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Fotografia, Memória e Arte: uma reflexão em volta das fotografias de Alexandre D. O’Neill.
ANAIS do 5º Seminário Internacional Museografia e Arquitetura de Museus Fotografia e Memória 1
João Barbosa Menezes de Sequeira
Investigador Sénior / Senior Researcher. Centro de Investigação em Arquitectura, Urbanismo e Design da
Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa (CIAUD-FAUL); Centro de História da Arte e
Investigação Artística, Faculdade de Arquitectura da Universidade de Évora (CHAIA-FAUE); Architectural
Research in Europe Network Association (ARENA); European Association for Architectural Education (EAAE-
Academy).
Resumo
Neste texto procuramos fazer uma pequena reflexão sobre a fotografia em volta das fotografias de
Alexandre Delgado O’Neill. Aceitamos, neste texto, algumas ideias de partida, que julgamos serem mais ou
menos consensuais; a de que a fotografia é um sistema artificial criado pelo homem para a captura de luz e
construção de imagens. Esse sistema de mediação apresenta características específicas, tanto face à
construção do referente imagético (que determina o tema), quanto face à escolha e selecção dos espaços e
objectos que lhe servem de matéria-prima (que lhe determina o enquadramento) como face à escolha do
momento da captura da imagem. Por um lado tentar entender a fotografia como mecanismo de mediação,
isto é, como é que, mecanicamente e quimicamente a aparelhagem fotográfica realiza aquele novo
subproduto que é a fotografia? Quais as transformações levadas a cabo, pela aparelhagem fotográfica e
laboratorial, sobre o objecto espacio-temporal (que tomamos por real) e quais as implicações de tal
sistema de redução e enfase na construção do referente? Por outro lado, será necessário perceber se os
contextos socio-culturais ou históricos, podem ou não ser capazes de construir e comunicar-se num
referente fotográfico testemunhal (Barthes, 1980)? E finalmente, procurar entender como a fotografia nos
aparece como algo que reenquadra, uma intenção, sobre o mundo e sobre o seu autor. Dando-nos a ver
uma construção de sentido ou ausência daquele. A abordagem deste ponto inicia-se de modo
fenomenológico, procurando encontrar esse écart esse desvio que inicia e é, a construção do sentido.
Abstract
In this paper we make a brief reflection on photographs around the photography of Alexander
Delgado O'Neill. We accept in this text, some parti pris, which are more or less consensual; photography is
an artificial system, created by man for light capture and image construction. This mediation system
presents specific characteristics: first connected with the construction of imagery reference (which
determines the subject); second, with the choice and selection of the morphology (space and forms) that
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serve as the raw material (which determines his frame); third with the choice of the moment of image
capture. On the one hand trying to understand photography as a mediation mechanism, meaning how,
mechanically and chemically photographic apparatus performs that new-product, the picture? what are the
transformations carried out by photographic and laboratory equipment on the spatial-temporal object
(which we take for real) and what are the implications of such reduction and emphasis in the construction
of the referent? On the other hand, we must understand if the socio-cultural or historical contexts may or
may not be able to build and communicate a testimonial picture (Barthes, 1980)? And finally, try to
understand how the picture appears to us as something that reframes an intention on the world by its
author. The approach of this point begins in a phenomenological way, trying to find this écart this deviation
that starts the construction of meaning in photography.
Introdução
Aceitamos, neste texto, algumas ideias de partida, que julgamos serem mais ou menos
consensuais; a de que a fotografia é um sistema artificial criado pelo homem para a captura de impressões
luminosas e para a construção de imagens. Esse sistema de mediação apresenta características específicas;
por um lado é uma tecnologia e não apenas uma técnica, por parece “pressupor a realidade existencial”
dos seus objectos. Neste último aspecto os temas são parcialmente determinados pelas regras da
semelhança e da transparência do meio, permitindo apenas ao autor a escolha do tempo e do lugar em
que esse referente é, como que, “capturado” numa imagem bidimensional.
