A pergunta da Esfinge, contudo, mantém-se.

Texto de José Pedro Serra(texto integral no site do TNDM II)

(Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa)

O último século foi particularmente fértil em relação ao ressurgimento da mítica Electra. Poetas, romancistas, dramaturgos deram nova força e novo rosto ao maldito destino da casa dos Atridas

04 > lisboaMITE’06 > 02 < 04>05> JULHO

Próximos espectáculos > Electra

Electra ou a voz do Hades

Page 5: Jornal do Teatro #02

08>09> JULHO > 02 > lisboaMITE’06 > 05

Próximos espectáculos >5 Heures du Matin >

No próximo dia 8 de Julho, Lisboa vai poder ver, no âmbito da Lisboa Mite’06, a mais recente obra da criadora multidisci-plinar Paula de Vasconcelos. O espectáculo “Cinq Heures du Matin” integra uma trilogia sobre o estado do planeta que habitamos e foi construído a partir de um conjunto de fotografias que Serge Clément realizou em grandes cidades cosmopolitas, sempre às cinco da manhã. A encenadora usou as fo-tos como ponto de partida para uma reflexão sobre a existência contemporânea, pois diz que, acima de tudo, é a vida que a fascina e dita o caminho do seu trabalho.

“Tudo me inspira. Acho que quando crio um espectáculo desenvolvo uma espécie de antenas invisíveis que atraem toda a espécie de informações que depois são canalizadas para o trabalho. É como se o universo inteiro estivesse a falar comigo, secretamente...”, revela-nos.

Claro que o nome de Pina Bausch é inevi-

tável numa conversa sobre artes performati-vas multidisciplinares. Paula de Vasconcelos reconhece a justeza do título de ‘imperatriz’ da dança-teatro atribuído à criadora alemã, mas adianta que os trabalhos de Bausch não a influenciam directamente. “Admiro muitíssimo a Pina Bausch, as suas criações comovem-me, mas quando faço o meu tra-balho não penso nela”, conta-nos. “Também é preciso que se diga que a nossa companhia começou por ser um grupo de teatro e só por volta de 1997 é que fizemos uma viragem no sentido daquilo a que hoje se chama o tea-tro-dança ou a dança-teatro...”

Criações multiculturais

Uma das obsessões de Paula de Vascon-celos é a de reunir à sua volta ‘performers’ de diferentes pontos do globo. Para “Cinq Heures du Matin”, chamou o português Bruno Schiappa, com quem já tinha traba-

lhado anteriormente, mas o elenco do seu espectáculo também integra uma bailarina brasileira, por exemplo. “É sempre um pra-zer trabalhar com o Bruno, com quem posso falar português e reforçar a minha ligação a Portugal”, diz-nos. “Ele é, para além do mais, um dos intérpretes mais versáteis que conheço: trágico, cómico, dançarino, erudi-to, poliglota, aberto para o mundo e profun-damente interessado no processo criativo.”

Para o produto final, a criadora luso-des-cendente garante que usa muito do material produzido em cena pelos seus colaborado-res. “Tenho um diálogo muito aberto com as pessoas que trabalham comigo e tento sempre criar uma partitura que se cole à pele dos intérpretes. Quero que eles sintam que o seu papel no espectáculo os valoriza e corresponde àquilo que são, não só como ar-tistas mas também como seres humanos.”

Mas o seu gosto por trabalhar com gente de diferentes nacionalidades tem também

a ver com a sua própria condição de artista emigrante. “Acho que todo o emigrante é, no fundo, um nómada: como não temos um ver-dadeiro lar, sentimo-nos em casa em todo o lado por onde andamos. E isso implica ne-cessariamente uma abertura, uma curiosi-dade em relação ao outro.”

Paula de Vasconcelos, que depois de uma passagem pela Gulbenkian (com o espectá-culo “L’ Autre”, apresentado em 2001), vem a Lisboa pela segunda vez, espera tocar e intrigar o público luso. Isto numa altura em que diz sentir-se cada vez mais portu-guesa. “Quanto mais envelheço, mais sinto que Portugal tem a ver comigo. E acho que o encontro com o Bruno e com a Carla Ribei-ro, outra portuguesa com quem também já trabalhei, foram fundamentais para que eu compreendesse isso.”

Cada vez mais portuguesa

A criadora multidisciplinar Paula de Vasconcelos conversou com o jornal da Lisboa Mite’06 sobre o espectáculo que traz a Lisboa já no próximo dia 8 de Julho. Considerada a grande estrela da dança-teatro do Canadá, onde reside desde criança, falou-nos da sua admiração por Pina Bausch e da sua condição de artista emigrante A. Ribeiro dos Santos

Page 6: Jornal do Teatro #02

O espectáculo que abriu a Lisboa Mite‘06, “Otelo”, encenada por Marco Antônio Rodrigues para a Companhia Folias d’Arte, foi, para muitos, uma surpresa. A Sala Garrett do Teatro Nacional esteve disposta de forma diferente, para espanto de quem, aos poucos, entrava naquele espaço nobre para assistir a uma das mais famosas tragédias de William Shakespeare. A plateia ficou, desta vez, vazia pois os muitos que ali acorreram foram con-duzidos para o palco: público e acto-res partilharam o mesmo espaço para assistir a uma das maiores peças da dramaturgia universal. Um texto que trata temas tão actuais quanto huma-nos, como o amor, o ódio, a inveja, a diferença.

Uma peça rica, interpretada de for-ma criativa, que expressa sentimentos actuais mas que facilmente passam despercebidos na sociedade de hoje. Um “Otelo” em diálogo com o presen-te, montado de forma diferente, que começa ao som da música “New York, New York”, na voz de Frank Sinatra.

Para o encenador e director do grupo, Marco Antônio Rodrigues, o objectivo da Folias d’Arte é traduzir cenicamente as nossas angústias

existenciais. “Não nos propomos dis-sertar sobre temas. Com “Otelo” qui-semos questionar o facto de se estar a gerar, nos dias de hoje, tanta exclusão e tanta violência. A Veneza onde a ac-ção decorre é, para nós, uma cidade proto-capitalista como a Nova Iorque de hoje. O Chipre é a América Latina, o Brasil, Cuba, a Bolívia, o Iraque...” (ver entrevista publicada na página 7).

