jornal do teatro #03

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03 lisboaMITE’06 Rhinocéros, lutar contra os fanatismos Metamorphoses, histórias de paixões Il Lettore a Ore, o poder da literatura

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O Jornal do Teatro surgiu da vontade de experimentar, criar e dar espaços, a quem partilha o gosto pelo teatro. Das reflexões clássicas, à problemática da contemporaneidade, o Jornal do Teatro, do Teatro Nacional D. Maria II teve como principal alvo a reflexão sobre os tempos, que se mudam e evoluem e que, em última instância, são testemunhos ricos de cada época. De 2006, 2007 e 2008, período em que foi publicado, fez-se o retrato breve de uma ‘casa da cultura’ que é, antes de mais, uma casa aberta à sociedade e ao mundo.

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Page 1: Jornal do Teatro #03

03 lisboaMITE’06

Rhinocéros, lutar contra os fanatismosMetamorphoses, histórias de paixõesIl Lettore a Ore, o poder da literatura

Page 2: Jornal do Teatro #03

Músicas no ÁtrioO’QuestradaSonoridades inesperadas e muito sentido de humor são os principais ingredientes do

espectáculo que os O’Questrada apresentam no Átrio do Teatro Nacional até ao fim da Lisboa Mite’06 – Mostra Internacional de Teatro. Todas as sextas-feiras, sempre a partir da meia-noite.

Jazz às 24hJOÃO PAULO ESTEVES DA SILVA> 15 de Julho > COMMUNION QUINTET> 22 de JulhoPREÇO COMUM> €5,00 e €3,00 para jovens < de 25 anos

Nós pelos olhos dos outros Vários directores de teatros europeus, entre eles os do Teatro Nacional D. Maria II,

do Teatro Metastasio de Prato, Itália (José Sanchis Sinisterra), da Companhia Nacional de Teatro Clássico de Madrid (Eduardo Vasco), entre outros, deram os primeiros passos, no passado dia 28 de Junho, em Almagro, para a criação de um centro de reflexão sobre os clássicos: “lançaram-se as primeiras bases para o que será o Cicla (Centro para a Interpretação dos Clássicos de Almagro), um projecto em que se pretende misturar or-ganismos e profissionais da cena com o intuito de reflectir sobre a incidência dos textos clássicos no teatro contemporâneo. [...] Deixou-se claro que o Cicla nasce da vontade de que os seus integrantes troquem ideias e somem esforços”.

Festival Clássico de Mérida O Salão Nobre do Teatro Nacional recebeu, no dia 3 de Julho, uma delegação do Festival de

Teatro Clássico de Mérida, com o qual pretende vir a desenvolver uma colaboração estreita, a nível de co-produções e edições de teatro. Francisco Muñoz, representante da Junta da Ex-tremadura, e Francisco Carrillo, director do evento, falaram da programação do festival, com destaque para o espectáculo que João Mota ali estreará, entre 10 e 15 de Agosto. Trata-se da peça ‘Viriato Rey’, do dramaturgo João Osório de Castro.

Debate com Georges BanuGeorges Banu presenteou com um debate uma plateia interessada, no passado dia 5 de Ju-

lho, pelas 18 horas, no Salão Nobre do Teatro Nacional. O conhecido teatrólogo começou por ser homenageado ao descerrar a primeira de muitas placas que assinalam a presença de per-sonalidades ilustres da dramaturgia contemporânea no Teatro Nacional. Partilhando a mesa com Constantin Chiriac, director do Teatro Nacional Radu Stanca de Sibiu da Roménia, e Mihai Maniutiu, encenador da peça “Electra”, apresentada na Mite’06, o orador reflectiu sobre o movimento de renovação do teatro do Leste. Para Georges Banu, a uniformização que sempre se quis transmitir do teatro dos ‘países do Leste’, expressão aliás contestada por Milan Kun-dera, deu lugar, nos últimos anos, ao reconhecimento da diversidade cultural existente. Com a queda do comunismo, esses pequenos países “riscados do mapa” ressurgem, como é o caso dos Países Bálticos, e “reencontram um repertório nacional que não deixa de reflectir as suas tradições”. Uma afirmação e uma integração no movimento teatral europeu que colocam, por exemplo, o teatro romeno no circuito de algumas das mais conceituadas companhias.

Editorial

02 > lisboaMITE’06 > 02

Este último jornal da Lisboa Mite’06, não sendo nem podendo ser um espaço de ba-lanço – pois a mostra ainda não terminou – é o tempo e o espaço de afirmação deste trabalho como um projecto de pontes e de plataformas. Pontes porque assim se ligam duas iniciativas chave do teatro português – o FITEI e o Festival Internacional de Teatro de Almada –, e plataforma porque espaço e tempo de encontro entre criadores de diferentes proveniências que no futuro se propõem interceptar as suas práticas, deixando que haja uma efectiva contaminação no seu trabalho pelo trabalho dos outros.

Uma das características mais significativas dos espectáculos que ao longo destes dias fomos vendo e daqueles que ainda poderemos ver, é que partem de textos clássicos ou contemporâneos, todos eles tentando reflectir sobre o mundo actual, sobre a multiplici-dade de desafios que hoje se colocam ao Homem. Isso é verdade nomeadamente na peça “Rhinocéros” de Ionesco, um texto de um autor maldito e marginalizado que hoje nos aparece com uma tal actualidade e como um hino à defesa daquilo que é cada vez mais necessário defender nas nossas sociedades: a Humanidade e a identidade de cada ser humano. Só essa identidade nos impedirá que nos transformemos todos em rinoceron-tes, que façamos parte de uma massa humana cinzenta e acrítica que será, na sua cada vez maior alienação, incapaz de transformar o Mundo.

Sem querer diferenciar as várias propostas que ainda poderemos ver nesta mostra, e no espectáculo que o Festival de Almada traz ao Nacional, diria que este “Rinoceronte” é a metáfora mais actual e certeira para a caracterização dos perigos com que hoje nos confrontamos neste tempo de massificação e de uniformização.

Carlos FragateiroJosé Manuel Castanheira

DIRECÇÃO> Carlos Fragateiro

e José Manuel Castanheira

COORDENAÇÃO> Pedro Mendonça

COORDENAÇÃO EDITORIAL> A. Ribeiro dos Santos

REDACÇÃO> A. Ribeiro dos Santos,

Margarida Gil dos Reis, Ricardo Paulouro

COLABORADORES> Maria Helena da Rocha Pereira,

Hélder Costa

DOCUMENTAÇÃO> André Camecelha

GRAFISMO> Nuno Patrício

FOTOGRAFIA> Margarida Dias

PROPRIEDADE> TNDM II, SA

IMPRESSÃO> Mirandela Artes Gráficas

Ficha Técnica

mostra internacional de teatroo grande teatro do mundo

Espectáculos legendados em português.

