jornal do teatro #05

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05 A Confissão de LeontinaLygia Fagundes Telles em palco AnfitriãoEncanto para todas as idades Vermelho TransparenteProdução do Nacional estreia fora de Lisboa Ópera Cómica “Guerras de Alecrim e Manjerona” Obra maior de O Judeu chega à sala Garrett

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O Jornal do Teatro surgiu da vontade de experimentar, criar e dar espaços, a quem partilha o gosto pelo teatro. Das reflexões clássicas, à problemática da contemporaneidade, o Jornal do Teatro, do Teatro Nacional D. Maria II teve como principal alvo a reflexão sobre os tempos, que se mudam e evoluem e que, em última instância, são testemunhos ricos de cada época. De 2006, 2007 e 2008, período em que foi publicado, fez-se o retrato breve de uma ‘casa da cultura’ que é, antes de mais, uma casa aberta à sociedade e ao mundo.

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Page 1: Jornal do Teatro #05

05

“A Confissão de Leontina” Lygia Fagundes Telles em palco

“Anfitrião” Encanto para todas as idades

“Vermelho Transparente” Produção do Nacional estreia fora de Lisboa

ÓperaCómica

“Guerras de Alecrim e Manjerona” Obra maior de O Judeu chega à sala Garrett

Page 2: Jornal do Teatro #05

António Ramos Rosa comemora aniversário no Teatro Nacional

Terá lugar, no dia 17 de Outubro, pelas 18h30, no Salão Nobre do Teatro Nacional, uma sessão comemo-rativa do aniversário do poeta António Ramos Rosa. O evento é organizado pela revista “Textos e Pretextos”, do Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em parceria com o Teatro Nacional D. Maria II, a propósito do lançamento do nº9 da publicação inteiramente dedicada ao poeta. Com a presença do autor, a sessão será constituída pelo espectáculo “Rosa de Papel” (interpretação e concepção coreográfica de Catarina Câmara e Luiz Antunes), uma mesa redonda com vários escritores e a interpretação de dois poemas de Ramos Rosa por Amélia Muge.

Prémio de Dramaturgia António José da SilvaO Prémio de Dramaturgia António José da Silva foi apresentado no dia 12 de Setembro

no Teatro Nacional D. Maria II. O prémio anual luso-brasileiro, no valor de 15 mil euros, tem como principal objectivo incentivar a criação de novas dramaturgias de Língua Por-tuguesa. A candidatura para o primeiro destes prémios decorre até ao próximo dia 31 de Outubro. Este novo galardão decorre de uma parceria entre a Fundação Nacional de Arte (Funarte), do Brasil, e o Instituto das Artes, o Teatro Nacional D. Maria II e o Instituto Ca-mões (IC). Regulamento disponível em www.teatro-dmaria.pt.

Chico Buarque e Lygia Fagundes Telles no TNDM II

Dois dos maiores vultos da música e da literatura em língua portuguesa passarão pelo Teatro Nacional durante o mês de Novembro. O músico, dramaturgo e escritor Chico Buarque virá para falar do projecto “Budapeste”, adapta-ção à cena do seu romance homónimo e que terá estreia absoluta em Lisboa em 2007. Lygia Fagundes Telles estará entre nós a propósito da estreia nacional de “A Confissão de Leontina”, um espectáculo inspirado no seu conto com o mesmo título.

“Budapeste” foi o regresso de Chico Buarque à literatu-ra. Um romance que explora a duplicidade do sujeito. O es-pelho, a máscara, o sósia, são motivos que tornam este livro uma obra inesquecível, enigmática e, uma reflexão sobre a ‘persona’ e a identidade. Para além da música, títulos como “Benjamin”, “Fazenda Modelo” ou “Estorvo” confirmam a arte daquele que é já considerado um grande escritor.

Lançamento do DVD de Jacques LecoqEm colaboração com a École Internacionale Jacques Lecoq, de Paris, e o Outil Théâtre, o

Teatro Nacional anuncia o lançamento do DVD de Jacques Lecoq “Les Deux Voyages de Jac-ques Lecoq” (“As duas viagens de Jacques Lecoq”), com legendagem em português. Aqui se revelam os métodos de trabalho de uma companhia fundada em 1956 e que escreveu várias páginas da História do Teatro.

Antena 2 em directo do ÁtrioA Antena 2 transmite em directo, durante o mês de Outubro, a partir do Átrio do Teatro Na-

cional, às 19h00, uma série de concertos de sonoridades marcantes, do jazz a Lopes-Graça, passando por Ligeti, Mozart, entre outros. A entrada é gratuita.

Programa: Dia 19, João Paulo Esteves da Silva Dia 20, Projecto Ars CameraeDia 26, Quinteto de sopros À-vent-garde Dia 27, Duo Alfa Arroba

Editorial

02 > TNDMII > 05

Dos Clássicos e da Lusofonia

Quatro das ideias centrais do que nos propusemos realizar no Teatro Nacional estão aqui presentes de uma forma e com uma visibilidade que, pensamos, poucas dúvidas provocarão . Em primeiro lugar, reavivar a memória fundadora de um repertório do teatro português que é, efectivamente, referência não só a nível nacional. Falamos aqui naturalmente do ciclo António José da Silva e, especificamente, de uma obra que é uma mais valia para um projecto de internacionalização do teatro português, as “Guerras de Alecrim e Manjerona”. Este projecto, da responsabilidade do encenador Paulo Ma-tos, é um dos espectáculos de referência destes últimos anos e não se pode perder na tendência para o esquecimento que geralmente atravessa a sociedade portuguesa e as gentes da cultura. É assim que o Teatro Nacional assume desta vez a sua produção e se propõe fazer, na continuação do que já tinha sido tentado, uma digressão internacional com as guerras.

Em segundo lugar, já há sinais de que queremos dar um lugar de excelência à dra-maturgia contemporânea portuguesa, o que acontece com a estreia de um texto que, garantimos, irá ser uma surpresa, o “Vermelho Transparente” de Jorge Guimarães, que assim regressa ao Teatro Nacional.

Em terceiro lugar, o sentido da circulação começa a estar presente, digamos que ainda de uma forma tímida, com a estreia da nossa produção “VermelhoTransparente” fora de Lisboa, num projecto de articulação com a Artemrede – Teatros Associados, estrutura da região de Lisboa e Vale do Tejo que associa 17 autarquias.

Finalmente o reforço da ligação com o Brasil, reforço que a nível institucional ganhou uma nova dimensão com o lançamento do prémio António José da Silva e que adquire uma outra sustentabilidade com a presença cúmplice nos projectos do Teatro Nacional de figuras tão prestigiadas como são Lygia Fagundes Telles e Chico Buarque.

Estamos assim certos que, desta forma , contribuiremos para a afirmação de um Teatro Nacional que seja um espaço de referência de um teatro que se quer nacional e espaço de serviço público.