Marco Antônio Rodrigues optou por, nesta versão da peça, colocar a intri-ga amorosa em segundo plano, para realçar, de uma forma que é própria à companhia, os dramas sociais das restantes personagens. Acentuou, por exemplo, a ironia, a dissimulação e a intensidade do vilão Iago, cuja cruel-dade é aqui muito mais enfatizada do que na obra shakespeariana. Novida-de, também, neste espectáculo é a proposta cenográfica: aqui, move-se a estrutura onde o público está senta-do, integrando uma espécie de arena. Os olhares cruzam-se e os vários jo-gos de espelhos, que multiplicam os pontos de vista, bem como os muitos efeitos sonoros, deixam o espectador em suspenso.

Ulisses Cohn, cenógrafo, resume esta arquitectura cenográfica a quatro

conceitos fundamentais: “O centro e a periferia, o público e o privado. Tudo feito de uma forma muito precária, muito simples. Foi por isso que sur-giu a ideia das bancadas móveis. Para fazer com que o espectador se mo-vimente, para que veja frontalmente alguns momentos públicos, e se feche sobre a cena nos momentos íntimos, como aquele em que Otelo mata Des-démona”.

Ao assistirmos ao último acto da peça, onde o par romântico morre, perguntamo-nos até que ponto não vivemos actualmente numa sociedade onde tudo ou quase tudo se transfor-mou em espectáculo.

Nesta metáfora dos poderes políti-cos e sociais assistimos, durante três horas, a um trabalho de actores inten-so, onde se nota uma grande cumpli-cidade, mas também a “pesquisa de grupo” que está por detrás de tudo. É, de resto, o mais importante, no enten-der da actriz Nani de Oliveira. O traba-lho em equipa, pois estes são actores que fazem de tudo um pouco: tocam instrumentos, cantam, representam e até manipulam o cenário e empurram as bancadas dos espectadores.

Todos ao palco

A Folias d’Arte de São Paulo trouxe, no primeiro dia da Lisboa Mite’06, um dos clássicos da dramaturgia universal: “Otelo”. Um Shakespeare “viril” para o século XXI, a provar que a sua obra é um ponto de partida para o entendimento do Mundo em que vivemos Ricardo Paulouro

Cabaret brasileiro longe da Broadway

Depois de três horas em palco a repre-sentar “Otelo” de William Shakespeare, a Folias d’Arte continuou a representação no Átrio do Teatro Nacional, no sábado dia 17. Tratou-se de um espectáculo de caba-ret, com várias canções de teatro musical alemão, americano e inglês. Canções de Kurt Weill, Brecht, entre outros, num estilo meio alemão, meio brasileiro. À Mite’06, os actores confessaram que, apesar do cansa-ço, não quiseram perder a oportunidade de mostrar este trabalho ao público português. Ricardo Paulouro

06 > lisboaMITE’06 > 02

Reportagem > Otelo

Eles Disseram...Maria Barroso

Um espectáculo interessante. É, eviden-temente, uma maneira diferente de ver uma peça que até conheço bastante bem. Ainda recentemente vi uma montagem deste tex-to de Shakespeare em Faro, numa co-pro-dução entre a Acta e a Companhia de Teatro de Almada. Essa era uma leitura clássica. Mas hoje é possível a cada encenador ter uma interpretação pessoal das peças.

Mário Vieira de CarvalhoFiquei muito entusiasmado. É uma

concepção muito forte, uma visão muito original de um clássico que todos conheci-mentos, e que nos é dada a ver de forma extremamente coerente. A representação tem um ritmo alucinante e uma interpre-tação que diria ofegante. As personagens estão muito bem assumidas pelos actores. Diferente? Sem dúvida. Mas o teatro não é para ser reprodutivo. É para ser criativo.

José Mora RamosVi este espectáculo em São Paulo, co-

nheço a equipa bastante bem. Há um lado no trabalho desta companhia que me fas-cina: o lado comunitário. Eles trabalham em zonas carenciadas da cidade e não há dúvida de que este “Otelo” ganha uma ou-tra dimensão no teatro para o qual foi ori-ginalmente concebido. Admiro a extrema coerência estética desta produção.

Maria Amélia MattaGostei sobretudo do esforço desta equi-

pa: este trabalho é extremamente difícil de fazer, é fisicamente esgotante. Quanto à estética, parece-me que tem tudo a ver com a realidade brasileira e menos com a europeia. O espectáculo cruza uma série de referências que dizem respeito às experi-ências teatrais sul-americanas e nesse as-pecto vale a pena ficar a conhecer.

Page 7: Jornal do Teatro #02

Um dos objectivos da Folias d’Arte é estar o mais próximo possível da comunidade em que se insere, numa zona carenciada da cidade de São Paulo. Como é que isso se faz?

Primeiro é preciso entender que o galpão (armazém) do Folias está localizado na zona central de São Paulo, perto de um viaduto que corta a cidade ao meio, como se fosse uma gigantesca cicatriz. Apesar de ser uma área central, dotada de um equipamento público muito bom, está actualmente degra-dada e nós convivemos com uma população muito diversa: desde uma classe média de-cadente até gente sem tecto que vive debai-xo do viaduto.

E entre essas camadas diferencia-das de população, quem é o vosso público?

Todos. O nosso trabalho procura atingir tanta gente quanto possível. E temos uma base de associados: se um indivíduo mora naquela zona, desde que prove a sua resi-dência, paga os bilhetes muito baratos. Tam-bém desenvolvemos actividades extra-palco, como um coro, que existe há seis anos, faze-mos oficinas de circo e teatro, workshops...

Este espectáculo foi montado no galpão do bairro do Bexiga. Foi com-plicado adaptá-lo a um espaço nobre como é a sala principal do Teatro Nacional D. Maria II?

Tivemos a felicidade, tanto aqui como no FITEI, de contar com a sensibilidade da pro-dução. As salas foram adaptadas às nossas necessidades e pudemos repetir as condi-ções em que apresentamos o espectáculo em São Paulo. De outra forma não teria sido possível: neste espectáculo, o espaço tem de interferir na cenografia, e vice-versa. E esta abertura por parte da gestão do Teatro Nacional surpreendeu-nos bastante. Nor-malmente, os teatros nacionais e municipais acabam por se transformar em museus, aco-lhendo apenas a produção mais ortodoxa e académica, deixando de falar com a cidade para falar apenas com elites. Há que abrir os edifícios de teatro ao cidadão de forma plural e democrática.

“Otelo” não é um espectáculo con-sensual: há quem goste, há quem odeie. Foi um dos objectivos na cria-ção deste trabalho: ser polémico?