Debates> Conferências> Cinema> Músicas no Átrio às 24h>

www.teatro-dmaria.pt

RESERVAS>[email protected]> 21 325 08 35Informações> 21 325 08 27

Page 3: Jornal do Teatro #03

13>14> JULHO > 03 > lisboaMITE’06 > 03

Próximos espectáculos >Rhinocéros >

“Rhinocéros”, escrita em 1958 e estreada no ano seguinte na Alemanha, é, talvez, a peça mais complexa de Eugène Ionesco. O próprio autor disse em entrevista que era uma peça tradicional e que reunia as condições que lhe pareciam fundamentais num texto de teatro: tem uma ideia simples, uma progressão sim-ples, e uma queda. Nem mais, nem menos.

O texto, mostra-nos uma personagem, Bérenger, que assiste, impotente, à trans-formação de todas as pessoas que o rodeiam em rinocerontes. No fim da peça, aparente-mente só ele conserva a aparência humana, e isso provoca-lhe sentimentos mistos: se por um lado fica desapontado com a sua in-capacidade para mudar; por outro jura que nunca capitulará.

A primeira encenação da peça, assinada pelo alemão Karl-Heinz Stroux, sublinhou a vertente política do texto. Rezam as cróni-cas da época que, na estreia, o público in-terrompeu frequentemente o espectáculo para aplaudir todas as falas que pareciam criticar o fanatismo – o fantasma do III Reich ainda estava presente no espírito de todos. Mas na estreia francesa, numa ence-nação de Jean-Louis Barrault foi acentuada o lado cómico da peça e a sua proximidade com o teatro de “boulevard”. Numa França do pós-guerra completamente dominada pelo teatro “engajado”, os críticos de es-querda apontaram o facto de Ionesco não ter dado uma verdadeira “solução” ao es-pectador, deixando-o no vazio.

O autor não perdeu tempo e respondeu. “Rinoceronte” é uma tentativa de desmisti-ficação e não a tentativa de substituir uma mistificação por outra mistificação.

Depois de uma primeira tentativa de es-crever para teatro quando tinha apenas 13 anos, Ionesco escreveu a sua primeira peça aos 40. “A Cantora Careca” – que conside-rava a tragédia da linguagem – estreou no Théâtre des Noctambules, e não na Comédie Française, como ele gostaria, e nos anos se-guintes não mais parou de escrever. A cada nova peça, nova encenação. Mas foi com a estreia de “Rhinocéros”, a 6 de Novembro de 1959, que o Mundo compreendeu que tinha chegado a era Ionesco. Depois de Barrault, Orson Welles também assinou uma encena-

ção da peça com Laurence Olivier no papel principal.

Durante as décadas seguintes, o nome de Eugène Ionesco firmou-se definitivamente na cena teatral internacional e o interesse sobre a sua obra só abrandou durante os anos 80 e 90. No novo milénio, urge redes-cobrir uma das dramaturgias mais ricas e fascinantes do século XX e essa é precisa-mente a proposta de Emmanuel Démarcy-Mota, um dos criadores mais estimulantes da cena francesa actual. A sua companhia chega à Lisboa Mite’06 nos dias 13 e 14 e traz na bagagem uma abordagem radical do clássico contemporâneo de Ionesco. Um espectáculo celebrado pela crítica para ver às 21h30.

“Rhinocéros” de Ionesco chega ao Teatro Nacional em colaboração com o Festival de Almada

Emmanuel Démarcy-Mota traz à Lisboa Mite’06 uma das peças mais emblemáticas de um dos fundadores do teatro do absurdo, Eugène Ionesco. “Rinoceronte”, na tradução portuguesa, é o retrato de um homem que se recusa a aderir a uma onda de histerismo colectivo e que acabará encerrado no seu apartamento, completamente isolado do resto do Mundo A. Ribeiro dos Santos

Aderir às massas ou ficar sozinho

Ionesco? Sim, por favor![Texto de Hélder Costa *]

Conheci o Emmanuel Demarcy Mota era ele ainda uma criança e eu estava em Fran-ça, com uma bolsa de estudos oferecida pelo Salazar. É o que costumo dizer a propósito do período em que fui obrigado a exilar-me, saindo de Portugal por razões políticas. Na altura, encontrei a Teresa Motta e o Emma-nuel e sei que, desde então, ele se tornou um dos encenadores mais importantes da nova geração. É bom saber.

Há uns anos, fiz um ciclo Ionesco na Bar-

raca. Encenei “A Cantora Careca”, “Macbett” e “Rinoceronte”, o que na altura parece ter ir-ritado algumas pessoas. Estávamos em me-ados da década de 90 e houve quem questio-nasse a pertinência de levar Ionesco à cena. No programa do ciclo, tive oportunidade de explicar a opção da companhia. Em primeiro lugar, não sou anti-Ionesco e aprecio o tea-tro do absurdo, cujo universo me é familiar. O que sou é contra a manipulação que se faz da obra do Ionesco.

O autor deixou escrito que concebeu o “Rinoceronte” em memória da milícia rome-na fascista. Posteriormente muita coisa se

disse sobre a peça. Na sequência da guerra-fria, dizia-se que era um texto contra o Esta-linismo. Depois, que era contra a esquerda. Finalmente, quando o Mundo mudou, quando se deixou de discutir, toda a gente se calou. Ora o “Rinoceronte” é, antes do mais, uma peça que apela à liberdade individual e ao combate às ditaduras opressivas. Não é pre-ciso procurar mais longe.

Lembro-me que, em miúdo, vi uma mon-tagem da peça pelo Teatro Experimental do Porto, do António Pedro. Fiquei deslumbrado com o espectáculo e passou a ser um sonho: montar aquela peça. Na altura, era evidente

para mim que o texto era um libelo contra o Salazar. Mais tarde, quando a encenei, já tinha percebido que a queda do Muro de Berlim iria conduzir a um poder imperial único. Foi por isso que quis fazer “Rinoceronte”. Hoje, con-tinuo a achar que é uma peça extraordinária. Uma peça contra o imperialismo e contra a globalização forçada a que assistimos. Não me surpreende que o Emmanuel a queira fa-zer. Muito pelo contrário.

*dramaturgo, encenador e co-director de A Barraca

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04 > lisboaMITE’06 > 03 < 16>17>18> JULHO

Espectáculo integrado no 23.º Festival de Almada > En un lugar de Manhattan

“Num lugar de Manhattan”

O Teatro Nacional recebe, nos dias 16, 17 e 18, às 21h30, na Sala Garrett, uma produção da companhia Els Joglars, em co-produção com a Comunidad de Madrid e apresentada no âmbito do 23.o Festival de Almada Ricardo Paulouro

Uma companhia de boa memóriaQuem viu, no Verão de 2004, no palco do Teatro da Trindade – e também integrado no Festival de Teatro de Almada – “El Retablo de

las Maravillas”, fixou o nome Els Joglars como uma companhia de que vale a pena tomar nota. A partir de uma peça conhecida de Lope de Vega – e brilhantemente adaptada aos nossos dias – o grupo de Boadella pintou-nos um Mundo cheio de idiotas.