Carlos FragateiroJosé Manuel Castanheira

DIRECÇÃO> Carlos Fragateiro

e José Manuel Castanheira

COORDENAÇÃO> Pedro Mendonça

COORDENAÇÃO EDITORIAL> A. Ribeiro dos Santos

REDACÇÃO> A. Ribeiro dos Santos,

Margarida Gil dos Reis, Ricardo Paulouro

COLABORAÇÃO> José Oliveira Barata

DOCUMENTAÇÃO> André Camecelha

GRAFISMO> Nuno Patrício

FOTOGRAFIA> Margarida Dias

PROPRIEDADE> TNDM II, SA

IMPRESSÃO> Mirandela Artes Gráficas

Ficha Técnica

www.teatro-dmaria.pt

RESERVAS>[email protected]> 21 325 08 35Informações> 21 325 08 27

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6>22>OUTUBRO > Ciclo António José da Silva > 05 > TNDMII > 03

Anfitrião >

Como reagimos ao facto de objectos ina-nimados ganharem vida própria, quer sejam máscaras, fantoches ou simples imagens? No Teatro de Formas Animadas de Vila do Conde (TFA) a magia da ilusão paira sobre a construção destas figuras que abandonam a sua forma inerte e nos surpreendem com aquilo que habitualmente se designa por anima, a alma de um corpo ou material.

Talvez por isso o TFA tenha já sido aplau-dido por milhares de espectadores. Disso é um bom exemplo o espectáculo “Anfitrião”, de António José da Silva, estreado no âmbi-to do Festival Ponti’04, com várias tempora-das estáveis na Área Metropolitana do Porto passando por diversas cidades do país. “Um factor marcante para o reconhecimento e a dignificação das Formas Animadas em Portugal”, no entender de Marcelo Lafon-

tana, encenador e intérprete desta peça do Judeu, onde também participam os intér-pretes Victor Madureira, Andreia Gomes e o dramaturgidta José Coutinhas.

“Anfitrião” surgiu desde o início como um desafio pelo facto de se tratar de um texto originalmente escrito para marione-tas. “António José da Silva compreendeu que o Teatro de Bonifrates, com as suas

especificidades técnicas, seria o meio mais apropriado para chegar ao seu público e comunicar aquilo que lhe era importante”. A “intemporalidade” desta peça, inclusive o seu teor crítico, mesmo exigindo um pro-fundo trabalho de adaptação, motivou des-de o início toda a equipa. Assim nasceu esta co-produção do TFA de Vila do Conde com o Teatro Nacional São João, que contribuiu para o reconhecimento deste tipo de teatro

e abriu o seu caminho para o futuro.A complexidade do espectáculo implicou

para a equipa do TFA um maior investimen-to quer ao nível da invenção mas também da experimentação. Para Marcelo Lafon-tana, aquele que é já “o nosso Anfitrião” explora “elementos bastante próximos da ilustração, do cinema de animação e da banda desenhada”. Assim se justifica o re-

curso a soluções gráficas, em desenhos e formas bidimensionais.

Destaque para o trabalho do talentoso criador das figuras, Luís Silva. Para Marce-lo Lafontana, “o Luís definiu brilhantemente um estilo de desenho que sintetizou muito bem os elementos de rigor histórico, assim como os pressupostos de expressividade e funcionalidade técnica, numa representa-ção final muito lúdica, forte, viva e actual”.

Depois, chegou o momento de animar, isto é, dar vida ou, como melhor diz Lafon-tana, “dar alma aos bonecos”. Cada figura tem assim uma alma tão rica como orgâ-nica, verosímil e vibrante. “Procurámos trabalhar com intenções bem definidas e a compreensão das motivações de cada acção, de forma a poder suscitar sensa-ções reais e momentos de maior interesse para os actores e espectadores. O efeito de distanciamento, expresso sobretudo pelos criados, é mantido e reforçado.”

A utilização de um “código directo” e de uma “leitura imediata” faz com que o espec-tador se identifique instantaneamente, “li-bertando no riso (um riso franco e espontâ-neo) as opressões da realidade quotidiana”.

Sobre o espectáculo fica apenas um de-sejo formulado para este “Anfitrião”: “como diz Mercúrio: ‘sempre a boca fala tarde quando madruga o desejo’, que ele cum-pra o seu desejo na vista do seu público tão desejado: a exaltação do prazer de ver tea-tro, divertindo o espectador e comunican-do com ele as nossas ideias, sensações e emoções.”

RP

A complexidade do espectáculo implicou um grande investimento quer ao nível da invenção mas também da experimentação. “O nosso Anfitrião explora elementos bastante próximos da ilustração, do cinema de animação e da banda desenhada”

Bonecos de papel Um “Anfitrião” para encantar públicos de todas as idades

com vida própria

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04 > TNDMII > 05 < Ciclo António José da Silva

> Entrevista a Paulo Matos

A. Ribeiro dos Santos - Tanto quanto se sabe, o Paulo Matos foi responsável pela pri-meira montagem integral das “Guerras” de António José da Silva?

Paulo Matos - Tanto quanto sei, sim. Não posso dizer, liminarmente, que nunca foram levadas à cena na íntegra porque é uma peça frequentemente trabalhada pe-las companhias, até amadoras. Mas du-rante a minha investigação preliminar para este espectáculo não encontrei referências a isso e o mais comum é reduzir-se o texto às suas peripécias.

Coisa que era impensável para si...Acho que essas experiências cortam

precisamente o que é mais interessante neste teatro e que é a própria linguagem. A peripécia que, no fundo, vem da comme-dia dell’arte, que se espalha pela Europa e se repete até à exaustão, é um acessó-rio. Fundamental é a retórica, a invenção. Claro que quando confrontei a equipa – al-guns dos quais eu já tinha dirigido antes e sabia que iam responder bem a este tipo de trabalho –, e lhes expliquei que íamos fazer muito texto, a primeira reacção foi de susto. Mas foi esse trabalho que se tornou fascinante: a descoberta pormenorizada da riqueza retórica do texto do António José da Silva. Se há uma verdade que este espectá-culo trouxe à luz foi revelar a riqueza inco-mensurável desse texto, a todos os níveis: comicidade, referenciais, inteligência, jogo, relações sociais...

A ideia foi originalmente sua?Nasceu de conversas com a Capela Real

(a orquestra barroca). Eles falaram-me dos manuscritos do António Teixeira, que tinham acabado de ser descobertos... Ali-ás, têm vindo a ser descobertos aos pou-cos. Primeiro foi Vila Viçosa, depois o Bra-sil... Achei que era um projecto fantástico: juntar os manuscritos ao texto integral da peça, que eu conhecia. Voltei a reler Antó-nio José da Silva, o nosso ex-libris maior do Barroco, para me voltar a confrontar com este facto: é um autor europeu, do nível dos melhores que havia na época.

Decidiu-se pelas “Guerras” e não por outro texto qualquer porque faz parte do currículo es-colar ou porque é por muitos considerada a obra-prima do Judeu?

Nem uma nem outra razões. Foi mesmo por causa da descoberta das partituras das óperas.

Pôs os bonecos a contracenar com os actores porque acredita que no século XVIII o António José da Silva fazia o mesmo. Mas não há certezas...