Não. O objectivo do Folias é sempre o de traduzir as nossas angústias. Não nos pro-pomos dissertar sobre temas. Com “Otelo” quisemos questionar o facto de se estar a ge-rar, nos dias de hoje, tanta exclusão e tanta violência. O nome e a obra de Shakespeare têm sido apropriados erradamente pelas elites: Shakespeare sempre foi um autor po-pular, sempre falou para as massas. O teatro inglês nasce à margem da sociedade. Nesse aspecto, é muito diferente do teatro brasilei-ro e do teatro português, que é um teatro de corte, de vocação religiosa e moralista. Este espectáculo recupera o Shakespeare viril do século XVI. Mas não procuramos a polémica pela polémica. Só procuramos entender o mundo em que vivemos. Por exemplo, a Ve-neza onde a acção decorre é, para nós, uma

cidade proto-capitalista como a Nova Iorque de hoje. O Chipre é a América Latina, o Brasil, Cuba, a Bolívia, o Iraque... Tudo o que está à margem do mundo, que está a ser cada vez mais massacrado e que está a começar a reagir. O terceiro mundo que vai, com toda a certeza, acabar por comer as ‘novas iorques’ deste mundo.

O Folias d’Arte, que foi fundado em 1997, vai fazer agora dez anos. Como é que uma companhia se im-põe tão rapidamente no teatro bra-sileiro?

O Folias faz parte de um grupo que consti-tuiu, em São Paulo, um movimento chamado “Arte contra a Barbárie”, no âmbito do qual se procura fazer um teatro que foge aos dita-mes do teatro comercial e empresarial. É um teatro colectivo, que procura chegar à juven-

tude e que, nos últimos anos, se tornou um movimento inexorável. A televisão formatou a política, os comportamentos, os desejos in-dividuais e à arte, sobretudo às artes cénicas, ficou reservado o papel ético de desacreditar esses falsos valores. Daí o peso do fenómeno artístico que está a acontecer no Brasil actu-almente.

Este é o primeiro Shakespeare que leva à cena. Mas antes trabalhou sobre o inevitável Nelson Rodrigues, Plínio Marcos e até sobre o nosso Saramago. Qual é o critério para a escolha dos textos?

Escolhemos os textos em função da an-gústia que estamos a viver a cada momento. Agora estamos a trabalhar a “Oresteia”, a tri-logia grega, mas de cada vez que pegamos num clássico queremos descobrir o que ele tem a ver connosco.

No “Otelo”, tanto actores como espectadores estão em cima do pal-co. É prática corrente nos vossos es-pectáculos?

Temos uma plateia móvel que permite toda a espécie de combinações. Por exem-plo, num dos nossos espectáculos, “El Dia que me Quieras”, uma peça do José Ignacio Cabrujas, a plateia está virada para a porta da rua que, a determinada altura, se abre. A cena vem da rua para dentro do teatro, como se o mundo exterior dialogasse com aquilo que está a acontecer em cena. No “Otelo”, quisemos mostrar como o mundo se vai fe-chando, progressivamente, até que o público acaba por se transformar numa espécie de ‘voyeur’, mesmo em cima da cena. Aquilo que está a acontecer às personagens pode atin-gir-nos em menos de nada.

Depois de ter trabalhado em Coim-bra e desta passagem por Lisboa e Porto, como avalia a sua estadia em Portugal?

Para nós, é muito significativo. Como, para além do mais, sou funcionário públi-co, na Funarte, que corresponde ao Insti-tuto das Artes português, foi um privilégio ter passado aqui seis meses (quando esti-ve em Coimbra), ter tido a oportunidade de conhecer tantos teatros e falado com tantos artistas. Vi o quanto vocês estão avançados do ponto de vista do apoio público à cultu-ra, vi o quanto é possível fazer. Também foi óptimo ver a vossa capacidade de romper e de transgredir. Não é fácil trazer um espec-táculo como o “Otelo” para um palco sagra-do como é o do Teatro Nacional. Isso é uma lição. Só lamento que a questão da lusofonia ainda esteja tão empancada, principalmente por culpa dos governos...

O público português não conhece quase nada do teatro brasileiro...

Só conhecem o lixo. Esse lixo comercial, esse Falabella, esses espectáculos que cá vêm e não representam absolutamente nada. Projectos dessa natureza há-os em qualquer lado do mundo, e são lixo em todo o lado. Essa tendência tem de ser revertida, pois os dois países só teriam a ganhar. Aliás, a Eu-ropa e a América Latina poderiam ajudar-se mutuamente a crescer. A Europa, com o peso da tradição, está sempre a tentar conservar. Nós, que não temos tradição, temos a liber-dade de arriscar... Para nós seria importante criar um lastro de tradição, assim como para a Europa seria benéfico rasgar, transgredir, revolucionar.

Afirmar Shakespeare

O encenador Marco Antônio Rodrigues fala do espectáculo que abriu a Lisboa Mite’06 e de uma companhia que em poucos anos se impôs na cena teatral brasileira: a Folias d’Arte

Entrevista conduzida por A. Ribeiro dos Santos e Ricardo Paulouro

02 > lisboaMITE’06 > 07

Conversa com > Marco Antônio >

O Folias faz parte de um grupo que constituiu, em São Paulo, um movimento chamado Arte contra a Barbárie, no âmbito do qual se procura fazer um teatro que foge aos ditames do teatro comercial e empresarial

como Autor Popular

Page 8: Jornal do Teatro #02

Ovacionado durante muito tempo, “D. Duardos” – cuja estreia aconteceu na Sala Garrett do Teatro Nacional no dia 22 de Junho – foi unanimemente considerado como uma das grandes apostas da Mite’06. À partida, várias razões justificavam o interesse que esta produção da Companhia Nacional de Teatro Clássico de Madrid suscitava junto do público: tratava-se de um ori-ginal português pouco conhecido en-tre nós, assinado pelo pai da drama-turgia nacional, Gil Vicente, e, ainda por cima, montado por uma trupe es-panhola de grande reputação... Eram muitos motivos de interesse reunidos num só espectáculo.

E o projecto apresentado não de-siludiu ninguém, muito antes pelo contrário. Num cenário muito sim-ples e em figurinos bonitos mas uni-formizados, “Don Duardos” na versão e encenação da especialista vicentina Ana Zamora, vale sobretudo pelo bri-lhante desempenho dos seus actores, simultaneamente expressivos e enér-gicos mas extremamente cuidadosos

na elocução do texto.Mesmo não entendendo todas as

subtilezas da peça – dado que o es-pectáculo era falado em castelhano – toda a gente compreendeu o sentido da acção, os estados de espírito das personagens, os momentos de maior tensão ou de relaxe.

