jornadas candidatura baixa a patrimonio mundial
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Comunicações das Jornadas de
9-10 de Outubro de 2003
Licenciamento Urbanístico e Reabilitação Urbana
EdiçãoCâmara Municipal de LisboaPelouro do Licenciamento Urbanístico e Reabilitação Urbana
PresidentePedro Santana Lopes
VereadoraMaria Eduarda Napoleão
Coordenação da ediçãoJoão Mascarenhas Mateus
TextosJosé-Augusto FrançaSidónio PardalWalter RossaJoão AppletonRaquel Henriques da SilvaVasco Graça MouraJosé Monterroso TeixeiraManuela OliveiraJoão Manuel Ribeiro Belo RodeiaBénedicte SelfslaghJoão Mascarenhas Mateus
Coordenação da produçãoHelena Caria
Equipa técnicaCristiana AfonsoAna GracindoConceição PeixotoSandra VeigaLeonor Martins
Revisão de textoVeni Vici, L.da
Fotografias e ilustraçõesArquivo Municipal de Lisboa – Arquivo FotográficoCâmara Municipal de ÉvoraCartulário PombalinoJoão Appleton
DesignAtelier B2:José Brandão | Teresa Olazabal Cabral
ImpressãoTextype
TítuloA Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial.Comunicações das Jornadas9-10 Outubro de 2003
© Todos os direitos reservados, em todos os idiomas.
Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer forma ou meio,
de textos e imagens, sem prévia autorização da Câmara Municipal de Lisboa.
Qualquer transgressão será passível de penalização,
prevista na legislação portuguesa em vigor.
Tiragem: 1000 exemplares
ISBN: 972-98786-8-4
Depósito legal: 214 301/04
Lisboa, Junho de 2004
Direcção Municipal de Gestão Urbanística
José Menezes e Teles
Departamento de Monitorização e Difusão de Informação Urbana
António Pereira da Silva
Divisão de Difusão de Informação Urbana
Helena Caria
Campo Grande, n.º 25 – 4.ºC 1749-099 LisboaTelef.: +351-21 798 89 96 Fax: +351-21 798 80 34www.cm-lisboa.pt
Prefácio
Discutir publicamente um tema tão complexo como o da importância da Baixa Pombalina para o PatrimónioMundial, constitui uma ocasião única e histórica para a Câmara Municipal de Lisboa. Associar esta ref lexão ao propósito de candidatar a Baixa Pombalina à Lista do Património da Humanidade é motivo de responsabilidade acrescida.Reconhecer assim a excepcionalidade do coração emblemático da Cidade é uma tarefa que constitui motivode orgulho para os lisboetas e para Portugal, mas que ao mesmo tempo coloca um desafio a quem propôseste debate público.Um desafio em parte já ganho, porque as Jornadas de 9 e 10 de Outubro de 2003 foram articuladas com o objectivo de abordar os diversos valores deste sítio histórico monumental, de forma sistemática e abrangente.As comunicações destes dois intensos dias de trabalhos,que são agora publicadas, ref lectem o conhecimento dos seus autores e ao mesmo tempo, de forma encadeadae sequencial, dão uma visão dos vários contributos e valores que a Baixa encerra e é testemunho para o Património de Portugal e de toda a Humanidade.
Maria Eduarda Napoleão
Vereadora do Licenciamento Urbanístico e Reabilitação UrbanaCâmara Municipal de Lisboa
Prof. José-Augusto França – Universidade Nova de Lisboa
Prof. Sidónio Pardal – Universidade Técnica de Lisboa
Prof. Walter Rossa – Universidade de Coimbra
Eng.o João Appleton – Universidade Técnica de Lisboa
Prof.a Raquel Henriques da Silva – Universidade Nova de Lisboa
Dr. Vasco Graça Moura – Parlamento Europeu
Dr. José Monterroso Teixeira – Director Municipal de Cultura da C. M. Lisboa
Dr.a Manuela Oliveira – Directora do Centro Histórico da C. M. Évora
Arq.to João Manuel Belo Rodeia – Presidente do IPPAR
Dr.a Benedicte Selfslagh – Ex-Secretária do Comité do Património Mundial e ex-Presidente
do Conselho do Comité Director do Património Cultural do Conselho da Europa
Dr. José Sasportes – Presidente da Comissão Nacional da UNESCO em Portugal
Dr.a Paula Costa – UNESCO
Dr. José Sarmento de Matos – Olisipógrafo
Dr. Elísio Summavielle – Sub-Director Geral da DGEMN
Dr. Mário Quartim Graça – Gabinete de Apoio à Presidência da C. M. Lisboa
Dr. José Menezes e Teles – Director Municipal de Gestão Urbanística da C. M. Lisboa
Arq.to António Pereira da Silva – Director do Departamento de Monitorização e Difusão
de Informação Urbana da C. M. Lisboa
Dr.a Mafalda Magalhães de Barros – Directora Municipal de Conservação e Reabilitação
Urbana da C. M. Lisboa
Arq.ta Ana Gonçalves – Directora da Unidade de Projecto da Baixa Chiado da C. M. Lisboa
Arq.to António Catarino – Unidade de Projecto de S. Bento da C. M. Lisboa
Dr.a Paula Oliveira – Directora da Associação de Turismo de Lisboa
D. Maria do Carmo Santinho – Associação de Turismo de Lisboa
Dr.a Sofia Feijão – Auditório do Welcome Center
Dr.a Teresa Arriaga – Assessora da Vereadora do Licenciamento Urbanístico e Reabilitação
Urbana da C. M. Lisboa
Dr.a Júlia Teixeira – Assessora da Vereadora do Licenciamento Urbanístico e Reabilitação
Urbana da C. M. Lisboa
Dr.a Inês Viegas – Chefe de Divisão de Arquivos da C. M. Lisboa
Dr.a Luísa Reis – Arquivo Fotográfico da C. M. Lisboa
Dr.a Leonilde Viegas – Arquivo Fotográfico da C. M. Lisboa
Dr.a Maria de Lurdes Baptista – Arquivo Fotográfico da C. M. Lisboa
Agradecimentos
[7] PROGRAMA
[9] Abertura das Jornadas
Dr.a Maria Eduarda Napoleão – Vereadora da CML
[12] Lisboa Pombalina
Prof. José-Augusto França
[20] A Baixa Pombalina – um marco na história da planificação das cidades
Prof. Sidónio Pardal
[28] A Baixa de Lisboa no Contexto do Urbanismo Português
Prof. Walter Rossa
[40] A Baixa Pombalina: da inovação ao mito
Eng.o João Appleton
[48] A Arquitectura da Baixa Pombalina: Cem anos de História
Prof.a Raquel Henriques da Silva
[56] A Baixa Pombalina como elemento emblemático
da cultura portuguesa e imagem da sua projecção internacional
Dr. Vasco Graça Moura
[66] A Baixa Pombalina como referência de produção artística e literária
e cenário de uma tradição cultural
Dr. José de Monterroso Teixeira
[78] A gestão integrada de um sítio já incluído na Lista do Património Mundial.
O caso de Évora
Dr.a Manuela Oliveira
[88] Baixa Pombalina de Lisboa e o Património da Humanidade:
um pequeno contributo
Arq.to João Manuel Belo Rodeia
[94] Os Objectivos do comité do Património Mundial
Dr.a Benedicte Selfslagh
[104] Resultados e Conclusões
Dr. João Mascarenhas Mateus
[125] Sessão de Encerramento
Dr. Pedro Santana Lopes – Presidente da CML
Índice
Programa
Lisboa, 9 e 10 de Outubro de 2003
Dia 9
10h00 Abertura das JornadasDr.a Maria Eduarda Napoleão(Vereadora Lic. Urbanístico e Reabilitação Urbana, CML)
Moderadora: Dr.a Paula Costa (UNESCO)
10h45 Lisboa PombalinaProf. José-Augusto França (UNL)
11h15 café
11h30 A Baixa Pombalina como marco na história da planificação das cidadesProf. Sidónio Pardal (UTL)
12h00 Debate / Questões
13h00 Pausa
Moderador: Dr. João Mascarenhas Mateus (CML)
15h00 A Baixa Pombalina no contexto do urbanismo portuguêsProf. Walter Rossa (Univ. Coimbra)
15h30 A Baixa Pombalina: da inovação ao mitoEng.o João Appleton (UTL)
16h00 café
16h15 A Arquitectura da Baixa Pombalina: Cem anos de História.Prof.a Raquel Henriques da Silva (UNL)
16h45 Debate / questões
Dia 10
Moderador: Dr. José Sarmento de Matos (Olisipógrafo)
10h00 A Baixa Pombalina como elemento emble-mático da cultura portuguesa e imagem da sua projecção internacionalDr. Vasco Graça Moura (Parlamento Europeu)
10h30 A Baixa Pombalina como referência da produção artística e literária e cenário de uma tradição culturalDr. José Monterroso Teixeira (Director Municipal de Cultura, CML)
11h45 Debate / Questões
13h00 Pausa
Moderador: Dr. Elísio Summavielle(Sub-Director Geral, DGEMN)
15h00 A Gestão integrada de um sítio já incluídona Lista do Património Mundial. O caso de ÉvoraDr.a Manuela Oliveira (Directora do Centro Histórico, CME)
15h30 A classificação e salvaguarda da BaixaPombalina como sítio histórico e monumentalArq.to João Manuel Ribeiro Belo Rodeia (Presidente do IPPAR)
16h00 café
16h15 Os objectivos do Comité do Património MundialDr.a Benedicte Selfslagh (CPM)
(ex-Secretária do Comité do Património Mundial e ex-presidente do Conselho do Comité Director do Património Cultural do Conselho da Europa)
16h45 Debate / Conclusões
17h15 Encerramento das JornadasDr. Pedro Santana Lopes (Presidente da CML)
Gostaria de começar por agradecer a Vossa presença nestas jornadas organizadas pela
Câmara Municipal de Lisboa, dedicadas ao tema “A Baixa Pombalina e a sua importância
para o Património Mundial”.
Esta iniciativa constitui para este Executivo, uma declaração de intenção no sentido
de candidatar a Baixa à Lista de Património da Humanidade.
De forma a atingir este objectivo, nestes dois dias iremos ouvir um conjunto de espe-
cialistas que reflectirão sobre as múltiplas questões ligadas à complexidade do tema.
Estas jornadas procurarão por isso analisar os valores intrínsecos que a Baixa
Pombalina encerra, do ponto de vista:
• Cultural;
• Histórico;
• Urbanístico;
• e Arquitectónico.
Simultaneamente procurar-se-á estabelecer as características da sua originalidade
e excepcionalidade, analisando a sua múltipla contribuição para o Património Histórico da
Humanidade.
Este projecto insere-se numa estratégia de reabilitação e revitalização de uma zona
que se tem vindo a degradar tanto a nível do edificado como ao nível residencial
e comercial. Temos que inverter esta tendência e para o efeito é necessário:
• combater o decréscimo de residentes;
• aumentar a densidade populacional;
• melhorar os níveis de mobilidade e de proximidade das pessoas, dos bens e da informação;
• promover a complexidade e a diversidade de usos e funções;
• valorizar as actividades económicas de forma integrada;
• promover a identidade de Lisboa.
Numa primeira abordagem foram desenvolvidas já algumas acções de carácter urgente.
De salientar:
• a criação da Unidade de Projecto da Baixa-Chiado;
• a recuperação do Fundo Remanescente de Reconstrução do Chiado (FRRC);
[9] Abertura das Jornadas
Abertura das JornadasMaria Eduarda NapoleãoVereadora do Licenciamento Urbanistico e Reabilitação UrbanaCâmara Municipal de Lisboa
• a consolidação dos imóveis em risco estrutural eminente;
• a monitorização dos níveis freáticos e das fundações;
• os estudos de interpretação do sítio;
• os incentivos ao investimento particular;
• o estudo de melhoria do sistema de Protecção Civil.
Em simultâneo está em desenvolvimento:
• o Regulamento para todas intervenções;
• a criação do livrete do edifício;
• o concurso Internacional da Mega Empreitada em conjunto com a implementação
do Fundo Remanescente de Reconstrução do Chiado;
• a abertura das frentes de obra da Rua da Madalena, da Rua do Alecrim e da Rua da
Misericórdia.
A curto prazo serão iniciadas intervenções:
• no Largo do Corpo Santo;
• na Praça de S. Paulo.
A Candidatura da Baixa Pombalina a Património Mundial, integra-se assim na:
• estratégia global de gestão da Cidade;
• revitalização do seu centro emblemático, criando condições atractivas para novos
residentes;
• exigência da qualidade das intervenções presentes e futuras;
• atracção de investimentos para a salvaguarda do sítio;
• divulgação internacional do nosso Património.
Esta estratégia preocupa-se, antes de mais, em impedir:
• a sua descaracterização irreversível;
• o despovoamento e o abandono gradual;
• a terciarização desordenada e de baixa qualidade.
[10] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
O dossier de candidatura será composto de duas partes. Uma primeira parte, que
constitui exactamente o objectivo das presentes jornadas e se destina a responder aos
critérios exigidos pelo Comité Mundial do Património da UNESCO.
Uma segunda parte, que se encontra em elaboração, deverá conter a apresentação
do programa de gestão que garanta a conservação dos valores histórico-culturais
da Baixa.
É por isso importante salientar os critérios de avaliação estabelecidos na Convenção
do Património Mundial. Para a classificação de um bem cultural, e de forma resumida,
o sítio deverá:
• constituir uma obra-prima do génio da criatividade humana;
• possuir uma dimensão monumental;
• transmitir um conceito urbano excepcional;
• ser testemunho de uma ideia civilizacional única;
• propor-se como uma ocupação territorial pluri-social;
• espelhar uma tradição cultural;
• ter um forte significado artístico e literário;
• desenvolver uma nova tecnologia construtiva.
Os temas a desenvolver nestes dois dias estão intimamente ligados a estes mesmos
critérios, passando gradualmente dos de carácter mais geral aos relacionados com
a especificidade do sítio monumental.
O último painel de conferências, no segundo dia, ocupar-se-á com exemplos e aspec-
tos práticos do processo de candidatura.
Contaremos por fim com uma presença estrangeira, a secretária do Comité Mundial
que ocupou o cargo até ao passado mês de Junho. As jornadas serão encerradas com a
presença do Sr. Presidente da Câmara.
Infelizmente, por razões imprevistas de ordem profissional, o Prof. José Augusto-
-França não poderá estar hoje connosco. Enviou, no entanto, a sua comunicação por
escrito que será lida pelo Dr. Mascarenhas Mateus. Desejo-lhes um bom trabalho!
[11] Abertura das Jornadas
José-AugustoFrança
LisboaPombalina
[13] Lisboa Pombalina
“Obra-prima do génio e da criatividade humana”,no quadro histórico português, a Lisboa inventadapelo Marquês de Pombal sobre as ruínas doterramoto de 1755, situa-se no espaço históricoeuro-americano entre a cidade de S. Petersburgoinventada pelo czar Pedro o Grande no princípio de
Fotografia aérea da Praça do Comércio, s.d.,Espólio Eduardo Portugal.
Arquivo Municipal de Lisboa – Arquivo Fotográfico.
Setecentos e a cidade de Washington inventada por Jefferson
na nova república americana, nos finais do mesmo século,
nos dois extremos do mundo “ocidental” ou ocidentalizável,
através da política ideológica do Iluminismo.
Situa-se Portugal entre um e outro ponto do globo, extre-
mo da Europa ante o mar atlântico do outro lado do qual se
realizou a sua capital moderna, e em equilíbrio geográfico
com a capital da Rússia que moderna pretendia ser, em rela-
ção à Europa germano-francesa de então. A sua história nada
tem que ver com qualquer desses pontos, vinda do barroco
de D. João V, num discurso pré-histórico para os Estados
Unidos acabados de fazer, e alheio à mentalidade ainda
oriental do império russo. Um cataclismo, porém, equipa-
rou as situações, arrasando o que havia de medieval prolon-
gado no tecido da capital entretanto de D. José I, em alguma
graça dita manuelina e em afirmações de um maneirismo
ítalo-espanhol de Seiscentos. A margem norte do estuário do
Tejo ficou em ruínas, como os dois sítios desertos do Neva ou
do Potomac, esperando mão e espírito do homem.
E uma coisa e outra vieram aos três sítios num quadro
cronológico que importa relativizar historicamente. Por
importação na Rússia e na América, por vontade nacional
em Portugal.
Essa vontade chamou-se Pombal mas não só, que tanta
mão-de-obra empenhada na reconstrução era com certeza
interessada, e em situação de força incomparavelmente infe-
rior àquela que, na geração anterior, Mafra impusera.
Porque agora o interesse ou a vantagem era colectivo,
mesmo que desigualdades de bens ou de investimento se
verificassem no quadro de uma economia por isso mesmo
redefinida em novo processo de rentabilidade. Um observa-
dor estrangeiro não deixou de estranhar ouvir dizer aqui
que Lisboa ia ser mais bonita do que cessara de ser, num
optimismo que as ruínas não pareciam proporcionar. Era
isso que se desejava, para além das naturais reacções dos
habitantes mortificados por suas perdas e penas, na lem-
brança do que tinham havido no seu quotidiano de gera-
ções. Outra Lisboa ia ser, traçada sobre as mesas da Casa do
Risco a partir de um plano que antes nunca pudera haver. E
tal e qual Pedro o Grande quisera e Jefferson ia querer.
Pensar nestes dois condutores dos países respectivos não
deixará de levar a situar o condutor português entre eles, e
numa relação que tem também que ver com a geografia,
tendo tudo a ver com a história que aos três diversamente
cabe. O desejo de Pombal fazer a sua capital é sem dúvida
semelhante aos desejos dos dois outros responsáveis, mas,
sem dúvida também, acrescidamente. O pensamento do
Russo e do Americano é claro: um novo sítio para um novo
país que pretendia definir-se no mundo, ou um novo sítio
para um país que só podia assumir posição no mesmo
mundo para além ou para fora dos seus costumes. Era, num
caso como no outro, questão de passado por demais existente
ou que, simplesmente, ainda não havia. Também aqui poderá
ser entendida a postura de Pombal, em função do seu nacio-
nal passado barroco, e ainda medieval, numa sociedade que
de uma situação para outra situação passara, mal passando
em termos de economia e mal esboçando evolução, os ter-
mos de uma cultura necessária aos novos desafios intelec-
tuais (e industriais) da história.
Sentia Pombal esse abalo do mundo, pelas qualidades
que D. Luís da Cunha nele tinha estimado, recomendando-o
por cima das cabeças de uma corte que ele conhecia da
[14] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
melhor maneira possível, que era à distância de “estrangei-
rado”. E sem que fosse o seu recomendado, qualidade que
logo (bem o percebia D. Luís) viraria defeito, in loco.
Pedro o Grande viajara pela Europa (e Luís XIV não quisera
recebê-lo), vendo coisas que lhe importavam, Jefferson foi
embaixador em Paris, até à Revolução, quase cem anos
depois das viagens desse czar Gulliver, Pombal fora embai-
xador em Londres e em Viena donde trouxera esposa e, os
três, pode dizer-se que entenderam do que os respectivos paí-
ses precisavam, ante o que tinham visto, em tempos diferen-
tes mas sucessivos da Europa política que se ia gerando em
Lumières que à morte de Pedro, em 1725, já tinham adquirido
definição dinâmica.
Os paralelos, na história, são necessariamente discutí-
veis, mas as simetrias que acarretam ganham nisso validade
para a compreensão das grandes linhas com que ela, a his-
tória, necessariamente também se cose, em períodos longos,
médios e curtos, de massa e de indivíduos que, em curtas
distâncias, assumem poder e responsabilidade de represen-
tação. Vejamos, pois, Pombal entre Pedro o Grande e
Jefferson, em sua cronologia e em sua acção possível senão
obrigatória. E algo, também, em termos de uma psicologia
de comando que à brutalidade do autocrata russo e à finura
do democrata americano entrepunha um estado de força
tenaz e de «génio paciente e especulativo» que, no dizer de
D. Luís da Cunha, «se acordava com o da Nação». Queria isso dizer
que Pombal sabia esperar e encontrar o momento certo de
acção ponderada mesmo que, por “difuso”, se perdesse às
vezes nas suas estratégias. Toda a análise da política pomba-
lina verifica estes dizeres, para o bem e para o mal que, em
prepotências, crueldades e concussões, caracteriza o (ou
todo o) comportamento ditatorial. Para o bem, porém, e sem
que contas correntes sejam moralmente possíveis, as quali-
dades de Pombal deram resultados notáveis. Reformas de
estudos (mesmo que o colégio dos Nobres falhasse os seus
propósitos porque nem os rebentos das velhas famílias nem
os das novas queriam, na realidade, estudar), estruturações
económicas (com o prejuízo fisiocrático que não soube com-
pensar, mas com um fomento industrial novo e patente),
legislações diversas que aqui não cabe analisar, ensinos de
artes (com deficiências da música que fora joanina), organi-
zação militar (com indispensável mão de obra estrangeira),
progressão social por reinvenção de uma burguesia que
daria sentido ao futuro capitalismo de Oitocentos (mesmo
com decadência da nobreza, e não só por perseguição de
uma dúzia de maiores casas), diminuição do poder da Igreja
com especial (e internacional) rotura da linha jesuíta –
foram outros tantos sectores da propulsão pombalina que os
historiadores respectivos continuam a discutir. Acima deles
todos, está, porém, a reconstrução da capital. E mais uma
vez (ou sobretudo para o que pode interessar-nos aqui) a
comparação com o czar Pedro e o presidente Jefferson é jus-
tificável.
E mais ainda se compararmos agora o discurso estético
das três cidades criadas na Rússia e na América e recriada
em Portugal, classificada como levando ou tendendo a levar
à formulação de um urbanismo des lumières nos três casos
expressos. A partida de zero nas margens do Neva ou do
Potomac era naturalmente contrariada por uma situação
diferente, de pré-existência urbana, e o zero necessário foi
imposto ou produzido pelo arrasamento do que ficara à
vista, memória de uma cidade que atravessara os séculos,
[15] Lisboa Pombalina
fora moura e cristã, tivera a sua evolução mais detectável a
partir dos finais do século XIV, com as novas muralhas fer-
nandinas, e do início do século XVI, com a passagem da
corte da alcáçova medieval para a beira do Tejo de todos os
comércios, com o natural progresso habitacional para a foz
do rio e a invenção de um bairro novo, no extremo limite
das alturas da muralha havia muito extravasada, o Bairro
Alto de São Roque. Foi a parte central dessa cidade que o ter-
ramoto de 1755 destruiu, deixando de pé muito da outra
parte, por razões sísmicas e por haver menor propagação do
incêndio que devastou a baixa superpovoada. O que ficou,
ficou, com remendos necessários, na Alfama e no Bairro
Alto, ou para Belém, o resto refez-se conforme uma decisão
que política houve de ser, sobre ideias apresentadas pelos
técnicos da engenharia e da arquitectura que se empenha-
vam numa tarefa inteiramente nova, em termos materiais
e morais.
A engenharia envolvida era, como na altura não podia
deixar de ser, militar, e a arquitectura era uma “prática”
acrescentada aos oficiais da especialidade, desde o enge-
nheiro-mor do reino com patente de mestre de campo-gene-
ral, Manuel da Maia, ao capitão Eugénio dos Santos e ao
tenente-coronel Carlos Mardel, com intervenção logo seguinte,
além das três equipas inicialmente constituídas que deviam
apresentar primeiros projectos de reconstrução, seis ao
todo, depois de ter sido decidido, por Pombal, reconstruir
a cidade no seu sítio histórico, inteiramente redefinido, e
não a refazendo, igual ou melhorada, ou a refundando para
ocidente, no caminho de Belém, em zona mais resistente a
terramotos, hipóteses consideradas por Manuel da Maia em
suas propostas entregues logo desde o dia 3 de Dezembro,
a um mês da catástrofe. A decisão de Pombal, atribuída por
princípio ao rei D. José, através da cadeia hierárquica esta-
belecida, para a reconstrução da cidade, consoante um novo
plano, foi tomada após 16 de Fevereiro, e, dois meses depois,
os seis planos estavam prontos – e em 12 de Junho um deles
escolhido, assinado por Eugénio dos Santos que, falecido em
Agosto de 1760, deixou a direcção dos trabalhos a Carlos
Mardel, que trabalharia ainda três anos enquanto o velho
Manuel de Maia viveria mais cinco, até falecer, nonagenário,
em 1768. A coerência da equipa manteve-se assim, no quadro
da Casa do Risco inicialmente criada, e foi isso que permitiu
levar avante o programa estabelecido.
Este dizia respeito fundamentalmente à planta da cidade
que ia ser erigida e à tipologia dos edifícios que lhe dariam
a imagem pretendida, de rua para rua, conforme a impor-
tância delas, e esta segundo a respectiva largura na malha
definida entre as duas praças que, do Tejo para o interior,
assumiam o papel tradicionalmente desempenhado pelo
Terreiro do Paço Real desde o início do século XVI e pelo
Rossio medieval, produto de meados de Quatrocentos, com
os Estaus a fecharem um espaço de utilização popular e
comercial, defronte também do convento dominicano de
meados de Duzentos e do vizinho Hospital de Todos-os-
-Santos, de duzentos e cinquenta anos depois. Mantiveram-se
necessariamente as duas praças, com as funções respectivas
que convinham à vida social da urbe e só entre elas, na baixa
que, desde o século XIII vinha sendo arruada e recebera
a protecção da muralha fernandina ao fim do terceiro
quartel de Trezentos, se processou a radical transformação.
Consistiu, esta, nas seis plantas postas à apreciação de
Pombal, numa malha racionalizada de ruas, corrigindo a
[16] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
malha preexistente em três projectos ou anulando-a nos
outros dois traçados a favor de um jogo quadrangular que
fazia cortar as ruas verticais, desde o rio, e horizontais, em
ângulos rectos. Este o princípio desejado nos trabalhos da
Casa do Risco, e entre as três plantas numeradas de 4 a 6,
elegeu-se finalmente aquela que demonstrava maior imagi-
nação – gráfica decerto – mas plástica também, na medida
em que anunciava, mais do que uma relação de superfícies
imediatamente visível, uma relação de volumes que impor-
tava imaginar. Não se enganou Eugénio dos Santos, autor do
referido plano, n.º 5 da série (o que denota um progresso na
resolução dos problemas que o princípio assumido levantava),
como não se enganou Manuel da Maia ao recolher os seis
desenhos, entendendo qual era o melhor e porquê. E certa-
mente foi ele quem defendeu a classificação junto de
Pombal, com a opinião necessariamente concordante do
duque de Lafões, intermediário jurídico, e do marquês de
Alegrete, idoso presidente do Senado Municipal. Não trans-
parece isso na sua “dissertação”, como opinião patente, mas,
se bem a lermos, podemos entender-lhe a opinião crítica, no
aditamento que lhe faz para apresentar os projectos n.º 5 e 6,
certamente chegados mais tarde (porque o “aditamento”
ao documento em questão tem data de dezanove dias depois)
e como se deles tivesse estado à espera. E é um destes
projectos, o numerado de 5, que foi escolhido – ou que
Manuel da Maia recomendou. E em função dele Lisboa
se reconstruiu.
Outros projectos o engenheiro-mor do reino ainda apre-
sentou a Pombal, relativos, não à planta do sítio com seus
arruamentos novos, mas aos edifícios a elevar; e são facha-
das hierarquizadas conforme a importância das ruas, como
vimos. Fachadas monótonas, muitas vezes se disse, mesmo
que variadas em elementos de cantarias e vãos, dentro de
limites tipológicos já classificados e que se reconhecem à
vista, de rua em rua. A dignidade modesta desses desenhos,
devidos a Eugénio dos Santos, é, sem dúvida, um elemento
de valorização, contando com o seu necessário condiciona-
mento económico e técnico, pois importava construir barato
e depressa, até uma standartização que já foi também
minuciosamente analisada, entre as cantarias, o esqueleto
do madeirame (e a inovação da chamada “gaiola” que havia
de provar-se útil em abalos sísmicos, pela sua flexibilidade,
numa receita original que as circunstâncias facilitaram ao
engenho dos construtores), o trabalho de forja e de azulejo
de revestimento interior, a mão de obra e o próprio carrego
dos elementos de construção fabricados em pontos fixos
para servirem onde fossem, em devida altura, necessários.
Mas essa monotonia tipificada é compensada com a volu-
metria dos quarteirões que, esses, monótonos não são, antes
pelo contrário: a planta da nova Lisboa é astuciosamente
dinâmica, na proporção dos blocos que a compõem, uns
maiores outros menores, uns verticais outros horizontais
em relação ao terreno considerado, e gerando entre eles um
desenho que tem referências de “secção de ouro”, conforme
as boas regras da composição clássica, de modo a criar a
harmonia dinâmica do conjunto. Sem dúvida Eugénio dos
Santos o soube no seu desenhar e certamente Manuel da
Maia o compreendeu na sua (provável) recomendação – que
por ele esperara. E que Pombal entendeu, ou intuiu, ou foi
capaz de sentir, como se sentem as obras de qualidade…
Repare-se ainda que, se Manuel da Maia esperou também
pelo projecto n.º 6 (do capitão E.S. Poppe), que certamente
[17] Lisboa Pombalina
pedira, confiando, ao fim, no talento dos dois oficiais mais
graduados na sua equipa da Casa do Risco, não foi esse que
seleccionou ou fez ou procurou fazer seleccionar; na ver-
dade, ele teria que o considerar monótono, como é, na qua-
drangulação repetida dos quarteirões, sem que o trata-
mento mediano de uma pequena praça para a igreja de
S. Nicolau (tradicionalmente destacada no tecido antigo da
cidade) tivesse razão suficiente de dinamização do conjunto
proposto.
Resta considerar as duas praças desta cidade, seu princí-
pio e seu fim, nobre e simbólico o primeiro, local do poder
instituído em reformas de modernidade “iluminada”, e não
já do poder real, anterior e barroco, relegado para um paço
que não chegou a ter sítio nem definição arquitectónica; uti-
litário o segundo, em casas também de habitação, como
todas as ruas, já sem conventos, e com um tribunal de
Inquisição laicizada que completava a tomada global do
poder que Pombal modelava e impunha na sua política – até
pôr à sua frente um dos seus irmãos, colocando o filho her-
deiro à cabeça da própria Câmara da cidade. Pudesse ele
também tomar conta de um jovem rei, por cima da geração
materna da Princesa real em que não tinha confiança!… Não
foi assim, e pode pensar-se que nesse revês se determinou a
queda futura do “terrível marquês”. Durou, porém, o seu
consulado até vinte e dois anos depois do terramoto – que
ele próprio fora na vida do país. E durante eles, se não pode
reconstruir esse país, ao menos reconstruiu a sua capital.
Ao menos, ou ao mais?
Lisboa, palco de uma peça representada em cenas de
variado sucesso e aplauso, para os historiadores futuros da
sociedade que assim se modelou, até (dir-se-ia) a pateada
final e trágica velhice do ditador ficou, porém, para além
das sucessivas conjunturas políticas, como uma estrutura
simbólica de longa duração cuja problemática chegou até
hoje – para a vivência possível dos nossos contemporâneos
na utilização que puderem dar-lhe.
Bem entendeu Manuel da Maia que “fazer” esta cidade
não era o mesmo que acrescentar um novo bairro a Turim
(de que na altura se falava) e a referência frustrante que fez
à Londres incendiada em 1666, no plano seguinte de Wren,
não podia servir-lhe, diferente que foi, e abandonado. De São
Petersburgo não podia ele saber, nem ter notícias de cidades
do Norte, como Copenhaga, Oslo, que vieram a influenciar
Amesterdão, como exemplo mais considerável mas em pro-
porções de muito menor significado, como aconteceu em
Viena de Áustria, com renovação de alguns bairros, ou em
Catânia, destruída também por um terramoto e reconstruí-
da sessenta anos antes de Lisboa. Urbanizações em Berlim,
Bordéus ou Nancy, com o valor simbólico que tiveram, não
têm obviamente o significado da reconstrução pombalina,
como o não tem o Paris sintetizado em 1769 pelos planos
de P. Patte. E coincidência foi que Luís XV tivesse aprovado
o plano definitivo da sua praça (que seria da Concórdia)
a dias de distância da aprovação dos planos da reconstrução
de Lisboa – ao processo de luxo simbólico da capital de
França correspondendo, em outro sistema cultural e simbó-
lico, os trabalhos fundamentais da capital de Portugal,
em novo ciclo de existência urbana para a história sócio-polí-
tica do país.
Sebastião José de Carvalho foi, no momento próprio,
a pessoa própria, com capacidade para assumir uma tarefa
ingente, única de tal amplitude, na história e na vida nacio-
[18] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
nais. E foi a única pessoa para o fazer, na sua ambição de
poder e gula de bens, sem dúvida – mas outros as tinham à
volta dele sem que lhe tivessem as qualidades.
As que um homem como D. Luís da Cunha nele enten-
deu, provaram-se na sua criação das condições para a for-
mação de um Portugal moderno à escala nacional e, antes
de mais, e melhor que mais, na criação da primeira cidade
moderna do Ocidente.
Comemorou a Rússia, em 16 de Maio de 2003, o tercei-
ro centenário da fundação de S. Petersburgo, e já em 1953
a colónia russa emigrada de Paris comemorara os 250 anos
dessa data histórica desdenhada pela União Soviética.
Portugal poderá (deverá) comemorar em 12 de Junho de
2008 os 250 anos do diploma fundador da reconstrução de
Lisboa do Marquês de Pombal. E entretanto, com a justifi-
cação óbvia da sua história, uma análise objectiva do seu
estado actual e mediante um programa de ordem social e
cultural da conservação e uso da sua arquitectura – Lisboa
poderá candidatar-se, como as outras duas capitais da
Rússia e dos Estados Unidos, ao Património Mundial
da UNESCO.
[19] Lisboa Pombalina
Panorâmica da Baixa a partir do Castelo de São Jorge, s.d., Col. Espólio Eduardo Portugal. Autor: Eduardo Portugal.Arquivo Municipal de Lisboa – Arquivo Fotográfico.
A Baixa Pombalina:um marco na história
da planificação das cidades
SidónioPardal
[21] A Baixa Pombalina: um marco na história da planificação das cidades
A História adquire o seu sentido útil quando seinstrumentaliza como alicerce da nossa cultura edos nossos saberes, e como memória inspiradorados nossos comportamentos.A Baixa Pombalina constitui reconhecidamente umpatrimónio cultural nos domínios do Urbanismo e da
Panorâmica da Baixa, 1950/59.Autor: António Passaporte.
Arquivo Municipal de Lisboa – Arquivo Fotográfico.
Arquitectura e, ao interpelá-la, somos integrados num enre-
do que começou na época pombalina e que, bem vistas as
coisas, o país ainda não foi capaz de resolver e superar.
As limitações dramáticas do nosso Iluminismo, eivado de
contradições, tolhido pelo seu próprio obscurantismo e inca-
paz de se submeter à disciplina e aos valores da razão e da
justiça não impediram que, no caso da Baixa de Lisboa, se
realizasse uma obra de mérito absoluto.
O gesto voluntarista e esclarecido de planear a cidade
através do desenho da sua estrutura, estabelecendo uma
ordem arquitectónica e regulamentando o processo de ges-
tão para assegurar a efectiva concretização em obra, é um
acontecimento raríssimo até ao século XVIII.
No caso de Lisboa houve a força das circunstâncias, cria-
das pela catástrofe natural de 1755, sendo singular e notável
o perfil da resposta da autoria de Manuel da Maia, então
com 78 anos de idade e com todo o saber e experiência de
uma escola de engenharia, aplicada em obras como o
Aqueduto das Águas Livres em Lisboa (1729-1748) que resis-
tiu incólume ao tremor de terra.
A concepção do plano para a reconstrução da Baixa ini-
cia-se com a “dissertação” que Manuel da Maia apresenta ao
Duque de Lafões, cerca de um mês depois do terramoto.
Neste documento equacionam-se, de forma sucinta e exaus-
tiva, os “modelos“ alternativos para a reconstrução da cidade,
perante os quais o poder político vai escolher e decidir qual
a estratégia a adoptar.
A consciência urbanística, nas suas múltiplas vertentes,
emerge neste texto dominando as diversas especialidades
que são disciplinadamente integradas e subordinadas à
visão sistémica da cidade, no seu conjunto. O engenheiro-
-mor do reino começa por avaliar a dimensão do problema e
reconhece que não tem condições, nem teria sentido, confi-
gurar para toda a cidade, um plano de renovação. Mas, ins-
pirado pelas utopias da Renascença e pelas ideias do
Iluminismo aplicadas à intervenção urbana, avalia as neces-
sidades e capacidades e demarca a zona que vai submeter a
um plano de renovação, reconhecendo tacitamente que
outras partes da cidade irão ser construídas de forma prag-
mática, pelas iniciativas avulsas dos proprietários, segundo
os processos tradicionais, enquadrados por algumas regras.
A primeira parte da dissertação utiliza um discurso directo
que, sem tergiversações introdutórias, logo no 2.º pará-
grafo, começa a exposição dos cenários e modos de actuação
contrastados, enunciando as vantagens e inconvenientes de
cada um deles, facultando um esclarecido quadro de alter-
nativas que submete à escolha do poder político.
Em resumo, são os seguintes os cinco “modos” enuncia-
dos por Manuel da Maia:
1.º Modo Reconstruir a cidade como ela era, com ligeiras
melhorias, aproveitando os materiais das ruínas para a ree-
dificação. Aqui há uma quase total demissão do Planea-
mento Urbanístico.
2.º Modo Reconstrução dos edifícios com as “antigas alturas,
mudando as ruas estreitas em ruas largas”.
3.º Modo Redução da altura dos edifícios para “dous pavimen-
tos sobre o terreno e mudando as ruas estreitas em largas”.
4.º Modo Arrasar toda a cidade baixa, elevando as cotas de
terreno sobre os entulhos, melhorando assim as condições de
drenagem das águas pluviais e dos esgotos e “livrando Lisboa
baixa das inundações que padece em ocasiões de maré-cheia”. Dese-
nhar os novos arruamentos “com liberdade competente, tanto nas
[22] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
larguras como nas alturas dos edifícios que nunca poderá exceder a
largura das ruas”. Este cenário propõe uma renovação radical
da Baixa, com base num plano urbanístico detalhado.
5.º Modo Curiosamente combina o 1.º Modo para a cidade
arruinada, no seu todo, com a criação de uma cidade nova,
planeada, entre Alcântara e Pedrouços.
A equação geral é elucidativa e desafiadora. O urbanista
hesita entre o 5.º Modo, “que parece o mais facilitado, e … infali-
velmente adoptado e preferido a todos os outros” se Sua Majestade
quiser localizar o seu Palácio em Belém, e o 4.º Modo, que é
o único desenvolvido na dissertação com ideias conceptuais
para a estrutura de desenho urbano. Criar uma cidade nova,
de raiz, é o sonho de todos os urbanistas, mas é natural que
nas circunstâncias tenha prevalecido a vontade de o fazer e,
ao mesmo tempo, intervir e não “desprezar” o centro histó-
rico da cidade.
A recuperação da Praça do Terreiro do Paço como lugar
simbólico exerceu, naturalmente, um forte apelo e, ainda na
primeira parte da dissertação, e de uma forma claramente
assumida na segunda e terceira partes, a atenção é focada no
4.º Modo, para o qual se consolida um conjunto de ideias
programáticas que vão orientar os exercícios explorató-
rios de elaboração de planos formais para a recuperação
da Baixa, desenvolvidos por três equipas chefiadas pelos
mestres de engenharia e arquitectura Gualter da Fonseca,
Capitães Elias Sebastião Poppe e José Domingos Poppe,
Eugénio dos Santos e Carlos Mardel.
