jornadas candidatura baixa a patrimonio mundial

128
Comunicações das Jornadas de 9-10 de Outubro de 2003 Licenciamento Urbanístico e Reabilitação Urbana

Upload: ana-martins

Post on 08-Aug-2015

37 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

Comunicações das Jornadas de

9-10 de Outubro de 2003

Licenciamento Urbanístico e Reabilitação Urbana

Page 2: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

EdiçãoCâmara Municipal de LisboaPelouro do Licenciamento Urbanístico e Reabilitação Urbana

PresidentePedro Santana Lopes

VereadoraMaria Eduarda Napoleão

Coordenação da ediçãoJoão Mascarenhas Mateus

TextosJosé-Augusto FrançaSidónio PardalWalter RossaJoão AppletonRaquel Henriques da SilvaVasco Graça MouraJosé Monterroso TeixeiraManuela OliveiraJoão Manuel Ribeiro Belo RodeiaBénedicte SelfslaghJoão Mascarenhas Mateus

Coordenação da produçãoHelena Caria

Equipa técnicaCristiana AfonsoAna GracindoConceição PeixotoSandra VeigaLeonor Martins

Revisão de textoVeni Vici, L.da

Fotografias e ilustraçõesArquivo Municipal de Lisboa – Arquivo FotográficoCâmara Municipal de ÉvoraCartulário PombalinoJoão Appleton

DesignAtelier B2:José Brandão | Teresa Olazabal Cabral

ImpressãoTextype

TítuloA Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial.Comunicações das Jornadas9-10 Outubro de 2003

© Todos os direitos reservados, em todos os idiomas.

Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer forma ou meio,

de textos e imagens, sem prévia autorização da Câmara Municipal de Lisboa.

Qualquer transgressão será passível de penalização,

prevista na legislação portuguesa em vigor.

Tiragem: 1000 exemplares

ISBN: 972-98786-8-4

Depósito legal: 214 301/04

Lisboa, Junho de 2004

Direcção Municipal de Gestão Urbanística

José Menezes e Teles

Departamento de Monitorização e Difusão de Informação Urbana

António Pereira da Silva

Divisão de Difusão de Informação Urbana

Helena Caria

Campo Grande, n.º 25 – 4.ºC 1749-099 LisboaTelef.: +351-21 798 89 96 Fax: +351-21 798 80 34www.cm-lisboa.pt

Page 3: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

Prefácio

Discutir publicamente um tema tão complexo como o da importância da Baixa Pombalina para o PatrimónioMundial, constitui uma ocasião única e histórica para a Câmara Municipal de Lisboa. Associar esta ref lexão ao propósito de candidatar a Baixa Pombalina à Lista do Património da Humanidade é motivo de responsabilidade acrescida.Reconhecer assim a excepcionalidade do coração emblemático da Cidade é uma tarefa que constitui motivode orgulho para os lisboetas e para Portugal, mas que ao mesmo tempo coloca um desafio a quem propôseste debate público.Um desafio em parte já ganho, porque as Jornadas de 9 e 10 de Outubro de 2003 foram articuladas com o objectivo de abordar os diversos valores deste sítio histórico monumental, de forma sistemática e abrangente.As comunicações destes dois intensos dias de trabalhos,que são agora publicadas, ref lectem o conhecimento dos seus autores e ao mesmo tempo, de forma encadeadae sequencial, dão uma visão dos vários contributos e valores que a Baixa encerra e é testemunho para o Património de Portugal e de toda a Humanidade.

Maria Eduarda Napoleão

Vereadora do Licenciamento Urbanístico e Reabilitação UrbanaCâmara Municipal de Lisboa

Page 4: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

Prof. José-Augusto França – Universidade Nova de Lisboa

Prof. Sidónio Pardal – Universidade Técnica de Lisboa

Prof. Walter Rossa – Universidade de Coimbra

Eng.o João Appleton – Universidade Técnica de Lisboa

Prof.a Raquel Henriques da Silva – Universidade Nova de Lisboa

Dr. Vasco Graça Moura – Parlamento Europeu

Dr. José Monterroso Teixeira – Director Municipal de Cultura da C. M. Lisboa

Dr.a Manuela Oliveira – Directora do Centro Histórico da C. M. Évora

Arq.to João Manuel Belo Rodeia – Presidente do IPPAR

Dr.a Benedicte Selfslagh – Ex-Secretária do Comité do Património Mundial e ex-Presidente

do Conselho do Comité Director do Património Cultural do Conselho da Europa

Dr. José Sasportes – Presidente da Comissão Nacional da UNESCO em Portugal

Dr.a Paula Costa – UNESCO

Dr. José Sarmento de Matos – Olisipógrafo

Dr. Elísio Summavielle – Sub-Director Geral da DGEMN

Dr. Mário Quartim Graça – Gabinete de Apoio à Presidência da C. M. Lisboa

Dr. José Menezes e Teles – Director Municipal de Gestão Urbanística da C. M. Lisboa

Arq.to António Pereira da Silva – Director do Departamento de Monitorização e Difusão

de Informação Urbana da C. M. Lisboa

Dr.a Mafalda Magalhães de Barros – Directora Municipal de Conservação e Reabilitação

Urbana da C. M. Lisboa

Arq.ta Ana Gonçalves – Directora da Unidade de Projecto da Baixa Chiado da C. M. Lisboa

Arq.to António Catarino – Unidade de Projecto de S. Bento da C. M. Lisboa

Dr.a Paula Oliveira – Directora da Associação de Turismo de Lisboa

D. Maria do Carmo Santinho – Associação de Turismo de Lisboa

Dr.a Sofia Feijão – Auditório do Welcome Center

Dr.a Teresa Arriaga – Assessora da Vereadora do Licenciamento Urbanístico e Reabilitação

Urbana da C. M. Lisboa

Dr.a Júlia Teixeira – Assessora da Vereadora do Licenciamento Urbanístico e Reabilitação

Urbana da C. M. Lisboa

Dr.a Inês Viegas – Chefe de Divisão de Arquivos da C. M. Lisboa

Dr.a Luísa Reis – Arquivo Fotográfico da C. M. Lisboa

Dr.a Leonilde Viegas – Arquivo Fotográfico da C. M. Lisboa

Dr.a Maria de Lurdes Baptista – Arquivo Fotográfico da C. M. Lisboa

Agradecimentos

Page 5: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

[7] PROGRAMA

[9] Abertura das Jornadas

Dr.a Maria Eduarda Napoleão – Vereadora da CML

[12] Lisboa Pombalina

Prof. José-Augusto França

[20] A Baixa Pombalina – um marco na história da planificação das cidades

Prof. Sidónio Pardal

[28] A Baixa de Lisboa no Contexto do Urbanismo Português

Prof. Walter Rossa

[40] A Baixa Pombalina: da inovação ao mito

Eng.o João Appleton

[48] A Arquitectura da Baixa Pombalina: Cem anos de História

Prof.a Raquel Henriques da Silva

[56] A Baixa Pombalina como elemento emblemático

da cultura portuguesa e imagem da sua projecção internacional

Dr. Vasco Graça Moura

[66] A Baixa Pombalina como referência de produção artística e literária

e cenário de uma tradição cultural

Dr. José de Monterroso Teixeira

[78] A gestão integrada de um sítio já incluído na Lista do Património Mundial.

O caso de Évora

Dr.a Manuela Oliveira

[88] Baixa Pombalina de Lisboa e o Património da Humanidade:

um pequeno contributo

Arq.to João Manuel Belo Rodeia

[94] Os Objectivos do comité do Património Mundial

Dr.a Benedicte Selfslagh

[104] Resultados e Conclusões

Dr. João Mascarenhas Mateus

[125] Sessão de Encerramento

Dr. Pedro Santana Lopes – Presidente da CML

Índice

Page 6: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial
Page 7: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

Programa

Lisboa, 9 e 10 de Outubro de 2003

Dia 9

10h00 Abertura das JornadasDr.a Maria Eduarda Napoleão(Vereadora Lic. Urbanístico e Reabilitação Urbana, CML)

Moderadora: Dr.a Paula Costa (UNESCO)

10h45 Lisboa PombalinaProf. José-Augusto França (UNL)

11h15 café

11h30 A Baixa Pombalina como marco na história da planificação das cidadesProf. Sidónio Pardal (UTL)

12h00 Debate / Questões

13h00 Pausa

Moderador: Dr. João Mascarenhas Mateus (CML)

15h00 A Baixa Pombalina no contexto do urbanismo portuguêsProf. Walter Rossa (Univ. Coimbra)

15h30 A Baixa Pombalina: da inovação ao mitoEng.o João Appleton (UTL)

16h00 café

16h15 A Arquitectura da Baixa Pombalina: Cem anos de História.Prof.a Raquel Henriques da Silva (UNL)

16h45 Debate / questões

Dia 10

Moderador: Dr. José Sarmento de Matos (Olisipógrafo)

10h00 A Baixa Pombalina como elemento emble-mático da cultura portuguesa e imagem da sua projecção internacionalDr. Vasco Graça Moura (Parlamento Europeu)

10h30 A Baixa Pombalina como referência da produção artística e literária e cenário de uma tradição culturalDr. José Monterroso Teixeira (Director Municipal de Cultura, CML)

11h45 Debate / Questões

13h00 Pausa

Moderador: Dr. Elísio Summavielle(Sub-Director Geral, DGEMN)

15h00 A Gestão integrada de um sítio já incluídona Lista do Património Mundial. O caso de ÉvoraDr.a Manuela Oliveira (Directora do Centro Histórico, CME)

15h30 A classificação e salvaguarda da BaixaPombalina como sítio histórico e monumentalArq.to João Manuel Ribeiro Belo Rodeia (Presidente do IPPAR)

16h00 café

16h15 Os objectivos do Comité do Património MundialDr.a Benedicte Selfslagh (CPM)

(ex-Secretária do Comité do Património Mundial e ex-presidente do Conselho do Comité Director do Património Cultural do Conselho da Europa)

16h45 Debate / Conclusões

17h15 Encerramento das JornadasDr. Pedro Santana Lopes (Presidente da CML)

Page 8: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial
Page 9: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

Gostaria de começar por agradecer a Vossa presença nestas jornadas organizadas pela

Câmara Municipal de Lisboa, dedicadas ao tema “A Baixa Pombalina e a sua importância

para o Património Mundial”.

Esta iniciativa constitui para este Executivo, uma declaração de intenção no sentido

de candidatar a Baixa à Lista de Património da Humanidade.

De forma a atingir este objectivo, nestes dois dias iremos ouvir um conjunto de espe-

cialistas que reflectirão sobre as múltiplas questões ligadas à complexidade do tema.

Estas jornadas procurarão por isso analisar os valores intrínsecos que a Baixa

Pombalina encerra, do ponto de vista:

• Cultural;

• Histórico;

• Urbanístico;

• e Arquitectónico.

Simultaneamente procurar-se-á estabelecer as características da sua originalidade

e excepcionalidade, analisando a sua múltipla contribuição para o Património Histórico da

Humanidade.

Este projecto insere-se numa estratégia de reabilitação e revitalização de uma zona

que se tem vindo a degradar tanto a nível do edificado como ao nível residencial

e comercial. Temos que inverter esta tendência e para o efeito é necessário:

• combater o decréscimo de residentes;

• aumentar a densidade populacional;

• melhorar os níveis de mobilidade e de proximidade das pessoas, dos bens e da informação;

• promover a complexidade e a diversidade de usos e funções;

• valorizar as actividades económicas de forma integrada;

• promover a identidade de Lisboa.

Numa primeira abordagem foram desenvolvidas já algumas acções de carácter urgente.

De salientar:

• a criação da Unidade de Projecto da Baixa-Chiado;

• a recuperação do Fundo Remanescente de Reconstrução do Chiado (FRRC);

[9] Abertura das Jornadas

Abertura das JornadasMaria Eduarda NapoleãoVereadora do Licenciamento Urbanistico e Reabilitação UrbanaCâmara Municipal de Lisboa

Page 10: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

• a consolidação dos imóveis em risco estrutural eminente;

• a monitorização dos níveis freáticos e das fundações;

• os estudos de interpretação do sítio;

• os incentivos ao investimento particular;

• o estudo de melhoria do sistema de Protecção Civil.

Em simultâneo está em desenvolvimento:

• o Regulamento para todas intervenções;

• a criação do livrete do edifício;

• o concurso Internacional da Mega Empreitada em conjunto com a implementação

do Fundo Remanescente de Reconstrução do Chiado;

• a abertura das frentes de obra da Rua da Madalena, da Rua do Alecrim e da Rua da

Misericórdia.

A curto prazo serão iniciadas intervenções:

• no Largo do Corpo Santo;

• na Praça de S. Paulo.

A Candidatura da Baixa Pombalina a Património Mundial, integra-se assim na:

• estratégia global de gestão da Cidade;

• revitalização do seu centro emblemático, criando condições atractivas para novos

residentes;

• exigência da qualidade das intervenções presentes e futuras;

• atracção de investimentos para a salvaguarda do sítio;

• divulgação internacional do nosso Património.

Esta estratégia preocupa-se, antes de mais, em impedir:

• a sua descaracterização irreversível;

• o despovoamento e o abandono gradual;

• a terciarização desordenada e de baixa qualidade.

[10] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 11: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

O dossier de candidatura será composto de duas partes. Uma primeira parte, que

constitui exactamente o objectivo das presentes jornadas e se destina a responder aos

critérios exigidos pelo Comité Mundial do Património da UNESCO.

Uma segunda parte, que se encontra em elaboração, deverá conter a apresentação

do programa de gestão que garanta a conservação dos valores histórico-culturais

da Baixa.

É por isso importante salientar os critérios de avaliação estabelecidos na Convenção

do Património Mundial. Para a classificação de um bem cultural, e de forma resumida,

o sítio deverá:

• constituir uma obra-prima do génio da criatividade humana;

• possuir uma dimensão monumental;

• transmitir um conceito urbano excepcional;

• ser testemunho de uma ideia civilizacional única;

• propor-se como uma ocupação territorial pluri-social;

• espelhar uma tradição cultural;

• ter um forte significado artístico e literário;

• desenvolver uma nova tecnologia construtiva.

Os temas a desenvolver nestes dois dias estão intimamente ligados a estes mesmos

critérios, passando gradualmente dos de carácter mais geral aos relacionados com

a especificidade do sítio monumental.

O último painel de conferências, no segundo dia, ocupar-se-á com exemplos e aspec-

tos práticos do processo de candidatura.

Contaremos por fim com uma presença estrangeira, a secretária do Comité Mundial

que ocupou o cargo até ao passado mês de Junho. As jornadas serão encerradas com a

presença do Sr. Presidente da Câmara.

Infelizmente, por razões imprevistas de ordem profissional, o Prof. José Augusto-

-França não poderá estar hoje connosco. Enviou, no entanto, a sua comunicação por

escrito que será lida pelo Dr. Mascarenhas Mateus. Desejo-lhes um bom trabalho!

[11] Abertura das Jornadas

Page 12: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

José-AugustoFrança

LisboaPombalina

Page 13: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

[13] Lisboa Pombalina

“Obra-prima do génio e da criatividade humana”,no quadro histórico português, a Lisboa inventadapelo Marquês de Pombal sobre as ruínas doterramoto de 1755, situa-se no espaço históricoeuro-americano entre a cidade de S. Petersburgoinventada pelo czar Pedro o Grande no princípio de

Fotografia aérea da Praça do Comércio, s.d.,Espólio Eduardo Portugal.

Arquivo Municipal de Lisboa – Arquivo Fotográfico.

Page 14: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

Setecentos e a cidade de Washington inventada por Jefferson

na nova república americana, nos finais do mesmo século,

nos dois extremos do mundo “ocidental” ou ocidentalizável,

através da política ideológica do Iluminismo.

Situa-se Portugal entre um e outro ponto do globo, extre-

mo da Europa ante o mar atlântico do outro lado do qual se

realizou a sua capital moderna, e em equilíbrio geográfico

com a capital da Rússia que moderna pretendia ser, em rela-

ção à Europa germano-francesa de então. A sua história nada

tem que ver com qualquer desses pontos, vinda do barroco

de D. João V, num discurso pré-histórico para os Estados

Unidos acabados de fazer, e alheio à mentalidade ainda

oriental do império russo. Um cataclismo, porém, equipa-

rou as situações, arrasando o que havia de medieval prolon-

gado no tecido da capital entretanto de D. José I, em alguma

graça dita manuelina e em afirmações de um maneirismo

ítalo-espanhol de Seiscentos. A margem norte do estuário do

Tejo ficou em ruínas, como os dois sítios desertos do Neva ou

do Potomac, esperando mão e espírito do homem.

E uma coisa e outra vieram aos três sítios num quadro

cronológico que importa relativizar historicamente. Por

importação na Rússia e na América, por vontade nacional

em Portugal.

Essa vontade chamou-se Pombal mas não só, que tanta

mão-de-obra empenhada na reconstrução era com certeza

interessada, e em situação de força incomparavelmente infe-

rior àquela que, na geração anterior, Mafra impusera.

Porque agora o interesse ou a vantagem era colectivo,

mesmo que desigualdades de bens ou de investimento se

verificassem no quadro de uma economia por isso mesmo

redefinida em novo processo de rentabilidade. Um observa-

dor estrangeiro não deixou de estranhar ouvir dizer aqui

que Lisboa ia ser mais bonita do que cessara de ser, num

optimismo que as ruínas não pareciam proporcionar. Era

isso que se desejava, para além das naturais reacções dos

habitantes mortificados por suas perdas e penas, na lem-

brança do que tinham havido no seu quotidiano de gera-

ções. Outra Lisboa ia ser, traçada sobre as mesas da Casa do

Risco a partir de um plano que antes nunca pudera haver. E

tal e qual Pedro o Grande quisera e Jefferson ia querer.

Pensar nestes dois condutores dos países respectivos não

deixará de levar a situar o condutor português entre eles, e

numa relação que tem também que ver com a geografia,

tendo tudo a ver com a história que aos três diversamente

cabe. O desejo de Pombal fazer a sua capital é sem dúvida

semelhante aos desejos dos dois outros responsáveis, mas,

sem dúvida também, acrescidamente. O pensamento do

Russo e do Americano é claro: um novo sítio para um novo

país que pretendia definir-se no mundo, ou um novo sítio

para um país que só podia assumir posição no mesmo

mundo para além ou para fora dos seus costumes. Era, num

caso como no outro, questão de passado por demais existente

ou que, simplesmente, ainda não havia. Também aqui poderá

ser entendida a postura de Pombal, em função do seu nacio-

nal passado barroco, e ainda medieval, numa sociedade que

de uma situação para outra situação passara, mal passando

em termos de economia e mal esboçando evolução, os ter-

mos de uma cultura necessária aos novos desafios intelec-

tuais (e industriais) da história.

Sentia Pombal esse abalo do mundo, pelas qualidades

que D. Luís da Cunha nele tinha estimado, recomendando-o

por cima das cabeças de uma corte que ele conhecia da

[14] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 15: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

melhor maneira possível, que era à distância de “estrangei-

rado”. E sem que fosse o seu recomendado, qualidade que

logo (bem o percebia D. Luís) viraria defeito, in loco.

Pedro o Grande viajara pela Europa (e Luís XIV não quisera

recebê-lo), vendo coisas que lhe importavam, Jefferson foi

embaixador em Paris, até à Revolução, quase cem anos

depois das viagens desse czar Gulliver, Pombal fora embai-

xador em Londres e em Viena donde trouxera esposa e, os

três, pode dizer-se que entenderam do que os respectivos paí-

ses precisavam, ante o que tinham visto, em tempos diferen-

tes mas sucessivos da Europa política que se ia gerando em

Lumières que à morte de Pedro, em 1725, já tinham adquirido

definição dinâmica.

Os paralelos, na história, são necessariamente discutí-

veis, mas as simetrias que acarretam ganham nisso validade

para a compreensão das grandes linhas com que ela, a his-

tória, necessariamente também se cose, em períodos longos,

médios e curtos, de massa e de indivíduos que, em curtas

distâncias, assumem poder e responsabilidade de represen-

tação. Vejamos, pois, Pombal entre Pedro o Grande e

Jefferson, em sua cronologia e em sua acção possível senão

obrigatória. E algo, também, em termos de uma psicologia

de comando que à brutalidade do autocrata russo e à finura

do democrata americano entrepunha um estado de força

tenaz e de «génio paciente e especulativo» que, no dizer de

D. Luís da Cunha, «se acordava com o da Nação». Queria isso dizer

que Pombal sabia esperar e encontrar o momento certo de

acção ponderada mesmo que, por “difuso”, se perdesse às

vezes nas suas estratégias. Toda a análise da política pomba-

lina verifica estes dizeres, para o bem e para o mal que, em

prepotências, crueldades e concussões, caracteriza o (ou

todo o) comportamento ditatorial. Para o bem, porém, e sem

que contas correntes sejam moralmente possíveis, as quali-

dades de Pombal deram resultados notáveis. Reformas de

estudos (mesmo que o colégio dos Nobres falhasse os seus

propósitos porque nem os rebentos das velhas famílias nem

os das novas queriam, na realidade, estudar), estruturações

económicas (com o prejuízo fisiocrático que não soube com-

pensar, mas com um fomento industrial novo e patente),

legislações diversas que aqui não cabe analisar, ensinos de

artes (com deficiências da música que fora joanina), organi-

zação militar (com indispensável mão de obra estrangeira),

progressão social por reinvenção de uma burguesia que

daria sentido ao futuro capitalismo de Oitocentos (mesmo

com decadência da nobreza, e não só por perseguição de

uma dúzia de maiores casas), diminuição do poder da Igreja

com especial (e internacional) rotura da linha jesuíta –

foram outros tantos sectores da propulsão pombalina que os

historiadores respectivos continuam a discutir. Acima deles

todos, está, porém, a reconstrução da capital. E mais uma

vez (ou sobretudo para o que pode interessar-nos aqui) a

comparação com o czar Pedro e o presidente Jefferson é jus-

tificável.

E mais ainda se compararmos agora o discurso estético

das três cidades criadas na Rússia e na América e recriada

em Portugal, classificada como levando ou tendendo a levar

à formulação de um urbanismo des lumières nos três casos

expressos. A partida de zero nas margens do Neva ou do

Potomac era naturalmente contrariada por uma situação

diferente, de pré-existência urbana, e o zero necessário foi

imposto ou produzido pelo arrasamento do que ficara à

vista, memória de uma cidade que atravessara os séculos,

[15] Lisboa Pombalina

Page 16: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

fora moura e cristã, tivera a sua evolução mais detectável a

partir dos finais do século XIV, com as novas muralhas fer-

nandinas, e do início do século XVI, com a passagem da

corte da alcáçova medieval para a beira do Tejo de todos os

comércios, com o natural progresso habitacional para a foz

do rio e a invenção de um bairro novo, no extremo limite

das alturas da muralha havia muito extravasada, o Bairro

Alto de São Roque. Foi a parte central dessa cidade que o ter-

ramoto de 1755 destruiu, deixando de pé muito da outra

parte, por razões sísmicas e por haver menor propagação do

incêndio que devastou a baixa superpovoada. O que ficou,

ficou, com remendos necessários, na Alfama e no Bairro

Alto, ou para Belém, o resto refez-se conforme uma decisão

que política houve de ser, sobre ideias apresentadas pelos

técnicos da engenharia e da arquitectura que se empenha-

vam numa tarefa inteiramente nova, em termos materiais

e morais.

A engenharia envolvida era, como na altura não podia

deixar de ser, militar, e a arquitectura era uma “prática”

acrescentada aos oficiais da especialidade, desde o enge-

nheiro-mor do reino com patente de mestre de campo-gene-

ral, Manuel da Maia, ao capitão Eugénio dos Santos e ao

tenente-coronel Carlos Mardel, com intervenção logo seguinte,

além das três equipas inicialmente constituídas que deviam

apresentar primeiros projectos de reconstrução, seis ao

todo, depois de ter sido decidido, por Pombal, reconstruir

a cidade no seu sítio histórico, inteiramente redefinido, e

não a refazendo, igual ou melhorada, ou a refundando para

ocidente, no caminho de Belém, em zona mais resistente a

terramotos, hipóteses consideradas por Manuel da Maia em

suas propostas entregues logo desde o dia 3 de Dezembro,

a um mês da catástrofe. A decisão de Pombal, atribuída por

princípio ao rei D. José, através da cadeia hierárquica esta-

belecida, para a reconstrução da cidade, consoante um novo

plano, foi tomada após 16 de Fevereiro, e, dois meses depois,

os seis planos estavam prontos – e em 12 de Junho um deles

escolhido, assinado por Eugénio dos Santos que, falecido em

Agosto de 1760, deixou a direcção dos trabalhos a Carlos

Mardel, que trabalharia ainda três anos enquanto o velho

Manuel de Maia viveria mais cinco, até falecer, nonagenário,

em 1768. A coerência da equipa manteve-se assim, no quadro

da Casa do Risco inicialmente criada, e foi isso que permitiu

levar avante o programa estabelecido.

Este dizia respeito fundamentalmente à planta da cidade

que ia ser erigida e à tipologia dos edifícios que lhe dariam

a imagem pretendida, de rua para rua, conforme a impor-

tância delas, e esta segundo a respectiva largura na malha

definida entre as duas praças que, do Tejo para o interior,

assumiam o papel tradicionalmente desempenhado pelo

Terreiro do Paço Real desde o início do século XVI e pelo

Rossio medieval, produto de meados de Quatrocentos, com

os Estaus a fecharem um espaço de utilização popular e

comercial, defronte também do convento dominicano de

meados de Duzentos e do vizinho Hospital de Todos-os-

-Santos, de duzentos e cinquenta anos depois. Mantiveram-se

necessariamente as duas praças, com as funções respectivas

que convinham à vida social da urbe e só entre elas, na baixa

que, desde o século XIII vinha sendo arruada e recebera

a protecção da muralha fernandina ao fim do terceiro

quartel de Trezentos, se processou a radical transformação.

Consistiu, esta, nas seis plantas postas à apreciação de

Pombal, numa malha racionalizada de ruas, corrigindo a

[16] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 17: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

malha preexistente em três projectos ou anulando-a nos

outros dois traçados a favor de um jogo quadrangular que

fazia cortar as ruas verticais, desde o rio, e horizontais, em

ângulos rectos. Este o princípio desejado nos trabalhos da

Casa do Risco, e entre as três plantas numeradas de 4 a 6,

elegeu-se finalmente aquela que demonstrava maior imagi-

nação – gráfica decerto – mas plástica também, na medida

em que anunciava, mais do que uma relação de superfícies

imediatamente visível, uma relação de volumes que impor-

tava imaginar. Não se enganou Eugénio dos Santos, autor do

referido plano, n.º 5 da série (o que denota um progresso na

resolução dos problemas que o princípio assumido levantava),

como não se enganou Manuel da Maia ao recolher os seis

desenhos, entendendo qual era o melhor e porquê. E certa-

mente foi ele quem defendeu a classificação junto de

Pombal, com a opinião necessariamente concordante do

duque de Lafões, intermediário jurídico, e do marquês de

Alegrete, idoso presidente do Senado Municipal. Não trans-

parece isso na sua “dissertação”, como opinião patente, mas,

se bem a lermos, podemos entender-lhe a opinião crítica, no

aditamento que lhe faz para apresentar os projectos n.º 5 e 6,

certamente chegados mais tarde (porque o “aditamento”

ao documento em questão tem data de dezanove dias depois)

e como se deles tivesse estado à espera. E é um destes

projectos, o numerado de 5, que foi escolhido – ou que

Manuel da Maia recomendou. E em função dele Lisboa

se reconstruiu.

Outros projectos o engenheiro-mor do reino ainda apre-

sentou a Pombal, relativos, não à planta do sítio com seus

arruamentos novos, mas aos edifícios a elevar; e são facha-

das hierarquizadas conforme a importância das ruas, como

vimos. Fachadas monótonas, muitas vezes se disse, mesmo

que variadas em elementos de cantarias e vãos, dentro de

limites tipológicos já classificados e que se reconhecem à

vista, de rua em rua. A dignidade modesta desses desenhos,

devidos a Eugénio dos Santos, é, sem dúvida, um elemento

de valorização, contando com o seu necessário condiciona-

mento económico e técnico, pois importava construir barato

e depressa, até uma standartização que já foi também

minuciosamente analisada, entre as cantarias, o esqueleto

do madeirame (e a inovação da chamada “gaiola” que havia

de provar-se útil em abalos sísmicos, pela sua flexibilidade,

numa receita original que as circunstâncias facilitaram ao

engenho dos construtores), o trabalho de forja e de azulejo

de revestimento interior, a mão de obra e o próprio carrego

dos elementos de construção fabricados em pontos fixos

para servirem onde fossem, em devida altura, necessários.

Mas essa monotonia tipificada é compensada com a volu-

metria dos quarteirões que, esses, monótonos não são, antes

pelo contrário: a planta da nova Lisboa é astuciosamente

dinâmica, na proporção dos blocos que a compõem, uns

maiores outros menores, uns verticais outros horizontais

em relação ao terreno considerado, e gerando entre eles um

desenho que tem referências de “secção de ouro”, conforme

as boas regras da composição clássica, de modo a criar a

harmonia dinâmica do conjunto. Sem dúvida Eugénio dos

Santos o soube no seu desenhar e certamente Manuel da

Maia o compreendeu na sua (provável) recomendação – que

por ele esperara. E que Pombal entendeu, ou intuiu, ou foi

capaz de sentir, como se sentem as obras de qualidade…

Repare-se ainda que, se Manuel da Maia esperou também

pelo projecto n.º 6 (do capitão E.S. Poppe), que certamente

[17] Lisboa Pombalina

Page 18: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

pedira, confiando, ao fim, no talento dos dois oficiais mais

graduados na sua equipa da Casa do Risco, não foi esse que

seleccionou ou fez ou procurou fazer seleccionar; na ver-

dade, ele teria que o considerar monótono, como é, na qua-

drangulação repetida dos quarteirões, sem que o trata-

mento mediano de uma pequena praça para a igreja de

S. Nicolau (tradicionalmente destacada no tecido antigo da

cidade) tivesse razão suficiente de dinamização do conjunto

proposto.

Resta considerar as duas praças desta cidade, seu princí-

pio e seu fim, nobre e simbólico o primeiro, local do poder

instituído em reformas de modernidade “iluminada”, e não

já do poder real, anterior e barroco, relegado para um paço

que não chegou a ter sítio nem definição arquitectónica; uti-

litário o segundo, em casas também de habitação, como

todas as ruas, já sem conventos, e com um tribunal de

Inquisição laicizada que completava a tomada global do

poder que Pombal modelava e impunha na sua política – até

pôr à sua frente um dos seus irmãos, colocando o filho her-

deiro à cabeça da própria Câmara da cidade. Pudesse ele

também tomar conta de um jovem rei, por cima da geração

materna da Princesa real em que não tinha confiança!… Não

foi assim, e pode pensar-se que nesse revês se determinou a

queda futura do “terrível marquês”. Durou, porém, o seu

consulado até vinte e dois anos depois do terramoto – que

ele próprio fora na vida do país. E durante eles, se não pode

reconstruir esse país, ao menos reconstruiu a sua capital.

Ao menos, ou ao mais?

Lisboa, palco de uma peça representada em cenas de

variado sucesso e aplauso, para os historiadores futuros da

sociedade que assim se modelou, até (dir-se-ia) a pateada

final e trágica velhice do ditador ficou, porém, para além

das sucessivas conjunturas políticas, como uma estrutura

simbólica de longa duração cuja problemática chegou até

hoje – para a vivência possível dos nossos contemporâneos

na utilização que puderem dar-lhe.

Bem entendeu Manuel da Maia que “fazer” esta cidade

não era o mesmo que acrescentar um novo bairro a Turim

(de que na altura se falava) e a referência frustrante que fez

à Londres incendiada em 1666, no plano seguinte de Wren,

não podia servir-lhe, diferente que foi, e abandonado. De São

Petersburgo não podia ele saber, nem ter notícias de cidades

do Norte, como Copenhaga, Oslo, que vieram a influenciar

Amesterdão, como exemplo mais considerável mas em pro-

porções de muito menor significado, como aconteceu em

Viena de Áustria, com renovação de alguns bairros, ou em

Catânia, destruída também por um terramoto e reconstruí-

da sessenta anos antes de Lisboa. Urbanizações em Berlim,

Bordéus ou Nancy, com o valor simbólico que tiveram, não

têm obviamente o significado da reconstrução pombalina,

como o não tem o Paris sintetizado em 1769 pelos planos

de P. Patte. E coincidência foi que Luís XV tivesse aprovado

o plano definitivo da sua praça (que seria da Concórdia)

a dias de distância da aprovação dos planos da reconstrução

de Lisboa – ao processo de luxo simbólico da capital de

França correspondendo, em outro sistema cultural e simbó-

lico, os trabalhos fundamentais da capital de Portugal,

em novo ciclo de existência urbana para a história sócio-polí-

tica do país.

Sebastião José de Carvalho foi, no momento próprio,

a pessoa própria, com capacidade para assumir uma tarefa

ingente, única de tal amplitude, na história e na vida nacio-

[18] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 19: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

nais. E foi a única pessoa para o fazer, na sua ambição de

poder e gula de bens, sem dúvida – mas outros as tinham à

volta dele sem que lhe tivessem as qualidades.

As que um homem como D. Luís da Cunha nele enten-

deu, provaram-se na sua criação das condições para a for-

mação de um Portugal moderno à escala nacional e, antes

de mais, e melhor que mais, na criação da primeira cidade

moderna do Ocidente.

Comemorou a Rússia, em 16 de Maio de 2003, o tercei-

ro centenário da fundação de S. Petersburgo, e já em 1953

a colónia russa emigrada de Paris comemorara os 250 anos

dessa data histórica desdenhada pela União Soviética.

Portugal poderá (deverá) comemorar em 12 de Junho de

2008 os 250 anos do diploma fundador da reconstrução de

Lisboa do Marquês de Pombal. E entretanto, com a justifi-

cação óbvia da sua história, uma análise objectiva do seu

estado actual e mediante um programa de ordem social e

cultural da conservação e uso da sua arquitectura – Lisboa

poderá candidatar-se, como as outras duas capitais da

Rússia e dos Estados Unidos, ao Património Mundial

da UNESCO.

[19] Lisboa Pombalina

Panorâmica da Baixa a partir do Castelo de São Jorge, s.d., Col. Espólio Eduardo Portugal. Autor: Eduardo Portugal.Arquivo Municipal de Lisboa – Arquivo Fotográfico.

Page 20: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

A Baixa Pombalina:um marco na história

da planificação das cidades

SidónioPardal

Page 21: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

[21] A Baixa Pombalina: um marco na história da planificação das cidades

A História adquire o seu sentido útil quando seinstrumentaliza como alicerce da nossa cultura edos nossos saberes, e como memória inspiradorados nossos comportamentos.A Baixa Pombalina constitui reconhecidamente umpatrimónio cultural nos domínios do Urbanismo e da

Panorâmica da Baixa, 1950/59.Autor: António Passaporte.

Arquivo Municipal de Lisboa – Arquivo Fotográfico.

Page 22: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

Arquitectura e, ao interpelá-la, somos integrados num enre-

do que começou na época pombalina e que, bem vistas as

coisas, o país ainda não foi capaz de resolver e superar.

As limitações dramáticas do nosso Iluminismo, eivado de

contradições, tolhido pelo seu próprio obscurantismo e inca-

paz de se submeter à disciplina e aos valores da razão e da

justiça não impediram que, no caso da Baixa de Lisboa, se

realizasse uma obra de mérito absoluto.

O gesto voluntarista e esclarecido de planear a cidade

através do desenho da sua estrutura, estabelecendo uma

ordem arquitectónica e regulamentando o processo de ges-

tão para assegurar a efectiva concretização em obra, é um

acontecimento raríssimo até ao século XVIII.

No caso de Lisboa houve a força das circunstâncias, cria-

das pela catástrofe natural de 1755, sendo singular e notável

o perfil da resposta da autoria de Manuel da Maia, então

com 78 anos de idade e com todo o saber e experiência de

uma escola de engenharia, aplicada em obras como o

Aqueduto das Águas Livres em Lisboa (1729-1748) que resis-

tiu incólume ao tremor de terra.

A concepção do plano para a reconstrução da Baixa ini-

cia-se com a “dissertação” que Manuel da Maia apresenta ao

Duque de Lafões, cerca de um mês depois do terramoto.

Neste documento equacionam-se, de forma sucinta e exaus-

tiva, os “modelos“ alternativos para a reconstrução da cidade,

perante os quais o poder político vai escolher e decidir qual

a estratégia a adoptar.

A consciência urbanística, nas suas múltiplas vertentes,

emerge neste texto dominando as diversas especialidades

que são disciplinadamente integradas e subordinadas à

visão sistémica da cidade, no seu conjunto. O engenheiro-

-mor do reino começa por avaliar a dimensão do problema e

reconhece que não tem condições, nem teria sentido, confi-

gurar para toda a cidade, um plano de renovação. Mas, ins-

pirado pelas utopias da Renascença e pelas ideias do

Iluminismo aplicadas à intervenção urbana, avalia as neces-

sidades e capacidades e demarca a zona que vai submeter a

um plano de renovação, reconhecendo tacitamente que

outras partes da cidade irão ser construídas de forma prag-

mática, pelas iniciativas avulsas dos proprietários, segundo

os processos tradicionais, enquadrados por algumas regras.

A primeira parte da dissertação utiliza um discurso directo

que, sem tergiversações introdutórias, logo no 2.º pará-

grafo, começa a exposição dos cenários e modos de actuação

contrastados, enunciando as vantagens e inconvenientes de

cada um deles, facultando um esclarecido quadro de alter-

nativas que submete à escolha do poder político.

Em resumo, são os seguintes os cinco “modos” enuncia-

dos por Manuel da Maia:

1.º Modo Reconstruir a cidade como ela era, com ligeiras

melhorias, aproveitando os materiais das ruínas para a ree-

dificação. Aqui há uma quase total demissão do Planea-

mento Urbanístico.

2.º Modo Reconstrução dos edifícios com as “antigas alturas,

mudando as ruas estreitas em ruas largas”.

3.º Modo Redução da altura dos edifícios para “dous pavimen-

tos sobre o terreno e mudando as ruas estreitas em largas”.

4.º Modo Arrasar toda a cidade baixa, elevando as cotas de

terreno sobre os entulhos, melhorando assim as condições de

drenagem das águas pluviais e dos esgotos e “livrando Lisboa

baixa das inundações que padece em ocasiões de maré-cheia”. Dese-

nhar os novos arruamentos “com liberdade competente, tanto nas

[22] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 23: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

larguras como nas alturas dos edifícios que nunca poderá exceder a

largura das ruas”. Este cenário propõe uma renovação radical

da Baixa, com base num plano urbanístico detalhado.

5.º Modo Curiosamente combina o 1.º Modo para a cidade

arruinada, no seu todo, com a criação de uma cidade nova,

planeada, entre Alcântara e Pedrouços.

A equação geral é elucidativa e desafiadora. O urbanista

hesita entre o 5.º Modo, “que parece o mais facilitado, e … infali-

velmente adoptado e preferido a todos os outros” se Sua Majestade

quiser localizar o seu Palácio em Belém, e o 4.º Modo, que é

o único desenvolvido na dissertação com ideias conceptuais

para a estrutura de desenho urbano. Criar uma cidade nova,

de raiz, é o sonho de todos os urbanistas, mas é natural que

nas circunstâncias tenha prevalecido a vontade de o fazer e,

ao mesmo tempo, intervir e não “desprezar” o centro histó-

rico da cidade.