De forma simplificada mas considerada de maior pertinência iremos abordar esta temática segundo
dois aspectos, a saber:
Por um lado tentar entender a fotografia como mecanismo de mediação, isto é, como é que,
mecanicamente e quimicamente a aparelhagem fotográfica realiza aquele novo subproduto que é a
imagem fotográfica? Quais as transformações levadas a cabo, pela aparelhagem fotográfica e pelos
processos de ampliação e revelação, sobre a materialidade espacio-temporal e quais as implicações, de tal
sistema de redução e ênfase, na construção do referente? Não se trata por isso de uma descrição técnica
sem consequências, mas de uma análise dos procedimentos e transformações e das suas implicações
naquilo que designaremos por construção do referente fotográfico. Dado que partimos do pressuposto de
que o “real universal e absoluto” é inacessível ao ser humano, pois os sistemas perceptivos humanos já
realizam um conhecido procedimento de ênfase e redução do mundo (Sequeira, 2009), importa questionar
quais os aspectos que se alteram entre uma percepção natural e a percepção artificial realizada através
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deste meio. A este assunto designámos “A fotografia como sistema de mediação”, acentuando deste modo
a necessidade de se considerar a inerência do meio, na construção do referente. i
Por outro lado, será necessário perceber se os contextos socio-culturais ou históricos, podem ou
não ser capazes de comunicar-se num referente fotográfico testemunhal (Barthes, 1980). A confirmação ou
negação deste pressuposto, muito comum na literatura sobre fotografia (Ducrois; Barthes, Krauss, etc.) tem
de passar pela compreensão do modo como o referente é construído pela fotografia e a recusa da ideia de
que referente e real são uma e a mesma coisa. Em todos os meios de comunicação aquilo que se comunica,
comunica-se num determinado meio e não através desse meio (Benjamin; 2011; 53). A comunicação
fotográfica apresenta um suporte especifico e tem a sua especificidade poética comunicacional. Para tal
avançamos, sem poder discutir aqui, com a complementaridade intrínseca de dois modelos semiótico-
retóricos usados na construção do referente fotográfico (Grupo μ; 1992: Sequeira; 2009) um com
características mais icónicas (ou tipificadas) e outro com características mais plásticas, de ratio dificilis (Eco,
1976). Este assunto será tratado de forma simplificada no ponto “Fotografia e Referente”.
E finalmente, procurar entender como a fotografia nos aparece como algo que reenquadra, uma
intenção, sobre o mundo e sobre o seu autor. Dando-nos a ver uma construção de sentido ou ausência
daquele. A abordagem deste ponto é silenciosa e respeita a linguagem fotográfica. Usaremos o mínimo de
texto, apenas a identificação da foto, o nome, se tiver, o local e a data da sua realização. Consideramos que
a abordagem deverá ser fenomenológica e cabe ao leitor encontrar esse écart esse desvio que inicia e é, a
construção do sentido. O desvio que assumimos como fenomenológico, pois se revela a si próprio,
transformar-se-á, como sempre acontece cognitivamente, no despoletar de uma construção do sentido. O
que é esse vacilar? Que deixa antever o vazio, o nada, a desordem caótica do mundo? Porque intuímos tal
coisa? Em que medida a compreensão de um certo grau-zero do referente pode ser fundamental para a
compreensão do desvio que faz emergir o sentido? Iremos opor-nos a uma visão desse desvio como coisa
ou particularidade que nos afecta de modo independente do que foi construído como referente. Da
selecção e estrutura deste capítulo imagético faz parte o nosso conhecimento pessoal e de amizade
profunda com o fotógrafo. A este ponto designámos por “Algumas fotografias de Alexandre Delgado
O’Neill”.
Estes três pontos de vista diferentes deverão constituir um corpus que, se não explica tudo, pelo
menos permite uma aproximação à "realidade" deste artifício de comunicação, que responde
historicamente a uma necessidade da sociedade capitalista e que é a primeira aparelhagem tecnológica
(não confundir com técnica) de mediação entre o homem e o mundo.
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Nada no mundo tem apenas uma natureza, ou como a metafísica gosta de designar, uma essência.
A ideia de uma essência unitária de cada coisa é um mito, provocado pela nossa necessidade de segurança
psicológica e por vezes pela nossa vaidade intelectual e etnocentrismo.