Depois de tomadas as opções estratégicas e explicitadas
as grandes ideias programáticas, Manuel da Maia passou à
fase de desenho, a qual obedece a um método prospectivo,
explorando cenários contrastados num processo de pesquisa
e de avaliação crítica, empenhada na procura de uma solu-
ção de mérito urbanístico. É surpreendente que, no contexto
dramático da cidade destruída e de tanto sofrimento, este
pequeno grupo tenha tido a lucidez e a pertinácia de ambi-
cionar intervir na cidade de uma forma inovadora para a
época, recusando os processos fáceis, imediatistas e mais
baratos, optando conscientemente por um caminho incerto,
que concentrava neles uma grande responsabilidade técnica
e administrativa. O facto de terem enveredado por um pro-
cesso de pesquisa em várias direcções permitiu chegar
ao plano de Eugénio dos Santos, posteriormente ajustado
para a Baixa Pombalina, por Carlos Mardel; plano este
que determinou o conjunto que hoje nos sensibiliza e que
queremos, merecidamente, distinguir como Património
Mundial.
O plano inspira-se nos princípios da cidade Barroca, ao
estruturar-se na ligação de pontos significantes – no caso
vertente a Praça do Comércio e o Rossio, e a amarração às
colinas de S. Francisco e do Castelo – mas vai muito além,
ao fazer preceder a arquitectura de uma composição urba-
nística e ao estabelecer uma ordem arquitectónica.
Antes deste plano a História pode referenciar outros que
o antecedem e que se lhe assemelham. Dentre esses, Manuel
da Maia aponta dois exemplos que lhe eram familiares e que
lamenta não conhecer mais detalhadamente. Um deles é o
plano de reconstrução do centro de Londres da autoria dos
urbanistas Christopher Wren e John Evelyn, após o incêndio
de 1666. Este plano foi regulamentado pelo Act de 1667
que especificava tipos de pavimentos, altura dos edifícios,
número de pisos, espessura de paredes, arcos, profundidade
das caves e outros detalhes de desenho e construção.
[23] A Baixa Pombalina: um marco na história da planificação das cidades
Outro é o plano de expansão de Turim, iniciado em 1621, sob
a coordenação do engenheiro Carlo Di Castellamonte cuja
execução se prolonga por cerca de um século. Neste caso o
plano desenvolve-se sobre um terreno rústico, sem constran-
gimentos, o que facilitou o estabelecimento, à partida, de
uma malha rectangular, de grande rigor formal.
Podemos, no entanto, reconhecer que o pensamento
urbanístico era ainda incipiente no século XVIII. Curiosa-
mente encontrava-se no auge a Escola Paisagista Inglesa com
um avançado corpo de doutrina e de prática, com obra feita,
sobre a arquitectura da paisagem rústica e sobre os grandes
parques integrados na paisagem silvo-pastoril. O livro de
Stephen Switzer, Iconographia Rustica, publicado em 1718,
constitui um clássico sobre a compreensão integrada do ter-
ritório e da paisagem que não esteve presente no Ilumi-
nismo Pombalino e bem poderia ter influenciado as trans-
formações da paisagem que ocorreram em Portugal a partir
do século XVIII, nomeadamente nas diversas campanhas
de fomento da agricultura. Ainda hoje Portugal se ressente
das deficiências culturais sobre a arquitectura da paisagem.
A atenção ao território através de um olhar naturalista
teve também lugar em França, no século XVIII, pela pena
de Marivaux, que compreendeu a estética singular do jar-
dim irregular, colhendo influências da simplicidade do
jardim chinês. As obras de Watteau e Rousseau são tam-
bém exemplo de um Iluminismo à procura de uma estética
naturalista.
É interessante este primeiro despertar das preocupações
sobre o planeamento dos espaços rústicos que, na Europa,
precede a prática do urbanismo moderno. Não há sinais de
terem chegado a Portugal ecos dos grandes debates que ani-
maram a Europa, principalmente a Inglaterra, sobre o
Landscape Gardening. Nesta altura havia pelo menos quatro
lógicas de aproximação ao território: a da arquitectura
popular e pragmática, a da arquitectura canónica, a da
nova arquitectura da paisagem – iniciada por Le Nôtre em
Vaux-le-Vicomte (século XVII) e desenvolvida pela Escola
Paisagista Inglesa, nos trabalhos de William Kent e Brown
(século XVIII) – e a do planeamento urbanístico emergente
dedicado aos problemas dos aglomerados urbanos.
A arquitectura rural, na sua tradição, e a Escola Paisagista
Inglesa, nos seus princípios conceptuais, valorizaram as for-
mas irregulares e a linha curva, reservando o uso das linhas
rectas para situações muito excepcionais. “The line of beauty –
the S curve” e “curved line is somehow more natural – and therefore
better – than a straight one”: eram argumentos comuns no dis-
curso apologético do Landscape Gardening do século XVIII.
É particularmente esclarecedor observar as transforma-
ções de Blemhein, levadas a cabo por Capability Brown: o
plano inicial, da autoria de Henry Wise e Sir John Vanbrugh,
estruturado sobre uma base geometrizada, é desconstruído
de modo a dar prevalência a formas onduladas e curvas,
recriando uma paisagem de expressão naturalista. Vem isto a
propósito para questionar a visão estereotipada da moderni-
dade e do racionalismo iluminista associada à configuração
geométrica e ortogonal do desenho urbano. Pode-se, com
toda a propriedade, sustentar que esta simplicidade geomé-
trica tem mais a ver com padrões do Barroco e da cidade
militar do que com a estética iluminista do século XVIII.
A associação da ortogonalidade ao Iluminismo e ao
Racionalismo compreende-se, mas não deixa de merecer
reparo na medida em que, em rigor, a Escola Paisagista
[24] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
Inglesa desde os meados do século XVIII responde ao con-
junto de preocupações que constituem, hoje, conteúdos do
planeamento do território no seu todo, considerando os
usos urbanos, agrícolas, florestais e silvo-pastoris. Bem vistas
as coisas, a valorização da linha curva e das formas irregu-
lares, já não das composições urbanas medievais, mas de
um naturalismo romântico emergente, coexistia, a um
nível avançado, com as formas do urbanismo racionalista.
Os padrões de desenho urbano para a cidade moderna ope-
ram sobre uma base de composição geométrica que conduz
à lógica do “quarteirão” integrado numa malha reticular ou
quase reticular. O plano da Baixa Pombalina descobre e
apresenta a sua estrutura reticular com a força de uma evi-
dência, demonstrando que as exigências funcionais condu-
zem à adopção de formas regulares. Se para o meio urbano
se oferecem como mais propícios os espaços ordenados em
formas ortogonais, na paisagem rústica devem dominar os
espaços de configurações fractais, difusas e discretas, com
uma irregularidade informal que lhes confere uma expres-
são de amenidade naturalista.
O desencontro entre as diversas linguagens e culturas
arquitectónicas está patente num outro acontecimento
curioso que é o Tratado da Ruação de José Figueiredo Seixas
(1762). Este pintor e arquitecto competente, que trabalhou
com Nicolau Nasoni e foi Mestre da Aula de Riscar da Cidade
do Porto, ao reflectir sobre as questões urbanísticas dentro
de um culto da linha recta, faz um discurso ingénuo e des-
cabido, ao defender que todas as povoações do país deviam
estar ligadas por linha recta. “As estradas que conduzem a ser-
vidam de humas Povoações a outras devem sahir de hua Povoação
em linha recta com as ruas centraes e principais da Povoação e con-
tinuar a mesma rectidam athe outras Povoações, e entrar nellas
fazendo a mesma linha recta com as suas ruas centraes”. Revela-se
aqui que a lógica gramatical da arquitectura dos edifícios é
diferente daquela que informa o espaço urbano e ambas,
por sua vez, são distintas do processo subjacente à formação
e configuração da paisagem rústica.
Pode constatar-se que, na Europa, o século XVIII dedicou
uma maior atenção teórica e prática à concepção dos grandes
parques fora da cidade, arquitectando a paisagem rústica
em espaços de vilegiatura e de produção agro-silvo-pastoril
do que ao planeamento urbanístico, o qual só vem a ter um
desenvolvimento sistemático no contexto dos movimentos
higienistas.
Em Portugal, a política urbanística de Sebastião José,
Marquês de Pombal, fez de nós precursores de um movi-
mento que vai ocorrer, principalmente no século XIX,
com os grandes planos urbanísticos de L’Enfant para
Washington em 1791, a renovação de Paris, sob a coordena-
ção administrativa de Haussmann nos meados do século XIX
e a expansão de Barcelona de Ilfefonso Cerdà em 1859.
Na sequência do plano da Baixa, a cidade é, em 1771,
continuada para norte com a construção do Passeio
Público, com base num projecto do Arq. Reinaldo Manuel.
Trata-se de uma iniciativa de vanguarda. A ideia de criar
“passeios públicos” de raíz, como elementos da composição
do sistema urbano surge, nos finais do século XVII em
Montpellier, com a Promenade de Peyrou.
Voltando ao Plano da Baixa, a segunda parte da disserta-
ção de Manuel da Maia, centra-se no processo de imple-
mentação do 4.º Modo que preconiza uma total renovação
desta zona da cidade, implicando, de forma assumida, a total
[25] A Baixa Pombalina: um marco na história da planificação das cidades
demolição dos edifícios que resistiram ao terramoto e uma
intervenção directa da Administração Pública na gestão do
reparcelamento perequacionado da propriedade imobiliária.
Desta forma liberta-se o desenho urbano do condiciona-
mento cadastral… “todos os edifícios de tal parte da cidade, depois
de avaliados no estado em que se achassem para que depois de derri-
bados e extintos, formadas novas ruas e novos logares para os edifícios
novos, e repartida por eles a importância ou valor das casas destruí-
das, e conhecido o que correspondia a cada palmo, vara ou braça
quadrada, cada acredor de edifício recebesse em terreno a avalização
que se lhe havia feito, e qaundo lhe não agradasse se vendesse a quem
desse a sua importância para a receber o acredor”. A título de
curiosidade observe-se que o recente Decreto-Lei 380/99 de 22
de Setembro institui o conceito de perequação na gestão
urbanística, de uma forma ingénua e quase inoperante como
se tal fosse uma grande novidade.
O planeamento urbanístico outorga-se de um poder impe-
rativo que obriga os proprietários dos lotes a construírem os
edifícios, de acordo com as regras e arquitecturas determina-
das pelo próprio plano. Como podemos ler na 2.ª parte da dis-
sertação de Manuel da Maia: “a todos se determinará tempo certo
para darem princípio ao edifício e para o terem também completo a
tempo determinado, segundo os desenhos que lhe forem comunicados
pelo Arquitecto do Senado, o Capitão Engénio dos Santos e Carvalho”.
O plano cuidou também de reduzir o risco de propagação
de incêndios através de um regulamento que obrigou ao
alteamento das paredes das empenas dos edifícios relativa-
mente às paredes das frontarias de modo a impedir as comu-
nicações entre os telhados.
Para além da preocupação de respeito pelos direitos
da propriedade privada e pela viabilidade financeira dos
empreendimentos, o plano atende à construção de edifícios
públicos e à localização de serviços para revitalizar a vida
social e económica deste centro da cidade.
A 3ª parte da dissertação estabelece um detalhado pro-
grama que considera o sistema de recolha de lixos, a rede
de escoamento de esgotos e a condução de água potável
para as fontes, “para alimento dos povos, para a extinção dos
incêndios e para adorno das praças”. O alargamento das ruas e
a menor altura dos edifícios, para além das razões de segu-
rança anti-sísmica, eram também justificados por razões
sanitárias.
Para além da singularidade e ineditismo que esta operação
urbanística contém na sua dimensão e morfologia, encerra
em si a faculdade – não imediatamente evidente a quem
observa apenas o registo em planta do seu traçado – de acei-
tar gramáticas arquitectónicas diversas e exteriores àquele
conjunto de regras e cânones explicitado nas soluções de pro-
jecto dos edifícios-tipo e das suas variantes sistematizadas
que configuram a ordem arquitectónica original.
Essas variações não ocorrem durante as décadas iniciais
de implementação do Plano. O notável rigor formal é apoiado
por uma detalhada regulamentação que define pés-direitos,
o sistema construtivo geral e, em particular, o desenho dos
diferentes vãos e suas guarnições, a interligação das estrutu-
ras de madeira com as alvenarias, as cornijas, pilastras, rema-
tes, corta-fogos, etc.
A organização do edifício-modelo incorpora (sistemati-
zando-a) a tradicional localização de actividades comerciais e
pequenas indústrias (sapateiros, correeiros, ourives, prateiros,
douradores,…) no piso térreo (de mediação público/privado)
e de alojamento privado nos pisos superiores.
[26] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
O desenvolvimento dos padrões e do arquétipo arquitec-
tónico da “Baixa” é feito de modo a formalizar e consubstan-
ciar a apropriação (agora institucionalizada) deste trecho
renovado da Cidade pela classe que servirá de caução às
políticas em desenvolvimento por Sebastião José – a burgue-
sia comercial e os pequenos e médios funcionários da
Administração do Reino. Assim, não deixando de existir pon-
tos focais e de excepção como o renovado Rossio e a grande
praça ribeirinha – que, regularizada e simétrica, passa a alo-
jar os serviços centrais da Administração, deixando de alber-
gar o Paço Real –, o conjunto dos traçados está submetido a
um padrão normalizador, no sentido de flexibilizar uma
expressão que, contudo, nas primeiras décadas de constru-
ção é apontada pela crítica comum como “monótona e repe-
titiva”. As evoluções serão sobretudo resultado de um lento
conjunto de intervenções e modificações (mais ou menos líci-
tas e esteticamente válidas) que – alterando edifícios inteiros,
ou os vãos e pisos térreos, as cantarias de guarnição, rasgando
montras, acrescentando pisos e mansardas – gradualmente
matizaram a severa “ordem pombalina”, demonstrando
um imprevisto predicado do Plano: conseguir integrar edifí-
cios com arquitecturas e programa de excepção, sem que o
revolucionário espírito de regra e disciplina urbanística
deixe, estruturalmente, de caracterizar os padrões da ordem
arquitectónica que perdura ainda hoje na Baixa.
O poder de sobrevivência do plano da Baixa Pombalina
com a sua ordem arquitectónica revela-se na versatilidade fun-
cional dos espaços, que ao longo dos tempos se adaptam à
habitação, a sedes de instituições bancárias, a comércio varia-
do, a diversos serviços públicos, albergando uma ampla varie-
dade de actividades que dão vida ao centro da cidade. A ani-
mação urbana da Baixa tem resistido, apesar das agressões
como a do congelamento das rendas e outros factores induto-
res de falta de conservação e abandono que afectam uma
parte significativa dos edifícios. Contudo convém lembrar
que a robustez da Baixa Pombalina tem limites que em boa
parte estão a ser ultrapassados pela incúria da gestão urbanís-
tica, colocando em risco a estabilidade deste conjunto. A sua
classificação como património mundial será uma ajuda, se
for consequente na criação e operacionalização de medidas
que assegurem o restauro e a conservação, pondo fim às
causas da actual decadência que se pode observar à vista
desarmada. É necessário rever a lei das rendas e dos trespas-
ses, avançar com obras de conservação, restauro e renovação
de edifícios, fomentar dinâmicas de reabilitação urbana e dis-
ponibilizar espaços devolutos para formas de ocupação úteis.
A intervenção urbanística na Baixa deve ser de salvaguarda
e valorização com uma componente dinâmica e não radical-
mente conservacionista. Se há edifícios que pedem simples
restauro outros haverá que, no seu interior, exigem renova-
ção com regras, mas também com graus de liberdade que
permitam criar condições elementares de funcionalidade
e de conforto. Justificam-se alterações para minorar a inte-
rioridade de compartimentos que não têm luz natural nem
o conveniente arejamento. A reorganização dos espaços inte-
riores dos edifícios da Baixa, a sua sustentação estrutural e as
técnicas a adoptar para reforço dessas mesmas estruturas
têm merecido a atenção e o estudo de diversos especialistas
de Engenharia Civil e da Arquitectura. Falta uma clarividên-
cia e vontade políticas para operacionalizar os trabalhos
através de directivas de planeamento, projectos e o empreen-
dimento consequente.
[27] A Baixa Pombalina: um marco na história da planificação das cidades
A Baixa de Lisboano Contexto do
Urbanismo Português
WalterRossa
[29] A Baixa de Lisboa no Contexto do Urbanismo Português
Solicitam-me um contributo acerca de conhecimentodisponível sobre a Baixa de Lisboa, que possafundamentar a sua candidatura e posteriorclassificação como Património da Humanidade. Jáhoje aqui ficou claro que a ideia de promover estaclassificação deverá ser um pretexto – não um
Praça D. Pedro IV (anos 1940).Autor: Paulo Guedes.
Arquivo Municipal de Lisboa – Arquivo Fotográfico.
objectivo em si – para que se possa catalizar a definição,
desenvolvimento e implementação de uma estratégia de
intervenção com vista à salvaguarda e valorização desta
área central do espaço físico, das vivências e do imaginário
da cidade de Lisboa. Afinal de contas para quê procurar um
reconhecimento estranho enquanto a situação existente é a
da expressão de uma profunda ausência de auto-estima?
Para tal poderá valer a pena levar em linha de conta alguns
dos desenvolvimentos mais recentes da investigação no
domínio disciplinar da História do Urbanismo.
Aquilo que habitual e operativamente se usa e se diz
sobre a conformação urbanística da área central de Lisboa
após o Terramoto de 1755, provém da obra ímpar de José
Augusto França Lisboa Pombalina e o Iluminismo (1962), que,
por ser pioneira, não poderia ter integrado conhecimento
apurado no âmbito do desenvolvimento da disciplina que
entre nós anunciou, com especial destaque para a evolução
registada desde a década de 1990. A verdade é que essas
novidades nem sequer foram ainda integradas pelo meio
cultural português. É minha convicção que, quando o
forem, a percepção do fenómeno e até algum do jargão
habitualmente utilizado sofrerão alterações de relevo, as
quais reforçarão, de sobremaneira, a relevância e o signifi-
cado culturais nacionais e universais do objecto.
Nesse contexto, face aos painéis compostos para estas
Jornadas e, em especial, este onde me encontro, considerei
adequado centrar a minha intervenção sobre o significado,
contexto e antecedentes do plano adoptado em 1756,
cuja planta de síntese aparece elaborada e subscrita por
Eugénio dos Santos e Carlos Mardel, mas que foi apurado
segundo um processo magistralmente dirigido e anotado
por Manuel da Maia em convergência e cumplicidade cres-
centes com Sebastião José de Carvalho e Melo. Da imple-
mentação, adaptação e desvios desse plano, bem como das
correspondentes componentes tecnológicas, por certo
darão conta os meus colegas. Já agora importa também aqui
fazer notar que esse plano é composto por outros 5 dese-
nhos e pela Dissertação de Manuel da Maia, quiçá o elemento
mais importante, mas do qual não me é possível fazer, neste
contexto, uma abordagem detalhada. Prometo-o para breve
em artigo a publicar.
Para além de proposta, um plano é também uma síntese
do conhecimento nos domínios disciplinares no âmbito dos
quais se desenvolve. É uma simulação do ideal sobre o real,
desenvolvida por um grupo restrito que, no fundo, tem
consciência que o maior ou menor grau e sucesso da sua
implementação dependerá da vontade e desempenho de
outros e da comunidade em geral. Acaba sempre por impli-
car uma ideia ou mesmo um projecto de sociedade, em
especial quando se trata de uma capital. Um plano é, assim,
uma formulação sempre utópica de conhecimento aplicado.
No caso vertente, é sobre esse conhecimento que agora
aqui quero fazer valer algo, começando por estabelecer
duas linhas de reflexão que, pela sua convergência no
plano de 1756 para a Baixa de Lisboa, me parecem cruciais
para o seu entendimento e contextualização.
1. O conivente entendimento entre o Engenheiro Mor do
Reino (Manuel da Maia) e o futuro Marquês de Pombal
(Sebastião José de Carvalho e Melo) que atrás referi, não
resultou de um providencial encontro e acerto por obrigação
de cargos e ofícios entre essas duas personalidades densas
Nota: Este texto foi composto a partir da
transcrição da intervenção então feita de
improviso, tendo sido evitadas repetições,
corrigidas falhas de concordância e clari-
ficadas algumas ideias. Por tal razão
entendeu-se não ser adequado dotá-lo de
notas que lhe pudessem conferir, de
forma convencional, a necessária funda-
mentação e aparato erudito. Para tal fim,
tendo aquela intervenção como pano de
fundo textos do autor já publicados ou
em vias de publicação, remetem-se os
interessados para alguns deles: Além da
Baixa – indícios de planeamento urbano
na Lisboa Setecentista, IPPAR, Lisboa,
(1990) 1998; “Episódios da evolução
urbana de Lisboa entre a Restauração e as
Invasões Francesas” in Rassegna, Editrice
CIPIA srl, Bologna, Setembro/1994, nº59,
vol./ano XVI, pp. 28-43; “A imagem ribeiri-
nha de Lisboa – alegoria de uma estética
urbana barroca e instrumento de propa-
ganda para o Império” in A urbe e o
traço – uma década de estudos sobre o
urbanismo português, Almedina,
Coimbra, (2000) 2002, pp. 87-121; “Lisboa
Quinhentista, o terreiro e o paço: prenún-
cios de uma afirmação da capitalidade”
in D. João III e o Império – Congresso
Internacional Comemorativo do Nascimento
de D. João III, CHAM (Universidade Nova
de Lisboa) e CEPCEP (Universidade
Católica Portuguesa), Lisboa, (2002)
(no prelo). Está também em fase finaliza-
ção um artigo de sistematização, o qual
será publicado em 2004 no número
monográfico sobre a Baixa Pombalina
da revista Monumentos editada
pela Direcção Geral dos Edifícios e
Monumentos Nacionais.
[30] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
e pragmáticas do Iluminismo português. Deve antes ser con-
siderado como corolário lógico, para a capital do Império,
de um longo processo histórico-cultural onde urbanística e
projecto politico evoluíram da interdependência à fusão.
Com efeito, jamais se logrará compreender a consolidação
do processo de expansão ultramarina – a sua consolidação
colonial – sem o apuramento e a consubstanciação de um
complexo conjunto de procedimentos – uma praxis – basea-
dos numa estratégia territorial de reconhecimento, ocupa-
ção, ordenamento, exploração e defesa. Daí o desenvolvi-
mento de um corpus de conhecimento e de um escol de espe-
cialistas que, de forma breve e necessariamente redutora,
poderemos caracterizar como tendo algumas característi-
cas peculiares dentro do âmbito mais lato da Engenharia
Militar europeia.
Essa especificidade, bem como a assunção da existência
desse grupo no seio da complexa orgânica do Estado
Português, foi inequivocamente assumida durante o processo
da Restauração da Independência, quer através da insti-
tucionalização do ensino (1647), quer pelo surgimento e, em
alguns casos, publicação de manuais específicos que, até na
titulação e terminologia, visaram consagrar a autonomia
dessa escola. Também a partir de então se definiram e desen-
volveram estruturas de carreira, hierarquia e cargos, sendo
já muito evidentes nas décadas de 1720 e 1730 tendências
corporativas totalitárias, nomeadamente em alguns textos e
acções de Manoel de Azevedo Fortes, antecessor de Manuel
da Maia no cargo de Engenheiro Mor do Reino.
Decorriam então as primeiras grandes campanhas diri-
gidas ao reconhecimento e definição territorial do Brasil, as
quais permitiram o estabelecimento das fronteiras com a
América Espanhola celebrado através de uma sucessão de
tratados firmados até ao final de Setecentos. Seria também
nesse dobrar de século que surgiriam, entre outros, pela
pena de José Manuel de Carvalho e Negreiros (filho de
Eugénio dos Santos) escritos – um dos quais a utopia intitu-
lada Jornada pelo Tejo (1793-1797) – que, qual canto de cisne,
visavam institucionalizar a primazia da Engenharia Militar
na definição e desenvolvimento do rumo do reino, não
apenas no que dizia respeito ao ordenamento do território,
ao urbanismo e à arquitectura.
Quem conheça ou queira consultar um dos diversos
manuais sobre a evolução do conhecimento e das acções no
âmbito da Engenharia Militar das principais potências
europeias de então, poderá facilmente verificar como essa
evolução do quadro português decorreu com paralelismo
cronológico e em interacção de conhecimentos com as suas
similares. Para tudo isso foi decisiva a vinda até nós, pelo
menos desde a Guerra da Restauração, de técnicos estran-
geiros, igual sucedendo no domínio das Artes e da
Arquitectura, em especial durante o longo reinado de
D. João V. A verdade é que a Europa já então era um universo
cultural aberto, onde a informação circulava com uma
generosidade e velocidade que nem sempre sabemos levar
em linha de conta.
Esse século e meio de ouro para a Engenharia Militar
Portuguesa (c. 1647-1797), pese embora o seu esmagador
desempenho na transformação e construção do espaço à
escala do Império, não foi, contudo, hegemónico. Disso é
prova determinante o papel desempenhado por arquitectos
estrangeiros, nomeadamente nas obras cortesãs de D. João V,
claramente destinadas a conformar um projecto politico
[31] A Baixa de Lisboa no Contexto do Urbanismo Português
de afirmação da monarquia portuguesa dos Braganças no
quadro das potências católicas da época. E, como é natural,
é aqui que Lisboa nos surge como o principal objecto das
intenções de transformação.
2. Coloca-se-nos assim a problemática da afirmação e con-
substanciação, do ponto de vista urbanístico, plástico e
monumental, de uma leitura de Lisboa como capital, que é
um problema subjacente a toda a problemática e discussão
do urbanismo de Lisboa, pelo menos desde o início da Idade
Moderna. Antecedido por autores mais conformados ou
entusiastas e, provavelmente, com menor formação especí-
fica, já Francisco de Holanda em Da fabrica que falece… (1571)
questionara a Coroa se Lisboa, cidade então verdadeira-
mente cosmopolita e de grande relevância para a economia
e a geopolítica mundial, possuía uma imagem e projecção
urbanística a tal correspondentes. Era, contudo, uma preo-
cupação tão precoce quanto depois acabou retardada pelas
vicissitudes da União Ibérica e subsequente Guerra da
Restauração.
A imagem-arquétipo de capital – obviamente catalisada
pela renovação e reestruturação renascentista da Roma clás-
sica e imperial sob a forma de capital da cristandade, no que
o plano de Sisto V de 1588 foi a pedra de toque – consiste
fundamentalmente na construção de uma paisagem urbana
sob os signos da monumentalidade e da ordem, dinami-
zada pela centralidade (ou nova centralidade) de um espaço
público conformado por edifícios que simbolizam o poder,
sendo o programa de série destes a habitação do monarca,
ou seja, a sede da Corte e demais dependências. Foi a partir
desses pólos de centralidade urbana, territorial e, funda-
mentalmente, nacional, que irradiaram novos cenários, sis-
temas e estruturas urbanísticas de representação do poder,
os quais acabam, no seu todo, por corresponder ao objecto
central da História do Urbanismo da Idade Clássica.
Concluído o processo da Restauração da Independência
(1668), desde logo se empreenderam, com maior fôlego,
processos de restauração de um sem número de aspectos liga-
dos ao Império. De entre eles, a questão do Padroado da
Coroa Portuguesa sobre os territórios ultramarinos – em
especial sobre o Oriente – tornou-se uma quase obsessão da
politica externa portuguesa. Mas nessa complexa questão o
que aqui nos interessa é o facto de nos conduzir ao desígnio
coevo da dignificação urbanística de Lisboa, sugestivamente
formulado durante o reinado de D. João V como o ensejo
de se poder reformar “Lisboa como uma nova Roma.” Desde o
início que toda a acção diplomática e mecenática joanina
junto da Santa Sé se pautou por esse utópico ensejo de pari-
dade entre as cortes papal e portuguesa, o qual conduziu ao
desenvolvimento de uma estratégia que visava uma profunda
reforma urbana e urbanística da cidade. Essa reforma teria
como pedra de toque o desenvolvimento de um sector
(essencialmente) novo – a Lisboa Ocidental – no qual seria
possível consubstanciar a desejada imagem de capitalidade
de uma Lisboa Imperial.
O plano para a Baixa que veio a ser elaborado e imple-
mentado após o Terramoto de 1755 e que é aqui o objecto
central, também abandona Lisboa Oriental ao seu destino.
É um plano que não toca em quase nada a nascente da zona
baixa, que deixa intactas a Mouraria, Alfama, o Castelo,
a Graça, etc., assim considerados consolidados. A planta em
esquiço inicial abrange apenas a Baixa, mas a versão acabada
[32] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
já engloba toda a área do Chiado e São Paulo, enquadrando
o seminalmente regrado Bairro Alto e implicando a demo-
lição integral nessas áreas de tudo quanto de muito resistiu
à catástrofe. Até aí aflora o desígnio de a renovação de
Lisboa dizer essencialmente respeito à zona ocidental da
cidade. Também no que diz respeito aos planos desenvolvi-
dos para outras zonas se verifica uma quase total displicên-
cia no que diz respeito ao sector oriental.
Pese embora a já vasta experiência e capacidade de rea-
lização dos engenheiros militares portugueses nas mais
diversas vertentes dos processos de urbanização, nunca
haviam levado a cabo tarefas de concepção, planeamento e
execução de estruturas urbanísticas de impacto simulta-
neamente cenográfico e monumental. E era isso que D. João V
e, de uma maneira geral, os seus conselheiros mais próxi-
mos, demandavam para a afirmação espacial da capitalidade
lisboeta. Como o referente era Roma, tornava-se óbvio que o
recrutamento de gente e a importação de modelos deveria
ali ser feito. Mais tarde empreender-se-ia uma politica de
envio de bolseiros, os quais, de uma certa forma, acabarão
por corporizar, por substituição, o final da grande prepon-
derância da Engenharia Militar na produção do edificado
de encomenda pública em Portugal.
Ao dar-se início ao processo joanino de renovação urba-
nística da capital, fizeram-se levantamentos e diversos pro-
jectos, sendo determinante o trabalho desenvolvido por
D. João V e os seus principais conselheiros com o arquitecto
italiano Filipo Juvarra, durante a sua estada em Lisboa no
primeiro semestre de 1719. Consideradas diversas opções,
foi gizado um plano e diversos projectos, cuja execução che-
gou a ter início. Porém, por razões ainda não bem apuradas
em breve foi abandonada, recolhendo à fábrica de Mafra
muita da experiência e do capital de conhecimento assim
adquirido.
Como não poderia deixar de ser, a pedra de toque desse
programa consistia na construção de um palácio para o
chefe do Estado (o Rei) e o chefe da Igreja (o Patriarca), o
qual, segundo diversa documentação da época, deveria pelo
menos rivalizar com o Vaticano. Ao então jovem engenheiro
Manuel da Maia coube a tarefa de coordenar as acções no
terreno que tão bem conhecia após ter realizado em 1716,
com sucesso, o levantamento preliminar. Foi essa a base
para o estudo e desenvolvimento do plano de 1756 para
Baixa e de outros, relativos às zonas periféricas, que se lhe
seguiram. De muitas, foi essa a primeira tarefa de Manuel
da Maia ao serviço do urbanismo da capital.
Do desejo de um novo Palácio-Patriarcal resultaram as
profundas reformas do Paço da Ribeira e espaços públicos
confinantes, mas também outros impulsos palatinos, como o
que já no início da década de 1740 levou Frederico Ludovice
a fazer um projecto para o sítio do actual Jardim do Príncipe
Real. Seria ali que depois do Terramoto de 1775, através
da adaptação para uma versão em madeira pelo seu filho,
acabaria por ser erguida a Patriarcal, também ela vítima de
um incêndio pouco depois. Algo condenou Lisboa a nunca
lograr erguer de forma monumental e durável um templo
específico para albergar a dignidade patriarcal na qual tanto
se empenhou, (como símbolo de um objectivo politico de
longo alcance), a diplomacia de D. João V.
Sem que qualquer outra acção possa ser comparável ao
que sob a direcção de Juvarra esteve em vias de concretizar,
muitas foram as iniciativas promovidas daí em diante por
[33] A Baixa de Lisboa no Contexto do Urbanismo Português
D. João V – ou pelo Senado da Câmara com o impulso ou o
apoio daquele – em prol de uma profunda reforma urba-
nística de Lisboa. Até há bem pouco tempo eram considera-
das avulsas – o que até poderia fazer sentido se apenas con-
tássemos com as inúmeras acções de alargamento, alinha-
mento e uniformização de vias urbanas, demolições de tra-
mos e portas das muralhas, bem como renovação de equi-
pamentos públicos, etc. – mas hoje já se não pode continuar
a pensar assim. De facto como interpretar o Aqueduto das
Águas Livres – a única de todas essas empresas que verda-
deiramente, mas com dificuldades, vai sobrevivendo – e o
facto ter sido destinado a abastecer a menos densa área oci-
dental de Lisboa?
Por último também não posso deixar de referir essa ver-
dadeiramente revolucionária marginal, misto de cais contí-
nuo e de passeio público em alameda com cerca de 12 km – a
lembrar os eixos que na Paris colbertiana haviam substituído
a muralha – projectada em 1733 por Carlos Mardel para ligar
o Terreiro do Paço às Quintas Reais de Belém (das quais, aliás,
não pode ser desligada no âmbito do entendimento cabal
dessa opção). Daí os tramos que se foram realizando do bem
conhecido Cais de Pedra, todos desaparecidos com a catás-
trofe de 1755. Daí os paços e quintas da Junqueira, também
integráveis num movimento de aculturação da periferia
rural que se estendeu ao Campo Grande e ao Lumiar, a
Xabregas, Moscavide, Sacavém, etc. Pesem embora algumas
particularidades, as Necessidades são ainda uma expressão
de tudo isso. Juntem-se-lhes conventos e igrejas novos ou
renovados, palácios, a Fábrica das Sedas, etc.
Em 1755 Lisboa pôde, pois, contar com uma elite técnica
actualizada, tirocinada, organizada e disciplinada e tam-
bém com uma longa reflexão sobre a premente necessidade
de uma profunda reforma urbanística que dotasse a cidade
de níveis de urbanidade e, essencialmente, capitalidade,
apropriados. A catástrofe proporcionou a oportunidade,
mas também uma alteração fundamental: o local.
Todas as hipóteses anteriormente consideradas aponta-
vam para o desenvolvimento de uma nova centralidade em
ensanche numa nova Lisboa Ocidental. Tinha-se consciên-
cia da resistência que a alteração da configuração, estatuto
e valia do cadastro do centro antigo suscitaria, mas subva-
lorizou-se sempre como, por razões idênticas, também seria
difícil deslocar a própria polaridade da cidade. No fundo, se
a Coroa estava consciente da necessidade e dos sacrifícios
da reforma, a sociedade em geral não.
Com a destruição parcial do centro antigo ruíram quase
por completo as resistências à mudança. Tornou-se possível
demolir o que necessário fosse para reformar a cidade no
local onde, desde o final da Idade Média, desenvolvera a sua
centralidade, ainda que academicamente se tenha conside-
rado a hipótese de erguer uma nova cidade na zona de
Belém e, depois, se tenham desenvolvido planos para todas
os sectores periféricos inseridos dentro do limite virtual da
cidade, a Linha Fundamental de Fortificação, a qual viria
ser a 1ª Circunvalação de Lisboa. Por entre esses planos des-
taque-se a delimitação de uma área ampla sobre o então
bucólico Vale de Alcântara – sensivelmente o actual Bairro
de Campo de Ourique – para a implantação do novo com-
plexo palatino real.
Esse último facto permite-me aqui introduzir uma das
outras grandes novidades da estratégia para reforma urbanís-
tica de Lisboa gizada após o Terramoto de 1755: a mudança
[34] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
do paradigma de centro e de capitalidade. Tudo quanto se
pensara para a capital joanina tivera como pedra de toque
a centralidade de um novo conjunto palatino, aliás na con-
tinuidade do arquétipo instalado no Terreiro do Paço na
transição entre as Idades Média e Moderna. A partir de 1756
o centro Cenográfico da cidade seria ocupado pelo Estado,
simbolicamente figurado na estátua equestre do monarca
cuja morada passa a ser um referente periférico. Assim,
e uma forma algo boçal, poderemos dizer que o plano para
a Baixa de 1756 é também para Portugal o símbolo da passa-
gem de um regime absolutista para o de um despotismo
iluminado ou esclarecido. Por isso deve ser bem ponderada
a ideia em curso, da transformação da Praça do Comercio
em centro hoteleiro e de restauração.
É nesse âmbito, não no da arquitectura e urbanismo, que
se enquadra a visão e acção do futuro Marques de Pombal,
que soube utilizar a oportunidade e instrumentalizar o
capital adquirido no âmbito de uma desejada reforma urba-
nística de Lisboa, no sentido da afirmação do seu protago-
nismo politico e do simbolismo do seu projecto reformista.
Se as acções urbanísticas projectadas, mas nem sempre
implementadas com sucesso, para Porto, Coimbra, Vila Real
de Santo António, Goa, etc. correspondem a reformas estru-
turais por ele empreendidas em sectores fundamentais da
vida e economia portuguesas, a reconstrução de Lisboa após
o Terramoto de 1755 é o referencial urbanístico, a viabiliza-
ção inaugural do seu projecto politico. É aqui que encontro
a mais plena justificação para a designação da nova Baixa
de Lisboa como Pombalina, não num pretenso estilo arqui-
tectónico-urbanístico que de tal processo tenha emergido.
Afinal, que conceito de estilo é esse?
Como já aqui tentei enunciar, a Baixa Pombalina insere-
-se em plenitude no contexto evolutivo do urbanismo por-
tuguês, mas é, sem dúvida, um dos seus momentos de sín-
tese mais importantes. Não é o resultado de uma inspiração
momentânea de algumas personagens perante um problema
concreto, nem sequer naquilo que de mais característico
encontramos na Baixa Pombalina: a arquitectura de programa
ou, se quisermos, o urbanismo de grau absoluto ou a fusão
plena entre arquitectura e urbanismo ou, quiçá de forma
extremada, a cidade como obra de arte total. Para além
de ser um fenómeno contemporâneo em diversas culturas
europeias, entre nós já antes se desenvolviam, nomeada-
mente para o Brasil, planos de cidades com um programa
que integrava a arquitectura como uma componente este-
reotipavel da composição. Aliás, essa tendência é já detectá-
vel em alguns tramos medievais de cidades portuguesas e,
sem qualquer margem para dúvidas, na Lisboa das reformas
e ensanches de D. Manuel I.
Parece-me óbvio que, para além de desígnios de ordem
ideológica, estética e disciplinar, a utilização de projectos-
tipo teve também como escopo incrementar o mais possível
os níveis de eficácia. É também na capacidade de resposta
do ponto de vista da rotina da construção, que se vislumbra
com facilidade a tarimba profissional dos técnicos interve-
nientes. Nomeadamente na montagem de estaleiros e na
estabilização dos processos normativos para o sistema cons-
trutivo anti-sísmico entretanto criado, nos esquemas com-
positivos, nas métricas, na normalização dos elementos de
cantaria, dos vãos e caixilhos, na fabricação de telha e azu-
lejo, etc. Também segundo esta perspectiva se pressente a
importância de experiências anteriores.