A recuperação da Praça do Terreiro do Paço como lugar

simbólico exerceu, naturalmente, um forte apelo e, ainda na

primeira parte da dissertação, e de uma forma claramente

assumida na segunda e terceira partes, a atenção é focada no

4.º Modo, para o qual se consolida um conjunto de ideias

programáticas que vão orientar os exercícios explorató-

rios de elaboração de planos formais para a recuperação

da Baixa, desenvolvidos por três equipas chefiadas pelos

mestres de engenharia e arquitectura Gualter da Fonseca,

Capitães Elias Sebastião Poppe e José Domingos Poppe,

Eugénio dos Santos e Carlos Mardel.

Depois de tomadas as opções estratégicas e explicitadas

as grandes ideias programáticas, Manuel da Maia passou à

fase de desenho, a qual obedece a um método prospectivo,

explorando cenários contrastados num processo de pesquisa

e de avaliação crítica, empenhada na procura de uma solu-

ção de mérito urbanístico. É surpreendente que, no contexto

dramático da cidade destruída e de tanto sofrimento, este

pequeno grupo tenha tido a lucidez e a pertinácia de ambi-

cionar intervir na cidade de uma forma inovadora para a

época, recusando os processos fáceis, imediatistas e mais

baratos, optando conscientemente por um caminho incerto,

que concentrava neles uma grande responsabilidade técnica

e administrativa. O facto de terem enveredado por um pro-

cesso de pesquisa em várias direcções permitiu chegar

ao plano de Eugénio dos Santos, posteriormente ajustado

para a Baixa Pombalina, por Carlos Mardel; plano este

que determinou o conjunto que hoje nos sensibiliza e que

queremos, merecidamente, distinguir como Património

Mundial.

O plano inspira-se nos princípios da cidade Barroca, ao

estruturar-se na ligação de pontos significantes – no caso

vertente a Praça do Comércio e o Rossio, e a amarração às

colinas de S. Francisco e do Castelo – mas vai muito além,

ao fazer preceder a arquitectura de uma composição urba-

nística e ao estabelecer uma ordem arquitectónica.

Antes deste plano a História pode referenciar outros que

o antecedem e que se lhe assemelham. Dentre esses, Manuel

da Maia aponta dois exemplos que lhe eram familiares e que

lamenta não conhecer mais detalhadamente. Um deles é o

plano de reconstrução do centro de Londres da autoria dos

urbanistas Christopher Wren e John Evelyn, após o incêndio

de 1666. Este plano foi regulamentado pelo Act de 1667

que especificava tipos de pavimentos, altura dos edifícios,

número de pisos, espessura de paredes, arcos, profundidade

das caves e outros detalhes de desenho e construção.

[23] A Baixa Pombalina: um marco na história da planificação das cidades

Page 24: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

Outro é o plano de expansão de Turim, iniciado em 1621, sob

a coordenação do engenheiro Carlo Di Castellamonte cuja

execução se prolonga por cerca de um século. Neste caso o

plano desenvolve-se sobre um terreno rústico, sem constran-

gimentos, o que facilitou o estabelecimento, à partida, de

uma malha rectangular, de grande rigor formal.

Podemos, no entanto, reconhecer que o pensamento

urbanístico era ainda incipiente no século XVIII. Curiosa-

mente encontrava-se no auge a Escola Paisagista Inglesa com

um avançado corpo de doutrina e de prática, com obra feita,

sobre a arquitectura da paisagem rústica e sobre os grandes

parques integrados na paisagem silvo-pastoril. O livro de

Stephen Switzer, Iconographia Rustica, publicado em 1718,

constitui um clássico sobre a compreensão integrada do ter-

ritório e da paisagem que não esteve presente no Ilumi-

nismo Pombalino e bem poderia ter influenciado as trans-

formações da paisagem que ocorreram em Portugal a partir

do século XVIII, nomeadamente nas diversas campanhas

de fomento da agricultura. Ainda hoje Portugal se ressente

das deficiências culturais sobre a arquitectura da paisagem.

A atenção ao território através de um olhar naturalista

teve também lugar em França, no século XVIII, pela pena

de Marivaux, que compreendeu a estética singular do jar-

dim irregular, colhendo influências da simplicidade do

jardim chinês. As obras de Watteau e Rousseau são tam-

bém exemplo de um Iluminismo à procura de uma estética

naturalista.

É interessante este primeiro despertar das preocupações

sobre o planeamento dos espaços rústicos que, na Europa,

precede a prática do urbanismo moderno. Não há sinais de

terem chegado a Portugal ecos dos grandes debates que ani-

maram a Europa, principalmente a Inglaterra, sobre o

Landscape Gardening. Nesta altura havia pelo menos quatro

lógicas de aproximação ao território: a da arquitectura

popular e pragmática, a da arquitectura canónica, a da

nova arquitectura da paisagem – iniciada por Le Nôtre em

Vaux-le-Vicomte (século XVII) e desenvolvida pela Escola

Paisagista Inglesa, nos trabalhos de William Kent e Brown

(século XVIII) – e a do planeamento urbanístico emergente

dedicado aos problemas dos aglomerados urbanos.

A arquitectura rural, na sua tradição, e a Escola Paisagista

Inglesa, nos seus princípios conceptuais, valorizaram as for-

mas irregulares e a linha curva, reservando o uso das linhas

rectas para situações muito excepcionais. “The line of beauty –

the S curve” e “curved line is somehow more natural – and therefore

better – than a straight one”: eram argumentos comuns no dis-

curso apologético do Landscape Gardening do século XVIII.

É particularmente esclarecedor observar as transforma-

ções de Blemhein, levadas a cabo por Capability Brown: o

plano inicial, da autoria de Henry Wise e Sir John Vanbrugh,

estruturado sobre uma base geometrizada, é desconstruído

de modo a dar prevalência a formas onduladas e curvas,

recriando uma paisagem de expressão naturalista. Vem isto a

propósito para questionar a visão estereotipada da moderni-

dade e do racionalismo iluminista associada à configuração

geométrica e ortogonal do desenho urbano. Pode-se, com

toda a propriedade, sustentar que esta simplicidade geomé-

trica tem mais a ver com padrões do Barroco e da cidade

militar do que com a estética iluminista do século XVIII.

A associação da ortogonalidade ao Iluminismo e ao

Racionalismo compreende-se, mas não deixa de merecer

reparo na medida em que, em rigor, a Escola Paisagista

[24] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 25: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

Inglesa desde os meados do século XVIII responde ao con-

junto de preocupações que constituem, hoje, conteúdos do

planeamento do território no seu todo, considerando os

usos urbanos, agrícolas, florestais e silvo-pastoris. Bem vistas

as coisas, a valorização da linha curva e das formas irregu-

lares, já não das composições urbanas medievais, mas de

um naturalismo romântico emergente, coexistia, a um

nível avançado, com as formas do urbanismo racionalista.

Os padrões de desenho urbano para a cidade moderna ope-

ram sobre uma base de composição geométrica que conduz

à lógica do “quarteirão” integrado numa malha reticular ou

quase reticular. O plano da Baixa Pombalina descobre e

apresenta a sua estrutura reticular com a força de uma evi-

dência, demonstrando que as exigências funcionais condu-

zem à adopção de formas regulares. Se para o meio urbano

se oferecem como mais propícios os espaços ordenados em

formas ortogonais, na paisagem rústica devem dominar os

espaços de configurações fractais, difusas e discretas, com

uma irregularidade informal que lhes confere uma expres-

são de amenidade naturalista.

O desencontro entre as diversas linguagens e culturas

arquitectónicas está patente num outro acontecimento

curioso que é o Tratado da Ruação de José Figueiredo Seixas

(1762). Este pintor e arquitecto competente, que trabalhou

com Nicolau Nasoni e foi Mestre da Aula de Riscar da Cidade

do Porto, ao reflectir sobre as questões urbanísticas dentro

de um culto da linha recta, faz um discurso ingénuo e des-

cabido, ao defender que todas as povoações do país deviam

estar ligadas por linha recta. “As estradas que conduzem a ser-

vidam de humas Povoações a outras devem sahir de hua Povoação

em linha recta com as ruas centraes e principais da Povoação e con-

tinuar a mesma rectidam athe outras Povoações, e entrar nellas

fazendo a mesma linha recta com as suas ruas centraes”. Revela-se

aqui que a lógica gramatical da arquitectura dos edifícios é

diferente daquela que informa o espaço urbano e ambas,

por sua vez, são distintas do processo subjacente à formação

e configuração da paisagem rústica.

Pode constatar-se que, na Europa, o século XVIII dedicou

uma maior atenção teórica e prática à concepção dos grandes

parques fora da cidade, arquitectando a paisagem rústica

em espaços de vilegiatura e de produção agro-silvo-pastoril

do que ao planeamento urbanístico, o qual só vem a ter um

desenvolvimento sistemático no contexto dos movimentos

higienistas.

Em Portugal, a política urbanística de Sebastião José,

Marquês de Pombal, fez de nós precursores de um movi-

mento que vai ocorrer, principalmente no século XIX,

com os grandes planos urbanísticos de L’Enfant para

Washington em 1791, a renovação de Paris, sob a coordena-

ção administrativa de Haussmann nos meados do século XIX

e a expansão de Barcelona de Ilfefonso Cerdà em 1859.

Na sequência do plano da Baixa, a cidade é, em 1771,

continuada para norte com a construção do Passeio

Público, com base num projecto do Arq. Reinaldo Manuel.

Trata-se de uma iniciativa de vanguarda. A ideia de criar

“passeios públicos” de raíz, como elementos da composição

do sistema urbano surge, nos finais do século XVII em

Montpellier, com a Promenade de Peyrou.

Voltando ao Plano da Baixa, a segunda parte da disserta-

ção de Manuel da Maia, centra-se no processo de imple-

mentação do 4.º Modo que preconiza uma total renovação

desta zona da cidade, implicando, de forma assumida, a total

[25] A Baixa Pombalina: um marco na história da planificação das cidades

Page 26: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

demolição dos edifícios que resistiram ao terramoto e uma

intervenção directa da Administração Pública na gestão do

reparcelamento perequacionado da propriedade imobiliária.

Desta forma liberta-se o desenho urbano do condiciona-

mento cadastral… “todos os edifícios de tal parte da cidade, depois

de avaliados no estado em que se achassem para que depois de derri-

bados e extintos, formadas novas ruas e novos logares para os edifícios

novos, e repartida por eles a importância ou valor das casas destruí-

das, e conhecido o que correspondia a cada palmo, vara ou braça

quadrada, cada acredor de edifício recebesse em terreno a avalização

que se lhe havia feito, e qaundo lhe não agradasse se vendesse a quem

desse a sua importância para a receber o acredor”. A título de

curiosidade observe-se que o recente Decreto-Lei 380/99 de 22

de Setembro institui o conceito de perequação na gestão

urbanística, de uma forma ingénua e quase inoperante como

se tal fosse uma grande novidade.

O planeamento urbanístico outorga-se de um poder impe-

rativo que obriga os proprietários dos lotes a construírem os

edifícios, de acordo com as regras e arquitecturas determina-

das pelo próprio plano. Como podemos ler na 2.ª parte da dis-

sertação de Manuel da Maia: “a todos se determinará tempo certo

para darem princípio ao edifício e para o terem também completo a

tempo determinado, segundo os desenhos que lhe forem comunicados

pelo Arquitecto do Senado, o Capitão Engénio dos Santos e Carvalho”.

O plano cuidou também de reduzir o risco de propagação

de incêndios através de um regulamento que obrigou ao

alteamento das paredes das empenas dos edifícios relativa-

mente às paredes das frontarias de modo a impedir as comu-

nicações entre os telhados.

Para além da preocupação de respeito pelos direitos

da propriedade privada e pela viabilidade financeira dos

empreendimentos, o plano atende à construção de edifícios

públicos e à localização de serviços para revitalizar a vida

social e económica deste centro da cidade.

A 3ª parte da dissertação estabelece um detalhado pro-

grama que considera o sistema de recolha de lixos, a rede

de escoamento de esgotos e a condução de água potável

para as fontes, “para alimento dos povos, para a extinção dos

incêndios e para adorno das praças”. O alargamento das ruas e

a menor altura dos edifícios, para além das razões de segu-

rança anti-sísmica, eram também justificados por razões

sanitárias.

Para além da singularidade e ineditismo que esta operação

urbanística contém na sua dimensão e morfologia, encerra

em si a faculdade – não imediatamente evidente a quem

observa apenas o registo em planta do seu traçado – de acei-

tar gramáticas arquitectónicas diversas e exteriores àquele

conjunto de regras e cânones explicitado nas soluções de pro-

jecto dos edifícios-tipo e das suas variantes sistematizadas

que configuram a ordem arquitectónica original.

Essas variações não ocorrem durante as décadas iniciais

de implementação do Plano. O notável rigor formal é apoiado

por uma detalhada regulamentação que define pés-direitos,

o sistema construtivo geral e, em particular, o desenho dos

diferentes vãos e suas guarnições, a interligação das estrutu-

ras de madeira com as alvenarias, as cornijas, pilastras, rema-

tes, corta-fogos, etc.

A organização do edifício-modelo incorpora (sistemati-

zando-a) a tradicional localização de actividades comerciais e

pequenas indústrias (sapateiros, correeiros, ourives, prateiros,

douradores,…) no piso térreo (de mediação público/privado)

e de alojamento privado nos pisos superiores.

[26] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 27: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

O desenvolvimento dos padrões e do arquétipo arquitec-

tónico da “Baixa” é feito de modo a formalizar e consubstan-

ciar a apropriação (agora institucionalizada) deste trecho

renovado da Cidade pela classe que servirá de caução às

políticas em desenvolvimento por Sebastião José – a burgue-

sia comercial e os pequenos e médios funcionários da

Administração do Reino. Assim, não deixando de existir pon-

tos focais e de excepção como o renovado Rossio e a grande

praça ribeirinha – que, regularizada e simétrica, passa a alo-

jar os serviços centrais da Administração, deixando de alber-

gar o Paço Real –, o conjunto dos traçados está submetido a

um padrão normalizador, no sentido de flexibilizar uma

expressão que, contudo, nas primeiras décadas de constru-

ção é apontada pela crítica comum como “monótona e repe-

titiva”. As evoluções serão sobretudo resultado de um lento

conjunto de intervenções e modificações (mais ou menos líci-

tas e esteticamente válidas) que – alterando edifícios inteiros,

ou os vãos e pisos térreos, as cantarias de guarnição, rasgando

montras, acrescentando pisos e mansardas – gradualmente

matizaram a severa “ordem pombalina”, demonstrando

um imprevisto predicado do Plano: conseguir integrar edifí-

cios com arquitecturas e programa de excepção, sem que o

revolucionário espírito de regra e disciplina urbanística

deixe, estruturalmente, de caracterizar os padrões da ordem

arquitectónica que perdura ainda hoje na Baixa.

O poder de sobrevivência do plano da Baixa Pombalina

com a sua ordem arquitectónica revela-se na versatilidade fun-

cional dos espaços, que ao longo dos tempos se adaptam à

habitação, a sedes de instituições bancárias, a comércio varia-

do, a diversos serviços públicos, albergando uma ampla varie-

dade de actividades que dão vida ao centro da cidade. A ani-

mação urbana da Baixa tem resistido, apesar das agressões

como a do congelamento das rendas e outros factores induto-

res de falta de conservação e abandono que afectam uma

parte significativa dos edifícios. Contudo convém lembrar

que a robustez da Baixa Pombalina tem limites que em boa

parte estão a ser ultrapassados pela incúria da gestão urbanís-

tica, colocando em risco a estabilidade deste conjunto. A sua

classificação como património mundial será uma ajuda, se

for consequente na criação e operacionalização de medidas

que assegurem o restauro e a conservação, pondo fim às

causas da actual decadência que se pode observar à vista

desarmada. É necessário rever a lei das rendas e dos trespas-

ses, avançar com obras de conservação, restauro e renovação

de edifícios, fomentar dinâmicas de reabilitação urbana e dis-

ponibilizar espaços devolutos para formas de ocupação úteis.

A intervenção urbanística na Baixa deve ser de salvaguarda

e valorização com uma componente dinâmica e não radical-

mente conservacionista. Se há edifícios que pedem simples

restauro outros haverá que, no seu interior, exigem renova-

ção com regras, mas também com graus de liberdade que

permitam criar condições elementares de funcionalidade

e de conforto. Justificam-se alterações para minorar a inte-

rioridade de compartimentos que não têm luz natural nem

o conveniente arejamento. A reorganização dos espaços inte-

riores dos edifícios da Baixa, a sua sustentação estrutural e as

técnicas a adoptar para reforço dessas mesmas estruturas

têm merecido a atenção e o estudo de diversos especialistas

de Engenharia Civil e da Arquitectura. Falta uma clarividên-

cia e vontade políticas para operacionalizar os trabalhos

através de directivas de planeamento, projectos e o empreen-

dimento consequente.

[27] A Baixa Pombalina: um marco na história da planificação das cidades

Page 28: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

A Baixa de Lisboano Contexto do

Urbanismo Português

WalterRossa

Page 29: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

[29] A Baixa de Lisboa no Contexto do Urbanismo Português

Solicitam-me um contributo acerca de conhecimentodisponível sobre a Baixa de Lisboa, que possafundamentar a sua candidatura e posteriorclassificação como Património da Humanidade. Jáhoje aqui ficou claro que a ideia de promover estaclassificação deverá ser um pretexto – não um

Praça D. Pedro IV (anos 1940).Autor: Paulo Guedes.

Arquivo Municipal de Lisboa – Arquivo Fotográfico.

Page 30: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

objectivo em si – para que se possa catalizar a definição,

desenvolvimento e implementação de uma estratégia de

intervenção com vista à salvaguarda e valorização desta

área central do espaço físico, das vivências e do imaginário

da cidade de Lisboa. Afinal de contas para quê procurar um

reconhecimento estranho enquanto a situação existente é a

da expressão de uma profunda ausência de auto-estima?

Para tal poderá valer a pena levar em linha de conta alguns

dos desenvolvimentos mais recentes da investigação no

domínio disciplinar da História do Urbanismo.

Aquilo que habitual e operativamente se usa e se diz

sobre a conformação urbanística da área central de Lisboa

após o Terramoto de 1755, provém da obra ímpar de José

Augusto França Lisboa Pombalina e o Iluminismo (1962), que,

por ser pioneira, não poderia ter integrado conhecimento

apurado no âmbito do desenvolvimento da disciplina que

entre nós anunciou, com especial destaque para a evolução

registada desde a década de 1990. A verdade é que essas

novidades nem sequer foram ainda integradas pelo meio

cultural português. É minha convicção que, quando o

forem, a percepção do fenómeno e até algum do jargão

habitualmente utilizado sofrerão alterações de relevo, as

quais reforçarão, de sobremaneira, a relevância e o signifi-

cado culturais nacionais e universais do objecto.

Nesse contexto, face aos painéis compostos para estas

Jornadas e, em especial, este onde me encontro, considerei

adequado centrar a minha intervenção sobre o significado,

contexto e antecedentes do plano adoptado em 1756,

cuja planta de síntese aparece elaborada e subscrita por

Eugénio dos Santos e Carlos Mardel, mas que foi apurado

segundo um processo magistralmente dirigido e anotado

por Manuel da Maia em convergência e cumplicidade cres-

centes com Sebastião José de Carvalho e Melo. Da imple-

mentação, adaptação e desvios desse plano, bem como das

correspondentes componentes tecnológicas, por certo

darão conta os meus colegas. Já agora importa também aqui

fazer notar que esse plano é composto por outros 5 dese-

nhos e pela Dissertação de Manuel da Maia, quiçá o elemento

mais importante, mas do qual não me é possível fazer, neste

contexto, uma abordagem detalhada. Prometo-o para breve

em artigo a publicar.

Para além de proposta, um plano é também uma síntese

do conhecimento nos domínios disciplinares no âmbito dos

quais se desenvolve. É uma simulação do ideal sobre o real,

desenvolvida por um grupo restrito que, no fundo, tem

consciência que o maior ou menor grau e sucesso da sua

implementação dependerá da vontade e desempenho de

outros e da comunidade em geral. Acaba sempre por impli-

car uma ideia ou mesmo um projecto de sociedade, em

especial quando se trata de uma capital. Um plano é, assim,

uma formulação sempre utópica de conhecimento aplicado.

No caso vertente, é sobre esse conhecimento que agora

aqui quero fazer valer algo, começando por estabelecer

duas linhas de reflexão que, pela sua convergência no

plano de 1756 para a Baixa de Lisboa, me parecem cruciais

para o seu entendimento e contextualização.

1. O conivente entendimento entre o Engenheiro Mor do

Reino (Manuel da Maia) e o futuro Marquês de Pombal

(Sebastião José de Carvalho e Melo) que atrás referi, não

resultou de um providencial encontro e acerto por obrigação

de cargos e ofícios entre essas duas personalidades densas

Nota: Este texto foi composto a partir da

transcrição da intervenção então feita de

improviso, tendo sido evitadas repetições,

corrigidas falhas de concordância e clari-

ficadas algumas ideias. Por tal razão

entendeu-se não ser adequado dotá-lo de

notas que lhe pudessem conferir, de

forma convencional, a necessária funda-

mentação e aparato erudito. Para tal fim,

tendo aquela intervenção como pano de

fundo textos do autor já publicados ou

em vias de publicação, remetem-se os

interessados para alguns deles: Além da

Baixa – indícios de planeamento urbano

na Lisboa Setecentista, IPPAR, Lisboa,

(1990) 1998; “Episódios da evolução

urbana de Lisboa entre a Restauração e as

Invasões Francesas” in Rassegna, Editrice

CIPIA srl, Bologna, Setembro/1994, nº59,

vol./ano XVI, pp. 28-43; “A imagem ribeiri-

nha de Lisboa – alegoria de uma estética

urbana barroca e instrumento de propa-

ganda para o Império” in A urbe e o

traço – uma década de estudos sobre o

urbanismo português, Almedina,

Coimbra, (2000) 2002, pp. 87-121; “Lisboa

Quinhentista, o terreiro e o paço: prenún-

cios de uma afirmação da capitalidade”

in D. João III e o Império – Congresso

Internacional Comemorativo do Nascimento

de D. João III, CHAM (Universidade Nova

de Lisboa) e CEPCEP (Universidade

Católica Portuguesa), Lisboa, (2002)

(no prelo). Está também em fase finaliza-

ção um artigo de sistematização, o qual

será publicado em 2004 no número

monográfico sobre a Baixa Pombalina

da revista Monumentos editada

pela Direcção Geral dos Edifícios e

Monumentos Nacionais.

[30] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 31: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

e pragmáticas do Iluminismo português. Deve antes ser con-

siderado como corolário lógico, para a capital do Império,

de um longo processo histórico-cultural onde urbanística e

projecto politico evoluíram da interdependência à fusão.

Com efeito, jamais se logrará compreender a consolidação

do processo de expansão ultramarina – a sua consolidação

colonial – sem o apuramento e a consubstanciação de um

complexo conjunto de procedimentos – uma praxis – basea-

dos numa estratégia territorial de reconhecimento, ocupa-

ção, ordenamento, exploração e defesa. Daí o desenvolvi-

mento de um corpus de conhecimento e de um escol de espe-

cialistas que, de forma breve e necessariamente redutora,

poderemos caracterizar como tendo algumas característi-

cas peculiares dentro do âmbito mais lato da Engenharia

Militar europeia.

Essa especificidade, bem como a assunção da existência

desse grupo no seio da complexa orgânica do Estado

Português, foi inequivocamente assumida durante o processo

da Restauração da Independência, quer através da insti-

tucionalização do ensino (1647), quer pelo surgimento e, em

alguns casos, publicação de manuais específicos que, até na

titulação e terminologia, visaram consagrar a autonomia

dessa escola. Também a partir de então se definiram e desen-

volveram estruturas de carreira, hierarquia e cargos, sendo

já muito evidentes nas décadas de 1720 e 1730 tendências

corporativas totalitárias, nomeadamente em alguns textos e

acções de Manoel de Azevedo Fortes, antecessor de Manuel

da Maia no cargo de Engenheiro Mor do Reino.

Decorriam então as primeiras grandes campanhas diri-

gidas ao reconhecimento e definição territorial do Brasil, as

quais permitiram o estabelecimento das fronteiras com a

América Espanhola celebrado através de uma sucessão de

tratados firmados até ao final de Setecentos. Seria também

nesse dobrar de século que surgiriam, entre outros, pela

pena de José Manuel de Carvalho e Negreiros (filho de

Eugénio dos Santos) escritos – um dos quais a utopia intitu-

lada Jornada pelo Tejo (1793-1797) – que, qual canto de cisne,

visavam institucionalizar a primazia da Engenharia Militar

na definição e desenvolvimento do rumo do reino, não

apenas no que dizia respeito ao ordenamento do território,

ao urbanismo e à arquitectura.

Quem conheça ou queira consultar um dos diversos

manuais sobre a evolução do conhecimento e das acções no

âmbito da Engenharia Militar das principais potências

europeias de então, poderá facilmente verificar como essa

evolução do quadro português decorreu com paralelismo

cronológico e em interacção de conhecimentos com as suas

similares. Para tudo isso foi decisiva a vinda até nós, pelo

menos desde a Guerra da Restauração, de técnicos estran-

geiros, igual sucedendo no domínio das Artes e da

Arquitectura, em especial durante o longo reinado de

D. João V. A verdade é que a Europa já então era um universo

cultural aberto, onde a informação circulava com uma

generosidade e velocidade que nem sempre sabemos levar

em linha de conta.

Esse século e meio de ouro para a Engenharia Militar

Portuguesa (c. 1647-1797), pese embora o seu esmagador

desempenho na transformação e construção do espaço à

escala do Império, não foi, contudo, hegemónico. Disso é

prova determinante o papel desempenhado por arquitectos

estrangeiros, nomeadamente nas obras cortesãs de D. João V,

claramente destinadas a conformar um projecto politico

[31] A Baixa de Lisboa no Contexto do Urbanismo Português

Page 32: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

de afirmação da monarquia portuguesa dos Braganças no

quadro das potências católicas da época. E, como é natural,

é aqui que Lisboa nos surge como o principal objecto das

intenções de transformação.

2. Coloca-se-nos assim a problemática da afirmação e con-

substanciação, do ponto de vista urbanístico, plástico e

monumental, de uma leitura de Lisboa como capital, que é

um problema subjacente a toda a problemática e discussão

do urbanismo de Lisboa, pelo menos desde o início da Idade

Moderna. Antecedido por autores mais conformados ou

entusiastas e, provavelmente, com menor formação especí-

fica, já Francisco de Holanda em Da fabrica que falece… (1571)

questionara a Coroa se Lisboa, cidade então verdadeira-

mente cosmopolita e de grande relevância para a economia

e a geopolítica mundial, possuía uma imagem e projecção

urbanística a tal correspondentes. Era, contudo, uma preo-

cupação tão precoce quanto depois acabou retardada pelas

vicissitudes da União Ibérica e subsequente Guerra da

Restauração.

A imagem-arquétipo de capital – obviamente catalisada

pela renovação e reestruturação renascentista da Roma clás-

sica e imperial sob a forma de capital da cristandade, no que

o plano de Sisto V de 1588 foi a pedra de toque – consiste

fundamentalmente na construção de uma paisagem urbana

sob os signos da monumentalidade e da ordem, dinami-

zada pela centralidade (ou nova centralidade) de um espaço

público conformado por edifícios que simbolizam o poder,

sendo o programa de série destes a habitação do monarca,

ou seja, a sede da Corte e demais dependências. Foi a partir

desses pólos de centralidade urbana, territorial e, funda-

mentalmente, nacional, que irradiaram novos cenários, sis-

temas e estruturas urbanísticas de representação do poder,

os quais acabam, no seu todo, por corresponder ao objecto

central da História do Urbanismo da Idade Clássica.

Concluído o processo da Restauração da Independência

(1668), desde logo se empreenderam, com maior fôlego,

processos de restauração de um sem número de aspectos liga-

dos ao Império. De entre eles, a questão do Padroado da

Coroa Portuguesa sobre os territórios ultramarinos – em

especial sobre o Oriente – tornou-se uma quase obsessão da

politica externa portuguesa. Mas nessa complexa questão o

que aqui nos interessa é o facto de nos conduzir ao desígnio

coevo da dignificação urbanística de Lisboa, sugestivamente

formulado durante o reinado de D. João V como o ensejo

de se poder reformar “Lisboa como uma nova Roma.” Desde o

início que toda a acção diplomática e mecenática joanina

junto da Santa Sé se pautou por esse utópico ensejo de pari-

dade entre as cortes papal e portuguesa, o qual conduziu ao

desenvolvimento de uma estratégia que visava uma profunda

reforma urbana e urbanística da cidade. Essa reforma teria

como pedra de toque o desenvolvimento de um sector

(essencialmente) novo – a Lisboa Ocidental – no qual seria

possível consubstanciar a desejada imagem de capitalidade

de uma Lisboa Imperial.

O plano para a Baixa que veio a ser elaborado e imple-

mentado após o Terramoto de 1755 e que é aqui o objecto

central, também abandona Lisboa Oriental ao seu destino.

É um plano que não toca em quase nada a nascente da zona

baixa, que deixa intactas a Mouraria, Alfama, o Castelo,

a Graça, etc., assim considerados consolidados. A planta em

esquiço inicial abrange apenas a Baixa, mas a versão acabada

[32] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 33: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

já engloba toda a área do Chiado e São Paulo, enquadrando

o seminalmente regrado Bairro Alto e implicando a demo-

lição integral nessas áreas de tudo quanto de muito resistiu

à catástrofe. Até aí aflora o desígnio de a renovação de

Lisboa dizer essencialmente respeito à zona ocidental da

cidade. Também no que diz respeito aos planos desenvolvi-

dos para outras zonas se verifica uma quase total displicên-

cia no que diz respeito ao sector oriental.

Pese embora a já vasta experiência e capacidade de rea-

lização dos engenheiros militares portugueses nas mais

diversas vertentes dos processos de urbanização, nunca

haviam levado a cabo tarefas de concepção, planeamento e

execução de estruturas urbanísticas de impacto simulta-

neamente cenográfico e monumental. E era isso que D. João V

e, de uma maneira geral, os seus conselheiros mais próxi-

mos, demandavam para a afirmação espacial da capitalidade

lisboeta. Como o referente era Roma, tornava-se óbvio que o

recrutamento de gente e a importação de modelos deveria

ali ser feito. Mais tarde empreender-se-ia uma politica de

envio de bolseiros, os quais, de uma certa forma, acabarão

por corporizar, por substituição, o final da grande prepon-

derância da Engenharia Militar na produção do edificado

de encomenda pública em Portugal.

Ao dar-se início ao processo joanino de renovação urba-

nística da capital, fizeram-se levantamentos e diversos pro-

jectos, sendo determinante o trabalho desenvolvido por

D. João V e os seus principais conselheiros com o arquitecto

italiano Filipo Juvarra, durante a sua estada em Lisboa no

primeiro semestre de 1719. Consideradas diversas opções,

foi gizado um plano e diversos projectos, cuja execução che-

gou a ter início. Porém, por razões ainda não bem apuradas

em breve foi abandonada, recolhendo à fábrica de Mafra

muita da experiência e do capital de conhecimento assim

adquirido.

Como não poderia deixar de ser, a pedra de toque desse

programa consistia na construção de um palácio para o

chefe do Estado (o Rei) e o chefe da Igreja (o Patriarca), o

qual, segundo diversa documentação da época, deveria pelo

menos rivalizar com o Vaticano. Ao então jovem engenheiro

Manuel da Maia coube a tarefa de coordenar as acções no

terreno que tão bem conhecia após ter realizado em 1716,

com sucesso, o levantamento preliminar. Foi essa a base

para o estudo e desenvolvimento do plano de 1756 para

Baixa e de outros, relativos às zonas periféricas, que se lhe

seguiram. De muitas, foi essa a primeira tarefa de Manuel

da Maia ao serviço do urbanismo da capital.

Do desejo de um novo Palácio-Patriarcal resultaram as

profundas reformas do Paço da Ribeira e espaços públicos

confinantes, mas também outros impulsos palatinos, como o

que já no início da década de 1740 levou Frederico Ludovice

a fazer um projecto para o sítio do actual Jardim do Príncipe

Real. Seria ali que depois do Terramoto de 1775, através

da adaptação para uma versão em madeira pelo seu filho,

acabaria por ser erguida a Patriarcal, também ela vítima de

um incêndio pouco depois. Algo condenou Lisboa a nunca

lograr erguer de forma monumental e durável um templo

específico para albergar a dignidade patriarcal na qual tanto

se empenhou, (como símbolo de um objectivo politico de

longo alcance), a diplomacia de D. João V.

Sem que qualquer outra acção possa ser comparável ao

que sob a direcção de Juvarra esteve em vias de concretizar,

muitas foram as iniciativas promovidas daí em diante por

[33] A Baixa de Lisboa no Contexto do Urbanismo Português

Page 34: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

D. João V – ou pelo Senado da Câmara com o impulso ou o

apoio daquele – em prol de uma profunda reforma urba-

nística de Lisboa. Até há bem pouco tempo eram considera-

das avulsas – o que até poderia fazer sentido se apenas con-

tássemos com as inúmeras acções de alargamento, alinha-

mento e uniformização de vias urbanas, demolições de tra-

mos e portas das muralhas, bem como renovação de equi-

pamentos públicos, etc. – mas hoje já se não pode continuar

a pensar assim. De facto como interpretar o Aqueduto das

Águas Livres – a única de todas essas empresas que verda-

deiramente, mas com dificuldades, vai sobrevivendo – e o

facto ter sido destinado a abastecer a menos densa área oci-

dental de Lisboa?

Por último também não posso deixar de referir essa ver-

dadeiramente revolucionária marginal, misto de cais contí-

nuo e de passeio público em alameda com cerca de 12 km – a

lembrar os eixos que na Paris colbertiana haviam substituído

a muralha – projectada em 1733 por Carlos Mardel para ligar

o Terreiro do Paço às Quintas Reais de Belém (das quais, aliás,

não pode ser desligada no âmbito do entendimento cabal

dessa opção). Daí os tramos que se foram realizando do bem

conhecido Cais de Pedra, todos desaparecidos com a catás-

trofe de 1755. Daí os paços e quintas da Junqueira, também

integráveis num movimento de aculturação da periferia

rural que se estendeu ao Campo Grande e ao Lumiar, a

Xabregas, Moscavide, Sacavém, etc. Pesem embora algumas

particularidades, as Necessidades são ainda uma expressão

de tudo isso. Juntem-se-lhes conventos e igrejas novos ou

renovados, palácios, a Fábrica das Sedas, etc.

Em 1755 Lisboa pôde, pois, contar com uma elite técnica

actualizada, tirocinada, organizada e disciplinada e tam-

bém com uma longa reflexão sobre a premente necessidade

de uma profunda reforma urbanística que dotasse a cidade

de níveis de urbanidade e, essencialmente, capitalidade,

apropriados. A catástrofe proporcionou a oportunidade,

mas também uma alteração fundamental: o local.

Todas as hipóteses anteriormente consideradas aponta-

vam para o desenvolvimento de uma nova centralidade em

ensanche numa nova Lisboa Ocidental. Tinha-se consciên-

cia da resistência que a alteração da configuração, estatuto

e valia do cadastro do centro antigo suscitaria, mas subva-

lorizou-se sempre como, por razões idênticas, também seria

difícil deslocar a própria polaridade da cidade. No fundo, se

a Coroa estava consciente da necessidade e dos sacrifícios

da reforma, a sociedade em geral não.

Com a destruição parcial do centro antigo ruíram quase

por completo as resistências à mudança. Tornou-se possível

demolir o que necessário fosse para reformar a cidade no

local onde, desde o final da Idade Média, desenvolvera a sua

centralidade, ainda que academicamente se tenha conside-

rado a hipótese de erguer uma nova cidade na zona de

Belém e, depois, se tenham desenvolvido planos para todas

os sectores periféricos inseridos dentro do limite virtual da

cidade, a Linha Fundamental de Fortificação, a qual viria

ser a 1ª Circunvalação de Lisboa. Por entre esses planos des-

taque-se a delimitação de uma área ampla sobre o então

bucólico Vale de Alcântara – sensivelmente o actual Bairro

de Campo de Ourique – para a implantação do novo com-

plexo palatino real.

Esse último facto permite-me aqui introduzir uma das

outras grandes novidades da estratégia para reforma urbanís-

tica de Lisboa gizada após o Terramoto de 1755: a mudança

[34] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 35: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

do paradigma de centro e de capitalidade. Tudo quanto se

pensara para a capital joanina tivera como pedra de toque

a centralidade de um novo conjunto palatino, aliás na con-

tinuidade do arquétipo instalado no Terreiro do Paço na

transição entre as Idades Média e Moderna. A partir de 1756

o centro Cenográfico da cidade seria ocupado pelo Estado,

simbolicamente figurado na estátua equestre do monarca

cuja morada passa a ser um referente periférico. Assim,

e uma forma algo boçal, poderemos dizer que o plano para

a Baixa de 1756 é também para Portugal o símbolo da passa-

gem de um regime absolutista para o de um despotismo

iluminado ou esclarecido. Por isso deve ser bem ponderada

a ideia em curso, da transformação da Praça do Comercio

em centro hoteleiro e de restauração.

É nesse âmbito, não no da arquitectura e urbanismo, que

se enquadra a visão e acção do futuro Marques de Pombal,

que soube utilizar a oportunidade e instrumentalizar o

capital adquirido no âmbito de uma desejada reforma urba-

nística de Lisboa, no sentido da afirmação do seu protago-

nismo politico e do simbolismo do seu projecto reformista.

Se as acções urbanísticas projectadas, mas nem sempre

implementadas com sucesso, para Porto, Coimbra, Vila Real

de Santo António, Goa, etc. correspondem a reformas estru-

turais por ele empreendidas em sectores fundamentais da

vida e economia portuguesas, a reconstrução de Lisboa após

o Terramoto de 1755 é o referencial urbanístico, a viabiliza-

ção inaugural do seu projecto politico. É aqui que encontro

a mais plena justificação para a designação da nova Baixa

de Lisboa como Pombalina, não num pretenso estilo arqui-

tectónico-urbanístico que de tal processo tenha emergido.

Afinal, que conceito de estilo é esse?

Como já aqui tentei enunciar, a Baixa Pombalina insere-

-se em plenitude no contexto evolutivo do urbanismo por-

tuguês, mas é, sem dúvida, um dos seus momentos de sín-

tese mais importantes. Não é o resultado de uma inspiração

momentânea de algumas personagens perante um problema

concreto, nem sequer naquilo que de mais característico

encontramos na Baixa Pombalina: a arquitectura de programa

ou, se quisermos, o urbanismo de grau absoluto ou a fusão

plena entre arquitectura e urbanismo ou, quiçá de forma

extremada, a cidade como obra de arte total. Para além

de ser um fenómeno contemporâneo em diversas culturas

europeias, entre nós já antes se desenvolviam, nomeada-

mente para o Brasil, planos de cidades com um programa

que integrava a arquitectura como uma componente este-

reotipavel da composição. Aliás, essa tendência é já detectá-

vel em alguns tramos medievais de cidades portuguesas e,

sem qualquer margem para dúvidas, na Lisboa das reformas

e ensanches de D. Manuel I.

Parece-me óbvio que, para além de desígnios de ordem

ideológica, estética e disciplinar, a utilização de projectos-

tipo teve também como escopo incrementar o mais possível

os níveis de eficácia. É também na capacidade de resposta

do ponto de vista da rotina da construção, que se vislumbra

com facilidade a tarimba profissional dos técnicos interve-

nientes. Nomeadamente na montagem de estaleiros e na

estabilização dos processos normativos para o sistema cons-

trutivo anti-sísmico entretanto criado, nos esquemas com-

positivos, nas métricas, na normalização dos elementos de

cantaria, dos vãos e caixilhos, na fabricação de telha e azu-

lejo, etc. Também segundo esta perspectiva se pressente a

importância de experiências anteriores.