A história da peça de Lope tem muito a ver com o conto “O Rei vai Nu”, de Hans Christian Andersen. O monarca sai à rua convencido de que está a usar o mais lindo dos mantos alguma vez concebidos, e perante os elogios da corte não há quem lhe diga que, afinal, está nu. A não ser uma criança inocente que ainda não aprendeu a mentir. O espectáculo dos Joglars transpunha para os dias de hoje estas mentiras tornadas verdade pelo colectivo. Aplique-se a regra à política, à religião ou à arte moderna. Quantos embustes são considerados fantásticos apenas porque se criou um consenso social à sua volta? Quantas fraudes andamos a aplaudir?

Da companhia, o público português teve ainda o privilégio de ver, sempre integrado no Festival de Almada, “Daaalí”, considerado o melhor espectáculo apresentado na Argentina em 1999. Aguarda-se “En Un Lugar de Manhattan” com expectativa. A.R.S.

“En un lugar de Manhattan” (“Num lugar de Manhattan”, em tradução livre), encenado por Albert Boadella, é um jogo entre a ficção e a realidade que nos oferece uma “obra de teatro ultra-moderna e vanguardista”. A peça reflecte sobre os vestígios e ruínas do pas-sado, face a uma sociedade contemporânea onde até as quimeras estão votadas ao de-saparecimento. Assim, procura-se o reen-contro, sem sucesso, de uma herança esti-lística e ética própria dos ideais de cavalaria. Vem-nos de imediato à mente o mito literário de D. Quixote, mas a consciência da impos-

sibilidade de modernizar o mito instala um estado de desencantamento. Essas ruínas e vestígios que perduraram durante séculos em Espanha, como os ideais góticos e de cavalaria cristã, desapareceram. A quimera ou qualquer outro esforço de restaurar uma ordem perdida revela-se infrutífera, mesmo reconhecendo as virtudes que um D. Quixote na sociedade contemporânea poderia ter.

Estamos perante uma desconstrução do mito quixotesco, onde somos confrontados com um D. Quixote castelhano e o seu aju-dante, Sancho, catalão. Ambos disfrutam de

um regime aberto. Para o director, Alberto Boadella, este espectáculo acaba também por ser uma metáfora da relação entre Cas-tela e a Catalunha, onde os valores da Espa-nha de Cervantes se contrapõem aos valores da modernidade.

A companhia Els Joglars (Os Pícaros) é ali-ás característica não só pelo registo satírico mas, sobretudo, pelo carácter inventivo, rigo-roso e surpreendente, em termos visuais. O ‘actor’ e o ‘espaço’ são os dois conceitos fun-damentais avançados pela companhia para a estruturação do seu trabalho. Fundada em

1962 por Albert Boadella, Carlota Soldevila e Anton Font, o universo dos pícaros medievais esteve certamente na sua origem. Ao longo de mais de quarenta anos, Els Joglars tem re-flectido nos seus trabalhos sobre a evolução política e social da sociedade, utilizando para isso o mesmo tipo de linguagem usada pe-los pícaros na Idade Média. A opção seguida é a de não abandonar as origens em termos criativos e, simultaneamente, mesmo que atentos às mudanças dos tempos, preservar um distanciamento crítico da literatura, da televisão, dos temas da actualidade.

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19>20>21>JULHO > 03 > lisboaMITE’06 > 05

Próximos espectáculos >Ilíada, Eneida, Odisseia >

“Num lugar de Manhattan” Um actor, meia-dúzia de instrumentos

rudimentares e textos dos maiores poetas da Antiguidade Clássica. Eis os ingredien-tes dos três espectáculos que o italiano Gianluigi Tosto traz à capital portuguesa na recta final da Lisboa Mite’06 e com os quais quer encantar os portugueses. Tosto, que está pela primeira vez entre nós, admite que esta é a primeira vez que faz estes es-pectáculos fora do seu país, mas crê reunir condições para atrair o público português.

“Como trabalho os textos de forma mui-to musical e tenho um desempenho muito físico em cena, mesmo que as pessoas não compreendam italiano acho que vão aderir a este trabalho”, revela, esperançoso. E conta-nos como esta aventura começou.

“Sempre gostei de poesia e há muito que alimentava o sonho de vir a fazer um

espectáculo de narração. Quando final-mente decidi avançar com a ideia, peguei na ‘Ilíada’, que me pareceu uma obra capaz de interessar o público. Afinal, está ali uma parte substancial das origens da cultura mediterrânea...”

A “Ilíada” de Homero estreou em 2001 e o sucesso, de certa forma inesperado, do espectáculo, estimulou Gianluigi Tosto a continuar na mesma linha. No final de 2002 já tinha decorado a “Odisseia”, do mesmo Homero, e, dois anos depois, a “Eneida” de Virgílio. E diz que nem sequer foi muito difí-cil decorar os textos.

“Esse é, no final de contas, o trabalho do actor: estamos habituados a decorar. Neste caso, precisei de dois a três meses para de-corar cada um dos textos, que é composto por mais ou menos mil versos. Mas o que é

difícil neste espectáculo é dizer o texto ao mesmo tempo que toco os instrumentos. Isso, sim, é complicado”, revela.

Espectador é que dá a contracena

Já não têm conta, as vezes que esta trilo-gia se apresentou ao público italiano, sem-pre com grande êxito. No entanto, apesar de andar na estrada com os espectáculos há cinco anos, Gianluigi Tosto diz que nunca se cansa de o fazer. “Cada ‘performance’ é necessariamente diferente da anterior, por causa do público. E se isto é verdade para qualquer espectáculo de teatro, num tra-balho desta natureza é-o ainda mais: estou sempre em contacto directo com o especta-dor, a olhar directamente para as pessoas

que tenho à frente. As reacções do público são a minha contracena e até a duração do espectáculo pode variar, de acordo com a forma como ele reage.”

Outra das características deste trabalho é que, para o montar, Tosto não recorreu a nenhum encenador, optando por autodiri-gir-se. Uma forma de trabalhar sem rede que lhe agrada particularmente. “Admito que não é fácil trabalhar sozinho. Há mo-mentos em que estou muito cansado e não tenho ninguém para me ajudar, para me orientar. Mas ao mesmo tempo, trabalhar nessas condições dá-nos uma sensação de liberdade que é incomparável e que seria impensável se tivesse um encenador a di-rigir-me.”