[35] A Baixa de Lisboa no Contexto do Urbanismo Português
A arquitectura da Baixa Pombalina não é mais que a evo-
lução e adaptação à escala e circunstâncias do caso, da
arquitectura de série que a Coroa Portuguesa produzia um
pouco por todo o Império segundo princípios compositivos
e metodologia construtiva padronizados. Mas na Baixa, tal
como para as demais zonas da cidade sujeitas ao processo
renovador pombalino, a uniformidade arquitectónica não
foi levada ao extremo, admitindo-se variações de detalhe
que, contudo, jamais puseram em causa uma ordem global.
Por exemplo, nos tramos onde era requerido maior aparato,
esses mesmos princípios travestiram-se, admitindo com
grande contenção a contaminação estilística do barroco tar-
dio. Em alguns casos, como o Rossio e o Terreiro do Paço, é
mesmo em segundas versões dos projectos que surge uma
maior vivacidade formal. São casos nos quais a versão edifi-
cada foi já desenvolvida por uma segunda geração de pro-
jectistas que, como Reinaldo Manuel dos Santos e pese
embora o estatuto de engenheiros militares, tinham entrado
para a profissão através de portais formativos claramente
do âmbito da arquitectura, como o foi a Casa de Riscar do
estaleiro de Mafra e, claro, a própria Casa do Risco das
Obras Públicas de Lisboa.
Serão esses os personagens activos em acções como Vila
Real de Santo António, Porto ou Coimbra, aí vincando, com
método idêntico, mas expressões formais diversas, a rele-
vância, a prazo, do processo da Baixa como elemento rege-
nerador da própria escola portuguesa. Serão estes, mas tam-
bém outra gente, com formação ou proveniência externa,
quem levará a cabo a concretização de sistemáticas, mas
inevitáveis, violações do plano, na necessária apropriação
que dele foram fazendo uma burguesia endinheirada e a
escassa nobreza que acabou por se decidir a regressar ao
renovado centro da capital. Mas disso falar-nos-á, com cer-
teza e com maior propriedade, a minha colega neste painel.
Segundo uma perspectiva de quem é quem por entre os
técnicos envolvidos no processo do planeamento e imple-
mentação da reconstrução de Lisboa, tudo se nos apresenta
como um peculiar teatro de operações, no qual entram e saem
de cena, de proveniência e para destinos diversos, algumas
dezenas de personagens com patentes, estatutos e funções
variados. Só isso chega para nos fazer vislumbrar a existên-
cia de uma escola que encontra no processo da Baixa o anún-
cio do projecto politico pombalino pelo qual seria ideologi-
camente instrumentalizada.
Para tal foi também fundamental o papel desempenhado
pelos gestores políticos do processo. Para cada um dos
diversos teatros de operações era nomeado um responsável
politico, na maior parte dos casos designado como gover-
nador, mas em alguns como reformador. Em Lisboa foi o
próprio Marquês de Pombal. Também nisso a prática não
era nova. Por exemplo, no processo de reconhecimento,
demarcação e urbanização da Amazónia, entrara em acção
em 1751 Francisco Xavier de Mendonça Furtado, que em
1759 cessou funções para ocupar o lugar de Secretario de
Estado da Marinha e Ultramar, mudança proporcionada
por seu irmão, o futuro Marquês de Pombal e já então
Conde de Oeiras.
Mas o plano de 1756 para a Baixa de Lisboa tem também
referentes internacionais que nem sempre têm sido valori-
zados. Impõem-se, em primeiro lugar, os casos explicita-
mente referidos por Manuel da Maia nas suas três memó-
rias descritivas e justificavas – a Dissertação – do processo de
[36] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
apuramento do plano: Turim e Londres. Eram casos óbvios.
O primeiro porque, para além das então estreitas relações
da monarquia portuguesa com a Casa de Sabóia, coubera
precisamente a Filipo Juvarra – com quem trabalhara em
Lisboa – o projecto da última fase do processo de ensanches
que corporizou a monumentalização da capital do
Piemonte. O segundo caso porque, para além da relação
óbvia entre as catástrofes provocadas pelo Terramoto de
Lisboa (1755) e pelo Grande Incêndio de Londres (1666), esta
ocorrera durante a governação de Carlos II, casado com
Catarina de Bragança que, após a viuvez (1685) regressara a
Lisboa com um séquito ao qual se continuaria a juntar uma
considerável e influente comunidade inglesa estimulada
por acordos comerciais bilaterais, como os de 1654 e de
1703. Por outro lado, o próprio Marques de Pombal iniciara
a sua carreira politica como embaixador em Londres num
período em que, não só a reconstrução de Londres ainda
decorria, mas também os trabalhos dos Wood em Bath esta-
vam em curso.
Essas referências de Manuel da Maia foram feitas para
acentuar a dificuldade e ineditismo do caso que tinha em
mãos: em Turim tratara-se de acrescentar à cidade velha
cidade nova; de Londres não lograra obter mais informação
do que a de um mapa que demonstrava a regularidade da
malha. A verdade é que os planos, como o de Christopher
Wren, para Londres não tiveram execução e que o caso de
Turim havia sido importante para o planeamento da reno-
vação ante-Terramoto, mas com os efeitos deste já não pode-
ria ser utilizado como modelo. Em outra passagem, a refe-
rencia a Turim e a Londres é apenas feita a propósito dos
problemas levantados pelo cadastro e pela propriedade. Um
facto curioso é o da grande preocupação de Manuel da Maia
com a implantação e organização das padarias, as quais
determinou implantar na Calçada de S. Francisco como
muros de suporte contra o talude, do que nos dá boa conta
o correspondente projecto. A verdade é que o Grande
Incêndio de Londres tivera o seu início numa padaria.
Parece-me, pois, que a modéstia de Manuel da Maia tem
o seu quê de falso. Uma vez mais na Dissertação e a propósito
da secção-tipo para as ruas, cita o urbanismo inglês, desta
vez de forma vaga, referindo as questões da proporção e do
programa em termos que lembram Laugier no Essai sur
l’Architecture, publicado em Paris em 1753 com um sucesso
fulminante. Aliás, não é apenas esse o trecho a lembrar as
propostas de Laugier, mas também os 5 desenhos que acom-
panharam a planta de síntese do plano para a Baixa, a varie-
dade e complexidade morfológica da composição planimé-
trica e, também, dos alçados, como já há pouco referi. Essa
referência vaga a Inglaterra poderia ter como pano de
fundo diversas realidades, entre as quais me permito aqui
destacar a regulamentação (as duas Act of Rebuilding City)
com a qual, quase sem traçado urbano global previamente
desenhado – urbanismo regulado – efectivamente se recons-
truiu a cidade.
Dos pontos de vista morfológico e arquitectónico,
podem sempre ser referidas outras experiências semelhan-
tes, contemporâneas às de Lisboa, como os casos franceses
de Reims, Lyon, Bordéus, Nancy e Nantes. A verdade é que as
especificidades atrás enunciadas e a tradição arquitectóni-
co-urbanística da escola portuguesa de Engenharia Militar
jamais terão servido de impedimento para o conhecimento
e integração do que de mais inovador e interessante se fazia
[37] A Baixa de Lisboa no Contexto do Urbanismo Português
no exterior. Existe de facto uma articulação internacional
do processo de renovação urbanística da Baixa, a qual carece
de um aprofundamento capaz nesta acção para a sua even-
tual candidatura a Património da Humanidade.
Por último parece-me relevante aqui deixar destacados
alguns aspectos do plano da Baixa de 1756 relacionados
com as questões da memória colectiva da comunidade.
É que, em geral, faz-se uma interpretação da intervenção
então programada e levada a cabo na Baixa como algo
feroz, que fez tábua rasa da pré-existência. É uma leitura
errada. Pese embora a racionalidade e regularidade do pro-
jecto, integrou a estrutura e os elementos essenciais da pré-
existência destruída. Tais são os casos das praças, da articu-
lação das três principais ruas norte sul com a rua paralela
ao rio por trás do Terreiro do Paço, do arquétipo formal e
locativo dos torreões, etc. A tradicional uniformidade de
uma quadrícula ou reticula de uma new town colonial cedeu
lugar a uma clara, mas forte, hierarquização viária, a qual
consagrou a tradicional permeabilidade e valorização
cadastral diferenciada do sistema rua-travessa.
Essa preocupação na reinvenção da malha urbana pré-
existente surge-nos mais clara através da progressividade
das seis soluções de desenho apresentadas, de entre as quais
a adoptada é a quinta dessa escala progressiva de abstrac-
ção. É também a principal razão para aquilo que, em minha
opinião, é menos conseguido: a proporção entre massa e
vazio em cada um dos quarteirões. Com efeito, mesmo aten-
dendo aos padrões da época, a proporção entre o espaço
público, o edificado e o logradouro é absolutamente estra-
nha, com assinalável deficit para o último. É uma caracte-
rística que não se encontra nas malhas então compostas
para o Brasil, mas que acabará por contaminar Vila Real de
Santo António. Claro que são casos onde a altura das edifi-
cações excedeu, por vezes consideravelmente, a determina-
da pelo plano, também assim se perdendo a proporção que
tanto preocupava Manuel da Maia na sua Dissertação. Parece-
-me que tudo isso também se pode explicar pela necessidade
de repor os índices de edificabilidade e de frentes urbanas
existentes na zona intervencionada antes do Terramoto.
Também no que diz respeito à rede eclesial se verifica
um interessante programa de reordenamento. É quase mítica
a ideia de que Eugénio dos Santos, no leito de morte,
temeu ser castigado pela facto de ter suprimido um consi-
derável número de templos anteriormente existentes no
tecido urbano da Baixa. Claro que se não pode aceitar que
uma tal acção se tenha ficado a dever ao seu arbítrio, mas
por outro lado o facto em si contém algo de exagerado, pois
a supressão disse essencialmente respeito a pequenas cape-
las e ermidas. Mantiveram-se, porém, as principais evoca-
ções. O que a esse respeito se revela determinante no plano
é a decisão de integrar todas as igrejas na disciplina urba-
nística global, não permitindo a sua individualização volu-
métrica. Com alguma dificuldade, igual é logrado no que
diz respeito a estruturas conventuais.
É extraordinariamente interessante o jogo feito para o
reaproveitamento de elementos arquitectónicos qualifica-
dos, aplicando-se portais em locais diversos da origem
(Patriarcal/S. Domingos, Misericórdia/Conceição), conver-
tendo uma capela lateral de um templo destruído em capela
mor de um feito de raiz (Conceição), etc. Mais interessante
é o caso do Convento do Corpus Christi, o qual continha
[38] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
uma das mais interessantes igrejas de planta centralizada
portuguesas. Não foi destruída e está ali, no ponto onde a
Rua dos Fanqueiros abre num tímido largo de cunhais
chanfrados que é vulgar dizer-se ser uma evocação tardia do
ensanche de Barcelona concebido por Ildefonso Cerdá.
Nada disso, o alargamento através do chanfro do ângulo dos
quarteirões, decidido após a elaboração do plano inicial,
surgiu em função daquela planta centralizada e por forma
a, discretamente, anunciar a presença do convento. Uma
decisão absolutamente normal no âmbito da implementa-
ção e gestão de um plano.
Por tudo quanto o que acabo de enunciar a Baixa
Pombalina pode também ser entendida como o espelho e a
prova de uma inteligência e uma sensibilidade patrimonial
algo inusitada para a época. A esse propósito convém não
esquecer outros indícios como a percepção e registos reali-
zados sobre as estruturas subterrâneas romanas na Rua
da Prata ou sobre o Teatro Romano na colina do Castelo.
Mas sobre o interesse e salvaguarda do património da
Antiguidade Clássica já em 1721 D. João V havia legislado,
acto inovador mesmo no âmbito europeu.
Enfim, as considerações que aqui deixo destinam-se
essencialmente a elencar um conjunto de questões e linhas
de investigação que, por sua vez, terão de constituir-se em
temas de reflexão, no âmbito do processo de reabilitação
que se impõe. São ideias e materiais que dotaram o plano de
1756 para a Baixa de Lisboa de uma densa complexidade
conceptual, cultural e simbólica. E não podemos olvidar-
nos de que essa complexidade também se fundamenta no
facto de o império português ter uma importância e um
enquadramento mundial que, num momento de candi-
datura mundial, obviamente não podem ser descartados.
A Baixa Pombalina não pode ser isolada e considerada como
um fenómeno autónomo, apenas urbanístico ou somente
português. A Baixa, que só é Pombalina em termos de his-
tória politica e das ideias, é de Lisboa mas pertence a todo
o Mundo.
[39] A Baixa de Lisboa no Contexto do Urbanismo Português
A Baixa Pombalina:da inovação ao mito
João Appleton
[41] A Baixa Pombalina: da inovação ao mito
O terramoto de 1 de Novembro de 1755, que assolouo País e, em particular, as regiões do Algarve e daCosta Atlântica, incluindo Lisboa e Vale do Tejo,permanece ainda hoje como uma das catástrofesnaturais de maior violência, entre outras razõesporque destruiu uma cidade rica de História que,
Representação esquemática dos váriosdetalhes característicos da “gaiola
pombalina”.APPLETON João, Reabilitação de edifícios
antigos, Lisboa, Orion, 2004.
num repente, se viu privada de vidas, de propriedades
e de riquezas.
Num Portugal entorpecido e estagnado, que vivia e se
endividava, depois de enriquecer à custa da seda e da
pimenta da Índia, do ouro e dos diamantes do Brasil,
e sempre dos escravos de África, o terramoto teve entre-
tanto duas consequências secundárias, porventura mais
relevantes para o seu futuro e interligadas.
O aparecimento de Sebastião José, futuro Marquês de
Pombal, como homem forte do poder do rei (e do seu pró-
prio), conduz a um período único de reformas que infeliz-
mente mal sobreviveram à morte de D. José I, ao mesmo
tempo que determina a existência da vontade de recons-
truir a capital através de processos certamente revolucio-
nários.
A construção da Baixa da cidade, coração económico
e cultural da capital do Reino, surge de uma vontade
e não de um acaso, como facilmente se depreende das
dissertações do velho Manuel da Maia que, ponderando
embora outras soluções, não deixa de facto alternativa
para que a reconstrução se faça noutro local (Ajuda,
Belém) ou segundo modelos de pura restituição da cidade
pré-existente, como veio a suceder em zonas que o tempo
tornara marginais e onde se mantém a estrutura urbana
herdada dos árabes e que pouco se alterou desde a Idade
Média.
De facto, há muito, desde o início de quinhentos, a cen-
tralidade de Lisboa já não se localizava na velha urbe
demarcada pela escassa cerca Moura, nem mesmo se refe-
renciava pela massa edificada no interior do perímetro da
muralha Fernandina.
Com a construção do Paço da Ribeira, da Casa da Índia
e da Alfândega para ocidente, todo o poder se desloca tam-
bém e terá até valor simbólico o facto de o Palácio dos
Condes de Cantanhede, Marqueses de Marialva, ter até
sido edificado fora das muralhas, mas bem junto às impor-
tantes Portas de Santa Catarina.
A decisão de reconstruir a cidade, ao invés de construir
uma nova Lisboa, representa pois a vontade de não perder
referências geográficas e históricas, deixando para mais
tarde a explosão urbanística que veio, finalmente, expan-
dir a cidade para Norte. Mas isso veio a suceder mais de
100 anos depois e não vem ao caso.
Certo é que se poderia pensar (e com legitimidade) que
essa decisão não teria sido fácil, por várias razões. Lisboa
era, na zona correspondente ao que se chama a Baixa
Pombalina, desenvolvendo-se entre o Terreiro do Paço
(ou Praça do Comércio) e Rossio e entre a Rua da Madalena
e o Chiado, um complexo problema de propriedade urbana,
dividida entre grandes proprietários aristocráticos (como a
casa Cadaval) e um sem número de proprietários de peque-
nos lotes encravados entre ruas estreitas, becos e vielas.
Por outro lado, se aquela zona tinha sido a mais dura-
mente atingida pelo sismo e pelo “tsunami”, era porque
geologicamente era pouco conveniente para nela se cons-
truir, sobretudo quando se foram ocupando as zonas lodo-
sas e aluvionares do antigo esteiro e das ribeiras que nela
corriam.
Tudo apontaria portanto para que se optasse por uma
reconstrução noutro local mais simples do ponto de vista
fundiário e mais seguro em termos geológicos; e, caso se
insistisse na reconstrução no mesmo local, sem dúvida
[42] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
seria muito mais simples, menos perturbante, recuperar a
urbe perdida, com pequenas reformas aqui e ali, um beco
que se eliminava, uma rua tortuosa que talvez se pudesse
alinhar e pouco mais.
Escolheu-se pois o caminho mais difícil: não se aban-
donou a zona destruída, antes sobre ela (em sentido pró-
prio) se construiu uma cidade nova e não se respeitou,
com poucas excepções, o urbanismo e as construções pré-
existentes; pelo contrário, com alguma delicadeza mas
muito mais firmeza, traçou-se uma malha regular baseada
nas duas praças de Lisboa, o Rossio popular e o Terreiro do
Paço, majestático, interligadas por uma malha de base
ortogonal, de ruas largas e direitas ladeadas de edifícios
de uma regularidade quase monótona.
Decerto o percurso não foi parco em escolhos e é fácil
adivinhar a difícil negociação de contrapartidas com os
proprietários que terão levado, inclusivamente, a que se
subisse a cércea máxima recomendada por Manuel da
Maia.
Mas, sabendo que a aristocracia detinha parte de leão
desse território é simples entender que aqui foi vencida
pela vontade de Sebastião José, o menosprezado e afidal-
gado Carvalho de Rua Formosa, de genealogia duvidosa,
começando aí, porventura uma luta pelo poder do rei que
culminaria, na relação com a nobreza, com o processo dos
Távoras.
Depois desta árdua batalha admira que ainda tenha
sobrado energia e vontade para criar algo de novo, cuja
força se revelou tão poderosa que veio de facto a concreti-
zar-se, com poucos desvios, embora para tal tenham sido
necessários mais de cem anos.
A inovação da Baixa PombalinaO racionalismo do desenho do desenho da Baixa
Pombalina, baseada no traço de Eugénio dos Santos, Carlos
Mardel, e outros arquitectos e engenheiros, não é, em si
mesmo inovador, nem a nível nacional nem, muito menos
a nível europeu.
Outros tratarão o tema com outro rigor e outra profun-
didade mas basta lembrar que o Bairro Alto, primeira gran-
de expansão da cidade para fora da muralha Fernandina
ocorre a partir do século XVI, consequência natural de
transferência de centralidade da capital, já aí se notabili-
zando pelo definitivo abandono da malha urbana árabe e
medieval; pela Europa fora multiplicaram-se os exemplos
de “novas” cidades, construídas com a mesma racionali-
dade, nos séculos XVII e XVIII.
Inovador é, na cidade, o estabelecimento de uma rede
infraestruturada de ruas e de esgotos, mas só o é porque
Lisboa era uma cidade muito pouco evoluída em termos
europeus, que tinha mesmo regredido, nestes aspectos, em
relação às heranças romana e árabe.
Inovador é o conceito de quarteirão constituído por
uma aglutinação de lotes de dimensões variáveis mas
sempre subordinados ao módulo base que era o palmo,
medida que aliás regra também a largura das ruas da
Baixa; o quarteirão formando geralmente um rectângulo
(às vezes um trapézio) fechado, com saguão central,
é como que um único edifício, marcado pelo alinhamento
de varandas, sacadas, cimalhas e beirados, uma espécie
de grande palácio, que apenas nega esta condição pela
singeleza e pela simplicidade, porventura excessiva,
das suas fachadas.
[43] A Baixa Pombalina: da inovação ao mito
Mas este sinal de inovação, hoje mais dificilmente des-
cortinável no local, tantas e tão violentas têm sido as agres-
sões à estrutura original destes quarteirões, tem natural-
mente outras lógicas e outras consequências.
A regularidade das fachadas, tanto em comprimento
como em altura, tão criticada na altura pela sua falta de
ambição, pela sua “pelintrice”, tem um significado pro-
fundo quando se pensa que, na Baixa, se tratava de recons-
truir o coração de uma cidade que um terrível terramoto
destruíra.
Essa monotonia significa que as paredes exteriores des-
tes edifícios/quarteirões têm uma distribuição homogénea
e regular de resistência mecânica, que não é perturbada
pela redução da largura de pilastras de alvenaria ou pela
variação da altura das mesmas; ou seja, esta monotonia res-
ponde, por inteiro, às preocupações expressas por Manuel
da Maia que aliás, tinha dos portugueses uma visão pouco
optimista no que se refere à disciplina urbana e ao civismo.
A coordenação dimensional imposta deste modo tem
ainda outras consequências igualmente inovadoras no País:
a repetição, até à exaustão, das medidas de cunhais, socos,
cimalhas, portas e janelas permitiam uma produção seriada,
prefabricada, de elementos de cantaria, constituindo um
prodígio de industrialização da construção a que, passado
o período pombalino, os portugueses se mostraram tão
avessos, ao longo de todo o século XIX e mesmo em largos
períodos do século XX.
Claro que a prefabricação não era uma novidade absolu-
ta mas nunca aplicada a esta escala, e com tanta persistên-
cia, que permaneceu em quase toda a Baixa bem para lá do
período pombalino, durante mais de cem anos.
Regradas as fachadas com tão estrito rigor, a arquitectura
interior fica também muito espartilhada, embora com
graus de liberdade, apesar de tudo suficientes; a comparti-
mentação interior baseia-se em paredes de frontal tecido
orientadas paralelamente às fachadas (recebendo os viga-
mentos de madeira dos pisos) e perpendicularmente a estas
(desempenhando essencialmente funções de travamento
sísmico), ligando fachadas, empenas e saguões.
A profundidade do lote determinaria o número de fiadas
de paredes paralelas às fachadas e, portanto, o número de
divisões das casas.
Inovadora é também esta organização interior, total-
mente baseada em malhas ortogonais de paredes de fron-
tal; a inovação não está na utilização das paredes de frontal,
“tabiques” constituídos por reticulados de prumos, traves-
sanhos e escoras de madeira com os espaços remanescentes
preenchidos por alvenaria de tijolo ou de pedra miúda.
Inovador é o racionalismo com que este elemento é usado,
segundo regras em que a simetria é essencial (mais uma vez
um requisito sísmico relevante), como essencial é a garantia de
interligação perfeita entre frontais ortogonais, entre estes e as
paredes de alvenaria (com integração de “gaiolas” de madeira
e fixações com mãos e com pregagens de ferro) e entre paredes
e pavimentos, através de frechais e contra-rechais.
Inovadora é a obstinação no uso do módulo na definição
das distâncias entre prumos e entre travessanhos, que per-
mitia também produzir para stock ou importar grandes
quantidades de peças de dimensões idênticas.
Isto quer dizer que, sendo verdade que já no século XVI e
XVII se utilizavam na construção de edifícios as paredes de
frontal, cujo êxito decerto se ligava à boa combinação entre
[44] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
a flexibilidade da madeira e a rigidez da alvenaria, é na
construção chamada de pombalina que parece ter-se enten-
dido, na sua plenitude, as capacidades das estruturas assim
construídas, desde que fossem garantidas interligações efi-
cazes. Não custa a crer que os melhoramentos introduzidos
na construção da Baixa tenham tido origem na observação
cuidadosa do comportamento dos edifícios e suas partes
durante a ocorrência do grande terramoto, análise que terá
permitido detectar e identificar com clareza os pontos fortes
e fracos das soluções correntemente usadas, reutilizando
e aperfeiçoando os primeiros e eliminando os segundos.
Esta verdadeira obsessão pela coordenação de dimensões
não se aplica somente às estruturas, antes arrasta toda a
construção, incluindo os seus acabamentos.
Exemplar do carácter inovador com que tal foi encarado é
o uso prolixo do azulejo de padrão geométrico (às vezes figu-
rativo), de formato normalizado com cerca de 14 cm x 14 cm,
em tons monocromáticos de azul ou de cor-de-vinho ou poli-
cromáticos com abundância do azul e do amarelo, usados
como lambris em escadas, átrios de entrada e compartimen-
tos, naturalmente com hierarquias de decoração que varia-
vam com os proprietários das casas e com as zonas onde
eram aplicadas, destacando-se pela sua qualidade plástica os
painéis aplicados nos andares nobres e nas ruas principais.
O uso banalizado do azulejo em interiores a que vem a
seguir-se, sobretudo a partir dos finais do século XVIII, a sua
aplicação em paramentos exteriores, não será alheia
vontade de incentivar a produção cerâmica nacional, numa
lógica muito pombalina de desenvolvimento e de proteccio-
nismo industrial, destinados a libertar o país da dependên-
cia estrangeira.
Os MitosA construção da Baixa Pombalina está também, como quase
tudo no País, envolta em cortinas de nevoeiro, estas com-
postas por mitos que, à força de tentarem engrandecer a
tarefa hercúlea da reconstrução, acabam por criar polémi-
cas e dúvidas que, contraditoriamente, a podem apoucar.
O primeiro mito, sucessivamente suscitado em diversas
ocasiões, consiste na ideia de que a construção da Baixa foi
um acto único, ciclópico, que começou e acabou com o con-
sulado de Pombal, cuja eficácia tem sido glosada ao longo
do tempo para contrapor à inacção dos responsáveis políti-
cos contemporâneos.
Pelo contrário, a construção foi um acto penoso, contra-
ditado e amesquinhado no início, mal compreendido a meio
caminho e que nem mesmo chegou ao fim, como se verifica
com a existência de edifícios distintos (pouco, embora) cons-
truídos de raiz no final de oitocentos, na malha desenhada
por Eugénio dos Santos.
Isto significa que o plano projectado a partir de 1756
demorou mais de um século a ser implementado e só sur-
preenderá que, apenas com ligeiras diferenças, tenha resis-
tido tanto e tão bem ao passar do tempo, das modas e dos
poderes.
O segundo mito, sustentado sobretudo por ignorantes
básicos de história e de construção, é a ideia de que a cons-
trução pombalina, tal como se caracteriza, foi uma criação
súbita, uma invenção de um ou mais dos grandes arquitec-
tos cujo nome ficou, com justiça, associado ao arranque da
reconstrução.
Nem Manuel da Maia, velho e sábio, nem Eugénio dos
Santos, trabalhador infatigável, nem Carlos Mardel, oriundo
[45] A Baixa Pombalina: da inovação ao mito
da Europa culta, teriam possibilidade de congeminar, a par-
tir do nada, a tecnologia destas construções. Não poderiam
fazê-lo, nem seria necessário, porque não se inventa o que já
está inventado, e é certo que todos os materiais e tecnologias
usados na construção pombalina eram há muito correntes
no País e na Europa, com mais ou menos variantes.
A construção pombalina é, como já se disse, e não é
elogio menor, um exemplo da racionalização e de explo-
ração inteligente do melhor dos conhecimentos existen-
tes, aplicados com rigor e com qualidade incomuns num
País pouco habituado, como ainda hoje, a uma cultura de
exigência.
O terceiro mito, o mais especulado, sobretudo em tem-
pos recentes, é o da invenção das fundações dos edifícios
sobre estacaria de madeira, de onde deriva a maximização
da importância desta estacaria e, portanto, dos riscos asso-
ciados à sua destruição, por exemplo, por efeito da variação
dos níveis freáticos tradicionais da Baixa.
Naturalmente, como antes se referiu sobre a construção
no todo, o uso de estacas de madeira não constituía novidade
alguma na execução de fundações, tradição milenar quando
se construía sobre solos pobres, por exemplo em zonas
alagadiças.
Em Lisboa, muitas construções anteriores ao reinado
Josefino, usaram estacas de madeira; bom exemplo, e recente,
foi verificado, na escavação efectuada na Praça da Figueira
para execução do parque de estacionamento aí localizado,
quando foram postas a descoberto estacas de pinho, de dife-
rentes comprimentos, cravadas sob paredes do Hospital
Real de Todos-os-Santos, construídas notoriamente antes
do terramoto.
Além disso, não é nada certo que as estacas de madeira
constituam fundação das construções, sendo muito mais
provável que, em grande número de casos, as estacas de
madeira tenham sido cravadas com a função de assegura-
rem a compactação dos solos mecanicamente fracos (ater-
ros, aluviões, lodos) que se encontravam à superfície.
Isto significará que as estacas tinham uma função essen-
cial na fase pré-construção, permitindo melhorar drastica-
mente as características mecânicas dos solos compactados
(resistência, deformabilidade), sendo a partir daí o seu
papel estrutural de muito menor relevância.
Se dúvidas há sobre esta hipótese, basta verificar que
num mesmo edifício se encontram estacas de madeira dos
mais diversos comprimentos, muitas vezes nem de perto,
nem de longe, atingindo os estratos mais resistentes do
solo (o firme).
Aliás, é curioso constatar que tendo as estacas geralmente
comprimentos entre pouco mais de 1 m e cerca de 6 m,
foram cravadas em zonas em que os terrenos “naturais”
estão a dez, vinte ou mais metros de profundidade.
ConclusãoA reconstrução da Baixa Pombalina foi sem dúvida um acto
criador da maior relevância, notável enquanto desígnio de
planeamento urbano, arquitectónico e construtivo, de pro-
fundo e raro racionalismo num País muito mais habituado
à prevalência do acaso e do improviso.
A Baixa, com toda a sua carga inovadora e mitológica,
é hoje uma sombra do coração económico e comercial da
capital do Reino que se destinou a ser.
[46] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
A incompetência e a ganância do homem, do lisboeta
de raiz ou de importação, transformaram para lá do
limite do suportável, a imagem da Baixa e esconderam as
suas enormes virtudes e potencialidades.
Ao progressivo abandono da habitação, à invasão
do comércio e serviços, muito além do necessário e tole-
rável, associou-se à vontade de alterar, tantas vezes
ditada por fúteis e passageiras inspirações modistas,
ao mesmo tempo que a especulação tomou também ali
o freio nos dentes, justificando ampliações e destrui-
ções que puseram em causa, objectivamente, o futuro
da Baixa.
Já não resta um quarteirão intacto e os edifícios inteira-
mente originais desaparecem lentamente, um a um, bem
defronte dos nossos olhos.
Se não é possível voltar atrás, emendando todos os erros
cometidos é ainda viável, com grande esforço e determina-
ção, requalificar a Baixa e restituir-lhe a dignidade perdida.
Repete-se, apenas como reparo, que o acto de criação
da Baixa foi, antes de tudo, um exercício de vontade e que,
para a concretização desse exercício foi necessário contar
com todos, mas foi igualmente essencial lutar contra
muitos. E, se é verdade que a História não se repete, é con-
veniente repetir o que a História ensina.
[47] A Baixa Pombalina: da inovação ao mito
Edifício Pombalino, APPLETON João, Reabilitação de edifícios antigos, Lisboa, Orion, 2004.
A Arquitecturada Baixa Pombalina:
Cem anos de História
RaquelHenriquesda Silva
De acordo com o projecto de Eugénio dos Santos,a reconstrução da Baixa Pombalina e áreas limítrofesrevestiu duas vertentes: o traçado de um conjuntooperativo de ruas e praças, que redesenharamo território afectado, e uma arquitectura deprograma, proposto e desenvolvido através de
[49] A Arquitectura da Baixa Pombalina: Cem anos de História
Projecto do lado Norte da Rua Travessa de Santa Justa desde o Cunhal
da Rua Áurea até à Rua do Carmo,Cartulário Pombalino.
dispositivos de hierarquização que sublinhavam e simboli-
zavam as intenções urbanísticas. Trata-se, portanto, de um
projecto com um elevado grau de coesão, técnica, arquitec-
tónica, estética e funcional, adequado à situação de catás-
trofe que lhe deu origem, respondendo-lhe com a intenção
utópica de refazer a cidade.
Como se sabe, mesmo no período de gestão da recons-
trução durante o consulado pombalino, ou seja até 1777,
alterações significativas foram introduzidas no projecto
aprovado. Nomeadamente no Rossio, cuja arquitectura, pro-
jectado por Carlos Mardel e Reinaldo dos Santos, propôs
algumas soluções de enriquecimento imagético1, primeiro
sinal de que o «estilo frio» de Eugénio dos Santos se deveria
abrir aos valores culturais do tempo, marcados por um
gosto ecléctico onde é possível detectar-se a mutação do bar-
roco para o rococó, suportado por uma sensibilidade cres-
centemente pré-romântica.
Para concretizar esta reflexão, refira-se, como exemplo
extremo, o início da reconstrução da igreja do Convento do
Carmo, em 1757, que os frades desejaram fazer em gótico e
cuja falta de meios e de saber técnico2 – e depois a extinção
das Ordens Religiosas, em 1834 – nos legaram, como herança
definitiva, a figura cenográfica das ogivas descarnadas (que
são reconstruídas e não sobreviventes do terramoto), espé-
cie de céu romântico do chão planimétrico e austero da
Baixa em reconstrução.
Mas não foi este gesto extremo que pautou as progressi-
vas fugas ao prospecto pombalino da reconstrução de
Lisboa. Elas vão ocorrendo, sem espectacularidade nem teo-
rização, pelo menos a partir de 1777, quando se inicia o rei-
nado de D. Maria I que, no entanto, não foi – ao contrário
do que proclamou a historiografia romântica e que muitos
continuam a proclamar sem sustentação objectiva – a
Viradeira do pombalino3.
A verdade é que, no momento da expulsão do Marquês,
a edificação das principais ruas da Baixa se encontrava
muito longe de estar concluída, à excepção da Rua Augusta.
Não sendo possível dispor ainda de uma quantificação
segura nesta matéria4, os fundamentais Livros da Décima
da Cidade permitem considerar que a afirmação de José-
Augusto França – em 1777, estaria reconstruída “quer um
pouco mais de metade, quer um terço da cidade”5 – deve ser
considerada na sua segunda possibilidade e, mesmo assim,
talvez seja excessiva.
Sem me deter nas razões do atraso e do arrastamento das
obras – previstas, como se sabe, para ficarem concluídas
em cinco anos, após a assinatura da respectiva obrigação6 –
devemos considerar que elas foram determinantes para
que, na arquitectura programática de Eugénio dos Santos,
fossem sendo introduzidas progressivas alterações.
Entre as mais imediatas e generalizadas, cite-se a sistemá-
tica substituição do 4º andar de mansardas por um andar de
pé direito com “varanda geral” que, logo em 1783, o arqui-
tecto Francisco António Ferreira justificava como medida
de economia de construção e rentabilização dos futuros
alugueres7. Ao longo das décadas seguintes, e século XIX
adiante, quando ainda se constroem prédios iniciais ou se
reconvertem outros, os cinco andares serão ainda muitas
vezes acrescidos de mais um.
Fora da área restrita do «xadrez» da Baixa, sobretudo no
Chiado e envolventes, onde os prospectos pombalinos pre-
viam a construção de casas nobres ou palácios, a cidade
1] Ver Correia José Eduardo Horta, Vila
Real de Santo António. Urbanismo e poder
na política pombalina. Porto, Faculdade
de Arquitectura do Porto, 2ª ed., 1997.
2] Ver contexto em Paulo Varela Gomes,
“Traços de pré-romantismo na teoria e
na prática arquitectónicas em Portugal
na segunda metade do século XVIII”
in Romantismo – da mentalidade à criação
artística. Sintra: Instituto de Sintra,
1986.
3] Ver desenvolvimento na minha
dissertação de Doutoramento Lisboa
romântica. Urbanismo e Arquitectura,
1777-1874. Lisboa: Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas da Universidade
Nova de Lisboa, 1997 (policopiada).
Passarei a citar esta obra por Silva, 1977.
4] Ensaiei-a, sem rigor metodológico
definitivo, na obra cit. na nota anterior.
Ver, por exemplo, 1º vol., p.37 e seguintes.
A continuação e aprofundamento deste
trabalho, que considero indispensável,
só poderá ser desenvolvido em equipa
e sobre uma “base de dados” de construção
relativamente complexa.
5] França José-Augusto, Lisboa pombalina
e o iluminismo. Lisboa, Bertrand, 1977,
p. 140.
6] Idem, ibidem, p. 309, transcrevendo
o Alvará de 12 de Maio de 1758.
7] Silva, 1997, p. 71.
[50] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
reconstruída encheu-se de marcas de diferenciação muito
profundas que vão da área dos lotes, à interrupção, sem
ordem, da malha contínua, à composição das fachadas, dos
interiores e dos logradouros.
Excepcionalmente, esta “segunda arquitectura pomba-
lina” permitiu a edificação de conjuntos de rara qualidade,
como é o caso maior dos prédios da Rua do Alecrim, na
sequência do Palácio Quintela-Farrobo e os fronteiros, após
à Travessa do Ataíde, edificados ao longo da década de 1780.
A sua marca de particularidade consiste no tratamento dos
pisos térreos, de lojas e sobrelojas, dotados de complexa e
erudita emolduração, com almofadas rectangulares que
preenchem os panos de parede e enquadram os vãos com
expressiva plasticidade, adequando-se ao cenográfico declive
da rua.
O que predominou, no entanto, nesses anos iniciais do
iluminismo mariano – mais livre e prospectivamente mais
incerto do que o pombalino – foram marcações individuali-
zadas na composição das fachadas. Por exemplo, frente à
Igreja dos Mártires, o prédio que torneja para a Travessa
Estêvão Galhardo (hoje Rua Serpa Pinto), concluído em 1782,
apresenta, nos vãos de sacada, uma molduração das vergas
superiores, desenhando uma espécie de sanefa inscrita, sim-
bolizando assim o lugar de um andar nobre que é intrinse-
camente estranho à programática predial fundadora.
Mais abaixo, na mesma Rua das Portas de S.ta Catarina,
no actual nº 66 - 74, construído em 1788 para Joaquim Pereira
Souza Peres, a ornamentação das molduras estende-se a
todos os andares e extravasa para as sacadas onduladas:
existem mísulas, fechos e frontões, propondo um enrique-
cimento lumínico que, evidentemente, manifesta um gosto
rococó, talvez proposto pelo arquitecto Manuel Caetano
de Sousa, autor da Igreja da Encarnação e, do outro lado
da futura Praça Luís de Camões, do célebre prédio do
Manteigueiro (no gaveto entre as ruas da Horta Seca e da
Emenda), concluído no ano anterior.
Na década de 1790, multiplicam-se as situações que aca-
bámos de exemplificar. É o caso dos prédios que se con-
frontam, no cruzamento da Rua e da Calçada do Ferragial,
edificados em 1795. A diferenciação construía-se pela exis-
tência de dois andares sobrepostos de sacadas, a introdução
de mísulas e fechos marcando a entrada principal e arti-
culando-a com a sacada superior, sobretudo pelos emoldu-
ramentos particularizados da totalidade ou de alguns vãos,
conjunto de recursos decorativos que eram reabsorvidos na
planimetria global e que só um olhar atento pode captar.
As opções estilísticas para esta discretíssima elaboração
da diferença estavam compendiadas e vulgarizadas e, quer
afirmassem um gosto volumétrico de ressonância barroqui-
zante – nos enrolamentos das mísulas, na ondulação das
balaustradas, nos concheados dos fechos – quer empirica-
mente anunciassem uma estética mais linearizada de suges-
tão neo-clássica – nos emolduramentos inscritos das vergas
superiores com encaixes geometrizados –, caracterizam-se,
globalmente, por uma secura do talhe das cantarias que
acentua a sua submissão à massa arquitectónica da fachada.