[35] A Baixa de Lisboa no Contexto do Urbanismo Português

Page 36: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

A arquitectura da Baixa Pombalina não é mais que a evo-

lução e adaptação à escala e circunstâncias do caso, da

arquitectura de série que a Coroa Portuguesa produzia um

pouco por todo o Império segundo princípios compositivos

e metodologia construtiva padronizados. Mas na Baixa, tal

como para as demais zonas da cidade sujeitas ao processo

renovador pombalino, a uniformidade arquitectónica não

foi levada ao extremo, admitindo-se variações de detalhe

que, contudo, jamais puseram em causa uma ordem global.

Por exemplo, nos tramos onde era requerido maior aparato,

esses mesmos princípios travestiram-se, admitindo com

grande contenção a contaminação estilística do barroco tar-

dio. Em alguns casos, como o Rossio e o Terreiro do Paço, é

mesmo em segundas versões dos projectos que surge uma

maior vivacidade formal. São casos nos quais a versão edifi-

cada foi já desenvolvida por uma segunda geração de pro-

jectistas que, como Reinaldo Manuel dos Santos e pese

embora o estatuto de engenheiros militares, tinham entrado

para a profissão através de portais formativos claramente

do âmbito da arquitectura, como o foi a Casa de Riscar do

estaleiro de Mafra e, claro, a própria Casa do Risco das

Obras Públicas de Lisboa.

Serão esses os personagens activos em acções como Vila

Real de Santo António, Porto ou Coimbra, aí vincando, com

método idêntico, mas expressões formais diversas, a rele-

vância, a prazo, do processo da Baixa como elemento rege-

nerador da própria escola portuguesa. Serão estes, mas tam-

bém outra gente, com formação ou proveniência externa,

quem levará a cabo a concretização de sistemáticas, mas

inevitáveis, violações do plano, na necessária apropriação

que dele foram fazendo uma burguesia endinheirada e a

escassa nobreza que acabou por se decidir a regressar ao

renovado centro da capital. Mas disso falar-nos-á, com cer-

teza e com maior propriedade, a minha colega neste painel.

Segundo uma perspectiva de quem é quem por entre os

técnicos envolvidos no processo do planeamento e imple-

mentação da reconstrução de Lisboa, tudo se nos apresenta

como um peculiar teatro de operações, no qual entram e saem

de cena, de proveniência e para destinos diversos, algumas

dezenas de personagens com patentes, estatutos e funções

variados. Só isso chega para nos fazer vislumbrar a existên-

cia de uma escola que encontra no processo da Baixa o anún-

cio do projecto politico pombalino pelo qual seria ideologi-

camente instrumentalizada.

Para tal foi também fundamental o papel desempenhado

pelos gestores políticos do processo. Para cada um dos

diversos teatros de operações era nomeado um responsável

politico, na maior parte dos casos designado como gover-

nador, mas em alguns como reformador. Em Lisboa foi o

próprio Marquês de Pombal. Também nisso a prática não

era nova. Por exemplo, no processo de reconhecimento,

demarcação e urbanização da Amazónia, entrara em acção

em 1751 Francisco Xavier de Mendonça Furtado, que em

1759 cessou funções para ocupar o lugar de Secretario de

Estado da Marinha e Ultramar, mudança proporcionada

por seu irmão, o futuro Marquês de Pombal e já então

Conde de Oeiras.

Mas o plano de 1756 para a Baixa de Lisboa tem também

referentes internacionais que nem sempre têm sido valori-

zados. Impõem-se, em primeiro lugar, os casos explicita-

mente referidos por Manuel da Maia nas suas três memó-

rias descritivas e justificavas – a Dissertação – do processo de

[36] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 37: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

apuramento do plano: Turim e Londres. Eram casos óbvios.

O primeiro porque, para além das então estreitas relações

da monarquia portuguesa com a Casa de Sabóia, coubera

precisamente a Filipo Juvarra – com quem trabalhara em

Lisboa – o projecto da última fase do processo de ensanches

que corporizou a monumentalização da capital do

Piemonte. O segundo caso porque, para além da relação

óbvia entre as catástrofes provocadas pelo Terramoto de

Lisboa (1755) e pelo Grande Incêndio de Londres (1666), esta

ocorrera durante a governação de Carlos II, casado com

Catarina de Bragança que, após a viuvez (1685) regressara a

Lisboa com um séquito ao qual se continuaria a juntar uma

considerável e influente comunidade inglesa estimulada

por acordos comerciais bilaterais, como os de 1654 e de

1703. Por outro lado, o próprio Marques de Pombal iniciara

a sua carreira politica como embaixador em Londres num

período em que, não só a reconstrução de Londres ainda

decorria, mas também os trabalhos dos Wood em Bath esta-

vam em curso.

Essas referências de Manuel da Maia foram feitas para

acentuar a dificuldade e ineditismo do caso que tinha em

mãos: em Turim tratara-se de acrescentar à cidade velha

cidade nova; de Londres não lograra obter mais informação

do que a de um mapa que demonstrava a regularidade da

malha. A verdade é que os planos, como o de Christopher

Wren, para Londres não tiveram execução e que o caso de

Turim havia sido importante para o planeamento da reno-

vação ante-Terramoto, mas com os efeitos deste já não pode-

ria ser utilizado como modelo. Em outra passagem, a refe-

rencia a Turim e a Londres é apenas feita a propósito dos

problemas levantados pelo cadastro e pela propriedade. Um

facto curioso é o da grande preocupação de Manuel da Maia

com a implantação e organização das padarias, as quais

determinou implantar na Calçada de S. Francisco como

muros de suporte contra o talude, do que nos dá boa conta

o correspondente projecto. A verdade é que o Grande

Incêndio de Londres tivera o seu início numa padaria.

Parece-me, pois, que a modéstia de Manuel da Maia tem

o seu quê de falso. Uma vez mais na Dissertação e a propósito

da secção-tipo para as ruas, cita o urbanismo inglês, desta

vez de forma vaga, referindo as questões da proporção e do

programa em termos que lembram Laugier no Essai sur

l’Architecture, publicado em Paris em 1753 com um sucesso

fulminante. Aliás, não é apenas esse o trecho a lembrar as

propostas de Laugier, mas também os 5 desenhos que acom-

panharam a planta de síntese do plano para a Baixa, a varie-

dade e complexidade morfológica da composição planimé-

trica e, também, dos alçados, como já há pouco referi. Essa

referência vaga a Inglaterra poderia ter como pano de

fundo diversas realidades, entre as quais me permito aqui

destacar a regulamentação (as duas Act of Rebuilding City)

com a qual, quase sem traçado urbano global previamente

desenhado – urbanismo regulado – efectivamente se recons-

truiu a cidade.

Dos pontos de vista morfológico e arquitectónico,

podem sempre ser referidas outras experiências semelhan-

tes, contemporâneas às de Lisboa, como os casos franceses

de Reims, Lyon, Bordéus, Nancy e Nantes. A verdade é que as

especificidades atrás enunciadas e a tradição arquitectóni-

co-urbanística da escola portuguesa de Engenharia Militar

jamais terão servido de impedimento para o conhecimento

e integração do que de mais inovador e interessante se fazia

[37] A Baixa de Lisboa no Contexto do Urbanismo Português

Page 38: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

no exterior. Existe de facto uma articulação internacional

do processo de renovação urbanística da Baixa, a qual carece

de um aprofundamento capaz nesta acção para a sua even-

tual candidatura a Património da Humanidade.

Por último parece-me relevante aqui deixar destacados

alguns aspectos do plano da Baixa de 1756 relacionados

com as questões da memória colectiva da comunidade.

É que, em geral, faz-se uma interpretação da intervenção

então programada e levada a cabo na Baixa como algo

feroz, que fez tábua rasa da pré-existência. É uma leitura

errada. Pese embora a racionalidade e regularidade do pro-

jecto, integrou a estrutura e os elementos essenciais da pré-

existência destruída. Tais são os casos das praças, da articu-

lação das três principais ruas norte sul com a rua paralela

ao rio por trás do Terreiro do Paço, do arquétipo formal e

locativo dos torreões, etc. A tradicional uniformidade de

uma quadrícula ou reticula de uma new town colonial cedeu

lugar a uma clara, mas forte, hierarquização viária, a qual

consagrou a tradicional permeabilidade e valorização

cadastral diferenciada do sistema rua-travessa.

Essa preocupação na reinvenção da malha urbana pré-

existente surge-nos mais clara através da progressividade

das seis soluções de desenho apresentadas, de entre as quais

a adoptada é a quinta dessa escala progressiva de abstrac-

ção. É também a principal razão para aquilo que, em minha

opinião, é menos conseguido: a proporção entre massa e

vazio em cada um dos quarteirões. Com efeito, mesmo aten-

dendo aos padrões da época, a proporção entre o espaço

público, o edificado e o logradouro é absolutamente estra-

nha, com assinalável deficit para o último. É uma caracte-

rística que não se encontra nas malhas então compostas

para o Brasil, mas que acabará por contaminar Vila Real de

Santo António. Claro que são casos onde a altura das edifi-

cações excedeu, por vezes consideravelmente, a determina-

da pelo plano, também assim se perdendo a proporção que

tanto preocupava Manuel da Maia na sua Dissertação. Parece-

-me que tudo isso também se pode explicar pela necessidade

de repor os índices de edificabilidade e de frentes urbanas

existentes na zona intervencionada antes do Terramoto.

Também no que diz respeito à rede eclesial se verifica

um interessante programa de reordenamento. É quase mítica

a ideia de que Eugénio dos Santos, no leito de morte,

temeu ser castigado pela facto de ter suprimido um consi-

derável número de templos anteriormente existentes no

tecido urbano da Baixa. Claro que se não pode aceitar que

uma tal acção se tenha ficado a dever ao seu arbítrio, mas

por outro lado o facto em si contém algo de exagerado, pois

a supressão disse essencialmente respeito a pequenas cape-

las e ermidas. Mantiveram-se, porém, as principais evoca-

ções. O que a esse respeito se revela determinante no plano

é a decisão de integrar todas as igrejas na disciplina urba-

nística global, não permitindo a sua individualização volu-

métrica. Com alguma dificuldade, igual é logrado no que

diz respeito a estruturas conventuais.

É extraordinariamente interessante o jogo feito para o

reaproveitamento de elementos arquitectónicos qualifica-

dos, aplicando-se portais em locais diversos da origem

(Patriarcal/S. Domingos, Misericórdia/Conceição), conver-

tendo uma capela lateral de um templo destruído em capela

mor de um feito de raiz (Conceição), etc. Mais interessante

é o caso do Convento do Corpus Christi, o qual continha

[38] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 39: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

uma das mais interessantes igrejas de planta centralizada

portuguesas. Não foi destruída e está ali, no ponto onde a

Rua dos Fanqueiros abre num tímido largo de cunhais

chanfrados que é vulgar dizer-se ser uma evocação tardia do

ensanche de Barcelona concebido por Ildefonso Cerdá.

Nada disso, o alargamento através do chanfro do ângulo dos

quarteirões, decidido após a elaboração do plano inicial,

surgiu em função daquela planta centralizada e por forma

a, discretamente, anunciar a presença do convento. Uma

decisão absolutamente normal no âmbito da implementa-

ção e gestão de um plano.

Por tudo quanto o que acabo de enunciar a Baixa

Pombalina pode também ser entendida como o espelho e a

prova de uma inteligência e uma sensibilidade patrimonial

algo inusitada para a época. A esse propósito convém não

esquecer outros indícios como a percepção e registos reali-

zados sobre as estruturas subterrâneas romanas na Rua

da Prata ou sobre o Teatro Romano na colina do Castelo.

Mas sobre o interesse e salvaguarda do património da

Antiguidade Clássica já em 1721 D. João V havia legislado,

acto inovador mesmo no âmbito europeu.

Enfim, as considerações que aqui deixo destinam-se

essencialmente a elencar um conjunto de questões e linhas

de investigação que, por sua vez, terão de constituir-se em

temas de reflexão, no âmbito do processo de reabilitação

que se impõe. São ideias e materiais que dotaram o plano de

1756 para a Baixa de Lisboa de uma densa complexidade

conceptual, cultural e simbólica. E não podemos olvidar-

nos de que essa complexidade também se fundamenta no

facto de o império português ter uma importância e um

enquadramento mundial que, num momento de candi-

datura mundial, obviamente não podem ser descartados.

A Baixa Pombalina não pode ser isolada e considerada como

um fenómeno autónomo, apenas urbanístico ou somente

português. A Baixa, que só é Pombalina em termos de his-

tória politica e das ideias, é de Lisboa mas pertence a todo

o Mundo.

[39] A Baixa de Lisboa no Contexto do Urbanismo Português

Page 40: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

A Baixa Pombalina:da inovação ao mito

João Appleton

Page 41: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

[41] A Baixa Pombalina: da inovação ao mito

O terramoto de 1 de Novembro de 1755, que assolouo País e, em particular, as regiões do Algarve e daCosta Atlântica, incluindo Lisboa e Vale do Tejo,permanece ainda hoje como uma das catástrofesnaturais de maior violência, entre outras razõesporque destruiu uma cidade rica de História que,

Representação esquemática dos váriosdetalhes característicos da “gaiola

pombalina”.APPLETON João, Reabilitação de edifícios

antigos, Lisboa, Orion, 2004.

Page 42: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

num repente, se viu privada de vidas, de propriedades

e de riquezas.

Num Portugal entorpecido e estagnado, que vivia e se

endividava, depois de enriquecer à custa da seda e da

pimenta da Índia, do ouro e dos diamantes do Brasil,

e sempre dos escravos de África, o terramoto teve entre-

tanto duas consequências secundárias, porventura mais

relevantes para o seu futuro e interligadas.

O aparecimento de Sebastião José, futuro Marquês de

Pombal, como homem forte do poder do rei (e do seu pró-

prio), conduz a um período único de reformas que infeliz-

mente mal sobreviveram à morte de D. José I, ao mesmo

tempo que determina a existência da vontade de recons-

truir a capital através de processos certamente revolucio-

nários.

A construção da Baixa da cidade, coração económico

e cultural da capital do Reino, surge de uma vontade

e não de um acaso, como facilmente se depreende das

dissertações do velho Manuel da Maia que, ponderando

embora outras soluções, não deixa de facto alternativa

para que a reconstrução se faça noutro local (Ajuda,

Belém) ou segundo modelos de pura restituição da cidade

pré-existente, como veio a suceder em zonas que o tempo

tornara marginais e onde se mantém a estrutura urbana

herdada dos árabes e que pouco se alterou desde a Idade

Média.

De facto, há muito, desde o início de quinhentos, a cen-

tralidade de Lisboa já não se localizava na velha urbe

demarcada pela escassa cerca Moura, nem mesmo se refe-

renciava pela massa edificada no interior do perímetro da

muralha Fernandina.

Com a construção do Paço da Ribeira, da Casa da Índia

e da Alfândega para ocidente, todo o poder se desloca tam-

bém e terá até valor simbólico o facto de o Palácio dos

Condes de Cantanhede, Marqueses de Marialva, ter até

sido edificado fora das muralhas, mas bem junto às impor-

tantes Portas de Santa Catarina.

A decisão de reconstruir a cidade, ao invés de construir

uma nova Lisboa, representa pois a vontade de não perder

referências geográficas e históricas, deixando para mais

tarde a explosão urbanística que veio, finalmente, expan-

dir a cidade para Norte. Mas isso veio a suceder mais de

100 anos depois e não vem ao caso.

Certo é que se poderia pensar (e com legitimidade) que

essa decisão não teria sido fácil, por várias razões. Lisboa

era, na zona correspondente ao que se chama a Baixa

Pombalina, desenvolvendo-se entre o Terreiro do Paço

(ou Praça do Comércio) e Rossio e entre a Rua da Madalena

e o Chiado, um complexo problema de propriedade urbana,

dividida entre grandes proprietários aristocráticos (como a

casa Cadaval) e um sem número de proprietários de peque-

nos lotes encravados entre ruas estreitas, becos e vielas.

Por outro lado, se aquela zona tinha sido a mais dura-

mente atingida pelo sismo e pelo “tsunami”, era porque

geologicamente era pouco conveniente para nela se cons-

truir, sobretudo quando se foram ocupando as zonas lodo-

sas e aluvionares do antigo esteiro e das ribeiras que nela

corriam.

Tudo apontaria portanto para que se optasse por uma

reconstrução noutro local mais simples do ponto de vista

fundiário e mais seguro em termos geológicos; e, caso se

insistisse na reconstrução no mesmo local, sem dúvida

[42] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 43: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

seria muito mais simples, menos perturbante, recuperar a

urbe perdida, com pequenas reformas aqui e ali, um beco

que se eliminava, uma rua tortuosa que talvez se pudesse

alinhar e pouco mais.

Escolheu-se pois o caminho mais difícil: não se aban-

donou a zona destruída, antes sobre ela (em sentido pró-

prio) se construiu uma cidade nova e não se respeitou,

com poucas excepções, o urbanismo e as construções pré-

existentes; pelo contrário, com alguma delicadeza mas

muito mais firmeza, traçou-se uma malha regular baseada

nas duas praças de Lisboa, o Rossio popular e o Terreiro do

Paço, majestático, interligadas por uma malha de base

ortogonal, de ruas largas e direitas ladeadas de edifícios

de uma regularidade quase monótona.

Decerto o percurso não foi parco em escolhos e é fácil

adivinhar a difícil negociação de contrapartidas com os

proprietários que terão levado, inclusivamente, a que se

subisse a cércea máxima recomendada por Manuel da

Maia.

Mas, sabendo que a aristocracia detinha parte de leão

desse território é simples entender que aqui foi vencida

pela vontade de Sebastião José, o menosprezado e afidal-

gado Carvalho de Rua Formosa, de genealogia duvidosa,

começando aí, porventura uma luta pelo poder do rei que

culminaria, na relação com a nobreza, com o processo dos

Távoras.

Depois desta árdua batalha admira que ainda tenha

sobrado energia e vontade para criar algo de novo, cuja

força se revelou tão poderosa que veio de facto a concreti-

zar-se, com poucos desvios, embora para tal tenham sido

necessários mais de cem anos.

A inovação da Baixa PombalinaO racionalismo do desenho do desenho da Baixa

Pombalina, baseada no traço de Eugénio dos Santos, Carlos

Mardel, e outros arquitectos e engenheiros, não é, em si

mesmo inovador, nem a nível nacional nem, muito menos

a nível europeu.

Outros tratarão o tema com outro rigor e outra profun-

didade mas basta lembrar que o Bairro Alto, primeira gran-

de expansão da cidade para fora da muralha Fernandina

ocorre a partir do século XVI, consequência natural de

transferência de centralidade da capital, já aí se notabili-

zando pelo definitivo abandono da malha urbana árabe e

medieval; pela Europa fora multiplicaram-se os exemplos

de “novas” cidades, construídas com a mesma racionali-

dade, nos séculos XVII e XVIII.

Inovador é, na cidade, o estabelecimento de uma rede

infraestruturada de ruas e de esgotos, mas só o é porque

Lisboa era uma cidade muito pouco evoluída em termos

europeus, que tinha mesmo regredido, nestes aspectos, em

relação às heranças romana e árabe.

Inovador é o conceito de quarteirão constituído por

uma aglutinação de lotes de dimensões variáveis mas

sempre subordinados ao módulo base que era o palmo,

medida que aliás regra também a largura das ruas da

Baixa; o quarteirão formando geralmente um rectângulo

(às vezes um trapézio) fechado, com saguão central,

é como que um único edifício, marcado pelo alinhamento

de varandas, sacadas, cimalhas e beirados, uma espécie

de grande palácio, que apenas nega esta condição pela

singeleza e pela simplicidade, porventura excessiva,

das suas fachadas.

[43] A Baixa Pombalina: da inovação ao mito

Page 44: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

Mas este sinal de inovação, hoje mais dificilmente des-

cortinável no local, tantas e tão violentas têm sido as agres-

sões à estrutura original destes quarteirões, tem natural-

mente outras lógicas e outras consequências.

A regularidade das fachadas, tanto em comprimento

como em altura, tão criticada na altura pela sua falta de

ambição, pela sua “pelintrice”, tem um significado pro-

fundo quando se pensa que, na Baixa, se tratava de recons-

truir o coração de uma cidade que um terrível terramoto

destruíra.

Essa monotonia significa que as paredes exteriores des-

tes edifícios/quarteirões têm uma distribuição homogénea

e regular de resistência mecânica, que não é perturbada

pela redução da largura de pilastras de alvenaria ou pela

variação da altura das mesmas; ou seja, esta monotonia res-

ponde, por inteiro, às preocupações expressas por Manuel

da Maia que aliás, tinha dos portugueses uma visão pouco

optimista no que se refere à disciplina urbana e ao civismo.

A coordenação dimensional imposta deste modo tem

ainda outras consequências igualmente inovadoras no País:

a repetição, até à exaustão, das medidas de cunhais, socos,

cimalhas, portas e janelas permitiam uma produção seriada,

prefabricada, de elementos de cantaria, constituindo um

prodígio de industrialização da construção a que, passado

o período pombalino, os portugueses se mostraram tão

avessos, ao longo de todo o século XIX e mesmo em largos

períodos do século XX.

Claro que a prefabricação não era uma novidade absolu-

ta mas nunca aplicada a esta escala, e com tanta persistên-

cia, que permaneceu em quase toda a Baixa bem para lá do

período pombalino, durante mais de cem anos.

Regradas as fachadas com tão estrito rigor, a arquitectura

interior fica também muito espartilhada, embora com

graus de liberdade, apesar de tudo suficientes; a comparti-

mentação interior baseia-se em paredes de frontal tecido

orientadas paralelamente às fachadas (recebendo os viga-

mentos de madeira dos pisos) e perpendicularmente a estas

(desempenhando essencialmente funções de travamento

sísmico), ligando fachadas, empenas e saguões.

A profundidade do lote determinaria o número de fiadas

de paredes paralelas às fachadas e, portanto, o número de

divisões das casas.

Inovadora é também esta organização interior, total-

mente baseada em malhas ortogonais de paredes de fron-

tal; a inovação não está na utilização das paredes de frontal,

“tabiques” constituídos por reticulados de prumos, traves-

sanhos e escoras de madeira com os espaços remanescentes

preenchidos por alvenaria de tijolo ou de pedra miúda.

Inovador é o racionalismo com que este elemento é usado,

segundo regras em que a simetria é essencial (mais uma vez

um requisito sísmico relevante), como essencial é a garantia de

interligação perfeita entre frontais ortogonais, entre estes e as

paredes de alvenaria (com integração de “gaiolas” de madeira

e fixações com mãos e com pregagens de ferro) e entre paredes

e pavimentos, através de frechais e contra-rechais.

Inovadora é a obstinação no uso do módulo na definição

das distâncias entre prumos e entre travessanhos, que per-

mitia também produzir para stock ou importar grandes

quantidades de peças de dimensões idênticas.

Isto quer dizer que, sendo verdade que já no século XVI e

XVII se utilizavam na construção de edifícios as paredes de

frontal, cujo êxito decerto se ligava à boa combinação entre

[44] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 45: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

a flexibilidade da madeira e a rigidez da alvenaria, é na

construção chamada de pombalina que parece ter-se enten-

dido, na sua plenitude, as capacidades das estruturas assim

construídas, desde que fossem garantidas interligações efi-

cazes. Não custa a crer que os melhoramentos introduzidos

na construção da Baixa tenham tido origem na observação

cuidadosa do comportamento dos edifícios e suas partes

durante a ocorrência do grande terramoto, análise que terá

permitido detectar e identificar com clareza os pontos fortes

e fracos das soluções correntemente usadas, reutilizando

e aperfeiçoando os primeiros e eliminando os segundos.

Esta verdadeira obsessão pela coordenação de dimensões

não se aplica somente às estruturas, antes arrasta toda a

construção, incluindo os seus acabamentos.

Exemplar do carácter inovador com que tal foi encarado é

o uso prolixo do azulejo de padrão geométrico (às vezes figu-

rativo), de formato normalizado com cerca de 14 cm x 14 cm,

em tons monocromáticos de azul ou de cor-de-vinho ou poli-

cromáticos com abundância do azul e do amarelo, usados

como lambris em escadas, átrios de entrada e compartimen-

tos, naturalmente com hierarquias de decoração que varia-

vam com os proprietários das casas e com as zonas onde

eram aplicadas, destacando-se pela sua qualidade plástica os

painéis aplicados nos andares nobres e nas ruas principais.

O uso banalizado do azulejo em interiores a que vem a

seguir-se, sobretudo a partir dos finais do século XVIII, a sua

aplicação em paramentos exteriores, não será alheia

vontade de incentivar a produção cerâmica nacional, numa

lógica muito pombalina de desenvolvimento e de proteccio-

nismo industrial, destinados a libertar o país da dependên-

cia estrangeira.

Os MitosA construção da Baixa Pombalina está também, como quase

tudo no País, envolta em cortinas de nevoeiro, estas com-

postas por mitos que, à força de tentarem engrandecer a

tarefa hercúlea da reconstrução, acabam por criar polémi-

cas e dúvidas que, contraditoriamente, a podem apoucar.

O primeiro mito, sucessivamente suscitado em diversas

ocasiões, consiste na ideia de que a construção da Baixa foi

um acto único, ciclópico, que começou e acabou com o con-

sulado de Pombal, cuja eficácia tem sido glosada ao longo

do tempo para contrapor à inacção dos responsáveis políti-

cos contemporâneos.

Pelo contrário, a construção foi um acto penoso, contra-

ditado e amesquinhado no início, mal compreendido a meio

caminho e que nem mesmo chegou ao fim, como se verifica

com a existência de edifícios distintos (pouco, embora) cons-

truídos de raiz no final de oitocentos, na malha desenhada

por Eugénio dos Santos.

Isto significa que o plano projectado a partir de 1756

demorou mais de um século a ser implementado e só sur-

preenderá que, apenas com ligeiras diferenças, tenha resis-

tido tanto e tão bem ao passar do tempo, das modas e dos

poderes.

O segundo mito, sustentado sobretudo por ignorantes

básicos de história e de construção, é a ideia de que a cons-

trução pombalina, tal como se caracteriza, foi uma criação

súbita, uma invenção de um ou mais dos grandes arquitec-

tos cujo nome ficou, com justiça, associado ao arranque da

reconstrução.

Nem Manuel da Maia, velho e sábio, nem Eugénio dos

Santos, trabalhador infatigável, nem Carlos Mardel, oriundo

[45] A Baixa Pombalina: da inovação ao mito

Page 46: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

da Europa culta, teriam possibilidade de congeminar, a par-

tir do nada, a tecnologia destas construções. Não poderiam

fazê-lo, nem seria necessário, porque não se inventa o que já

está inventado, e é certo que todos os materiais e tecnologias

usados na construção pombalina eram há muito correntes

no País e na Europa, com mais ou menos variantes.

A construção pombalina é, como já se disse, e não é

elogio menor, um exemplo da racionalização e de explo-

ração inteligente do melhor dos conhecimentos existen-

tes, aplicados com rigor e com qualidade incomuns num

País pouco habituado, como ainda hoje, a uma cultura de

exigência.

O terceiro mito, o mais especulado, sobretudo em tem-

pos recentes, é o da invenção das fundações dos edifícios

sobre estacaria de madeira, de onde deriva a maximização

da importância desta estacaria e, portanto, dos riscos asso-

ciados à sua destruição, por exemplo, por efeito da variação

dos níveis freáticos tradicionais da Baixa.

Naturalmente, como antes se referiu sobre a construção

no todo, o uso de estacas de madeira não constituía novidade

alguma na execução de fundações, tradição milenar quando

se construía sobre solos pobres, por exemplo em zonas

alagadiças.

Em Lisboa, muitas construções anteriores ao reinado

Josefino, usaram estacas de madeira; bom exemplo, e recente,

foi verificado, na escavação efectuada na Praça da Figueira

para execução do parque de estacionamento aí localizado,

quando foram postas a descoberto estacas de pinho, de dife-

rentes comprimentos, cravadas sob paredes do Hospital

Real de Todos-os-Santos, construídas notoriamente antes

do terramoto.

Além disso, não é nada certo que as estacas de madeira

constituam fundação das construções, sendo muito mais

provável que, em grande número de casos, as estacas de

madeira tenham sido cravadas com a função de assegura-

rem a compactação dos solos mecanicamente fracos (ater-

ros, aluviões, lodos) que se encontravam à superfície.

Isto significará que as estacas tinham uma função essen-

cial na fase pré-construção, permitindo melhorar drastica-

mente as características mecânicas dos solos compactados

(resistência, deformabilidade), sendo a partir daí o seu

papel estrutural de muito menor relevância.

Se dúvidas há sobre esta hipótese, basta verificar que

num mesmo edifício se encontram estacas de madeira dos

mais diversos comprimentos, muitas vezes nem de perto,

nem de longe, atingindo os estratos mais resistentes do

solo (o firme).

Aliás, é curioso constatar que tendo as estacas geralmente

comprimentos entre pouco mais de 1 m e cerca de 6 m,

foram cravadas em zonas em que os terrenos “naturais”

estão a dez, vinte ou mais metros de profundidade.

ConclusãoA reconstrução da Baixa Pombalina foi sem dúvida um acto

criador da maior relevância, notável enquanto desígnio de

planeamento urbano, arquitectónico e construtivo, de pro-

fundo e raro racionalismo num País muito mais habituado

à prevalência do acaso e do improviso.

A Baixa, com toda a sua carga inovadora e mitológica,

é hoje uma sombra do coração económico e comercial da

capital do Reino que se destinou a ser.

[46] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 47: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

A incompetência e a ganância do homem, do lisboeta

de raiz ou de importação, transformaram para lá do

limite do suportável, a imagem da Baixa e esconderam as

suas enormes virtudes e potencialidades.

Ao progressivo abandono da habitação, à invasão

do comércio e serviços, muito além do necessário e tole-

rável, associou-se à vontade de alterar, tantas vezes

ditada por fúteis e passageiras inspirações modistas,

ao mesmo tempo que a especulação tomou também ali

o freio nos dentes, justificando ampliações e destrui-

ções que puseram em causa, objectivamente, o futuro

da Baixa.

Já não resta um quarteirão intacto e os edifícios inteira-

mente originais desaparecem lentamente, um a um, bem

defronte dos nossos olhos.

Se não é possível voltar atrás, emendando todos os erros

cometidos é ainda viável, com grande esforço e determina-

ção, requalificar a Baixa e restituir-lhe a dignidade perdida.

Repete-se, apenas como reparo, que o acto de criação

da Baixa foi, antes de tudo, um exercício de vontade e que,

para a concretização desse exercício foi necessário contar

com todos, mas foi igualmente essencial lutar contra

muitos. E, se é verdade que a História não se repete, é con-

veniente repetir o que a História ensina.

[47] A Baixa Pombalina: da inovação ao mito

Edifício Pombalino, APPLETON João, Reabilitação de edifícios antigos, Lisboa, Orion, 2004.

Page 48: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

A Arquitecturada Baixa Pombalina:

Cem anos de História

RaquelHenriquesda Silva

Page 49: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

De acordo com o projecto de Eugénio dos Santos,a reconstrução da Baixa Pombalina e áreas limítrofesrevestiu duas vertentes: o traçado de um conjuntooperativo de ruas e praças, que redesenharamo território afectado, e uma arquitectura deprograma, proposto e desenvolvido através de

[49] A Arquitectura da Baixa Pombalina: Cem anos de História

Projecto do lado Norte da Rua Travessa de Santa Justa desde o Cunhal

da Rua Áurea até à Rua do Carmo,Cartulário Pombalino.

Page 50: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

dispositivos de hierarquização que sublinhavam e simboli-

zavam as intenções urbanísticas. Trata-se, portanto, de um

projecto com um elevado grau de coesão, técnica, arquitec-

tónica, estética e funcional, adequado à situação de catás-

trofe que lhe deu origem, respondendo-lhe com a intenção

utópica de refazer a cidade.

Como se sabe, mesmo no período de gestão da recons-

trução durante o consulado pombalino, ou seja até 1777,

alterações significativas foram introduzidas no projecto

aprovado. Nomeadamente no Rossio, cuja arquitectura, pro-

jectado por Carlos Mardel e Reinaldo dos Santos, propôs

algumas soluções de enriquecimento imagético1, primeiro

sinal de que o «estilo frio» de Eugénio dos Santos se deveria

abrir aos valores culturais do tempo, marcados por um

gosto ecléctico onde é possível detectar-se a mutação do bar-

roco para o rococó, suportado por uma sensibilidade cres-

centemente pré-romântica.

Para concretizar esta reflexão, refira-se, como exemplo

extremo, o início da reconstrução da igreja do Convento do

Carmo, em 1757, que os frades desejaram fazer em gótico e

cuja falta de meios e de saber técnico2 – e depois a extinção

das Ordens Religiosas, em 1834 – nos legaram, como herança

definitiva, a figura cenográfica das ogivas descarnadas (que

são reconstruídas e não sobreviventes do terramoto), espé-

cie de céu romântico do chão planimétrico e austero da

Baixa em reconstrução.

Mas não foi este gesto extremo que pautou as progressi-

vas fugas ao prospecto pombalino da reconstrução de

Lisboa. Elas vão ocorrendo, sem espectacularidade nem teo-

rização, pelo menos a partir de 1777, quando se inicia o rei-

nado de D. Maria I que, no entanto, não foi – ao contrário

do que proclamou a historiografia romântica e que muitos

continuam a proclamar sem sustentação objectiva – a

Viradeira do pombalino3.

A verdade é que, no momento da expulsão do Marquês,

a edificação das principais ruas da Baixa se encontrava

muito longe de estar concluída, à excepção da Rua Augusta.

Não sendo possível dispor ainda de uma quantificação

segura nesta matéria4, os fundamentais Livros da Décima

da Cidade permitem considerar que a afirmação de José-

Augusto França – em 1777, estaria reconstruída “quer um

pouco mais de metade, quer um terço da cidade”5 – deve ser

considerada na sua segunda possibilidade e, mesmo assim,

talvez seja excessiva.

Sem me deter nas razões do atraso e do arrastamento das

obras – previstas, como se sabe, para ficarem concluídas

em cinco anos, após a assinatura da respectiva obrigação6 –

devemos considerar que elas foram determinantes para

que, na arquitectura programática de Eugénio dos Santos,

fossem sendo introduzidas progressivas alterações.

Entre as mais imediatas e generalizadas, cite-se a sistemá-

tica substituição do 4º andar de mansardas por um andar de

pé direito com “varanda geral” que, logo em 1783, o arqui-

tecto Francisco António Ferreira justificava como medida

de economia de construção e rentabilização dos futuros

alugueres7. Ao longo das décadas seguintes, e século XIX

adiante, quando ainda se constroem prédios iniciais ou se

reconvertem outros, os cinco andares serão ainda muitas

vezes acrescidos de mais um.

Fora da área restrita do «xadrez» da Baixa, sobretudo no

Chiado e envolventes, onde os prospectos pombalinos pre-

viam a construção de casas nobres ou palácios, a cidade

1] Ver Correia José Eduardo Horta, Vila

Real de Santo António. Urbanismo e poder

na política pombalina. Porto, Faculdade

de Arquitectura do Porto, 2ª ed., 1997.

2] Ver contexto em Paulo Varela Gomes,

“Traços de pré-romantismo na teoria e

na prática arquitectónicas em Portugal

na segunda metade do século XVIII”

in Romantismo – da mentalidade à criação

artística. Sintra: Instituto de Sintra,

1986.

3] Ver desenvolvimento na minha

dissertação de Doutoramento Lisboa

romântica. Urbanismo e Arquitectura,

1777-1874. Lisboa: Faculdade de Ciências

Sociais e Humanas da Universidade

Nova de Lisboa, 1997 (policopiada).

Passarei a citar esta obra por Silva, 1977.

4] Ensaiei-a, sem rigor metodológico

definitivo, na obra cit. na nota anterior.

Ver, por exemplo, 1º vol., p.37 e seguintes.

A continuação e aprofundamento deste

trabalho, que considero indispensável,

só poderá ser desenvolvido em equipa

e sobre uma “base de dados” de construção

relativamente complexa.

5] França José-Augusto, Lisboa pombalina

e o iluminismo. Lisboa, Bertrand, 1977,

p. 140.

6] Idem, ibidem, p. 309, transcrevendo

o Alvará de 12 de Maio de 1758.

7] Silva, 1997, p. 71.

[50] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 51: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

reconstruída encheu-se de marcas de diferenciação muito

profundas que vão da área dos lotes, à interrupção, sem

ordem, da malha contínua, à composição das fachadas, dos

interiores e dos logradouros.

Excepcionalmente, esta “segunda arquitectura pomba-

lina” permitiu a edificação de conjuntos de rara qualidade,

como é o caso maior dos prédios da Rua do Alecrim, na

sequência do Palácio Quintela-Farrobo e os fronteiros, após

à Travessa do Ataíde, edificados ao longo da década de 1780.

A sua marca de particularidade consiste no tratamento dos

pisos térreos, de lojas e sobrelojas, dotados de complexa e

erudita emolduração, com almofadas rectangulares que

preenchem os panos de parede e enquadram os vãos com

expressiva plasticidade, adequando-se ao cenográfico declive

da rua.

O que predominou, no entanto, nesses anos iniciais do

iluminismo mariano – mais livre e prospectivamente mais

incerto do que o pombalino – foram marcações individuali-

zadas na composição das fachadas. Por exemplo, frente à

Igreja dos Mártires, o prédio que torneja para a Travessa

Estêvão Galhardo (hoje Rua Serpa Pinto), concluído em 1782,

apresenta, nos vãos de sacada, uma molduração das vergas

superiores, desenhando uma espécie de sanefa inscrita, sim-

bolizando assim o lugar de um andar nobre que é intrinse-

camente estranho à programática predial fundadora.

Mais abaixo, na mesma Rua das Portas de S.ta Catarina,

no actual nº 66 - 74, construído em 1788 para Joaquim Pereira

Souza Peres, a ornamentação das molduras estende-se a

todos os andares e extravasa para as sacadas onduladas:

existem mísulas, fechos e frontões, propondo um enrique-

cimento lumínico que, evidentemente, manifesta um gosto

rococó, talvez proposto pelo arquitecto Manuel Caetano

de Sousa, autor da Igreja da Encarnação e, do outro lado

da futura Praça Luís de Camões, do célebre prédio do

Manteigueiro (no gaveto entre as ruas da Horta Seca e da

Emenda), concluído no ano anterior.

Na década de 1790, multiplicam-se as situações que aca-

bámos de exemplificar. É o caso dos prédios que se con-

frontam, no cruzamento da Rua e da Calçada do Ferragial,

edificados em 1795. A diferenciação construía-se pela exis-

tência de dois andares sobrepostos de sacadas, a introdução

de mísulas e fechos marcando a entrada principal e arti-

culando-a com a sacada superior, sobretudo pelos emoldu-

ramentos particularizados da totalidade ou de alguns vãos,

conjunto de recursos decorativos que eram reabsorvidos na

planimetria global e que só um olhar atento pode captar.

As opções estilísticas para esta discretíssima elaboração

da diferença estavam compendiadas e vulgarizadas e, quer

afirmassem um gosto volumétrico de ressonância barroqui-

zante – nos enrolamentos das mísulas, na ondulação das

balaustradas, nos concheados dos fechos – quer empirica-

mente anunciassem uma estética mais linearizada de suges-

tão neo-clássica – nos emolduramentos inscritos das vergas

superiores com encaixes geometrizados –, caracterizam-se,

globalmente, por uma secura do talhe das cantarias que

acentua a sua submissão à massa arquitectónica da fachada.