Histórias de (en)cantarUma das propostas mais insólitas da Lisboa Mite’06 é a do actor italiano Gianluigi Tosto, que se apresenta no Teatro Nacional nos dias 19, 20 e 21 deste mês com três espectáculos diferentes: “Ilíada”, “Eneida” e “Odisseia”, de Homero e Virgílio. A ideia é dizer, ao longo de não mais de hora e meia, os grandes poemas da Antiguidade Clássica, obras originalmente concebidas para ser recitadas nos serões da aristocracia, e que assim são devolvidas à sua função primeira. A de ser narradasA. Ribeiro dos Santos

“Precisei de dois a três meses para decorar cada um dos textos, que é composto por mais ou menos mil versos. Mas o que é difícil neste espectáculo é dizer o texto ao mesmo tempo que toco os instrumentos”

Perfil Gianluigi TostoGianluigi Tosto trabalha em teatro desde 1977 e tem uma formação pluridisciplinar, tendo estudado, para além de várias técnicas de interpretação teatral, dança e música. Passou pelo Actor’s Studio de Nova Iorque, mas também trabalhou com Ludwig Flaszen, um dos fundadores do Teatro Laboratório ao lado do lendário Jerzy Grotowski. Na dança, estudou Butô e trabalhou com uma das bailarinas de Pina Bausch, Julie Stanzak. Em Itália, tem colaborado com inúmeras companhias e nos últimos anos tem-se destacado como criador de espectáculos de narração, como estes que agora traz à Lisboa Mite’06.

Gianluigi Tosto narra “Ilíada”, “Eneida” e “Odisseia”

Page 6: Jornal do Teatro #03

[TEXTO DE MARIA HELENA DA ROCHA PEREIRA *]

É esta a designação da obra mais exten-sa de Ovídio, composta no metro da epopeia e terminada nos primeiros anos da nossa era. Enquadra-se numa tradição vinda dos poetas helenísticos, sobretudo de Calímaco, autor de um poema com o título de “Aitia” (“causas”), em que se explicavam, através de mitos terminados por transformações (sentido exacto do grego “metamorfose”), os variados fenómenos da natureza.

O poema de Ovídio, em quinze livros e cerca de doze mil versos, principia na cria-ção do mundo e vai até à apoteose de Júlio César e previsão da de Augusto, numa se-quência que compreende histórias de deu-ses, de heróis e de figuras humanas, num total de mais de 250, em que predomina o motivo da paixão amorosa, que, porque não é ou não pode ser correspondida, termina numa metamorfose — a qual, aliás, é mui-tas vezes “meramente tangencial”, como escreve Galinsky.

A variedade de situações, a diversidade das figuras, a violência dos sentimentos, por vezes em contraste com a serenidade das paisagens, tudo isso expresso numa

linguagem fluente e musical, criaram uma atracção por este poema que explica o aplauso com que foi recebido, ainda em vida do autor, e a influência exercida através dos tempos.

Já nos séculos XI-XII a sua popularida-de era tal que é costume denominar esse primeiro ressurgimento cultural ‘aetas Ovi-diana’. Mas é sobretudo a partir do Renasci-mento que ele se universaliza, desde Dan-te, que o tem como modelo máximo logo a seguir a Virgílio, a Shakespeare, do qual já se disse que quase não compôs uma peça que não tenha reflexos ovidianos, ou que não se inspira nas “Metamorfoses”, como é o caso, entre muitos, de “Romeu e Julie-ta”, em que a história de uma paixão entre filhos de duas famílias desavindas conhece o mesmo desfecho trágico que marcou a de Píramo e Tisbe, no livro IV do poema latino. Os exemplos poderiam multiplicar-se nas literaturas europeias, sem exceptuar a nos-sa, onde o epílogo de um amor desesperado se apresenta sob a forma de metamorfose, como sucede em dois dos episódios mais célebres de “Os Lusíadas”: o de Inês de Castro (‘aition’ da Fonte dos Amores) e o do Adamastor (‘aition’ do Cabo das Tormentas). Traduzido, desde cedo, nas principais lín-

guas modernas (e destaque-se, entre nós, a belíssima, ainda que parcial, versão de Bo-cage), merece especial menção a habilidosa inventiva de António Dinis da Cruz e Silva, nas “Metamorfoses Brasileiras”, ao imagi-nar doze histórias diferentes para explicar a origem de acidentes geográficos, de pedras preciosas, aves ou vegetais do país onde se estabelecera.

Mas, a estes exemplos literários de que demos brevíssima amostra, muitos outros se poderiam acrescentar, vindos do campo das outras artes, como a música, a escultu-ra e principalmente a pintura. Desta última recordaremos apenas, no séc. XVIII, a deco-ração do Palácio de Sans-Souci, mandada executar por Frederico-o-Grande; os inú-meros trabalhos, académicos ou não, pro-duzidos ao longo do séc. XIX; e, já na terceira década do séc. XX, as ilustrações de Picasso para uma edição de luxo das “Metamorfo-ses”. Por isso, e embora com alternâncias de mais ou menos popularidade, pode afir-mar-se que permanece válida a afirmação do Poeta no epílogo da sua obra principal: “E indelével será o meu nome”.

* Professora da Faculdade de Letras de Coimbra

06 > lisboaMITE’06 > 03 < 21>22> JULHO

Próximos espectáculos > Metamorphoses

A Lisboa Mite’06 recebe, nos dias 21 e 22, um clássico da literatura universal cuja influência tem tido repercussões nas várias artes, até aos nossos dias. As “Metamorfoses” de Ovídio chegam-nos pela mão de Alessandro Fabrizi, representadas por um elenco de luxo, nas Ruínas do Carmo, com narração de Maria Amé-lia Matta. Trata-se de uma selecção de sete histórias do autor clássico, a partir da tradução e versão de Ted Hughes, “Tales From Ovid”, publi-cada em 1997. The Company, assim se chama este projecto que nasceu na sequência de um ‘workshop’ conduzido por Kristin Linklater, em 1997, tem apresentado este espec-táculo em espaços naturais que nos mostram como tudo – personagens, plantas ou animais – se podem me-tamorfosear.

Ken Cheeseman (actor presente em vários filmes de Clint Eastwood),

Christian Crahay (dirigido por nomes como Peter Brook, Benno Besson ou Otomar Krejca), Paula Lang-ton (membro da Angeles Women’s Shakespeare e The Company of Wo-man), Maya Sansa (revelação italiana em filmes como “Good Morning, Night” ou “The Nanny”), Valentino Villa (dirigido, entre outros, por Luca Ronconi) são alguns dos nomes que fazem parte do elenco.