É um ‘feeling’ meu. A questão é esta: está provado, porque há muitas referências a isso, que as peças do António José da Silva se destinavam ao teatro de bonifrates. Há cita-ções históricas, há relatos do que acontecia no Teatro do Bairro Alto... O que não consi-go acreditar é que esta ópera de seis horas – que eram seis horas, como no Shakespeare, uma longa jornada onde se comia pelo meio e tudo... – fosse um universo confinado às ma-rionetas. Tinha de haver, obrigatoriamente, uma belíssima orquestra, visível para o pú-blico, tinha de haver belíssimos actores, que diziam o texto...

E esses actores não podiam estar sempre es-condidos atrás dos bonecos...

Como era possível? É só uma intuição, e não tenho forma de comprovar isto, mas achei que devia explorar esta possibilidade. Há um teatrinho de marionetas, que está num espaço semi-urbano, uma espécie de praça pública, e esse teatrinho vai tresvazando e deixando aparecer, por trás dele, os actores de carne e osso! A partir daí, todo o universo é possível. Mas volto a dizer que é apenas uma intuição. Não é uma descoberta científica nem histórica.

Estava à espera de que este espectáculo, es-treado em 2000, que fez digressão e foi repos-to em 2002 no Teatro da Trindade, tivesse este impacto? A crítica e o público renderam-se-lhe unanimemente...

A resposta muito honesta é: não estava à espera que corresse desta forma. Mas isso

é uma constante. No teatro, nunca temos consciência completa daquilo que estamos a fazer. Investimos, somos responsáveis, traba-lhadores... Procuramos. Mas a partir de certa altura deixamos de ter distanciamento. O que posso dizer é que, antes da estreia, no Acarte, onde só tivemos um mês para ensaiar dentro de um orçamento apertadérrimo, eu via, à mi-nha volta, uma quantidade enorme de pesso-as que confiavam em mim mas desconfiavam muito do resultado deste projecto. Fizemos um ensaio geral até às três e tal da manhã, mandei sentar toda a gente na plateia e disse-lhes: temos aqui um fresco maravilhoso. Mas do lado de lá, só via gente prostrada, cheia de olheiras...

Mas a estreia foi eufórica...Foi. Eu próprio fiquei surpreendido.

Um dos aspectos mais elogiados deste traba-lho foi a perfeita articulação de todos os elemen-tos: actores, músicos, marionetas... Acredita que seria assim no tempo do António José da Silva?

Completamente. O António José da Silva foi não só um excelente dramaturgo como um homem muito sabedor do métier teatral. Mui-to sabedor, muito criador, com uma grande equipa, um conjunto de marionetistas exce-lentes e, acima de tudo, um grupo de músicos muito bons. O António Teixeira era um com-positor da corte. Foi muito novo como bolseiro para Itália, pago pelo Rei, durante vários anos,

e voltou com a escola italiana. Há muita coi-sa que desapareceu dele, mas o que restou é maravilhoso. Ele compunha para a corte, mas depois vinha brincar com o povo e com o seu amigo, António José da Silva. Brincar, mas com a qualidade da corte. E de certeza que os músicos que iam ao Teatro do Bairro Alto eram músicos da orquestra do Rei, que vinham às escondidas ali tocar... nas folgas.

Não é criminoso que nunca nos tenha sido oferecido o António José da Silva desta maneira? Em toda a sua plenitude?

É pena. Faz parte da forma como nós en-caramos a nossa cultura. Temos uma des-confiança, uma displicência, uma não-valori-zação do que é nosso... Está-nos no sangue, desde o D. Sebastião. Por exemplo, em todas as Histórias da Ópera aparece uma referência à ‘Ópera do Mendigo’, do John Gay, escrita na mesma altura em que o António José da Sil-va estava a escrever. Ora as “Guerras” é uma obra incomensuravelmente melhor do que a ‘Ópera do Mendigo’. A todos os níveis. No en-tanto, não há uma única História da Ópera que faça menção do António Teixeira e do António José da Silva. Não há.

O que era preciso fazer?Tem de haver investimento do poder políti-

co. Não é pegar-se nas obras e fazer-se uma bela edição encadernada para os administra-dores oferecerem uns aos outros. É investir em material científico de qualidade e pô-lo na mão dos encenadores, dos directores musi-cais, dos estudiosos... Levá-lo até aos teatros. A cultura tem de ir aos locais onde pode ser canalizada para a produção.

O que é que mudou nesta encenação, face a 2000?

Praticamente nada. Simplesmente apro-veitámos esta oportunidade para melhorar aqui e ali, na medida do possível. Algumas cenas não estavam completamente consegui-das, a luz foi sempre um aspecto do espectá-culo que eu quis melhorar, fizemos uma revi-são no texto... Mas, no geral, é rigorosamente o mesmo espectáculo. Melhor, imagino eu.

Um espectáculo inesquecível chega à Sala Garrett

Se há uma verdade que este espectáculo trouxe à luz foi revelar a riqueza incomensurável desse texto, a todos os níveis: comicidade, inteligência, jogo...

Paulo Matos, o homem que está por trás do êxito “Guerras de Alecrim e Manjerona”, estreado na Fundação Gulbenkian, vai inscrever esta ópera cómica de António José da Silva no repertório do Teatro Nacional D. Maria II. Falámos com ele sobre a razão do seu sucesso Entrevista conduzida por A. Ribeiro dos Santos

Um convite ao prazer dos sentidos

O que é que significa para si a introdução deste espectáculo no repertório do Teatro Na-cional?

É maravilhoso. Espero que o espectá-culo esteja à altura disso e que as pessoas assim usufruam dele.

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Ciclo António José da Silva > 05 > TNDMII > 05

Ensaio >

Um espectáculo inesquecível chega à Sala Garrett

Texto de José Oliveira Barata*Trabalhando actualmente no estabele-

cimento de uma edição crítica do teatro de António José da Silva, cada vez mais vou se-dimentando a convicção de como será impor-tante pensar na possível biblioteca do autor, no sentido borgiano do termo.

No caso da obra de O Judeu parece veri-ficar-se o paradoxo da simplicidade. Por um lado, toda a problemática da atribuição das várias óperas se tem feito com extrema facili-dade, chegando até nós um corpus dramático que o estudioso aceita (quantas vezes acriti-camente); por outro, o enigmático anonimato que cobriu as obras que correram mesmo ‘postmortem’, ou ainda a morte do autor nas

malhas de uma instituição que não descura-va o domínio literário, levam-nos a pensar que, para o caso da produção de António José da Silva, são de reter as palavras de Rudler: «Nenhuma edição corrente tem autoridade, até ser devidamente verificada.» Se, por um lado, restringindo-nos à verdade dos pro-cessos inquisitoriais, nada nos pode levar a afirmar que os oficiais do Santo-Ofício teriam apreendido obras do autor, impressas ou manuscritas, ou ainda, por outro, nenhuma ilação se poder extrair analisando, em qual-quer dos processos, a relação dos bens con-fiscados, tudo nos leva a concluir que, para fixarmos o legado dramático de O Judeu, teremos de ter presente uma situação fre-quente no domínio da crítica textual. Mas não apenas. A forma como António José da Silva trata os diversos mitos que suportam a acção dramática da maioria das suas óperas mos-tra-nos de modo eloquente como a invenção paródica e a espectacularidade encontravam