No entanto, as marcações ornamentais não devem ser

desprezadas porque enunciam um desejo de enriquecer e,

tenuemente, diversificar os prospectos elaborados trinta

anos antes, através de apropriações mais ou menos indivi-

dualizadas. Ou seja, elas concretizam a fuga à “monotonia

que gela” na expressão feliz de Cyrillo que seria, segundo

[51] A Arquitectura da Baixa Pombalina: Cem anos de História

Page 52: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

ele, a principal inimiga da arquitectura de Lisboa, entregue

a “pedreiro(s) ou canteiro(s) feito Architecto(s)” cujos “patro-

nos” “de boa fé” “ordenará fazendo-o subir degrau a degrau

constituindo o Architecto de sua nação com o aprendiz de

Sargento-mor ou Marechal de engenheiros”8. E embora as

discretas casas-nobres que vimos referindo não correspon-

dessem decerto ao modelo idealizado por Cyrillo – que terá

trabalhado no interior de algumas delas como decorador –,

e o seu desenho fosse com certeza devido a “canteiros” e

“pedreiros”, “feitos arquitectos” na Casa do Risco das Obras

Públicas, nem assim se pode ignorar os dinamismos em

presença e a vontade de moldar a cidade fora das normas

estritas, unificadas e centralizadas da reconstrução, sem

lhe construir alternativa mas introduzindo-lhe o pulsar de

uma sociedade que, incipientemente, se preparava para

proclamar os direitos de cada um.

À medida que se caminha para o final do século, o eclec-

tismo acentua-se no corpo da cidade reconstruída mas,

para rigorosamente o verificar, será necessário dar uma

continuidade sistemática a alguns estudos já realizados.

Além de toda área do Chiado e envolventes até às ruas das

Flores da Emenda e da Horta Seca, será preciso inventariar

a Rua da Madalena cujos primeiros prédios são posteriores

a 1800. Em alguns casos, como creio que acontece no notá-

vel nº 5-9 da Rua das Flores9, deparam-se com situações de

aproveitamento e integração de construções anteriores que,

do ponto de vista patrimonial, levantam novas questões,

permitindo aflorar tempos e factos urbanísticos e arquitec-

tónicos anteriores ao terramoto.

Por outro lado, há que considerar que as alterações bre-

vemente enunciadas não se esgotam nos prospectos de

fachadas dos prédios pombalinos. Na verdade, edificam-se,

nesses anos finais do século XVIII, algumas importantes

casas particulares de que os exemplares mais destacados

são o Palácio Quintela-Farrobo na Rua do Alecrim, já con-

cluído em 1787, quando William Beckford o visitou10, e o

Palácio Castelo Melhor, frente ao passeio Público, cuja edi-

ficação, não concluída, decorreu entre 1791 e a morte do

seu arquitecto Francisco Fabri, em 1817.

Estas duas peças referenciais da arquitectura mariana

manifestam, a primeira a continuidade de um “gosto lis-

boeta” ante-terramoto que José Sarmento de Matos conota

com o Palácio do Lavradio11, a segunda uma marca italiani-

zante de elegante estética neo-clássica, depois “barroqui-

zada”, em ciclo revivalista, pelas obras do Marquês da Foz

em finais do século XIX. Elas tiveram certamente impacto

nas práticas da arquitectura corrente, reforçando a vontade

de aformoseamento da cidade que começava a esquecer-se

da tragédia do terramoto. O mesmo terá acontecido com a

edificação do Teatro de S. Carlos, 1792, encomendado por

Pina Manique ao arquitecto José da Costa e Silva. A sua

implantação, na proximidade da bela Igreja dos Mártires de

Reinaldo Manuel, acabada de inaugurar, rompe, em largo

propositado, a correnteza da Rua Nova dos Mártires (hoje

Serpa Pinto) e articula-se dinamicamente com a Rua dos

Duques de Bragança.

Este foi o primeiro acto de alteração da malha contínua

da urbanística pombalina para o sítio mas, logo depois, o

Quintela-Farrobo abriu também um pequeno largo, frente

ao seu palácio da Rua do Alecrim, interrompendo a conti-

nuidade da Rua do Alecrim e fazendo-a comunicar com a

Rua das Flores.

8] Citado por Gomes Paulo Varela,

A confissão de Cyrillo. Lisboa: Hiena, 1992,

p.16-17.

9] Ver mais informação, mais

problematizadora do que conclusiva, em

Silva, 1997, p. 124-126.

10] Diário de William Beckford em Portugal e

Espanha. Lisboa: Biblioteca Nacional, 2ª

ed., 1983, p.163.

11] Matos José Sarmento de, “Palácio

Lavradio” in Dicionário da Arte Barroca em

Portugal. Lisboa: Presença, 1989, p. 257-259.

[52] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 53: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

Mais a cima, mantinham-se as ruínas, pobremente habi-

tadas, do Palácio Marialva, frente ao Largo das Duas Igrejas.

O projecto, que talvez Eugénio dos Santos chegou a delinear

para a sua reconstrução, nunca se concretizou e o lugar

foi ficando expectante até à década de 1860, quando a edi-

ficação do monumento a Luís de Camões lhe encontrou

uma vocação romântica, confirmando uma opção urbanís-

tica pela interrupção da malha pombalina em pequenos

espaços de lazer e convivencialidade que foram civilizando

Lisboa.

Os anos românticosQuando o Antigo Regime ruiu, na sequência da Revolução

de 1820, a Intendência Geral das Obras Públicas não deixou

de funcionar. Até 1833, a sua “Caza das Confferencias” manti-

nha “as arrematações dos chãos de Cazas que forão incendiadas

pelo incendio sucessivo ao Terramoto” e os “Inspectores dos

Bairros” asseguravam as requeridas vistorias, sob o controlo

do “Intendente Geral das Obras Publicas” “encarregado por Ordem

Regia da execução da Planta desta Cidade”, “na conformidade

do Real Decreto de 1769”. Estas funções eram exercidas,

desde 1803, pelo “Major Architecto da Cidade Joze Bento de

Sousa Fava”12.

De acordo com esta legislação e respectivos procedimen-

tos, continuava-se a desentulhar terrenos, demolir ruínas e,

com pouco sucesso, impelir os proprietários à edificação.

Ou seja, oitenta anos passados sobre o terramoto, muito

havia a fazer ainda para cumprir “o Real Decreto de 1769”.

Casos célebres de incúria, de responsabilidade aristocrática,

permaneciam, por exemplo, no lado ocidental do Rossio, no

Lago da Anunciada, na Rua das Portas de Santo Antão ou no

“Tesouro Velho” onde parte das ruínas do Paço dos

Braganças se mantinham, ainda em 1823, quando o Conde

de Farrobo queria lá construir a sede da Assembleia

Portuguesa, “albergava trezentas e tantas pessoas pobres

que abusivamente e sem título algum legítimo ali tem cons-

truído as suas pequenas barracas”13.

O tempo era de crise profunda, motivada pela indepen-

dência do Brasil e a longa guerra civil que já se adivinhava

e se prolongará até ao meio do século. Neste contexto,

houve um dramático abrandamento das frentes de traba-

lho, relacionadas com a reconstrução da cidade, e surgiram

novas e complexas urgências. Entre elas, destaca-se a fun-

cionalização de dezenas de conventos, “libertados” pela

aplicação da lei de extinção dos estabelecimentos religiosos

de 1834.

De um modo geral, poucas foram as situações de demo-

lição integral, como aconteceu com os conventos da

Trindade e dos Camilos, e, parcialmente, com o do Corpus

Christi. O que houve foi, sobretudo, reconversões internas

de usos para a instalação das novas responsabilidades do

Estado, quase sempre realizadas empírica e pobremente,

sob a pressão das necessidades, da inexistência de reflexão

urbanística global e de dramática falta de meios. Foi nestas

obras que, nos anos de 1830 e 1840, se ocuparam os arqui-

tectos das Obras Públicas, sucessores, sem particular desta-

que, do ensino de Reinaldo Manuel.

Ou seja, a nacionalização dos conventos, transformando-

-os em escolas, hospitais, quartéis, hospícios ou sedes de múl-

tiplos serviços da nova burocracia, raramente fábricas ou

casas particulares, teve um imenso impacto sociológico e

simbólico mas pouco alterou o desenho da cidade, sendo

12] Cit. in Silva, 1977, 1º vol., p. 223.

13] In Silva, 1997, p. 234.

[53] A Arquitectura da Baixa Pombalina: Cem anos de História

Page 54: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

que até as cercas muitas vezes se mantiveram. A abertura de

algumas ruas novas – a Rua Nova da Trindade, a Travessa

Nova de S. Domingos, a Rua dos Duques de Bragança ou o

alargamento da Rua do Marquês do Alegrete – não contraria

esta reflexão global, nem contestou o “plano de reconstru-

ção” que continuou a ser considerado o instrumento nor-

mativo de intervenção na cidade, mas é verdade que a ima-

gem de Lisboa se distanciava da vivência Antigo Regime e

também da lógica programática daquele plano pombalino.

Simultaneamente, a Câmara Municipal, reivindicando

direitos de que o Marquês a havia despojado, foi-se tornando

a principal instância de intervenção urbanística e arquitec-

tónica, pretendendo marcar a cidade com os valores imagé-

ticos da nova situação política. Numa espécie de fluir empí-

rico, sem teorização, assim aconteceu no Rossio onde, ao

mesmo tempo que se construíam os últimos prédios pom-

balinos no lado ocidental da Praça, em terrenos que o Duque

de Cadaval mantivera até então expectantes, se decide edifi-

car o Teatro Nacional D. Maria II, na sequência do incêndio

que, em 1836, arruinara o edifício do Tesouro Público.

Inaugurado em 1846, o Teatro passava a coroar a Praça,

marcando-a com a sua arquitectura romanticamente neo-clás-

sica, da autoria do jovem arquitecto italiano Fortunato Lodi,

escolhido com escândalo, depois de um concurso público a

que se apresentaram diversos arquitectos das Obras Públicas

sem que nenhum tivesse alcançado o primeiro prémio.

À volta, a Câmara decidiu mandar calcetar a Praça, com um

belo motivo decorativo ondulado. O monumento a D. Pedro IV,

finalmente inaugurado em 1870, depois de numerosos pro-

jectos que se sucederam desde 1822, proclama a apropriação

burguesa do Rossio, amaciando o seu claro desenho pomba-

lino com os valores difusos do urbanismo romântico.

Em toda a área da reconstrução, foram-se multiplicando

as marcas eclécticas e dispersas da modernidade: o azuleja-

mento de algumas fachadas, o enriquecimento decorativo

de muitas outras, a alteração da composição dos pisos tér-

reos para os adequar às novas necessidades do comércio que

passa a ter nas vitrinas o seu rosto estruturador.

Deste modo, a Baixa foi-se tornando o espaço de repre-

sentação da Lisboa cosmopolita sem que ninguém contes-

tasse as numerosas alterações que tal imprimiu na coerên-

cia do projecto pombalino. Nos anos finais de oitocentos,

iniciaram-se as primeiras demolições integrais para edificar

edifícios mais ostensivos que, não poucas vezes, alteraram o

próprio loteamento.

SínteseÉ evidente que Lisboa Pombalina é esta cidade herdada

onde, em tempos recentes, se acentuaram as alterações,

mais graves e menos qualificadas do que as que nos

foram legadas pelo século XIX e as primeiras décadas do

século XX.

Salvá-la e requalificá-la será também estudar, rigorosa

e sistematicamente, o tempo longo da sua edificação, mani-

festo em marcas estilísticas diversas por onde flúi a

História. Terá que ser também detectar e valorizar a polis-

semia que a constitui, inscrita na eficácia do Plano cuja

grandeza tem, por enquanto, suportado, não só as moder-

nizações de sucessivas temporalidades como, mais grave-

mente, a incúria e algumas declarações de morte.

[54] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 55: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

[55] A Arquitectura da Baixa Pombalina: Cem anos de História

Projecto das Casas da Misericórdia na Rua de Cima, Cartulário Pombalino.

Page 56: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

A Baixa Pombalina como elementoemblemático da cultura portuguesa e

imagem da sua projecção internacional

VascoGraçaMoura

Page 57: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

[57] A Baixa Pombalina como elemento emblemático da cultura portuguesa e imagem da sua projecção internacional

A frol de todas as flores…e como ela é a frol de todas as f lores, agora mais do quefoi nem é nenhuma das edificadas.João Brandão

Visita da Rainha Alexandra de Inglaterra,desembarque das princesas Maud

e Victória de Inglaterra, Praça do Comércio,23 de Março de 1905. Autor: António Novaes.

Arquivo Municipal de Lisboa – Arquivo Fotográfico.

Page 58: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

Parto da minha experiência recente de organizar uma anto-

logia de prosa e verso dedicada a Lisboa. Essa experiência

diz-me que uma antologia assim resulta sempre e necessa-

riamente numa panorâmica parcial e incompleta e portanto

numa aposta de resultado imprevisível. Sem contar com

os inúmeros textos da olissipografia especializada, pura e

dura, os casos literários de verso e prosa significativos e res-

peitantes a Lisboa também são tantos que nunca poderiam

caber numa antologia… Se, nos primórdios da nossa litera-

tura, e apesar do frémito da movimentação de massas que

anima os veneráveis fólios de Fernão Lopes, a importância

da cidade é sentida e se exprime como predominantemente

geopolítica e, depois, como imperialmente geo-estratégica

até bem dentro do século XVII, inclusivamente para aqueles

que queriam ver os Filipes transferirem a capital da União

ibérica para a foz do Tejo, já, de Nicolau Tolentino até

aos nossos dias, se pode dizer que Lisboa existe em milhares

de “situações e testemunhos de cultura” e em milhares

e milhares de páginas, do Marquês de Fronteira e Alorna

a Eça de Queirós, de Ramalho Ortigão, Cesário Verde, Fialho

de Almeida e Júlio César Machado a Rodrigues Miguéis,

David Mourão-Ferreira, Cardoso Pires, José Saramago,

António Lobo Antunes e tantos outros, como realidade his-

tórica, social, política, económica, cultural, ao sabor das

estéticas e das correntes literárias, dos estilos e das idios-

sincrasias, das ópticas de enfoque e das sensibilidades

expressivas, dos enredos e das vistas e deambulações consi-

deradas, nessa imensa “prosopopeia” por que se desenvolve

a sua presença, nas linhas ou nas entrelinhas.

Na poesia, Lisboa começa por marcar presença com as

célebres “barcas novas” de João Zorro. Mas, segundo Frei

Bernardo de Brito, também o Infante D. Pedro, o das sete

partidas, se inspirou nela. Foi até, muito provavelmente, o

primeiro poeta português a referir-lhe em verso a fundação

por Ulisses e também a afirmar a origem lisboeta da mãe do

cartaginês Aníbal…:

Perque tu foste acolheyta

Daquelle Grego sesudo

Tão matreiro

A te fez toda bem feyta

Neste logo tão sabudo

A neste oiteiro.

A depois de muitos segres

S’ergueo de tua semente

A desta terra

O Annibal Carthagês

Que ós Romãos, & sua gente

Armou guerra.

Também logo em Gil Vicente, Garcia de Resende e Camões

lhe encontramos afirmado o esplendor. É então que Lisboa

começa a existir como objecto de estudo descritivo, esta-

tístico e administrativo, e também como objecto estético.

Cerca de 1551-1554, surgem os primeiros olissipógrafos

encartados, Cristóvão Rodrigues de Oliveira e João Brandão,

este, inédito até 1923, mas que já lhe chamava “a frol de

todas as flores”… Pela mesma altura, Damião de Góis des-

creveu-a no seu latim de humanista e Jorge Ferreira de

Vasconcelos dedica-lhe uma página magnífica do Memorial

das proezas da segunda Távola Redonda (1567), em que o des-

critivo pitoresco se alia ao emblemático. É interessante

[58] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 59: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

observar aqui em que termos a mentalidade cultural vai

sendo sensível à configuração da paisagem: enquanto a

percepção do Infante D. Pedro assinala “um oiteiro”,

Ferreira de Vasconcelos vê “dois montes”. As sete colinas

ainda estão longe… Décadas mais tarde, Gabriel Pereira

de Castro explora epicamente as suas origens míticas.

E depois, a literatura tem vindo a fazer o resto.

É já nesse plano, que toma Lisboa como único tema de

referência literária, que em 1625 foi publicada em Lisboa,

na oficina de António Álvares, uma Relação em que se trata e

faz uma breve descrição dos arredores mais chegados à Cidade de

Lisboa & seus arrebaldes, das partes notáveis, Igrejas, Ermidas &

Conventos que tem, começando logo da barra, vindo correndo por

toda a praia até Enxobregas & daí pela parte de cima até São Bento

o novo.

Joaquim de Vasconcelos supunha tratar-se de um resumo

do Livro das grandezas de Lisboa, de Frei Nicolau de Oliveira,

publicado em 1620, admitindo até que fosse este o seu

autor. Esta hipótese, a ser verdadeira, envolveria uma utili-

zação dos mesmos materiais de informação para duas obras

completamente diferentes…

A impressão que se tem é a de que o autor, fosse ele quem

fosse, tinha perante si uma planta da cidade, do tipo da que

Braun e Hogenberg dedicam a Lisboa nas Civitates Orbis

Terrarum (1572), e a foi seguindo com certa minúcia e em

“perspectiva cavaleira” ou bird’s eye, detendo-se eventual-

mente nas legendas numeradas que algumas dessas plantas

traziam em rodapé e encadeando o discurso poético a par-

tir delas. Depois de um exórdio em que canta hiperbolica-

mente as grandezas e excelências de Lisboa, o anónimo

autor do folheto dá-lhe a situação geográfica genérica:

Situada no Ocidente,

na mais última das terras

que abrasada deixa o sol,

quando este hemisfério deixa;

Quase em trinta e nove graus

está situada & sujeita

a tal clima que parece

estar sempre em primavera,

e em seguida, passando a especificar, procede a uma

longa descrição muito concreta da periferia da cidade e

arredores, começando o seu percurso no sentido marginal

Poente-Nascente, e por isso vindo desde S. Julião da Barra e

Belém até à Madre de Deus e Xabregas, depois inflectindo

na direcção de Alvalade, S. Domingos de Benfica e Odivelas,

“e daí pela parte de cima, até S. Bento Novo”. O itinerário

segue portanto uma espécie de “espiral topográfica” que se

desenvolve da esquerda para a direita, detendo-se em cada

freguesia e respectivos monumentos, com especial destaque

para os lugares do culto e para um sintético enunciado das

funções, religiosas ou profanas, de cada construção ou ins-

tituição. Por vezes, há notas que se diriam de sugestivo

apontamento de reportagem, como esta:

A praia logo de Alfama

se mostra mais descoberta

& o lugar onde ancoram

suas lindas caravelas.

As muitas que aqui se ajuntam

em qualquer dia de festa

com as âncoras ao mar

[59] A Baixa Pombalina como elemento emblemático da cultura portuguesa e imagem da sua projecção internacional

Page 60: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

& as proas postas em terra,

Fazem vista tão aprazível

& tão galharda presença

que julgareis que Neptuno

coroado vos festeja.

O texto é tipicamente barroco, em forma de romance

heptassilábico de rima toante, e torna-se sem dúvida enfa-

donha a leitura de uma só vez dos seus mais de mil versos,

com a repetição invariável, que acaba por ser mecânica, das

mesmas assonâncias. Mas há vários segmentos que escapam

a essa monotonia e que são excepcionais de vivacidade e

sentido do concreto, como os pontos em que se põe em relevo

a importância da relação da cidade com o rio e o mar, ou

aquele em que se faz a descrição dos armazéns da Casa da

Índia onde se acumulam as riquezas e os produtos vindos

do Oriente e também os

búzios, bárbara moeda

de Etíopes africanos

de retrocidas guedelhas,

ou ainda a parte relativa ao mercado da Ribeira, com as

bancas das fruteiras, das peixeiras, das hortaliceiras e

outras, aqui e ali com observações saborosas e anotações de

costumes, como esta:

Têm tal arte no vender

as salgadas pescadeiras

que o que vêm a dar por dez,

pedem por ele noventa.

E se acaso lhe acontece

haver pouco quem prometa,

ou respondem com anexins,

ou com palavras soberbas.

Esta regra é mui seguida

por todas as regateiras

que pouco estimam vender

com seu trato a consciência.

O pormenor chega às latrinas públicas, aludidas numa

perífrase de engenhoso conceito:

A casa de Jorge Seco

& não é piquena grandeza,

que para acções naturais

haja públicas secretas,

mas as fortificações referidas são apenas as ribeirinhas e

do castelo de S. Jorge não chega a falar-se. O autor ficou-se

pela periferia urbana. Foi isso o que ele viu e registou.

Entretanto, o olhar literário sobre Lisboa foi-se alterando

ao longo dos séculos. Depois do terramoto de 1755, a cidade

passou a ser encarada a partir de uma vista concentrada

na zona reconstruída, a Baixa Pombalina, que se tornou

emblemática da cidade e de que adiante se falará mais

de espaço, enquanto se tornou quase um lugar comum,

nos últimos anos, falar de Lisboa como uma “cidade branca”.

Esta qualificação encontrou grande acolhimento por

parte de algumas personalidades ligadas à cultura francesa,

manifestamente esquecidas das coordenadas vibráteis do

[60] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 61: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

impressionismo e mais empenhadas em ver e falar de uma

Lisboa folcloricamente miserabilista para consumo de inte-

lectuais despaísados do que da cidade na sua real aparência.

Essa aparência, no que em Lisboa é realmente caracterís-

tico como atmosfera, ressalta mais da esplêndida economia

de irresolvidas musicalidades de uns versos de Eugénio de

Andrade em que se combinam outras tonalidades:

Lisboa

Esta névoa sobre a cidade, o rio,

as gaivotas doutros dias, barcos, gente

apressada ou com o tempo todo para perder,

esta névoa onde começa a luz de Lisboa,

rosa e limão sobre o Tejo, esta luz de água,

nada mais quero de degrau em degrau.

Rosa e limão, essas cores, levemente aciduladas, que tam-

bém podemos encontrar na pintura de Carlos Botelho, são

ainda hoje a pátina luminosamente imponderável da cha-

mada Lisboa Pombalina, erigida por ordem do Marquês de

Pombal depois do terramoto que arrasou a cidade em 1755.

Nesse coração de Lisboa, que hoje suscita poéticas e deva-

neios em que a luz e a geometria se combinam, o espaço

urbano estrutura-se segundo uma lógica ortogonal, pela

repetição de módulos semelhantes, explicáveis pela produ-

ção em série de elementos destinados a serem montados

rapidamente no local da edificação, e segundo uma aplica-

ção da Razão ao urbanismo que, na época, como José-

Augusto França demonstrou, tinha muito de iluminista e,

acrescentemos, o seu quê de totalitário.

Numa bela conferência de 1947, intitulada Os poetas de

Lisboa, Mário de Albuquerque resume exemplarmente as

poéticas de Lisboa nos séculos XVII e XVIII: “É volumoso este

cancioneiro de Lisboa dos séculos XVII e XVIII. Nele há ver-

sos solenemente académicos e versos cantantes de romance

popular, embrincamentos gongóricos e simplicidades líri-

cas. Tudo a musa de Lisboa registou, umas vezes anonima-

mente, outras sob autoria declarada: galanterias, devoções,

mundanismos, calamidades, casamentos principescos, fes-

tas e até crimes e suplícios. Só sobre a inauguração da está-

tua de D. José temos uma infinidade de composições, pois

não houve, nesta loquaz cidade, poeta louvaminheiro que

não deitasse soneto. A tragédia de 1755 (…) encontrou eco,

não só na poesia portuguesa, mas, por toda a Europa desde

a Inglaterra até Hungria. Infelizmente, todo este vasto labor

poético de ocasião está longe de corresponder à grandeza

da tragédia”. Por isso prefiro, quanto ao terramoto e à

reconstrução que se lhe seguiu, um texto, que considero de

grande qualidade literária, de clara apologia das medidas

tomadas pelo Marquês de Pombal a seguir à catástrofe, assi-

nado sob o pseudónimo de Amador Patrício de Lisboa e

publicado logo em 1758 a apresentar o elenco resumido das

providências adoptadas.

Mas o tempo passou, o regime despótico de Pombal tam-

bém, e hoje a Baixa de Lisboa constitui uma grelha regular

para a deambulação e a divagação que deixou marcas fun-

das na nossa cultura, desde o satanismo, entre o ingénuo e

o romântico, de algum Guilherme de Azevedo e de algum

Gomes Leal, até à exactidão dos registos de um Cesário

Verde, cantor do spleen e das fundas melancolias oitocentis-

tas do cair da noite à beira Tejo numa cidade ainda ilumi-

[61] A Baixa Pombalina como elemento emblemático da cultura portuguesa e imagem da sua projecção internacional

Page 62: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

nada a bicos de gás, realisticamente povoada por tipos bur-

gueses e populares e suscitadora de um imaginário roman-

ticamente nostálgico de outras eras, e depois, até Bernardo

Soares, semi-heterónimo de Pessoa, a calcorrear a Rua dos

Douradores, mergulhado numa tão abissal desistência de

tudo que já nem sequer comportava espaço para o tédio,

passando por Eça de Queirós e os seus vivos retratos de per-

sonagens ligadas ao poder e à alta burguesia da segunda

metade do século XIX, e pelos intelectuais que, ao sabor dos

vários “ismos” do século XX, fizeram de Lisboa, sucessiva-

mente, uma ressonância interiorizada e proustiana, um

lugar conspirativo da resistência republicana ou do comba-

te proletário, um território do anedotário pequeno-bur-

guês, um espaço de agonia existencial, um enfoque da

memória pitoresca, um terreno de sarcasmos e ironias sur-

realistas e pós-surrealistas, antes de terem chegado a pós-

modernismos e minimalismos de vário sinal.

Os exemplos seriam muito numerosos. Limitar-me-ei a

citar, de entre as páginas mais despretensiosas e eficazes que

conheço, uma descrição de pombos na rua, num dos pri-

meiros romances de Aquilino Ribeiro, Lápides partidas, a que

sugiro sejam agregados vários textos de Alexandre O’Neill

entre a ironia e a ternura do quotidiano lisboeta, outros tan-

tos de David Mourão-Ferreira, que da cidade nos deu algu-

mas das imagens mais intensamente líricas das últimas

décadas, e uma extensa deambulação íntima de José

Cardoso Pires, Lisboa, livro de bordo, publicada pouco antes de

ele morrer sob uma epígrafe de Cervantes: “Tierra, tierra!

Aunque mejor diria Cielo, Cielo! Porque sin duda estamos en

el paraje de la famosa Lisboa”. Mas qualquer destaque, e este

também, acaba por ser muito injusto para com os omitidos.

A grande produção cultural lisboeta do século XX portu-

guês, nas artes, nas letras e no jornalismo, prende-se, quase

toda e quase sempre, com esta Baixa lisboeta e alguns dos

seus lugares de peregrinação: o Martinho (do Rossio), onde

perpassam as sombras de Nicolau Tolentino e de Bocage,

o Grémio, a Casa Havaneza e Hotel Bragança, tão caros

às personagens de Eça de Queirós, a Brasileira do Chiado,

com a sua tradição de polémicas, cavaqueiras, conspirações

e bengaladas ao longo de gerações de escritores e artistas,

a Livraria Bertrand e o vulto de Aquilino e dos seus amigos,

o Martinho da Arcada, onde o fantasma de Fernando Pessoa

ainda se diria que vai reexaminando coloquialmente a sua

galeria de heterónimos e bebendo copinhos de aguardente,

o Café Gelo e o cadavre exquis dos surrealistas…

A muito maior difusão que a cultura portuguesa tem

hoje, no estrangeiro, transporta consigo uma enorme dose

de informação, quantitativa e qualitativa, sobre Lisboa e,

inevitavelmente, sobre a Lisboa pombalina.

Esta é a Baixa que se desenvolve sobretudo no vale que se

encontra entre as colinas a nascente e a poente do coração

pombalino e suas adjacências já em subida, em cujos

nomes de ruas perpassa ainda o eco das antigas corporações

dos ofícios mecânicos e cujo vestíbulo de honra se abre na

Praça do Comércio, antigo Terreiro do Paço, com a nobreza

grandiosa da sua escala, o contraponto lateral das suas arca-

das, a simetria da sua organização espacial, o seu diálogo

com a vasta anchura do rio e os efeitos de luz, água, névoa

e gaivotas, variando de hora para hora, do gris pérola ao vio-

leta, naquele lugar.

Não compreenderemos nada de Lisboa, nem do que

sobre ela se escreveu, se não calcorrearmos as ruas da Baixa,

[62] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 63: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

a diferentes horas do dia, procurando reorganizar mental-

mente a topografia, memorizar as cores, registar o fervilhar

humano, reinserir o todo numa disponibilidade da alma

para outras aventuras e percursos. Entre eles, passar à noite

pela Praça do Município com efeitos espectrais da ilumina-

ção sobre o calcário das fachadas e o pelourinho no meio e,

sempre, a cenografia da arquitectura pombalina a recortar-

-se no fundo. Depois, podemos subir até ao Castelo de

S. Jorge, andar por ruelas estreitas de casas de gente modes-

ta, aqui e ali a rasgarem-se para a fachada de um palácio,

sentir a profusão de cheiros de ervas e flores, ver o violento

borrão vermelho das sardinheiras ou o baloiçar de roupa de

pobre pendurada a secar nalgumas janelas, ouvir ainda

algum pregão de vendedeiras esganiçadas aqui e ali, des-

frutar de um panorama único sobre a cidade, o rio, a “outra

banda”, ou, do lado oposto, subir até S. Pedro de Alcântara

e, no limite do Bairro Alto, beber as vistas no sentido inver-

so, com massas sucessivas de casario e de telhados sobre-

pondo-se uns aos outros, entrecortadas de vegetação, enci-

madas pela plataforma grandiosa do Castelo.

Deste conjunto se desprende uma alma da cidade que

depois vai repercutir noutras áreas dela, nomeadamente

nas zonas novas em que, nos anos 40, se deu um revivalis-

mo arquitectónico inspirado na escala e na traça dos pré-

dios da Baixa.

O encanto de outros pontos de Lisboa é de diferente

natureza: alguns aspectos da Avenida da Liberdade, que pro-

longou, em fins do século XIX o “passeio público”; o toque

napolitano do Teatro Nacional de S. Carlos; o conforto bur-

guês e também as políticas de alojamento social de outros

tempos ainda visíveis nas chamadas Avenidas Novas; as zonas

mais ou menos aristocráticas da Estrela e da Lapa; o alas-

tramento popular da Madragoa a Santos, também com os

seus palácios e ruelas; certos lugares de convivialidade,

pequenas tascas e restaurantes, larguinhos modestos, bulí-

cios de bairro; alguns, mais raros, exercícios de arquitectu-

ra moderna que alcançam o milagre de não aviltarem a

cidade; uma série de edifícios monumentais, nomeada-

mente de igrejas e conventos, de idade venerável e estilo

variado, do gótico ao manuelino e ao barroco; enfim, a

maneira como a cidade se desdobra para a sua periferia.

Se é verdade que Lisboa, ainda hoje, beneficia do seu cen-

tralismo geográfico, histórico, político, económico, finan-

ceiro e cultural, reforçado pelo gigantismo das proporções

que assume à escala nacional por concentrar, dentro de si e

à sua volta, cerca de quinze por cento de toda a população

portuguesa, é também verdade que nela se polariza a

memória colectiva em termos muito especiais: ao longo dos

séculos, Lisboa foi palco de grandes acontecimentos históri-

cos determinantes para o país (partida da armada de Vasco

da Gama, fabuloso entreposto de riquezas exóticas, início

da Restauração de 1640, terramoto de 1755, proclamação da

República, revolução do 25 de Abril…); encontram-se nela

alguns dos nossos monumentos emblemáticos; manteve

quase sempre uma importante hegemonia cultural sobre o

resto do território; foi sempre a porta de entrada de novi-

dades de toda a ordem e a grande placa giratória dos con-

tactos cosmopolitas; mantém-se como a cidade fundada por

um Ulisses mítico que lhe marcou para sempre a onomástica

(Ulissipo / Ulissipona / Lisbona / Lisboa…) e como lugar

onde ancoram uma epopeia que lhe cantou as naus da

expansão marítima e uma nostalgia ainda perplexa no

[63] A Baixa Pombalina como elemento emblemático da cultura portuguesa e imagem da sua projecção internacional

Page 64: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

avesso desse tempo perdido imperial, na memória de faça-

nhas e naufrágios, de riquezas e desvairados exotismos, de

triunfos e desgraças, de grandezas e misérias, de que bem

pode ser a epítome uma passagem da Relação de 1625 que

comecei por citar:

Mas como tudo enfim acaba,

anda a fortuna alterna,

acha só memórias tristes,

com sentimentos de ausências.

A este lado inevitável da íntima fisionomia lisboeta,

acresce, entrosada com ele, uma dimensão mais “autócto-

ne” e popular, ligada a devoções e tradições, às actividades

modestas da pequena burguesia e do seu associativismo

tão bem espelhadas nalguns célebres filmes dos anos qua-

renta (e, hoje, nalgumas das mais belas crónicas de Lobo

Antunes), ao funcionalismo público, aos ofícios e cos-

tumes das camadas mais humildes da população, às pro-

fissões marítimas, à chegada e partida dos barcos na foz

do Tejo.

É aqui que surge o fado, de tradição relativamente recente

(fins de século XVIII), de origem transoceânica, pois foi

provavelmente importado de um Brasil em cuja música já

se misturavam ecos africanos e resulta da transformação

das modinhas e lunduns ali cantados, e de estatuto rasteiro,

uma vez que começou a ser cantado e dançado em tabernas

e bordéis da capital. Do tipo do fadista de então trata

Ramalho em termos profundamente enjoados. Ainda mais

recente (e despropositada) é a temática que pretenderia

alçar o fado a uma espécie de ontologia da alma portu-

guesa, nas suas coordenadas de fatalismo e destino, amor

louco e ciúme dilacerante, saudade e regresso, violência e

paixão, noite, rio, mar, vento e temporais, crime e remorso,

vinho, navalhadas e solidão trágica da voz entregue a melis-

mas caprichosos e enrouquecidos. E mais recentes também

são a sua vocação para a qualidade literária exigente, o con-

tributo de poetas conhecidos, a recuperação de textos do

património literário português pelos cantores, a procura de

novos caminhos musicais, por vezes de resultados discutí-

veis no seu experimentalismo, mas em que voltam a reen-

contrar-se acentos do samba, do jazz, da morna cabo-ver-

diana, numa visceralidade instintiva que continua a ligá-lo

a Lisboa, mas lhe alarga a respiração para além do perímetro

das fronteiras tradicionais.

Hoje, um olhar sobre Lisboa volta a ter de considerar

uma extensão que vai de Belém aos terrenos da Expo’98, de

algum modo recuperando o da vista do século XVII do autor

anónimo que citei. Belém, pelo seu património monumen-

tal e pelo Centro Cultural ali edificado há poucos anos.

Os terrenos da Expo’98 pela nova e moderníssima parte da

cidade que ali surgiu do nada. A zona ribeirinha, ao longo

do rio, entre estes dois pontos extremos, pela reabilitação

que nela tem sido progressivamente levada a cabo, de modo

a devolver o rio à cidade.

A escrita literária tem acompanhado todas essas fases.

Documentam-no excelentemente antologias gerais como

Saudades de Lisboa, de David Mourão-Ferreira, a Lisboa,

de Tomás Ribas, e Lisboa com seus poetas, de Adosinda

Providência Torgal e Clotilde Correia Botelho, ou, numa

perspectiva mais monotematicamente orientada, as recen-

tes e imprescindíveis compilações de Marina Tavares Dias

[64] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 65: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

e Luísa Ducla Soares, respectivamente, A Lisboa de Eça de

Queirós e A Lisboa de Rodrigues Miguéis. À imagem destas últi-

mas compilações, diga-se que era possível fazer uma série

interminável de volumes A Lisboa de…

Não podemos falar da Lisboa pombalina sem procurar

reconstituir “uma” palpitação da cidade na sua diacronia.

Há que fazer ziguezagues no tempo. Há páginas da Lisboa

medieval, descrita por Herculano, que só eram possíveis a

partir da visão e da documentação da sua época. Há páginas

sobre o terramoto de 1755 que vêm do Abade de Jazente a

Hélia Correia, passando por Agustina… Há páginas de cró-

nicas e de epopeias, de memórias e de ficção, de teatro e de

poesia, numa catadupa e numa multiplicidade de registos

que se quereriam operantes pela própria variedade dos

géneros e dos autores e suas idiossincrasias.

Lisboa é talvez a única cidade europeia que renasce em

esplendor no seu centro urbano depois de uma catástrofe

com as proporções daquela que sofreu em 1755. Pompeia

ficou sepultada na lava para todo o sempre. Londres,

depois do grande incêndio, não deu lugar a um núcleo

arquitectónico tão coeso e esteticamente afirmado. Muitas

cidades bombardeadas na guerra foram reconstruídas

segundo o seu modelo destruído ou estranhos parâmetros:

de Varsóvia, que se diria um cenário de teatro, a Frankfurt,

que imita Nova Iorque à escala europeia… Mas nenhuma

que eu saiba, como Lisboa, deu lugar a uma reinvenção da

sua própria alma.

O facto de a catástrofe de Lisboa ter marcado profunda-

mente a consciência europeia insensivelmente transferiu

tais marcas para a importância da reconstrução como uma

referência cultural e civilizacional. E também o facto de se

tratar de um monumento à razão, à margem das utopias

urbanas de que os séculos XVI e seguintes foram férteis. E

até o facto de novas técnicas, incluindo a do pré-fabricado,

terem sido apuradas e postas em prática, sinal de um ali-

nhamento pioneiro com o progresso tecnológico.

De que essas marcas se radicaram na consciência inter-

nacional, chamemos-lhe assim, todos tivemos a prova no

alvoroço que suscitou o incêndio de 1988.

Por tudo isto, e também pelo muito que fica por dizer,

não é exagerado incluir a Baixa Pombalina entre os princi-

pais elementos emblemáticos da cultura portuguesa, sendo

um dos núcleos irradiantes fundamentais para a projecção

internacional dela.

[65] A Baixa Pombalina como elemento emblemático da cultura portuguesa e imagem da sua projecção internacional

Page 66: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

José de Monterroso Teixeira

A Baixa Pombalina como referência de produção artística e literária e cenário

de uma tradição cultural

Page 67: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

[67] A Baixa Pombalina como referência de produção artística e literária e cenário de uma tradição cultural

(…) A Lisboa material tem posições morais. Há sítios que dão, aos que os pisam uma individualidade. O lajedo e a cantaria consagram espíritos. Encontrar-se no Chiado – significa ter a finaflor da graça, a vivacidade conceituosa e costumes dissipados. Estar no Martinho – revela inspiração, divindade interior, lirismoe política. Ó Lisboa tu não tens caracteres, tens esquinas(…).14

No café “A Brasileira” do Chiado, daesquerda para a direita, Teixeira de

Pascoaes, Cristóvão Aires Filho, MatosSequeira, António Soares, Jorge Barradas,Joshua Beloniel, Augusto Ferreira Gomes,

o célebre empregado João Franco eAdolfo Castañe, 1928. Fotógrafo não

identificado, Arquivo Municipal de Lisboa – Arquivo Fotográfico.

Page 68: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

Em 1 de Novembro de 1755, um furacão sísmico destruiu

a parte baixa de Lisboa, uma tragédia universal desestabili-

zou o optimismo filosófico europeu, racionalista e ilumi-

nado, segundo o qual, o mundo se regia por leis naturais.