Nesta longa balada, dividida em duas partes, cada actor representa na sua língua materna e alterna entre momentos colectivos e indivi-duais. Uma viagem por histórias de grandes paixões e transformações, onde a imaginação é protagonista. MGR

MetamorfosesMetamorfosesMetamorfosesMetamorfosesMetamorfosesMetamorfoses

Page 7: Jornal do Teatro #03

25>26>27> JULHO > 03 > lisboaMITE’06 > 07

Próximos espectáculos >Il Lettore a Ore >

MetamorfosesMetamorfoses[TEXTO DE JOSÉ SANCHIS SINISTERRA *]

Uma parte considerável do meu traba-lho dramatúrgico durante os últimos trinta anos desenvolveu-se nas fronteiras en-tre a narrativa e o teatro. Trazendo para a cena romances e contos de autores como Joyce, Melville, Beckett, Cortázar, Borges, Saramago, etc., propus-me – e continuo a propor-me – alterar as coordenadas tra-dicionais do texto dramático e, ao mesmo tempo, reivindicar a natureza, também essa literária, da arte cénica e do seu pro-cesso de renovação. Naturalmente, ambos os objectivos podem ser encontrados quer nas minhas obras originais, onde procurei sempre conciliar duas das minhas grandes paixões: o amor pelos livros, pela literatura solitária, e o fascínio pelo encontro colecti-vo que a arte dramática promove. Contudo, com “Il Lettore a Ore”, a partir da sua mes-ma génese procurei dar um passo à frente nas minhas tentativas de cruzar a litera-tura e o teatro. Por um lado, quis que os textos narrativos figurassem na obra sem

nenhuma alteração, sem uma “adaptação” a uma forma dramática mais ou menos fiel; por outro, procurei que a própria literatura se transformasse em tema, em substân-cia fundamental de um argumento, de um conflito, de uma situação teatral. Deste modo, imaginei um pretexto argumentativo relativamente simples – alguém que tem a função de ler romances a uma pessoa cega – e comecei a tecer e a desfazer uma teia de interacções na qual o acto de ler, os romances lidos, esse universo de camu-flagem que a literatura deposita na nossa mente, pode ser o verdadeiro motor da ac-ção dramática.

Com efeito, os livros lidos por Ismael a Lorena actuam como uma corrente que põe em movimento as águas estagnadas da re-clusão desta última, do seu obscuro refúgio ou fortaleza, trazendo à luz e à vida – mais precisamente em acção – os restos de um naufrágio emocional mal clarificado. O po-der da literatura, faz-se corpo na voz do leitor, provoca pequenas e grandes turbu-lências neste microcosmos fechado. Toda-via, face à submissão da literatura ao poder

– de Ismael ao seu “patrão” – liberta um turvo jogo de oscilações que destabilizam a hierarquia e ligam as personagens.

Poderemos falar de um verdadeiro “ar-gumento”, de uma trama, de uma história? Sinceramente, não o saberei dizer. Poucas vezes escrevi uma obra com tantas som-bras, com tantas zonas enigmáticas que não pude nem quis colocar em claro. Re-nunciando à presumível omnisciência do autor, decidi trazer para a escrita a minha convicção de que a realidade humana não é totalmente opaca, nem plenamente trans-parente: é, quanto muito, translúcida. Ou não será inegável que a vida se revela e na sua mesma presença, no seu incessante devir? Porque o teatro deve fingir este ca-rácter translúcido da nossa experiência e oferecer um mundo de perfil inequívoco e nítido? Ou que apenas a poesia terá o pri-vilégio de falar através do silêncio, atra-vés das “suas grandes margens brancas”, como escreveu Valéry?* (Dramaturgo, encenador e actual director do Teatro Metastasio)

Texto traduzido a partir do catálogo de “Il Lettore a Ore”,

Teatro Metastasio, 2005-2006

O Poder da LiteraturaEstudos para a cenografia

Page 8: Jornal do Teatro #03

José Sanchis Sinisterra, um nome incontornável da dramaturgia contemporânea, encerra a Lisboa Mite’06, nos dias 25, 26 e 27 de Julho, com uma das suas mais recentes criações, “Il Lettore a Ore”. Uma peça que conta a história de um estranho triângulo: o pai de uma jovem que cegou misteriosamente contrata um professor para ler, em voz alta, obras de grandes escritores. Um desafio a cada espectador, que tem aqui oportunidade de ser, ele também, um pouco autor Entrevista conduzida por Ricardo Paulouro

08 > lisboaMITE’06 > 03

Entrevista > José Sanchis Sinisterra

Que tipo de leitores existe em “Il Lettore a Ore”?

Como diz uma das personagens da peça, o pai, há dois tipos de leitores: um para o qual a literatura é como o substituto da vida, uma porta aberta às experiências que outros vive-ram; outro, que consome autores e obras, para quem a literatura é uma acumulação de infor-mação. Isto é, existe, por um lado, uma con-cepção burguesa e pragmática da literatura e, por outro, uma experiência da leitura enquan-to vivência, a qual, aliás, me parece ser a mais adequada. As personagens parecem viver um ambiente patológico, mas esse é, na verdade, um dos aspectos dramáticos da obra.

Esta não é uma obra de fácil in-terpretação e cada espectador tem de investir muito de si próprio para a compreender. Porquê dar ao público um papel de quase criador?

Parece-me que é uma obra difícil, não por ser uma obra intelectual, mas por ter muitos enigmas, diria mesmo, muitos ‘claros-escu-ros’, o mesmo que ocorre talvez na vida. Não conseguimos perceber na totalidade um indi-víduo, apenas apreendemos perfis, silhuetas, pois é impossível entrar no íntimo dos ‘outros’ e, por isso, o que fazemos é interpretar e de-cifrá-los. Aquilo que peço ao espectador é que

se coloque perante a minha obra como nor-malmente se coloca perante a vida.

A metaliteratura tem um papel fun-damental na peça “Il Lettore a Ore”. Que sentido tem a utilização da litera-tura dentro da literatura?

Eu diria mesmo que aquilo a que se chama auto-referencialidade na arte é, na verdade, uma característica da arte no século XX. Este processo tem como principal objectivo seme-ar questões sobre nós próprios através da obra de arte, quer seja na música, na pintura ou na literatura. Tanto a auto-referencialida-de, como a metaliteratura sempre existiram. No meu caso, como fui professor de literatura é muito frequente, nas minhas obras, a pre-sença do teatral enquanto temática, isto é, o teatro que fala de teatro. Em “Il Lettore a Ore” estamos perante uma obra teatral literária que fala da literatura. Uma obra onde eu quis pagar uma dívida à literatura, que falasse do acto de ler, do poder da literatura e também da relação da literatura com o poder que é uma dimensão política subterrânea que tam-bém está aqui presente.

De que modo as fronteiras entre a literatura e o teatro são mais ou me-nos visíveis?

Para mim são fronteiras imprecisas, mais conceptuais do que reais. Na minha opinião, o teatro também é literatura. Todo o meu trabalho ao longo dos últimos quarenta anos tem sido o de reivindicar a dimensão literá-ria do teatro, sobretudo, a partir dos anos 70, em que se considerava que a literatura era um peso para teatro e predominava o teatro

do espectáculo, o teatro do corpo. Por isso, fundei, em Barcelona, o Teatro Fronteirizo, justamente para poder explorar essa frontei-ra e reivindicar a dimensão literária do texto teatral. Estas fronteiras são assim fronteiras flutuantes. Não digo que o teatro possa ser só literário, mas acredito que o teatro literário tem um enorme futuro.

Uma das temáticas que tem abor-dado é a questão do fragmento. De que forma é que entende este con-ceito?