terreno propício para originais voos. Mas quais as fábulas que O Judeu aceitou

como motes teatrais para testar a sua ha-bilidade técnica? Não andaremos longe da verdade se reunirmos em dois grupos funda-mentais as fontes escolhidas pelo nosso dra-maturgo: a tradição greco-latina, vulgarizada pelos exemplos espanhóis, como no caso da “Esopaida”, dos “Encantos”, das “Varie-dades” ou ainda do “Precipício” e a tradição peninsular, quer no seu núcleo não teatral, quer no que lhe oferecia a herança dramáti-ca do filão vicentino ou camoniano. Assim se explica, quanto a nós, a conciliação de temas cavaleirescos, como o Palmeirim ou o Ama-dis de Gaula, com o Quixote cervantino, com

o aproveitamento dos Enfatriões de Camões. Também as “Guerras” — decerto a obra que, nas suas referências, mais evidencia uma es-treita ligação ao quotidiano joanino — sendo em nosso entender, tributárias da mais pró-xima tradição portuguesa -, não excluímos, mesmo neste caso, que, mesmo que remota-mente, não esteja “presente” o texto caldero-niano de La banda y la Flor (Hacer del amor agravio). [...]

Assim se glosavam, de modo inteligen-te e sensível, temas de carácter tradicional, introduzindo por vezes inovadores elementos irónicos, paralelamente a um maior apro-fundamento ideológico. Não se propunha apenas uma reconstrução formal, uma vez que se procurava inflectir os temas reescri-tos para novas direcções, que estimulassem o pensamento e as emoções dos leitores ou espectadores.

António José da Silva tipifica entre nós, de forma paradigmática, um procedimento cor-

rente na época, quando “aceita”, “manipula” e “reescreve” os mitos tradicionais da heran-ça clássica, oferecendo-os, sob novas vestes joco-sérias, ao público seu contemporâneo. Neste aspecto, “Anfitrião ou Júpiter e Alcme-na” constituem uma oportunidade soberba para estudar tais mecanismos.

Torna-se, pois, evidente como o painel mí-tico herdado assumia a forma de um puzzle, sempre apto a ser construído e manipulado em função do gosto de uma plateia. Mesmo quan-do os autores se não afastavam da trama es-sencial, não deixavam, no entanto, de procurar, em outras fontes, “condimentos” que fizessem aproximar o espectador da proposta cénica que oscilava entre o travesti e a paródia.

Grande parte das inovações traduziam-se na introdução de personagens que nada tinham a ver com o mito tradicional e que surgiam “transferidas” de mito para mito, ao sabor do gosto do dramaturgo e das expecta-tivas do público. Não menos rara era a pre-sença, ao lado de figuras míticas, de outras personagens “repescadas” na tradição dra-mática do tempo, nomeadamente nas obras dos maiores representantes do teatro ibéri-co, como por exemplo Calderón.

O labiríntico mundo cénico de O Judeu não se nos afigura marcado por nenhum cânone teoricamente fundado. Perante a tradição legada ao “escritor de comédias”, ele terá, quando muito, intuído, numa visão pragmáti-ca do fenómeno teatral, que o segredo estava em ir ao encontro de um público, por certo não particularmente exigente. E a biblioteca lida e afectivamente assimilada era, em nos-sa opinião, as prestigiadas comedias dos ‘in-genios’ do Século de Ouro. [...]

A paródia aos mitos; a caricatura (tão ao gosto de uma estética do inacabado) con-jugava-se, pois, perfeitamente com a nova orientação que parecia motivar as releituras tradicionais. Não sendo novo, o processo de parodiar permitia um variado jogo de asso-ciações que só ganhava com a total liberdade que se conferia à imaginação.

Acreditamos que António José tinha plena consciência das apropriações que fazia, não hesitando mesmo em revelar, pela boca dos graciosos, a “antiguidade” dos temas que apresentava. Depois de Teseu narrar a Déda-lo a forma como chegara a Colcos, Esfuziote exclama:

(...) Tudo aquilo me contava minha avó [La-birinto, 20].

Mais adiante, o mesmo Esfuziote, perante a reticente intenção de Dédalo em se apre-sentar, logo se apressa a sugerir:

(...) Vamos, senhor, diga alguma coisa, ainda que seja uma fábula [Ibidem, 22].

Tradição e inovação efabulada podiam harmonizar-se: “tudo o mais será uma in-venção a arbítrio” em que «os acidentes da ópera serão prisões, punhais, venenos, car-tas, montarias de ursos, leões e touros, tem-pestades, trovões, raios, sacrifícios, saltos, loucuras, etc., porque destas ‘cousas’ repen-tinas se comovem muito os espectadores. E se pudesse introduzir uma cena, em que seja preciso sentar-se algum dos actores, outro dormir em algum bosque, ou jardim, e ao mesmo tempo sair outro para o matar, e ele acordasse (o que nunca se tem visto nos nossos teatros), isso seria chegar ao non plus ultra da admiração.” Isto estava bem claro no Teatro à Moda do italiano Benedetto Marcelo que o editor Ameno traduziu. Servia ao dra-maturgo que, com tão curto espaço de vida livre, se revelava (e nos revelou) como hábil e talentoso construtor de enredos, para “delei-te de uns” e “curiosidade de outros”, como se escreveria em dedicatória do tempo....

* Professor Catedrático da Faculdade de Letras da

Universidade de Coimbra. Texto na sua versão completa

em www.teatro-dmaria.pt

António José da Silva tipifica entre nós, de forma paradigmática, um procedimento corrente na época, quando “aceita”, “manipula” e “reescreve” os mitos tradicionais da herança clássica, oferecendo-os, sob novas vestes joco-sérias, ao público seu contemporâneo

Judeu

a biblio- tecade

O

Page 6: Jornal do Teatro #05

A partir de Outubro, a Sala Garrett será invadida por pequenos actores, movidos por arames, enfatiados em roupas escolhidas a preceito para a ocasião que, logo num breve relance do olhar, parecem semelhantes às roupas de outros actores também em palco, estes de carne e osso. Falamos de marione-tas, do Teatro de Marionetas de Lisboa, cons-truídas exclusivamente para as “Guerras de Alecrim e Manjerona”, de António José da Silva, encenada por Paulo Matos.