O que conta é o amor

Em termos temáticos, “D. Duar-dos” bebe muito da tradição das nove-las de cavalaria. O amor é o motor da acção e o que se pretende provar é que o sentimento deve prevalecer sobre o estatuto social dos amantes. Como há sempre humor em Gil Vicente (de resto, a peça é classificada como uma tragicomédia, contendo elementos trágicos e outros cómicos), o riso é trazido para cena principalmente através das personagens campónias. Um recurso cómico particularmente eficaz na encenação de Ana Zamora foi ter colocado homens a dar corpo às personagens femininas menos favore-

cidas pela beleza. Na noite de estreia, os seus maneirismos provocaram fre-quentes gargalhadas para parte dos espectadores.

Feliz foi, também, a opção de tra-zer algumas das cenas mais íntimas para os degraus do palco, bem junto à plateia. Aí, D. Duardos confessou o seu amor por Flérida; aí ela chorou por não poder retribuí-lo. De resto, a forma como os actores se dirigiam ao público, integrando-o frequentemente na acção, foi um dos factores que mais contribuiu para que houvesse uma co-municação efectiva entre intérpretes e espectadores.

A música e a dança deram o toque final neste espectáculo tão bem con-seguido: músicos sempre presentes em cena acompanharam a acção, sublinhando-lhe os momentos mais significativos (os encontros amorosos ou os desafios guerreiros) e os mo-mentos de dança serviram para pre-dispor o público à alegria.

A Companhia Nacional de Teatro Clássico de Madrid apresentou, na Sala Garrett, a sua versão de “D. Duardos”de Gil Vicente

Um retrato de perfeição

Um espectáculo vivo e cheio de ritmo, que deixou completamente rendido o público da Mostra Internacional de Teatro A. Ribeiro dos Santos

08 > lisboaMITE’06 > 02

Reportagem > Tragicomédia de D. Duardos

Eles Disseram...Rita Ribeiro Gostei muito do espectáculo e acho que

é um exemplo a seguir, a vários níveis. Mui-to bem representado, com muita entrega e muita energia, mas ao mesmo tempo com uma grande disciplina e com uma enorme ternura para com o público.

Mesmo não tendo percebido tudo, perce-be-se o essencial: a alma do espectáculo.

Isabel Pires de LimaGostei particularmente de ver esta peça,

porque é um dos textos que o Gil Vicente escreveu em castelhano e que eu, pesso-almente, nunca tinha visto na sua versão integral. Por outro lado, foi marcante para mim ver um espectáculo de teatro que é entendido como uma festa. É um espectá-culo onde se nota uma grande cumplicida-de entre os actores e que perpassa para a plateia.

Fernando DacostaAchei este espectáculo um prodígio de

imaginação. A interpretação dos actores é notável. De resto, sempre gostei muito do teatro espanhol, que me parece a mim, de-pois do inglês, o melhor que há no Mundo. Há 30 anos que vejo teatro espanhol e é emocionante ver como pegaram num autor português e revelaram a sua espantosa co-municabilidade.

“Tragicomédia de D. Duardos”. A história.

Composta por pequenas/grandes aven-turas, a “Tragicomédia de D. Duardos” conta os amores de D. Duardos, interpretado, na versão de Ana Zamora para o Teatro Clás-sico de Madrid, pelo actor Fernando Cayo, e Flérida (Clara Sanchis).

D. Duardos, príncipe de Inglaterra, che-ga à corte do Imperador de Constantinopla para desafiar Primaleón, filho do Impera-dor, e vingar a morte de Perequin.

O combate breve é interrompido pela conciliadora Infanta Flérida, por quem D. Duardos se apaixona imediatamente. Para ficar seguro do amor de Flérida por si, re-nuncia aos trajes de príncipe e disfarça-se de hortelão. Lutando para cativar a atenção de Flérida, que teima em não lhe correspon-der por achar que se trata de um amor im-possível na escala social, D. Duardos chega mesmo a fingir que procura um tesouro em moedas de ouro que repartirá com um casal de hortelãos, ingenuamente cúmplices. No final, o cavaleiro andante conseguirá que a Infanta reconheça o seu amor por ele e o acompanhe no resto da sua viagem, aban-donando a posição social que tinha na corte do Imperador. Triunfa o amor.

A “Tragicomédia de D. Duardos” deverá ter sido escrita em 1522 e faz parte do con-junto de 11 peças em castelhano escritas por Gil Vicente. Baseada num livro de his-tórias de cavalaria, “Primaleón”, esta peça combina a poesia, o canto, a música e a dan-ça. Uma obra que nos submerge no mundo simbólico vicentino para, como diz Ana Za-mora, descobrirmos “a eterna viagem que não é mais do que a busca de uma só coisa: o conhecimento através do reconhecimento, algo tão renascentista como actual”. Margarida Gil dos Reis

Debate com Ana Zamora“Gil Vicente é um autor

experimental”

Page 9: Jornal do Teatro #02

Depois do sucesso de “Auto da Sibila Cassandra” (2003) e “Auto dos Quatro Tem-pos” (2004), de Gil Vicente, ambas as peças apresentadas no Festival Internacional de Teatro Clássico de Almagro, e esta última na 22a edição do Festival de Almada, Ana Zamora dirige e dá-nos, pela sua mão, a versão da “Tragicomédia de D. Duardos”.

Ana Zamora Tardío (Madrid, 1975) diplo-mou-se em Direcção de Cena pela Real Es-cola Superior de Arte Dramática de Madrid (1996-2000) e obteve, em 2002, o certificado de Aptidão Pedagógica pelo Instituto de Ci-ências da Educação da Universidade Com-plutense de Madrid. Encontrou-se com a obra de Gil Vicente para, desde então, não mais a deixar. Mas no seu percurso, sobre-tudo nos últimos dez anos, contam-se já muitos projectos e peças encenadas.

Para além da formação superior, Ana Zamora assistiu a vários cursos monográfi-cos com directores como Stephan Schuske (Berliner Ensemble), Jacques Nichet (Tea-tro Nacional de Toulouse) e Massimo Cas-tri (Teatro Estable de Turin), onde abordou temas desde a gestão/produção teatral e a direcção de cena, até às técnicas circenses. Em 1990, integrou as comissões organiza-doras do Festival Internacional “Folk Sego-via”, onde permaneceu até 2001, e do Fes-tival Internacional de Teatro de Titeres de Segovia, “TITIRIMUNDI” (1993-2001).