Tenho de facto trabalhado sobre este con-ceito nos últimos anos. “Il Lettore a Ore” é

uma das obras onde se começa a manifestar uma dimensão diferente da do fragmento em si: a da fragmentaridade ou, se quisermos, da descontinuidade. A obra pode ser lida como uma história e embora a estrutura fragmen-tária da acção dramática não seja evidente, há uma evolução que constitui a história de cada personagem. A estrutura fragmentária da

acção dramática, apesar de não ser evidente, ocorre entre uma cena e outra. Há assim um princípio de descontinuidade narrativa. Nes-te caso, é também o espectador que tem de pôr o seu trabalho nesses intervalos, entre um fragmento e outro. Por exemplo, os textos literários lidos por Ismael são fragmentos e o espectador tem de encontrar nesses frag-mentos a substância que move cada perso-nagem. A obra acaba por ser também uma pequena antologia de fragmentos literários.

“Aquilo que peço ao espectador é que se coloque perante a minha obra como normalmente se coloca perante a vida.”

Perfil José Sanshis SinisterraJosé Sanchis Sinisterra nasceu em Valência em 1940. É autor de mais de quarenta obras teatrais, originais e adaptações, muito traduzi-das, encenadas e publicadas em toda a Europa e América Latina. Na sua já longa carreira encenou obras de Cervantes, Lope de Vega, Molière, Racine, Shakespeare, Pirandello, Tchekov, Strindberg, Brecht, entre outros. Criou dramaturgias a partir de textos de Joyce, Kafka, Melville, Beckett, Cortázar. Em 1977 fundou em Barcelona o Teatro Fronterizo, onde desenvolveu um importante trabalho de investigação teatral. Em 2005 assume a direcção artística da Fundação Metastasio.

“A literatura é como o substituto

da vida”

Page 9: Jornal do Teatro #03

Ironia, vingança, humor, paixão, so-frimento, moralismo e a sua ausência, foram apenas alguns dos sentimentos e sensações que cativaram a plateia do Teatro Nacional. “Dom Juan”, de Molière, numa produção do Teatro do Bolhão, do Porto, encheu o palco com tudo isto e muito mais, no dia 1 de Ju-lho, na sua estreia, na Sala Garrett.

Ovacionado durante muito tempo, quer pelo trabalho de actores, quer pela cenografia, este espectáculo deu-nos um Dom Juan (magnificamente in-terpretado por António Capelo) na fron-teira entre o amor e o desamor, entre o moral e o imoral, entre a liberdade e as regras impostas pela sociedade. Cape-lo, protagonista e director do Teatro do Bolhão, deu corpo a esta mítica perso-nagem, envolta num cenário onde pre-dominam os veludos vermelhos.

É neste ambiente quase barroco que terão lugar interessantes reflexões que tanto têm de cómico – arrancando fre-quentes gargalhadas à plateia – como de trágico. “Em que credes vós então?” é a pergunta colocada várias vezes ao longo da peça a Dom Juan pelo seu criado Esganarelo, interpretado por João Paulo Costa. Uma pergunta quase retórica que nos descobre um universo cheio de carências afectivas e dilemas interiores. A resposta possível: “Creio que dois e dois são quatro e quatro e quatro são oito”.

Para o encenador japonês, Kuniaki Ida, Dom Juan simboliza “a solidão e a liberdade, como todos nós que nos me-

xemos de forma solitária na cidade”. Tal como Dom Juan, de forma contra-ditória, “todos temos de acreditar em algo, mesmo sabendo que somos de-pendentes desse algo: o amor”.

Kuniaki Ida, que valorizou a dimen-são visual do texto, reconhece que “este trabalho é fruto de uma coopera-ção com o amigo António Capelo que já soma dez anos”. Kuniaki Ida reconhece que o que mais o atraiu nesta peça foi o facto de ela combinar como poucas o trágico e o cómico. Mais “uma aposta em grandes autores do teatro”, uma das linhas orientadoras, aliás, do Tea-tro do Bolhão. Mas para o encenador o cenário nem sempre é o mais impor-tante. No caso desta peça, primou pela “simplicidade”: “Não me parece que o cenário tenha de ser sempre luxuoso. Optei sim por apostar no tecido, mais precisamente no veludo. Mas no tempo de Molière os recursos, em termos de cenário, também eram limitados”.

Não será pois Dom Juan, caracteri-zado como o que não tem convicções, uma metáfora da sociedade que nos ‘perturba’ pela actualidade? Curiosa-mente, para Kuniaki Ida, o mais im-portante no teatro são os actores e a relação que estabelecem com o públi-co: “Trabalho muito com actores. Para mim eles não são objectos, são a ma-téria-prima mais importante do teatro. É para eles que eu trabalho.” Um pro-jecto bem conseguido que inscreveu a sua presença no Teatro Nacional e em todos os que a ele assistiram.

Um coração capazde amar toda a Terra

O Teatro do Bolhão apresentou na MostraInternacional de Teatro, com encenaçãodo japonês Kuniaki Ida, um “Dom Juan”surpreendente. Duas horas de emoçõesque fi zeram as delícias do público Ricardo Paulouro

03 > lisboaMITE’06 > 09

Reportagem > Dom Juan > Electra >

Foi uma surpresa quando as luzes se acenderam e o público da Lisboa Mite’06 descobriu um palco comple-tamente nu e um grupo de actores an-drajosos, quais sem-abrigo, deitados pelo chão. Era a estreia de “Electra”, o espectáculo que o Teatro Nacional Radu Stanca, da Roménia, trouxe à capital portuguesa numa encenação do celebrado Mihai Maniutiu e a pri-meira impressão que causou foi esta: do universo grego, nem rasto.

Nada do que estava em palco – nem cenário (ausente), nem figurinos (negros) – nos remetia para o Mundo da Antiguidade Clássica. E, no entan-to, o texto estava lá e foi-nos contada, e bem, a história de Electra e da sua urgência de sangue.

O mito de Electra conta-se em poucas palavras: desde que viu o pai, Agamémnon, assassinado às mãos da mãe, Clitemnestra, e do amante, Egisto, que esta mulher vive para se vingar. Espera, anos a fio, que o ir-mão Orestes regresse do estrangeiro para que possa ajudá-la a restabe-lecer a justiça. O que nos foi dado a ver no palco do Teatro Nacional foi isso mesmo: a tristeza desta mulher enquanto espera – e desespera – e a sua felicidade, assim que satisfaz o seu desejo.

Na encenação de Maniutiu, foi fun-damental a escolha da actriz Mariana Presencan para fazer de Electra. O corpo musculado da intérprete é coe-rente com o carácter viril da persona-

gem, e a sua extrema magreza reme-tem-nos para uma vida de carências e sofrimento.

As surpresas do espectáculo de Mihai Maniutiu não se ficaram pelo cenário e pelos figurinos. Há cenas que o encenador optou por tornar mais físicas do que seria de esperar. Quando Electra e Clitemnestra dis-cutem, o encenador pô-las a lutar, rebolando pelo chão. E Clitemnestra acabará brutalmente assassinada |à vista do público pelo bando de Elec-tra. Os Gregos mantinham actos san-grentos fora de cena, mas também é verdade que uma plateia dos nossos dias, mais do que habituada à violên-cia não estranha ser confrontada com o horror.