Desengane-se o espectador se pensa que assistirá a um teatro de ‘bonecos’ dedicado a um público infantil. Falamos sim do en-canto de um trabalho artesanal, onde a dis-tinção entre bonecos e marionetas deve ser bem feita. Esta é aliás a opinião, quase em uníssono, de José Ramalho, director artístico das Marionetas de Lisboa e Ildeberto Gama, presidente da direcção das Marionetas de Lisboa, desde a sua fundação, e autor destes pequenos actores com “alma de arame”. O binómio marioneta/infantilização, aquilo que José Ramalho define como um “pré-conceito e um preconceito” foi e deve continuar a ser ultrapassado. Nos últimos 25 anos, as ma-rionetas têm conhecido um significativo de-senvolvimento e visibilidade, em parte graças aos profissionais do meio e “o facto de o tea-tro de marionetas se cruzar com outras artes e de a marioneta ser usada como uma fer-ramenta artística por várias linguagens tem vindo a sedimentar públicos diversos”. E é de

instrumentos artísticos que falamos, pois, no entender de Ildeberto Gama, que convive há largos anos com estes actores tão especiais, não existe uma ligação mística entre o cria-dor e a marioneta, ao contrário do que habi-tualmente se pensa.

As renovações que o teatro de marionetas tem sofrido, não só em Portugal, mas também na Europa Central, mostram-nos como pela sua gramática artística tão específica este te-atro é transversal e especial. “Da mesma ma-neira que se diz que a ópera é uma arte total, também o é o teatro de marionetas”, salienta José Ramalho. Uma convicção de quem, ape-sar de constatar que em Espanha ou França o movimento em torno das marionetas é muito superior, se dedica há mais de 20 anos a esta área, inclusive à sua formação. “Somos [Te-atro de Marionetas de Lisboa] a companhia que vem contribuir para recolocar o que é o teatro de marionetas numa perspectiva mais alargada, de pesquisa e renovação estética. Começámos logo com António José da Silva, com o ‘Dom Quixote e Sancho Pança’, que fez opera buffa mas sempre para o teatro de bonifrates. Hoje é considerado o patrono das marionetas portuguesas”.

E como se posiciona o actor face à mario-neta? José Ramalho e Ildeberto Gama reco-nhecem que há algo de quase filosófico nesta questão, uma ténue fronteira entre o ser e o parecer. A aposta das Marionetas de Lisboa “é que o actor seja uma figura presente à vis-

ta do público. Um trabalho de interacção, de mostrar que por detrás da marioneta existe um actor e vice-versa. É quase uma dicoto-mia entre quem manipula e quem é manipu-lado”. O marionetista assume todas as suas funções como actor mas “entrega a alma à marioneta, para que ela ganhe autonomia”. Vida própria, diríamos nós, pois não se trata apenas de manipulação de um objecto mas

sim um exercício artístico. E nem todos po-dem ser marionetistas, senão ouçam-se os requisitos enunciados por José Ramalho: “Generosidade. O marionetista tem de culti-var a generosidade pois tem de partilhar com a marioneta uma grande parte da sua vida. Tem de perder o exercício de ‘narciso’ para a marioneta. O actor de marionetas nun-ca pode estar desconcentrado porque a sua desconcentração implica a morte de um ser que é mais importante do que ele.”

Sobre esta questão reflecte também Ilde-berto Gama, que pensou em cada uma das

marionetas para esta peça de António José da Silva a partir da dramaturgia. Uma propos-ta, no seu entender, “algo conservadora, mas no bom sentido da palavra. O mais provável é que as marionetas usadas fossem marione-tas de varão, isto é, de manipulação superior. Por serem duplos actores estão vestidas de forma a serem réplicas dos figurinos dos ac-tores”.

Para José Ramalho, “deviam existir 300 companhias de marionetas em Portugal por-que assim teríamos mais público interessado e mais partilha de saberes e técnicas artísti-cas”. Até lá, temos de o prazer de poder as-sistir a este tipo de produções, onde mario-netas e homens convivem, pois por detrás de uma marioneta terá de estar um bom actor. Corpos de cortiça que nos fazem seguir todos os caminhos para onde a nossa imaginação nos levar.

A aposta da companhia “é que o actor seja uma figura presente à vista do público. Um trabalho de interacção, de mostrar que por detrás da marioneta existe um actor e vice-versa”

06 > TNDMII > 05 < Ciclo António José da Silva < 12>29>OUTUBRO

> Guerras de Alecrim e Manjerona

José Ramalho e Ildeberto Gama, pela preservação da arte da marioneta

AlmasHá mais de 20 anos que o Teatro de Marionetas de Lisboa se bate pela divulgação, pesquisa e renovação estética de um teatro pouco conhecido entre nós. Nas “Guerras” do Judeu, revela todo o peso da sua experiência Margarida Gil dos Reis

Page 7: Jornal do Teatro #05

A música que o público vai ouvir no palco da Sala Garrett, não é toda do colaborador de António José da Silva, o compositor barroco António Teixeira. Partes da partitura – nome-adamente os papéis masculinos, e árias inteiras – foram compostas pelo próprio maestro, Stephen Bull, que tem sido muito elogiado pelo seu trabalho de reconstituição. Com al-guma modéstia, o próprio diz que não foi demasiado complicado escrever a música. Isto sendo ele um especialista em violino barroco.

“É uma questão de confiança”, explica. “De resto, não inventei as letras, que estão todas na peça do António José da Silva. Portanto, com alguma especulação, foi relativa-mente fácil recriar a música que faltava.”

Facilitou o facto das árias barrocas terem isto em comum: são árias que exprimem uma atmosfera muito específica, um afecto intenso como a raiva ou o amor. Neste tipo de música, tudo é exaltado. Stephen Bull afirma, com toda a simplicidade: “A ópera barroca é como a telenovela: o que importa é despertar emoções. Nos recitativos os acontecimentos sucedem-se com grande rapidez, até criar novos momentos de tensão, onde se canta.”

É por isso que é tão fácil aderir à ópera barroca. Ainda para mais no caso presente, em que as letras do Judeu têm o seu quê de “picante”. “Pessoalmente, nunca tinha trabalhado numa ópera com letras tão ousadas, letras que provam ser esta, por natureza, uma ópera da rua, uma ópera escrita e pensada para o povo.”

Apesar dos elogios que tem recebido pela sua partitura, porém, o maestro diz que continua a trabalhar na música das “Guerras”. “Todos os dias lhe encontro um novo por-menor que reformula a minha opinião sobre a música, que me faz vê-la a outros olhos”, conta. “Mas esse é o aspecto orgânico da música: ela está sempre a mudar. Aliás, há sinais de alterações que a partitura de António Teixeira foi sofrendo ao longo do tempo. Isso é evidente quando comparamos a peça e as partituras. E para um músico, isso é muito estimulante.”

o que importa é despertar

emoções”

“Na ópera barroca:

Ciclo António José da Silva > 05 > TNDMII > 07

Guerras de Alecrim e Manjerona >

decortiçade arame em corpos

O maestro Stephen Bull fala de como reconstituiu a partitura perdida de António Teixeira

“A reposição da ópera joco-séria ‘Guerras de Alecrim e Manjerona’, de António José da Silva e António Teixeira, de 1737, é um acontecimento histórico. As dúvidas que pudessem restar quanto à partitura desvaneceram-se perante esta reconstituição inspirada de um genial ex-emplo setecentista de teatro por música cantada em português.”