Num país em estado de choque, surge, providencialmente,

o Marquês de Pombal para uma intervenção férrea. Fernando

Assis Pacheco recorda no seu poema15 qual foi o mote:

(…) Como as ordens de Sebastião José/ De Carvalho e Melo no ter-

ramoto,/ Cuidar dos vivos, enterrar os mortos,/ Digo que terra sacu-

dindo-se,/ (…)/ este amor que espera o arquitecto/ Eugénio dos Santos

para riscar/ (…)/ Moveu-se a terra, caíram casas, largou-se/ O rio Tejo

por Lisboa dentro./ (…)

Noutro poema16, num tom melancólico, evoca-se o trági-

co fenómeno, aludindo à comovida beleza de Lisboa

(…) Tudo aquilo num montão/ Que um imenso cataclismo/ Leva,

em ruínas, de roldão/ Para o mar cavado abismo (…)

Ou num registo épico17 de inspiração clássica:

(…) Assim, do meio de miséria tanta/ Te ergueu aquele que da

negra inveja/ oprime a vil garganta./ Ah! Chega ao grande conde, a

mão me beija/ A mão que te levanta (…)

Já se falou de utopia, de pragmatismo, naquilo que tam-

bém foi aproveitar a experiência (a razão e o saber provém

do novo empirismo) herdada da época joanina do alarga-

mento de ruas, já que a circulação estava espartilhada e as

carruagens eram cada vez mais luxuosas e de dimensão

mais aparatosa.

Em 1745 sairia um decreto que obrigava a que as ruas

tivessem de 20 a 25 palmos, e as principais cerca de 40 pal-

mos. As expropriações eram instrumento já utilizado e a

renovação do edificado constituiria a única forma de elevar

o estatuto da capital.

Poder-se-á falar de persistência. Recentemente, um livro

sobre a história da capital defende que Lisboa continua a

ser uma cidade de permanências. Parece então que o arqué-

tipo ordenador da monumentalidade da Baixa Pombalina é

o Torreão Filipino: Se eu fosse rei de Lisboa, seria em pouco tempo

rei do mundo, afirmava Carlos V, o que induz a outra dimen-

são da cidade, a qual repercute na instância simbólica do

Terreiro do Paço. Seu filho, Filipe II, vem como que a con-

cretizar essa profecia. A praça exercia um fascínio notável

sobre tantos estrangeiros que nos seus relatos de viagem

afirmaram:

(…) Certos lugares tornaram-se-me familiares: os jardins, os ter-

raços, o nobre espaço soalheiro do Terreiro do Paço, a mais bela

praça da Europa, envolvida em palácios com arcadas, e a escadaria

que desce até às águas do Tejo(…).18

O império marítimo alicerça a decisão de D. Manuel I,

num desígnio civilista, de se instalar na Ribeira das Naus

Aí vem a erguer o Paço Real, sinal de opulência, de dina-

mismo, ícone arquitectónico da expansão. O élan cons-

trutivo da época manuelina permitirá a Francisco da

Holanda o excesso de opinião: (…)Em Portugal, não há mais

nada senão Lisboa (…).19

Apreciemos a censura de Alexandre Herculano, de

nacionalismo romântico deslocado que o leva a condenar a

época dos Descobrimentos:

(…) cidade, donzela e pura do século XIV, porque rasgaste o teu

véu de inocência? Porque quebraste o cinto que te dera o rei que

14] Queirós Eça de, Prosas Bárbaras, 1ª ed.,

Lisboa, Círculo de Leitores, 1980.

15] Pacheco Fernando Assis, A Musa

Irregular, Lisboa, Hiena, 1991.

16] Paulino de Oliveira (1864-1914)

17] João Xavier de Matos (1730-1789)

18] Larbaud Valéry, Fermina Marques,

Lisboa, Livros do Brasil.

19] Holanda Francisco de Da fábrica que

falece à cidade de Lisboa, Lisboa: Livros

Horizonte, 1984.

[68] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 69: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

tanto te amou? Porque te aproximaste à foz do Tejo, convocaste os

estrangeiros e converteste a tua morada em lupanar?(…)20

De entre os cenários reconstrutivos venceu o que utilizava

a área mais atingida pelo terramoto sob uma matriz arqui-

tectónica inteiramente nova. Ao declarar que o comércio

era profissão nobre, necessária e proveitosa o Marquês proclama

também que um ordenamento produtivo presidirá à

erecção da nova cidade. Continuava-se uma ideologia mes-

teiral e mercantilista que o decreto de 1760 estabelece.

A malha urbana dos arruamentos entre as duas principais

praças irá desenvolver-se segundo uma lógica hierárquica

das actividades comerciais, criando um monopólio para

a Baixa.

Depois do terramoto de 1755, quando se reedificou a

cidade, o decreto de 15 de Novembro de 1760 determinou as

seguintes ruas, que são as que cortam da Praça do Commercio

ao Rocio, hoje Praça de D. Pedro:

Rua Nova d’El-Rei (Capellistas) – N’ella se devem arruar os mer-

cadores da classe de capella, applicando-se as lojas que d’elles sobe-

jarem para as vendas dos outros mercadores de loiça da India, de

chá, e mais fazendas do seu trafico.

Rua Augusta – Mercadores de lã e seda, e se não chegarem as

lojas devem tomar as da Travessa de Santa Justa.

Rua Aurea – Ourives do oiro, e as que sobejarem podem accom-

modar-se os relojoeiros e voluntários.

Rua Bella da Rainha (Rua da Prata) – Os ourives da prata, e nas

lojas que sobejarem se alojarão os livreiros que antes viviam na sua

vizinhança.

Rua Nova da Princeza (Fanqueiros) – Os mercadores de fancaria,

destinando as que sobejarem para os de quincalharia.

Rua dos Doiradores – Esta rua será destinada para os doirado-

res, bate-folhas, latoeiros de lima, e as lojas que ficarem livres pode-

rão ser para tendas, tabernas, ou outros misteres.

Rua dos Correeiros (Travessa da Palha) – Terão suas lojas os cor-

reeiros, selleiros e torneiros.

Rua dos Sapateiros (Arco do Bandeira) – Deverão arruar-se de

um lado os sapateiros, e do outro ficará livre para os diversos mis-

teres do povo.

Rua de S. Julião (Algibebes) – Será a primeira travessa, cortando

do nascente, e n’ella se arrumarão os algibebes.

Rua da Conceição (Retrozeiros) – Será a segunda travessa, e n’el-

la tomarão loja os mercadores de retroz.

Rua de S. Nicolau (Travessa de S. Nicolau, ou do Pote das Almas)

– Será a terceira travessa, e será destinada para as lojas de quinca-

lharias que ali couberem.

Rua da Victoria (Travessa) – Será a quarta travessa, e n’ella se

accommodarão os da quincalharia que da outra sobejarem.

Rua da Assunpção (Travessa) – Será a quinta travessa, e n’ella toma-

rão loja os da classe de sirgueiros, assim de chapeos, como de agulha.

Rua de Santa Justa (Travessa) – Será a sexta travessa e ultima,

que será destinada para os que não tiverem bastante acomodação

na Rua Augusta.

A oposição à reconstrução tinha vários fundamentos e

proveniências: a conspiração religiosa liderada pelos jesuí-

tas e pelos proprietários aterrorizados que punham em

causa a celeridade das operações; o Padre Malagrida que se

atreveu a escrever um opúsculo frisando que o Terramoto

tinha sido um castigo divino21.

Com instrumentos legislativos que favoreciam as expro-

priações e funcionários auxiliares, cujos nomes, como o de

20] Herculano Alexandre, O Monge de

Cister, 11ª ed. Tomo I, Lisboa: Livros

do Brasil.

21] Na consequência da publicação deste

escrito, foi entregue ao Tribunal do Santo

Ofício e condenado à fogueira.

[69] A Baixa Pombalina como referência de produção artística e literária e cenário de uma tradição cultural

Page 70: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

Bota Abaixo, denotam o ritmo das operações, os trabalhos

de reconstrução avançaram. Entre 1755 e 1838 surgiram

cerca de 340 decretos e outros instrumentos legislativos

para enquadramento das obras de requalificação.

A Rua Augusta foi a que mais rapidamente mostrava um ali-

nhamento de fachadas bastante homogéneas, ao ponto de

William Costigan, um visitante estrangeiro do final do

século XVIII, a considerar a finest street com boas perspectivas

para o Castelo e para o Bairro Alto, começando a motivar o inte-

resse literário e de roteiro como via triumphalis da nova capital:

(…) Baixei o olhar entre o Castelo e o Carmo/ E daí no Terreiro, e

logo veio/ Não sei que frio súbito gelar-me/ Cortam-te os sulcos hirtos

pelo meio/ E bem se vê, de fundos quem os fez:/ Da praça aos cinco

golpes do teu seio/ Gravam-se a palma e os dedos do Marquês / / E

sob um arco de triunfo aberto/ Via-se à barra o arco da Aliança/

Encarnado o fantasma do Encoberto/ Em corpo de saudade e de

esperança/ Sopro de luz, de vento e azul étero/ Larguei à desfilada

erguendo a lança/ Pelas planícies desse Quinto Império (…) 22

A fisionomia da Baixa estava a consolidar-se para o futuro

e será o espaço dos artesãos, dos comerciantes e dos nego-

ciantes, o que vem a criar dificuldades para quem vivia fora

deste centro. Jácome Ratton dá eco desse problema derivado

da concentração (ou do monopólio), escrevendo em 1810:

A providência, por tanto dos arruamentos, que foi necessário

para accelerar a reedificação da Cidade, vem a ser hoje em dia gra-

víssimo prejuízo para o Público, visto a grande extensão a que tem

chegado a cidade de Lisboa; porque nada há mais inccomodo, e

mesmo dispendioso, do que terem os moradores d’Alcântara, da

Madre de Deus, de S. Sebastião da Pedreira, Arroyos, etc… de man-

dar buscar meio covado da baeta, ou meio oitava de retroz aos

arruamentos, em que se achão taes couzas”. Devia revogar-se este

regulamento ultrapassado pelo crescimento da cidade e propõe-se:

Por tanto deixe-se a cada indivíduo das classes pôr as suas lojas nos

bairros, e ruas onde lhes fizer arranjo e conveniência… porque deste

modo ficará o Público bem servido.23

A Praça do Comércio é o referente simbólico da praxis

Pombalina, espelhada na designação que o Marquês lhe

outorga em homenagem à classe que lhe dá o braço no seu

grande projecto.

Então é um lugar de subtracção e de ausência da Família

Real, que se esconde na Real Barraca no Alto da Ajuda, e da

aristocracia, exilada em solares e tendas de improviso.

(…) E tu, nobre, simétrico Terreiro/ Que a expensa de teus raros

obeliscos,/ Colunas tuas, malograr não ousas/ O nome adulador do

Paço antigo/ Que já te honrou! Tu opulento Empório/ Do que há

melhor no Mundo, e onde Astreia/ Contigo de Sobre Ó Cais precioso,/

Compêndio das Nações, que em ti se tecem/ Vínculo mútuo de pro-

míscuo sangue/ Que é sangue em giro o salutar comércio.(…) 24

A Praça vem a ser um espaço cerimonial, e mais tarde,

centro de poder. A Secretaria do Reino só no final do século

XVIII vem ocupar o Terreiro do Paço, e pouco tempo depois,

livreiros, a loja da Gazeta, e uma tenda de cartas de jogar,

procuram que se torne comercialmente atractiva.

(…) Veio o Marquês de Pombal e com o Comércio pode reedificar

esta grande cidade de Lisboa. No reinado de D. Maria I era tanta

a mercancia que estava todo o Terreiro do Paço feito um trapiche,

topetando as filas de caixa de açúcar com o cocar do capacete

do imortal D. José I, que daí podia contemplar a nossa pacífica

indústria.(…) 25

22] Costigan Arthur William, pseud. Cartas

sobre a Sociedade e os Costumes de Portugal:

1778-1779, Lisboa, Lisophima, 1989.

23] Ratton Jácome, Recordações de Jacome

Ratton sobre as ocorrências do seu tempo,

Coimbra I. Univ., 1920.

24] Tomás António dos Santos e Silva

(Tomino Sadino, 1751-1816).

25] Cláudio Aduano da Costa (1795-1866),

negociante e economista, in Revista

Universal Lisbonense, 1847.

[70] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 71: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

A cidade estabilizava o seu programa reedificador e as

actividades comerciais continuavam a dominar com a Bolsa

e a Alfândega a servirem de barómetro. O Rossio polarizava

a norte o outro cento nevrálgico da plataforma urbanística

da Baixa. Com a elegância do desenho de Carlos Mardel,

expressa na dupla cobertura, albergava o Palácio da

Inquisição, com uma estátua da Fé, da autoria de Machado

de Castro, simétrico ao Arco do Bandeira, outro sinal da

presença dos homens de negócio da órbita de Pombal que

dava passagem à Rua dos Douradores. Era chamada a Praça

das Paradas, e o seu intimismo atraía sucessivas multidões

e gentes em permanência.

(…) Qual tu, brilhante, esplêndido Rossio/ Onde a f lor militar de

lísia ufana/ Resenha um passar do brio e esforço/ Que, sem suas per-

fídias, tramas suas/ Ao corso e a seus colegas desafia! (…) 26

Os Anais do Rossio averbam a existência de vários bote-

quins literários e políticos (sobretudo o Nicola e o Botequim

das Luminárias) que marcaram a vida social e literária da

cidade e eram locais de vigilância policial pela frequência

que convocavam. Já desde os finais do século XVIII que

Bocage frequentava o Café Nicola, onde convivia, nomeada-

mente, com José Agostinho de Macedo. Uma noite, quando

dali regressava, foi detido por uma patrulha da polícia (…)

que apontando-lhe as pistolas aferradas, lhe perguntou quem era,

d’onde vinha e para onde ia. Bocage respondeu imperturbável: Eu

sou o Bocage/ Venho do Nicola/ Vou p’ro outro mundo/ Se dispara a

pistola(…)

Nos princípios do século XIX, o Intendente Pina Manique

ordenava ao inspector do Bairro do Rossio que as pessoas

que o frequentassem se demorassem o tempo preciso para

tomarem os refrescos, e o Aviso de 5 de Julho de 1800, diz

que se reuniam pessoas suspeitas na casa do café Nicola no

Rossio, onde conversavam em assuntos menos próprios,

especialmente na presente conjuntura.

O Teatro D. Maria II dá expressão institucional e arqui-

tectónica ao combate de Almeida Garrett, e a estátua de Gil

Vicente que encima o frontão consagra a inspiração bilin-

gue deste clássico que figura na história da literatura espa-

nhola com tantos merecimentos como na da portuguesa,

como nos recorda Ángel Crespo em Lisboa Mítica e Literária. 27

João de Deus ironiza, no contraste entre o Teatro do

Rossio e o “Teatro de S. Bento”, com o seu poema Forasteiro:

(…) No Rossio o Prior de Santa Iria/ Vendo um Palácio, disse ao

Canongia:/ – Que será isto aqui?/ – Dona Maria…/ Onde se repre-

sentavam as tragédias (…)/ Vai correndo a cidade, e, sempre atento,/

Pergunta noutro sítio?/ isto é Convento?/ Não! Isto é o Teatro de São

Bento,/ Onde se representam as comédias. 28

O poeta que introduz a nova corrente literária com o seu

Camões, bem pode ser um dos transeuntes que as gravuras

nos deixam ver. António Nobre dá-lhe a sua admiração nes-

tes versos:

(…) Ó Garrett adorado das mulheres/ Hei-de deixar-te, em breve o

meu bilhete/ À tua linda casa dos Prazeres (…) 29

No Rossio, a estátua de D. Pedro IV celebra o regime libe-

ral e a luta contra o poder napoleónico, enquanto o empe-

drado do brigadeiro Furtado e dos grilhetas do Limoeiro

procura aludir ao Mar Largo que nos liga ao Brasil, jovem

nação, da qual D. Pedro IV foi o primeiro Imperador:

26] Tomás António dos Santos e Silva

(Tomino Sadino – 1751-1816).

27] Crespo Ángel, em Lisboa Mítica e

Literária, Livros Horizonte, Lisboa, 1990

28] Crespo Ángel, op. cit.

29] Nobre António, Só, 17ª ed., Livraria

Tavares Martins, Porto, 1976.

[71] A Baixa Pombalina como referência de produção artística e literária e cenário de uma tradição cultural

Page 72: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

(…) O mar sai da mão destes calceteiros/ Que logo de manhã se

ajoelham na rua/ A bater/ Nos cubos de pedra/ Como se eles fossem

pães de um tempo/ Inacabado.(…) 30

No tabuleiro da Baixa surge a plebeia Praça da Figueira,

irmã bastarda do Rossio. Foi a seu tempo designada de “Horta

do Hospital” (porque estava nas traseiras do imponente

Hospital Real de Todos os Santos), “Praça das Ervas” e “Praça

Nova”. Esta terminologia tê-la-á recebido em 1771, quando,

pelo decreto de 23 de Novembro desse ano, se estabeleceu a

instalação do mercado de hortaliça e frutas (a praça do mer-

cado do peixe na Ribeira Nova fora instituída em 1765). Eram

lugares onde passavam muitos vendedores ambulantes que o

comércio dos arruamentos não tolerava nas suas áreas e que

gerou sucessivas perseguições e editais de polícia.

(…) A beleza da Figueira, em cujo centro havia um mercado cons-

truído em 1885 (era dos mais notáveis exemplares de arquitectura

do ferro) e demolido no 2º quartel do século XX (anos 40), encontra-se

quase nas nuvens pois estando nela, o mais belo que se pode disfru-

tar é uma esplêndida vista do castelo de S. Jorge e do Casario que,

desde aquelas alturas se derramam até à Baixa. (…). 31

Em 1971, foi aí colocada a estátua de D. João I, da autoria

de Leopoldo de Almeida; em Novembro de 2001 o desenho

da praça foi alterado, e o monumento ao fundador da

Dinastia de Aviz passou a estar alinhado com a Rua da

Prata.

No ano de 1764, com a abertura do Passeio Público, a

lógica da construção de área verde numa extensão de

malha urbana geraria um espaço de sociabilidade e de

lazer que os blocos comerciais não apresentavam. Do dese-

nho de Reinaldo Manuel se evolui rapidamente para um

espaço menos formal em que os gradeamentos também

foram alterados. A sinuosidade inglesa servia melhor a

deambulação romântica que os seus frequentadores já exi-

giam, como é dito no poema “Civilizando Lisboa no

Passeio Público”:

(…) Há quem diga por é que muito enjoa/ No Passeio o haver Café

Concerto./ E eu temo que não é um desconcerto/ Querer civilizar

assim Lisboa.(…)

No reinado de D. Maria II o Passeio era muito animado e

a presença da corte legitimava uma frequência de alto nível.

Os espectáculos e as célebres iluminações fascinavam os

alfacinhas ansiosos de divertimentos próprios de uma gran-

de cidade. D. Fernando II dava o exemplo e a pintura de

Leonel Pereira, de 1856, revela a sua ligação à cidade e ao

beau-monde.

(…) Pelas tardes de Verão nos bancos gratuitos do Passeio goza-

vam-se suavidades de idílio (…). 32

A iluminação a gás com que foi dotado dava-lhe um clima

especial, e é nele que Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, seus

frequentadores, combinam escrever “O Mistério da Estrada

de Sintra”, ou onde Luísa e Jorge, personagens de “O Primo

Basílio”, marcam o seu primeiro encontro.

O Passeio Público daria lugar, no final do século XIX à

Praça dos Restauradores e à Avenida, grande mudança que

Carlos da Maia, de “Os Maias”, vem a encontrar quando

regressa a Lisboa:

Num claro espaço rasgado, onde Carlos deixara o Passeio Público

pacato e frondoso – um obelisco, com brasões de bronze no pedestal,

30] Armando Silva Carvalho, Calçada à

Portuguesa.

31] Crespo Ángel, Lisboa Mítica e Literária.

32] Queirós Eça de, O Mandarim, 12ª ed.,

Lello, Porto, 1935.

[72] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 73: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

erguia um traço de cor de açúcar, na vidraça fina da luz de Inverno:

e os largos globos dos candeeiros que o cercavam, batidos do Sol bri-

lhavam, transparentes e rutilantes, como grandes bolas de sabão

suspensos no ar. Dos dois lados seguiam, em alturas desiguais os pré-

dios, lisos e aprumados.33

A estruturação urbana e cultural do Chiado tem como

catalizador dois fenómenos: um, a construção do novo

Teatro da Ópera de S. Carlos, inaugurado em 1793, da auto-

ria de Costa e Silva – um projecto de ressonância neo-clássi-

ca italiano; outro, é o aparecimento de opulentas residên-

cias destas grandes figuras (que lideraram a iniciativa) liga-

das ao comércio e à finança, na emergência post-terramoto e

foram sucessivos Provedores da Junta do Comércio, entre as

quais se destacam os Quintelas, na Rua do Alecrim, os

Cruzes, no Largo do Calhariz (depois do incêndio da sua

residência na Praça do Comércio), o Ferreira Sola, na Rua

Garrett (palacete que Beckford criticou com inclemência), o

José Ferreira Pinto, de Cabeceiras de Basto, muito activo nos

negócios e que construiu residência no Largo do Chiado,

Manuel José de Oliveira, depois Barão de Barcelinhos, que

recuperou com magnificência o Convento do Espírito Santo

da Pedreira no fundo da Rua Garrett para aí se instalar em

morada doméstica (o que mais tarde veio a ser os Grandes

Armazéns do Chiado).

(…) Aí tem você S. Carlos, chique hem?/ Levou-o a comprar duas

cadeiras do lado do Rei (…) 34

Tal como João de Deus satirizou o Teatro das Comédias e

o Teatro das Tragédias, o São Carlos tinha dois espectáculos,

o do palco e o da assistência, cerimoniais artísticos que

mobilizavam a aristocracia e a burguesia endinheirada e as

elites cultivadas.

Em 1866, quando chega a Lisboa com vinte anos, Eça de

Queirós foi morar para o Rossio e com o seu círculo de ami-

gos que constituía uma das mais célebres gerações literárias

da cultura portuguesa, cultiva a boémia, a gastronomia e o

espírito de tertúlia.

Luísa Ducla Soares diz que foi neste período que ele ini-

ciou a sua vida literária e fixou para sempre a imagem da

capital e das suas gentes. As ruas, os largos, os teatros, os

clubes, os ambientes e figuras alfacinhas renascem na

extensa obra que escreveu.35 Quando se inaugurou a sua

estátua, Ramalho Ortigão acentuou o seu espanto e maravi-

lhamento para com a cidade: Lisboa foi (…) o seu laboratório de

arte, o seu material de estudo, a sua preocupação de crítico, o seu

mundo de escritor.

O dever de um alfacinha ou de um perfeito cidadão era

subir e descer duas ou três vezes o Chiado, reiterava Eça. É o ter-

ritório onde brotam todas as influências: o que um pequeno

número de jornalistas, de políticos, de burgueses de mundanos deci-

de no Chiado que Portugal seja – é o que Portugal é.

A Havaneza, que hoje ainda existe ao lado da Brasileira,

tinha sido fundada em 1865 e considerava-se a tabacaria

mais emblemática de Lisboa (chegou a ocupar a área do

banco adjacente). Eça, Guerra Junqueiro, Ramalho,

Pinheiro Chagas eram clientes fiéis. A uma esquina, vadios em

farrapos fumavam; e na esquina defronte, na Havaneza, fumavam

outros vadios, de sobrecasa, politicando. 36

O Hotel que mais referências goza na escrita de Eça de

Queirós é o Hotel Central, na Praça dos Remolares, popu-

larmente conhecida como Cais do Sodré. A colocação da

33] Queirós Eça de, Os Maias: Circulo de

Leitores, 1986.

34] Queirós Eça de, A Capital, Círculo de

Leitores, 1983.

35] Soares Luísa Duda, Com Eça à roda do

Chiado, Lisboa: Câmara Municipal, 2000.

36] Queirós Eça de, op. cit.

[73] A Baixa Pombalina como referência de produção artística e literária e cenário de uma tradição cultural

Page 74: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

estátua do Duque da Terceira obrigou à mudança de topo-

nímia quando aí foi inaugurada em 1877. Foram seus hós-

pedes, entre muitos, Maria Eduarda, de “Os Maias”, Basílio,

de “O Primo Basílio”, Fradique Mendes, da “A Correspon-

dência”.

Tomar uma refeição acompanhada de champanhe era

um sonho que perseguia Teodoro, de “O Mandarim”, quan-

do era um apenas despretensioso funcionário.

A vista sobre o Tejo era magnífica. C.I. Ruders, que viveu

em Portugal entre 1798 e 1802, tinha a sua casa bem perto:

moro actualmente no chamado Arco do Marquês – uma ponte

muito alta que liga a Rua do Alecrim ao belo cais, de que toda a

gente se serve como passeio vespertino. 37

Em “Os Maias”, Eça escreveu: Sobre o rio, no céu largo, a

tarde morria sem uma aragem, numa palidez elísea, com nuvenzi-

nhas muito altas paradas, tocadas de cor-de-rosa; as terras, os lon-

ges da outra banda já se iam afogando num vapor aveludado, de

tom violeta; a água jazia lisa e luzidia como uma bela chapa de aço

novo; e aqui e além, pelo vasto ancoradouro, grossos navios de

carga, longos paquetes estrangeiros, dois couraçados ingleses dor-

miam, com as mastreações imóveis.

O final de “O Crime do Padre Amaro” é repassado de

melancolia e de pessimismo de que o país e a cidade inte-

lectual não conseguiam libertar-se. Se as Conferências

Democráticas realizadas no célebre Casino do Largo da

Abegoaria pretendiam abrir uma tribuna onde tenham voz os

ideais e os trabalhos que caracterizam este momento do século, preo-

cupando-se com a transformação social, moral e política dos povos,

o sentimento de decadência instalava-se nas consciências e

nas atitudes.38 É em torno da estátua de Camões, no Largo

do mesmo nome que termina o romance: (…) ao pé daquele

pedestal, sobre o frio olhar de bronze do velho poeta erecto e nobre,

com os seus largos ombros de cavaleiro forte, a Epopeia sobre o cora-

ção, a espada firme, cercada de cronistas e dos poetas heróicos da

antiga pátria – pátria para sempre, memória quase perdida(…).39

A estátua foi ali implantada em 1867, e o largo passou a

designar-se com o nome do grande épico, na sequência da

remodelação da praça, com a demolição do que restava do

palácio Marialva, família que entretanto se mudara para o

palácio da Praia, em Belém.

Na dramaturgia sócio-política o acto seguinte passou-se

em 1880, ano das comemorações do 3º centenário da morte

do autor de “Os Lusíadas”, tudo sobre a orquestração de

Ramalho Ortigão, e as estampas que nos foram deixadas

revelam a espectacularidade dos grandes festejos, nas suas

ornamentações e arquitecturas efémeras, que parecem her-

dadas da época barroca.

Mesmo assim o Chiado e a Baixa continuavam pólos acti-

vos da vida intelectual e da boémia lisboeta, pacata, ali-

mentada a torradas. Rivalidades de tertúlias extremavam

percursos e a ocupação de lugares.

O Martinho do Rossio, mais arejado, fazia com que os

que o frequentavam odiassem o Chiado (mais aristocrata):

(…) quando algum de nós tinha de subir a rua nova do Carmo afas-

távamo-nos indignados para o passeio do Margotteau 40(…).

Para os candidatos a literatos e a futuros cidadãos do

Chiado, o complemento da formação académica era na

Biblioteca, a funcionar no antigo Convento de S.Francisco, e

os Santos Padres literários eram Eça, Ramalho e Garrett:

37] Ruders Carl Israel, Viagem a Portugal:

1798-1802, Lisboa: Biblioteca Nacional, 2002

38] a criação do círculo Eça de Queirós no

mesmo largo e em frente do memorável

casino deve-se a António Ferro, num

gesto de resgate assinalável.

39] Queirós Eça de, O Crime do Padre

Amaro, Circulo de Leitores, Lisboa, 1983.

40] a célebre loja de dourador, molduras

e galeria na esquina da Garrett com a

Serpa Pinto.

[74] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 75: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

(…) Aos Dezoito annos, apenas saíamos do lyceu, íamos para a

Bibliotheca, ler As Farpas, As Viagens na Minha Terra, as Odes

Modernas, O Crime do Padre Amaro, na publicação primitiva da

Revista Contemporânea (…). 41

Em 1890, as forças republicanas capitalizam todo o

embaraço e ignomínia que o Ultimato Inglês trouxera ao

país. A estátua de Camões foi coberta com crepes pretos e

instala-se um clima de revolta. Bulhão Pato quer levantar o

ânimo, despertar consciências e exalta:

O Partido é Portugal/ À foz do Tejo, além, ondeia uma f loresta!/

O pavilhão inglês, farrapo ensanguentado,/ Do sinistro leopardo as

garras manifesta!/ Havemos de viver!… Leve o corsário a presa/ Pela

esteira de luz onde passou Camões.

Em 1908, Unamuno estadeava em Lisboa, e depois de

passar junto da estátua de Eça no Largo Barão de Quintela,

e provavelmente em frente à casa do escritor, já no Rossio,

discorre sobre a condenação e o ensismamento de Lisboa,

a desistência de Eça na re-invenção, reconstrução da capi-

tal, cujo desfecho infeliz julga ver em “A Cidade e as

Serras”.

(…) Fica-te em paz, Lisboa! Dorme, digere, ressona, soluça e

cachimba.(…)/ Tu tens a beleza, a força, a luz, a graça, a plástica a

água resplandecente, a linha magnifica! Resigna-te, ó Lisboa queri-

da, ó clara cidade bem amada, ó casta graça silenciosa, resigna-te –

a não ter alma!(…)42

Mas ele próprio se considerava um produto da cidade e

Ramalho Ortigão testemunhava sem hesitações que Lisboa

foi o seu laboratório de arte, o seu material de estudo, a sua

preocupação de crítico, o seu mundo de escritor. Lisboa tinha

apesar de tudo a verdade e o realismo possíveis. Mas o olhar

penetrante de Unamuno não nos pode deixar indiferentes:

(…) Pouco depois de ter contemplado a figura sugestiva do autor

de A Cidade e as Serras, no próprio coração desta cidade, ao pé da

estátua de D. Pedro IV, o que proclamou a carta constitucional e par-

tiu para o Brasil, contemplava as costelas de pedra das ruínas da

igreja do Carmo a destacar-se sobre o céu do ocaso. E, ao olhar esse

agoureiro monumento, recordação do famoso terramoto de que saiu

Portugal contemporâneo, o do Marquês de Pombal, pensava que o

terramoto íntimo, moral, ameaça este povo. E ia relacionando as

amargas ironias de Eça de Queiroz, o que não acreditou no seu povo,

ou pelo menos não acreditou na cidade portuguesa, indo buscar

Portugal nas serras, longe do contacto da civilização, relacionando-

a com um e outro terramoto. (…) 43

O terramoto íntimo que assola as entranhas dos lisboe-

tas ou da nação é outra visão cujo sufrágio de confirmação

pode ser mais alargado. As ruínas do Carmo consagram o

desastre, o anátema, e espelham o horror e o torpor.

Laura Junot, nas suas “Memórias”, comunga da mesma

inquietude e dos espectros da catástrofe:

De todas as impressões vivas que se tem ao percorrer Lisboa

nenhuma se compara ao espectáculo permanente dessas ruínas que

nos fala do terramoto e dos seus horrores.

Absorvendo a mesma estranheza na “Carta de Lisboa” de

Eric Sarner e Miguelanxo Prado44, a fantasmagoria que resis-

te ao cataclismo é percebida como tendo sede nas ruínas do

Carmo, que se erguem, implorando ao céu.

Quando, após algum tempo na Baixa a cidade plana nos sufoca;

quando procuramos em vão os 250 relógios que o Marquês de

Pombal, após o terramoto, aí mandou colocar para dar aos portu-

41] Pinna Mariano, Chronica in

A Ilustração, 5 Setembro, 1885.

42] Queiroz Eça de, op. cit.

43] Unamuno Miguel de, Por Terras de

Portugal e da Espanha, Lisboa: Assírio &

Alvim, 1989.

44] Sarner Eric, Carta de Lisboa, Lisboa:

Meibérica/Liber, 1998.

[75] A Baixa Pombalina como referência de produção artística e literária e cenário de uma tradição cultural

Page 76: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

45] Soares Bernardo, pseud., O Livro do

Desassossego, Lisboa: Assírio & Alvim, 1998.

46] Campos Álvaro de, pseud., Poesia,

Lisboa: Assírio & Alvim, 2002.

47] Campos Álvaro de, pseud., Ode

maritíma, Lisboa: Presença, 1995.

48] Crespo Ángel, op. cit.

[76] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

gueses a noção do tempo, quando queremos descobrir outras pers-

pectivas, temos o elevador de Santa Justa.

(…) Chegamos ao Carmo: uma das mais antigas igrejas de

Lisboa. Só estas duas, o Carmo e a Sé sobreviveram ao terramoto de

1755, mas o Carmo, mais antigo é ainda mais belo. A catástrofe de

há dois séculos só deixou de pé o pórtico, meio enterrado no chão, o

coro e quatro capelas. Caminhamos sobre a relva por entre peças de

cerâmica, estátuas jacentes, lajes com inscrições latinares e hebrai-

cas; o local tornou-se museu arqueológico a céu aberto. É aqui que

dormem todos os gatos, os pombos, eu sei lá a maior parte dos fan-

tasmas de Lisboa. Pedras, animais, fantasmas e, por cima a abóba-

da celeste. O Carmo Teatro, sem tecto. (…)

Já Gomes Leal, nas suas “Sombras de Génios Desgraçados

nas Ruas de Lisboa”, embate com o fantasma de Camões no

labirinto nocturno da cidade.

(…) Este vulto, portanto que caminha/ altas horas, ao frio da nor-

tada/ é Camões, que de fome se definha/ nas ruas de Lisboa abando-

nadas./ É Camões, a que a Sorte vil, mesquinha/ faz em noutes de

fome torturadas/ ele o velho cantor de heróis guerreiros/ vagas erran-

te como os vis rafeiros (…)

Fernando Pessoa, que viveu, trabalhou e jornadeou pela

Baixa, é o ponto focal do Modernismo e da lírica multifacetada

que escorre e corre na cidade. Nos paradoxos da memória, do

ser e do existir na tragédia “ridícula” do quotidiano, contra-

diz(-se) na sua imersão urbana na prestação da sua firma

“Comissões e Consignações”, situada na Rua do Ouro, 87 – 2º:

Amanhã também eu me sumirei da Rua da Prata, da Rua dos

Douradores, da Rua dos Fanqueiros. Amanhã também eu – a alma

que sente e pensa, o universo que sou para mim – sim, amanhã eu

também serei o que deixou de passar nestas ruas, o que os outros

vagamente evocarão com um o que será feito dele? 45

Tem ainda espaço para uma poética de deambulação que

a maquete gigante da baixa lhe incute, quando o frenesim

comercial da cidade se afasta, num exercício em que dialoga

mentalmente com Cesário Verde para se reconfortar ao verificar

a sua substância igual à dos versos dele:

(…) Amo pelas tardes demoradas de Verão/ O sossego da cidade

Baixa e sobretudo aquele/ Sossego que o contraste acentua na parte

que/ O dia mergulha em mais bulício (…)

A sua melancolia é irredutível e no aparelho do contradi-

tório procura o gume do (des)equilíbrio:

(…) Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora e de hoje/ Nada me dais,

nada me tirais, nada sois que eu me sinta(…) 46

A imagem de Lisboa da sua infância, da sua velha casa do

Chiado em que das janelas avistava o Tejo, e o exorcismo da

sua evocação, provocam-lhe uma inexplicável ternura.

(…) E o que há de suavidade e de infância na hora matinal/ Uma

gaivota que passa,/ E a minha ternura é maior 47

Quando se passa na Rua dos Douradores a distinção entre

a realidade e a ficção de Pessoa parece não existir segundo

alguns. Daqui se chega no final ao café do Martinho da Arcada

que era dos refúgios predilectos de Pessoa. Dele e dos seus com-

panheiros do Orpheu e de outros escritores, habituais ou ocasionais

companheiros de tertúlia, entre os quais se conta sem dúvida o enge-

nheiro naval Álvaro de Campos, também colaborador da Revista.48

Page 77: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

Faltou referir os cafés modernistas durante o Estado Novo

e os movimentos artísticos que neles foram gerados e bem

assim todos os outros espaços de sociabilidade. Faltou referir

o período da guerra através das descrições fundamentais de

José Rodrigues Miguéis. Faltou referir poetas imprescindíveis

deste período que se estende até à Revolução de Abril de 1974,

como David Mourão-Ferreira, Alexandre O’Neil, Manuel

Alegre e Ary dos Santos, ou mesmo Ruy Belo e João Miguel

Fernandes Jorge. Nuno Bragança é um prosador que se deve

seguir. O Livro de Bordo de José Cardoso Pires é um documento

testemunhal e vivencial valiosíssimo, publicado em 1998,

durante a Expo’98. Mas faltou também mencionar a dessa-

cralização e o aviltamento do Terreiro do Paço, transformado

em parque de estacionamento com o crescimento e o enri-

quecimento da classe média, sinal de um certo “desprezo”

pela “sala de visitas” da cidade e pela Baixa. O centro do

poder político foi tomado de assalto e invadido pelo automó-

vel com a perturbação e o congestionamento e a sensação de

abandono do espaço público. Quando se conseguiu em 1996

evacuar os carros da praça, ela retoma a sua dignidade e a sua

grandeza de espaço solene e de representação. Percebe-se que

seria imperativo reequacionar o futuro da praça numa escala

de novas centralidades urbanas – o caso do Parque Expo – e

outras suburbanas, a aproximação às áreas ribeirinhas e a

recuperação das áreas verdes induzem frentes de mudança.

A Baixa já não pode esperar!

[77] A Baixa Pombalina como referência de produção artística e literária e cenário de uma tradição cultural

Óculos de Fernando Pessoa pousados sobre a obra “The Last Empires of the Modern World”, s.d., à esquerda aassinatura do escritor. Fotógrafo não identificado, Arquivo Municipal de Lisboa – Arquivo Fotográfico.

Page 78: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

A gestão integrada de um sítio já incluídona Lista do Património Mundial.

O caso de Évora

Manuela Oliveira

Page 79: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

[79] A gestão integrada de um sítio já incluído na Lista do Património Mundial. O caso de Évora

Centro Histórico, património de Évora,património da HumanidadeCom vestígios de estabelecimentos humanos dasmais remotas civilizações pré-históricas, foi noperíodo romano que Évora assumiu importânciacomo centro urbano importante. Manteve esse

Panorâmica da Cidade de Évora,pormenor do casario, década de 1990.

Câmara Municipal de Évora.

Page 80: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

estatuto no período árabe (embora tenham sobrevivido

menos vestígios) e, com a cristianização, continuou a

desempenhar um importante papel de pólo regional.

Durante os séculos XV e XVI assumiu grande importância

política, cultural e religiosa, quando Évora foi sede da corte,

durante longos períodos. Desta época ( a “Idade de Ouro”

da cidade) ficaram palácios, igrejas, o aqueduto, as fontes

e outros monumentos ímpares. No século XVII, Évora entra

em declínio.

Foi em meados do século XIX que se iniciou a conscien-

cialização do riquíssimo património existente. Mas foi já nos

princípios do Século XX que o Grupo Pró-Évora, reunindo

muitos dos intelectuais da cidade, e a Direcção dos

Monumentos Nacionais promoveram não só a defesa como o

restauro de monumentos que ainda hoje são símbolos da

cidade – muralhas, aqueduto, fontes, antigos conventos, etc.