A interpretação dos actores não fugiu àquilo que era esperado: os re-gistos do elenco eram intensos, ten-dencialmente agressivos, e o ritmo do espectáculo deliberadamente lento, com muitas pausas entre as falas e gestos muito marcados, apontando para a ritualização dos acontecimen-tos cénicos.

Fundamental para o conjunto foi também a música, interpretada ao vivo pelo grupo Iza. Com os seus ins-trumentos e as suas vozes, o Iza pre-encheu o lugar da música e da dança atribuído na tragédia grega ao coro e protagonizou os momentos mais vivos do espectáculo, sublinhando a emo-ção das cenas mais íntimas e a tensão dos momentos mais dramáticos.

Quando a voz dosangue fala mais alto

A encenação de Maniutiu surpreendeuo público da Mite pela fisicalidade queimprimiu a “Electra”. A música do grupoIza sublinhou os momentos emotivose tensos do texto clássicoA. Ribeiro dos Santos

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No Outono de 2004, Serge Clément percorreu as cidades de Dakar, Lis-boa, Budapeste, Istambul, Mumbai, Banguecoque, Santiago, Valparaíso e Nova Iorque. Foi no passado dia 9, dois anos depois, que a peça “5 Heures du Matin”, uma obra de Paula de Vascon-celos, estreou no Teatro Nacional. Uma produção dos Pigeons International, uma companhia multidisciplinar, que fez conviver neste trabalho teatro, dan-ça e fotografia.

O cenário despojado, que precisou pouco mais do que duas cadeiras, foi enriquecido pelo trabalho fotográfico de Serge Clément que nos extasia e nos faz crer, como diz uma das perso-nagens, “que podemos falar sem pa-

lavras”. A peça passa-se em torno da deambulação entre a noite e “a primei-ra luz da manhã”, acompanhada por sequências fotográficas de fragmentos de cidades que se oferecem à teatra-lidade.

Quer os actores quer o público con-viveram em “5 Heures du Matin” com jogos de escuridão e luz, com o silêncio e com o ritmo intercalado do teatro-dança e a leitura das imagens. “5 Heu-res du Matin” passa-se não só em tor-no de uma mulher que reflecte sobre o seu sofrimento, mas convida-nos a refl ectir sobre o próprio estado da huma-nidade, nesse momento quase místico, um não lugar, quando a luz nasce da escuridão. Como na vida. MGR

Corpos que dançam, cidades que acordamA Pigeons International trouxe à LisboaMite’06 a segunda parte da Trilogia daTerra de Paula de Vasconcelos.Uma obra multidisciplinar onde o teatroconvive com a dança e a fotografia

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Reportagem > 5 Heures du Matin / Entrevista > Serge Clément

Como surgiu a colaboração, em “5 heures du matin”, com Paula de Vasconcelos?

Conhecemo-nos há já alguns anos, atra-vés de amigos comuns e também porque te-mos seguido atentamente as produções um do outro. A ideia de uma colaboração nasceu de cumplicidades e curiosidades comuns, como o humano exposto aos tormentos e prazeres de viver. A ideia original de “5 heu-res du matin” é da Paula de Vasconcelos. A Paula quis integrar a fotografia neste espec-táculo de forma a apresentar um trabalho visual de algumas actividades humanas no amanhecer, em diferentes cidades do mun-do e deu-me a oportunidade de participar neste espectáculo. Após termos selecciona-do em conjunto as sete cidades escolhidas nos quatro continentes, houve uma gran-de liberdade na escolha dos sujeitos, dos temas a abordar, no trabalho de imagem. Sozinho, durante sete semanas, percorri al-guns quarteirões, ruas, ruelas, perseguido por adversidades, condições climatéricas e luzes diversas.

Quais foram os principais objecti-vos neste espectáculo que faz con-viver diferentes artes – fotografia, teatro e dança?

Falar da complexidade da vida, da mul-tiplicidade de prazeres e dificuldades do

homem no amanhecer do terceiro milénio. Simplificar preocupações filosóficas e me-tafísicas ao nível do quotidiano e do real. Proporcionar o reencontro de diferentes meios de criação: o encontro teatro/dança/fotografia é múltiplo e tem estádios dife-rentes, o encontro de um trabalho solitário com um trabalho de grupo, o encontro da imagem fixa com o movimento, o encontro de diferentes temporalidades. Um encontro que visa reunir a integração e fusão das lin-guagens, num espectáculo coerente.

Porquê fotografar cidades às 5 horas da manhã?

5 horas da manhã é o instante de transi-ção, o lugar de passagem entre o sonho e a vida, entre a noite e o dia. É o aparecimento da luz e das primeiras actividades humanas de um dia. A esta hora existe uma grande vul-nerabilidade, quando tudo pode mudar...

O que é comum a todas as ci-dades que fotografou a essa hora ?

A experiência humana é comum e diver-sa, os riscos são semelhantes e cada vida humana é única. De facto, a tónica deste tra-balho incidiu sobre certas particularidades, próprias de cada cidade, de cada lugar, de cada cultura em função da sua localização geográfica. Privilegiei a diversidade, a dife-

rença, em vez das semelhanças. Por exem-plo, a experiência de um acordar em Buda-peste é muito diferente do acordar de Dakar. Os ritos do quotidiano variam. Cada indiví-duo é uma fragmentação de experiências únicas que nascem a cada aprendizagem.

A cidade é um dos tópicos mais presentes no seu trabalho. Trata-se de uma busca de ‘vestígios’, da sus-pensão de momentos?

Há certamente na imagem fotográfica a ideia de vestígio que nos faz parar o tempo mas também, nas minhas pesquisas, há o seu poder de evocação, a sua poesia. Uma fotografia pluridimensional que persegue uma presença e questiona o mundo. Há também, no meu trabalho, para além da imagem individual, a sequência narrativa constituída por um conjunto de fotografias que reinventa a leitura da experiência.

Numa frase, como definiria a fo-

tografia?A fotografia é feita de matéria, de simula-

cro e de poesia, como o tecido de um diálo-go, dado que a sequência narrativa explora múltiplos estádios espácio-temporais da actividade humana, realidades e imaginá-rios, passados, presentes e futuros.

“No amanhecer do terceiro milénio”

Serge Clément é fotógrafo desde

1975. Este inventor

de imagens trabalha sobre reflexões,

jogos de luz.A colaboração

em “5 heures du matin” ilustra a sua capacidade de nos fazer perder entre

a realidade e a ficção

Entrevista a Serge Clément, conduzida por

Margarida Gil dos Reis

Page 11: Jornal do Teatro #03

Margarida Gil dos Reis

“A Melhor Juventude”, considerado por muitos um filme histórico e que foi recebido com grande êxito em Portugal e nas salas de cinema internacionais, será apresentado no dia 22 de Julho, a partir das 17 horas, na Sala Garrett do Teatro Nacional.