Alexandre Delgado, “Público”, 10/02/2000

“Esta ópera foi uma prova de que a música portuguesa está viva e de que os músicos e os artistas portugueses têm uma palavra a dizer. A obra é excelente e merece ser alvo de divul-gação e de um tratamento cuidado, como o da presente produção; a equipa que nela investiu o seu amor, dedicação e profissionalismo (...) está de parabéns, pois conseguiu proporcionar momentos inolvidáveis de uma magia inebriante. Isto é que é espectáculo. E deste tipo, queremos ver mais.”

Teresa Castanheira, “Expresso”, 19/02/2000

... O que seria um dos melhores espectáculos produzidos em Portugal nos últimos anos...Elisabete França, “Diário de Notícias“ 03-02-2002

“É isso, repito, um acontecimento histórico. Não são assim tantos no nosso teatro e no teatro musical e no nosso teatro musical com marionetas e actores, para que não nos sintamos de facto felizes. (...) Seria lamentável que este espectáculo não viesse a ser visto e apreciado como o foi na estreia, com entusiasmo, alegria, emoção, por muito mais gente. Vá lá: façam dos espectadores de teatro portugueses gente feliz.”

Carlos Porto, “JL”, 08/03/2000

“O grande segredo desta produção assenta nos seguintes factores: a alternância-fusão das marionetas com intérpretes reais (...), a adequação e eficácia dos cenários, a hilaridade dos textos, que se funde com a caracterização dos personagens, o enriquecimento dado pela parte e números musicais, o talento de actores dos intervenientes (...). Nunca três horas passaram tão depressa... E bem. Não percam!”

Bernardo Mariano, “DN”, 01/03/2001

O que a crítica disse

Page 8: Jornal do Teatro #05

08 > TNDMII > 05 Memória > Teatro Nacional

António

O Judeu no Salão Nobre às 18hPara complementar os espectáculos de António José da Silva apresentados no Teatro Nacional, dia 13 de Outubro será projectado o filme “O Judeu” de Jom Tob Azulay, e, no dia 14, assistiremos a uma conferência-debate com as participações de Liberto Cruz, José Oliveira Barata e Paulo Matos.

António José da Silva, o Judeu, é um dos grandes nomes da História da Literatura Portuguesa e Brasileira. Nascido a 8 de Maio de 1705, no Rio de Janeiro, no seio de uma família de cristãos-novos, aí terá pas-sado a primeira fase da sua infância. A fa-mília terá procurado na colónia sul-ameri-cana uma maior tolerância, numa altura em que os judeus eram perseguidos em Portu-gal e nas suas colónias. Os avós paternos, André Mendes da Silva e Maria Henriques já haviam escolhido o Rio de Janeiro, no se-gundo quartel do século XVII, como local de residência. António José da Silva era filho do advogado e poeta João Mendes da Silva, que conseguiu manter a fé judaica secre-tamente, e de Lourença Coutinho, filha de um proprietário de uma plantação de cana-de-açucar, que não conseguiu escapar das malhas inquisitórias. Em 20 de Fevereiro de 1712, Lourença Coutinho foi presa, acusada de ser judia, e foi deportada para Portugal, a bordo da nau “Calendária”, onde foi en-tregue à Santa Inquisição. João Mendes da Silva decide, nessa altura, partir para Por-tugal para estar próximo da esposa e leva consigo os filhos: António José (7 anos), Baltazar (doze anos) e André (dez anos). A 10 de Outubro desse ano desembarcam da

nau “Madre de Deus” e dez meses depois os pais de António José da Silva são con-denados às penas de confiscação de bens, abjuração, hábito penitencial e cárcere, onde permanecem dez dias, acabando por se estabelecerem em Lisboa. Anos mais tarde, numa das suas “óperas”, António José da Silva chegará a escrever os se-guintes versos: “Tirana ausência / que me roubaste e me levaste / da alma o melhor / Ai de quem sente / de um bem ausente / a ingrata dor.” Aos 21 anos já António José da Silva frequentava o curso de Direito na Uni-versidade de Coimbra e destacava-se pela inteligência e pelas qualidades enquanto poeta. Entre os seus amigos, destacava-se o conde de Ericeira, em cuja casa se reu-nia regularmente um grupo de intelectu-ais como Francisco Xavier de Oliveira e o Padre Álvares de Aguiar. Interessado pela dramaturgia, “o Judeu” foi autor de uma sátira que serviu de imediato às autorida-des como pretexto para a sua prisão. A 8 de Agosto de 1726, António José da Silva foi preso, juntamente com a mãe, e submetido a torturas que lhe fizeram perder a fala e que o deixaram parcialmente inválido. Após a abjuração, a penitência e o juramento de jamais cometer heresias, António José da

Silva foi libertado. Concluiu o curso em 1728 e regressou a Lisboa onde, com o pai, exerceu advocacia. Apesar de se ter iniciado na profissão, passou a dedicar-se à escrita. Por volta de 1734 e 1735 casou-se com sua prima Leonor Maria de Carvalho, natural da Covilhã, que já havia sofrido as perse-guições do Santo Ofício. Deste casamento nasce, em 1735, a filha Lourença. O período de seis anos, entre 1733 e 1738, correspon-de ao auge da criação literária de António José da Silva e à sua afirmação como dra-maturgo. As suas sátiras e comédias fica-ram conhecidas como a obra do “Judeu” e foram várias vezes encenadas com grande êxito. Foram-lhe atribuídas obras, publica-das em vida do autor, como: “Labirinto de Creta” (1736, editada por António Isidoro da Fonseca); “As Variedades de Proteu” (1737, idem); “Guerras do Alecrim e Mangerona” (1737, idem). Após a morte de António José da Silva, o editor Francisco Luís Ameno pu-blicará estas e outras obras então inéditas: “Vida de D. Quixote”, “Esopaida ou Vida d’Esopo”, “Precipício de Faetonte”, “Anfi-trião ou Júpiter e Alcmena” e “Os Encantos de Medeia”. António José da Silva, respei-tado até pelo rei, viu-se preso de novo, a 5 de Outubro de 1737, juntamente com a

mulher e com a mãe, já viúva. A denúncia tinha sido feita pela escrava Leonor Nunes que acusou a família ao Tribunal do Santo Ofício. António José da Silva ficou detido na cela no6 do “corredor meio novo” da prisão dos Estaus durante um ano. Foi acusado de jejuns rituais, torturado, acabando por ser condenado como herege. Razão tinha “o Ju-deu” quando escreveu na sua última “ópe-ra”, “Precipício de Faetonte”: “Ouve D’us os ecos, os clamores / de um mísero infeliz / a quem a sorte / dá na vida o rigor da mesma morte”. A 18 de Outubro de 1739, António José da Silva foi estrangulado e queimado num Auto-de-Fé, em Lisboa, no “Campo da Lã”. Um último momento ao qual assisti-ram Lourença Coutinho e Leonor Maria, que morreria pouco depois. A sua vida e a sua obra foram fonte de inspiração para muitos, entre eles, Camilo Castelo Branco, no romance “O Judeu” (1866), Bernardo Santareno na peça “O Judeu” (1966) e, mais recentemente, o filme “O Judeu” (1995), uma vida encenada por Jom Tob Azulay.