Tendo dirigido, em 1995, a peça “Sols-ticio”, a partir de um estudo etnográfico sobre tradições estivais em Castela, foram vários os autores trabalhados nos últimos anos. Louis Charles Sirjacq (“Las Sirenas”), Heiner Müller (“Camino de Wolokolamsk

I”), Alfred de Musset (“La Noche Venecia-na”), Jean Anouilh (“Antígona”), Antonio de Solís (“El Amor al Uso”) são alguns dos exemplos a que se soma, em 2001, o Pré-mio José Luís Alonso (Associação de Direc-tores de Cena de Espanha para a melhor nova direcção da temporada) atribuído à peça de Romero de Cepeda, “Comedia Lla-mada Metamorfosea”.

Em 2001, ligou-se à criação da com-panhia Nao D’amores, da qual assumiu a direcção, contando com a colaboração ar-tística da Noviembre Compañia de Teatro. Facto que não a impediu de ser também auxiliar de direcção de algumas peças como “Algùn amor que no mate” (2002), de Dulce Chacón, dirigida por Eduardo Vasco e “Ubú Rey” (2002), dirigida por Alex Rigola, entre outras.

Colaborou, no ano passado, nos espec-táculos “El castigo sin venganza”, de Lope de Vega e “Viaje del Parnaso”, de Miguel Cervantes. É, actualmente, ajudante de direcção de Eduardo Vasco, na Companhia Nacional de Teatro Clássico de Madrid .

As suas obras foram classificadas como “teatro de vanguarda”, pela procura per-manente de novas fórmulas cénicas. Mas é Gil Vicente e a riqueza simbólica do seu universo literário quem lhe prende a aten-ção. Obras que lhe permitem, segundo a própria, uma grande “liberdade” como en-cenadora: “É esta aventura fascinante de imaginar um tempo passado para construir um mundo sonhado, paraíso perdido mais além da realidade quotidiana, que me tem levado uma e outra vez a Gil Vicente”.

RevisitarGil Vicente

02 > lisboaMITE’06 > 09

Perfil de > Ana Zamora >

A encenadora espanhola Ana Zamora, que apresentou na Lisboa Mite’06 uma versão do “D. Duardos” de Gil Vicente, disse, durante o debate que protagonizou, ao lado do Prof. José Camões, no dia 23 de Junho, que o fundador da dramaturgia nacional foi um “autor experimental”. Isto porque adaptava ao teatro, considerado uma arte nobre, histórias do quotidiano. O debate iniciou o ciclo de encontros que o Teatro Nacional promove durante a Mite com o objectivo de partilhar, em tom informal, os saberes e experiências do teatro.

Margarida Gil dos Reis

Debate com Ana Zamora“Gil Vicente é um autor

experimental”

Page 10: Jornal do Teatro #02

Reconhecendo-se como um dos herdeiros de Marsillach, fundador da Companhia em 1986, e pertencente à nova geração de en-cenadores, Eduardo Vasco continua a luta pela divulgação dos clássicos. O seu percur-so profissional é já vasto. Tendo trabalhado com o teatro alternativo, foi professor de di-recção cénica e director-adjunto da Escola de Arte Dramática de Madrid (RESAD), onde se licenciou. Músico e especialista em es-paço sonoro para teatro, já dirigiu grandes autores como Lope de Vega e Shakespeare. Sobre teatro refere, sobretudo, a importân-cia da língua, um veículo fundamental que ainda tem o poder de aproximar países, como é o caso de Portugal e Espanha. A ri-queza da palavra que, a ser cultivada, pode derrubar fronteiras.

Tendo assumido o cargo de di-rector da Companhia Nacional de Teatro Clássico de Madrid, quais

são os principais objectivos para a sua dinamização a médio prazo?

A Companhia Nacional é um serviço pú-blico e como tal tem como principal objecti-vo a difusão do teatro clássico. A tradição de fazer teatro clássico e de como se faz foi in-terrompida. A companhia surge assim para colmatar esta falha. Temos por isso dois deveres fundamentais: por um lado, fazer teatro clássico e, por outro, contribuirmos para mostrar como se faz esse mesmo te-atro. Este dever é também um cuidado não só com a palavra mas com a própria drama-turgia, uma questão mediadora entre a tra-dição e o teatro contemporâneo.

Seguindo as pegadas do funda-dor desta Companhia, Adolfo Mar-silhach, a internacionalização é uma das suas apostas.

Sem dúvida. Muitas vezes deparamo-nos com o obstáculo da língua. Em Portugal,

por exemplo, esse problema não se coloca pois tanto o castelhano como o português têm um campo cheio de possibilidades. O teatro é, um dos melhores veículos para o conseguir. A língua, na sua mais alta quali-dade, transmite-se pelo teatro de forma tão ou mais eficiente do que pelos livros. Rela-tivamente a outros países parece-me que é necessário darmos a essa palavra, qualitati-vamente, a importância merecida.

Como encara a participação da Companhia Nacional de Teatro Clássico de Madrid na Mite’06, com a peça de Gil Vicente, “D. Du-ardos”?

Virmos a Lisboa com Gil Vicente é ver-dadeiramente uma grande alegria. Mas também nos apraz que Gil Vicente tenha escrito em castelhano, um autor que aca-bará por ser decisivo para o que virá a ser, posteriormente, o teatro castelhano. É com

grande emoção que trazemos “D. Duardos” à Mite’06, um dos textos que mais vínculos tem com a nossa grande poesia e grande teatro.

Já trabalhou vários autores, co-mo Shakespeare, Lope de Vega, entre outros. Existe algum projecto, inclusive em parceria com o Teatro Nacional, que vise a adaptação de autores portugueses?

Estamos de facto com vários projectos em parceria com o Teatro Nacional. Um deles é relativo a Gil Vicente pois creio que este au-tor é um dos que melhor combina ambas as culturas, portuguesa e castelhana. Existem muitos aspectos que separam os nossos pa-íses mas entre as coisas que nos unem al-guns entenderam o que também nos aproxi-ma e que é comum. Acredito que Gil Vicente seja uma dessas pessoas, a ponte perfeita entre Portugal e Espanha.