No entanto, as marcações ornamentais não devem ser
desprezadas porque enunciam um desejo de enriquecer e,
tenuemente, diversificar os prospectos elaborados trinta
anos antes, através de apropriações mais ou menos indivi-
dualizadas. Ou seja, elas concretizam a fuga à “monotonia
que gela” na expressão feliz de Cyrillo que seria, segundo
[51] A Arquitectura da Baixa Pombalina: Cem anos de História
ele, a principal inimiga da arquitectura de Lisboa, entregue
a “pedreiro(s) ou canteiro(s) feito Architecto(s)” cujos “patro-
nos” “de boa fé” “ordenará fazendo-o subir degrau a degrau
constituindo o Architecto de sua nação com o aprendiz de
Sargento-mor ou Marechal de engenheiros”8. E embora as
discretas casas-nobres que vimos referindo não correspon-
dessem decerto ao modelo idealizado por Cyrillo – que terá
trabalhado no interior de algumas delas como decorador –,
e o seu desenho fosse com certeza devido a “canteiros” e
“pedreiros”, “feitos arquitectos” na Casa do Risco das Obras
Públicas, nem assim se pode ignorar os dinamismos em
presença e a vontade de moldar a cidade fora das normas
estritas, unificadas e centralizadas da reconstrução, sem
lhe construir alternativa mas introduzindo-lhe o pulsar de
uma sociedade que, incipientemente, se preparava para
proclamar os direitos de cada um.
À medida que se caminha para o final do século, o eclec-
tismo acentua-se no corpo da cidade reconstruída mas,
para rigorosamente o verificar, será necessário dar uma
continuidade sistemática a alguns estudos já realizados.
Além de toda área do Chiado e envolventes até às ruas das
Flores da Emenda e da Horta Seca, será preciso inventariar
a Rua da Madalena cujos primeiros prédios são posteriores
a 1800. Em alguns casos, como creio que acontece no notá-
vel nº 5-9 da Rua das Flores9, deparam-se com situações de
aproveitamento e integração de construções anteriores que,
do ponto de vista patrimonial, levantam novas questões,
permitindo aflorar tempos e factos urbanísticos e arquitec-
tónicos anteriores ao terramoto.
Por outro lado, há que considerar que as alterações bre-
vemente enunciadas não se esgotam nos prospectos de
fachadas dos prédios pombalinos. Na verdade, edificam-se,
nesses anos finais do século XVIII, algumas importantes
casas particulares de que os exemplares mais destacados
são o Palácio Quintela-Farrobo na Rua do Alecrim, já con-
cluído em 1787, quando William Beckford o visitou10, e o
Palácio Castelo Melhor, frente ao passeio Público, cuja edi-
ficação, não concluída, decorreu entre 1791 e a morte do
seu arquitecto Francisco Fabri, em 1817.
Estas duas peças referenciais da arquitectura mariana
manifestam, a primeira a continuidade de um “gosto lis-
boeta” ante-terramoto que José Sarmento de Matos conota
com o Palácio do Lavradio11, a segunda uma marca italiani-
zante de elegante estética neo-clássica, depois “barroqui-
zada”, em ciclo revivalista, pelas obras do Marquês da Foz
em finais do século XIX. Elas tiveram certamente impacto
nas práticas da arquitectura corrente, reforçando a vontade
de aformoseamento da cidade que começava a esquecer-se
da tragédia do terramoto. O mesmo terá acontecido com a
edificação do Teatro de S. Carlos, 1792, encomendado por
Pina Manique ao arquitecto José da Costa e Silva. A sua
implantação, na proximidade da bela Igreja dos Mártires de
Reinaldo Manuel, acabada de inaugurar, rompe, em largo
propositado, a correnteza da Rua Nova dos Mártires (hoje
Serpa Pinto) e articula-se dinamicamente com a Rua dos
Duques de Bragança.
Este foi o primeiro acto de alteração da malha contínua
da urbanística pombalina para o sítio mas, logo depois, o
Quintela-Farrobo abriu também um pequeno largo, frente
ao seu palácio da Rua do Alecrim, interrompendo a conti-
nuidade da Rua do Alecrim e fazendo-a comunicar com a
Rua das Flores.
8] Citado por Gomes Paulo Varela,
A confissão de Cyrillo. Lisboa: Hiena, 1992,
p.16-17.
9] Ver mais informação, mais
problematizadora do que conclusiva, em
Silva, 1997, p. 124-126.
10] Diário de William Beckford em Portugal e
Espanha. Lisboa: Biblioteca Nacional, 2ª
ed., 1983, p.163.
11] Matos José Sarmento de, “Palácio
Lavradio” in Dicionário da Arte Barroca em
Portugal. Lisboa: Presença, 1989, p. 257-259.
[52] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
Mais a cima, mantinham-se as ruínas, pobremente habi-
tadas, do Palácio Marialva, frente ao Largo das Duas Igrejas.
O projecto, que talvez Eugénio dos Santos chegou a delinear
para a sua reconstrução, nunca se concretizou e o lugar
foi ficando expectante até à década de 1860, quando a edi-
ficação do monumento a Luís de Camões lhe encontrou
uma vocação romântica, confirmando uma opção urbanís-
tica pela interrupção da malha pombalina em pequenos
espaços de lazer e convivencialidade que foram civilizando
Lisboa.
Os anos românticosQuando o Antigo Regime ruiu, na sequência da Revolução
de 1820, a Intendência Geral das Obras Públicas não deixou
de funcionar. Até 1833, a sua “Caza das Confferencias” manti-
nha “as arrematações dos chãos de Cazas que forão incendiadas
pelo incendio sucessivo ao Terramoto” e os “Inspectores dos
Bairros” asseguravam as requeridas vistorias, sob o controlo
do “Intendente Geral das Obras Publicas” “encarregado por Ordem
Regia da execução da Planta desta Cidade”, “na conformidade
do Real Decreto de 1769”. Estas funções eram exercidas,
desde 1803, pelo “Major Architecto da Cidade Joze Bento de
Sousa Fava”12.
De acordo com esta legislação e respectivos procedimen-
tos, continuava-se a desentulhar terrenos, demolir ruínas e,
com pouco sucesso, impelir os proprietários à edificação.
Ou seja, oitenta anos passados sobre o terramoto, muito
havia a fazer ainda para cumprir “o Real Decreto de 1769”.
Casos célebres de incúria, de responsabilidade aristocrática,
permaneciam, por exemplo, no lado ocidental do Rossio, no
Lago da Anunciada, na Rua das Portas de Santo Antão ou no
“Tesouro Velho” onde parte das ruínas do Paço dos
Braganças se mantinham, ainda em 1823, quando o Conde
de Farrobo queria lá construir a sede da Assembleia
Portuguesa, “albergava trezentas e tantas pessoas pobres
que abusivamente e sem título algum legítimo ali tem cons-
truído as suas pequenas barracas”13.
O tempo era de crise profunda, motivada pela indepen-
dência do Brasil e a longa guerra civil que já se adivinhava
e se prolongará até ao meio do século. Neste contexto,
houve um dramático abrandamento das frentes de traba-
lho, relacionadas com a reconstrução da cidade, e surgiram
novas e complexas urgências. Entre elas, destaca-se a fun-
cionalização de dezenas de conventos, “libertados” pela
aplicação da lei de extinção dos estabelecimentos religiosos
de 1834.
De um modo geral, poucas foram as situações de demo-
lição integral, como aconteceu com os conventos da
Trindade e dos Camilos, e, parcialmente, com o do Corpus
Christi. O que houve foi, sobretudo, reconversões internas
de usos para a instalação das novas responsabilidades do
Estado, quase sempre realizadas empírica e pobremente,
sob a pressão das necessidades, da inexistência de reflexão
urbanística global e de dramática falta de meios. Foi nestas
obras que, nos anos de 1830 e 1840, se ocuparam os arqui-
tectos das Obras Públicas, sucessores, sem particular desta-
que, do ensino de Reinaldo Manuel.
Ou seja, a nacionalização dos conventos, transformando-
-os em escolas, hospitais, quartéis, hospícios ou sedes de múl-
tiplos serviços da nova burocracia, raramente fábricas ou
casas particulares, teve um imenso impacto sociológico e
simbólico mas pouco alterou o desenho da cidade, sendo
12] Cit. in Silva, 1977, 1º vol., p. 223.
13] In Silva, 1997, p. 234.
[53] A Arquitectura da Baixa Pombalina: Cem anos de História
que até as cercas muitas vezes se mantiveram. A abertura de
algumas ruas novas – a Rua Nova da Trindade, a Travessa
Nova de S. Domingos, a Rua dos Duques de Bragança ou o
alargamento da Rua do Marquês do Alegrete – não contraria
esta reflexão global, nem contestou o “plano de reconstru-
ção” que continuou a ser considerado o instrumento nor-
mativo de intervenção na cidade, mas é verdade que a ima-
gem de Lisboa se distanciava da vivência Antigo Regime e
também da lógica programática daquele plano pombalino.
Simultaneamente, a Câmara Municipal, reivindicando
direitos de que o Marquês a havia despojado, foi-se tornando
a principal instância de intervenção urbanística e arquitec-
tónica, pretendendo marcar a cidade com os valores imagé-
ticos da nova situação política. Numa espécie de fluir empí-
rico, sem teorização, assim aconteceu no Rossio onde, ao
mesmo tempo que se construíam os últimos prédios pom-
balinos no lado ocidental da Praça, em terrenos que o Duque
de Cadaval mantivera até então expectantes, se decide edifi-
car o Teatro Nacional D. Maria II, na sequência do incêndio
que, em 1836, arruinara o edifício do Tesouro Público.
Inaugurado em 1846, o Teatro passava a coroar a Praça,
marcando-a com a sua arquitectura romanticamente neo-clás-
sica, da autoria do jovem arquitecto italiano Fortunato Lodi,
escolhido com escândalo, depois de um concurso público a
que se apresentaram diversos arquitectos das Obras Públicas
sem que nenhum tivesse alcançado o primeiro prémio.
À volta, a Câmara decidiu mandar calcetar a Praça, com um
belo motivo decorativo ondulado. O monumento a D. Pedro IV,
finalmente inaugurado em 1870, depois de numerosos pro-
jectos que se sucederam desde 1822, proclama a apropriação
burguesa do Rossio, amaciando o seu claro desenho pomba-
lino com os valores difusos do urbanismo romântico.
Em toda a área da reconstrução, foram-se multiplicando
as marcas eclécticas e dispersas da modernidade: o azuleja-
mento de algumas fachadas, o enriquecimento decorativo
de muitas outras, a alteração da composição dos pisos tér-
reos para os adequar às novas necessidades do comércio que
passa a ter nas vitrinas o seu rosto estruturador.
Deste modo, a Baixa foi-se tornando o espaço de repre-
sentação da Lisboa cosmopolita sem que ninguém contes-
tasse as numerosas alterações que tal imprimiu na coerên-
cia do projecto pombalino. Nos anos finais de oitocentos,
iniciaram-se as primeiras demolições integrais para edificar
edifícios mais ostensivos que, não poucas vezes, alteraram o
próprio loteamento.
SínteseÉ evidente que Lisboa Pombalina é esta cidade herdada
onde, em tempos recentes, se acentuaram as alterações,
mais graves e menos qualificadas do que as que nos
foram legadas pelo século XIX e as primeiras décadas do
século XX.
Salvá-la e requalificá-la será também estudar, rigorosa
e sistematicamente, o tempo longo da sua edificação, mani-
festo em marcas estilísticas diversas por onde flúi a
História. Terá que ser também detectar e valorizar a polis-
semia que a constitui, inscrita na eficácia do Plano cuja
grandeza tem, por enquanto, suportado, não só as moder-
nizações de sucessivas temporalidades como, mais grave-
mente, a incúria e algumas declarações de morte.
[54] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
[55] A Arquitectura da Baixa Pombalina: Cem anos de História
Projecto das Casas da Misericórdia na Rua de Cima, Cartulário Pombalino.
A Baixa Pombalina como elementoemblemático da cultura portuguesa e
imagem da sua projecção internacional
VascoGraçaMoura
[57] A Baixa Pombalina como elemento emblemático da cultura portuguesa e imagem da sua projecção internacional
A frol de todas as flores…e como ela é a frol de todas as f lores, agora mais do quefoi nem é nenhuma das edificadas.João Brandão
Visita da Rainha Alexandra de Inglaterra,desembarque das princesas Maud
e Victória de Inglaterra, Praça do Comércio,23 de Março de 1905. Autor: António Novaes.
Arquivo Municipal de Lisboa – Arquivo Fotográfico.
Parto da minha experiência recente de organizar uma anto-
logia de prosa e verso dedicada a Lisboa. Essa experiência
diz-me que uma antologia assim resulta sempre e necessa-
riamente numa panorâmica parcial e incompleta e portanto
numa aposta de resultado imprevisível. Sem contar com
os inúmeros textos da olissipografia especializada, pura e
dura, os casos literários de verso e prosa significativos e res-
peitantes a Lisboa também são tantos que nunca poderiam
caber numa antologia… Se, nos primórdios da nossa litera-
tura, e apesar do frémito da movimentação de massas que
anima os veneráveis fólios de Fernão Lopes, a importância
da cidade é sentida e se exprime como predominantemente
geopolítica e, depois, como imperialmente geo-estratégica
até bem dentro do século XVII, inclusivamente para aqueles
que queriam ver os Filipes transferirem a capital da União
ibérica para a foz do Tejo, já, de Nicolau Tolentino até
aos nossos dias, se pode dizer que Lisboa existe em milhares
de “situações e testemunhos de cultura” e em milhares
e milhares de páginas, do Marquês de Fronteira e Alorna
a Eça de Queirós, de Ramalho Ortigão, Cesário Verde, Fialho
de Almeida e Júlio César Machado a Rodrigues Miguéis,
David Mourão-Ferreira, Cardoso Pires, José Saramago,
António Lobo Antunes e tantos outros, como realidade his-
tórica, social, política, económica, cultural, ao sabor das
estéticas e das correntes literárias, dos estilos e das idios-
sincrasias, das ópticas de enfoque e das sensibilidades
expressivas, dos enredos e das vistas e deambulações consi-
deradas, nessa imensa “prosopopeia” por que se desenvolve
a sua presença, nas linhas ou nas entrelinhas.
Na poesia, Lisboa começa por marcar presença com as
célebres “barcas novas” de João Zorro. Mas, segundo Frei
Bernardo de Brito, também o Infante D. Pedro, o das sete
partidas, se inspirou nela. Foi até, muito provavelmente, o
primeiro poeta português a referir-lhe em verso a fundação
por Ulisses e também a afirmar a origem lisboeta da mãe do
cartaginês Aníbal…:
Perque tu foste acolheyta
Daquelle Grego sesudo
Tão matreiro
A te fez toda bem feyta
Neste logo tão sabudo
A neste oiteiro.
A depois de muitos segres
S’ergueo de tua semente
A desta terra
O Annibal Carthagês
Que ós Romãos, & sua gente
Armou guerra.
Também logo em Gil Vicente, Garcia de Resende e Camões
lhe encontramos afirmado o esplendor. É então que Lisboa
começa a existir como objecto de estudo descritivo, esta-
tístico e administrativo, e também como objecto estético.
Cerca de 1551-1554, surgem os primeiros olissipógrafos
encartados, Cristóvão Rodrigues de Oliveira e João Brandão,
este, inédito até 1923, mas que já lhe chamava “a frol de
todas as flores”… Pela mesma altura, Damião de Góis des-
creveu-a no seu latim de humanista e Jorge Ferreira de
Vasconcelos dedica-lhe uma página magnífica do Memorial
das proezas da segunda Távola Redonda (1567), em que o des-
critivo pitoresco se alia ao emblemático. É interessante
[58] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
observar aqui em que termos a mentalidade cultural vai
sendo sensível à configuração da paisagem: enquanto a
percepção do Infante D. Pedro assinala “um oiteiro”,
Ferreira de Vasconcelos vê “dois montes”. As sete colinas
ainda estão longe… Décadas mais tarde, Gabriel Pereira
de Castro explora epicamente as suas origens míticas.
E depois, a literatura tem vindo a fazer o resto.
É já nesse plano, que toma Lisboa como único tema de
referência literária, que em 1625 foi publicada em Lisboa,
na oficina de António Álvares, uma Relação em que se trata e
faz uma breve descrição dos arredores mais chegados à Cidade de
Lisboa & seus arrebaldes, das partes notáveis, Igrejas, Ermidas &
Conventos que tem, começando logo da barra, vindo correndo por
toda a praia até Enxobregas & daí pela parte de cima até São Bento
o novo.
Joaquim de Vasconcelos supunha tratar-se de um resumo
do Livro das grandezas de Lisboa, de Frei Nicolau de Oliveira,
publicado em 1620, admitindo até que fosse este o seu
autor. Esta hipótese, a ser verdadeira, envolveria uma utili-
zação dos mesmos materiais de informação para duas obras
completamente diferentes…
A impressão que se tem é a de que o autor, fosse ele quem
fosse, tinha perante si uma planta da cidade, do tipo da que
Braun e Hogenberg dedicam a Lisboa nas Civitates Orbis
Terrarum (1572), e a foi seguindo com certa minúcia e em
“perspectiva cavaleira” ou bird’s eye, detendo-se eventual-
mente nas legendas numeradas que algumas dessas plantas
traziam em rodapé e encadeando o discurso poético a par-
tir delas. Depois de um exórdio em que canta hiperbolica-
mente as grandezas e excelências de Lisboa, o anónimo
autor do folheto dá-lhe a situação geográfica genérica:
Situada no Ocidente,
na mais última das terras
que abrasada deixa o sol,
quando este hemisfério deixa;
Quase em trinta e nove graus
está situada & sujeita
a tal clima que parece
estar sempre em primavera,
e em seguida, passando a especificar, procede a uma
longa descrição muito concreta da periferia da cidade e
arredores, começando o seu percurso no sentido marginal
Poente-Nascente, e por isso vindo desde S. Julião da Barra e
Belém até à Madre de Deus e Xabregas, depois inflectindo
na direcção de Alvalade, S. Domingos de Benfica e Odivelas,
“e daí pela parte de cima, até S. Bento Novo”. O itinerário
segue portanto uma espécie de “espiral topográfica” que se
desenvolve da esquerda para a direita, detendo-se em cada
freguesia e respectivos monumentos, com especial destaque
para os lugares do culto e para um sintético enunciado das
funções, religiosas ou profanas, de cada construção ou ins-
tituição. Por vezes, há notas que se diriam de sugestivo
apontamento de reportagem, como esta:
A praia logo de Alfama
se mostra mais descoberta
& o lugar onde ancoram
suas lindas caravelas.
As muitas que aqui se ajuntam
em qualquer dia de festa
com as âncoras ao mar
[59] A Baixa Pombalina como elemento emblemático da cultura portuguesa e imagem da sua projecção internacional
& as proas postas em terra,
Fazem vista tão aprazível
& tão galharda presença
que julgareis que Neptuno
coroado vos festeja.
O texto é tipicamente barroco, em forma de romance
heptassilábico de rima toante, e torna-se sem dúvida enfa-
donha a leitura de uma só vez dos seus mais de mil versos,
com a repetição invariável, que acaba por ser mecânica, das
mesmas assonâncias. Mas há vários segmentos que escapam
a essa monotonia e que são excepcionais de vivacidade e
sentido do concreto, como os pontos em que se põe em relevo
a importância da relação da cidade com o rio e o mar, ou
aquele em que se faz a descrição dos armazéns da Casa da
Índia onde se acumulam as riquezas e os produtos vindos
do Oriente e também os
búzios, bárbara moeda
de Etíopes africanos
de retrocidas guedelhas,
ou ainda a parte relativa ao mercado da Ribeira, com as
bancas das fruteiras, das peixeiras, das hortaliceiras e
outras, aqui e ali com observações saborosas e anotações de
costumes, como esta:
Têm tal arte no vender
as salgadas pescadeiras
que o que vêm a dar por dez,
pedem por ele noventa.
E se acaso lhe acontece
haver pouco quem prometa,
ou respondem com anexins,
ou com palavras soberbas.
Esta regra é mui seguida
por todas as regateiras
que pouco estimam vender
com seu trato a consciência.
O pormenor chega às latrinas públicas, aludidas numa
perífrase de engenhoso conceito:
A casa de Jorge Seco
& não é piquena grandeza,
que para acções naturais
haja públicas secretas,
mas as fortificações referidas são apenas as ribeirinhas e
do castelo de S. Jorge não chega a falar-se. O autor ficou-se
pela periferia urbana. Foi isso o que ele viu e registou.
Entretanto, o olhar literário sobre Lisboa foi-se alterando
ao longo dos séculos. Depois do terramoto de 1755, a cidade
passou a ser encarada a partir de uma vista concentrada
na zona reconstruída, a Baixa Pombalina, que se tornou
emblemática da cidade e de que adiante se falará mais
de espaço, enquanto se tornou quase um lugar comum,
nos últimos anos, falar de Lisboa como uma “cidade branca”.
Esta qualificação encontrou grande acolhimento por
parte de algumas personalidades ligadas à cultura francesa,
manifestamente esquecidas das coordenadas vibráteis do
[60] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
impressionismo e mais empenhadas em ver e falar de uma
Lisboa folcloricamente miserabilista para consumo de inte-
lectuais despaísados do que da cidade na sua real aparência.
Essa aparência, no que em Lisboa é realmente caracterís-
tico como atmosfera, ressalta mais da esplêndida economia
de irresolvidas musicalidades de uns versos de Eugénio de
Andrade em que se combinam outras tonalidades:
Lisboa
Esta névoa sobre a cidade, o rio,
as gaivotas doutros dias, barcos, gente
apressada ou com o tempo todo para perder,
esta névoa onde começa a luz de Lisboa,
rosa e limão sobre o Tejo, esta luz de água,
nada mais quero de degrau em degrau.
Rosa e limão, essas cores, levemente aciduladas, que tam-
bém podemos encontrar na pintura de Carlos Botelho, são
ainda hoje a pátina luminosamente imponderável da cha-
mada Lisboa Pombalina, erigida por ordem do Marquês de
Pombal depois do terramoto que arrasou a cidade em 1755.
Nesse coração de Lisboa, que hoje suscita poéticas e deva-
neios em que a luz e a geometria se combinam, o espaço
urbano estrutura-se segundo uma lógica ortogonal, pela
repetição de módulos semelhantes, explicáveis pela produ-
ção em série de elementos destinados a serem montados
rapidamente no local da edificação, e segundo uma aplica-
ção da Razão ao urbanismo que, na época, como José-
Augusto França demonstrou, tinha muito de iluminista e,
acrescentemos, o seu quê de totalitário.
Numa bela conferência de 1947, intitulada Os poetas de
Lisboa, Mário de Albuquerque resume exemplarmente as
poéticas de Lisboa nos séculos XVII e XVIII: “É volumoso este
cancioneiro de Lisboa dos séculos XVII e XVIII. Nele há ver-
sos solenemente académicos e versos cantantes de romance
popular, embrincamentos gongóricos e simplicidades líri-
cas. Tudo a musa de Lisboa registou, umas vezes anonima-
mente, outras sob autoria declarada: galanterias, devoções,
mundanismos, calamidades, casamentos principescos, fes-
tas e até crimes e suplícios. Só sobre a inauguração da está-
tua de D. José temos uma infinidade de composições, pois
não houve, nesta loquaz cidade, poeta louvaminheiro que
não deitasse soneto. A tragédia de 1755 (…) encontrou eco,
não só na poesia portuguesa, mas, por toda a Europa desde
a Inglaterra até Hungria. Infelizmente, todo este vasto labor
poético de ocasião está longe de corresponder à grandeza
da tragédia”. Por isso prefiro, quanto ao terramoto e à
reconstrução que se lhe seguiu, um texto, que considero de
grande qualidade literária, de clara apologia das medidas
tomadas pelo Marquês de Pombal a seguir à catástrofe, assi-
nado sob o pseudónimo de Amador Patrício de Lisboa e
publicado logo em 1758 a apresentar o elenco resumido das
providências adoptadas.
Mas o tempo passou, o regime despótico de Pombal tam-
bém, e hoje a Baixa de Lisboa constitui uma grelha regular
para a deambulação e a divagação que deixou marcas fun-
das na nossa cultura, desde o satanismo, entre o ingénuo e
o romântico, de algum Guilherme de Azevedo e de algum
Gomes Leal, até à exactidão dos registos de um Cesário
Verde, cantor do spleen e das fundas melancolias oitocentis-
tas do cair da noite à beira Tejo numa cidade ainda ilumi-
[61] A Baixa Pombalina como elemento emblemático da cultura portuguesa e imagem da sua projecção internacional
nada a bicos de gás, realisticamente povoada por tipos bur-
gueses e populares e suscitadora de um imaginário roman-
ticamente nostálgico de outras eras, e depois, até Bernardo
Soares, semi-heterónimo de Pessoa, a calcorrear a Rua dos
Douradores, mergulhado numa tão abissal desistência de
tudo que já nem sequer comportava espaço para o tédio,
passando por Eça de Queirós e os seus vivos retratos de per-
sonagens ligadas ao poder e à alta burguesia da segunda
metade do século XIX, e pelos intelectuais que, ao sabor dos
vários “ismos” do século XX, fizeram de Lisboa, sucessiva-
mente, uma ressonância interiorizada e proustiana, um
lugar conspirativo da resistência republicana ou do comba-
te proletário, um território do anedotário pequeno-bur-
guês, um espaço de agonia existencial, um enfoque da
memória pitoresca, um terreno de sarcasmos e ironias sur-
realistas e pós-surrealistas, antes de terem chegado a pós-
modernismos e minimalismos de vário sinal.
Os exemplos seriam muito numerosos. Limitar-me-ei a
citar, de entre as páginas mais despretensiosas e eficazes que
conheço, uma descrição de pombos na rua, num dos pri-
meiros romances de Aquilino Ribeiro, Lápides partidas, a que
sugiro sejam agregados vários textos de Alexandre O’Neill
entre a ironia e a ternura do quotidiano lisboeta, outros tan-
tos de David Mourão-Ferreira, que da cidade nos deu algu-
mas das imagens mais intensamente líricas das últimas
décadas, e uma extensa deambulação íntima de José
Cardoso Pires, Lisboa, livro de bordo, publicada pouco antes de
ele morrer sob uma epígrafe de Cervantes: “Tierra, tierra!
Aunque mejor diria Cielo, Cielo! Porque sin duda estamos en
el paraje de la famosa Lisboa”. Mas qualquer destaque, e este
também, acaba por ser muito injusto para com os omitidos.
A grande produção cultural lisboeta do século XX portu-
guês, nas artes, nas letras e no jornalismo, prende-se, quase
toda e quase sempre, com esta Baixa lisboeta e alguns dos
seus lugares de peregrinação: o Martinho (do Rossio), onde
perpassam as sombras de Nicolau Tolentino e de Bocage,
o Grémio, a Casa Havaneza e Hotel Bragança, tão caros
às personagens de Eça de Queirós, a Brasileira do Chiado,
com a sua tradição de polémicas, cavaqueiras, conspirações
e bengaladas ao longo de gerações de escritores e artistas,
a Livraria Bertrand e o vulto de Aquilino e dos seus amigos,
o Martinho da Arcada, onde o fantasma de Fernando Pessoa
ainda se diria que vai reexaminando coloquialmente a sua
galeria de heterónimos e bebendo copinhos de aguardente,
o Café Gelo e o cadavre exquis dos surrealistas…
A muito maior difusão que a cultura portuguesa tem
hoje, no estrangeiro, transporta consigo uma enorme dose
de informação, quantitativa e qualitativa, sobre Lisboa e,
inevitavelmente, sobre a Lisboa pombalina.
Esta é a Baixa que se desenvolve sobretudo no vale que se
encontra entre as colinas a nascente e a poente do coração
pombalino e suas adjacências já em subida, em cujos
nomes de ruas perpassa ainda o eco das antigas corporações
dos ofícios mecânicos e cujo vestíbulo de honra se abre na
Praça do Comércio, antigo Terreiro do Paço, com a nobreza
grandiosa da sua escala, o contraponto lateral das suas arca-
das, a simetria da sua organização espacial, o seu diálogo
com a vasta anchura do rio e os efeitos de luz, água, névoa
e gaivotas, variando de hora para hora, do gris pérola ao vio-
leta, naquele lugar.
Não compreenderemos nada de Lisboa, nem do que
sobre ela se escreveu, se não calcorrearmos as ruas da Baixa,
[62] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
a diferentes horas do dia, procurando reorganizar mental-
mente a topografia, memorizar as cores, registar o fervilhar
humano, reinserir o todo numa disponibilidade da alma
para outras aventuras e percursos. Entre eles, passar à noite
pela Praça do Município com efeitos espectrais da ilumina-
ção sobre o calcário das fachadas e o pelourinho no meio e,
sempre, a cenografia da arquitectura pombalina a recortar-
-se no fundo. Depois, podemos subir até ao Castelo de
S. Jorge, andar por ruelas estreitas de casas de gente modes-
ta, aqui e ali a rasgarem-se para a fachada de um palácio,
sentir a profusão de cheiros de ervas e flores, ver o violento
borrão vermelho das sardinheiras ou o baloiçar de roupa de
pobre pendurada a secar nalgumas janelas, ouvir ainda
algum pregão de vendedeiras esganiçadas aqui e ali, des-
frutar de um panorama único sobre a cidade, o rio, a “outra
banda”, ou, do lado oposto, subir até S. Pedro de Alcântara
e, no limite do Bairro Alto, beber as vistas no sentido inver-
so, com massas sucessivas de casario e de telhados sobre-
pondo-se uns aos outros, entrecortadas de vegetação, enci-
madas pela plataforma grandiosa do Castelo.
Deste conjunto se desprende uma alma da cidade que
depois vai repercutir noutras áreas dela, nomeadamente
nas zonas novas em que, nos anos 40, se deu um revivalis-
mo arquitectónico inspirado na escala e na traça dos pré-
dios da Baixa.
O encanto de outros pontos de Lisboa é de diferente
natureza: alguns aspectos da Avenida da Liberdade, que pro-
longou, em fins do século XIX o “passeio público”; o toque
napolitano do Teatro Nacional de S. Carlos; o conforto bur-
guês e também as políticas de alojamento social de outros
tempos ainda visíveis nas chamadas Avenidas Novas; as zonas
mais ou menos aristocráticas da Estrela e da Lapa; o alas-
tramento popular da Madragoa a Santos, também com os
seus palácios e ruelas; certos lugares de convivialidade,
pequenas tascas e restaurantes, larguinhos modestos, bulí-
cios de bairro; alguns, mais raros, exercícios de arquitectu-
ra moderna que alcançam o milagre de não aviltarem a
cidade; uma série de edifícios monumentais, nomeada-
mente de igrejas e conventos, de idade venerável e estilo
variado, do gótico ao manuelino e ao barroco; enfim, a
maneira como a cidade se desdobra para a sua periferia.
Se é verdade que Lisboa, ainda hoje, beneficia do seu cen-
tralismo geográfico, histórico, político, económico, finan-
ceiro e cultural, reforçado pelo gigantismo das proporções
que assume à escala nacional por concentrar, dentro de si e
à sua volta, cerca de quinze por cento de toda a população
portuguesa, é também verdade que nela se polariza a
memória colectiva em termos muito especiais: ao longo dos
séculos, Lisboa foi palco de grandes acontecimentos históri-
cos determinantes para o país (partida da armada de Vasco
da Gama, fabuloso entreposto de riquezas exóticas, início
da Restauração de 1640, terramoto de 1755, proclamação da
República, revolução do 25 de Abril…); encontram-se nela
alguns dos nossos monumentos emblemáticos; manteve
quase sempre uma importante hegemonia cultural sobre o
resto do território; foi sempre a porta de entrada de novi-
dades de toda a ordem e a grande placa giratória dos con-
tactos cosmopolitas; mantém-se como a cidade fundada por
um Ulisses mítico que lhe marcou para sempre a onomástica
(Ulissipo / Ulissipona / Lisbona / Lisboa…) e como lugar
onde ancoram uma epopeia que lhe cantou as naus da
expansão marítima e uma nostalgia ainda perplexa no
[63] A Baixa Pombalina como elemento emblemático da cultura portuguesa e imagem da sua projecção internacional
avesso desse tempo perdido imperial, na memória de faça-
nhas e naufrágios, de riquezas e desvairados exotismos, de
triunfos e desgraças, de grandezas e misérias, de que bem
pode ser a epítome uma passagem da Relação de 1625 que
comecei por citar:
Mas como tudo enfim acaba,
anda a fortuna alterna,
acha só memórias tristes,
com sentimentos de ausências.
A este lado inevitável da íntima fisionomia lisboeta,
acresce, entrosada com ele, uma dimensão mais “autócto-
ne” e popular, ligada a devoções e tradições, às actividades
modestas da pequena burguesia e do seu associativismo
tão bem espelhadas nalguns célebres filmes dos anos qua-
renta (e, hoje, nalgumas das mais belas crónicas de Lobo
Antunes), ao funcionalismo público, aos ofícios e cos-
tumes das camadas mais humildes da população, às pro-
fissões marítimas, à chegada e partida dos barcos na foz
do Tejo.
É aqui que surge o fado, de tradição relativamente recente
(fins de século XVIII), de origem transoceânica, pois foi
provavelmente importado de um Brasil em cuja música já
se misturavam ecos africanos e resulta da transformação
das modinhas e lunduns ali cantados, e de estatuto rasteiro,
uma vez que começou a ser cantado e dançado em tabernas
e bordéis da capital. Do tipo do fadista de então trata
Ramalho em termos profundamente enjoados. Ainda mais
recente (e despropositada) é a temática que pretenderia
alçar o fado a uma espécie de ontologia da alma portu-
guesa, nas suas coordenadas de fatalismo e destino, amor
louco e ciúme dilacerante, saudade e regresso, violência e
paixão, noite, rio, mar, vento e temporais, crime e remorso,
vinho, navalhadas e solidão trágica da voz entregue a melis-
mas caprichosos e enrouquecidos. E mais recentes também
são a sua vocação para a qualidade literária exigente, o con-
tributo de poetas conhecidos, a recuperação de textos do
património literário português pelos cantores, a procura de
novos caminhos musicais, por vezes de resultados discutí-
veis no seu experimentalismo, mas em que voltam a reen-
contrar-se acentos do samba, do jazz, da morna cabo-ver-
diana, numa visceralidade instintiva que continua a ligá-lo
a Lisboa, mas lhe alarga a respiração para além do perímetro
das fronteiras tradicionais.
Hoje, um olhar sobre Lisboa volta a ter de considerar
uma extensão que vai de Belém aos terrenos da Expo’98, de
algum modo recuperando o da vista do século XVII do autor
anónimo que citei. Belém, pelo seu património monumen-
tal e pelo Centro Cultural ali edificado há poucos anos.
Os terrenos da Expo’98 pela nova e moderníssima parte da
cidade que ali surgiu do nada. A zona ribeirinha, ao longo
do rio, entre estes dois pontos extremos, pela reabilitação
que nela tem sido progressivamente levada a cabo, de modo
a devolver o rio à cidade.
A escrita literária tem acompanhado todas essas fases.
Documentam-no excelentemente antologias gerais como
Saudades de Lisboa, de David Mourão-Ferreira, a Lisboa,
de Tomás Ribas, e Lisboa com seus poetas, de Adosinda
Providência Torgal e Clotilde Correia Botelho, ou, numa
perspectiva mais monotematicamente orientada, as recen-
tes e imprescindíveis compilações de Marina Tavares Dias
[64] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
e Luísa Ducla Soares, respectivamente, A Lisboa de Eça de
Queirós e A Lisboa de Rodrigues Miguéis. À imagem destas últi-
mas compilações, diga-se que era possível fazer uma série
interminável de volumes A Lisboa de…
Não podemos falar da Lisboa pombalina sem procurar
reconstituir “uma” palpitação da cidade na sua diacronia.
Há que fazer ziguezagues no tempo. Há páginas da Lisboa
medieval, descrita por Herculano, que só eram possíveis a
partir da visão e da documentação da sua época. Há páginas
sobre o terramoto de 1755 que vêm do Abade de Jazente a
Hélia Correia, passando por Agustina… Há páginas de cró-
nicas e de epopeias, de memórias e de ficção, de teatro e de
poesia, numa catadupa e numa multiplicidade de registos
que se quereriam operantes pela própria variedade dos
géneros e dos autores e suas idiossincrasias.
Lisboa é talvez a única cidade europeia que renasce em
esplendor no seu centro urbano depois de uma catástrofe
com as proporções daquela que sofreu em 1755. Pompeia
ficou sepultada na lava para todo o sempre. Londres,
depois do grande incêndio, não deu lugar a um núcleo
arquitectónico tão coeso e esteticamente afirmado. Muitas
cidades bombardeadas na guerra foram reconstruídas
segundo o seu modelo destruído ou estranhos parâmetros:
de Varsóvia, que se diria um cenário de teatro, a Frankfurt,
que imita Nova Iorque à escala europeia… Mas nenhuma
que eu saiba, como Lisboa, deu lugar a uma reinvenção da
sua própria alma.
O facto de a catástrofe de Lisboa ter marcado profunda-
mente a consciência europeia insensivelmente transferiu
tais marcas para a importância da reconstrução como uma
referência cultural e civilizacional. E também o facto de se
tratar de um monumento à razão, à margem das utopias
urbanas de que os séculos XVI e seguintes foram férteis. E
até o facto de novas técnicas, incluindo a do pré-fabricado,
terem sido apuradas e postas em prática, sinal de um ali-
nhamento pioneiro com o progresso tecnológico.
De que essas marcas se radicaram na consciência inter-
nacional, chamemos-lhe assim, todos tivemos a prova no
alvoroço que suscitou o incêndio de 1988.
Por tudo isto, e também pelo muito que fica por dizer,
não é exagerado incluir a Baixa Pombalina entre os princi-
pais elementos emblemáticos da cultura portuguesa, sendo
um dos núcleos irradiantes fundamentais para a projecção
internacional dela.
[65] A Baixa Pombalina como elemento emblemático da cultura portuguesa e imagem da sua projecção internacional
José de Monterroso Teixeira
A Baixa Pombalina como referência de produção artística e literária e cenário
de uma tradição cultural
[67] A Baixa Pombalina como referência de produção artística e literária e cenário de uma tradição cultural
(…) A Lisboa material tem posições morais. Há sítios que dão, aos que os pisam uma individualidade. O lajedo e a cantaria consagram espíritos. Encontrar-se no Chiado – significa ter a finaflor da graça, a vivacidade conceituosa e costumes dissipados. Estar no Martinho – revela inspiração, divindade interior, lirismoe política. Ó Lisboa tu não tens caracteres, tens esquinas(…).14
No café “A Brasileira” do Chiado, daesquerda para a direita, Teixeira de
Pascoaes, Cristóvão Aires Filho, MatosSequeira, António Soares, Jorge Barradas,Joshua Beloniel, Augusto Ferreira Gomes,
o célebre empregado João Franco eAdolfo Castañe, 1928. Fotógrafo não
identificado, Arquivo Municipal de Lisboa – Arquivo Fotográfico.
Em 1 de Novembro de 1755, um furacão sísmico destruiu
a parte baixa de Lisboa, uma tragédia universal desestabili-
zou o optimismo filosófico europeu, racionalista e ilumi-
nado, segundo o qual, o mundo se regia por leis naturais.