MGR

Nos arquivos do Teatro Nacional, encontram-se os registos de dois espectáculos feitos a partir de peças de António José da Sil-va: “Os Encantos de Medeia” (na foto), em 1983, encenada por Castro Guedes; e “Guerras de Alecrim e Manjerona”, em 1986, sob a direcção de Carlos Avilez.

Joséda SilvaBiografia

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7>NOVEMBRO23>DEZEMBRO > 05 > TNDMII > 09

Vermelho Transparente >

A dramaturgia portuguesa chega à Sala Estúdio do Teatro Nacional, com o espec-táculo “Vermelho Transparente”. A peça é da autoria de Jorge Guimarães (de quem vimos, anteriormente, no mesmo espaço, “Cenas de Uma Tarde de Verão”), e a en-cenação é de Rui Mendes. No palco, en-contraremos dois actores bem conhecidos do grande público: Helena Laureano e Luís Esparteiro, que dão corpo, respectivamente a duas irmãs gémeas e ao psicanalista de ambas.

Para encenador e intérpretes, esta aventura começou com um convite. Irre-cusável. “Assim que li a peça pela primeira vez apercebi-me de que tinha duas gran-des virtudes: conseguia, só com dois ac-tores, contar uma história profunda sobre o relacionamento entre seres humanos, e conseguia prender-nos a atenção do prin-cípio ao fim”, recorda Rui Mendes, no que é imediatamente secundado por Helena Laureano. “Eu não consegui largar a peça, desde que a comecei até a pousar. Li-a de uma assentada e eu, que até costumo ser bastante crítica relativamente às minhas leituras, gostei imediatamente do texto. Claro que não podia dizer que não a este

convite, até porque dar corpo, no mesmo espectáculo, a duas personagens distintas, é um desafio incrível. É um bombom para qualquer actriz.”

Muito resumidamente, “Vermelho Transparente” conta a história de uma mu-lher que consulta um psicanalista para se pôr em ordem, mas acaba por desaparecer a meio do tratamento. Em seu lugar, apare-ce a sua irmã gémea, que assume as suas

consultas no terapeuta e conta as mesmas histórias... de uma maneira completamen-te distinta. “O espectador só saberá a ver-dade no fim, quando juntar todas as peças do puzzle”, diz Rui Mendes, que escolheu o elenco para este projecto sem hesitações. A Luís Esparteiro cabe o papel de um psi-canalista que acabará por se envolver, irre-

mediavelmente e contra as suas expectati-vas, com uma das suas pacientes.

“O meu trabalho, em relação ao da He-lena (Laureano) é muito mais simples”, diz Esparteiro. “A peça é, basicamente, da Helena, enquanto eu assumo a voz do pú-blico: aquilo que o espectador vai querendo saber, é aquilo que eu vou perguntando às minhas pacientes. Esse é o processo.”

Confessando que o trabalho foi duro

– dado que teve de compor duas mulheres diferentes, com personalidades e com-portamentos distintos – Helena Laureano confessa-se amedrontada com a estreia do espectáculo, no Cartaxo, mas ao mes-mo tempo cheia de curiosidade para sa-ber como é que o público reagirá a esta proposta. Sobretudo tendo em conta que

a produção começará por rodar por várias localidades (Cartaxo a 7, Sintra a 22, Almei-rim a 27), até chegar a Lisboa para cumprir a anunciada carreira na Sala Rey Colaço / Robles Monteiro.

“Estou nervosa, mas acho que vai cor-rer bem”, afirma. “Até porque as pessoas que não vivem em Lisboa têm mais sede de teatro do que as que estão na capital. Pelo menos, essa é a minha experiência...” Uma opinião corroborada por Luís Espar-teiro. “As reacções do público são sempre um mistério. Mesmo uma peça que já tenha sido feita noutro lado qualquer, com bons resultados, nunca se sabe o que pode acon-tecer porque o público varia todos os dias e varia de sítio para sítio. Mas é isso mesmo que torna o teatro tão fascinante”, conclui.

Ao que Rui Mendes acrescenta: “As pes-soas estão fartas de televisão e sedentas de teatro. Mesmo com a oferta cultural que agora existe – que é muita e variada – o te-atro terá sempre o seu lugar, pois oferece a magia da presença do actor. E isso é verda-deiramente único.”

A peça consegue, só com dois actores, contar uma história interessante sobre o relacionamento entre seres humanos e prender-nos a atenção do princípio ao fim

Uma história de cortar a respiração

“Vermelho Transparente” estreia na Artemrede, antes de chegar a Lisboa

Jorge Guimarães escreveu, Rui Mendes encenou e Helena Laureano e Luís Esparteiro interpretam uma peça que penetra no mais profundo da alma humana e que nos reserva um final totalmente inesperado A. Ribeiro dos Santos

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10 > TNDMII > 05 < 8>19>NOVEMBRO

> A Confissão de Leontina

Lygia Fagundes Telles nasceu em São Paulo, em 1923. Como o pai era advogado a exercer as funções de promotor público e delegado, Lygia acompanhou-o e viveu em cidades do interior paulista. Sertãozinho, Aipiai, Descalvado, Areias ou Itatinga foram algumas das cidades onde passou parte da sua infância. Influenciada pelas histórias que ouvia das empregadas da família, es-creve as suas primeiras narrativas em ca-dernos escolares e conta-as em casa.

Aos 15 anos escreve o seu primeiro livro, “Porão e Sobrado”, constituído por 12 con-tos, numa edição financiada pelo pai. Lygia nunca mais autorizaria a republicação do livro. De regresso a São Paulo, onde con-cluiu os estudos, termina, em 1939, o curso básico no Instituto de Educação Caetano de Campos e começa a frequentar a Escola Superior de Educação Física e o prepara-tório para a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Conclui o curso de Educação Física e dedica-se ao curso de Direito. O período de faculdade foi activo, do ponto de vista literário, para Lygia: a autora participa em tertúlias literárias e é apre-sentada a escritores como Oswald de An-drade e Mário de Andrade. Conhece o crí-tico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes,

com quem casaria 20 anos mais tarde.Membro da Academia de Letras da fa-

culdade, é colaboradora assídua dos jor-nais académicos “Arcádia” e “O Libertador” e publica o livro “Praia Viva” ao mesmo tempo que consegue emprego como fun-cionária da Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo e se forma bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais. O período entre 1944 e 1949 é um período de reco-nhecimento literário na sua carreira. Em 49, publica o volume de contos “O Cacto Vermelho”, que conquista o Prémio Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras mas que não voltará a ser reeditado porque a autora o considera imaturo.

Em 1950, casa-se com o jurista e en-saísta Goffredo da Silva Telles Jr., seu ex-professor de Direito, e tem um filho. Pouco depois, começa a escrever o seu primeiro romance, “Ciranda de Pedra”, publicado em 1954, e que seria o grande marco da sua maturidade intelectual. Em 1958, lança “Histórias do Desencontro”, obra premiada pelo Instituto Nacional do Livro, e é nomea-da procuradora do Instituto de Previdência do Estado de São Paulo.