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Conversa com > Eduardo Vasco

A Companhia Nacional de Teatro Clássi-co de Madrid é uma unidade de produção do INAEM (Instituto Nacional de Artes Cénicas e Música), ao abrigo do Ministério da Cultura, e foi fundada, em 1986, por Adolfo Marsillach, com o objectivo de consolidar um ‘teatro-vivo’ e de recuperar e difundir o teatro clássico espanhol. Por ‘teatro clássico’ entende esta Companhia “tradicionalmente a literatura dramática escrita antes do período realista”.

Rafael Pérez Sierra, Andrés Amorós e José Luis Alonso foram outros dos directores da CNTCM. Em Setembro de 2004, Eduardo Vasco assumiu a direcção, continuando actu-almente no cargo.

Constituída por três sedes – Teatro de la Comedia, Teatro Pavón e Hospital de San

Juan – a CNTCM pretende criar vínculos com outros teatros, nomeadamente teatros nacio-nais, isto é, “chegar a mais público, a outros lugares”. Localizado num bairro de grandes tradições teatrais, o Teatro de la Comedia foi construído em 1874 num solar, propriedade de um empresário de salas de jogo que quis deixar a sua marca na decoração do teatro. Falamos assim de 3 pisos e uma plateia com uma planta em forma de ferradura, seguin-do o modelo italiano, onde, numa decoração de inspiração árabe, são abundantes os ele-mentos em ferro forjado que substituem a madeira. Este espaço, que viveu as estreias de alguns dos maiores clássicos do Século de Ouro, foi alvo de um projecto de reabilitação e encontra-se encerrado para obras. Não será

menos emblemático o Teatro Pavón, um es-paço de ocupação provisória, em pleno cora-ção de Madrid, bem ao lado da popular Praça de Cascorro. Quanto ao Hospital de San Juan, este é a sede da Companhia durante o já cé-lebre Festival Internacional de Teatro Clássi-co de Almagro.

Consolidar uma equipa, em contínua for-mação, que encene teatro clássico, sem es-quecer a internacionalização, são as metas a atingir. Eduardo Vasco e José Manuel Cas-tanheira têm uma relação de amizade que começaram, em 1997, quando juntos fizeram “San Juan”, de Max Aub, para o Centro Dra-mático Nacional. Desde então, José Manuel Castanheira colaborou com a CNTCM, no-meadamente em: “El Alcalde de Zalamea”,

de Calderón (dir. Sergei Belbel, co-produção com o Teatro Nacional da Catalunha) e “La Serrana de la Vera”, de Luis Vélez de Gueva-ra (dir. Maria Ruiz). Para a CNTCM, enquanto serviço público e instituição estatal, é cada vez mais importante apresentar um repertó-rio de interesse contemporâneo, consolidan-do o repertório de teatro espanhol barroco e até mesmo renascentista e romântico. Por outro lado, se se impõe a necessidade de in-corporar autores clássicos de referência in-ternacional, não menos importante será a in-tegração de autores menos conhecidos. Um teatro actual cuja luta permanente é fugir à concepção de “teatro museísta”.Margarida Gil dos Reis

Companhia Nacional de Teatro Clássico de Madrid

“Gil Vicente,a ponte perfeita

entre Portugal e Espanha”

Eduardo Vasco nasceu em Madrid, em 1970. Aos 35 anos foi nomeado director da Companhia Nacional de Teatro Clássico de Madrid

Entrevista a Eduardo Vasco conduzida por Margarida Gil dos Reis

Page 11: Jornal do Teatro #02

O modo teatral que Gil Vicente escolhe para apresentar “Dom Duardos”, diferente dos que até àquele momento tinha prati-cado, representa um ponto de viragem na obra teatral do autor. Não se sabe quem atribuiu a designação de ‘tragicomedia’ à obra, se o autor se os seus filhos quando publicaram a obra do pai, mas reconhe-ce-se uma mudança formal relativamente à sua produção anterior. O termo ‘tragico-media’ parece estar mais associado a um género de espectáculo com encenações de grande envergadura, que exigiam uma sofisticada maquinaria teatral, do que a um género literário. A sua representação implica um aparato cénico que permita a inclusão regular da música, a mobilidade das cenas, a mudança de cenários, e, neste caso, a partida de uma galé, com o seu pa-trão, em cena. [...]

Num século em que o amor é visto como espelho de virtude, Gil Vicente faz dele pro-tagonista da sua tragicomédia, encenan-do-o em discursos paralelos que exploram diversos motivos, desde o amor retórico e intelectual que Dom Duardos evidencia ao reflectir sobre o próprio amor em três dos seus solilóquios, até à caricatura do ideal

da cavalaria amorosa representada pelo par Camilote e Maimonda, passando pela exaltação comedida do amor conjugal que o casal de velhos hortelões reflecte.

Com “Dom Duardos”, Gil Vicente parece querer enfatizar que o tempo das novelas de cavalaria é passado. O seu tempo é o da transformação da própria natureza do amor: o amor é atributo do ser e não da sua condi-

ção, o que é patente na valorização que faz da capacidade de amar dos vilãos e na sá-tira do amor cortês expressa nos versos de Amândria sobre os amantes: ‘a todos veréis quexar / y ninguno veréis morir / por amo-res’. Anos antes, na “Comédia do Viúvo”, Gil

Vicente tinha levado mais longe a transgres-são de códigos que o disfarce de príncipe em vilão por amor supõe, casando um príncipe com uma burguesa plebeia.

O par Duardos-Flérida é constantemente posto à prova por cada um dos seus mem-bros. Dom Duardos abdica do seu estado ao assumir uma nova identidade, de condição social diametralmente oposta à sua, exi-

gindo de Flérida que se despoje de precon-ceitos e se lhe entregue por amor, ignoran-te do seu nome e linhagem real. Flérida, à medida que o seu amor, quer pelo cavaleiro incógnito, quer pelo humilde mas discreto, hortelão cresce, acompanhado de uma luta

interior de recusa e de entrega, vai-se aper-cebendo de que ‘Al amor y a la fortuna / no hay defensión ninguna’. Se Dom Duardos se viu obrigado a perder a identidade para conquistar Férida, ela perdê-la-á também na renúncia à sua condição imperial e aos seus pais, encontrando na fuga um cami-nho para a preservação da honra.

O tom final da tragicomédia é de alegria harmoniosa. A história que se acaba de contar volta a ser enunciada uma e ou-tra vez, num romance, primeiramente ‘representado’ pelas mesmas persona-gens que lhe haviam antes dado corpo(s) e, em seguida, cantado por todos (‘Este romance disse-se representado e de-pois voltou-se a cantar, por despedida’), de forma a que o público fique ciente de ‘que contra la muerte y amor / nadie no tiene valía’.