Num país em estado de choque, surge, providencialmente,
o Marquês de Pombal para uma intervenção férrea. Fernando
Assis Pacheco recorda no seu poema15 qual foi o mote:
(…) Como as ordens de Sebastião José/ De Carvalho e Melo no ter-
ramoto,/ Cuidar dos vivos, enterrar os mortos,/ Digo que terra sacu-
dindo-se,/ (…)/ este amor que espera o arquitecto/ Eugénio dos Santos
para riscar/ (…)/ Moveu-se a terra, caíram casas, largou-se/ O rio Tejo
por Lisboa dentro./ (…)
Noutro poema16, num tom melancólico, evoca-se o trági-
co fenómeno, aludindo à comovida beleza de Lisboa
(…) Tudo aquilo num montão/ Que um imenso cataclismo/ Leva,
em ruínas, de roldão/ Para o mar cavado abismo (…)
Ou num registo épico17 de inspiração clássica:
(…) Assim, do meio de miséria tanta/ Te ergueu aquele que da
negra inveja/ oprime a vil garganta./ Ah! Chega ao grande conde, a
mão me beija/ A mão que te levanta (…)
Já se falou de utopia, de pragmatismo, naquilo que tam-
bém foi aproveitar a experiência (a razão e o saber provém
do novo empirismo) herdada da época joanina do alarga-
mento de ruas, já que a circulação estava espartilhada e as
carruagens eram cada vez mais luxuosas e de dimensão
mais aparatosa.
Em 1745 sairia um decreto que obrigava a que as ruas
tivessem de 20 a 25 palmos, e as principais cerca de 40 pal-
mos. As expropriações eram instrumento já utilizado e a
renovação do edificado constituiria a única forma de elevar
o estatuto da capital.
Poder-se-á falar de persistência. Recentemente, um livro
sobre a história da capital defende que Lisboa continua a
ser uma cidade de permanências. Parece então que o arqué-
tipo ordenador da monumentalidade da Baixa Pombalina é
o Torreão Filipino: Se eu fosse rei de Lisboa, seria em pouco tempo
rei do mundo, afirmava Carlos V, o que induz a outra dimen-
são da cidade, a qual repercute na instância simbólica do
Terreiro do Paço. Seu filho, Filipe II, vem como que a con-
cretizar essa profecia. A praça exercia um fascínio notável
sobre tantos estrangeiros que nos seus relatos de viagem
afirmaram:
(…) Certos lugares tornaram-se-me familiares: os jardins, os ter-
raços, o nobre espaço soalheiro do Terreiro do Paço, a mais bela
praça da Europa, envolvida em palácios com arcadas, e a escadaria
que desce até às águas do Tejo(…).18
O império marítimo alicerça a decisão de D. Manuel I,
num desígnio civilista, de se instalar na Ribeira das Naus
Aí vem a erguer o Paço Real, sinal de opulência, de dina-
mismo, ícone arquitectónico da expansão. O élan cons-
trutivo da época manuelina permitirá a Francisco da
Holanda o excesso de opinião: (…)Em Portugal, não há mais
nada senão Lisboa (…).19
Apreciemos a censura de Alexandre Herculano, de
nacionalismo romântico deslocado que o leva a condenar a
época dos Descobrimentos:
(…) cidade, donzela e pura do século XIV, porque rasgaste o teu
véu de inocência? Porque quebraste o cinto que te dera o rei que
14] Queirós Eça de, Prosas Bárbaras, 1ª ed.,
Lisboa, Círculo de Leitores, 1980.
15] Pacheco Fernando Assis, A Musa
Irregular, Lisboa, Hiena, 1991.
16] Paulino de Oliveira (1864-1914)
17] João Xavier de Matos (1730-1789)
18] Larbaud Valéry, Fermina Marques,
Lisboa, Livros do Brasil.
19] Holanda Francisco de Da fábrica que
falece à cidade de Lisboa, Lisboa: Livros
Horizonte, 1984.
[68] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
tanto te amou? Porque te aproximaste à foz do Tejo, convocaste os
estrangeiros e converteste a tua morada em lupanar?(…)20
De entre os cenários reconstrutivos venceu o que utilizava
a área mais atingida pelo terramoto sob uma matriz arqui-
tectónica inteiramente nova. Ao declarar que o comércio
era profissão nobre, necessária e proveitosa o Marquês proclama
também que um ordenamento produtivo presidirá à
erecção da nova cidade. Continuava-se uma ideologia mes-
teiral e mercantilista que o decreto de 1760 estabelece.
A malha urbana dos arruamentos entre as duas principais
praças irá desenvolver-se segundo uma lógica hierárquica
das actividades comerciais, criando um monopólio para
a Baixa.
Depois do terramoto de 1755, quando se reedificou a
cidade, o decreto de 15 de Novembro de 1760 determinou as
seguintes ruas, que são as que cortam da Praça do Commercio
ao Rocio, hoje Praça de D. Pedro:
Rua Nova d’El-Rei (Capellistas) – N’ella se devem arruar os mer-
cadores da classe de capella, applicando-se as lojas que d’elles sobe-
jarem para as vendas dos outros mercadores de loiça da India, de
chá, e mais fazendas do seu trafico.
Rua Augusta – Mercadores de lã e seda, e se não chegarem as
lojas devem tomar as da Travessa de Santa Justa.
Rua Aurea – Ourives do oiro, e as que sobejarem podem accom-
modar-se os relojoeiros e voluntários.
Rua Bella da Rainha (Rua da Prata) – Os ourives da prata, e nas
lojas que sobejarem se alojarão os livreiros que antes viviam na sua
vizinhança.
Rua Nova da Princeza (Fanqueiros) – Os mercadores de fancaria,
destinando as que sobejarem para os de quincalharia.
Rua dos Doiradores – Esta rua será destinada para os doirado-
res, bate-folhas, latoeiros de lima, e as lojas que ficarem livres pode-
rão ser para tendas, tabernas, ou outros misteres.
Rua dos Correeiros (Travessa da Palha) – Terão suas lojas os cor-
reeiros, selleiros e torneiros.
Rua dos Sapateiros (Arco do Bandeira) – Deverão arruar-se de
um lado os sapateiros, e do outro ficará livre para os diversos mis-
teres do povo.
Rua de S. Julião (Algibebes) – Será a primeira travessa, cortando
do nascente, e n’ella se arrumarão os algibebes.
Rua da Conceição (Retrozeiros) – Será a segunda travessa, e n’el-
la tomarão loja os mercadores de retroz.
Rua de S. Nicolau (Travessa de S. Nicolau, ou do Pote das Almas)
– Será a terceira travessa, e será destinada para as lojas de quinca-
lharias que ali couberem.
Rua da Victoria (Travessa) – Será a quarta travessa, e n’ella se
accommodarão os da quincalharia que da outra sobejarem.
Rua da Assunpção (Travessa) – Será a quinta travessa, e n’ella toma-
rão loja os da classe de sirgueiros, assim de chapeos, como de agulha.
Rua de Santa Justa (Travessa) – Será a sexta travessa e ultima,
que será destinada para os que não tiverem bastante acomodação
na Rua Augusta.
A oposição à reconstrução tinha vários fundamentos e
proveniências: a conspiração religiosa liderada pelos jesuí-
tas e pelos proprietários aterrorizados que punham em
causa a celeridade das operações; o Padre Malagrida que se
atreveu a escrever um opúsculo frisando que o Terramoto
tinha sido um castigo divino21.
Com instrumentos legislativos que favoreciam as expro-
priações e funcionários auxiliares, cujos nomes, como o de
20] Herculano Alexandre, O Monge de
Cister, 11ª ed. Tomo I, Lisboa: Livros
do Brasil.
21] Na consequência da publicação deste
escrito, foi entregue ao Tribunal do Santo
Ofício e condenado à fogueira.
[69] A Baixa Pombalina como referência de produção artística e literária e cenário de uma tradição cultural
Bota Abaixo, denotam o ritmo das operações, os trabalhos
de reconstrução avançaram. Entre 1755 e 1838 surgiram
cerca de 340 decretos e outros instrumentos legislativos
para enquadramento das obras de requalificação.
A Rua Augusta foi a que mais rapidamente mostrava um ali-
nhamento de fachadas bastante homogéneas, ao ponto de
William Costigan, um visitante estrangeiro do final do
século XVIII, a considerar a finest street com boas perspectivas
para o Castelo e para o Bairro Alto, começando a motivar o inte-
resse literário e de roteiro como via triumphalis da nova capital:
(…) Baixei o olhar entre o Castelo e o Carmo/ E daí no Terreiro, e
logo veio/ Não sei que frio súbito gelar-me/ Cortam-te os sulcos hirtos
pelo meio/ E bem se vê, de fundos quem os fez:/ Da praça aos cinco
golpes do teu seio/ Gravam-se a palma e os dedos do Marquês / / E
sob um arco de triunfo aberto/ Via-se à barra o arco da Aliança/
Encarnado o fantasma do Encoberto/ Em corpo de saudade e de
esperança/ Sopro de luz, de vento e azul étero/ Larguei à desfilada
erguendo a lança/ Pelas planícies desse Quinto Império (…) 22
A fisionomia da Baixa estava a consolidar-se para o futuro
e será o espaço dos artesãos, dos comerciantes e dos nego-
ciantes, o que vem a criar dificuldades para quem vivia fora
deste centro. Jácome Ratton dá eco desse problema derivado
da concentração (ou do monopólio), escrevendo em 1810:
A providência, por tanto dos arruamentos, que foi necessário
para accelerar a reedificação da Cidade, vem a ser hoje em dia gra-
víssimo prejuízo para o Público, visto a grande extensão a que tem
chegado a cidade de Lisboa; porque nada há mais inccomodo, e
mesmo dispendioso, do que terem os moradores d’Alcântara, da
Madre de Deus, de S. Sebastião da Pedreira, Arroyos, etc… de man-
dar buscar meio covado da baeta, ou meio oitava de retroz aos
arruamentos, em que se achão taes couzas”. Devia revogar-se este
regulamento ultrapassado pelo crescimento da cidade e propõe-se:
Por tanto deixe-se a cada indivíduo das classes pôr as suas lojas nos
bairros, e ruas onde lhes fizer arranjo e conveniência… porque deste
modo ficará o Público bem servido.23
A Praça do Comércio é o referente simbólico da praxis
Pombalina, espelhada na designação que o Marquês lhe
outorga em homenagem à classe que lhe dá o braço no seu
grande projecto.
Então é um lugar de subtracção e de ausência da Família
Real, que se esconde na Real Barraca no Alto da Ajuda, e da
aristocracia, exilada em solares e tendas de improviso.
(…) E tu, nobre, simétrico Terreiro/ Que a expensa de teus raros
obeliscos,/ Colunas tuas, malograr não ousas/ O nome adulador do
Paço antigo/ Que já te honrou! Tu opulento Empório/ Do que há
melhor no Mundo, e onde Astreia/ Contigo de Sobre Ó Cais precioso,/
Compêndio das Nações, que em ti se tecem/ Vínculo mútuo de pro-
míscuo sangue/ Que é sangue em giro o salutar comércio.(…) 24
A Praça vem a ser um espaço cerimonial, e mais tarde,
centro de poder. A Secretaria do Reino só no final do século
XVIII vem ocupar o Terreiro do Paço, e pouco tempo depois,
livreiros, a loja da Gazeta, e uma tenda de cartas de jogar,
procuram que se torne comercialmente atractiva.
(…) Veio o Marquês de Pombal e com o Comércio pode reedificar
esta grande cidade de Lisboa. No reinado de D. Maria I era tanta
a mercancia que estava todo o Terreiro do Paço feito um trapiche,
topetando as filas de caixa de açúcar com o cocar do capacete
do imortal D. José I, que daí podia contemplar a nossa pacífica
indústria.(…) 25
22] Costigan Arthur William, pseud. Cartas
sobre a Sociedade e os Costumes de Portugal:
1778-1779, Lisboa, Lisophima, 1989.
23] Ratton Jácome, Recordações de Jacome
Ratton sobre as ocorrências do seu tempo,
Coimbra I. Univ., 1920.
24] Tomás António dos Santos e Silva
(Tomino Sadino, 1751-1816).
25] Cláudio Aduano da Costa (1795-1866),
negociante e economista, in Revista
Universal Lisbonense, 1847.
[70] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
A cidade estabilizava o seu programa reedificador e as
actividades comerciais continuavam a dominar com a Bolsa
e a Alfândega a servirem de barómetro. O Rossio polarizava
a norte o outro cento nevrálgico da plataforma urbanística
da Baixa. Com a elegância do desenho de Carlos Mardel,
expressa na dupla cobertura, albergava o Palácio da
Inquisição, com uma estátua da Fé, da autoria de Machado
de Castro, simétrico ao Arco do Bandeira, outro sinal da
presença dos homens de negócio da órbita de Pombal que
dava passagem à Rua dos Douradores. Era chamada a Praça
das Paradas, e o seu intimismo atraía sucessivas multidões
e gentes em permanência.
(…) Qual tu, brilhante, esplêndido Rossio/ Onde a f lor militar de
lísia ufana/ Resenha um passar do brio e esforço/ Que, sem suas per-
fídias, tramas suas/ Ao corso e a seus colegas desafia! (…) 26
Os Anais do Rossio averbam a existência de vários bote-
quins literários e políticos (sobretudo o Nicola e o Botequim
das Luminárias) que marcaram a vida social e literária da
cidade e eram locais de vigilância policial pela frequência
que convocavam. Já desde os finais do século XVIII que
Bocage frequentava o Café Nicola, onde convivia, nomeada-
mente, com José Agostinho de Macedo. Uma noite, quando
dali regressava, foi detido por uma patrulha da polícia (…)
que apontando-lhe as pistolas aferradas, lhe perguntou quem era,
d’onde vinha e para onde ia. Bocage respondeu imperturbável: Eu
sou o Bocage/ Venho do Nicola/ Vou p’ro outro mundo/ Se dispara a
pistola(…)
Nos princípios do século XIX, o Intendente Pina Manique
ordenava ao inspector do Bairro do Rossio que as pessoas
que o frequentassem se demorassem o tempo preciso para
tomarem os refrescos, e o Aviso de 5 de Julho de 1800, diz
que se reuniam pessoas suspeitas na casa do café Nicola no
Rossio, onde conversavam em assuntos menos próprios,
especialmente na presente conjuntura.
O Teatro D. Maria II dá expressão institucional e arqui-
tectónica ao combate de Almeida Garrett, e a estátua de Gil
Vicente que encima o frontão consagra a inspiração bilin-
gue deste clássico que figura na história da literatura espa-
nhola com tantos merecimentos como na da portuguesa,
como nos recorda Ángel Crespo em Lisboa Mítica e Literária. 27
João de Deus ironiza, no contraste entre o Teatro do
Rossio e o “Teatro de S. Bento”, com o seu poema Forasteiro:
(…) No Rossio o Prior de Santa Iria/ Vendo um Palácio, disse ao
Canongia:/ – Que será isto aqui?/ – Dona Maria…/ Onde se repre-
sentavam as tragédias (…)/ Vai correndo a cidade, e, sempre atento,/
Pergunta noutro sítio?/ isto é Convento?/ Não! Isto é o Teatro de São
Bento,/ Onde se representam as comédias. 28
O poeta que introduz a nova corrente literária com o seu
Camões, bem pode ser um dos transeuntes que as gravuras
nos deixam ver. António Nobre dá-lhe a sua admiração nes-
tes versos:
(…) Ó Garrett adorado das mulheres/ Hei-de deixar-te, em breve o
meu bilhete/ À tua linda casa dos Prazeres (…) 29
No Rossio, a estátua de D. Pedro IV celebra o regime libe-
ral e a luta contra o poder napoleónico, enquanto o empe-
drado do brigadeiro Furtado e dos grilhetas do Limoeiro
procura aludir ao Mar Largo que nos liga ao Brasil, jovem
nação, da qual D. Pedro IV foi o primeiro Imperador:
26] Tomás António dos Santos e Silva
(Tomino Sadino – 1751-1816).
27] Crespo Ángel, em Lisboa Mítica e
Literária, Livros Horizonte, Lisboa, 1990
28] Crespo Ángel, op. cit.
29] Nobre António, Só, 17ª ed., Livraria
Tavares Martins, Porto, 1976.
[71] A Baixa Pombalina como referência de produção artística e literária e cenário de uma tradição cultural
(…) O mar sai da mão destes calceteiros/ Que logo de manhã se
ajoelham na rua/ A bater/ Nos cubos de pedra/ Como se eles fossem
pães de um tempo/ Inacabado.(…) 30
No tabuleiro da Baixa surge a plebeia Praça da Figueira,
irmã bastarda do Rossio. Foi a seu tempo designada de “Horta
do Hospital” (porque estava nas traseiras do imponente
Hospital Real de Todos os Santos), “Praça das Ervas” e “Praça
Nova”. Esta terminologia tê-la-á recebido em 1771, quando,
pelo decreto de 23 de Novembro desse ano, se estabeleceu a
instalação do mercado de hortaliça e frutas (a praça do mer-
cado do peixe na Ribeira Nova fora instituída em 1765). Eram
lugares onde passavam muitos vendedores ambulantes que o
comércio dos arruamentos não tolerava nas suas áreas e que
gerou sucessivas perseguições e editais de polícia.
(…) A beleza da Figueira, em cujo centro havia um mercado cons-
truído em 1885 (era dos mais notáveis exemplares de arquitectura
do ferro) e demolido no 2º quartel do século XX (anos 40), encontra-se
quase nas nuvens pois estando nela, o mais belo que se pode disfru-
tar é uma esplêndida vista do castelo de S. Jorge e do Casario que,
desde aquelas alturas se derramam até à Baixa. (…). 31
Em 1971, foi aí colocada a estátua de D. João I, da autoria
de Leopoldo de Almeida; em Novembro de 2001 o desenho
da praça foi alterado, e o monumento ao fundador da
Dinastia de Aviz passou a estar alinhado com a Rua da
Prata.
No ano de 1764, com a abertura do Passeio Público, a
lógica da construção de área verde numa extensão de
malha urbana geraria um espaço de sociabilidade e de
lazer que os blocos comerciais não apresentavam. Do dese-
nho de Reinaldo Manuel se evolui rapidamente para um
espaço menos formal em que os gradeamentos também
foram alterados. A sinuosidade inglesa servia melhor a
deambulação romântica que os seus frequentadores já exi-
giam, como é dito no poema “Civilizando Lisboa no
Passeio Público”:
(…) Há quem diga por é que muito enjoa/ No Passeio o haver Café
Concerto./ E eu temo que não é um desconcerto/ Querer civilizar
assim Lisboa.(…)
No reinado de D. Maria II o Passeio era muito animado e
a presença da corte legitimava uma frequência de alto nível.
Os espectáculos e as célebres iluminações fascinavam os
alfacinhas ansiosos de divertimentos próprios de uma gran-
de cidade. D. Fernando II dava o exemplo e a pintura de
Leonel Pereira, de 1856, revela a sua ligação à cidade e ao
beau-monde.
(…) Pelas tardes de Verão nos bancos gratuitos do Passeio goza-
vam-se suavidades de idílio (…). 32
A iluminação a gás com que foi dotado dava-lhe um clima
especial, e é nele que Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, seus
frequentadores, combinam escrever “O Mistério da Estrada
de Sintra”, ou onde Luísa e Jorge, personagens de “O Primo
Basílio”, marcam o seu primeiro encontro.
O Passeio Público daria lugar, no final do século XIX à
Praça dos Restauradores e à Avenida, grande mudança que
Carlos da Maia, de “Os Maias”, vem a encontrar quando
regressa a Lisboa:
Num claro espaço rasgado, onde Carlos deixara o Passeio Público
pacato e frondoso – um obelisco, com brasões de bronze no pedestal,
30] Armando Silva Carvalho, Calçada à
Portuguesa.
31] Crespo Ángel, Lisboa Mítica e Literária.
32] Queirós Eça de, O Mandarim, 12ª ed.,
Lello, Porto, 1935.
[72] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
erguia um traço de cor de açúcar, na vidraça fina da luz de Inverno:
e os largos globos dos candeeiros que o cercavam, batidos do Sol bri-
lhavam, transparentes e rutilantes, como grandes bolas de sabão
suspensos no ar. Dos dois lados seguiam, em alturas desiguais os pré-
dios, lisos e aprumados.33
A estruturação urbana e cultural do Chiado tem como
catalizador dois fenómenos: um, a construção do novo
Teatro da Ópera de S. Carlos, inaugurado em 1793, da auto-
ria de Costa e Silva – um projecto de ressonância neo-clássi-
ca italiano; outro, é o aparecimento de opulentas residên-
cias destas grandes figuras (que lideraram a iniciativa) liga-
das ao comércio e à finança, na emergência post-terramoto e
foram sucessivos Provedores da Junta do Comércio, entre as
quais se destacam os Quintelas, na Rua do Alecrim, os
Cruzes, no Largo do Calhariz (depois do incêndio da sua
residência na Praça do Comércio), o Ferreira Sola, na Rua
Garrett (palacete que Beckford criticou com inclemência), o
José Ferreira Pinto, de Cabeceiras de Basto, muito activo nos
negócios e que construiu residência no Largo do Chiado,
Manuel José de Oliveira, depois Barão de Barcelinhos, que
recuperou com magnificência o Convento do Espírito Santo
da Pedreira no fundo da Rua Garrett para aí se instalar em
morada doméstica (o que mais tarde veio a ser os Grandes
Armazéns do Chiado).
(…) Aí tem você S. Carlos, chique hem?/ Levou-o a comprar duas
cadeiras do lado do Rei (…) 34
Tal como João de Deus satirizou o Teatro das Comédias e
o Teatro das Tragédias, o São Carlos tinha dois espectáculos,
o do palco e o da assistência, cerimoniais artísticos que
mobilizavam a aristocracia e a burguesia endinheirada e as
elites cultivadas.
Em 1866, quando chega a Lisboa com vinte anos, Eça de
Queirós foi morar para o Rossio e com o seu círculo de ami-
gos que constituía uma das mais célebres gerações literárias
da cultura portuguesa, cultiva a boémia, a gastronomia e o
espírito de tertúlia.
Luísa Ducla Soares diz que foi neste período que ele ini-
ciou a sua vida literária e fixou para sempre a imagem da
capital e das suas gentes. As ruas, os largos, os teatros, os
clubes, os ambientes e figuras alfacinhas renascem na
extensa obra que escreveu.35 Quando se inaugurou a sua
estátua, Ramalho Ortigão acentuou o seu espanto e maravi-
lhamento para com a cidade: Lisboa foi (…) o seu laboratório de
arte, o seu material de estudo, a sua preocupação de crítico, o seu
mundo de escritor.
O dever de um alfacinha ou de um perfeito cidadão era
subir e descer duas ou três vezes o Chiado, reiterava Eça. É o ter-
ritório onde brotam todas as influências: o que um pequeno
número de jornalistas, de políticos, de burgueses de mundanos deci-
de no Chiado que Portugal seja – é o que Portugal é.
A Havaneza, que hoje ainda existe ao lado da Brasileira,
tinha sido fundada em 1865 e considerava-se a tabacaria
mais emblemática de Lisboa (chegou a ocupar a área do
banco adjacente). Eça, Guerra Junqueiro, Ramalho,
Pinheiro Chagas eram clientes fiéis. A uma esquina, vadios em
farrapos fumavam; e na esquina defronte, na Havaneza, fumavam
outros vadios, de sobrecasa, politicando. 36
O Hotel que mais referências goza na escrita de Eça de
Queirós é o Hotel Central, na Praça dos Remolares, popu-
larmente conhecida como Cais do Sodré. A colocação da
33] Queirós Eça de, Os Maias: Circulo de
Leitores, 1986.
34] Queirós Eça de, A Capital, Círculo de
Leitores, 1983.
35] Soares Luísa Duda, Com Eça à roda do
Chiado, Lisboa: Câmara Municipal, 2000.
36] Queirós Eça de, op. cit.
[73] A Baixa Pombalina como referência de produção artística e literária e cenário de uma tradição cultural
estátua do Duque da Terceira obrigou à mudança de topo-
nímia quando aí foi inaugurada em 1877. Foram seus hós-
pedes, entre muitos, Maria Eduarda, de “Os Maias”, Basílio,
de “O Primo Basílio”, Fradique Mendes, da “A Correspon-
dência”.
Tomar uma refeição acompanhada de champanhe era
um sonho que perseguia Teodoro, de “O Mandarim”, quan-
do era um apenas despretensioso funcionário.
A vista sobre o Tejo era magnífica. C.I. Ruders, que viveu
em Portugal entre 1798 e 1802, tinha a sua casa bem perto:
moro actualmente no chamado Arco do Marquês – uma ponte
muito alta que liga a Rua do Alecrim ao belo cais, de que toda a
gente se serve como passeio vespertino. 37
Em “Os Maias”, Eça escreveu: Sobre o rio, no céu largo, a
tarde morria sem uma aragem, numa palidez elísea, com nuvenzi-
nhas muito altas paradas, tocadas de cor-de-rosa; as terras, os lon-
ges da outra banda já se iam afogando num vapor aveludado, de
tom violeta; a água jazia lisa e luzidia como uma bela chapa de aço
novo; e aqui e além, pelo vasto ancoradouro, grossos navios de
carga, longos paquetes estrangeiros, dois couraçados ingleses dor-
miam, com as mastreações imóveis.
O final de “O Crime do Padre Amaro” é repassado de
melancolia e de pessimismo de que o país e a cidade inte-
lectual não conseguiam libertar-se. Se as Conferências
Democráticas realizadas no célebre Casino do Largo da
Abegoaria pretendiam abrir uma tribuna onde tenham voz os
ideais e os trabalhos que caracterizam este momento do século, preo-
cupando-se com a transformação social, moral e política dos povos,
o sentimento de decadência instalava-se nas consciências e
nas atitudes.38 É em torno da estátua de Camões, no Largo
do mesmo nome que termina o romance: (…) ao pé daquele
pedestal, sobre o frio olhar de bronze do velho poeta erecto e nobre,
com os seus largos ombros de cavaleiro forte, a Epopeia sobre o cora-
ção, a espada firme, cercada de cronistas e dos poetas heróicos da
antiga pátria – pátria para sempre, memória quase perdida(…).39
A estátua foi ali implantada em 1867, e o largo passou a
designar-se com o nome do grande épico, na sequência da
remodelação da praça, com a demolição do que restava do
palácio Marialva, família que entretanto se mudara para o
palácio da Praia, em Belém.
Na dramaturgia sócio-política o acto seguinte passou-se
em 1880, ano das comemorações do 3º centenário da morte
do autor de “Os Lusíadas”, tudo sobre a orquestração de
Ramalho Ortigão, e as estampas que nos foram deixadas
revelam a espectacularidade dos grandes festejos, nas suas
ornamentações e arquitecturas efémeras, que parecem her-
dadas da época barroca.
Mesmo assim o Chiado e a Baixa continuavam pólos acti-
vos da vida intelectual e da boémia lisboeta, pacata, ali-
mentada a torradas. Rivalidades de tertúlias extremavam
percursos e a ocupação de lugares.
O Martinho do Rossio, mais arejado, fazia com que os
que o frequentavam odiassem o Chiado (mais aristocrata):
(…) quando algum de nós tinha de subir a rua nova do Carmo afas-
távamo-nos indignados para o passeio do Margotteau 40(…).
Para os candidatos a literatos e a futuros cidadãos do
Chiado, o complemento da formação académica era na
Biblioteca, a funcionar no antigo Convento de S.Francisco, e
os Santos Padres literários eram Eça, Ramalho e Garrett:
37] Ruders Carl Israel, Viagem a Portugal:
1798-1802, Lisboa: Biblioteca Nacional, 2002
38] a criação do círculo Eça de Queirós no
mesmo largo e em frente do memorável
casino deve-se a António Ferro, num
gesto de resgate assinalável.
39] Queirós Eça de, O Crime do Padre
Amaro, Circulo de Leitores, Lisboa, 1983.
40] a célebre loja de dourador, molduras
e galeria na esquina da Garrett com a
Serpa Pinto.
[74] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
(…) Aos Dezoito annos, apenas saíamos do lyceu, íamos para a
Bibliotheca, ler As Farpas, As Viagens na Minha Terra, as Odes
Modernas, O Crime do Padre Amaro, na publicação primitiva da
Revista Contemporânea (…). 41
Em 1890, as forças republicanas capitalizam todo o
embaraço e ignomínia que o Ultimato Inglês trouxera ao
país. A estátua de Camões foi coberta com crepes pretos e
instala-se um clima de revolta. Bulhão Pato quer levantar o
ânimo, despertar consciências e exalta:
O Partido é Portugal/ À foz do Tejo, além, ondeia uma f loresta!/
O pavilhão inglês, farrapo ensanguentado,/ Do sinistro leopardo as
garras manifesta!/ Havemos de viver!… Leve o corsário a presa/ Pela
esteira de luz onde passou Camões.
Em 1908, Unamuno estadeava em Lisboa, e depois de
passar junto da estátua de Eça no Largo Barão de Quintela,
e provavelmente em frente à casa do escritor, já no Rossio,
discorre sobre a condenação e o ensismamento de Lisboa,
a desistência de Eça na re-invenção, reconstrução da capi-
tal, cujo desfecho infeliz julga ver em “A Cidade e as
Serras”.
(…) Fica-te em paz, Lisboa! Dorme, digere, ressona, soluça e
cachimba.(…)/ Tu tens a beleza, a força, a luz, a graça, a plástica a
água resplandecente, a linha magnifica! Resigna-te, ó Lisboa queri-
da, ó clara cidade bem amada, ó casta graça silenciosa, resigna-te –
a não ter alma!(…)42
Mas ele próprio se considerava um produto da cidade e
Ramalho Ortigão testemunhava sem hesitações que Lisboa
foi o seu laboratório de arte, o seu material de estudo, a sua
preocupação de crítico, o seu mundo de escritor. Lisboa tinha
apesar de tudo a verdade e o realismo possíveis. Mas o olhar
penetrante de Unamuno não nos pode deixar indiferentes:
(…) Pouco depois de ter contemplado a figura sugestiva do autor
de A Cidade e as Serras, no próprio coração desta cidade, ao pé da
estátua de D. Pedro IV, o que proclamou a carta constitucional e par-
tiu para o Brasil, contemplava as costelas de pedra das ruínas da
igreja do Carmo a destacar-se sobre o céu do ocaso. E, ao olhar esse
agoureiro monumento, recordação do famoso terramoto de que saiu
Portugal contemporâneo, o do Marquês de Pombal, pensava que o
terramoto íntimo, moral, ameaça este povo. E ia relacionando as
amargas ironias de Eça de Queiroz, o que não acreditou no seu povo,
ou pelo menos não acreditou na cidade portuguesa, indo buscar
Portugal nas serras, longe do contacto da civilização, relacionando-
a com um e outro terramoto. (…) 43
O terramoto íntimo que assola as entranhas dos lisboe-
tas ou da nação é outra visão cujo sufrágio de confirmação
pode ser mais alargado. As ruínas do Carmo consagram o
desastre, o anátema, e espelham o horror e o torpor.
Laura Junot, nas suas “Memórias”, comunga da mesma
inquietude e dos espectros da catástrofe:
De todas as impressões vivas que se tem ao percorrer Lisboa
nenhuma se compara ao espectáculo permanente dessas ruínas que
nos fala do terramoto e dos seus horrores.
Absorvendo a mesma estranheza na “Carta de Lisboa” de
Eric Sarner e Miguelanxo Prado44, a fantasmagoria que resis-
te ao cataclismo é percebida como tendo sede nas ruínas do
Carmo, que se erguem, implorando ao céu.
Quando, após algum tempo na Baixa a cidade plana nos sufoca;
quando procuramos em vão os 250 relógios que o Marquês de
Pombal, após o terramoto, aí mandou colocar para dar aos portu-
41] Pinna Mariano, Chronica in
A Ilustração, 5 Setembro, 1885.
42] Queiroz Eça de, op. cit.
43] Unamuno Miguel de, Por Terras de
Portugal e da Espanha, Lisboa: Assírio &
Alvim, 1989.
44] Sarner Eric, Carta de Lisboa, Lisboa:
Meibérica/Liber, 1998.
[75] A Baixa Pombalina como referência de produção artística e literária e cenário de uma tradição cultural
45] Soares Bernardo, pseud., O Livro do
Desassossego, Lisboa: Assírio & Alvim, 1998.
46] Campos Álvaro de, pseud., Poesia,
Lisboa: Assírio & Alvim, 2002.
47] Campos Álvaro de, pseud., Ode
maritíma, Lisboa: Presença, 1995.
48] Crespo Ángel, op. cit.
[76] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
gueses a noção do tempo, quando queremos descobrir outras pers-
pectivas, temos o elevador de Santa Justa.
(…) Chegamos ao Carmo: uma das mais antigas igrejas de
Lisboa. Só estas duas, o Carmo e a Sé sobreviveram ao terramoto de
1755, mas o Carmo, mais antigo é ainda mais belo. A catástrofe de
há dois séculos só deixou de pé o pórtico, meio enterrado no chão, o
coro e quatro capelas. Caminhamos sobre a relva por entre peças de
cerâmica, estátuas jacentes, lajes com inscrições latinares e hebrai-
cas; o local tornou-se museu arqueológico a céu aberto. É aqui que
dormem todos os gatos, os pombos, eu sei lá a maior parte dos fan-
tasmas de Lisboa. Pedras, animais, fantasmas e, por cima a abóba-
da celeste. O Carmo Teatro, sem tecto. (…)
Já Gomes Leal, nas suas “Sombras de Génios Desgraçados
nas Ruas de Lisboa”, embate com o fantasma de Camões no
labirinto nocturno da cidade.
(…) Este vulto, portanto que caminha/ altas horas, ao frio da nor-
tada/ é Camões, que de fome se definha/ nas ruas de Lisboa abando-
nadas./ É Camões, a que a Sorte vil, mesquinha/ faz em noutes de
fome torturadas/ ele o velho cantor de heróis guerreiros/ vagas erran-
te como os vis rafeiros (…)
Fernando Pessoa, que viveu, trabalhou e jornadeou pela
Baixa, é o ponto focal do Modernismo e da lírica multifacetada
que escorre e corre na cidade. Nos paradoxos da memória, do
ser e do existir na tragédia “ridícula” do quotidiano, contra-
diz(-se) na sua imersão urbana na prestação da sua firma
“Comissões e Consignações”, situada na Rua do Ouro, 87 – 2º:
Amanhã também eu me sumirei da Rua da Prata, da Rua dos
Douradores, da Rua dos Fanqueiros. Amanhã também eu – a alma
que sente e pensa, o universo que sou para mim – sim, amanhã eu
também serei o que deixou de passar nestas ruas, o que os outros
vagamente evocarão com um o que será feito dele? 45
Tem ainda espaço para uma poética de deambulação que
a maquete gigante da baixa lhe incute, quando o frenesim
comercial da cidade se afasta, num exercício em que dialoga
mentalmente com Cesário Verde para se reconfortar ao verificar
a sua substância igual à dos versos dele:
(…) Amo pelas tardes demoradas de Verão/ O sossego da cidade
Baixa e sobretudo aquele/ Sossego que o contraste acentua na parte
que/ O dia mergulha em mais bulício (…)
A sua melancolia é irredutível e no aparelho do contradi-
tório procura o gume do (des)equilíbrio:
(…) Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora e de hoje/ Nada me dais,
nada me tirais, nada sois que eu me sinta(…) 46
A imagem de Lisboa da sua infância, da sua velha casa do
Chiado em que das janelas avistava o Tejo, e o exorcismo da
sua evocação, provocam-lhe uma inexplicável ternura.
(…) E o que há de suavidade e de infância na hora matinal/ Uma
gaivota que passa,/ E a minha ternura é maior 47
Quando se passa na Rua dos Douradores a distinção entre
a realidade e a ficção de Pessoa parece não existir segundo
alguns. Daqui se chega no final ao café do Martinho da Arcada
que era dos refúgios predilectos de Pessoa. Dele e dos seus com-
panheiros do Orpheu e de outros escritores, habituais ou ocasionais
companheiros de tertúlia, entre os quais se conta sem dúvida o enge-
nheiro naval Álvaro de Campos, também colaborador da Revista.48
Faltou referir os cafés modernistas durante o Estado Novo
e os movimentos artísticos que neles foram gerados e bem
assim todos os outros espaços de sociabilidade. Faltou referir
o período da guerra através das descrições fundamentais de
José Rodrigues Miguéis. Faltou referir poetas imprescindíveis
deste período que se estende até à Revolução de Abril de 1974,
como David Mourão-Ferreira, Alexandre O’Neil, Manuel
Alegre e Ary dos Santos, ou mesmo Ruy Belo e João Miguel
Fernandes Jorge. Nuno Bragança é um prosador que se deve
seguir. O Livro de Bordo de José Cardoso Pires é um documento
testemunhal e vivencial valiosíssimo, publicado em 1998,
durante a Expo’98. Mas faltou também mencionar a dessa-
cralização e o aviltamento do Terreiro do Paço, transformado
em parque de estacionamento com o crescimento e o enri-
quecimento da classe média, sinal de um certo “desprezo”
pela “sala de visitas” da cidade e pela Baixa. O centro do
poder político foi tomado de assalto e invadido pelo automó-
vel com a perturbação e o congestionamento e a sensação de
abandono do espaço público. Quando se conseguiu em 1996
evacuar os carros da praça, ela retoma a sua dignidade e a sua
grandeza de espaço solene e de representação. Percebe-se que
seria imperativo reequacionar o futuro da praça numa escala
de novas centralidades urbanas – o caso do Parque Expo – e
outras suburbanas, a aproximação às áreas ribeirinhas e a
recuperação das áreas verdes induzem frentes de mudança.
A Baixa já não pode esperar!
[77] A Baixa Pombalina como referência de produção artística e literária e cenário de uma tradição cultural
Óculos de Fernando Pessoa pousados sobre a obra “The Last Empires of the Modern World”, s.d., à esquerda aassinatura do escritor. Fotógrafo não identificado, Arquivo Municipal de Lisboa – Arquivo Fotográfico.
A gestão integrada de um sítio já incluídona Lista do Património Mundial.
O caso de Évora
Manuela Oliveira
[79] A gestão integrada de um sítio já incluído na Lista do Património Mundial. O caso de Évora
Centro Histórico, património de Évora,património da HumanidadeCom vestígios de estabelecimentos humanos dasmais remotas civilizações pré-históricas, foi noperíodo romano que Évora assumiu importânciacomo centro urbano importante. Manteve esse
Panorâmica da Cidade de Évora,pormenor do casario, década de 1990.
Câmara Municipal de Évora.
estatuto no período árabe (embora tenham sobrevivido
menos vestígios) e, com a cristianização, continuou a
desempenhar um importante papel de pólo regional.
Durante os séculos XV e XVI assumiu grande importância
política, cultural e religiosa, quando Évora foi sede da corte,
durante longos períodos. Desta época ( a “Idade de Ouro”
da cidade) ficaram palácios, igrejas, o aqueduto, as fontes
e outros monumentos ímpares. No século XVII, Évora entra
em declínio.
Foi em meados do século XIX que se iniciou a conscien-
cialização do riquíssimo património existente. Mas foi já nos
princípios do Século XX que o Grupo Pró-Évora, reunindo
muitos dos intelectuais da cidade, e a Direcção dos
Monumentos Nacionais promoveram não só a defesa como o
restauro de monumentos que ainda hoje são símbolos da
cidade – muralhas, aqueduto, fontes, antigos conventos, etc.