Em 1963 publica o segundo romance, “Verão no Aquário” e vai viver com Paulo

Emílio Salles Gomes em São Paulo. Se-guem-se os livros de contos “Histórias Es-colhidas” (Prémio Boa Leitura), “O Jardim Selvagem” (Prémio Jabuti da Câmara Bra-sileira do Livro) e, em parceria com Paulo Emílio Salles Gomes, um argumento de cinema inspirado no romance “Dom Cas-murro”, de Machado de Assis (que seria publicado em 1993, sob o título “Capitu”).

Ao longo da década de 70, Lygia Fagun-des Telles intensifica a sua actividade li-terária, publicando “Antes do Baile Verde” (Grande Prémio Internacional Feminino para Estrangeiros, em França); o romance “As Meninas” (prémios Jabuti, Coelho Neto e Ficção da Associação Paulista de Críticos de Arte); “Seminário dos Ratos”. Entre 1978 e 1982, assiste também à adaptação de vá-rios dos seus contos para televisão: “Filhos Pródigos”; “O Jardim Selvagem”; “A Disci-plina do Amor”; “Mistérios”. Entre Maio e Novembro de 1981, a Rede Globo exibe “Ci-randa de Pedra”, uma novela baseada na sua obra homónima.

A partir de meados da década de 80, co-meçam a chover os prémios e as distinções, como reconhecimento de uma obra prolífe-ra e profundamente original, enquanto a sua presença passa a ser uma constante na

vida literária brasileira. Entretanto, conti-nua a publicar: em 1989, lança o romance “As Horas Nuas” e, a partir de 1991, refor-ma-se como funcionária pública e passa a dedicar-se exclusivamente à escrita.

Na década de 90, sucedem-se os títulos da sua lavra: “A Noite Escura e Mais Eu” (prémios Melhor Livro de Contos, Prémio Ja-buti e Prémio APLUB de Literatura); “Inven-ção e Memória” (Prémio Jabuti, “Golfinho de Ouro” e Grande Prémio da Associação Pau-lista dos Críticos de Arte). Em 1996, estreia o filme “As Meninas”, de Emiliano Ribeiro, baseado no seu romance homónimo.

2005 será o ano em que Lygia Fagundes Telles é galardoada com o Prémio Camões, o maior reconhecimento literário dedicado à Literatura em Língua Portuguesa. Os es-critos de Lygia figuram em antologias na-cionais e estrangeiras e a sua obra encon-tra-se traduzida em várias línguas, desde o alemão ao espanhol, passando pelo fran-cês, inglês, italiano, russo, polaco, sueco e checo.

MGR

Em Novembro, o Teatro Nacional receberá um espectáculo que chega do Brasil, assinado pela pena inconfundível de um dos maiores vultos da literatura de língua portuguesa, vencedora do Prémio Camões em 2005. Aqui recordamos um percurso construído de palavras belas

Perfil Lygia Fagundes Telles:uma vida feita de letras

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Ciclo do Conheciment 05 > TNDMII > 11

> Gianluigi Tosto / > A Casa da Lenha

Gianluigi Tosto regressa em Novembro e Dezembro ao Teatro Nacional D. Maria II com a narração de três dos poemas mais antigos do mundo ocidental. Depois do su-cesso da estreia na Mite’06, Tosto protago-nizará um espectáculo entregue à voz de um só actor que nos surge como uma releitu-ra de textos fundadores do género épico. A interpretação das três obras, encanta o es-pectador e desperta o impulso humano de contar histórias.

Um workshop sobre “O corpo do actor”

Com uma formação pluridisciplinar, tendo ainda estudado várias técnicas de in-terpretação teatral, Gianluigi Tosto condu-zirá um laboratório de treino de corpo e voz para actores. O corpo do intérprete surge como o tema de trabalho deste workshop, na medida em que as sensações e o pensa-mento podem também ter uma expressão cénica. Algo que se traduz na respiração,

no gesto e na voz. Mente e corpo interagem no dia a dia mas o actor deve ter a consci-ência desta interacção de forma a poder ti-rar partido dela em cena. Serão elementos fundamentais do trabalho físico a coluna vertebral e o seu alinhamento, a relação do próprio peso com o solo, os pés que rece-bem o peso de todo o corpo, a articulação e movimento dos membros superiores e a cabeça. Será ainda contemplada a percep-ção dos mecanismos de emissão de voz e

do seu controlo, em prol da qualidade vocal. As inscrições para actores estarão abertas até dia 17 de Novembro, para um número limitado de pessoas. A inscrição, recebida no Teatro Nacional D. Maria II, deverá ser feita mediante a apresentação do CV com foto e o preenchimento da ficha disponível nas instalações do teatro.

MGR

Gianluigi Tosto, de regresso ao Teatro Nacional

Já arrancaram, no espaço da Comuna – Teatro de Pesquisa, os ensaios de uma produção que promete arrebatar os amantes da música erudita.

“A Casa da Lenha”, um original de António Tor-rado que evoca a vida e obra desse compositor maior da música nacional que foi Fernando

Lopes Graça, será dirigido por João Mota e protagonizado por Carlos Paulo. Esta produção, que envolverá um grande número de intérpretes, conta com a participação de todos os actores do Teatro Nacional.

Depois da sua passagem pela Mite’06, registada com grande sucesso, o actor italiano estará de volta com a “Ilíada”, a “Eneida” e a “Odisseia”, de Homero e Virgílio. Tosto conduzirá ainda um workshop para actores

Page 12: Jornal do Teatro #05

28 Set. a 8 Out. SALÃO NOBRE

“Cozido à Portuguesa” De José Eduardo RochaPRODUÇÃO Ensemble JER Direcção JOSÉ EDUARDO ROCHA

6 a 22 Outubro SALA ESTÚDIO

“Anfitrião” De António José da Silva (O Judeu)CO-PRODUÇÃO Teatro de Formas Animadas de Vila do Conde e Teatro Nacional de São João Criação MARCELO LAFONTANA

12 a 29 Outubro SALA GARRETT

“Guerras de Alecrim e Manjerona” De António José da Silva (O Judeu)PRODUÇÃO Teatro Nacional D. Maria II Encenação PAULO MATOS

7 Nov. a 23 Dez. SALA ESTÚDIO

“Vermelho Transparente” De Jorge GuimarãesPRODUÇÃO Teatro Nacional D. Maria II Encenação RUI MENDES

1 Dez. a 27 Mar. SALA GARRETT

“Ana & Hanna” De John Retallack PRODUÇÃO Teatro Nacional D. Maria II Encenação ANTÓNIO FEIO

8 a 19 Novembro SALÃO NOBRE

“A Confissão de Leontina” De Lygia Fagundes Telles PRODUÇÃO Dudu Sandroni Encenação ANTÓNIO GUEDES

16 Nov. a 30 Dez. SALA GARRETT

“A Casa da Lenha” De António TorradoCO-PRODUÇÃO Teatro Nacional D. Maria II e Comuna - Teatro de Pesquisa Encenação JOÃO MOTA

ESPLANADA NO ROSSIO DAS 10H ÀS 22H