Texto de José Camões

(Centro de Estudos de Teatro da Universidade de Lisboa)

O amor como protagonista

Dom Duardos abdica do seu estado ao assumir uma nova identidade, de condição social diametralmente oposta à sua, exigindo de Flérida que se despoje de preconceitos e se lhe entregue por amor, ignorante do seu nome e linhagem real

Texto adaptado do original publicado em espanhol no “Boletín de La Compañia Nacional de Teatro Clássico”, n.º 45, Fevereiro, 2006, pp.4-5.

Companhia Nacional de Teatro Clássico de Madrid

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Ensaio > José Camões >

Page 12: Jornal do Teatro #02

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Homenagens >

O Teatro Nacional D. Maria II homenageou, durante a Mite’ 06, um grupo de actores históricos do teatro português: Mariana Rey-Monteiro, Carmen Dolores, Eunice Muñoz, Ruy de Carvalho, Lourdes Norberto e Fernanda Alves (a título póstumo). A cerimónia, que decorreu no Salão Nobre, depois da estreia de “D. Duardos”, pela Companhia Nacional de Teatro Clássico de Madrid, tem como objectivo a reconstrução da memória nas paredes do Teatro Nacional, ali afixando placas evocativas de grandes nomes do te-atro português.“Há gente viva, que ainda faz teatro e que tem de ter rapidamente os seus nomes aqui

nas paredes”, afirmou Carlos Fragateiro.A emoção dos homenageados foi visível. Um regresso à casa, para alguns dos ac-tores, que os viu dar os primeiros passos no teatro. Eunice Muñoz recordou jus-tamente o momento da sua estreia nos palcos: “Lembro-me quando aqui estreei, ainda muito nova, o pano de boca de cena a subir, muito pesado e muito lentamente e eu, só com 13 anos, muito apavorada. Es-treei no primeiro teatro do país e estar aqui foi uma honra.”Também para Carmen Dolores este es-paço tem simbolismo pois ”foi onde estive durante oito anos, nesta que foi a minha es-cola, na companhia de Amélia Rey-Colaço e

Robles Monteiro.” Uma “vida extraordina-riamente feliz”, resumida assim por Mari-ana Rey-Monteiro. Mário Barradas, representando Fernanda Alves, e Ruy de Carvalho remataram a expres-são da gratidão dos actores por esta home-nagem, salientando que iniciativas desta índole devem ter continuidade.José Manuel Castanheira aproveitou ainda a ocasião para surpreender o director da Companhia de Teatro Clássico de Madrid, Eduardo Vasco, dedicando igualmente, à Companhia e ao espectáculo “D. Duardos”, uma placa de homenagem que assinala “a passagem de grandes companhias pelo Te-atro Nacional”.

“Gente viva”nas paredes do Teatro Nacional

Page 13: Jornal do Teatro #02

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Homenagens >

CARMEN DOLORESO primado da voz

EUNICE MUÑOZUma actriz de génio

No princípio era a voz. A suavidade do seu registo vocal e a extrema clare-za com que dizia poesia, levaram a muito jovem Carmen Dolores a iniciar uma carreira na rádio. Mas a sua beleza rapidamente a catapultaria para o grande ecrã, onde se estreou, com apenas 19 anos, no filme “Amor de Perdição”, de António Lopes Ribeiro. Em 1945, com 21 anos, estreava-se nos palcos, no Tea-tro da Trindade, integrada na companhia Os Comediantes de Lisboa, e em 1951 juntava-se ao elenco do Teatro Nacional D. Maria II, onde, durante oito anos de permanência na Companhia Amélia Rey Colaço - Robles Monteiro, obteve mui-

tos sucessos.Trabalhou com Gino Saviotti, Ribeirinho, Rogério Paulo e Armando Cortez

e foi uma das fundadores do Teatro Moderno de Lisboa, marco importante na história do teatro independente português. É impossível enumerar os prémios que recebeu ao longo da sua carreira, mas em 2004, e depois de uma brilhante interpretação no espectáculo ‘Copenhaga’, no Teatro Aberto, anunciou ter aban-donado os palcos, depois de mais de 60 anos de trabalho.A. Ribeiro dos Santos

Filha e neta de actores, o destino de Eunice Muñoz estava traçado desde o nascimento. Com apenas cinco anos já pisava os palcos e merecia os mais entusiásticos aplausos por parte do público. De talento precoce, mesmo an-tes de concluir o curso do Conservatório (com 18 valores), já trabalhava com Amélia Rey Colaço no Teatro Nacional, onde teve oportunidade de contracenar com actores como Maria Lalande, João Villaret ou Maria Matos, entre outros.

Ao longo da sua carreira, fez drama, comédia e farsa, fez cinema e televisão e conquistou várias distinções, entre as quais a Medalha de Mérito Cultural

da República Portuguesa. Nos palcos, distinguiu-se em papéis como “Zerli-na”, de Herman Broch, ou o inesquecível “Mãe Coragem e os seus Filhos”, de Bertolt Brecht, ambos no palco do Teatro Nacional. Modesta, diz que, mesmo depois de uma carreira que já leva 70 anos, está sempre a aprender com as gerações mais novas e que, longe de sentir que fez tudo, continua a procurar o essencial: a simplicidade.A. Ribeiro dos Santos

Eunice Muñoz, “Mãe Coragem”, 1986.

Carmen Dolores, “Jardim Zoológico de Crsital”, 1998

Page 14: Jornal do Teatro #02

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Homenagens >

Actriz da geração de 60, recitadora e encenadora, Fernanda Alves faleceu aos 69 anos e o teatro português ficou muito mais pobre. Membro do elenco do Teatro Nacional, Fernanda Alves es-teve ainda ligada à Companhia de Teatro Experimental do Porto.

Uma figura de destaque do teatro independente, societária do Teatro Moderno de Lisboa e fundadora dos Bonecreiros e da Barraca. Passou por alguns dos principais grupos e interpretou grandes autores do teatro nacional e internacional.

Em 1997, foi homenageada no âmbito do Festival Internacional

de Almada onde se destacou com uma grande interpretação em “O Cerco de Leningrado” de José Sanchis Sinisterra.