Simultaneamente, muitas ruínas foram definitivamente
arrasadas – sobretudo conventos que tinham ficado vazios
e sem utilização. Algumas dessas intervenções foram consi-
deradas radicais, mas também se reconhece que foram
vitais para o desassombramento do tecido urbano e para a
sua adaptação às novas necessidades, permitindo a cons-
trução nesses espaços de grandes equipamentos – teatro,
cinema, mercado, correios, tribunal…
Uma Cidade MediterrânicaCento e quatro hectares de solo construído, rodeados por
uma cintura de muralhas medievais com mais de três qui-
lómetros, este centro denso, multifuncional, multicultural,
integrado socialmente, isto é, tipicamente mediterrânico, é
património da cidade de Évora, do país e do mundo.
A dimensão do Centro Histórico de Évora e as suas carac-
terísticas de cidade do sul conferem-lhe um carácter único
no país, onde simultaneamente a unidade e a diversidade
de situações exigem intervenções específicas.
A evolução demográfica recenteAs muralhas medievais comportaram a cidade e as suas
necessidades de crescimento durante muitos séculos.
Mas em finais do século XIX e princípios do século XX a
cidade precisava de crescer. Dentro das velhas muralhas
construíam-se primeiros, segundos e terceiros andares para
albergarem as populações que começaram a aumentar por
motivos de melhorias sanitárias e, mais tarde pela vinda de
pessoas que saíam massivamente dos campos, pela mecani-
zação da agricultura. Nos anos 40 do Século XX a cidade
intra-muros atingia cerca de 20.000 habitantes, nessa área
de 104 hectares. Como era difícil erigir mais construções, as
famílias mais pobres amontoavam-se em minúsculas habi-
tações. Por vezes, várias gerações de uma família conviviam
no mesmo exíguo espaço.
Mas a cerca amuralhada não aguentava mais a crescente
pressão demográfica. Sobretudo a partir dos anos 40, a
expansão urbana extra-muros foi-se fazendo: a insuficiente
iniciativa pública para ordenar o crescimento obrigou a
cidade a crescer em pequenos núcleos dispersos, muito afas-
tados uns dos outros e até do centro – uma constelação de
pequenas “aldeias”, origem de muitos dos problemas estru-
turais de que Évora ainda sofre.
Pouco a pouco, as populações começaram a escolher o
exterior das muralhas para residir – as que viviam intra-
[80] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
muros e precisavam de mais espaço vital e as que vinham
do campo para a cidade.
A partir de década de 50 o processo de despovoamento
do centro nunca mais foi controlado – o centro perdeu o
equilíbrio funcional.
Os planos de ordenamento físico, de circulação etransportes, de salvaguarda do patrimónioNão foi por falta de planos que a cidade se vê confrontada
hoje com graves problemas.
Nisso, o município foi pioneiro. Évora elaborou e fez
aprovar o primeiro PDM do país, teve o primeiro Plano de
Circulação e Transportes e o primeiro Programa de
Recuperação do Centro Histórico. São peças realmente inte-
ressantes do ponto de vista de gestão urbana e ainda hoje
são fontes válidas onde se pode procurar inspiração para as
propostas a fazer.
As políticas sectoriais e as suas limitaçõesDe facto, durante as últimas décadas a Câmara sempre se
preocupou com a parte da cidade confinada às muralhas.
Muito se fez, exclusivamente com os escassos meios da
autarquia:
• Criou-se um serviço municipal no princípio dos anos 80
responsável por políticas específicas, mas também pela
coordenação das restantes intervenções no centro;
• Criaram-se programas municipais de recuperação de
fogos, concedendo, dos meios financeiros municipais,
verbas a fundo perdido para telhados, estruturas, constru-
ção de instalações sanitárias, pinturas, recuperação de caixi-
lharias;
• Promoveu-se, através de negociações, a recuperação de
alguns grandes imóveis e palacetes para sedes de serviços
administrativos e financeiros;
• Condicionou-se o trânsito automóvel, construíram-se par-
ques de estacionamento, pedonalizaram-se e trataram-se
eixos comerciais;
• Dificultou-se a terciarização;
• Reabilitaram-se muitas infraestruturas básicas; introdu-
ziu-se a TV por cabo;
• Requalificou-se toda a “coluna dorsal” dos eixos comer-
ciais e outros espaços públicos foram valorizados;
• Pautou-se a apreciação dos projectos pelo rigor dos regu-
lamentos e dos planos.
• O centro histórico ganhou notoriedade; a maioria dos
moradores compreendeu o desafio do património; o comér-
cio, a restauração e a hotelaria adaptaram-se razoavelmente
à nova procura dos turistas e dos estudantes.
Mas o saldo é deficitário – no essencial, extensas áreas da
cidade estão por reabilitar e a população continuou a
decrescer a um ritmo acelerado.
As dificuldades de gerir as grandes oportunidadesque atingiram o Centro Histórico de ÉvoraA classificação da cidade como Património da Humanidade
em 1986 foi um grande êxito para a cidade. Trouxe prestígio
nacional e internacional e um grande aumento de turistas.
Provocou a construção de muitos hotéis e restaurantes e pro-
moveu o aparecimento de diversos serviços e comércios.
Mas não trouxe os meios para que o património, objecto
de classificação e prestígio, fosse valorizado, melhor defen-
[81] A gestão integrada de um sítio já incluído na Lista do Património Mundial. O caso de Évora
dido, mais vivido. Nunca houve da parte da Administração
Central um tostão que fosse para apoiar políticas dirigidas
ao património e às gentes que nele vivem.
Por seu lado, a Universidade de Évora, que renasceu
verdadeiramente nos anos 80, teve um grande impacto na
cidade – edifícios recuperados para colégios e residências,
aparecimento de um comércio dirigido às camadas mais
jovens e de restaurantes adaptados à procura dos estudantes.
A cidade ficou mais aberta e mais cosmopolita.
Mas o turismo e a juventude provocaram também a aber-
tura de bares e discotecas, tendo com isso aumentado os
conflitos com os residentes – ruído, vandalismo, etc.
Os residentes continuaram a sair da cidade, cedendo
agora muitos dos seus espaços aos estudantes.
A situação actual – o despovoamento como prin-cipal motivo de preocupaçãoPara o Centro Histórico de Évora, estão adquiridas situações
positivas, praticamente incontestadas:
• a consciência do património e a sua importância para a
cidade;
• a receptividade ao fenómeno do turismo;
• a existência de uma linha dorsal de espaços públicos bem
tratados mais ou menos pedonalizados, ao longo do qual se
distribui o comércio central da cidade (que cumpre tam-
bém funções regionais);
• uma concentração de serviços centrais e regionais, que
deve sofrer alguns ajustamentos e reduções sem, contudo,
provocar novos processos de “desvitalização”;
Muitas debilidades podem ser enunciadas, desde a
mobilidade e acessibilidades, ao défice de espaços verdes
e de espaços livres públicos em certas zonas, a degrada-
ção de tecido edificado, a falta de serviços e equipamen-
tos de proximidade, mas o maior e mais preocupante é o
despovoamento continuado e com tendência para se
agravar.
Por isso, vamos propositadamente despojar a nossa aná-
lise dos desajustamentos que afectam os sectores acima
descritos e focar a nossa atenção nestes factos: o Centro
Histórico de Évora tem pouco mais de 1/4 da população que
detinha em 1940; por outro lado, é um dos maiores do país
em área (104 ha dentro das muralhas), o que dá ideia da ver-
dadeira extensão dos problemas.
Ninguém defende que 20.000 habitantes eram a popula-
ção ideal para o equilíbrio do centro – a maioria das opi-
niões fixa esse número entre 8.000 e 12.000 habitantes.
As causas Uma sondagem feita com o apoio dos alunos de uma Escola
Secundária, embora sem grande rigor científico, demonstra
que as razões que provocaram a saída das pessoas são de
vária ordem. Vamos listar algumas:
• o desajustamento das tipologias existentes à procura –
casas muito pequenas, com problemas de salubridade ou
então casas muito grandes, com grandes custos de manu-
tenção, recuperação e adaptação;
• o défice de equipamentos e serviços de proximidade;
• o défice de estacionamentos junto das residências;
• problemas de mobilidade e acessibilidade – conflitos com
o automóvel nas ruas e travessas estreitas;
[82] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
• o custo das casas e das recuperações (nítida especulação
imobiliária);
•as incomodidades provocadas pela vida nocturna intensa
– bares, discotecas…;
• os condicionalismos para obras e transformações devidos
à classificação patrimonial;
• a “moda” de viver nos bairros espaçosos e nos condomí-
nios fechados;
• preferência por novos modelos de habitar (casas novas);
• falta de atractividade de algumas zonas do centro;
• fraca atractividade para os investidores privados.
Os números dos Censos e um inquérito feito pelo serviço
são elucidativos:
• a maioria dos residentes são idosos;
• a maioria das casas estão ocupadas em regime de arren-
damento e as rendas são baixas;
• a percentagem de edifícios degradados é grande; a de devo-
lutos também é significativa.
Alguns casos de sucessoAs novas casas construídas no Centro Histórico, mesmo
núcleos com média e grande dimensão têm tido muito
sucesso – normalmente, vendem-se antes de estarem cons-
truídas.
As suas características são favoráveis – tipologias adapta-
das à procura, terraços ou outros espaços de ar livre para
estar, garagens para estacionamentos, relativo isolamento
de zonas de bares.
Estes casos de núcleos novos vão contribuir certamente
para a revitalização residencial do centro, mas poucos mais
espaços restam para poderem ter o mesmo tipo de trata-
mento de construção integral.
Mas outra zona da cidade tem chamado a nossa atenção –
o relativamente elevado número de casas recuperadas na zona
das Alcaçarias/Fontes, quanto a nós relacionado com as tipo-
logias dominantes (T3/T4), a existência de pequenos quintais
e de garagens, o relativo afastamento das zonas barulhentas.
Apoiando esta observação empírica, os dados demográ-
ficos por subsecções estatísticas demonstram que algumas
pequenas áreas tiveram ganhos populacionais nos últimos
10 anos, mas tudo isto merece um estudo mais aprofun-
dado, que não houve tempo para realizar ainda.
A cidade intra-muros não é homogéneaO tecido urbano da cidade intra-muros não é homogéneo.
É atravessado pelo “esqueleto” terciário, com funções que
ultrapassam a cidade – serve o distrito, a região, os estu-
dantes de todo o país e os turistas de todo o mundo. Ainda
está em curso a intervenção URBCOM/EVORACOM com o
objectivo de requalificar toda esta zona e transformá-la em
espaços atractivos para empresários e utilizadores.
Para além deste espaço apropriado por públicos muito
diversificados, existe um outro que tentaremos caracteri-
zar, no miolo deste “esqueleto”. Definiram-se provisoria-
mente zonas com características comuns.
Em primeiro lugar, as três grandes zonas consideradas
de mais difícil intervenção em termos de recuperação/rea-
bilitação de edifícios, no sentido de dar prioridade à função
habitacional, são, a nosso ver:
• a zona da Judiaria (rua Serpa Pinto/rua Bernardo de
Matos) é muito densa, com construção em altura, consti-
[83] A gestão integrada de um sítio já incluído na Lista do Património Mundial. O caso de Évora
tuída sobretudo por grandes e médios edifícios, apresenta
diferentes situações de propriedade e arrendamento, num
imbricado tecido urbano sem ventilação transversal nem
espaços livres, e reduzidas intervenções de profunda recupe-
ração nos últimos anos;
• a zona de Mouraria é densa também (embora menos), com
fogos mais equilibrados em termos de tipologias, mas com
problemas de estacionamentos e sem espaços livres públicos
com funções ligadas à fruição dos moradores;
• no sector entre a Rua de Aviz e a Rua Cândido dos Reis,
repetem-se os problemas dos quarteirões densos, embora
com alguns espaços públicos interessantes que exigem nova
atenção.
Algumas outras zonas, menores em extensão, apresentam,
contudo problemas idênticos de grandes densidades, défice
de espaços livres e de estacionamentos:
• área entre a Rua Cardeal Rei e a Rua Joaquim Henrique da
Fonseca;
• zona envolvente do Convento de Santa Clara;
• zona da Rua do Calvário/Rua Cândido dos Reis.
Outras áreas sofrem de outros males estruturais – são as
zonas periféricas, de franjas urbanas nas proximidades das
muralhas, com espaços vazios desqualificados, com antigas
oficinas, fábricas e armazéns degradados, menor densidade
de ocupação:
• entre a Rua das Alcaçarias e as Muralhas;
• Portas de Machede/Hospital Velho;
• Rua dos Penedos e travessa dos Lagares (esta em vias de
alguma de alguma recuperação);
• Travessa da Palmeira;
• Rua do Muro.
As restantes áreas da cidade intra-muros apresentam
características bem distintas – quarteirões amplos, espaços
públicos generosos, igrejas, antigos conventos, grandes
solares com pátios interiores, muitos deles de grande valor,
diferentes necessidades de recuperação:
• zona do Templo e Acrópole, mais propriamente o núcleo
urbano interior à Cerca Velha;
• zona da Universidade;
• zona da Graça/Eborim/S. Francisco.
Existem ainda algumas zonas mistas e de transição.
Diferentes abordagens para uma nova tentativade resolver os problemas do CHEHá alguns meses reflectimos sobre as políticas “tradicio-
nais” e os respectivos resultados e propomos agora uma
metodologia de ataque aos problemas do Centro Histórico,
nomeadamente tendo como pano de fundo a magna ques-
tão do despovoamento.
Achamos que são necessários instrumentos a várias esca-
las que se compatibilizem e complementem entre si.
a) Em primeiro lugar, o Centro Histórico tem de redefinir
o seu papel no conjunto da cidade – que funções comerciais
e serviços se pretendem manter, instalar ou retirar do cen-
tro; como promover a permeabilidade das muralhas, da cir-
cular viária, da coroa de parques de estacionamento; como
resolver o problema geral da mobilidade urbana. O Centro
[84] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
Histórico é, em Évora, a peça central do equilíbrio urba-
nístico e funcional da cidade no seu todo. Vai ser feita uma
discussão que terá de ser aprofundada e consequente – as polí-
ticas urbanísticas e outras têm de reflectir essas opções.
b) As chamadas políticas sectoriais serão reavaliadas e apli-
cadas, nomeadamente:
• a modernização do comércio e o tratamento dos eixos
principais;
• a atracção de um turismo sustentável;
• a salvaguarda, a recuperação e a valorização do patrimó-
nio; a arte pública;
• a reabilitação da habitação;
• a melhoria das acessibilidades e das condições de cir-
culação;
• um mobiliário urbano atractivo e disperso por toda a
cidade;
• a melhoria do ambiente urbano e dos espaços verdes;
• a reabilitação das infra-estruturas básicas;
• a rede de equipamentos e serviços de proximidade;
• a melhoria da iluminação urbana ambiental;
• a animação cultural (nomeadamente de rua);
• uma política forte de marketing para a promoção do cen-
tro como sítio agradável para viver;
• a luta contra a especulação imobiliária.
c) Por seu turno, exigem-se, em muitos casos, intervenções
específicas e acções integradas. Alguns exemplos:
I) num caso, será a reestruturação fundiária o problema
principal, o que permitirá intervir de forma a concentrar a
acção num grupo de edifícios, dotando-os de nova estrutu-
ra tipológica, novas condições de higiene e salubridade,
espaços livres entre edifícios, isto sem pôr em causa a pre-
servação do património entendendo-a, antes, de forma
dinâmica;
II) noutro caso, pode ser a recuperação de alguns edifícios,
a criação de espaços para estacionamentos, a construção de
equipamentos colectivos de proximidade, a remodelação de
infra-estruturas de saneamento ou a melhoria dos pavimen-
tos das ruas;
III) noutro caso ainda, passará pela recuperação de grandes
edifícios ou casas senhoriais;
IV) uma antiga área de fábricas e oficinas será possivelmen-
te objecto de um plano de pormenor que definirá, dentro
dos objectivos genéricos, formas e tipos de ocupação mais
adequados às necessidades dos moradores e do próprio
Centro Histórico;
V) num quarteirão muito denso devem ser encontrados
atravessamentos (até por razões de segurança contra sismos
e incêndios), que podem não passar necessariamente por
cortes no edificado, mas, por exemplo, por percursos mais
visíveis. Tornar visíveis ou visitáveis pátios interiores (e em
Évora há-os às dezenas), também pode contribuir para a
“abertura” de alguns quarteirões;
VI) as dezenas de pátios e becos, espaços sem estacionamen-
tos nem trânsito, podem ser requalificados no sentido de
[85] A gestão integrada de um sítio já incluído na Lista do Património Mundial. O caso de Évora
[86] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
permitirem criar melhores condições aos residentes, pro-
longando para a rua o espaço habitável, com melhorias de
pavimentos, com mobiliário urbano, etc.
d) Sectores urbanos podem exigir projectos-piloto de estudo
e experimentação
Pensar o Centro Histórico como um todo, actuar localmente A classificação do Centro Histórico de Évora como Patri-
mónio Mundial trouxe prestígio, orgulho, sentimento de
pertença. Trouxe também mais turistas e respectivos ren-
dimentos.
Mas trouxe responsabilidades acrescidas ao município e
a todos os cidadãos, sem qualquer contrapartida em verbas
e outros instrumentos para a recuperação e valorização do
Património de toda a Humanidade.
As consequências mais visíveis desse facto são a degra-
dação, o despovoamento e a valorização artificial dos imó-
veis (especulação).
O nosso objectivo é, não perdendo nunca de vista o
grande conjunto classificado património da humanidade,
enriquecendo-o e animando-o, torná-lo atractivo para os
moradores, descendo na análise e na intervenção até onde
for necessário.
Compatibilizar a salvaguarda do património com a
melhoria das condições de habitabilidade e com os padrões
contemporâneos de vida é o grande desafio que se nos coloca.
Aprofundar os estudos, pôr equipas pluridisciplinares
no gabinete e no terreno, envolver os moradores e encon-
trar, para cada caso que não se encaixe nos programas sec-
toriais, as medidas necessárias à sua resolução, parece ser o
caminho para fixar e atrair de novo os moradores ao centro.
Esta fórmula exige, nomeadamente:
• maior envolvimento dos eleitos;
• equipas pluridisciplinares de estudo e acção;
• maior coordenação das instituições (IPPAR, Monumen-
tos Nacionais, Segurança Social, INH, Educação, Saúde,
Desporto,…);
• programas específicos para problemas específicos;
• maiores volumes, flexibilidade, concentração e coorde-
nação de meios financeiros;
• novos instrumentos jurídico-administrativos para a inter-
venção (regime especial de expropriações, programas-piloto,
planos de pormenor, desburocratização);
• parcerias público/privado/cooperativo.
Atrair de novo os moradores tem de ser à custa de lhes dar
a importância que eles exigem – recuperar o património
habitacional de forma inovadora, mas ir mais além, desde
o lugar de estacionamento ao estendal para a roupa, desde a
escola primária ao banquinho no largo, desde a ajuda à com-
pra da habitação ao projecto da casa de banho, desde a festa
tradicional à imagem do Santo patrono daquela rua, um sem
número de problemas e soluções que teremos de construir
como um puzzle, por vezes à escala 1/1, se necessário.
[87] A gestão integrada de um sítio já incluído na Lista do Património Mundial. O caso de Évora
Fotografia aérea, zona monumental dentro da Cerca Velha, década de 1990. Câmara Municipal de Évora.
Baixa Pombalina de Lisboa e o Património da Humanidade:
um pequeno contributo
João Manuel Belo Rodeia
[89] A Baixa Pombalina de Lisboa e o Património da Humanidade: um pequeno contributo
Em 1972, com a Convenção para a Protecção doPatrimónio Cultural e Natural do Mundo,a UNESCO reconheceu o valor extraordinário einsubstituível de um conjunto de bens culturaise naturais, cujo eventual desaparecimentoempobreceria a herança colectiva da Humanidade.
Panorâmica da Praça Dom Pedro IVtirada do Elevador de Santa Justa,
início do séc. XX. Autor: José António Leitão Bárcia.
Arquivo Municipal de Lisboa – Arquivo Fotográfico.
Considerou-o, por isso, merecedor de protecção especial
diante de qualquer ameaça à respectiva integridade e, para
isso, numa perspectiva mundial e universalista, criou uma
lista seleccionada desses bens culturais e naturais.
Entre os critérios gerais para acesso de bens patrimo-
niais a esta lista excepcional, destacam-se os seguintes:
1) Representarem uma obra-prima do génio artístico
da Humanidade;
2) Constituírem um modelo fundamental no quadro
patrimonial do seu tempo;
3) Manifestarem o intercâmbio de valores culturais da
Humanidade;
4) Testemunharem uma tradição cultural específica;
5) Demonstrarem a celebração de ideias, crenças, even-
tos e tradições específicas, locais ou globais;
6) Terem protecção adequada que assegure a respecti-
va conservação, salvaguarda e valorização;
7) Manterem integridade e autenticidade em função
do respectivo modelo e/ou carácter.
Com o decorrer do tempo e o crescimento da lista,
a UNESCO tem também avaliado as múltiplas candida-
turas mediante a comparação da especificidade respecti-
va com a de bens análogos já inscritos, e em função da
escassez ou inexistência de bens idênticos na lista, dando
igualmente prioridade a países ainda sem património
inscrito.
À partida, a Baixa Pombalina de Lisboa reúne um con-
junto de circunstâncias e valores extraordinários que,
pesem embora algumas dúvidas pertinentes diante da
actual situação patrimonial e vivencial, respondem e cor-
respondem à maioria dos critérios anteriores. Destacam-
se os seguintes:
a) A implementação e representação de uma síntese
consciente, original e paradigmática no quadro dos mode-
los europeus até ao século XVIII, nomeadamente Londres
(Reino Unido, 1667) e Turim (Itália, 1673 e 1712/14), mas
também Viena (Áustria, 1683), S. Petersburgo (Rússia, 1730)
e Nancy (França, 1752).
b) A implementação e representação de uma síntese
inovadora, não apenas pela construção de uma nova
cidade no centro da cidade sobre terrain vague, nem ape-
nas pelas características urbano-arquitectónicas em si
mesmo, sejam espaciais e/ou estéticas, mas também pela
sensibilidade articulada com as pré-existências periféri-
cas, sejam construídas ou topográficas, também evidente
no eixo pombalino da Sétima Colina. A este propósito,
recordem-se as palavras de Manuel da Maia quanto às
experiências internacionais, bem demonstrativas da
consciência plena da solução encontrada: em relação a
Londres – “não se adapta a Lisboa pela falta de unidade
coerente – e a de Turim – lugar onde nada fora arrasado
por qualquer acidente, tratando-se antes “mais diverti-
mento do que trabalho”.
c) A implementação e representação de uma síntese
sedimentar a partir de prévias experiências locais, em
particular do Esprit de Géometrie do Bairro Alto, de algumas
das cidades coloniais e das múltiplas reformas urbanas
introduzidas em Lisboa com a chegada do Aqueduto das
Águas Livres e respectivos ramais.
d) A implementação e representação de um plano tri-
dimensional praticamente inédito, muito eficaz nos sis-
[90] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
temas tipológicos standart, minuciosamente desenhado,
não apenas quanto a frentes de rua, como na organização
espacial dos edifícios, materialidade e sistemas constru-
tivos, e respectivas infra-estruturas. Pela rapidez com que
o projecto foi desenvolvido, pelo domínio do carácter tri-
dimensional e pelas técnicas utilizadas (o sistema estru-
tural de gaiola e os corta-fogos obrigatórios reassegura-
vam a necessidade de construir o edifício como um todo),
o exemplo da Baixa é também notável. Registe-se que em
casos semelhantes, como na Place Vendôme ou na Rue
Royale, em Paris, no tempo de Luís XV, apenas se haviam
desenhado as fachadas e, durante muito tempo, a primeira
pareceu um autêntico biombo e a segunda permitia-se
à compra de fachada pelo respectivo proprietário, sem
qualquer modelo tridimensional.
e) O ineditismo do extraordinário enquadramento e
mobilização de pessoas, instrumentos e meios: os instru-
mentos legais, administrativos e financeiros; a invulgar
coordenação entre interesses públicos e privados; o apoio
expresso de uma nova burguesia comercial e mercantil
(4% sobre os despachos alfandegários; até 1780, dos 620 pré-
dios construídos, apenas 10 são propriedade da nobreza),
assim como dos intelectuais da Arcádia Lusitana, apesar da
relação ambígua com o poder pombalino.
f) Neste contexto mais alargado, a consubstanciação
da atitude iluminista do Marquês de Pombal e dos seus
arquitectos, concentrando exemplos paradigmáticos
e visionários da época em caso único, cuja concretiza-
ção e tradição evoluirá até, pelo menos, ao final do
século XIX, bem como a plena demonstração de um novo
tipo de propósito e sensibilidade: o bem-comum e a coisa
pública. Ou seja, fala-se não apenas de um extraordinário
plano total como também da própria cidade como
projecto, da transformação do bem-comum utilitário
na respectiva representação espacial e dimensão estética,
do constante compromisso entre público e privado,
do sentido integrado com a cidade antiga e de uma nova
ordem ilustrada, onde o bem-comum e a coisa pública
assumem um significado fundamental. Fala-se, assim,
da plena demonstração da vocação iluminada de Lisboa
no contexto global do seu tempo, autêntico monumento
da ilustração europeia e, em simultâneo, também monu-
mento visionário da cidade romântica do século XIX,
cujos valores fundamentais permanecem, ainda hoje,
na ordem do dia.
Porém, em face da actual situação da Baixa Pombalina
no âmbito patrimonial respectivo e no quadro lisboeta,
haverá que ponderar, entre outros, alguns dos seguintes
problemas:
a) Equacionar o papel da Baixa no contexto de uma
visão global para a cidade de Lisboa, ou melhor, da cidade
entendida como Projecto;
b) Implementar e definir uma nova totalidade para a
Baixa, incluindo as áreas adjacentes e o espaço público,
seja na perspectiva da conservação como da valorização
contemporânea, mediante uma equipa multidisciplinar
de reconhecido mérito, capaz de juízos de valor e de gerar
consensos e sinergias;
c) Associar-lhe um modelo culto e exigente de gestão
integrada e assegurar a respectiva continuidade no tempo,
para além dos ciclos políticos;
[91] A Baixa Pombalina de Lisboa e o Património da Humanidade: um pequeno contributo
d) Enfrentar a desfiguração resultante das modifica-
ções do tempo na respectiva autenticidade e integridade,
considerando o todo como somatório de todas as acções e
experiências que o mesmo tempo sedimentou, desde que
identificadas e associadas a acréscimo de valor;
e) Garantir este património como suporte do habitar
colectivo e no quadro da civilidade e cidadania, enquanto
coisa viva que as pessoas têm direito de usufruir e na qual
têm direito de viver e participar. Em geral, não faz sentido
a cristalização da maior parte deste património fora da
vida quotidiana dos cidadãos, na certeza da urgente neces-
sidade de sediar novos residentes na Baixa em face da
actual escassez. Aliás, não há património arquitectónico
sem pessoas e vida própria;
f) Implementar acções de pedagogia junto da comuni-
dade, nomeadamente no quadro formativo dos mais jovens.
Em jeito de conclusão, dir-se-ia que a Baixa Pombalina
de Lisboa reúne, à priori, todas as condições para uma even-
tual candidatura à lista do Património da Humanidade.
Porém, em face do actual estado generalizado de depressão
urbana, há ainda muito a fazer para tornar esta candida-
tura viável no exigente quadro da UNESCO.
Porém, convirá nunca esquecer que qualquer reconheci-
mento internacional não é um fim em si mesmo, mas antes
consequência de um projecto sedimentar e de obra bem rea-
lizada no contexto do mesmo bem-comum que inspirou os
homens e as acções destes no tempo de Pombal.
[92] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
[93] A Baixa Pombalina de Lisboa e o Património da Humanidade: um pequeno contributo
Panorâmica tirada do Castelo de São Jorge 1949/51. Autor: Horácio Novaes. Arquivo Municipal de Lisboa – Arquivo Fotográfico.
Os Objectivos do Comitédo Património Mundial
BenedicteSelfslagh
[95] Os Objectivos do comité do Património Mundial
Vous avez ces deux derniers jours étudié le casde Baixa sur toutes les coutures et vous venezd’entendre ce que ça comporte la gestion d’un sitedu Patrimoine Mondial. Il me revient de placer tousces travaux dans le contexte plus général destravaux du Comité du Patrimoine Mondial.
Panorâmica de Lisboa, o rio Tejo em frente do Arsenal
de Marinha, post. 1935. Autor: Judah Benoliel.
Arquivo Municipal de Lisboa – Arquivo Fotográfico.
Je serais fidèle au titre de mon exposé. Ça veut dire que je
vais vous parler beaucoup de certains principes et je vous
prie de m’excuser, mais je ne vous emmènerai pas, aujour-
d’hui, visiter les nombreux sites du Patrimoine Mondial.
Le premier aspect dont je voudrais vous parler est inti-
tulé «La Convention du Patrimoine Mondial» car je voulais
vous rappeler quelques chiffres.
La Convention a été adoptée en 1972 et elle est entrée en
vigueur en 1976. Ça veut dire, dès en fait, la fin de 1975, vingt
États avaient ratifié cette Convention déjà, et elle est entrée
en vigueur. Ce qui est très rapide pour une Convention inter-
nationale. Aujourd’hui il y a 176 États-partie, ce qui veut dire
que nous avons atteint presque l’universalité.
Il y a 754 biens inscrits sur la Liste du Patrimoine Mondial
à ce jour, dont 35 sont inscrits sur la Liste du Patrimoine
Mondial en péril.
Je passe à vous présenter les différents acteurs. Il y a une
Assemblée Générale des États-partie qui réunit tous les ans
les 176 États et cette réunion aura lieu la semaine prochaine
et ces états vont élire les nouveaux membres du Comité. Le
Comité du Patrimoine Mondial est l’organe de décision de
cette Convention et il est composé de 21 États-membres. Le
Portugal en fait partie actuellement. La Belgique, que je
représente en faisait partie également, mais nous avons déci-
dé de mettre fin à notre mandat maintenant afin de pro-
mouvoir la rotation au sein du Comité.
Le Comité a également un secrétariat qui est à sa dis-
position, il est plus connu sous le nom du Centre du
Patrimoine Mondial et c’est une unité de l’Unesco. Ceci
étant dit, le secrétariat est évidemment appelé à être neutre
devant tous les pays, donc le Comité peut s’appuyer sur des
organisations consultatives qui fournissent un avis sur les
différents dossiers et les différentes questions. Il s’agit pour
le patrimoine culturel de l’ICOMOS que vous connaissez
bien, pour le patrimoine naturel, de l’IUCN et pour les
questions de formation, du ICCROM.
Les tâches du Comité du Patrimoine MondialEn fait je dirais qu’il y en a trois qui sont absolument fon-
damentales. C’est d’une part décider qu’elles sont les sites
qui seront inscrits sur la Liste du Patrimoine Mondial.
Donc, petite parenthèse, quand vous lisez dans un journal
que l’Unesco a inscrit un site sur la Liste du Patrimoine
Mondial, vous savez maintenant que c’est au contraire un
Comité intergouvernemental qui le fait, parce que jamais
un état n’aurait accepté de confier une tâche aussi impor-
tante et aussi délicate à un Secrétariat, donc c’est une peti-
te parenthèse.
Alors, en moyenne, jusqu’à présent, nous avons eu 40
inscriptions par an. Ça veut dire que le Comité doit étudier
des dossiers, des évaluations de plus de 40 sites par an.
Ce qui est énorme, car le Comité ne se réunit qu’une fois
par an. Le Comité examine aussi l’état de conservation des
biens qui sont inscrits et en moyenne il y a, ces dernières
années, une centaine de rapports sur l’état de conservation
des biens. Cette année au mois de juillet nous en avons eu
même plus, je crois qu’il y en avait 130.
Enfin le Comité attribue l’assistance internationale en
décidant de l’affectation du Fonds du Patrimoine Mondial.
Vous verrez sur la diapositive que le fonds qui est alimenté
notamment par les contributions des États-partie s’élève à
environ 8 millions de dollars des États Unis. Mais en réalité
[96] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
il faut ajouter à ces 8 millions l’argent du budget ordinaire
de l’Unesco qui soutient principalement le secrétariat. Il y a
des fonds en dépôt qui sont créés par plusieurs États-partie,
il a des partenaires avec des autres organisations interna-
tionales, voire avec le secteur privé, ce qui veut dire qu’en
réalité le budget qui est consacré est d’au moins 28 millions
de dollars des États-unis. Évidemment, à l’heure actuelle,
on aurait préféré parler en Euros, mais ce n’est pas le cas.
Ceci étant dit, c’est encore une sous-estimation importante
du budget réel, parce que ne sont pas comptés là-dedans
tous les investissements qui se font dans les États, que ce
soit au niveau national ou au niveau des collectivités régio-
nales ou locales ou les Mairies.
Un résumé des tendancesLa Convention a donc 30 ans, après les balbutiements du
début, nous pouvons dire que la Convention est en pleine
croissance et que les accents ont changé. Au départ toute
l’attention était focalisée sur les inscriptions sur la célèbre
Liste du Patrimoine Mondial. Aujourd’hui nous attachons
de l’importance tant aux inscriptions qu’à l’État de conser-
vation des biens et vous avez entendu, notamment par l’ex-
posé de Madame, combien c’est important.
Au départ aussi, la souveraineté des états était invoquée
à tout moment. Aujourd’hui la souveraineté étant toujours
aussi importante, parce qu’il faut rappeler que la toute pre-
mière responsabilité vis-à-vis des sites du Patrimoine
Mondial incombe toute de même aux États, et d’ailleurs
cela figure dans le texte de la Convention, mais parallèle-
ment, il n’y a pas de Convention internationale si on ne met
pas quelque chose dans un panier commun, donc cette
Convention est l’expression d’une volonté de coopération et
de la solidarité internationale.
Troisième élément c’est qu’au départ le Comité organi-
sait son travail en fonction des demandes qui étaient for-
mulées par les États. Soit des demandes d’assistance, soit des
propositions d’inscription. Aujourd’hui, le Comité évidem-
ment avec son secrétariat, le Centre du Patrimoine Mondial,
répond toujours à la demande des États, mais parallèlement
il a adopté une démarche beaucoup plus proactive pour
inciter, éventuellement, les états ou attirer leur attention
sur certains aspects.
Les objectifs du ComitéCes quelques tendances sont évidemment reflétées dans
les objectifs du Comité qui sont connus sous le nom des
Quatre C.
En 2002, à l’occasion du trentième anniversaire de la
Convention, le Comité a adopté la déclaration de Budapest
et dans cette déclaration il a réactualisé les objectifs straté-
giques qu’il avait adoptés en 92. Quels sont ces quatre
objectifs, quels sont ces 4 C.
• la Crédibilité et la représentativité de la Liste du
Patrimoine Mondial;
• assurer l’état de Conservation, de bonne conservation des
biens inscrits dur la Liste du Patrimoine Mondial;
• renforcer les Capacités dans les États-partie;
• responsabiliser la société civile à travers la Communication.
Il est évident que le Comité, et le Centre du Patrimoine
Mondial et l’Unesco toute entière ne peuvent pas faire
tout ça tous seuls. J’ai déjà souligné l’importance des États
[97] Os Objectivos do comité do Património Mundial
mais il y a d’autres partenaires qui peuvent être mobilisés.
Et enfin le Comité a indiqué dans ses déclarations qu’il pro-
cèdera à une évaluation des résultats dès 2007, donc une
obligation des résultats, ce qui est assez innovateur.
L’analyse et les moyensSi on a des objectifs, évidemment il faut se donner les moyens
de son ambition. L’analyse vient d’abord. Le Comité a deman-
dé une analyse de la Liste et des Listes indicatives. On vous en
a parlé déjà, les Listes indicatives c’est une Liste que fournis-
sent les États au Comité sur laquelle se trouvent tous les biens
dont ils pensent soumettre une proposition d’inscription.
Je rappelle que le Comité n’examine aucune proposition
d’inscription si le bien ne figure pas sur la Liste indicative.
Une deuxième analyse est celle des rapports périodiques,
parce que la Convention prévoit que chaque État fournit un
rapport sur la mise en œuvre de cette Convention et il a été
convenu que cela se ferait selon un cycle tous les six ans.
Et pour la facilité c’est fait région par région. Nous avons
déjà eu un rapport périodique pour la région Arabe, pour la
région d’Afrique, pour l’Asie pacifique et l’Amérique Latine
et l’Europe / Amérique du Nord sont des rapports qui seront
soumis dans les années qui viennent.
Quels sont les moyens pour réaliser tout ça?
D’une part les principes, les principes de bonne conser-
vation, les principes pour assurer la représentativité, mais
là, c’est encore un vaste chantier à développer.
Ce sont également les procédures, il faut dire que le
Comité a beaucoup investi ces derniers temps pour faci-
liter la tâche aux États, il y a toutes les personnes qui
travaillent sur le terrain en simplifiant et en clarifiant les
procédures. Ça s’est traduit très concrètement par la révi-
sion des orientations.
Troisième élément, troisième outil, ce sont les programmes.
Le Comité a ou a demandé au Secrétariat d’élaborer, pas uni-
quement des programmes thématiques, mais de développer
des programmes régionaux, qui s’appuient sur les résultats
des rapports périodiques. À nouveau une petite parenthèse,
élaborer un rapport périodique ça constitue énormément
de travail pour les États, alors autant qu’il serve à quelque
chose et qu’il soit la base d’un plan d’action pour l’avenir.
Enfin il y a donc la recherche des partenariats qui, pour
le directeur actuel du Centre, constitue une priorité. Quelles
sont les étapes, maintenant, de tous ces travaux, un peu
de façon chronologique? Je crois que vous êtes surtout inté-
ressés par tout ce qui concerne la Liste indicative et la pro-
position d’inscription. Je voudrais le placer dans le contexte
général. Il y a donc, premièrement la Liste indicative.
Ensuite l’État soumet une proposition d’inscription et cette
proposition d’inscription sera évaluée par nos organisations
consultatives, l’ICOMOS ou l’IUCN. Ensuite le Comité exa-
mine et décide d’inscrire, de ne pas inscrire, de demander
des informations complémentaires à l’État, ça s’appelle le
renvoi, ou de différer. Admettons qu’un bien soit inscrit.
Commence à ce moment là pour l’État-partie ou, en fait, s’il
a bien travaillé avant, ça continue, c’est la gestion du site. Et
de temps en temps, quand il y a de grands travaux ou quand
il y a des situations où le Patrimoine est menacé, il y a des
rapports sur l’état de conservation par ce qu’on appelle le
mécanisme de suivi réactif. Enfin, il y a donc le rapport
périodique qui est soumis par les États tous les six ans et qui
est suivi par un programme régional d’action.
[98] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
Comme vous pouvez le constater, l’inscription n’est
pas un aboutissement et dans ce que ça veut dire dans la
pratique, je crois que ma voisine de droite l’a très bien
démontré.
Les défis actuelsVous voyez que la Liste est extrêmement longue. C’est égale-
ment parce que j’ai scindé les différentes questions. Il faut
dire que les attentes du public et des États, des différents
États sont très, très élevées vis-à-vis de cette Convention du
Patrimoine Mondial qui figure parmi les Conventions inter-
nationales les mieux connues du grand public. Les attentes
sont différentes aussi, selon les régions du monde, et même
à l’intérieur d’une région, j’oserais dire que l’attente du
Portugal n’est peut-être pas exactement la même que l’at-
tente d’un pays comme l’Italie.