Simultaneamente, muitas ruínas foram definitivamente

arrasadas – sobretudo conventos que tinham ficado vazios

e sem utilização. Algumas dessas intervenções foram consi-

deradas radicais, mas também se reconhece que foram

vitais para o desassombramento do tecido urbano e para a

sua adaptação às novas necessidades, permitindo a cons-

trução nesses espaços de grandes equipamentos – teatro,

cinema, mercado, correios, tribunal…

Uma Cidade MediterrânicaCento e quatro hectares de solo construído, rodeados por

uma cintura de muralhas medievais com mais de três qui-

lómetros, este centro denso, multifuncional, multicultural,

integrado socialmente, isto é, tipicamente mediterrânico, é

património da cidade de Évora, do país e do mundo.

A dimensão do Centro Histórico de Évora e as suas carac-

terísticas de cidade do sul conferem-lhe um carácter único

no país, onde simultaneamente a unidade e a diversidade

de situações exigem intervenções específicas.

A evolução demográfica recenteAs muralhas medievais comportaram a cidade e as suas

necessidades de crescimento durante muitos séculos.

Mas em finais do século XIX e princípios do século XX a

cidade precisava de crescer. Dentro das velhas muralhas

construíam-se primeiros, segundos e terceiros andares para

albergarem as populações que começaram a aumentar por

motivos de melhorias sanitárias e, mais tarde pela vinda de

pessoas que saíam massivamente dos campos, pela mecani-

zação da agricultura. Nos anos 40 do Século XX a cidade

intra-muros atingia cerca de 20.000 habitantes, nessa área

de 104 hectares. Como era difícil erigir mais construções, as

famílias mais pobres amontoavam-se em minúsculas habi-

tações. Por vezes, várias gerações de uma família conviviam

no mesmo exíguo espaço.

Mas a cerca amuralhada não aguentava mais a crescente

pressão demográfica. Sobretudo a partir dos anos 40, a

expansão urbana extra-muros foi-se fazendo: a insuficiente

iniciativa pública para ordenar o crescimento obrigou a

cidade a crescer em pequenos núcleos dispersos, muito afas-

tados uns dos outros e até do centro – uma constelação de

pequenas “aldeias”, origem de muitos dos problemas estru-

turais de que Évora ainda sofre.

Pouco a pouco, as populações começaram a escolher o

exterior das muralhas para residir – as que viviam intra-

[80] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 81: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

muros e precisavam de mais espaço vital e as que vinham

do campo para a cidade.

A partir de década de 50 o processo de despovoamento

do centro nunca mais foi controlado – o centro perdeu o

equilíbrio funcional.

Os planos de ordenamento físico, de circulação etransportes, de salvaguarda do patrimónioNão foi por falta de planos que a cidade se vê confrontada

hoje com graves problemas.

Nisso, o município foi pioneiro. Évora elaborou e fez

aprovar o primeiro PDM do país, teve o primeiro Plano de

Circulação e Transportes e o primeiro Programa de

Recuperação do Centro Histórico. São peças realmente inte-

ressantes do ponto de vista de gestão urbana e ainda hoje

são fontes válidas onde se pode procurar inspiração para as

propostas a fazer.

As políticas sectoriais e as suas limitaçõesDe facto, durante as últimas décadas a Câmara sempre se

preocupou com a parte da cidade confinada às muralhas.

Muito se fez, exclusivamente com os escassos meios da

autarquia:

• Criou-se um serviço municipal no princípio dos anos 80

responsável por políticas específicas, mas também pela

coordenação das restantes intervenções no centro;

• Criaram-se programas municipais de recuperação de

fogos, concedendo, dos meios financeiros municipais,

verbas a fundo perdido para telhados, estruturas, constru-

ção de instalações sanitárias, pinturas, recuperação de caixi-

lharias;

• Promoveu-se, através de negociações, a recuperação de

alguns grandes imóveis e palacetes para sedes de serviços

administrativos e financeiros;

• Condicionou-se o trânsito automóvel, construíram-se par-

ques de estacionamento, pedonalizaram-se e trataram-se

eixos comerciais;

• Dificultou-se a terciarização;

• Reabilitaram-se muitas infraestruturas básicas; introdu-

ziu-se a TV por cabo;

• Requalificou-se toda a “coluna dorsal” dos eixos comer-

ciais e outros espaços públicos foram valorizados;

• Pautou-se a apreciação dos projectos pelo rigor dos regu-

lamentos e dos planos.

• O centro histórico ganhou notoriedade; a maioria dos

moradores compreendeu o desafio do património; o comér-

cio, a restauração e a hotelaria adaptaram-se razoavelmente

à nova procura dos turistas e dos estudantes.

Mas o saldo é deficitário – no essencial, extensas áreas da

cidade estão por reabilitar e a população continuou a

decrescer a um ritmo acelerado.

As dificuldades de gerir as grandes oportunidadesque atingiram o Centro Histórico de ÉvoraA classificação da cidade como Património da Humanidade

em 1986 foi um grande êxito para a cidade. Trouxe prestígio

nacional e internacional e um grande aumento de turistas.

Provocou a construção de muitos hotéis e restaurantes e pro-

moveu o aparecimento de diversos serviços e comércios.

Mas não trouxe os meios para que o património, objecto

de classificação e prestígio, fosse valorizado, melhor defen-

[81] A gestão integrada de um sítio já incluído na Lista do Património Mundial. O caso de Évora

Page 82: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

dido, mais vivido. Nunca houve da parte da Administração

Central um tostão que fosse para apoiar políticas dirigidas

ao património e às gentes que nele vivem.

Por seu lado, a Universidade de Évora, que renasceu

verdadeiramente nos anos 80, teve um grande impacto na

cidade – edifícios recuperados para colégios e residências,

aparecimento de um comércio dirigido às camadas mais

jovens e de restaurantes adaptados à procura dos estudantes.

A cidade ficou mais aberta e mais cosmopolita.

Mas o turismo e a juventude provocaram também a aber-

tura de bares e discotecas, tendo com isso aumentado os

conflitos com os residentes – ruído, vandalismo, etc.

Os residentes continuaram a sair da cidade, cedendo

agora muitos dos seus espaços aos estudantes.

A situação actual – o despovoamento como prin-cipal motivo de preocupaçãoPara o Centro Histórico de Évora, estão adquiridas situações

positivas, praticamente incontestadas:

• a consciência do património e a sua importância para a

cidade;

• a receptividade ao fenómeno do turismo;

• a existência de uma linha dorsal de espaços públicos bem

tratados mais ou menos pedonalizados, ao longo do qual se

distribui o comércio central da cidade (que cumpre tam-

bém funções regionais);

• uma concentração de serviços centrais e regionais, que

deve sofrer alguns ajustamentos e reduções sem, contudo,

provocar novos processos de “desvitalização”;

Muitas debilidades podem ser enunciadas, desde a

mobilidade e acessibilidades, ao défice de espaços verdes

e de espaços livres públicos em certas zonas, a degrada-

ção de tecido edificado, a falta de serviços e equipamen-

tos de proximidade, mas o maior e mais preocupante é o

despovoamento continuado e com tendência para se

agravar.

Por isso, vamos propositadamente despojar a nossa aná-

lise dos desajustamentos que afectam os sectores acima

descritos e focar a nossa atenção nestes factos: o Centro

Histórico de Évora tem pouco mais de 1/4 da população que

detinha em 1940; por outro lado, é um dos maiores do país

em área (104 ha dentro das muralhas), o que dá ideia da ver-

dadeira extensão dos problemas.

Ninguém defende que 20.000 habitantes eram a popula-

ção ideal para o equilíbrio do centro – a maioria das opi-

niões fixa esse número entre 8.000 e 12.000 habitantes.

As causas Uma sondagem feita com o apoio dos alunos de uma Escola

Secundária, embora sem grande rigor científico, demonstra

que as razões que provocaram a saída das pessoas são de

vária ordem. Vamos listar algumas:

• o desajustamento das tipologias existentes à procura –

casas muito pequenas, com problemas de salubridade ou

então casas muito grandes, com grandes custos de manu-

tenção, recuperação e adaptação;

• o défice de equipamentos e serviços de proximidade;

• o défice de estacionamentos junto das residências;

• problemas de mobilidade e acessibilidade – conflitos com

o automóvel nas ruas e travessas estreitas;

[82] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 83: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

• o custo das casas e das recuperações (nítida especulação

imobiliária);

•as incomodidades provocadas pela vida nocturna intensa

– bares, discotecas…;

• os condicionalismos para obras e transformações devidos

à classificação patrimonial;

• a “moda” de viver nos bairros espaçosos e nos condomí-

nios fechados;

• preferência por novos modelos de habitar (casas novas);

• falta de atractividade de algumas zonas do centro;

• fraca atractividade para os investidores privados.

Os números dos Censos e um inquérito feito pelo serviço

são elucidativos:

• a maioria dos residentes são idosos;

• a maioria das casas estão ocupadas em regime de arren-

damento e as rendas são baixas;

• a percentagem de edifícios degradados é grande; a de devo-

lutos também é significativa.

Alguns casos de sucessoAs novas casas construídas no Centro Histórico, mesmo

núcleos com média e grande dimensão têm tido muito

sucesso – normalmente, vendem-se antes de estarem cons-

truídas.

As suas características são favoráveis – tipologias adapta-

das à procura, terraços ou outros espaços de ar livre para

estar, garagens para estacionamentos, relativo isolamento

de zonas de bares.

Estes casos de núcleos novos vão contribuir certamente

para a revitalização residencial do centro, mas poucos mais

espaços restam para poderem ter o mesmo tipo de trata-

mento de construção integral.

Mas outra zona da cidade tem chamado a nossa atenção –

o relativamente elevado número de casas recuperadas na zona

das Alcaçarias/Fontes, quanto a nós relacionado com as tipo-

logias dominantes (T3/T4), a existência de pequenos quintais

e de garagens, o relativo afastamento das zonas barulhentas.

Apoiando esta observação empírica, os dados demográ-

ficos por subsecções estatísticas demonstram que algumas

pequenas áreas tiveram ganhos populacionais nos últimos

10 anos, mas tudo isto merece um estudo mais aprofun-

dado, que não houve tempo para realizar ainda.

A cidade intra-muros não é homogéneaO tecido urbano da cidade intra-muros não é homogéneo.

É atravessado pelo “esqueleto” terciário, com funções que

ultrapassam a cidade – serve o distrito, a região, os estu-

dantes de todo o país e os turistas de todo o mundo. Ainda

está em curso a intervenção URBCOM/EVORACOM com o

objectivo de requalificar toda esta zona e transformá-la em

espaços atractivos para empresários e utilizadores.

Para além deste espaço apropriado por públicos muito

diversificados, existe um outro que tentaremos caracteri-

zar, no miolo deste “esqueleto”. Definiram-se provisoria-

mente zonas com características comuns.

Em primeiro lugar, as três grandes zonas consideradas

de mais difícil intervenção em termos de recuperação/rea-

bilitação de edifícios, no sentido de dar prioridade à função

habitacional, são, a nosso ver:

• a zona da Judiaria (rua Serpa Pinto/rua Bernardo de

Matos) é muito densa, com construção em altura, consti-

[83] A gestão integrada de um sítio já incluído na Lista do Património Mundial. O caso de Évora

Page 84: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

tuída sobretudo por grandes e médios edifícios, apresenta

diferentes situações de propriedade e arrendamento, num

imbricado tecido urbano sem ventilação transversal nem

espaços livres, e reduzidas intervenções de profunda recupe-

ração nos últimos anos;

• a zona de Mouraria é densa também (embora menos), com

fogos mais equilibrados em termos de tipologias, mas com

problemas de estacionamentos e sem espaços livres públicos

com funções ligadas à fruição dos moradores;

• no sector entre a Rua de Aviz e a Rua Cândido dos Reis,

repetem-se os problemas dos quarteirões densos, embora

com alguns espaços públicos interessantes que exigem nova

atenção.

Algumas outras zonas, menores em extensão, apresentam,

contudo problemas idênticos de grandes densidades, défice

de espaços livres e de estacionamentos:

• área entre a Rua Cardeal Rei e a Rua Joaquim Henrique da

Fonseca;

• zona envolvente do Convento de Santa Clara;

• zona da Rua do Calvário/Rua Cândido dos Reis.

Outras áreas sofrem de outros males estruturais – são as

zonas periféricas, de franjas urbanas nas proximidades das

muralhas, com espaços vazios desqualificados, com antigas

oficinas, fábricas e armazéns degradados, menor densidade

de ocupação:

• entre a Rua das Alcaçarias e as Muralhas;

• Portas de Machede/Hospital Velho;

• Rua dos Penedos e travessa dos Lagares (esta em vias de

alguma de alguma recuperação);

• Travessa da Palmeira;

• Rua do Muro.

As restantes áreas da cidade intra-muros apresentam

características bem distintas – quarteirões amplos, espaços

públicos generosos, igrejas, antigos conventos, grandes

solares com pátios interiores, muitos deles de grande valor,

diferentes necessidades de recuperação:

• zona do Templo e Acrópole, mais propriamente o núcleo

urbano interior à Cerca Velha;

• zona da Universidade;

• zona da Graça/Eborim/S. Francisco.

Existem ainda algumas zonas mistas e de transição.

Diferentes abordagens para uma nova tentativade resolver os problemas do CHEHá alguns meses reflectimos sobre as políticas “tradicio-

nais” e os respectivos resultados e propomos agora uma

metodologia de ataque aos problemas do Centro Histórico,

nomeadamente tendo como pano de fundo a magna ques-

tão do despovoamento.

Achamos que são necessários instrumentos a várias esca-

las que se compatibilizem e complementem entre si.

a) Em primeiro lugar, o Centro Histórico tem de redefinir

o seu papel no conjunto da cidade – que funções comerciais

e serviços se pretendem manter, instalar ou retirar do cen-

tro; como promover a permeabilidade das muralhas, da cir-

cular viária, da coroa de parques de estacionamento; como

resolver o problema geral da mobilidade urbana. O Centro

[84] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 85: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

Histórico é, em Évora, a peça central do equilíbrio urba-

nístico e funcional da cidade no seu todo. Vai ser feita uma

discussão que terá de ser aprofundada e consequente – as polí-

ticas urbanísticas e outras têm de reflectir essas opções.

b) As chamadas políticas sectoriais serão reavaliadas e apli-

cadas, nomeadamente:

• a modernização do comércio e o tratamento dos eixos

principais;

• a atracção de um turismo sustentável;

• a salvaguarda, a recuperação e a valorização do patrimó-

nio; a arte pública;

• a reabilitação da habitação;

• a melhoria das acessibilidades e das condições de cir-

culação;

• um mobiliário urbano atractivo e disperso por toda a

cidade;

• a melhoria do ambiente urbano e dos espaços verdes;

• a reabilitação das infra-estruturas básicas;

• a rede de equipamentos e serviços de proximidade;

• a melhoria da iluminação urbana ambiental;

• a animação cultural (nomeadamente de rua);

• uma política forte de marketing para a promoção do cen-

tro como sítio agradável para viver;

• a luta contra a especulação imobiliária.

c) Por seu turno, exigem-se, em muitos casos, intervenções

específicas e acções integradas. Alguns exemplos:

I) num caso, será a reestruturação fundiária o problema

principal, o que permitirá intervir de forma a concentrar a

acção num grupo de edifícios, dotando-os de nova estrutu-

ra tipológica, novas condições de higiene e salubridade,

espaços livres entre edifícios, isto sem pôr em causa a pre-

servação do património entendendo-a, antes, de forma

dinâmica;

II) noutro caso, pode ser a recuperação de alguns edifícios,

a criação de espaços para estacionamentos, a construção de

equipamentos colectivos de proximidade, a remodelação de

infra-estruturas de saneamento ou a melhoria dos pavimen-

tos das ruas;

III) noutro caso ainda, passará pela recuperação de grandes

edifícios ou casas senhoriais;

IV) uma antiga área de fábricas e oficinas será possivelmen-

te objecto de um plano de pormenor que definirá, dentro

dos objectivos genéricos, formas e tipos de ocupação mais

adequados às necessidades dos moradores e do próprio

Centro Histórico;

V) num quarteirão muito denso devem ser encontrados

atravessamentos (até por razões de segurança contra sismos

e incêndios), que podem não passar necessariamente por

cortes no edificado, mas, por exemplo, por percursos mais

visíveis. Tornar visíveis ou visitáveis pátios interiores (e em

Évora há-os às dezenas), também pode contribuir para a

“abertura” de alguns quarteirões;

VI) as dezenas de pátios e becos, espaços sem estacionamen-

tos nem trânsito, podem ser requalificados no sentido de

[85] A gestão integrada de um sítio já incluído na Lista do Património Mundial. O caso de Évora

Page 86: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

[86] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

permitirem criar melhores condições aos residentes, pro-

longando para a rua o espaço habitável, com melhorias de

pavimentos, com mobiliário urbano, etc.

d) Sectores urbanos podem exigir projectos-piloto de estudo

e experimentação

Pensar o Centro Histórico como um todo, actuar localmente A classificação do Centro Histórico de Évora como Patri-

mónio Mundial trouxe prestígio, orgulho, sentimento de

pertença. Trouxe também mais turistas e respectivos ren-

dimentos.

Mas trouxe responsabilidades acrescidas ao município e

a todos os cidadãos, sem qualquer contrapartida em verbas

e outros instrumentos para a recuperação e valorização do

Património de toda a Humanidade.

As consequências mais visíveis desse facto são a degra-

dação, o despovoamento e a valorização artificial dos imó-

veis (especulação).

O nosso objectivo é, não perdendo nunca de vista o

grande conjunto classificado património da humanidade,

enriquecendo-o e animando-o, torná-lo atractivo para os

moradores, descendo na análise e na intervenção até onde

for necessário.

Compatibilizar a salvaguarda do património com a

melhoria das condições de habitabilidade e com os padrões

contemporâneos de vida é o grande desafio que se nos coloca.

Aprofundar os estudos, pôr equipas pluridisciplinares

no gabinete e no terreno, envolver os moradores e encon-

trar, para cada caso que não se encaixe nos programas sec-

toriais, as medidas necessárias à sua resolução, parece ser o

caminho para fixar e atrair de novo os moradores ao centro.

Esta fórmula exige, nomeadamente:

• maior envolvimento dos eleitos;

• equipas pluridisciplinares de estudo e acção;

• maior coordenação das instituições (IPPAR, Monumen-

tos Nacionais, Segurança Social, INH, Educação, Saúde,

Desporto,…);

• programas específicos para problemas específicos;

• maiores volumes, flexibilidade, concentração e coorde-

nação de meios financeiros;

• novos instrumentos jurídico-administrativos para a inter-

venção (regime especial de expropriações, programas-piloto,

planos de pormenor, desburocratização);

• parcerias público/privado/cooperativo.

Atrair de novo os moradores tem de ser à custa de lhes dar

a importância que eles exigem – recuperar o património

habitacional de forma inovadora, mas ir mais além, desde

o lugar de estacionamento ao estendal para a roupa, desde a

escola primária ao banquinho no largo, desde a ajuda à com-

pra da habitação ao projecto da casa de banho, desde a festa

tradicional à imagem do Santo patrono daquela rua, um sem

número de problemas e soluções que teremos de construir

como um puzzle, por vezes à escala 1/1, se necessário.

Page 87: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

[87] A gestão integrada de um sítio já incluído na Lista do Património Mundial. O caso de Évora

Fotografia aérea, zona monumental dentro da Cerca Velha, década de 1990. Câmara Municipal de Évora.

Page 88: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

Baixa Pombalina de Lisboa e o Património da Humanidade:

um pequeno contributo

João Manuel Belo Rodeia

Page 89: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

[89] A Baixa Pombalina de Lisboa e o Património da Humanidade: um pequeno contributo

Em 1972, com a Convenção para a Protecção doPatrimónio Cultural e Natural do Mundo,a UNESCO reconheceu o valor extraordinário einsubstituível de um conjunto de bens culturaise naturais, cujo eventual desaparecimentoempobreceria a herança colectiva da Humanidade.

Panorâmica da Praça Dom Pedro IVtirada do Elevador de Santa Justa,

início do séc. XX. Autor: José António Leitão Bárcia.

Arquivo Municipal de Lisboa – Arquivo Fotográfico.

Page 90: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

Considerou-o, por isso, merecedor de protecção especial

diante de qualquer ameaça à respectiva integridade e, para

isso, numa perspectiva mundial e universalista, criou uma

lista seleccionada desses bens culturais e naturais.

Entre os critérios gerais para acesso de bens patrimo-

niais a esta lista excepcional, destacam-se os seguintes:

1) Representarem uma obra-prima do génio artístico

da Humanidade;

2) Constituírem um modelo fundamental no quadro

patrimonial do seu tempo;

3) Manifestarem o intercâmbio de valores culturais da

Humanidade;

4) Testemunharem uma tradição cultural específica;

5) Demonstrarem a celebração de ideias, crenças, even-

tos e tradições específicas, locais ou globais;

6) Terem protecção adequada que assegure a respecti-

va conservação, salvaguarda e valorização;

7) Manterem integridade e autenticidade em função

do respectivo modelo e/ou carácter.

Com o decorrer do tempo e o crescimento da lista,

a UNESCO tem também avaliado as múltiplas candida-

turas mediante a comparação da especificidade respecti-

va com a de bens análogos já inscritos, e em função da

escassez ou inexistência de bens idênticos na lista, dando

igualmente prioridade a países ainda sem património

inscrito.

À partida, a Baixa Pombalina de Lisboa reúne um con-

junto de circunstâncias e valores extraordinários que,

pesem embora algumas dúvidas pertinentes diante da

actual situação patrimonial e vivencial, respondem e cor-

respondem à maioria dos critérios anteriores. Destacam-

se os seguintes:

a) A implementação e representação de uma síntese

consciente, original e paradigmática no quadro dos mode-

los europeus até ao século XVIII, nomeadamente Londres

(Reino Unido, 1667) e Turim (Itália, 1673 e 1712/14), mas

também Viena (Áustria, 1683), S. Petersburgo (Rússia, 1730)

e Nancy (França, 1752).

b) A implementação e representação de uma síntese

inovadora, não apenas pela construção de uma nova

cidade no centro da cidade sobre terrain vague, nem ape-

nas pelas características urbano-arquitectónicas em si

mesmo, sejam espaciais e/ou estéticas, mas também pela

sensibilidade articulada com as pré-existências periféri-

cas, sejam construídas ou topográficas, também evidente

no eixo pombalino da Sétima Colina. A este propósito,

recordem-se as palavras de Manuel da Maia quanto às

experiências internacionais, bem demonstrativas da

consciência plena da solução encontrada: em relação a

Londres – “não se adapta a Lisboa pela falta de unidade

coerente – e a de Turim – lugar onde nada fora arrasado

por qualquer acidente, tratando-se antes “mais diverti-

mento do que trabalho”.

c) A implementação e representação de uma síntese

sedimentar a partir de prévias experiências locais, em

particular do Esprit de Géometrie do Bairro Alto, de algumas

das cidades coloniais e das múltiplas reformas urbanas

introduzidas em Lisboa com a chegada do Aqueduto das

Águas Livres e respectivos ramais.

d) A implementação e representação de um plano tri-

dimensional praticamente inédito, muito eficaz nos sis-

[90] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 91: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

temas tipológicos standart, minuciosamente desenhado,

não apenas quanto a frentes de rua, como na organização

espacial dos edifícios, materialidade e sistemas constru-

tivos, e respectivas infra-estruturas. Pela rapidez com que

o projecto foi desenvolvido, pelo domínio do carácter tri-

dimensional e pelas técnicas utilizadas (o sistema estru-

tural de gaiola e os corta-fogos obrigatórios reassegura-

vam a necessidade de construir o edifício como um todo),

o exemplo da Baixa é também notável. Registe-se que em

casos semelhantes, como na Place Vendôme ou na Rue

Royale, em Paris, no tempo de Luís XV, apenas se haviam

desenhado as fachadas e, durante muito tempo, a primeira

pareceu um autêntico biombo e a segunda permitia-se

à compra de fachada pelo respectivo proprietário, sem

qualquer modelo tridimensional.

e) O ineditismo do extraordinário enquadramento e

mobilização de pessoas, instrumentos e meios: os instru-

mentos legais, administrativos e financeiros; a invulgar

coordenação entre interesses públicos e privados; o apoio

expresso de uma nova burguesia comercial e mercantil

(4% sobre os despachos alfandegários; até 1780, dos 620 pré-

dios construídos, apenas 10 são propriedade da nobreza),

assim como dos intelectuais da Arcádia Lusitana, apesar da

relação ambígua com o poder pombalino.

f) Neste contexto mais alargado, a consubstanciação

da atitude iluminista do Marquês de Pombal e dos seus

arquitectos, concentrando exemplos paradigmáticos

e visionários da época em caso único, cuja concretiza-

ção e tradição evoluirá até, pelo menos, ao final do

século XIX, bem como a plena demonstração de um novo

tipo de propósito e sensibilidade: o bem-comum e a coisa

pública. Ou seja, fala-se não apenas de um extraordinário

plano total como também da própria cidade como

projecto, da transformação do bem-comum utilitário

na respectiva representação espacial e dimensão estética,

do constante compromisso entre público e privado,

do sentido integrado com a cidade antiga e de uma nova

ordem ilustrada, onde o bem-comum e a coisa pública

assumem um significado fundamental. Fala-se, assim,

da plena demonstração da vocação iluminada de Lisboa

no contexto global do seu tempo, autêntico monumento

da ilustração europeia e, em simultâneo, também monu-

mento visionário da cidade romântica do século XIX,

cujos valores fundamentais permanecem, ainda hoje,

na ordem do dia.

Porém, em face da actual situação da Baixa Pombalina

no âmbito patrimonial respectivo e no quadro lisboeta,

haverá que ponderar, entre outros, alguns dos seguintes

problemas:

a) Equacionar o papel da Baixa no contexto de uma

visão global para a cidade de Lisboa, ou melhor, da cidade

entendida como Projecto;

b) Implementar e definir uma nova totalidade para a

Baixa, incluindo as áreas adjacentes e o espaço público,

seja na perspectiva da conservação como da valorização

contemporânea, mediante uma equipa multidisciplinar

de reconhecido mérito, capaz de juízos de valor e de gerar

consensos e sinergias;

c) Associar-lhe um modelo culto e exigente de gestão

integrada e assegurar a respectiva continuidade no tempo,

para além dos ciclos políticos;

[91] A Baixa Pombalina de Lisboa e o Património da Humanidade: um pequeno contributo

Page 92: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

d) Enfrentar a desfiguração resultante das modifica-

ções do tempo na respectiva autenticidade e integridade,

considerando o todo como somatório de todas as acções e

experiências que o mesmo tempo sedimentou, desde que

identificadas e associadas a acréscimo de valor;

e) Garantir este património como suporte do habitar

colectivo e no quadro da civilidade e cidadania, enquanto

coisa viva que as pessoas têm direito de usufruir e na qual

têm direito de viver e participar. Em geral, não faz sentido

a cristalização da maior parte deste património fora da

vida quotidiana dos cidadãos, na certeza da urgente neces-

sidade de sediar novos residentes na Baixa em face da

actual escassez. Aliás, não há património arquitectónico

sem pessoas e vida própria;

f) Implementar acções de pedagogia junto da comuni-

dade, nomeadamente no quadro formativo dos mais jovens.

Em jeito de conclusão, dir-se-ia que a Baixa Pombalina

de Lisboa reúne, à priori, todas as condições para uma even-

tual candidatura à lista do Património da Humanidade.

Porém, em face do actual estado generalizado de depressão

urbana, há ainda muito a fazer para tornar esta candida-

tura viável no exigente quadro da UNESCO.

Porém, convirá nunca esquecer que qualquer reconheci-

mento internacional não é um fim em si mesmo, mas antes

consequência de um projecto sedimentar e de obra bem rea-

lizada no contexto do mesmo bem-comum que inspirou os

homens e as acções destes no tempo de Pombal.

[92] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 93: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

[93] A Baixa Pombalina de Lisboa e o Património da Humanidade: um pequeno contributo

Panorâmica tirada do Castelo de São Jorge 1949/51. Autor: Horácio Novaes. Arquivo Municipal de Lisboa – Arquivo Fotográfico.

Page 94: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

Os Objectivos do Comitédo Património Mundial

BenedicteSelfslagh

Page 95: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

[95] Os Objectivos do comité do Património Mundial

Vous avez ces deux derniers jours étudié le casde Baixa sur toutes les coutures et vous venezd’entendre ce que ça comporte la gestion d’un sitedu Patrimoine Mondial. Il me revient de placer tousces travaux dans le contexte plus général destravaux du Comité du Patrimoine Mondial.

Panorâmica de Lisboa, o rio Tejo em frente do Arsenal

de Marinha, post. 1935. Autor: Judah Benoliel.

Arquivo Municipal de Lisboa – Arquivo Fotográfico.

Page 96: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

Je serais fidèle au titre de mon exposé. Ça veut dire que je

vais vous parler beaucoup de certains principes et je vous

prie de m’excuser, mais je ne vous emmènerai pas, aujour-

d’hui, visiter les nombreux sites du Patrimoine Mondial.

Le premier aspect dont je voudrais vous parler est inti-

tulé «La Convention du Patrimoine Mondial» car je voulais

vous rappeler quelques chiffres.

La Convention a été adoptée en 1972 et elle est entrée en

vigueur en 1976. Ça veut dire, dès en fait, la fin de 1975, vingt

États avaient ratifié cette Convention déjà, et elle est entrée

en vigueur. Ce qui est très rapide pour une Convention inter-

nationale. Aujourd’hui il y a 176 États-partie, ce qui veut dire

que nous avons atteint presque l’universalité.

Il y a 754 biens inscrits sur la Liste du Patrimoine Mondial

à ce jour, dont 35 sont inscrits sur la Liste du Patrimoine

Mondial en péril.

Je passe à vous présenter les différents acteurs. Il y a une

Assemblée Générale des États-partie qui réunit tous les ans

les 176 États et cette réunion aura lieu la semaine prochaine

et ces états vont élire les nouveaux membres du Comité. Le

Comité du Patrimoine Mondial est l’organe de décision de

cette Convention et il est composé de 21 États-membres. Le

Portugal en fait partie actuellement. La Belgique, que je

représente en faisait partie également, mais nous avons déci-

dé de mettre fin à notre mandat maintenant afin de pro-

mouvoir la rotation au sein du Comité.

Le Comité a également un secrétariat qui est à sa dis-

position, il est plus connu sous le nom du Centre du

Patrimoine Mondial et c’est une unité de l’Unesco. Ceci

étant dit, le secrétariat est évidemment appelé à être neutre

devant tous les pays, donc le Comité peut s’appuyer sur des

organisations consultatives qui fournissent un avis sur les

différents dossiers et les différentes questions. Il s’agit pour

le patrimoine culturel de l’ICOMOS que vous connaissez

bien, pour le patrimoine naturel, de l’IUCN et pour les

questions de formation, du ICCROM.

Les tâches du Comité du Patrimoine MondialEn fait je dirais qu’il y en a trois qui sont absolument fon-

damentales. C’est d’une part décider qu’elles sont les sites

qui seront inscrits sur la Liste du Patrimoine Mondial.

Donc, petite parenthèse, quand vous lisez dans un journal

que l’Unesco a inscrit un site sur la Liste du Patrimoine

Mondial, vous savez maintenant que c’est au contraire un

Comité intergouvernemental qui le fait, parce que jamais

un état n’aurait accepté de confier une tâche aussi impor-

tante et aussi délicate à un Secrétariat, donc c’est une peti-

te parenthèse.

Alors, en moyenne, jusqu’à présent, nous avons eu 40

inscriptions par an. Ça veut dire que le Comité doit étudier

des dossiers, des évaluations de plus de 40 sites par an.

Ce qui est énorme, car le Comité ne se réunit qu’une fois

par an. Le Comité examine aussi l’état de conservation des

biens qui sont inscrits et en moyenne il y a, ces dernières

années, une centaine de rapports sur l’état de conservation

des biens. Cette année au mois de juillet nous en avons eu

même plus, je crois qu’il y en avait 130.

Enfin le Comité attribue l’assistance internationale en

décidant de l’affectation du Fonds du Patrimoine Mondial.

Vous verrez sur la diapositive que le fonds qui est alimenté

notamment par les contributions des États-partie s’élève à

environ 8 millions de dollars des États Unis. Mais en réalité

[96] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 97: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

il faut ajouter à ces 8 millions l’argent du budget ordinaire

de l’Unesco qui soutient principalement le secrétariat. Il y a

des fonds en dépôt qui sont créés par plusieurs États-partie,

il a des partenaires avec des autres organisations interna-

tionales, voire avec le secteur privé, ce qui veut dire qu’en

réalité le budget qui est consacré est d’au moins 28 millions

de dollars des États-unis. Évidemment, à l’heure actuelle,

on aurait préféré parler en Euros, mais ce n’est pas le cas.

Ceci étant dit, c’est encore une sous-estimation importante

du budget réel, parce que ne sont pas comptés là-dedans

tous les investissements qui se font dans les États, que ce

soit au niveau national ou au niveau des collectivités régio-

nales ou locales ou les Mairies.

Un résumé des tendancesLa Convention a donc 30 ans, après les balbutiements du

début, nous pouvons dire que la Convention est en pleine

croissance et que les accents ont changé. Au départ toute

l’attention était focalisée sur les inscriptions sur la célèbre

Liste du Patrimoine Mondial. Aujourd’hui nous attachons

de l’importance tant aux inscriptions qu’à l’État de conser-

vation des biens et vous avez entendu, notamment par l’ex-

posé de Madame, combien c’est important.

Au départ aussi, la souveraineté des états était invoquée

à tout moment. Aujourd’hui la souveraineté étant toujours

aussi importante, parce qu’il faut rappeler que la toute pre-

mière responsabilité vis-à-vis des sites du Patrimoine

Mondial incombe toute de même aux États, et d’ailleurs

cela figure dans le texte de la Convention, mais parallèle-

ment, il n’y a pas de Convention internationale si on ne met

pas quelque chose dans un panier commun, donc cette

Convention est l’expression d’une volonté de coopération et

de la solidarité internationale.

Troisième élément c’est qu’au départ le Comité organi-

sait son travail en fonction des demandes qui étaient for-

mulées par les États. Soit des demandes d’assistance, soit des

propositions d’inscription. Aujourd’hui, le Comité évidem-

ment avec son secrétariat, le Centre du Patrimoine Mondial,

répond toujours à la demande des États, mais parallèlement

il a adopté une démarche beaucoup plus proactive pour

inciter, éventuellement, les états ou attirer leur attention

sur certains aspects.

Les objectifs du ComitéCes quelques tendances sont évidemment reflétées dans

les objectifs du Comité qui sont connus sous le nom des

Quatre C.

En 2002, à l’occasion du trentième anniversaire de la

Convention, le Comité a adopté la déclaration de Budapest

et dans cette déclaration il a réactualisé les objectifs straté-

giques qu’il avait adoptés en 92. Quels sont ces quatre

objectifs, quels sont ces 4 C.

• la Crédibilité et la représentativité de la Liste du

Patrimoine Mondial;

• assurer l’état de Conservation, de bonne conservation des

biens inscrits dur la Liste du Patrimoine Mondial;

• renforcer les Capacités dans les États-partie;

• responsabiliser la société civile à travers la Communication.

Il est évident que le Comité, et le Centre du Patrimoine

Mondial et l’Unesco toute entière ne peuvent pas faire

tout ça tous seuls. J’ai déjà souligné l’importance des États

[97] Os Objectivos do comité do Património Mundial

Page 98: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

mais il y a d’autres partenaires qui peuvent être mobilisés.

Et enfin le Comité a indiqué dans ses déclarations qu’il pro-

cèdera à une évaluation des résultats dès 2007, donc une

obligation des résultats, ce qui est assez innovateur.

L’analyse et les moyensSi on a des objectifs, évidemment il faut se donner les moyens

de son ambition. L’analyse vient d’abord. Le Comité a deman-

dé une analyse de la Liste et des Listes indicatives. On vous en

a parlé déjà, les Listes indicatives c’est une Liste que fournis-

sent les États au Comité sur laquelle se trouvent tous les biens

dont ils pensent soumettre une proposition d’inscription.

Je rappelle que le Comité n’examine aucune proposition

d’inscription si le bien ne figure pas sur la Liste indicative.

Une deuxième analyse est celle des rapports périodiques,

parce que la Convention prévoit que chaque État fournit un

rapport sur la mise en œuvre de cette Convention et il a été

convenu que cela se ferait selon un cycle tous les six ans.

Et pour la facilité c’est fait région par région. Nous avons

déjà eu un rapport périodique pour la région Arabe, pour la

région d’Afrique, pour l’Asie pacifique et l’Amérique Latine

et l’Europe / Amérique du Nord sont des rapports qui seront

soumis dans les années qui viennent.

Quels sont les moyens pour réaliser tout ça?

D’une part les principes, les principes de bonne conser-

vation, les principes pour assurer la représentativité, mais

là, c’est encore un vaste chantier à développer.

Ce sont également les procédures, il faut dire que le

Comité a beaucoup investi ces derniers temps pour faci-

liter la tâche aux États, il y a toutes les personnes qui

travaillent sur le terrain en simplifiant et en clarifiant les

procédures. Ça s’est traduit très concrètement par la révi-

sion des orientations.

Troisième élément, troisième outil, ce sont les programmes.

Le Comité a ou a demandé au Secrétariat d’élaborer, pas uni-

quement des programmes thématiques, mais de développer

des programmes régionaux, qui s’appuient sur les résultats

des rapports périodiques. À nouveau une petite parenthèse,

élaborer un rapport périodique ça constitue énormément

de travail pour les États, alors autant qu’il serve à quelque

chose et qu’il soit la base d’un plan d’action pour l’avenir.

Enfin il y a donc la recherche des partenariats qui, pour

le directeur actuel du Centre, constitue une priorité. Quelles

sont les étapes, maintenant, de tous ces travaux, un peu

de façon chronologique? Je crois que vous êtes surtout inté-

ressés par tout ce qui concerne la Liste indicative et la pro-

position d’inscription. Je voudrais le placer dans le contexte

général. Il y a donc, premièrement la Liste indicative.

Ensuite l’État soumet une proposition d’inscription et cette

proposition d’inscription sera évaluée par nos organisations

consultatives, l’ICOMOS ou l’IUCN. Ensuite le Comité exa-

mine et décide d’inscrire, de ne pas inscrire, de demander

des informations complémentaires à l’État, ça s’appelle le

renvoi, ou de différer. Admettons qu’un bien soit inscrit.

Commence à ce moment là pour l’État-partie ou, en fait, s’il

a bien travaillé avant, ça continue, c’est la gestion du site. Et

de temps en temps, quand il y a de grands travaux ou quand

il y a des situations où le Patrimoine est menacé, il y a des

rapports sur l’état de conservation par ce qu’on appelle le

mécanisme de suivi réactif. Enfin, il y a donc le rapport

périodique qui est soumis par les États tous les six ans et qui

est suivi par un programme régional d’action.

[98] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 99: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

Comme vous pouvez le constater, l’inscription n’est

pas un aboutissement et dans ce que ça veut dire dans la

pratique, je crois que ma voisine de droite l’a très bien

démontré.

Les défis actuelsVous voyez que la Liste est extrêmement longue. C’est égale-

ment parce que j’ai scindé les différentes questions. Il faut

dire que les attentes du public et des États, des différents

États sont très, très élevées vis-à-vis de cette Convention du

Patrimoine Mondial qui figure parmi les Conventions inter-

nationales les mieux connues du grand public. Les attentes

sont différentes aussi, selon les régions du monde, et même

à l’intérieur d’une région, j’oserais dire que l’attente du

Portugal n’est peut-être pas exactement la même que l’at-

tente d’un pays comme l’Italie.