Companheira de 40 anos do poeta, jornalista, tradutor e crítico Ernesto Sampaio, Fernanda Alves deixou-nos num estado de profunda saudade. Ela partiu, Ernesto Sampaio morreu pouco tempo depois. Diz-se que por amor.Ricardo Paulouro

FERNANDA ALVESFernanda, ou a outra face do amor

Natural de Lisboa, Lourdes Norberto é uma das artistas mais completas do nosso tempo. Grande actriz, até já deu nome a um teatro, na freguesia de Linda-a-Velha.

Cedo descobriu a sua vocação e o grande ecrã pôde vê-la representar em “Ribatejo”, um filme de Henrique Campos, de 1945. Trabalhou com realizadores como Artur Ramos, Pedro Martins, Oliveira e Costa ou J. Listopad, entre outros. “Chaimite” (1953), “Aqui D’El Rey” (1992) de António Pedro Vasconcelos, “Adeus Pai” (1996) de Luís Filipe Rocha ou “O Crime do Padre Amaro” (2005) foram outras das metragens onde brilhou como actriz.

Em 1969, apresentou o Festival RTP da Canção que daria uma estrondosa vitória à

“Desfolhada Portuguesa” de Simone de Oliveira. Desde então, somam-se os trabalhos em televisão. Quem não se lembra de a ver nas novelas “Roseira Brava”, “A Lenda da Garça”, “Jardins Proibidos”, na recentíssima “Dei-te Quase Tudo” ou na afamada série “Capitão Roby”? No teatro, marcou uma forte presença, entre todas as outras até à data, no início do ano, em “A Mais Velha Profissão”, no Teatro Nacional, ao lado de Fernanda Montemor, Maria José, Glória de Matos e Lia Gama.

No ecrã ou nos palcos, uma estrela de brilho inextinguível.Margarida Gil dos Reis

LOURDES NORBERTO Como se alcança uma estrela?

Fernanda Alves, “A Louca de Chaillot”, 1995

Lourdes Norberto, “Fúrias”, 1994 Lourdes Norberto, “O Leque de Lady Windermere”, 1994

Page 15: Jornal do Teatro #02

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Homenagens >

Filho de um oficial do Exército e de uma pianista, com apenas 7 anos Ruy de Carvalho já sabia que a sua vocação era o teatro ao pisar o palco, na Covilhã, com a peça infantil “O João Ratão”. Com cerca de 60 anos de carreira, somam-se os prémios de interpretações em teatro, televisão e cinema. Tendo finalizado os estudos de Teatro no Conservatório Nacional de Lisboa com 18 valores, aos 17 anos estreou-se como actor profissional. São muitos os autores portugueses que já representou, mas também internacionais.

Ruy de Carvalho foi, aliás, o primeiro actor a representar um Auto de Gil Vicente, o “Mo-nólogo do Vaqueiro”, em 1957, na televisão portuguesa. Aos 15 anos, ainda como amador,

estreou-se no grupo da Mocidade Portuguesa e três anos depois como profissional na com-panhia de Rey Colaço / Robles Monteiro, com a peça “Rapazes de Hoje”. Em 1971, fundou o Teatro Moderno de Lisboa e dois anos mais tarde assumiu a direcção artística do Teatro Experimental do Porto.

Em 1998, realizou o sonho de interpretar, nas comemorações dos 150 anos do Teatro Nacional, o clássico “Rei Lear”. O papel de Rei Lear, de William Shakespeare, encenado por Richard Cotrell, foi um papel à sua medida, de um rei para outro rei.Ricardo Paulouro

RUY DE CARVALHOUm palco para um rei

Nascida em 1922, Mariana Rey Monteiro é filha da união de duas das mais importantes figuras do teatro português – Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro. Aos 83 anos, assume que entrou no teatro pela mão dos pais, onde se estreou em Abril de 1946, no Teatro Nacional, com um arranjo de Júlio Dantas sobre a “Tragédia de Sófocles”.

A menina dos olhos cor de avelã conta agora com um extenso percurso, ao longo do qual estudou enredos e ficções. Em 1964, com o fatídico incên-dio que atingiu o Teatro Nacional D. Maria II, saiu da casa que a viu crescer mas a saudade alimentou sempre uma vida dedicada à representação.

Valle Inclán, Tenessee Williams, Bernanos, Edward Albee foram alguns dos autores que trabalhou e que hoje destaca. Não menos importantes serão as participações no cinema, em filmes como: “Um Dia de Vida” (1962) de Augusto Fraga, “O Vestido Cor de Fogo” (1986) de Lauro António, “O Desejado ou as Montanhas da Lua” (1987) de Paulo Rocha.

Sempre a assustou a “mecanização” de fazer teatro em televisão porque o teatro é uma coisa séria, digna de respeito. Quase diríamos, uma vida para mil palavras. Ou para muitas mais.Margarida Gil dos Reis

MARIANA REY MONTEIROA eterna saudade do palco

LOURDES NORBERTO Como se alcança uma estrela?

Ruy de Carvalho, “Rei Lear”, 1998

Mariana Rey Monteiro, “Antígona”, 1946

Page 16: Jornal do Teatro #02

JUNHO> PORTUGAL 29>30>01JULHO>21.30H>02 JULHO>16.00H

D. Juan de MolièreDirecção KUNIAKI IDA TEATRO DO BOLHÃO, PORTO

JULHO> ROMÉNIA 04>05>21.30H

Electra de Sófocles, EurípidesDirecção MIHAI MANIUTIU TEATRUL NATIONAL RADU STANCA DE SIBIU, SIBIU

CANADÁ 08>21.30H>09>16.00H

5 Heures du Matin de Paula de Vasconcelos Direcção PAULA DE VASCONCELOS PIGEONS INTERNATIONAL THÉÂTRE-DANCE, MONTREAL

FRANÇA 13>14>21.30H

Rhinocéros de Ionesco Direcção EMMANUEL DEMARCY-MOTA THÉÂTRE DE LA COMÉDIE, REIMS (Co-apresentação com o Festival Internacional de Almada)

ITÁLIA 19>20>21>21.45H

Ilíada, Eneida, Odisseia de Homero, Virgílio Direcção e interpretação GIANLUIGI TOSTO

EUA>FRANÇA>ITÁLIA 21>22>22.00H

Metamorphoses de Ovídio Direcção ALESSANDRO FABRIZITHE COMPANY Narração de Maria Amélia Matta

ITÁLIA 25>26>27>21.30H

Il Lettore a Ore de José Sanchis Sinisterra Direcção JOSÉ SANCHIS SINISTERRA TEATRO METASTASIO STABILE DELLA TOSCANA, PRATO