Ce qui me semble important à souligner, c’est qu’il faut
avoir une vision d’ensemble et que cette vision d’ensemble
est reflétée dans les quatre objectifs, les Quatre C, auxquels
il faut ajouter, évidemment, qu’il faut bien s’organiser.
Je vais donner maintenant quelques esquisses de
réponses à ces défis et je vais approfondir deux questions. Je
vais approfondir la question de la crédibilité de la Liste et la
question de la conservation des biens parce qu’il me semble
qu’au fil des présentations qui vous ont été faites hier et
aujourd’hui, ce sont les deux questions qui vous intéressent
le plus aujourd’hui.
La crédibilité et la représentativité de la ListeEn fait, qu’est-ce que c’est une Liste crédible, qu’est-ce que ça
veut dire? Jusqu’où allonger la Liste? Comme vous le savez,
le Comité n’a jamais voulu dire, par exemple que la Liste
n’excèderait pas 1000 biens sur la Liste. Est-ce que c’est
une bonne décision? Ou est-ce que ce n’est pas une bonne
décision? À qu’elle vitesse faut-il que la Liste s’allonge? Est-ce
que c’est réaliste que chaque année il y ait trente ou qua-
rante inscriptions supplémentaires? Je pose des questions,
je vous dis immédiatement qu’il n’y a pas encore de
réponses à ce jour. Mais il est très, très important de savoir
que ces questions figurent à l’ordre du jour du Comité.
Disons immédiatement que dès les années 90 le Comité s’est
penché sur la question de la crédibilité de la Liste parce qu’il
avait reconnu que certains continents n’étaient absolument
pas présents. Alors il est évident que la notion du Patrimoine
a évolué. Il est évident aussi que de nombreuses personnes
pensaient que la Liste du Patrimoine Mondial était la Liste
des merveilles du monde, ce que je pense nous savons tous
que ce n’est pas tout à fait le cas. Je crois qu’une meilleure
définition serait que la Liste du Patrimoine Mondial devrait
permettre de raconter l’Histoire de la Terre et de l’Humanité
à travers les sites du Patrimoine. Avec cette définition-là je
crois qu’il n’y a pas de pays ou de région ou de continent qui
ont moins d’Histoire que d’autres. Il y en a peut-être certains
où l’Histoire a été un peu plus mouvementée, il y en a peut-
être certains où l’Histoire s’est inscrite plutôt dans la conti-
nuité, mais tout le monde a une Histoire ou chaque com-
munauté a une Histoire, chaque région a une Histoire.
Toujours est-il que, pendant des années, le Comité ayant mis
en œuvre une stratégie globale pour une Liste représenta-
tive a dû constater qu’il y avait énormément de paroles mais
que, en fait, les États ne passaient pas nécessairement à
l’action et que les résultats étaient donc assez pauvres.
[99] Os Objectivos do comité do Património Mundial
Depuis 1999 l’Assemblée Générale a adopté une résolution
où elle demandait des actions concrètes. Et depuis, le
Comité est passé aussi des paroles à l’action. Alors, une des
premières choses qu’elle a demandé aux organisations
consultatives c’est de faire l’analyse, qu’est-ce qui figure
aujourd’hui sur la Liste, qu’est-ce qui figure sur ces Listes
indicatives, quelles sont les lacunes, en d’autres mots, quels
sont les sites qui ne figurent pas aujourd’hui sur la Liste du
Patrimoine Mondial et qui auraient dû y figurer depuis
longtemps. Une deuxième question est, quels sont les pays et
les typologies sous représentés. En attendant, le Comité a
décidé de ralentir le rythme des propositions. Il a fixé un
seuil, d’abord c’était un seuil de 30 inscriptions par an, en
juillet dernier il a décidé d’augmenter ce seuil jusqu’à 40
inscriptions par an et en limitant le nombre d’inscriptions à
un par an par pays, sauf pour les pays qui n’ont pas du tout
de sites inscrits.
Je voudrais mettre une mise en garde ici, quarante sites
de quarante pays différents, parce que c’est comme ça que
ça se traduit dans la pratique, c’est énorme. Et grâce à cette
règle très simple, la représentativité s’est améliorée, parce
que certains pays ne peuvent plus présenter deux, trois
sites, alors qu’ils en avaient déjà une vingtaine. Toujours
est-il que ça ne suffit pas. Il faut évidemment aider certains
pays ou certaines régions à identifier les sites ou les catégo-
ries de biens qui devraient figurer sur les sites. Je vous
donne un exemple très connu puisque notre Histoire
en Europe est enseignée en consacrant pas mal de temps à
l’Égypte des pharaons. Et bien tout le système, le paysage
culturel du Nil ne figure pas sur la Liste du Patrimoine
Mondial, pas encore du moins. On peut espérer que ça vien-
dra un jour. C’est un exemple d’un site qui aurait dû figu-
rer depuis longtemps. Toujours est-il que, je voudrais
mettre une deuxième mise en garde, c’est que le critère de
base doit être la Valeur Universelle Exceptionnelle, c’est
l’abréviation VUE – Valeur Universelle Exceptionnelle. Il ne
faut pas que le Comité arrive à une décision on commence
à inscrire des biens qui ne sont pas de Valeur Universelle
Exceptionnelle simplement parce qu’ils sont représentatifs
d’une catégorie sous représentée sur la Liste. À côté de la
Valeur Universelle Exceptionnelle il faut évidemment aussi
évaluer l’authenticité, le petit a et l’intégrité le petit i.
Alors, est-ce que le Comité va poursuivre dans cette voie?
Est-ce qu’il va instaurer d’autres mesures? L’avenir le dira
parce que c’est un des grands thèmes qui alimenteront sa
réflexion dans les années qui viennent.
La conservation des biensEn fait je vous ai dit que le Comité a décidé d’attacher une
grande importance à la conservation des biens parce que il
a constaté que certains biens étaient discutés chaque année
sous le point « état de conservation des biens » ou que cer-
tains biens étaient inscrits depuis des années sur cette
célèbre Liste du Patrimoine Mondial en Péril. C’est comme
si ils avaient un abonnement permanent, alors que ça ne
peut pas être le cas. Mais comme mieux vaut prévenir que
guérir le Comité s’est penché sur les éléments qui lui per-
mettaient d’évaluer si un État s’engageait, dès le moment
de l’inscription, à assurer la protection et la conservation
de ce lieu.
Alors quels sont les critères pour juger? Une fois de plus, la
base c’est la Valeur Universelle Exceptionnelle, l’authenticité
[100] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
et l’intégrité. Alors, nous avons entendu cet après-midi de
nombreux exemples de l’impacte du tourisme, sur les ques-
tions liées aux actions des populations locales ou l’absence de
populations locales et je crois que c’est un point qui intéresse
Lisbonne, d’autres exemples existent également. Je crois qu’il
faut effectivement souligner toute l’importance d’impliquer
dès le départ les différentes populations et les acteurs.
Enfin, est-ce qu’une inscription veut dire qu’un site est
figé à tout jamais? Certainement pas! Ce qu’il faut faire
c’est gérer le changement et, là aussi, j’étais particulière-
ment heureuse d’entendre le cas d’Évora. Je crois que ce qui
est important c’est effectivement de gérer ce changement et
pour gérer ce changement il faut avoir bien compris le site
du Patrimoine Mondial et sa Valeur Universelle Exception-
nelle. Ce qui vient que le Comité aussi a constaté que les cas
de succès, quand il formule des recommandations aux États
c’est que ces décisions doivent être motivées et précisées
par ce que ce n’est que comme ça qu’un dialogue fructueux
peut s’installer et que l’on peut conserver ce patrimoine qui
a été reconnu d’importance universelle exceptionnelle,
donc important pour l’Humanité toute entière.
Les nouveautésJe voudrais tout de même profiter de ma présence ici pour
souligner quelques nouveautés qui ont été introduites dans
ce processus de la révision des orientations parce que je
crois pour ceux qui travaillent sur le dossier ce n’est pas
sans importance. La première fois, c’est qu’il y aura un
mécanisme pour vérifier si une proposition d’inscription
est bien complète. C’est-à-dire que les États peuvent, pour
une date particulière, soumettre un projet de proposition
et le Centre du Patrimoine Mondial vérifiera si la proposi-
tion est complète et indiquera si ce n’est pas le cas, com-
ment il faut la compléter. C’est, je crois, une amélioration
vraiment très importante. Une deuxième amélioration c’est
que, vous savez que quand il y a évaluation par les organi-
sations consultatives, il y a d’une part sur dossier mais il y
a d’autre part aussi une mission d’évaluation sur place. Il se
peut que l’organisation consultative constate qu’il y a cer-
tains éléments d’information qui lui manquent. Et bien
cette année le Comité a demandé qu’il y ait un mécanisme
pour permettre à l’État-partie de donner les réponses à ces
questions précises, pour ne pas reporter l’examen du dos-
sier d’un an encore.
Troisième nouveauté, c’est que maintenant l’ensemble
des États ont accès à l’évaluation formulée par les organi-
sations consultatives ce qui n’était pas le cas dans le pré-
sent. Les États qui n’étaient pas membres du Comité décou-
vraient souvent les évaluations en séance, quand ils assis-
taient aux réunions en tant qu’observateurs.
Une autre amélioration c’est que la procédure pour éva-
luer l’état de conservation des sites, quand il y a un grand
projet immobilier ou un projet d’infrastructures qui pour-
rait avoir un impact sur le site et sa Valeur Universelle
Exceptionnelle, donc ces procédures ont été clarifiées, donc
maintenant les États sauront exactement ce que l’on attend
d’eux et comment réagir. Et enfin, et là aussi je crois que ce
n’est pas inutile, pour tout savoir sur les procédures, pour
avoir le texte de la Convention, le texte des orientations,
les formulaires etc., le Comité a demandé au Centre du
Patrimoine Mondial de réunir toutes ces informations dans
un recueil unique.
[101] Os Objectivos do comité do Património Mundial
Quelques clefs de succèsJe voudrais terminer ce bref exposé avec quelques éléments,
quelques clefs de succès et je crois qu’ici je vais rappeler
quelques mots-clés et quelques conclusions auxquelles vous
êtes probablement déjà parvenus vous-mêmes.
Je crois que la première question, ce qui est très impor-
tant, c’est le positionnement de chaque dossier, tant par, en
analysant les Listes indicatives vous-mêmes que la Liste du
Patrimoine Mondial, pas uniquement dans le cadre d’une
évaluation nationale mais également dans un contexte
régional. Il est évident que pour un pays comme le patri-
moine le contexte régional ne s’arrête pas à l’Europe, c’est
dans un contexte vraiment mondial qu’il faut le faire.
Quand je parle de positionner le dossier, je crois qu’il est
très important aussi d’apprendre des erreurs des autres ou
de capitaliser, pour le dire d’une façon plus positive, sur
l’expérience des autres.
Pour ce qui concerne la valeur universelle exceptionnelle
qui a été étudiée par plusieurs de vos éminents spécialistes
pendant ces deux jours, je voudrais ajouter les choses sui-
vantes. Il est très important de bien la définir mais ça ne suf-
fit pas, il faut également bien la comprendre et essayer
d’identifier les indicateurs physiques de cette valeur univer-
selle exceptionnelle et de l’authenticité et de l’intégrité.
Je vous donne un exemple qui n’a rien à voire avec le cas que
vous avez étudié, mais qui peut peut-être vous éclairer.
Quand on inscrit un site religieux et que, quand on rentre
dans ce site on est saisi par un atmosphère qui permet le
recueillement, il est évident que si ce site ensuite est déve-
loppé d’une manière presque commerciale pour attirer les
pèlerins et qu’il n’est plus possible de ce recueillir, il est évi-
dent que ce site a perdu une grande partie de sa valeur uni-
verselle exceptionnelle. Donc il faut essayer d’identifier pour
chaque élément de la valeur universelle exceptionnelle,
quelques éléments clés, physiques, pour essayer de la mesu-
rer au fil du temps. Et il faut essayer de préserver cette valeur
dans le long terme par la gestion, un système de gestion qui
s’inscrit dans votre tradition, votre système législatif, etc.
Il est très important aussi, l’expérience l’a démontré à
travers les rapports sur l’état de conservation, d’impliquer
la population locale et tous les acteurs concernés dès le
départ. Je crois que le séminaire qui est organisé ici par la
Mairie est un excellent exemple de cette démarche. Enfin je
voudrais aussi rappeler que la Convention est une
Convention entre États. Alors que les problèmes de conser-
vation qui sont rencontrés surtout dans les Villes ce sont
des problèmes de conservation où les Mairies ont un grand
pouvoir de décision. Donc, une coopération et je voudrais
citer un exemple que le Comité a étudié très récemment,
c’est un exemple de construction de tours à Vienne alors
que le site venait d’être inscrit sur la Liste du Patrimoine
Mondial, et que le Comité au moment de l’inscription avait
attiré l’attention de l’État-partie et donc de la Municipalité
sur le problème de la qualité de ces tours.
Il est donc de la plus haute importance qu’il y ait une
excellente coopération entre les autorités municipales et
l’État-partie.
Voilà les quelques conclusions que je voulais tirer.
J’espère qu’elles vous auront été utiles. Je suis évidemment
prête à répondre à vos questions.
Il ne me reste plus qu’à vous remercier, Madame, de votre
gentille invitation et à souhaiter bon vent à votre projet.
[102] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
[103] Os Objectivos do comité do Património Mundial
Candeeiros de Lisboa na fachada do antigo Ginásio Club Português, rua Serpa Pinto, 1944, Autor: Eduardo Portugal. Arquivo Municipal de Lisboa – Arquivo Fotográfico.
Resultados e Conclusões João Mascarenhas Mateus
[105] Resultados e Conclusões
No final destes dois intensos dias de trabalho, épossível afirmar seguramente que com estas Jornadasde Estudo foram obtidas as bases fundamentais parajustificar a candidatura da Baixa Pombalina à Listado Património Mundial. Estes resultados foramconseguidos de forma transparente e colocando em
Fotografia aérea de Lisboa, ca. 1932. Fotógrafo não identificado.
Arquivo Municipal de Lisboa – Arquivo Fotográfico.
aberto, ao debate público, os diversos aspectos desta com-
plexa iniciativa.
Um debate que contou com a presença do Presidente
do Instituto Português do Património Arquitectónico e
Arqueológico, do Vice-Director Geral dos Edifícios e
Monumentos Nacionais, da representação do Presidente
da Comissão Nacional da Unesco, da Secretária do Comité
Mundial do Património, de grande número dos técnicos
das Unidades de Projecto dos Bairros Históricos da CML,
de representantes dos comerciantes da Baixa, de residen-
tes e trabalhadores na área. Cada painel de comunicações
foi sempre seguido de comentários, perguntas e respostas
que permitiram o esclarecimento e a intervenção do públi-
co presente.
Obteve-se assim uma série articulada de depoimentos
inéditos em torno do objectivo principal desta Candidatura,
que consistia em demonstrar o Valor Universal Excepcional
da Baixa Pombalina.
Para atingir este fim, foram valiosos os depoimentos
de grande significado elaborados pelo grupo de estu-
diosos e profundos conhecedores deste sítio histórico,
convidados para integrar os vários painéis das comuni-
cações.
De forma integrada e exaustiva, todos os critérios de
classificação exigidos pelo Comité Mundial do Património
foram sendo sucessivamente abordados ao longo das diver-
sas comunicações apresentadas.
Neste âmbito vem a propósito recordar aqui, que qual-
quer bem cultural para ser inscrito na Lista Mundial
do Património, ou seja, considerado de Valor Universal
Excepcional segundo os objectivos da Convenção Mundial
do Património, só o poderá ser de facto, quando o Comité
Mundial do Património considerar que o bem proposto
obedece a um ou mais critérios de uma lista de seis
e simultaneamente observa o critério de autenticidade e
protecção.
As presentes Jornadas foram organizadas exactamente
de modo a aprofundar e desenvolver cada um destes cri-
térios, ocupando-se no primeiro dia com os seis critérios
gerais e no segundo dia com o problema da garantia da
autenticidade e da protecção como sítio classificado.
O primeiro painel de comunicações, que teve como
moderadora a Dra. Paula Costa da Comissão Nacional
da UNESCO, foi dedicado a aprofundar os dois primeiros
critérios da Lista da Convenção do Património Mundial,
a saber:
“O bem proposto deve:
(i) Representar uma obra-prima do génio da criatividade humana;
(ii) Testemunhar uma considerável troca de inf luências durante
um dado período ou numa área cultural determinada, no domínio
do desenvolvimento da Arquitectura ou da Tecnologia, das artes
monumentais, da planificação das cidades ou da criação de pai-
sagens;
De forma a fundamentar a observância do critério (i)
foi lida a comunicação do Prof.º José-Augusto França que
desenvolveu de forma magistral esta ambiciosa denomi-
nação.
Com esta intervenção foi possível compreender de que
forma a Baixa Pombalina representa uma obra-prima do
génio da criatividade humana, porque pode ser considerada
[106] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
na verdade como a “primeira cidade moderna do mundo
ocidental”.
Enquanto que em outras cidades como S. Petersburgo
e Washington onde as regras de uma “cidade moderna”
foram importadas, na Baixa Pombalina esta primeira cidade
do Ocidente construída com regras coerentes e integradas
pela primeira vez de forma original e revolucionária, foi
realizada por vontade política.
A Baixa constitui uma obra-prima do génio da criativi-
dade humana que se traduz hoje num sítio histórico-monu-
mental único para a História da Humanidade. É o resultado
de um esforço de um povo e de uma vontade política que
soube executar o plano de uma cidade moderna, exemplar
nas suas soluções metodológicas e tecnológicas, inovadoras
para a época. Com o tempo a Baixa foi enriquecida com as
melhores contribuições que essa nação, pelo seu universa-
lismo, lhe pôde acrescentar.
Pela qualidade e importância do seu plano soube manter
grande parte da sua integridade e reflectir a contribuição
de séculos de História, de estilos e de vontades.
Paralelamente, a criatividade humana reflectida em todo
este sítio monumental comporta a contribuição plural de uma
nação que na época do plano original, tinha uma influência
geo-estratégica e que soube integrar de forma excepcional
as influências universais dos cinco continentes.
A Candidatura da Baixa Pombalina, no limiar da come-
moração dos 250 anos do seu planeamento, pelo seu valor
de originalidade impõe-se sem nenhuma dúvida ou menos
direito do que S. Petersburgo (cujo centro já foi classificado
pelo Comité Mundial do Património) ou do que a potencial
candidatura de Washington.
Seguiu-se a comunicação do Prof. Sidónio Pardal que jus-
tificou a observância do critério (ii), situando a Baixa como
um marco na História da planificação das cidades.
Uma referência, antes de mais, porque foram inicialmente
equacionadas cinco possibilidades de intervenção, entre as
quais a reconstrução à l’identique, e de forma deliberada se
optou pela solução mais complicada de realizar. Esta solu-
ção adoptada implicava demolir a cidade baixa e sobre os
entulhos fundar uma nova cidade, melhorada nas suas con-
dições de drenagem pluvial e das águas fluviais. Uma opção
que implicou a criação de uma zona onde não era permi-
tida a iniciativa avulsa e onde as diversas especialidades
foram subordinadas à visão sistemática da cidade.
Por outro lado o planeamento de uma nova cidade sobre
as ruínas de uma existente com a imposição de uma ordem
arquitectónica e a regulamentação do processo de gestão
para assegurar a efectiva concretização da obra, constituiu
um facto inédito para a época.
A comunicação do Prof. Sidónio Pardal permitiu tam-
bém explicar como a concretização de um plano urbanís-
tico tão vasto, foi levada a cabo com uma capacidade
técnica e administrativa incomparáveis. Um plano franca-
mente inovador em relação aos princípios barrocos vigen-
tes nessa época que se apoiavam essencialmente na estru-
turação do novo desenho sobre uma base constituída pelos
pontos mais significativos da cidade já existente. Dentro
desses princípios, a Norte da zona a reconstruir, foi planea-
da a construção do Passeio Público, ideia recente dos finais
do século XVII (Peyrou-Montpellier).
Mas, acima de tudo, o plano da Baixa foi percursor da
atenção teórica e prática aplicada ao planeamento urbanís-
[107] Resultados e Conclusões
tico que só no final do século XVIII e ao longo do século XIX
será desenvolvido no contexto dos movimentos higienistas.
Desta corrente nascerão os planos de L’Enfant em
Washigton (1791), a renovação de Paris por Haussmann e a
expansão de Barcelona de Cerdà, em 1859.
Este planeamento deu pois uma atenção às soluções a
adoptar, diferentes das que preocupavam a Europa de então,
que se concentravam na concepção de grandes parques fora
das cidades sobre paisagens rústicas e no uso de formas orgâ-
nicas e naturalistas. Um planeamento urbanístico integrado
que foi levado a efeito pela contribuição multidisciplinar,
através das seguintes medidas e condicionantes:
• demolição total da maioria dos edifícios que tinham
resistido ao terramoto;
• reparcelamento perequacionado da propriedade imo-
biliária, de forma a libertar o desenho urbano do condicio-
namento cadastral;
• obrigação da observância do plano de reconstrução
por parte dos particulares;
• redução do risco de incêndio com um regulamento
que obrigou a altear as paredes das empenas para impedir a
comunicação entre os telhados;
• garantia do direito de propriedade privada e de viabi-
lidade financeira do empreendimento;
• construção de edifícios públicos e de serviços para
revitalização social e económica do centro da cidade;
• estabelecimento de um programa detalhado de reco-
lha de lixos, rede de esgotos e abastecimento de água potável
a fontanários;
• redução do risco sísmico com o alargamento das ruas
e diminuição da altura dos edifícios;
• definição de projectos-tipo capazes de serem interpre-
tados por gramáticas arquitectónicas diferentes;
• exigência de rigor formal com regulamento detalhado
de altura de pés-direitos, sistema construtivo geral, desenho
de vãos e guarnições, integração de estruturas de madeira e
alvenaria;
• incorporação da localização e da toponímia de activi-
dades comerciais pré-existentes (sapateiros, correeiros, ouri-
ves, prateiros, douradores, etc);
• concentração das actividades comerciais no rés-do-chão
e residências nos andares superiores;
• instalação na principal praça sobre o rio (do Comércio)
da Administração do Reino.
Seguiu-se o segundo painel de comunicações que mode-
rei, destinado a reforçar a observância do critério (ii), e fun-
damentar a observância dos critérios (iii) e (iv):
(iii) (O bem a classificar deve) fornecer um testemunho único ou
pelo menos excepcional sobre uma tradição cultural ou uma civili-
zação viva ou desaparecida;
(iv) (O bem a classificar deve) oferecer um exemplo eminente de
um tipo de construção ou de conjunto arquitectónico ou tecnológico
ou de paisagem ilustrando um ou vários períodos significativos da
história humana”;
A primeira comunicação do painel, a do Prof. Walter
Rossa, articulou-se em torno de três aspectos básicos
que caracterizam a excepcionalidade da Baixa Pomba-
lina: o plano, o método e a acção. Estes momentos tradu-
ziram-se em tópicos que foram desenvolvidos detalha-
damente:
[108] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
• A Baixa como documento único da afirmação e da matu-
ridade da Escola Urbanística Portuguesa caracterizada por
uma universalidade de experiências e mútuas influências,
obtidas com a expansão marítima;
• A Baixa como imagem esclarecida de uma metrópole-
capital projectada muito antes do terramoto, através de
informação recolhida a partir das mais importantes expe-
riências urbanísticas europeias então conhecidas;
• A Baixa apoiada numa metodologia de execução que se
baseou num sistema de pré-fabricação excepcional exporta-
do como modelo para outras cidades;
• A Baixa como integradora de conceitos de salvaguarda do
património que hoje são universalmente aceites mas que
nesse período histórico nunca tinham sido tomados em
conta a uma tão grande escala;
• A Baixa como conjugação perfeita entre Arquitectura e
Urbanismo e como fruto de um planeamento de uma cidade
que desejava também ser planeamento de uma sociedade.
O aprofundamento do primeiro tópico permitiu com-
preender como a Baixa surge no contexto evolutivo do
Urbanismo Português. Este plano excepcional e inovador
corresponde à afirmação da maturidade da Escola Portu-
guesa de Urbanismo e da Engenharia Militar. Uma escola só
entendida à escala do “império” universalista e espalhado
por todo o mundo.
Para completar esta reflexão sobre o valor excepcional
da Escola Urbanística Portuguesa, de que a Baixa constitui
o exemplo emblemático, é importante salientar que é um
valor que tem vindo a ser usado como base principal de jus-
tificação da classificação como Património da Humanidade
de muitos centros históricos espalhados pelo Mundo,
à semelhança das escolas espanhola, inglesa ou francesa.
O valor da Escola Urbanística Portuguesa tem sido usado na
classificação de centros históricos situados não apenas em
países lusófonos como o Brasil, mas também noutros onde
a língua portuguesa não é a oficial. É o caso da cidade de
Galle no SriLanka (fundada pelos portugueses no século XVI),
ou a Colónia do Sacramento no Uruguai fundada também
pelos portugueses em 1680, nas margens do Rio da Prata.
Um valor que se traduz na adaptação das regras europeias
aos materiais e condições climáticas locais, integrando e
interagindo com as técnicas, culturas e tradições locais.
Retomando o que foi comunicado, é possível concluir
que a Baixa constituiu o patamar de chegada de um pro-
cesso de aperfeiçoamento testado e amadurecido no Norte
de África, na Índia e essencialmente no Brasil, através do
desenho e da construção de “Cidades-Vilas”, iniciadas a partir
sobretudo da década de 50 do século XVII.
Seguidamente, o Prof. Walter Rossa desenvolveu outro
aspecto que reforça o argumento inicial do Prof. José-
Augusto França – o facto de o plano pombalino concretizar
a imagem urbanística, plástica e monumental de uma
capital já preconizada por Francisco de Holanda, quando
Lisboa passou a ter uma importância mundial a nível de
comércio global.
Esta ideia de Capital Ocidental Moderna Cosmopolita
continuou a ser muito desenvolvida por vontade de D. João V.
Lisboa era desejada como uma nova Roma e para esse fim
foi levado a cabo um levantamento cartográfico exaustivo
do existente e do projectado, sobretudo para a futura zona
ocidental da cidade que seria abastecida pelo aqueduto,
[109] Resultados e Conclusões
segundo um plano de Manuel da Maia de 1728. Nesta zona
tinha sido iniciada a construção de outros importantes
sinais de ocupação como o Palácio das Necessidades.
A reconstrução após o terramoto serviu para pôr em prá-
tica este plano e estratégia. Ao mesmo tempo este planea-
mento foi integrando a informação que ia chegando ao
reino de duas importantes operações urbanísticas euro-
peias precedentes; as de Turim (1673 e 1712-1714) através
dos contactos com Filipe Juvarra; e as de Londres, possivel-
mente pela intensificação das relações com a Grã-Bretanha
através de D. Catarina de Bragança, rainha britânica à época
do grande incêndio de 1666.
Para além de ter referido também Reims, Lyon e Bordéus,
esta comunicação salientou ainda as semelhanças com o
plano de Edimburgo, aprovado em 1766, dez anos depois
do da Baixa e com a mesma toponímia das ruas principais
da capital portuguesa (as ruas do Rei, da Rainha, do Príncipe
e da Princesa).
Para reforçar o valor da Escola Urbanística Portuguesa,
Walter Rossa salientou a excepcionalidade da normalização
da métrica e dos sistemas construtivos e de composição.
Desde as cantarias, às portas e caixilharias, passando pelas
telhas e os azulejos, tudo associado a um originalíssimo pro-
cesso de pré-fabricação. Este processo permitiu produzir no
próprio estaleiro da Baixa e exportar rapidamente por via
marítima a “nova cidade” de Vila Real de S. António, na então
longínqua província dos Algarves, 150 milhas a Sul de Lisboa.
Foi seguidamente afirmado o ineditismo dos conceitos
de património implícitos que toda a operação comportou.
O plano pombalino teve a sensibilidade de procurar inte-
grar a memória dessa zona da cidade, as presenças e as ocupa-
ções que nela coexistiam antes do terramoto, constituindo
uma iniciativa de grande erudição e visão histórica, num
período em que estas preocupações tinham sido apenas
afloradas na primeira lei de salvaguarda do património pro-
mulgada na Europa por D. João V, mas que estavam muito
longe de ser consideradas num plano de reconstrução de
uma cidade.
Esta conservação e continuidade da memória da cidade
foi obtida através de métodos vários:
• contenção da malha do novo plano nos limites dos anti-
gos bairros da Mouraria, Alfama, Castelo e Graça, onde
pouco foi demolido;
• demolição da zona do Chiado para levar a nova malha
da Baixa até aos limites da malha regular do Bairro Alto
planeada e executada no século XVI;
• interrupção da malha de ruas orientadas no sentido
Norte-Sul de forma a integrar fisicamente a memória de
eixos importantes antes do terramoto, como a Rua Nova d’el
Rei ou a Rua Nova;
• recontextualização de portais e outros elementos arqui-
tectónicos de antigas igrejas nas fachadas ou nos interiores
das novas igrejas;
• modelação da malha de forma a integrar monumentos
e importantes edifícios que tinham sobrevivido à catástrofe,
como o Convento do Corpus Christi.
Por fim, foi referido como o plano da Baixa correspondeu
não só ao planeamento de uma cidade como também de
uma sociedade, ambição própria do Iluminismo e do
Absolutismo esclarecido. A avaliação e previsão das diversas
actividades económicas e da sua implantação geográfica de
[110] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
forma regrada e regimentada, corresponderam mais do que
a um projecto urbanístico, também a um projecto social
único no seu tempo. A nova regularidade urbana implicava
uma disciplina renovada e um novo civismo.
A segunda comunicação do painel, do Eng.o João
Appleton, foi dedicada sobretudo à justificação do crité-
rio (iv).
Com esta intervenção foi possível concluir que a Baixa
Pombalina constitui um bem universal excepcional por se
tratar não só de um exemplo eminente de um tipo de cons-
trução como também de um conjunto arquitectónico-tec-
nológico, onde as soluções técnicas se combinaram de
forma tão complexa e original. Reconhecer este valor é reco-
nhecer a génese do planeamento deste sítio que se propõe
como candidato a Património da Humanidade. Esta afirma-
ção serviu para reforçar a tese do Prof. Sidónio Pardal, útil
à justificação do critério (v), de que a solução adoptada para
a reconstrução foi a que tecnicamente apresentava maiores
dificuldades, do ponto das vista de infra-estruturas.
Na verdade, a zona tinha sido duramente atingida pelo
maremoto e do ponto de vista geológico apresentava más
condições para a execução de novas fundações pelo facto de
se situar na zona lodosa e aluvionar da antiga confluência
de duas ribeiras. Para a melhoria dessas condições foi fun-
damental a utilização de estacas de comprimentos entre 1 e
6 metros que, mais do que transmitirem as cargas dos novos
edifícios ao solo apto à fundação situado a profundidades
consideráveis, terão servido à compactação dos solos super-
ficiais de aterro e de lodo e para aumentar assim a sua capa-
cidade resistente e portante.
Para resolver de forma original o problema das estrutu-
ras, a solução adoptada para as fundações foi completada
por uma rede de ruas e esgotos, em que foi prevista simul-
taneamente a condução e esgotamento das águas residuais
dos edifícios e a condução subterrânea do escoamento das
duas bacias hidrográficas constituídas pelos dois vales
situados a Norte da zona reconstruída.
Para além deste primeiro conjunto integrado de solu-
ções tecnológicas para as infra-estuturas, usado pela primeira
vez de forma sistemática numa área urbana tão vasta,
a Baixa foi tecnologicamente inovadora pela coordenação
dimensional baseada no palmo como medida padrão, usada
a todos os níveis do projecto e a todas as escalas do planea-
mento volumétrico:
• a uma grande escala, em planta, pela introdução do
conceito de quarteirão que funcionava como um único edi-
fício que agrupava vários lotes e cuja dimensão se baseava
no palmo;
• a uma escala média, em elevação, pela imposição de
uma regularidade das fachadas, em comprimento e altura,
que implicava uma distribuição homogénea e regular da
resistência estrutural dos edifícios;
• a uma escala média, em planta, pela organização inte-
rior dos edifícios determinada pela subdivisão da profundi-
dade dos lotes com paredes de frontal paralelas às fachadas.
Esta normalização determinava o número de divisões inte-
riores dos edifícios, entre malhas ortogonais de paredes de
frontal;
• a uma escala mais reduzida, com a normalização das
dimensões dos elementos em cantaria, da distância entre
prumos e travessanhos, dos elementos estruturais de
[111] Resultados e Conclusões
madeira, ou mesmo das dimensões dos acabamentos como
as caixilharias ou os azulejos.
Esta coordenação dimensional traduziu-se num proces-
so de industrialização dos materiais de construção nacio-
nais que foi único na História. Um processo que se caracte-
rizou pela fabricação em série de todos os elementos cons-
trutivos necessários a uma operação urbanística de dimen-
sões tão importantes.
Tecnologicamente inovador foi também o uso racional,
integrado e sistemático de soluções construtivas que se sabia
poderem reduzir a vulnerabilidade sísmica dos edifícios.
A solução da “gaiola pombalina”, que combinava a flexibili-
dade da madeira e a rigidez das alvenarias, baseada num reti-
culado de frontais compostos de prumos, travessanhos e esco-
ras com os seus interstícios preenchidos por alvenaria de
pedra ou tijolo, não é em si inovadora. Neste aspecto, vem a
propósito referir aqui, que os romanos já o conheciam como
opus craticium, e modernamente, com variantes próprias, os
espanhóis como “entramados”, os franceses como construção
em “collombage”, os italianos como construção “barracata”.
O que foi inovador na gaiola pombalina foi a sistematiza-
ção do seu uso com aperfeiçoamentos e regras de aplicação
destinados a aumentar a sua eficiência. Estes aperfeiçoa-
mentos consistiram:
• na imposição de regras de simetria, para redistribuir uni-
formemente esforços provocados por acções sísmicas;
• no detalhe da execução das interligações entre:
- frontais ortogonais;
- frontais ortogonais e paredes de alvenaria, com inter-
posição de gaiolas de madeira e elementos metálicos;
- paredes e pavimentos, através de frechais e contra-
-frechais.
A terminar o painel da tarde do primeiro dia, foi apre-
sentada a comunicação da Profª Raquel Henriques da Silva
que contribuiu para reforçar a justificação do critério (ii),
ou seja demonstrar que a Baixa testemunha uma considerável
troca de inf luências durante um dado período no domínio do
desenvolvimento da Arquitectura e sobretudo analisar a obser-
vância de parte do critério (iv) no que se refere a constituir
um exemplo eminente de conjunto arquitectónico, ilustrando um
ou vários períodos significativos da história humana.
Esta comunicação permitiu essencialmente evidenciar
as diversas influências estilísticas que o projecto inicial de
1756 e a actuação da Intendência Geral das Obras Públicas,
responsável pela concretização do Real Decreto de 1769,
foram sofrendo ao longo dos cem anos da concretização
do plano. Foi possível assim compreender como arquitecto-
nicamente, a Baixa reflecte “o dinamismo e a vontade de
moldar a cidade fora das normas estritas, unificadas e cen-
tralizadas da reconstrução sem lhe construir alternativa
mas introduzindo-lhe o pulsar de uma sociedade que, inci-
pientemente, se preparava para proclamar os direitos de
cada um”.
A apresentação foi articulada na análise de três perío-
dos históricos principais: o período de gestão pombalina,
anterior a 1777; o Iluminismo Mariano e o período do
Romantismo.
Logo desde o início da concretização do plano, a Baixa
sofreu alterações que permitiram enriquecer o “estilo frio”
do projecto inicial, com objectivos duplamente estilísticos
[112] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
e económicos. Durante este período, e até ao afastamento
do Marquês de Pombal, o plano estava ainda muito longe
da sua execução completa e só a Rua Augusta se podia dar
por concluída.
No que se refere às influências estilísticas, neste primeiro
período assistiu-se a uma vontade de passar da influência
barroca à rocócó. Desta primeira mutação, foram apresenta-
dos os exemplos da Praça do Rossio e da iniciativa da recons-
trução do Convento do Carmo. Por seu lado, o factor econó-
mico implicou várias alterações, entre as quais a substitui-
ção do 4º andar das mansardas por um piso adicional com
“varanda geral”, de forma a rentabilizar futuros alugueres.
No período do Iluminismo Mariano assistiu-se às pri-
meiras realizações de prospectos pombalinos em declive na
zona do Chiado, reservada à edificação de casas nobres e
palácios, fora da malha quadriculada da zona plana da
Baixa. Nestes prospectos começou a evidenciar-se, segundo
palavras da Profª Raquel Henriques da Silva, uma “segunda
arquitectura pombalina”, caracterizada por um tratamento
especial dos pisos térreos, das lojas e sobrelojas com uma
molduração erudita e recursos decorativos, de influências
ainda barrocas e outras já neo-clássicas.
Esta diferenciação e diversificação dos prospectos singula-
res, através de elementos decorativos, que ia sendo simulta-
neamente reabsorvida pela regularidade global das fachadas,
continuou a ser levada a cabo até ao final do século XVIII,
com o acentuar do eclectismo.
Ao período mariano, caracterizado por uma continuidade
do gosto ante-terramoto e por uma estética neo-clássica de
inspiração italianizante, seguiu-se um período essencialmen-
te caracterizado pelas influências românticas. Influenciado
economicamente pela independência do Brasil, pela revolu-
ção de 1820 e pela abolição das Ordens Religiosas em 1834,
este período é caracterizado pela remodelação de interiores e
adaptação a novos usos, pela multiplicação de marcas ecléc-
ticas que vão sendo dispersas pelas fachadas, com novos ele-
mentos decorativos, revestimentos de azulejos e alteração
dos pisos térreos para as vitrinas de novos comércios.
Como complemento a esta comunicação é útil salientar,
que este período dos cem anos de realização do projecto, ter-
mina com a efectivação do remate das duas praças principais
que delimitam a Baixa Pombalina. A Norte, este remate é con-
seguido com o portão de acesso ao novo Passeio Público; com
a construção do novo Teatro D. Maria II em estilo neo-clássi-
co romântico que a emoldura e constitui o principal centro
de simetria; com o seu calcetamento em “mar largo” e com a
inauguração da estátua central a D. Pedro IV em 1870. A Sul,
o remate final é conseguido, também nesse período, com a
inauguração do arco triunfal da Rua Augusta, dando unida-
de às alas oriental e ocidental da grande Praça do Comércio,
aberta sobre o rio Tejo, que também no final do século XIX
acaba por ser calcetada.
A manhã do segundo dia das Jornadas foi iniciada com
um painel, moderado pelo Dr. José Sarmento de Matos, dedi-
cado a aprofundar a justificação dos critérios, (iii), (v) e (vi):
(v) (O bem a classificar deve) constituir um exemplo iminente de
fixação humana ou de ocupação do território tradicional represen-
tativo de uma cultura (ou de várias culturas) sobretudo quando o
mesmo se torna vulnerável sob o efeito de mutações irreversíveis;
(vi) (O bem a classificar deve) estar directa ou materialmente
associado a acontecimentos ou a tradições vivas, a ideias, a crenças,
[113] Resultados e Conclusões
ou a obras artísticas e literárias com um significado universal
excepcional.