Ce qui me semble important à souligner, c’est qu’il faut

avoir une vision d’ensemble et que cette vision d’ensemble

est reflétée dans les quatre objectifs, les Quatre C, auxquels

il faut ajouter, évidemment, qu’il faut bien s’organiser.

Je vais donner maintenant quelques esquisses de

réponses à ces défis et je vais approfondir deux questions. Je

vais approfondir la question de la crédibilité de la Liste et la

question de la conservation des biens parce qu’il me semble

qu’au fil des présentations qui vous ont été faites hier et

aujourd’hui, ce sont les deux questions qui vous intéressent

le plus aujourd’hui.

La crédibilité et la représentativité de la ListeEn fait, qu’est-ce que c’est une Liste crédible, qu’est-ce que ça

veut dire? Jusqu’où allonger la Liste? Comme vous le savez,

le Comité n’a jamais voulu dire, par exemple que la Liste

n’excèderait pas 1000 biens sur la Liste. Est-ce que c’est

une bonne décision? Ou est-ce que ce n’est pas une bonne

décision? À qu’elle vitesse faut-il que la Liste s’allonge? Est-ce

que c’est réaliste que chaque année il y ait trente ou qua-

rante inscriptions supplémentaires? Je pose des questions,

je vous dis immédiatement qu’il n’y a pas encore de

réponses à ce jour. Mais il est très, très important de savoir

que ces questions figurent à l’ordre du jour du Comité.

Disons immédiatement que dès les années 90 le Comité s’est

penché sur la question de la crédibilité de la Liste parce qu’il

avait reconnu que certains continents n’étaient absolument

pas présents. Alors il est évident que la notion du Patrimoine

a évolué. Il est évident aussi que de nombreuses personnes

pensaient que la Liste du Patrimoine Mondial était la Liste

des merveilles du monde, ce que je pense nous savons tous

que ce n’est pas tout à fait le cas. Je crois qu’une meilleure

définition serait que la Liste du Patrimoine Mondial devrait

permettre de raconter l’Histoire de la Terre et de l’Humanité

à travers les sites du Patrimoine. Avec cette définition-là je

crois qu’il n’y a pas de pays ou de région ou de continent qui

ont moins d’Histoire que d’autres. Il y en a peut-être certains

où l’Histoire a été un peu plus mouvementée, il y en a peut-

être certains où l’Histoire s’est inscrite plutôt dans la conti-

nuité, mais tout le monde a une Histoire ou chaque com-

munauté a une Histoire, chaque région a une Histoire.

Toujours est-il que, pendant des années, le Comité ayant mis

en œuvre une stratégie globale pour une Liste représenta-

tive a dû constater qu’il y avait énormément de paroles mais

que, en fait, les États ne passaient pas nécessairement à

l’action et que les résultats étaient donc assez pauvres.

[99] Os Objectivos do comité do Património Mundial

Page 100: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

Depuis 1999 l’Assemblée Générale a adopté une résolution

où elle demandait des actions concrètes. Et depuis, le

Comité est passé aussi des paroles à l’action. Alors, une des

premières choses qu’elle a demandé aux organisations

consultatives c’est de faire l’analyse, qu’est-ce qui figure

aujourd’hui sur la Liste, qu’est-ce qui figure sur ces Listes

indicatives, quelles sont les lacunes, en d’autres mots, quels

sont les sites qui ne figurent pas aujourd’hui sur la Liste du

Patrimoine Mondial et qui auraient dû y figurer depuis

longtemps. Une deuxième question est, quels sont les pays et

les typologies sous représentés. En attendant, le Comité a

décidé de ralentir le rythme des propositions. Il a fixé un

seuil, d’abord c’était un seuil de 30 inscriptions par an, en

juillet dernier il a décidé d’augmenter ce seuil jusqu’à 40

inscriptions par an et en limitant le nombre d’inscriptions à

un par an par pays, sauf pour les pays qui n’ont pas du tout

de sites inscrits.

Je voudrais mettre une mise en garde ici, quarante sites

de quarante pays différents, parce que c’est comme ça que

ça se traduit dans la pratique, c’est énorme. Et grâce à cette

règle très simple, la représentativité s’est améliorée, parce

que certains pays ne peuvent plus présenter deux, trois

sites, alors qu’ils en avaient déjà une vingtaine. Toujours

est-il que ça ne suffit pas. Il faut évidemment aider certains

pays ou certaines régions à identifier les sites ou les catégo-

ries de biens qui devraient figurer sur les sites. Je vous

donne un exemple très connu puisque notre Histoire

en Europe est enseignée en consacrant pas mal de temps à

l’Égypte des pharaons. Et bien tout le système, le paysage

culturel du Nil ne figure pas sur la Liste du Patrimoine

Mondial, pas encore du moins. On peut espérer que ça vien-

dra un jour. C’est un exemple d’un site qui aurait dû figu-

rer depuis longtemps. Toujours est-il que, je voudrais

mettre une deuxième mise en garde, c’est que le critère de

base doit être la Valeur Universelle Exceptionnelle, c’est

l’abréviation VUE – Valeur Universelle Exceptionnelle. Il ne

faut pas que le Comité arrive à une décision on commence

à inscrire des biens qui ne sont pas de Valeur Universelle

Exceptionnelle simplement parce qu’ils sont représentatifs

d’une catégorie sous représentée sur la Liste. À côté de la

Valeur Universelle Exceptionnelle il faut évidemment aussi

évaluer l’authenticité, le petit a et l’intégrité le petit i.

Alors, est-ce que le Comité va poursuivre dans cette voie?

Est-ce qu’il va instaurer d’autres mesures? L’avenir le dira

parce que c’est un des grands thèmes qui alimenteront sa

réflexion dans les années qui viennent.

La conservation des biensEn fait je vous ai dit que le Comité a décidé d’attacher une

grande importance à la conservation des biens parce que il

a constaté que certains biens étaient discutés chaque année

sous le point « état de conservation des biens » ou que cer-

tains biens étaient inscrits depuis des années sur cette

célèbre Liste du Patrimoine Mondial en Péril. C’est comme

si ils avaient un abonnement permanent, alors que ça ne

peut pas être le cas. Mais comme mieux vaut prévenir que

guérir le Comité s’est penché sur les éléments qui lui per-

mettaient d’évaluer si un État s’engageait, dès le moment

de l’inscription, à assurer la protection et la conservation

de ce lieu.

Alors quels sont les critères pour juger? Une fois de plus, la

base c’est la Valeur Universelle Exceptionnelle, l’authenticité

[100] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 101: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

et l’intégrité. Alors, nous avons entendu cet après-midi de

nombreux exemples de l’impacte du tourisme, sur les ques-

tions liées aux actions des populations locales ou l’absence de

populations locales et je crois que c’est un point qui intéresse

Lisbonne, d’autres exemples existent également. Je crois qu’il

faut effectivement souligner toute l’importance d’impliquer

dès le départ les différentes populations et les acteurs.

Enfin, est-ce qu’une inscription veut dire qu’un site est

figé à tout jamais? Certainement pas! Ce qu’il faut faire

c’est gérer le changement et, là aussi, j’étais particulière-

ment heureuse d’entendre le cas d’Évora. Je crois que ce qui

est important c’est effectivement de gérer ce changement et

pour gérer ce changement il faut avoir bien compris le site

du Patrimoine Mondial et sa Valeur Universelle Exception-

nelle. Ce qui vient que le Comité aussi a constaté que les cas

de succès, quand il formule des recommandations aux États

c’est que ces décisions doivent être motivées et précisées

par ce que ce n’est que comme ça qu’un dialogue fructueux

peut s’installer et que l’on peut conserver ce patrimoine qui

a été reconnu d’importance universelle exceptionnelle,

donc important pour l’Humanité toute entière.

Les nouveautésJe voudrais tout de même profiter de ma présence ici pour

souligner quelques nouveautés qui ont été introduites dans

ce processus de la révision des orientations parce que je

crois pour ceux qui travaillent sur le dossier ce n’est pas

sans importance. La première fois, c’est qu’il y aura un

mécanisme pour vérifier si une proposition d’inscription

est bien complète. C’est-à-dire que les États peuvent, pour

une date particulière, soumettre un projet de proposition

et le Centre du Patrimoine Mondial vérifiera si la proposi-

tion est complète et indiquera si ce n’est pas le cas, com-

ment il faut la compléter. C’est, je crois, une amélioration

vraiment très importante. Une deuxième amélioration c’est

que, vous savez que quand il y a évaluation par les organi-

sations consultatives, il y a d’une part sur dossier mais il y

a d’autre part aussi une mission d’évaluation sur place. Il se

peut que l’organisation consultative constate qu’il y a cer-

tains éléments d’information qui lui manquent. Et bien

cette année le Comité a demandé qu’il y ait un mécanisme

pour permettre à l’État-partie de donner les réponses à ces

questions précises, pour ne pas reporter l’examen du dos-

sier d’un an encore.

Troisième nouveauté, c’est que maintenant l’ensemble

des États ont accès à l’évaluation formulée par les organi-

sations consultatives ce qui n’était pas le cas dans le pré-

sent. Les États qui n’étaient pas membres du Comité décou-

vraient souvent les évaluations en séance, quand ils assis-

taient aux réunions en tant qu’observateurs.

Une autre amélioration c’est que la procédure pour éva-

luer l’état de conservation des sites, quand il y a un grand

projet immobilier ou un projet d’infrastructures qui pour-

rait avoir un impact sur le site et sa Valeur Universelle

Exceptionnelle, donc ces procédures ont été clarifiées, donc

maintenant les États sauront exactement ce que l’on attend

d’eux et comment réagir. Et enfin, et là aussi je crois que ce

n’est pas inutile, pour tout savoir sur les procédures, pour

avoir le texte de la Convention, le texte des orientations,

les formulaires etc., le Comité a demandé au Centre du

Patrimoine Mondial de réunir toutes ces informations dans

un recueil unique.

[101] Os Objectivos do comité do Património Mundial

Page 102: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

Quelques clefs de succèsJe voudrais terminer ce bref exposé avec quelques éléments,

quelques clefs de succès et je crois qu’ici je vais rappeler

quelques mots-clés et quelques conclusions auxquelles vous

êtes probablement déjà parvenus vous-mêmes.

Je crois que la première question, ce qui est très impor-

tant, c’est le positionnement de chaque dossier, tant par, en

analysant les Listes indicatives vous-mêmes que la Liste du

Patrimoine Mondial, pas uniquement dans le cadre d’une

évaluation nationale mais également dans un contexte

régional. Il est évident que pour un pays comme le patri-

moine le contexte régional ne s’arrête pas à l’Europe, c’est

dans un contexte vraiment mondial qu’il faut le faire.

Quand je parle de positionner le dossier, je crois qu’il est

très important aussi d’apprendre des erreurs des autres ou

de capitaliser, pour le dire d’une façon plus positive, sur

l’expérience des autres.

Pour ce qui concerne la valeur universelle exceptionnelle

qui a été étudiée par plusieurs de vos éminents spécialistes

pendant ces deux jours, je voudrais ajouter les choses sui-

vantes. Il est très important de bien la définir mais ça ne suf-

fit pas, il faut également bien la comprendre et essayer

d’identifier les indicateurs physiques de cette valeur univer-

selle exceptionnelle et de l’authenticité et de l’intégrité.

Je vous donne un exemple qui n’a rien à voire avec le cas que

vous avez étudié, mais qui peut peut-être vous éclairer.

Quand on inscrit un site religieux et que, quand on rentre

dans ce site on est saisi par un atmosphère qui permet le

recueillement, il est évident que si ce site ensuite est déve-

loppé d’une manière presque commerciale pour attirer les

pèlerins et qu’il n’est plus possible de ce recueillir, il est évi-

dent que ce site a perdu une grande partie de sa valeur uni-

verselle exceptionnelle. Donc il faut essayer d’identifier pour

chaque élément de la valeur universelle exceptionnelle,

quelques éléments clés, physiques, pour essayer de la mesu-

rer au fil du temps. Et il faut essayer de préserver cette valeur

dans le long terme par la gestion, un système de gestion qui

s’inscrit dans votre tradition, votre système législatif, etc.

Il est très important aussi, l’expérience l’a démontré à

travers les rapports sur l’état de conservation, d’impliquer

la population locale et tous les acteurs concernés dès le

départ. Je crois que le séminaire qui est organisé ici par la

Mairie est un excellent exemple de cette démarche. Enfin je

voudrais aussi rappeler que la Convention est une

Convention entre États. Alors que les problèmes de conser-

vation qui sont rencontrés surtout dans les Villes ce sont

des problèmes de conservation où les Mairies ont un grand

pouvoir de décision. Donc, une coopération et je voudrais

citer un exemple que le Comité a étudié très récemment,

c’est un exemple de construction de tours à Vienne alors

que le site venait d’être inscrit sur la Liste du Patrimoine

Mondial, et que le Comité au moment de l’inscription avait

attiré l’attention de l’État-partie et donc de la Municipalité

sur le problème de la qualité de ces tours.

Il est donc de la plus haute importance qu’il y ait une

excellente coopération entre les autorités municipales et

l’État-partie.

Voilà les quelques conclusions que je voulais tirer.

J’espère qu’elles vous auront été utiles. Je suis évidemment

prête à répondre à vos questions.

Il ne me reste plus qu’à vous remercier, Madame, de votre

gentille invitation et à souhaiter bon vent à votre projet.

[102] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 103: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

[103] Os Objectivos do comité do Património Mundial

Candeeiros de Lisboa na fachada do antigo Ginásio Club Português, rua Serpa Pinto, 1944, Autor: Eduardo Portugal. Arquivo Municipal de Lisboa – Arquivo Fotográfico.

Page 104: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

Resultados e Conclusões João Mascarenhas Mateus

Page 105: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

[105] Resultados e Conclusões

No final destes dois intensos dias de trabalho, épossível afirmar seguramente que com estas Jornadasde Estudo foram obtidas as bases fundamentais parajustificar a candidatura da Baixa Pombalina à Listado Património Mundial. Estes resultados foramconseguidos de forma transparente e colocando em

Fotografia aérea de Lisboa, ca. 1932. Fotógrafo não identificado.

Arquivo Municipal de Lisboa – Arquivo Fotográfico.

Page 106: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

aberto, ao debate público, os diversos aspectos desta com-

plexa iniciativa.

Um debate que contou com a presença do Presidente

do Instituto Português do Património Arquitectónico e

Arqueológico, do Vice-Director Geral dos Edifícios e

Monumentos Nacionais, da representação do Presidente

da Comissão Nacional da Unesco, da Secretária do Comité

Mundial do Património, de grande número dos técnicos

das Unidades de Projecto dos Bairros Históricos da CML,

de representantes dos comerciantes da Baixa, de residen-

tes e trabalhadores na área. Cada painel de comunicações

foi sempre seguido de comentários, perguntas e respostas

que permitiram o esclarecimento e a intervenção do públi-

co presente.

Obteve-se assim uma série articulada de depoimentos

inéditos em torno do objectivo principal desta Candidatura,

que consistia em demonstrar o Valor Universal Excepcional

da Baixa Pombalina.

Para atingir este fim, foram valiosos os depoimentos

de grande significado elaborados pelo grupo de estu-

diosos e profundos conhecedores deste sítio histórico,

convidados para integrar os vários painéis das comuni-

cações.

De forma integrada e exaustiva, todos os critérios de

classificação exigidos pelo Comité Mundial do Património

foram sendo sucessivamente abordados ao longo das diver-

sas comunicações apresentadas.

Neste âmbito vem a propósito recordar aqui, que qual-

quer bem cultural para ser inscrito na Lista Mundial

do Património, ou seja, considerado de Valor Universal

Excepcional segundo os objectivos da Convenção Mundial

do Património, só o poderá ser de facto, quando o Comité

Mundial do Património considerar que o bem proposto

obedece a um ou mais critérios de uma lista de seis

e simultaneamente observa o critério de autenticidade e

protecção.

As presentes Jornadas foram organizadas exactamente

de modo a aprofundar e desenvolver cada um destes cri-

térios, ocupando-se no primeiro dia com os seis critérios

gerais e no segundo dia com o problema da garantia da

autenticidade e da protecção como sítio classificado.

O primeiro painel de comunicações, que teve como

moderadora a Dra. Paula Costa da Comissão Nacional

da UNESCO, foi dedicado a aprofundar os dois primeiros

critérios da Lista da Convenção do Património Mundial,

a saber:

“O bem proposto deve:

(i) Representar uma obra-prima do génio da criatividade humana;

(ii) Testemunhar uma considerável troca de inf luências durante

um dado período ou numa área cultural determinada, no domínio

do desenvolvimento da Arquitectura ou da Tecnologia, das artes

monumentais, da planificação das cidades ou da criação de pai-

sagens;

De forma a fundamentar a observância do critério (i)

foi lida a comunicação do Prof.º José-Augusto França que

desenvolveu de forma magistral esta ambiciosa denomi-

nação.

Com esta intervenção foi possível compreender de que

forma a Baixa Pombalina representa uma obra-prima do

génio da criatividade humana, porque pode ser considerada

[106] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 107: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

na verdade como a “primeira cidade moderna do mundo

ocidental”.

Enquanto que em outras cidades como S. Petersburgo

e Washington onde as regras de uma “cidade moderna”

foram importadas, na Baixa Pombalina esta primeira cidade

do Ocidente construída com regras coerentes e integradas

pela primeira vez de forma original e revolucionária, foi

realizada por vontade política.

A Baixa constitui uma obra-prima do génio da criativi-

dade humana que se traduz hoje num sítio histórico-monu-

mental único para a História da Humanidade. É o resultado

de um esforço de um povo e de uma vontade política que

soube executar o plano de uma cidade moderna, exemplar

nas suas soluções metodológicas e tecnológicas, inovadoras

para a época. Com o tempo a Baixa foi enriquecida com as

melhores contribuições que essa nação, pelo seu universa-

lismo, lhe pôde acrescentar.

Pela qualidade e importância do seu plano soube manter

grande parte da sua integridade e reflectir a contribuição

de séculos de História, de estilos e de vontades.

Paralelamente, a criatividade humana reflectida em todo

este sítio monumental comporta a contribuição plural de uma

nação que na época do plano original, tinha uma influência

geo-estratégica e que soube integrar de forma excepcional

as influências universais dos cinco continentes.

A Candidatura da Baixa Pombalina, no limiar da come-

moração dos 250 anos do seu planeamento, pelo seu valor

de originalidade impõe-se sem nenhuma dúvida ou menos

direito do que S. Petersburgo (cujo centro já foi classificado

pelo Comité Mundial do Património) ou do que a potencial

candidatura de Washington.

Seguiu-se a comunicação do Prof. Sidónio Pardal que jus-

tificou a observância do critério (ii), situando a Baixa como

um marco na História da planificação das cidades.

Uma referência, antes de mais, porque foram inicialmente

equacionadas cinco possibilidades de intervenção, entre as

quais a reconstrução à l’identique, e de forma deliberada se

optou pela solução mais complicada de realizar. Esta solu-

ção adoptada implicava demolir a cidade baixa e sobre os

entulhos fundar uma nova cidade, melhorada nas suas con-

dições de drenagem pluvial e das águas fluviais. Uma opção

que implicou a criação de uma zona onde não era permi-

tida a iniciativa avulsa e onde as diversas especialidades

foram subordinadas à visão sistemática da cidade.

Por outro lado o planeamento de uma nova cidade sobre

as ruínas de uma existente com a imposição de uma ordem

arquitectónica e a regulamentação do processo de gestão

para assegurar a efectiva concretização da obra, constituiu

um facto inédito para a época.

A comunicação do Prof. Sidónio Pardal permitiu tam-

bém explicar como a concretização de um plano urbanís-

tico tão vasto, foi levada a cabo com uma capacidade

técnica e administrativa incomparáveis. Um plano franca-

mente inovador em relação aos princípios barrocos vigen-

tes nessa época que se apoiavam essencialmente na estru-

turação do novo desenho sobre uma base constituída pelos

pontos mais significativos da cidade já existente. Dentro

desses princípios, a Norte da zona a reconstruir, foi planea-

da a construção do Passeio Público, ideia recente dos finais

do século XVII (Peyrou-Montpellier).

Mas, acima de tudo, o plano da Baixa foi percursor da

atenção teórica e prática aplicada ao planeamento urbanís-

[107] Resultados e Conclusões

Page 108: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

tico que só no final do século XVIII e ao longo do século XIX

será desenvolvido no contexto dos movimentos higienistas.

Desta corrente nascerão os planos de L’Enfant em

Washigton (1791), a renovação de Paris por Haussmann e a

expansão de Barcelona de Cerdà, em 1859.

Este planeamento deu pois uma atenção às soluções a

adoptar, diferentes das que preocupavam a Europa de então,

que se concentravam na concepção de grandes parques fora

das cidades sobre paisagens rústicas e no uso de formas orgâ-

nicas e naturalistas. Um planeamento urbanístico integrado

que foi levado a efeito pela contribuição multidisciplinar,

através das seguintes medidas e condicionantes:

• demolição total da maioria dos edifícios que tinham

resistido ao terramoto;

• reparcelamento perequacionado da propriedade imo-

biliária, de forma a libertar o desenho urbano do condicio-

namento cadastral;

• obrigação da observância do plano de reconstrução

por parte dos particulares;

• redução do risco de incêndio com um regulamento

que obrigou a altear as paredes das empenas para impedir a

comunicação entre os telhados;

• garantia do direito de propriedade privada e de viabi-

lidade financeira do empreendimento;

• construção de edifícios públicos e de serviços para

revitalização social e económica do centro da cidade;

• estabelecimento de um programa detalhado de reco-

lha de lixos, rede de esgotos e abastecimento de água potável

a fontanários;

• redução do risco sísmico com o alargamento das ruas

e diminuição da altura dos edifícios;

• definição de projectos-tipo capazes de serem interpre-

tados por gramáticas arquitectónicas diferentes;

• exigência de rigor formal com regulamento detalhado

de altura de pés-direitos, sistema construtivo geral, desenho

de vãos e guarnições, integração de estruturas de madeira e

alvenaria;

• incorporação da localização e da toponímia de activi-

dades comerciais pré-existentes (sapateiros, correeiros, ouri-

ves, prateiros, douradores, etc);

• concentração das actividades comerciais no rés-do-chão

e residências nos andares superiores;

• instalação na principal praça sobre o rio (do Comércio)

da Administração do Reino.

Seguiu-se o segundo painel de comunicações que mode-

rei, destinado a reforçar a observância do critério (ii), e fun-

damentar a observância dos critérios (iii) e (iv):

(iii) (O bem a classificar deve) fornecer um testemunho único ou

pelo menos excepcional sobre uma tradição cultural ou uma civili-

zação viva ou desaparecida;

(iv) (O bem a classificar deve) oferecer um exemplo eminente de

um tipo de construção ou de conjunto arquitectónico ou tecnológico

ou de paisagem ilustrando um ou vários períodos significativos da

história humana”;

A primeira comunicação do painel, a do Prof. Walter

Rossa, articulou-se em torno de três aspectos básicos

que caracterizam a excepcionalidade da Baixa Pomba-

lina: o plano, o método e a acção. Estes momentos tradu-

ziram-se em tópicos que foram desenvolvidos detalha-

damente:

[108] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 109: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

• A Baixa como documento único da afirmação e da matu-

ridade da Escola Urbanística Portuguesa caracterizada por

uma universalidade de experiências e mútuas influências,

obtidas com a expansão marítima;

• A Baixa como imagem esclarecida de uma metrópole-

capital projectada muito antes do terramoto, através de

informação recolhida a partir das mais importantes expe-

riências urbanísticas europeias então conhecidas;

• A Baixa apoiada numa metodologia de execução que se

baseou num sistema de pré-fabricação excepcional exporta-

do como modelo para outras cidades;

• A Baixa como integradora de conceitos de salvaguarda do

património que hoje são universalmente aceites mas que

nesse período histórico nunca tinham sido tomados em

conta a uma tão grande escala;

• A Baixa como conjugação perfeita entre Arquitectura e

Urbanismo e como fruto de um planeamento de uma cidade

que desejava também ser planeamento de uma sociedade.

O aprofundamento do primeiro tópico permitiu com-

preender como a Baixa surge no contexto evolutivo do

Urbanismo Português. Este plano excepcional e inovador

corresponde à afirmação da maturidade da Escola Portu-

guesa de Urbanismo e da Engenharia Militar. Uma escola só

entendida à escala do “império” universalista e espalhado

por todo o mundo.

Para completar esta reflexão sobre o valor excepcional

da Escola Urbanística Portuguesa, de que a Baixa constitui

o exemplo emblemático, é importante salientar que é um

valor que tem vindo a ser usado como base principal de jus-

tificação da classificação como Património da Humanidade

de muitos centros históricos espalhados pelo Mundo,

à semelhança das escolas espanhola, inglesa ou francesa.

O valor da Escola Urbanística Portuguesa tem sido usado na

classificação de centros históricos situados não apenas em

países lusófonos como o Brasil, mas também noutros onde

a língua portuguesa não é a oficial. É o caso da cidade de

Galle no SriLanka (fundada pelos portugueses no século XVI),

ou a Colónia do Sacramento no Uruguai fundada também

pelos portugueses em 1680, nas margens do Rio da Prata.

Um valor que se traduz na adaptação das regras europeias

aos materiais e condições climáticas locais, integrando e

interagindo com as técnicas, culturas e tradições locais.

Retomando o que foi comunicado, é possível concluir

que a Baixa constituiu o patamar de chegada de um pro-

cesso de aperfeiçoamento testado e amadurecido no Norte

de África, na Índia e essencialmente no Brasil, através do

desenho e da construção de “Cidades-Vilas”, iniciadas a partir

sobretudo da década de 50 do século XVII.

Seguidamente, o Prof. Walter Rossa desenvolveu outro

aspecto que reforça o argumento inicial do Prof. José-

Augusto França – o facto de o plano pombalino concretizar

a imagem urbanística, plástica e monumental de uma

capital já preconizada por Francisco de Holanda, quando

Lisboa passou a ter uma importância mundial a nível de

comércio global.

Esta ideia de Capital Ocidental Moderna Cosmopolita

continuou a ser muito desenvolvida por vontade de D. João V.

Lisboa era desejada como uma nova Roma e para esse fim

foi levado a cabo um levantamento cartográfico exaustivo

do existente e do projectado, sobretudo para a futura zona

ocidental da cidade que seria abastecida pelo aqueduto,

[109] Resultados e Conclusões

Page 110: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

segundo um plano de Manuel da Maia de 1728. Nesta zona

tinha sido iniciada a construção de outros importantes

sinais de ocupação como o Palácio das Necessidades.

A reconstrução após o terramoto serviu para pôr em prá-

tica este plano e estratégia. Ao mesmo tempo este planea-

mento foi integrando a informação que ia chegando ao

reino de duas importantes operações urbanísticas euro-

peias precedentes; as de Turim (1673 e 1712-1714) através

dos contactos com Filipe Juvarra; e as de Londres, possivel-

mente pela intensificação das relações com a Grã-Bretanha

através de D. Catarina de Bragança, rainha britânica à época

do grande incêndio de 1666.

Para além de ter referido também Reims, Lyon e Bordéus,

esta comunicação salientou ainda as semelhanças com o

plano de Edimburgo, aprovado em 1766, dez anos depois

do da Baixa e com a mesma toponímia das ruas principais

da capital portuguesa (as ruas do Rei, da Rainha, do Príncipe

e da Princesa).

Para reforçar o valor da Escola Urbanística Portuguesa,

Walter Rossa salientou a excepcionalidade da normalização

da métrica e dos sistemas construtivos e de composição.

Desde as cantarias, às portas e caixilharias, passando pelas

telhas e os azulejos, tudo associado a um originalíssimo pro-

cesso de pré-fabricação. Este processo permitiu produzir no

próprio estaleiro da Baixa e exportar rapidamente por via

marítima a “nova cidade” de Vila Real de S. António, na então

longínqua província dos Algarves, 150 milhas a Sul de Lisboa.

Foi seguidamente afirmado o ineditismo dos conceitos

de património implícitos que toda a operação comportou.

O plano pombalino teve a sensibilidade de procurar inte-

grar a memória dessa zona da cidade, as presenças e as ocupa-

ções que nela coexistiam antes do terramoto, constituindo

uma iniciativa de grande erudição e visão histórica, num

período em que estas preocupações tinham sido apenas

afloradas na primeira lei de salvaguarda do património pro-

mulgada na Europa por D. João V, mas que estavam muito

longe de ser consideradas num plano de reconstrução de

uma cidade.

Esta conservação e continuidade da memória da cidade

foi obtida através de métodos vários:

• contenção da malha do novo plano nos limites dos anti-

gos bairros da Mouraria, Alfama, Castelo e Graça, onde

pouco foi demolido;

• demolição da zona do Chiado para levar a nova malha

da Baixa até aos limites da malha regular do Bairro Alto

planeada e executada no século XVI;

• interrupção da malha de ruas orientadas no sentido

Norte-Sul de forma a integrar fisicamente a memória de

eixos importantes antes do terramoto, como a Rua Nova d’el

Rei ou a Rua Nova;

• recontextualização de portais e outros elementos arqui-

tectónicos de antigas igrejas nas fachadas ou nos interiores

das novas igrejas;

• modelação da malha de forma a integrar monumentos

e importantes edifícios que tinham sobrevivido à catástrofe,

como o Convento do Corpus Christi.

Por fim, foi referido como o plano da Baixa correspondeu

não só ao planeamento de uma cidade como também de

uma sociedade, ambição própria do Iluminismo e do

Absolutismo esclarecido. A avaliação e previsão das diversas

actividades económicas e da sua implantação geográfica de

[110] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 111: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

forma regrada e regimentada, corresponderam mais do que

a um projecto urbanístico, também a um projecto social

único no seu tempo. A nova regularidade urbana implicava

uma disciplina renovada e um novo civismo.

A segunda comunicação do painel, do Eng.o João

Appleton, foi dedicada sobretudo à justificação do crité-

rio (iv).

Com esta intervenção foi possível concluir que a Baixa

Pombalina constitui um bem universal excepcional por se

tratar não só de um exemplo eminente de um tipo de cons-

trução como também de um conjunto arquitectónico-tec-

nológico, onde as soluções técnicas se combinaram de

forma tão complexa e original. Reconhecer este valor é reco-

nhecer a génese do planeamento deste sítio que se propõe

como candidato a Património da Humanidade. Esta afirma-

ção serviu para reforçar a tese do Prof. Sidónio Pardal, útil

à justificação do critério (v), de que a solução adoptada para

a reconstrução foi a que tecnicamente apresentava maiores

dificuldades, do ponto das vista de infra-estruturas.

Na verdade, a zona tinha sido duramente atingida pelo

maremoto e do ponto de vista geológico apresentava más

condições para a execução de novas fundações pelo facto de

se situar na zona lodosa e aluvionar da antiga confluência

de duas ribeiras. Para a melhoria dessas condições foi fun-

damental a utilização de estacas de comprimentos entre 1 e

6 metros que, mais do que transmitirem as cargas dos novos

edifícios ao solo apto à fundação situado a profundidades

consideráveis, terão servido à compactação dos solos super-

ficiais de aterro e de lodo e para aumentar assim a sua capa-

cidade resistente e portante.

Para resolver de forma original o problema das estrutu-

ras, a solução adoptada para as fundações foi completada

por uma rede de ruas e esgotos, em que foi prevista simul-

taneamente a condução e esgotamento das águas residuais

dos edifícios e a condução subterrânea do escoamento das

duas bacias hidrográficas constituídas pelos dois vales

situados a Norte da zona reconstruída.

Para além deste primeiro conjunto integrado de solu-

ções tecnológicas para as infra-estuturas, usado pela primeira

vez de forma sistemática numa área urbana tão vasta,

a Baixa foi tecnologicamente inovadora pela coordenação

dimensional baseada no palmo como medida padrão, usada

a todos os níveis do projecto e a todas as escalas do planea-

mento volumétrico:

• a uma grande escala, em planta, pela introdução do

conceito de quarteirão que funcionava como um único edi-

fício que agrupava vários lotes e cuja dimensão se baseava

no palmo;

• a uma escala média, em elevação, pela imposição de

uma regularidade das fachadas, em comprimento e altura,

que implicava uma distribuição homogénea e regular da

resistência estrutural dos edifícios;

• a uma escala média, em planta, pela organização inte-

rior dos edifícios determinada pela subdivisão da profundi-

dade dos lotes com paredes de frontal paralelas às fachadas.

Esta normalização determinava o número de divisões inte-

riores dos edifícios, entre malhas ortogonais de paredes de

frontal;

• a uma escala mais reduzida, com a normalização das

dimensões dos elementos em cantaria, da distância entre

prumos e travessanhos, dos elementos estruturais de

[111] Resultados e Conclusões

Page 112: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

madeira, ou mesmo das dimensões dos acabamentos como

as caixilharias ou os azulejos.

Esta coordenação dimensional traduziu-se num proces-

so de industrialização dos materiais de construção nacio-

nais que foi único na História. Um processo que se caracte-

rizou pela fabricação em série de todos os elementos cons-

trutivos necessários a uma operação urbanística de dimen-

sões tão importantes.

Tecnologicamente inovador foi também o uso racional,

integrado e sistemático de soluções construtivas que se sabia

poderem reduzir a vulnerabilidade sísmica dos edifícios.

A solução da “gaiola pombalina”, que combinava a flexibili-

dade da madeira e a rigidez das alvenarias, baseada num reti-

culado de frontais compostos de prumos, travessanhos e esco-

ras com os seus interstícios preenchidos por alvenaria de

pedra ou tijolo, não é em si inovadora. Neste aspecto, vem a

propósito referir aqui, que os romanos já o conheciam como

opus craticium, e modernamente, com variantes próprias, os

espanhóis como “entramados”, os franceses como construção

em “collombage”, os italianos como construção “barracata”.

O que foi inovador na gaiola pombalina foi a sistematiza-

ção do seu uso com aperfeiçoamentos e regras de aplicação

destinados a aumentar a sua eficiência. Estes aperfeiçoa-

mentos consistiram:

• na imposição de regras de simetria, para redistribuir uni-

formemente esforços provocados por acções sísmicas;

• no detalhe da execução das interligações entre:

- frontais ortogonais;

- frontais ortogonais e paredes de alvenaria, com inter-

posição de gaiolas de madeira e elementos metálicos;

- paredes e pavimentos, através de frechais e contra-

-frechais.

A terminar o painel da tarde do primeiro dia, foi apre-

sentada a comunicação da Profª Raquel Henriques da Silva

que contribuiu para reforçar a justificação do critério (ii),

ou seja demonstrar que a Baixa testemunha uma considerável

troca de inf luências durante um dado período no domínio do

desenvolvimento da Arquitectura e sobretudo analisar a obser-

vância de parte do critério (iv) no que se refere a constituir

um exemplo eminente de conjunto arquitectónico, ilustrando um

ou vários períodos significativos da história humana.

Esta comunicação permitiu essencialmente evidenciar

as diversas influências estilísticas que o projecto inicial de

1756 e a actuação da Intendência Geral das Obras Públicas,

responsável pela concretização do Real Decreto de 1769,

foram sofrendo ao longo dos cem anos da concretização

do plano. Foi possível assim compreender como arquitecto-

nicamente, a Baixa reflecte “o dinamismo e a vontade de

moldar a cidade fora das normas estritas, unificadas e cen-

tralizadas da reconstrução sem lhe construir alternativa

mas introduzindo-lhe o pulsar de uma sociedade que, inci-

pientemente, se preparava para proclamar os direitos de

cada um”.

A apresentação foi articulada na análise de três perío-

dos históricos principais: o período de gestão pombalina,

anterior a 1777; o Iluminismo Mariano e o período do

Romantismo.

Logo desde o início da concretização do plano, a Baixa

sofreu alterações que permitiram enriquecer o “estilo frio”

do projecto inicial, com objectivos duplamente estilísticos

[112] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 113: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

e económicos. Durante este período, e até ao afastamento

do Marquês de Pombal, o plano estava ainda muito longe

da sua execução completa e só a Rua Augusta se podia dar

por concluída.

No que se refere às influências estilísticas, neste primeiro

período assistiu-se a uma vontade de passar da influência

barroca à rocócó. Desta primeira mutação, foram apresenta-

dos os exemplos da Praça do Rossio e da iniciativa da recons-

trução do Convento do Carmo. Por seu lado, o factor econó-

mico implicou várias alterações, entre as quais a substitui-

ção do 4º andar das mansardas por um piso adicional com

“varanda geral”, de forma a rentabilizar futuros alugueres.

No período do Iluminismo Mariano assistiu-se às pri-

meiras realizações de prospectos pombalinos em declive na

zona do Chiado, reservada à edificação de casas nobres e

palácios, fora da malha quadriculada da zona plana da

Baixa. Nestes prospectos começou a evidenciar-se, segundo

palavras da Profª Raquel Henriques da Silva, uma “segunda

arquitectura pombalina”, caracterizada por um tratamento

especial dos pisos térreos, das lojas e sobrelojas com uma

molduração erudita e recursos decorativos, de influências

ainda barrocas e outras já neo-clássicas.

Esta diferenciação e diversificação dos prospectos singula-

res, através de elementos decorativos, que ia sendo simulta-

neamente reabsorvida pela regularidade global das fachadas,

continuou a ser levada a cabo até ao final do século XVIII,

com o acentuar do eclectismo.

Ao período mariano, caracterizado por uma continuidade

do gosto ante-terramoto e por uma estética neo-clássica de

inspiração italianizante, seguiu-se um período essencialmen-

te caracterizado pelas influências românticas. Influenciado

economicamente pela independência do Brasil, pela revolu-

ção de 1820 e pela abolição das Ordens Religiosas em 1834,

este período é caracterizado pela remodelação de interiores e

adaptação a novos usos, pela multiplicação de marcas ecléc-

ticas que vão sendo dispersas pelas fachadas, com novos ele-

mentos decorativos, revestimentos de azulejos e alteração

dos pisos térreos para as vitrinas de novos comércios.

Como complemento a esta comunicação é útil salientar,

que este período dos cem anos de realização do projecto, ter-

mina com a efectivação do remate das duas praças principais

que delimitam a Baixa Pombalina. A Norte, este remate é con-

seguido com o portão de acesso ao novo Passeio Público; com

a construção do novo Teatro D. Maria II em estilo neo-clássi-

co romântico que a emoldura e constitui o principal centro

de simetria; com o seu calcetamento em “mar largo” e com a

inauguração da estátua central a D. Pedro IV em 1870. A Sul,

o remate final é conseguido, também nesse período, com a

inauguração do arco triunfal da Rua Augusta, dando unida-

de às alas oriental e ocidental da grande Praça do Comércio,

aberta sobre o rio Tejo, que também no final do século XIX

acaba por ser calcetada.

A manhã do segundo dia das Jornadas foi iniciada com

um painel, moderado pelo Dr. José Sarmento de Matos, dedi-

cado a aprofundar a justificação dos critérios, (iii), (v) e (vi):

(v) (O bem a classificar deve) constituir um exemplo iminente de

fixação humana ou de ocupação do território tradicional represen-

tativo de uma cultura (ou de várias culturas) sobretudo quando o

mesmo se torna vulnerável sob o efeito de mutações irreversíveis;

(vi) (O bem a classificar deve) estar directa ou materialmente

associado a acontecimentos ou a tradições vivas, a ideias, a crenças,

[113] Resultados e Conclusões

Page 114: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

ou a obras artísticas e literárias com um significado universal

excepcional.