Realizado por Marco Túlio Giordana e com interpretação, entre outros, de Luigi Lo Cas-cio, Alessio Boni, Sónia Bergamasco e Maya Sansa, esta obra conta a história de uma família italiana desde o fim dos anos ses-senta até aos dias de hoje. São cerca de 40 anos de histórias que descrevem a evolução dos costumes, os encontros e desencontros

das personagens, os dramas familiares e as transformações de toda uma sociedade. A partir de episódios originais de 90 minutos, recordando o género folhetinesco, chegamos actualmente a este filme, dividido em duas partes.

Imagens de vida, onde os impulsos, os imprevistos, os hábitos e planos fazem parte de vivências simbólicas que mesmo dotadas de um caminho individual se cruzam e com-plementam. No centro da trama, dois irmãos: Nicola e Matteo, que nos são apresentados em 1966, em Torino. Uma cidade e um país que têm como pano de fundo as cheias de Florença, os movimentos estudantis terroris-tas, os problemas dos operários, a imigração

do Sul, até aos nossos dias. Apetece pergun-tar, o que mudou e o que se mantém igual?

O tempo é talvez o protagonista desta obra. Quarenta anos depois é-se mais velho; a pai-sagem, os parentes e os amigos já não são os mesmos. Na segunda parte do filme, que começa nos anos 80, até ao presente, apesar de uma aparente imutabilidade, quase tudo mudou ou está prestes a mudar, inclusive esse microcosmo que é a família. No entanto, as contingências sociais não impedem que exista uma concentração na individualidade, no percurso de cada uma das personagens, no onde e como vivemos.

Simbólico será ainda o título da obra, que evoca o livro de poemas de Pier Paolo Pasoli-

ni e, curiosamente, uma antiga marcha mili-tar. Reflexo da ambição de toda uma geração em mudar o estado das coisas.

As personagens confrontam-se com a História que, neste filme, é muito mais do que uma força externa. É algo que as envol-ve, lhes proporciona uma (auto)descoberta e lhes exige uma escolha, com todas as con-sequência que possa acarretar. Transforma-ções de vida que ocorrem perante o nosso olhar de espectadores. A ‘melhor juventude’ é aquela que conserva a esperança e perma-nece no tempo.

“La Meglio Gioventú”, Itália, 2003, 366’, cor

22Julho, Sábado, Sala Garrett17h00 (I Parte) e 21h00 (II Parte)

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Pontes para o mundo > CICLA >

Peças antigas, temas de hoje,espectáculos de sempre

CICLA > Centro para a Interpretação dos Clássicos

O Teatro Nacional D. Maria II acaba de se juntar a vários parceiros internacionais para reflectir sobre a melhor forma de levar à cena, nos dias de hoje, os grandes clássicos da dramaturgia mundial.

Se o público precisa de ver – e rever – obras de William Shakespeare, Gil Vicente, Lope de Vega, Jean Racine ou Carlo Goldoni, não é menos verdade que, para serem actuantes, os espectáculos têm de falar a mesma língua das plateias contemporâneas. Isto sem cor-rer o risco de se descaracterizarem.

Um desafio para as próximas décadas

O que têm em comum companhias como a Royal Shakespeare Company, de Inglaterra, o Centro Dramático de Xangai, na China, ou o Teatro Nacional Nova Gorica da Eslovénia? Todos levam regularmente clássicos à cena. E todos se debatem, volta e meia, com o mesmo dilema: os clássicos devem, ou não, ser “actu-alizados” para as plateias contemporâneas?

Para responder a essa e outras perguntas, realizou-se, nos dias 28 e 29 de Junho, no âmbito do Festival d’Almagro, Espanha, a 1a

Assembleia Internacional do CICLA – Centro para a Interpretação dos Clássicos, cujo ob-jectivo é reflectir sobre a forma como hoje em dia se levam à cena os clássicos da drama-turgia mundial e como se processa a comu-nicação entre o espectador contemporâneo e os textos antigos.

O encontro reuniu grandes profissionais de teatro – entre directores de companhias, dramaturgos, investigadores, encenadores, cenógrafos, músicos e actores –, e em dois dias particularmente excitantes para quem gosta de teatro todos reconheceram que, num campo tão inexplorado como este, urge começar rapidamente a debater ideias e a trocar experiências.

Da assembleia resultou uma lista de inten-ções: a partir de agora, o CICLA organizará regularmente seminários, debates, oficinas e exposições sobre a montagem dos clássicos um pouco por todo o Mundo, mas também promoverá publicações, co-produções tea-trais e a realização de filmes sobre o tema. Centrando os seus trabalhos na cidade de Al-magro, terá, pontualmente, sessões noutros países, e deste encontro esperam-se grandes novidades num futuro bastante próximo.

Teatro Nacional D. Maria II (Portugal)

Royal Shakespeare Company (Grã-Bretanha)

Companhia Cheek by Jowl (Grã-Bretanha)

National Theatre (Grã-Bretanha)

Teatro Nacional de Nice (França)

Teatro Nacional de Marselha (França)

Teatro Nacional da Catalunha (Espanha)

Companhia Nacional de Teatro Clássico (Espanha)

Teatro Lope de Vega de Sevilha (Espanha)

Teatro de la Abadía (Espanha)

Teatro Metastasio de Prato (Itália)

Teatro Nacional Nova Gorica da Eslovénia (Eslovénia)

Membros fundadores na 1.ª Assembleia do CICLA:

“A Melhor Juventude” Imagens de Vida

Page 12: Jornal do Teatro #03

FRANÇA 13>14>21.30H

Rhinocéros de Ionesco Direcção EMMANUEL DÉMARCY-MOTA THÉÂTRE DE LA COMÉDIE, REIMS (Co-apresentação com o Festival Internacional de Almada)

ESPANHA 16>17>18>21.30H

En un lugar de Manhattan de Albert Boadella (a partir de Cervantes) Direcção Albert Boadella ELS JOGLARS (Co-apresentação com o Festival Internacional de Almada)

ITÁLIA 19>20>21>21.45H

Ilíada, Eneida, Odisseia de Homero, Virgílio Direcção e interpretação GIANLUIGI TOSTO

EUA>FRANÇA>ITÁLIA 21>22>22.00H

Metamorphoses de Ovídio Direcção ALESSANDRO FABRIZITHE COMPANY Narração de Maria Amélia Matta

Filme de culto italiano 22> (1.º PARTE)17.30H > (2.º PARTE)21.00H

A Melhor Juventuderealizado por Marco Tulio Giordanacom Maya Sansa

ITÁLIA 25>26>27>21.30H

Il Lettore a Ore de José Sanchis Sinisterra Direcção JOSÉ SANCHIS SINISTERRA TEATRO METASTASIO STABILE DELLA TOSCANA, PRATO