Sobre os critérios (iii) e (vi) começou por falar o Dr. Vasco
Graça Moura, desenvolvendo o tema da Baixa Pombalina
como elemento emblemático da cultura portuguesa e ima-
gem da sua projecção internacional.
A sua apresentação foi estruturada cronologicamente
de forma a demonstrar como Lisboa, “existe em milhares
de situações e testemunhos de cultura”, numa cidade con-
siderada por João Brandão, um primeiros olisipógrafos
do século XVI, como a “frol de todas as flores”.
Com esta comunicação foi possível compreender como,
concretamente no que se refere à zona da Baixa, esta foi já
antes do terramoto, tema de descrição, de inspiração literá-
ria e testemunho da civilização portuguesa. Na Relação em
que se trata e faz uma breve descrição dos arredores mais chegados
à Cidade de Lisboa, publicada em 1625, são descritos edifícios
e locais emblemáticos da Baixa directamente conotados
com as riquezas e produtos vindos do Oriente, como os
armazéns da Casa da Índia, ou, fulcrais para a vida da cida-
de, como o Mercado da Ribeira.
Mais tarde, a tragédia do terramoto inspirou poetas
nacionais e estrangeiros, da Inglaterra à Hungria. Como
complemento a este aspecto vem a propósito referir aqui
o Poème sur le désastre de Lisbonne ou uma importante parte
do “Candide”, de Voltaire, cuja a acção se passa em Lisboa
durante o terramoto, a meio da grande aventura do prota-
gonista Pangloss.
Segundo as palavras do Dr. Vasco Graça Moura, a catás-
trofe de Lisboa marcou profundamente a consciência euro-
peia e estabeleceu a importância da reconstrução como
uma referência cultural e civilizacional. A Baixa passou a
ser considerada como um monumento à razão, à margem
das utopias urbanas precedentes e posteriores. Por seu lado,
o episódio da tragédia do terramoto passou a constituir
tema recorrente de dissertações desde a primeira hora, até
aos nossos dias, desde o Abade de Jazente até Agustina
Bessa-Luís e Hélia Correia.
A partir do terramoto, a Baixa passou paralelamente a
ser centro de inspiração literária da cidade, começando
com o texto de Amador Patrício de Lisboa, de 1758, sobre as
medidas pombalinas para a reconstrução, passando pela
inauguração da estátua de D. José no centro da Praça do
Comércio, e por outros episódios, galanterias, devoções,
mundanismos, calamidades, casamentos principescos, fes-
tas e até crimes e suplícios.
No século XIX, inspirou escritores românticos como
Guilherme de Azevedo, Gomes Leal e Cesário Verde e foi local
de reunião de poetas como Nicolau Tolentino e Bocage,
no Martinho do Rossio. Na segunda metade desse século,
Eça de Queiróz usou a Baixa e principalmente o Chiado,
(com o Grémio, a Casa Havaneza e o Hotel Bragança) como
cenário dos seus romances, onde a grande burguesia e o
poder jogavam os papéis principais.
No século XX, a grande produção literária lisboeta,
nas artes, nas letras e no jornalismo, ficou intimamente
ligada aos locais do século XIX e a outros novos ou reno-
vados como a Brasileira do Chiado, a Livraria Bertrand,
o Martinho da Arcada ou o Café do Gelo, onde se reuniram
Aquilino Ribeiro, Fernando Pessoa, Alexandre O’Neil ou
David Mourão-Ferreira.
[114] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
A Baixa foi descrita sucessivamente como espaço de
tédio, de interioridade, de conspiração, de combate proletá-
rio, de memória pitoresca, de surrealismo e pós-surrealismo,
pós-modernismo e minimalismo. Sempre, e hoje em dia,
a Baixa continua a inspirar grandes vultos literários como
José Saramago, António Lobo Antunes ou José Cardoso Pires.
A comunicação terminou com duas reflexões muito
importantes e úteis para a Candidatura, que importa salien-
tar. A primeira, fundamental para a justificação do critério (v)
– a que afirma que ao contrário de outras reconstruções
de cidades como Pompeia, Londres, Varsóvia, ou Frankfurt,
a da Baixa Pombalina, foi a única que deu lugar a uma rein-
venção da sua própria alma. A segunda, a que afirma que a
Baixa Pombalina constitui um dos principais elementos
emblemáticos da cultura portuguesa e um núcleo irradiante
para a sua projecção internacional.
Seguiu-se a apresentação do Dr. José de Monterroso
Teixeira, que contribuiu sobretudo para a justificação dos
critérios (v) e (iii).
No que se refere a fundamentar o critério (v), foi detalha-
damente exposto o valor de persistência e de permanência
que está implícito na evolução do sítio antes e depois do ter-
ramoto. Estes dois valores foram responsáveis pela continui-
dade na fixação da ocupação humana apesar de esta ter sido
sujeita a uma tão grande ameaça. Uma fixação baseada sobre-
tudo na actividade comercial e na administração do poder.
A zona da Baixa no século XV começou por ver a cons-
trução do Palácio Real, como sinal da opulência da expan-
são manuelina. No final do século XVI, esse palácio foi enri-
quecido e embelezado com o torreão destinado a albergar
Filipe II. Durante esses mesmos períodos, a zona da Baixa
foi o centro mercantil de uma nação geo-estratégica e geo-
referenciada, onde as riquezas de todo o Mundo eram des-
carregadas e trocadas para eventualmente serem reembar-
cadas e distribuídas pela Europa.
A reconstrução depois do terramoto necessitou de bem
340 decretos e outros instrumentos legislativos, publicados
entre 1755 e 1838, para repor e melhorar esta mesma ocupa-
ção tradicional e característica de Lisboa e de Portugal.
Com o objectivo de restabelecer a função de sede de
poder, o torreão filipino constituiu fonte de inspiração para
o desenho da nova Praça do Comércio como “arquétipo
ordenador da monumentalidade da Baixa Pombalina”.
A Praça começou por recuperar primeiro a função de
espaço cerimonial e logo a seguir a de centro de poder, com
a instalação da Secretaria do Reino, nas várias alas da Praça.
A Norte, a Praça do Rossio, chamada Praça das Paradas
durante a ocupação francesa, tornou a albergar a sede do
poder religioso outrora representado pelo Hospital de todos
os Santos, com o novo Palácio da Inquisição situado sime-
tricamente ao Arco da Bandeira, sinal da classe de negócios
e do poder burguês.
O restabelecimento da função comercial constituiu um
processo mais complexo e baseou-se num dos decretos da
primeira hora após o terramoto, o de Novembro de 1760.
Nele foi definida uma “lógica hierárquica das actividades
comerciais, criando um monopólio para a Baixa”. As anti-
gas actividades comerciais e profissionais existentes antes
do cataclismo foram redistribuídas por ruas com toponí-
mias idênticas às outrora existentes, mas segundo um novo
ordenamento produtivo, esclarecido e moderno. A cada
[115] Resultados e Conclusões
uma das seguintes actividades foi atribuída a totalidade ou
uma parte bem determinada de uma rua: capelistas, mer-
cadores de loiça da Índia, de chá, de fazendas, mercadores
de lã e seda, ourives de ouro, ourives da prata, relojoeiros,
livreiros, mercadores de fancaria, de quinquilharia, doura-
dores, torneiros, latoeiros, bate-folhas, tendeiros, tabernei-
ros, correeiros, seleiros, sapateiros, algibebes, retroseiros,
sirgueiros, chapeleiros e outros misteres diversos.
Um plano levado a um detalhe e precisão elevadíssimos,
como forma de exigência de qualidade para uma fixação
humana e uma ocupação de um território, que não teve com-
paração no Mundo, no período histórico em que ocorreu.
No que se refere a reforçar a justificação do critério (iii),
a comunicação do Dr. Monterroso Teixeira foi particular-
mente esclarecedora da movimentação e intercâmbio dos
diversos movimentos ideológicos, políticos e literários de
que a Baixa Pombalina foi sendo palco, desde a sua criação.
Como exemplo importante, foi citada a discussão de ideias
de liberalismo sob o regime do Intendente Pina Manique
e a celebração do regime liberal com a inauguração da está-
tua de D. Pedro IV, primeiro imperador do Brasil, a que o
empedrado de Mar Largo alude.
Relativamente ao Chiado, esta comunicação permitiu
compreender também como a sua estrutura urbana e cul-
tural foi feita em torno do Teatro da Ópera e das residências
dos aristocratas e burgueses opulentos. Nessa zona foram
instalados, durante o século XIX e até ao período moder-
nista do Estado Novo, os hotéis, clubes, grémios e cafés lite-
rários e de tertúlia, onde as ideias e as novas modas circula-
ram e se discutiram.
Toda a comunicação foi ilustrada com citações, de auto-
res, que “leram” a “imagem” da nação portuguesa espelhada
na vida de Lisboa e na actividade específica da Baixa e
Chiado Pombalinos, tais como o inglês Arthur William
Costigan, a francesa Laura Junot, o sueco Carl Israel Ruders ou
o espanhol Miguel de Unamuno. Uma imagem que junta-
mente com o Tejo é cantada por inúmeros poetas, como a pro-
pósito importa aqui recordar, Lord Byron, no primeiro canto
do seu Childe Harold’s Pilgrimage, em 1812 1.
(…) What beauties doth Lisboa, first unfold!
Her image f loating on that noble tide,
Which poets vainly pave with sands of gold,
But now whereon a thousand keels did ride.(…)
Com esta comunicação, é pertinente afirmar que a Baixa
constitui com toda a certeza um exemplo iminente de fixa-
ção humana e de uma cultura sobretudo quando essa fixa-
ção foi exposta a um elevado grau de vulnerabilidade como
o provocado pela horrível catástrofe do terramoto. Uma
catástrofe que constitui ainda hoje uma referência, como
um dos mais destruidores terramotos da História, que arra-
sou o centro de poder e de comércio de uma nação e que
provocou uma percentagem elevadíssima de mortos.
Depois de desenvolvidos exaustivamente os seis critérios
básicos a que a Baixa deve responder para ser proposta à
Lista do Património Mundial, passou-se ao último painel de
conferências, que ocupou toda a tarde do segundo dia,
moderado pelo Dr. Elísio Summavielle, Vice-Director Geral
dos Edifícios e Monumentos Nacionais.
1] BYRON George Gordon (Lord), Childe
Harold’s Pilgrimage, A Romaunt, Canto the
First, 1812, London: Dent, 1975.
[116] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
Este quarto painel abordou os temas que se relacionam
com a segunda parte do dossier de candidatura e que deve-
rão ser objecto de maior aprofundamento na elaboração
do dossier a apresentar ao Comité Mundial. Estes temas
estão relacionados sobretudo com:
• a observação do critério de autenticidade e com demons-
trar que se dispõe de meios capazes de proteger o sítio a
candidatar;
• a estratégia e as peculiaridades de gestão de um sítio com
a importância de ser considerado Património da Huma-
nidade.
A exposição da Dra. Manuela Oliveira sobre o Caso de
Évora, como sítio já classificado, contribuiu para uma pri-
meira comparação de experiências.
A comunicação sobre o caso de Évora foi articulada em
três vertentes principais:
1. as vantagens obtidas pela classificação como Património
Mundial;
2. os problemas da sua conservação;
3. as acções em curso e em projecto destinadas à sua con-
servação.
Ocupando cento e quatro hectares de superfície, (supe-
rior à da Baixa) com três quilómetros de muralhas medie-
vais, Évora, centro histórico rico de monumentos dos perío-
dos romano, árabe e sobretudo do seu período de ouro
entre o século XV e XVII, foi classificado como património
da Humanidade em 1986.
De entre as vantagens conseguidas com a atribuição de
tão elevado galardão foi salientado o prestígio nacional e
internacional, o orgulho, o sentimento de pertença,
o aumento de turistas, de infra-estruturas turísticas e a cria-
ção de novos serviços e comércios.
No entanto, estes factores positivos e responsabilidades
acrescidas não foram acompanhados de um aumento de
verbas destinadas à preservação do sítio. A esta falta de
ajuda financeira juntou-se a degradação, a especulação imo-
biliária e o decréscimo da população (a actual população
intramuros representa pouco mais de 1/4 dos 20.000 habi-
tantes dos anos 1940).
Para obviar a estas dificuldades foi criado um serviço
municipal responsável pela gestão do sítio, diversos progra-
mas municipais de recuperação de imóveis privados e de
alguns grandes imóveis para serviços administrativos.
Condicionou-se o trânsito automóvel, criaram-se novos par-
ques de estacionamento, dificultou-se a terciarização,
reabilitaram-se infra-estruturas, requalificaram-se eixos
comerciais e espaços públicos.
Actualmente, estas medidas estão a ser seguidas por
novas acções que visam sobretudo compatibilizar a salva-
guarda do património com a melhoria das condições de
habitabilidade segundo padrões contemporâneos de con-
forto e segurança, de forma a atrair um acréscimo da popu-
lação residente. Com esta política de fixação dos residentes,
têm sido já conseguidos vários casos de sucesso com a rea-
bilitação de diversas zonas da cidade para fins residenciais
associadas a pequenos jardins, a garagens e à redução do
ruído ambiental.
Como desafios para o futuro, foram apontados os seguintes:
• uma melhor coordenação das instituições responsáveis
pelas diversas componentes da conservação, não só as tradi-
[117] Resultados e Conclusões
cionais instituições responsáveis pela salvaguarda do patri-
mónio, como também as que têm o pelouro da Segurança
Social, Habitação, Educação, Saúde e Desporto;
• a acção de equipas multidisciplinares de projecto e acção;
• novos instrumentos jurídico-administrativos para facilitar
e flexibilizar programas específicos destinados a resolver
problemas específicos;
• um maior investimento, com maior parceria entre os sec-
tores público, privado e cooperativo e um maior envolvi-
mento da administração eleita.
Esta comunicação permitiu pela apresentação de todos
estes sucessos e dificuldades compreender a complexidade
e a responsabilidade de gerir qualquer centro histórico. De
forma muito mais aguda e exigente, um centro histórico
que seja classificado Património da Humanidade, como se
pretende para a Baixa Pombalina.
Depois da análise da gestão integrada de um sítio já
incluído na Lista do Património Mundial, seguiu-se a inter-
venção do Arq. João Belo Rodeia, Presidente do IPPAR, dedi-
cada à classificação e à salvaguarda da Baixa como sítio his-
tórico e monumental. Uma intervenção que serviu sobretu-
do para esclarecer a articulação do IPPAR com a Câmara
Municipal e as diversas instituições responsáveis pela salva-
guarda do património.
A comunicação abordou as duas componentes funda-
mentais da candidatura, ou seja, a demonstração dos seis
critérios a que as presentes Jornadas se dedicaram e a justi-
ficação do critério obrigatório de autenticidade, integridade
e gestão de salvaguarda.
Sobre a observância dos seis critérios de excepcionalidade
que foram tratados nos dois dias das Jornadas, não foram
apresentadas quaisquer dúvidas, sendo bem claro que a Baixa
“reúne um conjunto de circunstâncias e valores extraordi-
nários que correspondem aos critérios anteriores”.
No que se refere ao critério (ii) e ao valor da Baixa como
síntese consciente, original e paradigmática no quadro dos
modelos urbanísticos da segunda metade do século XVIII,
adicionou Viena e Nancy, à lista de modelos inspiradores já
mencionados. Colocou de seguida em evidência a visão da
articulação do novo com o antigo e com a topografia, refor-
çando o valor da Escola Urbanística Portuguesa a partir de
experiências prévias nas cidades coloniais, postas ao serviço
de um projecto mais amplo e exigente para Lisboa.
No âmbito do critério (iv), recordou a originalidade e a
rapidez de execução de um plano tridimensional particular-
mente eficaz nos sistemas tipológicos estandardizados,
ao contrário de experiências semelhantes como a da Place
Vendôme ou a da Rue Royale em Paris, durante o reinado
de Luís XV, que não possuíam um modelo tridimensional
para a sua realização.
Enquadrando-se no critério (v), da ocupação territorial
pluri-social, o Presidente do IPPAR referiu ainda a coorde-
nação inédita de interesses públicos e privados e o contri-
buto dos intelectuais, em particular os da Arcádia Lusitana,
na implantação do plano da Baixa como demonstração de
um novo tipo de sensibilidade e vontade que levou à trans-
formação do bem comum e público em representação espa-
cial e dimensão estética.
No que se refere aos critérios (i) e (iii), salientou o facto
de que a Baixa é a concretização da vocação iluminada de
[118] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
Lisboa no contexto do seu tempo e constitui simultanea-
mente um monumento da Ilustração Europeia e um monu-
mento visionário da cidade romântica do século XIX.
Depois de analisados os seis primeiros critérios a comu-
nicação foi dedicada à análise dos parâmetros que deverão
reger a gestão da Baixa Pombalina, de forma a assegurar a
sua conservação, salvaguarda e valorização. Com este objec-
tivo, começou por recordar que praticamente a totalidade
da Baixa está já classificada como imóvel de interesse
público. Salientou depois que para atingir estes objectivos
será necessário o trabalho de uma equipa que constitua um
modelo que garanta a sua continuidade no tempo,
independentemente dos ciclos políticos. Esse modelo de
gestão deverá estar plenamente integrado no projecto glo-
bal para a cidade de Lisboa.
A gestão da Baixa Pombalina deverá saber equacionar as
modificações introduzidas com o tempo, relativamente ao
que foi planeado e realmente executado, e integrá-las como
experiências sedimentares que não afectem a sua integri-
dade e autenticidade.
Salientou ainda a necessidade de envolvimento directo
dos jovens e cidadãos em geral, nesta acção de gestão e sal-
vaguarda.
Reiterou por fim a disponibilidade total do IPPAR para
a concretização do tipo de gestão que foi em linhas gerais
apresentado pela Sra. Vereadora Dra. Maria Eduarda
Napoleão, na abertura das Jornadas.
Depois das duas comunicações sobre a necessidade de
demonstrar que o gestor do sítio candidato é capaz de o
proteger, salvaguardar e valorizar de forma integrada, foi
preciosa a comunicação da Arq. Bénédicte Selfslagh,
Secretária do Comité Mundial até Junho de 2003.
Nesta última comunicação, antes das palavras de encer-
ramento do Sr. Presidente da Câmara, foram apresentadas
as exigências que recentemente têm vindo a ser aplicadas
na selecção que é levada a cabo pelo referido Comité, que
será também o receptor e avaliador da candidatura da Baixa
Pombalina.
A apresentação foi organizada segundo os seguintes -
tópicos:
• A estrutura da Convenção do Património Mundial;
• As tarefas do Património Mundial;
• Os objectivos estratégicos do Comité do Património
Mundial;
• Os meios usados para atingir os objectivos estratégicos;
• A questão da credibilidade da Lista do Património Mundial
e a questão da conservação dos bens nela inscritos;
• Novidades no processo de revisão das candidaturas;
• Conselhos para quem prepara uma candidatura.
Em relação ao primeiro tópico foi recordada a adopção da
Convenção do Património Mundial em 1972 e a sua ratifica-
ção por vinte países em 1975. Hoje, a Assembleia Geral do
Património Mundial é composta por 176 Estados-membros e a
Lista do Património Mundial inclui 754 bens classificados.
A candidatura dos bens é apresentada, uma por ano, por cada
Estado-membro a partir de uma Lista Indicativa Nacional.
O órgão de decisão, o Comité do Património Mundial, é actual-
mente composto pelos representantes de 21 países, entre os
quais pelo de Portugal. O Comité tem um secretariado que é
denominado Centro do Património Mundial e é auxiliado por
[119] Resultados e Conclusões
três instituições consultivas: o ICOMOS, para o património
cultural, a IUCN para o património natural e o ICCROM para
as questões de formação.
O Comité tem como tarefas principais as seguintes: deci-
dir quais os sítios a serem inscritos na Lista do Património
Mundial (em média 40 por ano); examinar o estado de con-
servação dos bens candidatos; atribuir ajudas do Fundo do
Património Mundial (com um orçamento de aproximada-
mente 28 milhões de dólares) para a assistência internacio-
nal aos bens classificados.
Os objectivos estratégicos do Comité actualmente em
vigor são os adoptados na Declaração de Budapeste de 2002,
sendo conhecidos por os 4 C’s:
1. Garantir a Credibilidade e representatividade da Lista;
2. Assegurar o estado de Conservação dos bens inscritos
na Lista;
3. Reforçar as Capacidades dos Estados membros;
4. Responsabilizar a sociedade civil através da Comunicação.
Hoje é dada especial importância não só à excepcionali-
dade do bem como à sua conservação. Esta última é da res-
ponsabilidade dos Estados-membros, sendo a Convenção a
mera expressão de uma vontade de cooperação e solidarie-
dade internacional que procura responder às propostas
apresentadas.
Para a monitorização e avaliação periódica dos resulta-
dos que se vão obtendo, é feita regularmente uma análise
da Lista Indicativa fornecida por cada um dos Estados-
-membros. Com o mesmo fim é feita a análise de relatórios
periódicos das diversas regiões do Globo: Arábia, África,
Ásia, Pacífico, América Latina e Europa.
No que se refere aos meios usados para atingir os 4 C’s,
estes consistem resumidamente em: estabelecer princípios
de boa conservação; rever e simplificar os procedimentos de
classificação; estabelecer programas temáticos e regionais
e pesquisar novos parceiros.
Sobre a questão da Credibilidade da Lista do Património
Mundial, a Arq. Bénédicte Selfslagh referiu a preocupação
actual em completar devidamente a representação dos
cinco continentes de forma equilibrada. Na sua opinião,
a Lista deveria permitir contar a História da Terra e da
Humanidade através dos sítios do Património. Com esta
definição, nenhuma região ou continente poderiam ter
“menos História” que os outros.
Ainda sobre a Credibilidade, foi referida a actual preo-
cupação do Comité em identificar as lacunas, as tipologias,
os países sub-representados e os sítios que deveriam impres-
cindivelmente fazer parte da Lista desde há muito tempo e
que ainda não foram classificados como tal. A este critério
deve ser sempre associado o critério de base ou seja o do
Valor Universal Excepcional (VUE), associado ao pequeno
“a” – autenticidade e ao pequeno “i” – integridade.
Relativamente à questão da conservação dos bens candi-
datos, a tendência actual é a de exigir a sua salvaguarda a
partir do momento da sua inscrição. Posteriormente, a sua
permanência na Lista, dependerá da boa gestão do sítio e da
boa resposta às pressões e ameaças a que a sua conservação
esteja sujeita.
Na preparação das propostas das candidaturas foram
recentemente introduzidas novidades. Entre elas foi refe-
rida a existência de um futuro mecanismo destinado a veri-
ficar se a proposta de inscrição apresentada está completa.
[120] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
Cada Estado-membro passará também a contribuir para
a avaliação de cada candidatura, simplificando e reduzindo
o tempo do processo de decisão.
A comunicação foi concluída com alguns conselhos des-
tinados a qualquer equipa que prepare actualmente uma
candidatura. Como primeira ajuda foi salientada a impor-
tância de posicionar o dossier de candidatura em todos os
contextos, desde o nacional, passando pelo regional e ter-
minando no contexto mundial. Como segundo conselho foi
referida a necessidade de estabelecer parâmetros físicos que
permitam medir o VUE ao longo do tempo. Ao mesmo
tempo, a gestão do sítio proposto deverá estar bem integra-
da na tradição e na legislação nacional. Por seu lado. o rela-
tório sobre o estado de conservação do sítio deverá incluir
todos os actores envolvidos, em especial a posição das auto-
ridades municipais e a do Estado-membro.
No final deste “compte-rendu” destinado a integrar e
relacionar o conteúdo das diversas comunicações no âmbi-
to da demonstração do Valor Universal Excepcional da
Baixa Pombalina, necessário para fundamentar o dossier de
Candidatura em preparação, é oportuna a formulação de
algumas considerações complementares.
Uma primeira consideração relaciona-se com o critério
da Integridade e Autenticidade que não foi aprofundada-
mente debatido, por não constituir o objectivo principal das
presentes Jornadas, mas que será indispensável demonstrar.
Depois das comunicações apresentadas começa a ser
possível compreender como o poder de sobrevivência do
plano da Baixa Pombalina reside na versatilidade funcional
dos espaços que ao longo dos tempos se foram adaptando a
residências, a sedes de bancos, de diferentes comércios ou
de serviços públicos.
Por outro lado, o conselho obtido com a intervenção da Arq.
Bénédicte Selfslagh de estabelecer parâmetros ou padrões físi-
cos para ir medindo a autenticidade do sítio histórico, leva a
propor padrões que sejam pertença única da Baixa Pombalina.
Por exemplo, a conservação da cornija ao nível do 3º piso, que
tem vindo a ser respeitada apesar de se terem crescido alguns
andares acima (já desde o início da execução do plano, como
foi demonstrado), poderá ser usada como um desses padrões.
Outro padrão a usar, poderá ser a percentagem dos vãos con-
servados em relação à totalidade da superfície das fachadas.
Um terceiro padrão será o nível de conservação das escadas
comuns interiores aos edifícios.
Ainda em relação aos seis primeiros critérios usados
para avaliar o VUE deve ser salientado que, para além da
inspiração literária, não deve ser esquecido como o terra-
moto de 1755 serviu para variadíssimas discussões filosófi-
cas durante a época das Luzes, como tema de representação
pictórica e iconográfica do flagelo sísmico, na pior e mais
destruidora das suas acepções, que percorreu o Mundo e
constituiu imagem de referência.
Outro aspecto fundamental, que foi apenas aflorado
pelo Dr. Vasco Graça-Moura e pelo Dr. Monterroso Teixeira
em relação à cidade de Lisboa, é o da Baixa ter sido palco
dos acontecimentos históricos decisivos para a história da
Nação Portuguesa e de ter constituído a sala de visitas da
capital de Portugal. Em relação a este aspecto, fundamental
para a justificação do critério (vi), creio serem oportunas
aqui, algumas reflexões mais aprofundadas.
[121] Resultados e Conclusões
Na verdade, a Baixa constituiu o palco de muitos autos
da fé, de embarques, de desembarques, de recepções de
monarcas e dignitários, de manifestações, de um regicídio,
de cerimónias militares, da proclamação da República,
de funerais, de revoluções e de tantos outros momentos de
encenação política de toda uma nação.
De forma a basear esta ideia, deve ser recordado que,
antes do terramoto, o Terreiro do Paço chegou a funcionar
como sede do poder do Reino Unido Ibérico durante os dois
anos que durou a estadia em Lisboa de Filipe II e de alguns
meses de Filipe III. A Baixa viu partir a Infanta D. Catarina
de Bragança para se tornar Rainha de Inglaterra e levar
como dote de casamento Bombaím e Tanger; viu depois do
terramoto o prodígio tecnológico do transporte, elevação e
colocação da pesadíssima estátua de bronze de D. José I, que
constituiu para Portugal uma empresa equivalente à insta-
lação do obelisco vaticano na Praça de S. Pedro.
De recordar as paradas das tropas francesas no Rossio,
o embarque no Cais do Sodré das tropas de Junot, o desem-
barque no Terreiro do Paço de D. João VI regressado do Brasil,
a inauguração da estátua de D. Pedro IV no Rossio, a inau-
guração do mercado da Figueira, importante modernidade
permitida pela arquitectura do ferro. Ou ainda o casamento
e o funeral de D. Luís I ou o batizado e o casamento de
D. Carlos I na Igreja de S. Domingos. O ciclo de desembarques
e recepções no Cais das Colunas, do Kaiser Guilherme da
Alemanha, do rei Eduardo VII de Inglaterra, de Afonso XIII de
Espanha, da Rainha Alexandra de Inglaterra, do Presidente
Loubet da França. Os bota-abaixo com presença real na Doca
do Arsenal, a partida de corpos expedicionários para as coló-
nias, o regicídio de D. Carlos I e D. Luís Filipe, o seu funeral,
a proclamação da República do balcão do Município, a che-
gada do General Mendes Cabeçadas, as comemorações do
28 de Maio e do 10 de Junho no Terreiro do Paço, a recep-
ção de aviadores portugueses depois dos seus raids prodigio-
sos pelo Mundo, o desembarque da rainha Isabel II de
Inglaterra, a revolução do 25 de Abril, as manifestações pela
liberdade, concertos, instalações artísticas e tantas outras
manifestações públicas.
A lista é quase infindável mas demonstra bem a impor-
tância da Baixa Pombalina como palco de acontecimentos
históricos fundamentais para a cultura e a história de
Portugal. Uma História em imagens foi o tema que propus
para a realização de uma exposição iconográfica e fotográ-
fica, no âmbito da comemoração dos 250 anos de história
da Baixa Pombalina, organizada pela CML. Uma exposição
que poderá passar a constituir um dos núcleos de um futu-
ro Centro Interpretativo da Baixa Pombalina.
Como considerações finais a juntar a estes resultados e
conclusões, é importante constatar como os dois dias de
reflexão serviram também para exorcizar alguns medos ini-
ciais próprios de um projecto desta envergadura. Uma das
maiores preocupações levantadas nos debates prendia-se,
no início das Jornadas, com o facto de hoje, a Baixa, pela
incúria sofrida nas últimas décadas não corresponder ao
“plano inicial”. Ao longo das Jornadas, estas preocupações
foram sendo dissipadas pelas sucessivas contribuições dos
oradores que demonstraram como:
1. A Baixa é fruto de um modelo e de um conjunto de circuns-
tâncias e vontades que se foram juntando ao projecto inicial ao
longo de quase um século que levou a sua reconstrução;
[122] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
2. O aspecto actual da Baixa não pode ser confrontado
com um modelo ideal inicial pois esse modelo foi logo, na
primeira fase de trabalhos do século XVIII, adaptado e
alterado pelos seus autores.
Por outras palavras, a Baixa deve ser considerada
como ela verdadeiramente é, ou seja, um sítio histó-
rico monumental por excelência que testemunha uma
sobreposição de épocas, vontades e estilos que estão na
base da sua excepcionalidade como fruto de uma civili-
zação.
A empresa que foi lançada com a organização destes
dois dias de reflexão tem agora pernas para andar de
forma bem justificada e fundamentada. Uma empresa que
revela, pela primeira vez, uma vontade decidida e forte
para tomar em mãos o futuro e a gestão da Baixa de forma
responsável, estruturada e exigente.
[123] Resultados e Conclusões
Ornamentações da Rua Garrett no Chiado por ocasião da visita do rei Eduardo VII de Inglaterra, em 2 de Abril de 1903. Autor: António Novaes.
Arquivo Municipal de Lisboa – Arquivo Fotográfico.
Louvo a realização destas Jornadas e nomeadamente esta
incidência sobre os temas em que deve decorrer o processo
de candidatura da Baixa Pombalina a Património Mundial.
Fui informado dos vossos debates, das intervenções havidas
durante estes dois dias, e penso que a Sr.a Vereadora
Eduarda Napoleão terá exposto aqui a intenção de termos
este processo concluído em 2005, ano em que se completam
250 anos sobre este acontecimento que marcou a história
da Cidade.
Gostaria no entanto de vos dizer que a maneira como
estamos a trabalhar é independente de qualquer candida-
tura, reconhecimento ou distinção por uma organização
internacional. Tenho tido na minha vida pública a obriga-
ção de assumir a realização de efemérides, eventos, organi-
zações ou iniciativas que ocorrem a título excepcional e que
por vezes fazem desviar um pouco a atenção daquele que
deve ser um trabalho sustentado e permanente para atingir
os objectivos que prosseguimos. Enquanto Secretário de
Estado da Cultura, recordo que tive de coordenar a partici-
pação portuguesa, por exemplo, na Europália, na Lisboa
Capital Europeia da Cultura 94, na programação cultural
da Presidência de Portugal na então Comunidade Europeia
e na comemoração/evocação dos cinco séculos dos Descobri-
mentos, tudo na década de 90, em que foi necessário consa-
grar boa parte dos nossos esforços à garantia de êxito e
sucesso dessas iniciativas.
Iniciativas marcadas no tempo, mas que permitiram
algumas realizações no domínio da recuperação de marcos
do nosso património. Lembro que tarefas que deviam ser
permanentes, obrigatórias, cumpridas há muito tempo
antes, como os trabalhos de recuperação e enriquecimento
do Museu Nacional de Arte Antiga, do Museu de Arte
Contemporânea, entre outros, foram levadas a cabo nessa
altura. Com a disponibilidade de fundos graças à realização
dessas iniciativas, muitas peças valiosas do nosso patrimó-
nio móvel e bens imóveis relevantes, foram restaurados ape-
sar de estarem carecidos desse mesmo restauro desde há
muito tempo.
Julgo que não podemos, todos, membros desta comuni-
dade nacional, transmissores e receptores de influências
múltiplas, deixar de aceitar de nós próprios o retrato que
muitas vezes deixamos, que as pedras da indiferença ou do
silêncio tenham mais força do que as rodas, da força motriz
do desenvolvimento, ou até da luz. Neste caso, o que se está
a passar com a Baixa e com muito do património edificado
em Lisboa, integrado em zonas de relevante interesse histó-
rico ou patrimonial, é algo de exemplar a esse propósito.
Não posso deixar de referir o trabalho meritório, feito
por várias instituições, de entre as quais saliento a Direcção
Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, aqui repre-
sentada, a Academia Nacional de Belas Artes e as Faculdades
de Arquitectura, que têm desenvolvido trabalho relevante
nesta matéria. Na colaboração com o IPPAR deverão ser
acertados os momentos em que deverá ser dito não ou sim
em conjunto com a Câmara Municipal de Lisboa, numa ati-
tude de concertação. Temos todos esperança nesta equipa
nova que está a dirigir o IPPAR e no espírito que aqui já foi
revelado relativamente ao pensamento, exposição de ideias,
projectos e intenções.
É intenção e prática do Município ler as sugestões que
nos vão sendo feitas e nas quais atentamos com toda a
humildade. Em particular, as orientações ou sugestões para
Sessão de encerramentoPedro Santana LopesPresidente da Câmara Municipal de Lisboa
que se proceda a levantamentos do estado da situação de
zonas da cidade carenciadas, e nas quais começámos desde
a primeira hora a trabalhar.
Desde que assumimos funções, que foi iniciado o levan-
tamento pormenorizado de toda esta zona de intervenção
correspondente à Baixa Pombalina. De recordar a instala-
ção de piezómetros, para a avaliação da influência dos
níveis freáticos e do estado das condutas e colectores nas
fundações de toda esta malha edificada, para garantir a sua
salvaguarda e sustentabilidade.
Temos vindo de facto a efectuar, de forma embrionária e
modelar, várias intervenções em situações que nos parecem
de maior gravidade ou merecedoras de excepcional aten-
ção. Foi aqui salientado o caso da Rua da Madalena, mas
outras frentes existem como na Rua de S. Bento e noutros
bairros históricos da Cidade. Se se caminhar com um olhar
atento por Lisboa, será possível confirmar sinais muito evi-
dentes de mudança.
Para além das intervenções propriamente ditas, é tam-
bém necessária a sensibilização da maior parte dos pro-
prietários para o dever de cumprirem com as suas obriga-
ções. Para atingir esse fim, é necessário que os privados
acreditem na acção das autoridades públicas. Uma acção de
verdade e com verdade.
Não pode, por outro lado, continuar a suceder o que se
foi arrastando durante anos e mesmo décadas, em que exis-
tiram milhares de processos de posse administrativa blo-
queados à espera da consequente actuação por parte do
município e das autoridades públicas. Presentemente, tra-
balha-se de forma a contrariar este estado de coisas com a
intimação e a posse administrativa dos edifícios, seguidas
dos necessários trabalhos de recuperação e de reabilitação,
terminando com a apresentação da respectiva factura ao
proprietário que não tenha cumprido as suas obrigações.
Obviamente que sabemos que todo este renascer e todo
este movimento de consciência colectiva, no sentido de
assumirmos como imperativo as tarefas da reabilitação na
Cidade, relegando para plano absolutamente secundário as
permissões ou autorizações de construção nova, dependem
de um conjunto de decisões que respeitam não só às insti-
tuições representadas nestas Jornadas, mas que necessitam
de uma conjugação de esforços a nível nacional e local, de
instituições privadas e públicas, de investigadores, de uni-
versitários e de políticos.
Cumpre ainda salientar que está anunciada, a imple-
mentação de uma "alavanca" fundamental, fruto da expe-
riência de anos. Esta "alavanca" consistirá na lei do arren-
damento urbano e comercial que está anunciada pelo
governo para apreciação e aprovação em breve. Este diplo-
ma legal inclui um conjunto de instrumentos fundamen-
tais como as sociedades de reabilitação urbana que foram
recentemente discutidas e aprovadas pela comissão compe-
tente no Parlamento e que irão agora para promulgação
pelo Sr. Presidente da República. Estas sociedades permiti-
rão retomar um pouco a ideia dos fundos de investimento
imobiliário que tínhamos anunciado antes das eleições
para dotar estas acções dos necessários meios financeiros,
combinando bens públicos e privados. Estas sociedades de
reabilitação urbana aprovadas, há cerca de dois meses pelo
Conselho de Ministros, vêm permitir essa mesma combina-
ção e concentração de meios financeiros de várias nature-
zas.
[126] Jornadas A Baixa Pombalina e a sua importância para o Património Mundial
Gostava também de sublinhar que a orientação dada às
empresas que estão sob tutela do Município, nomeada-
mente a EPUL, que tem trabalhado fundamentalmente ao
longo destes anos na construção nova, tem sido a de incre-
mentar a importância dada às acções de reabilitação. Para
atingir estes objectivos, procedeu-se à recomposição dos
seus conselhos de administração, estruturas e recursos
humanos, passando nalguns casos pela sua recapitaliza-
ção de forma a dotá-las de meios financeiros que permi-
tam a sua ágil intervenção no mercado. Esta actuação está
a ser levada a cabo nas zonas mais relevantes da cidade
como exemplos deste empenho da autarquia na área da
reabilitação.
Na Baixa procuramos dar o exemplo e para isso criámos
uma unidade projecto específica para a zona da Baixa-
-Chiado que não tinha ainda sido considerada como gabi-
nete autónomo, à semelhança dos outros bairros históricos
da Cidade. Uma zona que viu ardida uma parte da sua área
nobre há quinze anos.
Mas não vale apenas falar do que está para trás. O que
realmente conta é termos a certeza de que estamos neste
momento munidos de meios necessários, tais como o
Fundo Remanescente do Chiado ou as Mega-empreitadas,
para tomar em mãos o futuro deste sítio histórico monu-
mental que nos pertence a todos.
Lisboa, 10 de Outubro de 2003
[127] Sessão de Encerramento
SIGLAS
CHE Centro Histórico de Évora
CME Câmara Municipal de Évora
CML Câmara Municipal de Lisboa
CPM Comité do Património Mundial
DGEMN Direcção Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais
EVORACOM Projecto Especial de Urbanismo Comercial – Revitalização
do Centro Histórico de Évora
FRRC Fundo Remanescente de Reconstrução do Chiado
ICCROM Centro Internacional para o Estudo da Preservação e Restauro
do Património Cultural
ICOMOS Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios
INH Instituto Nacional de Habitação
IPPAR Instituto Português do Património Arquitectónico
IUCN União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos
Naturais
PDM Plano Director Municipal
UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura
UNL Universidade Nova de Lisboa
URBCOM Sistema de Incentivos a Projectos de Urbanismo Comercial inserido
no Programa de Incentivos à Modernização da Economia, do Ministério
da Economia, Portugal
UTL Universidade Técnica de Lisboa
VUE Valor Universal Excepcional