Sobre os critérios (iii) e (vi) começou por falar o Dr. Vasco

Graça Moura, desenvolvendo o tema da Baixa Pombalina

como elemento emblemático da cultura portuguesa e ima-

gem da sua projecção internacional.

A sua apresentação foi estruturada cronologicamente

de forma a demonstrar como Lisboa, “existe em milhares

de situações e testemunhos de cultura”, numa cidade con-

siderada por João Brandão, um primeiros olisipógrafos

do século XVI, como a “frol de todas as flores”.

Com esta comunicação foi possível compreender como,

concretamente no que se refere à zona da Baixa, esta foi já

antes do terramoto, tema de descrição, de inspiração literá-

ria e testemunho da civilização portuguesa. Na Relação em

que se trata e faz uma breve descrição dos arredores mais chegados

à Cidade de Lisboa, publicada em 1625, são descritos edifícios

e locais emblemáticos da Baixa directamente conotados

com as riquezas e produtos vindos do Oriente, como os

armazéns da Casa da Índia, ou, fulcrais para a vida da cida-

de, como o Mercado da Ribeira.

Mais tarde, a tragédia do terramoto inspirou poetas

nacionais e estrangeiros, da Inglaterra à Hungria. Como

complemento a este aspecto vem a propósito referir aqui

o Poème sur le désastre de Lisbonne ou uma importante parte

do “Candide”, de Voltaire, cuja a acção se passa em Lisboa

durante o terramoto, a meio da grande aventura do prota-

gonista Pangloss.

Segundo as palavras do Dr. Vasco Graça Moura, a catás-

trofe de Lisboa marcou profundamente a consciência euro-

peia e estabeleceu a importância da reconstrução como

uma referência cultural e civilizacional. A Baixa passou a

ser considerada como um monumento à razão, à margem

das utopias urbanas precedentes e posteriores. Por seu lado,

o episódio da tragédia do terramoto passou a constituir

tema recorrente de dissertações desde a primeira hora, até

aos nossos dias, desde o Abade de Jazente até Agustina

Bessa-Luís e Hélia Correia.

A partir do terramoto, a Baixa passou paralelamente a

ser centro de inspiração literária da cidade, começando

com o texto de Amador Patrício de Lisboa, de 1758, sobre as

medidas pombalinas para a reconstrução, passando pela

inauguração da estátua de D. José no centro da Praça do

Comércio, e por outros episódios, galanterias, devoções,

mundanismos, calamidades, casamentos principescos, fes-

tas e até crimes e suplícios.

No século XIX, inspirou escritores românticos como

Guilherme de Azevedo, Gomes Leal e Cesário Verde e foi local

de reunião de poetas como Nicolau Tolentino e Bocage,

no Martinho do Rossio. Na segunda metade desse século,

Eça de Queiróz usou a Baixa e principalmente o Chiado,

(com o Grémio, a Casa Havaneza e o Hotel Bragança) como

cenário dos seus romances, onde a grande burguesia e o

poder jogavam os papéis principais.

No século XX, a grande produção literária lisboeta,

nas artes, nas letras e no jornalismo, ficou intimamente

ligada aos locais do século XIX e a outros novos ou reno-

vados como a Brasileira do Chiado, a Livraria Bertrand,

o Martinho da Arcada ou o Café do Gelo, onde se reuniram

Aquilino Ribeiro, Fernando Pessoa, Alexandre O’Neil ou

David Mourão-Ferreira.

[114] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 115: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

A Baixa foi descrita sucessivamente como espaço de

tédio, de interioridade, de conspiração, de combate proletá-

rio, de memória pitoresca, de surrealismo e pós-surrealismo,

pós-modernismo e minimalismo. Sempre, e hoje em dia,

a Baixa continua a inspirar grandes vultos literários como

José Saramago, António Lobo Antunes ou José Cardoso Pires.

A comunicação terminou com duas reflexões muito

importantes e úteis para a Candidatura, que importa salien-

tar. A primeira, fundamental para a justificação do critério (v)

– a que afirma que ao contrário de outras reconstruções

de cidades como Pompeia, Londres, Varsóvia, ou Frankfurt,

a da Baixa Pombalina, foi a única que deu lugar a uma rein-

venção da sua própria alma. A segunda, a que afirma que a

Baixa Pombalina constitui um dos principais elementos

emblemáticos da cultura portuguesa e um núcleo irradiante

para a sua projecção internacional.

Seguiu-se a apresentação do Dr. José de Monterroso

Teixeira, que contribuiu sobretudo para a justificação dos

critérios (v) e (iii).

No que se refere a fundamentar o critério (v), foi detalha-

damente exposto o valor de persistência e de permanência

que está implícito na evolução do sítio antes e depois do ter-

ramoto. Estes dois valores foram responsáveis pela continui-

dade na fixação da ocupação humana apesar de esta ter sido

sujeita a uma tão grande ameaça. Uma fixação baseada sobre-

tudo na actividade comercial e na administração do poder.

A zona da Baixa no século XV começou por ver a cons-

trução do Palácio Real, como sinal da opulência da expan-

são manuelina. No final do século XVI, esse palácio foi enri-

quecido e embelezado com o torreão destinado a albergar

Filipe II. Durante esses mesmos períodos, a zona da Baixa

foi o centro mercantil de uma nação geo-estratégica e geo-

referenciada, onde as riquezas de todo o Mundo eram des-

carregadas e trocadas para eventualmente serem reembar-

cadas e distribuídas pela Europa.

A reconstrução depois do terramoto necessitou de bem

340 decretos e outros instrumentos legislativos, publicados

entre 1755 e 1838, para repor e melhorar esta mesma ocupa-

ção tradicional e característica de Lisboa e de Portugal.

Com o objectivo de restabelecer a função de sede de

poder, o torreão filipino constituiu fonte de inspiração para

o desenho da nova Praça do Comércio como “arquétipo

ordenador da monumentalidade da Baixa Pombalina”.

A Praça começou por recuperar primeiro a função de

espaço cerimonial e logo a seguir a de centro de poder, com

a instalação da Secretaria do Reino, nas várias alas da Praça.

A Norte, a Praça do Rossio, chamada Praça das Paradas

durante a ocupação francesa, tornou a albergar a sede do

poder religioso outrora representado pelo Hospital de todos

os Santos, com o novo Palácio da Inquisição situado sime-

tricamente ao Arco da Bandeira, sinal da classe de negócios

e do poder burguês.

O restabelecimento da função comercial constituiu um

processo mais complexo e baseou-se num dos decretos da

primeira hora após o terramoto, o de Novembro de 1760.

Nele foi definida uma “lógica hierárquica das actividades

comerciais, criando um monopólio para a Baixa”. As anti-

gas actividades comerciais e profissionais existentes antes

do cataclismo foram redistribuídas por ruas com toponí-

mias idênticas às outrora existentes, mas segundo um novo

ordenamento produtivo, esclarecido e moderno. A cada

[115] Resultados e Conclusões

Page 116: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

uma das seguintes actividades foi atribuída a totalidade ou

uma parte bem determinada de uma rua: capelistas, mer-

cadores de loiça da Índia, de chá, de fazendas, mercadores

de lã e seda, ourives de ouro, ourives da prata, relojoeiros,

livreiros, mercadores de fancaria, de quinquilharia, doura-

dores, torneiros, latoeiros, bate-folhas, tendeiros, tabernei-

ros, correeiros, seleiros, sapateiros, algibebes, retroseiros,

sirgueiros, chapeleiros e outros misteres diversos.

Um plano levado a um detalhe e precisão elevadíssimos,

como forma de exigência de qualidade para uma fixação

humana e uma ocupação de um território, que não teve com-

paração no Mundo, no período histórico em que ocorreu.

No que se refere a reforçar a justificação do critério (iii),

a comunicação do Dr. Monterroso Teixeira foi particular-

mente esclarecedora da movimentação e intercâmbio dos

diversos movimentos ideológicos, políticos e literários de

que a Baixa Pombalina foi sendo palco, desde a sua criação.

Como exemplo importante, foi citada a discussão de ideias

de liberalismo sob o regime do Intendente Pina Manique

e a celebração do regime liberal com a inauguração da está-

tua de D. Pedro IV, primeiro imperador do Brasil, a que o

empedrado de Mar Largo alude.

Relativamente ao Chiado, esta comunicação permitiu

compreender também como a sua estrutura urbana e cul-

tural foi feita em torno do Teatro da Ópera e das residências

dos aristocratas e burgueses opulentos. Nessa zona foram

instalados, durante o século XIX e até ao período moder-

nista do Estado Novo, os hotéis, clubes, grémios e cafés lite-

rários e de tertúlia, onde as ideias e as novas modas circula-

ram e se discutiram.

Toda a comunicação foi ilustrada com citações, de auto-

res, que “leram” a “imagem” da nação portuguesa espelhada

na vida de Lisboa e na actividade específica da Baixa e

Chiado Pombalinos, tais como o inglês Arthur William

Costigan, a francesa Laura Junot, o sueco Carl Israel Ruders ou

o espanhol Miguel de Unamuno. Uma imagem que junta-

mente com o Tejo é cantada por inúmeros poetas, como a pro-

pósito importa aqui recordar, Lord Byron, no primeiro canto

do seu Childe Harold’s Pilgrimage, em 1812 1.

(…) What beauties doth Lisboa, first unfold!

Her image f loating on that noble tide,

Which poets vainly pave with sands of gold,

But now whereon a thousand keels did ride.(…)

Com esta comunicação, é pertinente afirmar que a Baixa

constitui com toda a certeza um exemplo iminente de fixa-

ção humana e de uma cultura sobretudo quando essa fixa-

ção foi exposta a um elevado grau de vulnerabilidade como

o provocado pela horrível catástrofe do terramoto. Uma

catástrofe que constitui ainda hoje uma referência, como

um dos mais destruidores terramotos da História, que arra-

sou o centro de poder e de comércio de uma nação e que

provocou uma percentagem elevadíssima de mortos.

Depois de desenvolvidos exaustivamente os seis critérios

básicos a que a Baixa deve responder para ser proposta à

Lista do Património Mundial, passou-se ao último painel de

conferências, que ocupou toda a tarde do segundo dia,

moderado pelo Dr. Elísio Summavielle, Vice-Director Geral

dos Edifícios e Monumentos Nacionais.

1] BYRON George Gordon (Lord), Childe

Harold’s Pilgrimage, A Romaunt, Canto the

First, 1812, London: Dent, 1975.

[116] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 117: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

Este quarto painel abordou os temas que se relacionam

com a segunda parte do dossier de candidatura e que deve-

rão ser objecto de maior aprofundamento na elaboração

do dossier a apresentar ao Comité Mundial. Estes temas

estão relacionados sobretudo com:

• a observação do critério de autenticidade e com demons-

trar que se dispõe de meios capazes de proteger o sítio a

candidatar;

• a estratégia e as peculiaridades de gestão de um sítio com

a importância de ser considerado Património da Huma-

nidade.

A exposição da Dra. Manuela Oliveira sobre o Caso de

Évora, como sítio já classificado, contribuiu para uma pri-

meira comparação de experiências.

A comunicação sobre o caso de Évora foi articulada em

três vertentes principais:

1. as vantagens obtidas pela classificação como Património

Mundial;

2. os problemas da sua conservação;

3. as acções em curso e em projecto destinadas à sua con-

servação.

Ocupando cento e quatro hectares de superfície, (supe-

rior à da Baixa) com três quilómetros de muralhas medie-

vais, Évora, centro histórico rico de monumentos dos perío-

dos romano, árabe e sobretudo do seu período de ouro

entre o século XV e XVII, foi classificado como património

da Humanidade em 1986.

De entre as vantagens conseguidas com a atribuição de

tão elevado galardão foi salientado o prestígio nacional e

internacional, o orgulho, o sentimento de pertença,

o aumento de turistas, de infra-estruturas turísticas e a cria-

ção de novos serviços e comércios.

No entanto, estes factores positivos e responsabilidades

acrescidas não foram acompanhados de um aumento de

verbas destinadas à preservação do sítio. A esta falta de

ajuda financeira juntou-se a degradação, a especulação imo-

biliária e o decréscimo da população (a actual população

intramuros representa pouco mais de 1/4 dos 20.000 habi-

tantes dos anos 1940).

Para obviar a estas dificuldades foi criado um serviço

municipal responsável pela gestão do sítio, diversos progra-

mas municipais de recuperação de imóveis privados e de

alguns grandes imóveis para serviços administrativos.

Condicionou-se o trânsito automóvel, criaram-se novos par-

ques de estacionamento, dificultou-se a terciarização,

reabilitaram-se infra-estruturas, requalificaram-se eixos

comerciais e espaços públicos.

Actualmente, estas medidas estão a ser seguidas por

novas acções que visam sobretudo compatibilizar a salva-

guarda do património com a melhoria das condições de

habitabilidade segundo padrões contemporâneos de con-

forto e segurança, de forma a atrair um acréscimo da popu-

lação residente. Com esta política de fixação dos residentes,

têm sido já conseguidos vários casos de sucesso com a rea-

bilitação de diversas zonas da cidade para fins residenciais

associadas a pequenos jardins, a garagens e à redução do

ruído ambiental.

Como desafios para o futuro, foram apontados os seguintes:

• uma melhor coordenação das instituições responsáveis

pelas diversas componentes da conservação, não só as tradi-

[117] Resultados e Conclusões

Page 118: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

cionais instituições responsáveis pela salvaguarda do patri-

mónio, como também as que têm o pelouro da Segurança

Social, Habitação, Educação, Saúde e Desporto;

• a acção de equipas multidisciplinares de projecto e acção;

• novos instrumentos jurídico-administrativos para facilitar

e flexibilizar programas específicos destinados a resolver

problemas específicos;

• um maior investimento, com maior parceria entre os sec-

tores público, privado e cooperativo e um maior envolvi-

mento da administração eleita.

Esta comunicação permitiu pela apresentação de todos

estes sucessos e dificuldades compreender a complexidade

e a responsabilidade de gerir qualquer centro histórico. De

forma muito mais aguda e exigente, um centro histórico

que seja classificado Património da Humanidade, como se

pretende para a Baixa Pombalina.

Depois da análise da gestão integrada de um sítio já

incluído na Lista do Património Mundial, seguiu-se a inter-

venção do Arq. João Belo Rodeia, Presidente do IPPAR, dedi-

cada à classificação e à salvaguarda da Baixa como sítio his-

tórico e monumental. Uma intervenção que serviu sobretu-

do para esclarecer a articulação do IPPAR com a Câmara

Municipal e as diversas instituições responsáveis pela salva-

guarda do património.

A comunicação abordou as duas componentes funda-

mentais da candidatura, ou seja, a demonstração dos seis

critérios a que as presentes Jornadas se dedicaram e a justi-

ficação do critério obrigatório de autenticidade, integridade

e gestão de salvaguarda.

Sobre a observância dos seis critérios de excepcionalidade

que foram tratados nos dois dias das Jornadas, não foram

apresentadas quaisquer dúvidas, sendo bem claro que a Baixa

“reúne um conjunto de circunstâncias e valores extraordi-

nários que correspondem aos critérios anteriores”.

No que se refere ao critério (ii) e ao valor da Baixa como

síntese consciente, original e paradigmática no quadro dos

modelos urbanísticos da segunda metade do século XVIII,

adicionou Viena e Nancy, à lista de modelos inspiradores já

mencionados. Colocou de seguida em evidência a visão da

articulação do novo com o antigo e com a topografia, refor-

çando o valor da Escola Urbanística Portuguesa a partir de

experiências prévias nas cidades coloniais, postas ao serviço

de um projecto mais amplo e exigente para Lisboa.

No âmbito do critério (iv), recordou a originalidade e a

rapidez de execução de um plano tridimensional particular-

mente eficaz nos sistemas tipológicos estandardizados,

ao contrário de experiências semelhantes como a da Place

Vendôme ou a da Rue Royale em Paris, durante o reinado

de Luís XV, que não possuíam um modelo tridimensional

para a sua realização.

Enquadrando-se no critério (v), da ocupação territorial

pluri-social, o Presidente do IPPAR referiu ainda a coorde-

nação inédita de interesses públicos e privados e o contri-

buto dos intelectuais, em particular os da Arcádia Lusitana,

na implantação do plano da Baixa como demonstração de

um novo tipo de sensibilidade e vontade que levou à trans-

formação do bem comum e público em representação espa-

cial e dimensão estética.

No que se refere aos critérios (i) e (iii), salientou o facto

de que a Baixa é a concretização da vocação iluminada de

[118] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 119: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

Lisboa no contexto do seu tempo e constitui simultanea-

mente um monumento da Ilustração Europeia e um monu-

mento visionário da cidade romântica do século XIX.

Depois de analisados os seis primeiros critérios a comu-

nicação foi dedicada à análise dos parâmetros que deverão

reger a gestão da Baixa Pombalina, de forma a assegurar a

sua conservação, salvaguarda e valorização. Com este objec-

tivo, começou por recordar que praticamente a totalidade

da Baixa está já classificada como imóvel de interesse

público. Salientou depois que para atingir estes objectivos

será necessário o trabalho de uma equipa que constitua um

modelo que garanta a sua continuidade no tempo,

independentemente dos ciclos políticos. Esse modelo de

gestão deverá estar plenamente integrado no projecto glo-

bal para a cidade de Lisboa.

A gestão da Baixa Pombalina deverá saber equacionar as

modificações introduzidas com o tempo, relativamente ao

que foi planeado e realmente executado, e integrá-las como

experiências sedimentares que não afectem a sua integri-

dade e autenticidade.

Salientou ainda a necessidade de envolvimento directo

dos jovens e cidadãos em geral, nesta acção de gestão e sal-

vaguarda.

Reiterou por fim a disponibilidade total do IPPAR para

a concretização do tipo de gestão que foi em linhas gerais

apresentado pela Sra. Vereadora Dra. Maria Eduarda

Napoleão, na abertura das Jornadas.

Depois das duas comunicações sobre a necessidade de

demonstrar que o gestor do sítio candidato é capaz de o

proteger, salvaguardar e valorizar de forma integrada, foi

preciosa a comunicação da Arq. Bénédicte Selfslagh,

Secretária do Comité Mundial até Junho de 2003.

Nesta última comunicação, antes das palavras de encer-

ramento do Sr. Presidente da Câmara, foram apresentadas

as exigências que recentemente têm vindo a ser aplicadas

na selecção que é levada a cabo pelo referido Comité, que

será também o receptor e avaliador da candidatura da Baixa

Pombalina.

A apresentação foi organizada segundo os seguintes -

tópicos:

• A estrutura da Convenção do Património Mundial;

• As tarefas do Património Mundial;

• Os objectivos estratégicos do Comité do Património

Mundial;

• Os meios usados para atingir os objectivos estratégicos;

• A questão da credibilidade da Lista do Património Mundial

e a questão da conservação dos bens nela inscritos;

• Novidades no processo de revisão das candidaturas;

• Conselhos para quem prepara uma candidatura.

Em relação ao primeiro tópico foi recordada a adopção da

Convenção do Património Mundial em 1972 e a sua ratifica-

ção por vinte países em 1975. Hoje, a Assembleia Geral do

Património Mundial é composta por 176 Estados-membros e a

Lista do Património Mundial inclui 754 bens classificados.

A candidatura dos bens é apresentada, uma por ano, por cada

Estado-membro a partir de uma Lista Indicativa Nacional.

O órgão de decisão, o Comité do Património Mundial, é actual-

mente composto pelos representantes de 21 países, entre os

quais pelo de Portugal. O Comité tem um secretariado que é

denominado Centro do Património Mundial e é auxiliado por

[119] Resultados e Conclusões

Page 120: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

três instituições consultivas: o ICOMOS, para o património

cultural, a IUCN para o património natural e o ICCROM para

as questões de formação.

O Comité tem como tarefas principais as seguintes: deci-

dir quais os sítios a serem inscritos na Lista do Património

Mundial (em média 40 por ano); examinar o estado de con-

servação dos bens candidatos; atribuir ajudas do Fundo do

Património Mundial (com um orçamento de aproximada-

mente 28 milhões de dólares) para a assistência internacio-

nal aos bens classificados.

Os objectivos estratégicos do Comité actualmente em

vigor são os adoptados na Declaração de Budapeste de 2002,

sendo conhecidos por os 4 C’s:

1. Garantir a Credibilidade e representatividade da Lista;

2. Assegurar o estado de Conservação dos bens inscritos

na Lista;

3. Reforçar as Capacidades dos Estados membros;

4. Responsabilizar a sociedade civil através da Comunicação.

Hoje é dada especial importância não só à excepcionali-

dade do bem como à sua conservação. Esta última é da res-

ponsabilidade dos Estados-membros, sendo a Convenção a

mera expressão de uma vontade de cooperação e solidarie-

dade internacional que procura responder às propostas

apresentadas.

Para a monitorização e avaliação periódica dos resulta-

dos que se vão obtendo, é feita regularmente uma análise

da Lista Indicativa fornecida por cada um dos Estados-

-membros. Com o mesmo fim é feita a análise de relatórios

periódicos das diversas regiões do Globo: Arábia, África,

Ásia, Pacífico, América Latina e Europa.

No que se refere aos meios usados para atingir os 4 C’s,

estes consistem resumidamente em: estabelecer princípios

de boa conservação; rever e simplificar os procedimentos de

classificação; estabelecer programas temáticos e regionais

e pesquisar novos parceiros.

Sobre a questão da Credibilidade da Lista do Património

Mundial, a Arq. Bénédicte Selfslagh referiu a preocupação

actual em completar devidamente a representação dos

cinco continentes de forma equilibrada. Na sua opinião,

a Lista deveria permitir contar a História da Terra e da

Humanidade através dos sítios do Património. Com esta

definição, nenhuma região ou continente poderiam ter

“menos História” que os outros.

Ainda sobre a Credibilidade, foi referida a actual preo-

cupação do Comité em identificar as lacunas, as tipologias,

os países sub-representados e os sítios que deveriam impres-

cindivelmente fazer parte da Lista desde há muito tempo e

que ainda não foram classificados como tal. A este critério

deve ser sempre associado o critério de base ou seja o do

Valor Universal Excepcional (VUE), associado ao pequeno

“a” – autenticidade e ao pequeno “i” – integridade.

Relativamente à questão da conservação dos bens candi-

datos, a tendência actual é a de exigir a sua salvaguarda a

partir do momento da sua inscrição. Posteriormente, a sua

permanência na Lista, dependerá da boa gestão do sítio e da

boa resposta às pressões e ameaças a que a sua conservação

esteja sujeita.

Na preparação das propostas das candidaturas foram

recentemente introduzidas novidades. Entre elas foi refe-

rida a existência de um futuro mecanismo destinado a veri-

ficar se a proposta de inscrição apresentada está completa.

[120] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 121: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

Cada Estado-membro passará também a contribuir para

a avaliação de cada candidatura, simplificando e reduzindo

o tempo do processo de decisão.

A comunicação foi concluída com alguns conselhos des-

tinados a qualquer equipa que prepare actualmente uma

candidatura. Como primeira ajuda foi salientada a impor-

tância de posicionar o dossier de candidatura em todos os

contextos, desde o nacional, passando pelo regional e ter-

minando no contexto mundial. Como segundo conselho foi

referida a necessidade de estabelecer parâmetros físicos que

permitam medir o VUE ao longo do tempo. Ao mesmo

tempo, a gestão do sítio proposto deverá estar bem integra-

da na tradição e na legislação nacional. Por seu lado. o rela-

tório sobre o estado de conservação do sítio deverá incluir

todos os actores envolvidos, em especial a posição das auto-

ridades municipais e a do Estado-membro.

No final deste “compte-rendu” destinado a integrar e

relacionar o conteúdo das diversas comunicações no âmbi-

to da demonstração do Valor Universal Excepcional da

Baixa Pombalina, necessário para fundamentar o dossier de

Candidatura em preparação, é oportuna a formulação de

algumas considerações complementares.

Uma primeira consideração relaciona-se com o critério

da Integridade e Autenticidade que não foi aprofundada-

mente debatido, por não constituir o objectivo principal das

presentes Jornadas, mas que será indispensável demonstrar.

Depois das comunicações apresentadas começa a ser

possível compreender como o poder de sobrevivência do

plano da Baixa Pombalina reside na versatilidade funcional

dos espaços que ao longo dos tempos se foram adaptando a

residências, a sedes de bancos, de diferentes comércios ou

de serviços públicos.

Por outro lado, o conselho obtido com a intervenção da Arq.

Bénédicte Selfslagh de estabelecer parâmetros ou padrões físi-

cos para ir medindo a autenticidade do sítio histórico, leva a

propor padrões que sejam pertença única da Baixa Pombalina.

Por exemplo, a conservação da cornija ao nível do 3º piso, que

tem vindo a ser respeitada apesar de se terem crescido alguns

andares acima (já desde o início da execução do plano, como

foi demonstrado), poderá ser usada como um desses padrões.

Outro padrão a usar, poderá ser a percentagem dos vãos con-

servados em relação à totalidade da superfície das fachadas.

Um terceiro padrão será o nível de conservação das escadas

comuns interiores aos edifícios.

Ainda em relação aos seis primeiros critérios usados

para avaliar o VUE deve ser salientado que, para além da

inspiração literária, não deve ser esquecido como o terra-

moto de 1755 serviu para variadíssimas discussões filosófi-

cas durante a época das Luzes, como tema de representação

pictórica e iconográfica do flagelo sísmico, na pior e mais

destruidora das suas acepções, que percorreu o Mundo e

constituiu imagem de referência.

Outro aspecto fundamental, que foi apenas aflorado

pelo Dr. Vasco Graça-Moura e pelo Dr. Monterroso Teixeira

em relação à cidade de Lisboa, é o da Baixa ter sido palco

dos acontecimentos históricos decisivos para a história da

Nação Portuguesa e de ter constituído a sala de visitas da

capital de Portugal. Em relação a este aspecto, fundamental

para a justificação do critério (vi), creio serem oportunas

aqui, algumas reflexões mais aprofundadas.

[121] Resultados e Conclusões

Page 122: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

Na verdade, a Baixa constituiu o palco de muitos autos

da fé, de embarques, de desembarques, de recepções de

monarcas e dignitários, de manifestações, de um regicídio,

de cerimónias militares, da proclamação da República,

de funerais, de revoluções e de tantos outros momentos de

encenação política de toda uma nação.

De forma a basear esta ideia, deve ser recordado que,

antes do terramoto, o Terreiro do Paço chegou a funcionar

como sede do poder do Reino Unido Ibérico durante os dois

anos que durou a estadia em Lisboa de Filipe II e de alguns

meses de Filipe III. A Baixa viu partir a Infanta D. Catarina

de Bragança para se tornar Rainha de Inglaterra e levar

como dote de casamento Bombaím e Tanger; viu depois do

terramoto o prodígio tecnológico do transporte, elevação e

colocação da pesadíssima estátua de bronze de D. José I, que

constituiu para Portugal uma empresa equivalente à insta-

lação do obelisco vaticano na Praça de S. Pedro.

De recordar as paradas das tropas francesas no Rossio,

o embarque no Cais do Sodré das tropas de Junot, o desem-

barque no Terreiro do Paço de D. João VI regressado do Brasil,

a inauguração da estátua de D. Pedro IV no Rossio, a inau-

guração do mercado da Figueira, importante modernidade

permitida pela arquitectura do ferro. Ou ainda o casamento

e o funeral de D. Luís I ou o batizado e o casamento de

D. Carlos I na Igreja de S. Domingos. O ciclo de desembarques

e recepções no Cais das Colunas, do Kaiser Guilherme da

Alemanha, do rei Eduardo VII de Inglaterra, de Afonso XIII de

Espanha, da Rainha Alexandra de Inglaterra, do Presidente

Loubet da França. Os bota-abaixo com presença real na Doca

do Arsenal, a partida de corpos expedicionários para as coló-

nias, o regicídio de D. Carlos I e D. Luís Filipe, o seu funeral,

a proclamação da República do balcão do Município, a che-

gada do General Mendes Cabeçadas, as comemorações do

28 de Maio e do 10 de Junho no Terreiro do Paço, a recep-

ção de aviadores portugueses depois dos seus raids prodigio-

sos pelo Mundo, o desembarque da rainha Isabel II de

Inglaterra, a revolução do 25 de Abril, as manifestações pela

liberdade, concertos, instalações artísticas e tantas outras

manifestações públicas.

A lista é quase infindável mas demonstra bem a impor-

tância da Baixa Pombalina como palco de acontecimentos

históricos fundamentais para a cultura e a história de

Portugal. Uma História em imagens foi o tema que propus

para a realização de uma exposição iconográfica e fotográ-

fica, no âmbito da comemoração dos 250 anos de história

da Baixa Pombalina, organizada pela CML. Uma exposição

que poderá passar a constituir um dos núcleos de um futu-

ro Centro Interpretativo da Baixa Pombalina.

Como considerações finais a juntar a estes resultados e

conclusões, é importante constatar como os dois dias de

reflexão serviram também para exorcizar alguns medos ini-

ciais próprios de um projecto desta envergadura. Uma das

maiores preocupações levantadas nos debates prendia-se,

no início das Jornadas, com o facto de hoje, a Baixa, pela

incúria sofrida nas últimas décadas não corresponder ao

“plano inicial”. Ao longo das Jornadas, estas preocupações

foram sendo dissipadas pelas sucessivas contribuições dos

oradores que demonstraram como:

1. A Baixa é fruto de um modelo e de um conjunto de circuns-

tâncias e vontades que se foram juntando ao projecto inicial ao

longo de quase um século que levou a sua reconstrução;

[122] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 123: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

2. O aspecto actual da Baixa não pode ser confrontado

com um modelo ideal inicial pois esse modelo foi logo, na

primeira fase de trabalhos do século XVIII, adaptado e

alterado pelos seus autores.

Por outras palavras, a Baixa deve ser considerada

como ela verdadeiramente é, ou seja, um sítio histó-

rico monumental por excelência que testemunha uma

sobreposição de épocas, vontades e estilos que estão na

base da sua excepcionalidade como fruto de uma civili-

zação.

A empresa que foi lançada com a organização destes

dois dias de reflexão tem agora pernas para andar de

forma bem justificada e fundamentada. Uma empresa que

revela, pela primeira vez, uma vontade decidida e forte

para tomar em mãos o futuro e a gestão da Baixa de forma

responsável, estruturada e exigente.

[123] Resultados e Conclusões

Ornamentações da Rua Garrett no Chiado por ocasião da visita do rei Eduardo VII de Inglaterra, em 2 de Abril de 1903. Autor: António Novaes.

Arquivo Municipal de Lisboa – Arquivo Fotográfico.

Page 124: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial
Page 125: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

Louvo a realização destas Jornadas e nomeadamente esta

incidência sobre os temas em que deve decorrer o processo

de candidatura da Baixa Pombalina a Património Mundial.

Fui informado dos vossos debates, das intervenções havidas

durante estes dois dias, e penso que a Sr.a Vereadora

Eduarda Napoleão terá exposto aqui a intenção de termos

este processo concluído em 2005, ano em que se completam

250 anos sobre este acontecimento que marcou a história

da Cidade.

Gostaria no entanto de vos dizer que a maneira como

estamos a trabalhar é independente de qualquer candida-

tura, reconhecimento ou distinção por uma organização

internacional. Tenho tido na minha vida pública a obriga-

ção de assumir a realização de efemérides, eventos, organi-

zações ou iniciativas que ocorrem a título excepcional e que

por vezes fazem desviar um pouco a atenção daquele que

deve ser um trabalho sustentado e permanente para atingir

os objectivos que prosseguimos. Enquanto Secretário de

Estado da Cultura, recordo que tive de coordenar a partici-

pação portuguesa, por exemplo, na Europália, na Lisboa

Capital Europeia da Cultura 94, na programação cultural

da Presidência de Portugal na então Comunidade Europeia

e na comemoração/evocação dos cinco séculos dos Descobri-

mentos, tudo na década de 90, em que foi necessário consa-

grar boa parte dos nossos esforços à garantia de êxito e

sucesso dessas iniciativas.

Iniciativas marcadas no tempo, mas que permitiram

algumas realizações no domínio da recuperação de marcos

do nosso património. Lembro que tarefas que deviam ser

permanentes, obrigatórias, cumpridas há muito tempo

antes, como os trabalhos de recuperação e enriquecimento

do Museu Nacional de Arte Antiga, do Museu de Arte

Contemporânea, entre outros, foram levadas a cabo nessa

altura. Com a disponibilidade de fundos graças à realização

dessas iniciativas, muitas peças valiosas do nosso patrimó-

nio móvel e bens imóveis relevantes, foram restaurados ape-

sar de estarem carecidos desse mesmo restauro desde há

muito tempo.

Julgo que não podemos, todos, membros desta comuni-

dade nacional, transmissores e receptores de influências

múltiplas, deixar de aceitar de nós próprios o retrato que

muitas vezes deixamos, que as pedras da indiferença ou do

silêncio tenham mais força do que as rodas, da força motriz

do desenvolvimento, ou até da luz. Neste caso, o que se está

a passar com a Baixa e com muito do património edificado

em Lisboa, integrado em zonas de relevante interesse histó-

rico ou patrimonial, é algo de exemplar a esse propósito.

Não posso deixar de referir o trabalho meritório, feito

por várias instituições, de entre as quais saliento a Direcção

Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, aqui repre-

sentada, a Academia Nacional de Belas Artes e as Faculdades

de Arquitectura, que têm desenvolvido trabalho relevante

nesta matéria. Na colaboração com o IPPAR deverão ser

acertados os momentos em que deverá ser dito não ou sim

em conjunto com a Câmara Municipal de Lisboa, numa ati-

tude de concertação. Temos todos esperança nesta equipa

nova que está a dirigir o IPPAR e no espírito que aqui já foi

revelado relativamente ao pensamento, exposição de ideias,

projectos e intenções.

É intenção e prática do Município ler as sugestões que

nos vão sendo feitas e nas quais atentamos com toda a

humildade. Em particular, as orientações ou sugestões para

Sessão de encerramentoPedro Santana LopesPresidente da Câmara Municipal de Lisboa

Page 126: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

que se proceda a levantamentos do estado da situação de

zonas da cidade carenciadas, e nas quais começámos desde

a primeira hora a trabalhar.

Desde que assumimos funções, que foi iniciado o levan-

tamento pormenorizado de toda esta zona de intervenção

correspondente à Baixa Pombalina. De recordar a instala-

ção de piezómetros, para a avaliação da influência dos

níveis freáticos e do estado das condutas e colectores nas

fundações de toda esta malha edificada, para garantir a sua

salvaguarda e sustentabilidade.

Temos vindo de facto a efectuar, de forma embrionária e

modelar, várias intervenções em situações que nos parecem

de maior gravidade ou merecedoras de excepcional aten-

ção. Foi aqui salientado o caso da Rua da Madalena, mas

outras frentes existem como na Rua de S. Bento e noutros

bairros históricos da Cidade. Se se caminhar com um olhar

atento por Lisboa, será possível confirmar sinais muito evi-

dentes de mudança.

Para além das intervenções propriamente ditas, é tam-

bém necessária a sensibilização da maior parte dos pro-

prietários para o dever de cumprirem com as suas obriga-

ções. Para atingir esse fim, é necessário que os privados

acreditem na acção das autoridades públicas. Uma acção de

verdade e com verdade.

Não pode, por outro lado, continuar a suceder o que se

foi arrastando durante anos e mesmo décadas, em que exis-

tiram milhares de processos de posse administrativa blo-

queados à espera da consequente actuação por parte do

município e das autoridades públicas. Presentemente, tra-

balha-se de forma a contrariar este estado de coisas com a

intimação e a posse administrativa dos edifícios, seguidas

dos necessários trabalhos de recuperação e de reabilitação,

terminando com a apresentação da respectiva factura ao

proprietário que não tenha cumprido as suas obrigações.

Obviamente que sabemos que todo este renascer e todo

este movimento de consciência colectiva, no sentido de

assumirmos como imperativo as tarefas da reabilitação na

Cidade, relegando para plano absolutamente secundário as

permissões ou autorizações de construção nova, dependem

de um conjunto de decisões que respeitam não só às insti-

tuições representadas nestas Jornadas, mas que necessitam

de uma conjugação de esforços a nível nacional e local, de

instituições privadas e públicas, de investigadores, de uni-

versitários e de políticos.

Cumpre ainda salientar que está anunciada, a imple-

mentação de uma "alavanca" fundamental, fruto da expe-

riência de anos. Esta "alavanca" consistirá na lei do arren-

damento urbano e comercial que está anunciada pelo

governo para apreciação e aprovação em breve. Este diplo-

ma legal inclui um conjunto de instrumentos fundamen-

tais como as sociedades de reabilitação urbana que foram

recentemente discutidas e aprovadas pela comissão compe-

tente no Parlamento e que irão agora para promulgação

pelo Sr. Presidente da República. Estas sociedades permiti-

rão retomar um pouco a ideia dos fundos de investimento

imobiliário que tínhamos anunciado antes das eleições

para dotar estas acções dos necessários meios financeiros,

combinando bens públicos e privados. Estas sociedades de

reabilitação urbana aprovadas, há cerca de dois meses pelo

Conselho de Ministros, vêm permitir essa mesma combina-

ção e concentração de meios financeiros de várias nature-

zas.

[126] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial

Page 127: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

Gostava também de sublinhar que a orientação dada às

empresas que estão sob tutela do Município, nomeada-

mente a EPUL, que tem trabalhado fundamentalmente ao

longo destes anos na construção nova, tem sido a de incre-

mentar a importância dada às acções de reabilitação. Para

atingir estes objectivos, procedeu-se à recomposição dos

seus conselhos de administração, estruturas e recursos

humanos, passando nalguns casos pela sua recapitaliza-

ção de forma a dotá-las de meios financeiros que permi-

tam a sua ágil intervenção no mercado. Esta actuação está

a ser levada a cabo nas zonas mais relevantes da cidade

como exemplos deste empenho da autarquia na área da

reabilitação.

Na Baixa procuramos dar o exemplo e para isso criámos

uma unidade projecto específica para a zona da Baixa-

-Chiado que não tinha ainda sido considerada como gabi-

nete autónomo, à semelhança dos outros bairros históricos

da Cidade. Uma zona que viu ardida uma parte da sua área

nobre há quinze anos.

Mas não vale apenas falar do que está para trás. O que

realmente conta é termos a certeza de que estamos neste

momento munidos de meios necessários, tais como o

Fundo Remanescente do Chiado ou as Mega-empreitadas,

para tomar em mãos o futuro deste sítio histórico monu-

mental que nos pertence a todos.

Lisboa, 10 de Outubro de 2003

[127] Sessão de Encerramento

Page 128: Jornadas Candidatura Baixa a Patrimonio Mundial

SIGLAS

CHE Centro Histórico de Évora

CME Câmara Municipal de Évora

CML Câmara Municipal de Lisboa

CPM Comité do Património Mundial

DGEMN Direcção Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais

EVORACOM Projecto Especial de Urbanismo Comercial – Revitalização

do Centro Histórico de Évora

FRRC Fundo Remanescente de Reconstrução do Chiado

ICCROM Centro Internacional para o Estudo da Preservação e Restauro

do Património Cultural

ICOMOS Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios

INH Instituto Nacional de Habitação

IPPAR Instituto Português do Património Arquitectónico

IUCN União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos

Naturais

PDM Plano Director Municipal

UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura

UNL Universidade Nova de Lisboa

URBCOM Sistema de Incentivos a Projectos de Urbanismo Comercial inserido

no Programa de Incentivos à Modernização da Economia, do Ministério

da Economia, Portugal

UTL Universidade Técnica de Lisboa

VUE Valor Universal Excepcional