Afinal, na querela entre Heráclito de Éfeso e Parménides (o devir e o ser), parece que a física e a
arte vieram a dar razão ao primeiro, o mundo é movimento, transformação e metamorfose, como a bela
metáfora de Heráclito, “não se pode entrar duas vezes no mesmo rio, dispersa-se e reúne-se, avança e
retira-se” (frag.9). Num Mundo em devir o tempo e o espaço não se separam verdadeiramenteii mas
também não são absolutosiii
A fotografia, diz-se, “congela o espaço e o tempo numa imagem”, mas, mesmo que aceitemos esse
pressuposto, sabemos que essa desaceleração do tempo é ela mesma temporária já que sujeita à
degradação do novo material que a suporta. No entanto o seu referente é construído como um lugar
geométrico de observação e pressupomos um correspondente objecto observado com um tempo e um
espaço específico, isto é, ele parece ocorrer no cruzamento entre um tempo específico e um lugar
específico, num kairós e num locus, e simultaneamente num chronos
.
iv e num não-lugarv
A esses posicionamentos do ponto de vista do fotógrafo, capazes de capturar e enquadrar espaços,
pela criação de lugares e eventos, atribuímos “intencionalidade”, a marca da sua subjectividade. De um
modo mais radical podemos dizer que a “intencionalidade” na fotografia, se apresenta num continuum de
acções que vai da criação de um kairós e no enquadramento de um locus como construção de um referente
que se constitui como sentido através de modelos icónicos e/ou plásticos que reflectem também o limbo
espácio-temporal em que o referente é colocado. A fotografia parece querer resolver as problemáticas
epistemológicas dualistas (mente e corpo) eminentemente metafísicas quer nas problemáticas linguísticas
de Saussure quer à glossemática hjelmesleviana da separação entre referente e sentido.
.
vi E terá sido este
aspecto revolucionário que levou Walter Benjamin (1916) a ter em tão elevada conta a fotografia e o
cinema, mas como veremos enquanto certas fotografias ainda permitem uma distância crítica, o cinema é
pelo contrário uma tecnologia de manipulação pura, nascida numa época histórica em que, por
coincidência, ou não, nasciam também os regimes fascistas e o capitalismo passava da fase de produção
para a fase do consumo.
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Foto 1. Primeira fotografia que se conhece, Joseph Nicéphore Niépce (1826 ou 1827).
Foto 2. Boulevard du Temple - Paris, por Louis Jacques Mandé Daguerre (1838). Nota: a exposição prolongada da foto, cerca de 10 minutos, faz com que o tráfico e as pessoas não aparececem, no entanto na parte esquerda inferior da fotografia,
podemos ver a silhueta de um cliente e o engraxador que pelo tempo da actividade ficou gravada.
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O tempo e a fotografia (hipótese de uma motivação psicossocial)
Poderá parecer estranho iniciar uma reflexão sobre a fotografia colocando a questão do tempo,
mas acreditamos que a massificação dos processos de medição e controle do tempo têm tudo que ver com
o aparecimento da fotografia que usa a velocidade da luz para a criação de “pedaços” de um mundo. A
fotografia implica um controle cronométrico da velocidade de acção dos mecanismos e das reacções
químicas que tem tudo que ver com essa necessidade de controlo do tempo e por isso aqui fazemos uma
pequena ressalva que deve estar presente em todo o texto.
Acho que o tempo lhe escapa tal qual a cobra na mão molhada, justamente porque a segura com força demais. O Papalagui não espera que o tempo venha até ele, mas sai ao seu alcance, sempre, sempre com as mãos estendidas e não lhe dá descanso, não deixa que o tempo descanse … não sabe perceber onde está o tempo, não o entende e é por isto que o maltrata…
Tuiávii 1920 O Papalagui
Um dos textos que mais nos impressionou é que nos foi apresentado por António Tabuchi, no que
diz respeito à vivência e compreensão do tempo, nas nossas sociedades foi transcrito por Erich Scheurmann
em 1920 mas só em 1983 chegou a Portugal e tinha o título de “Papalagui”vii
que em samoeano nomeia o
“homem-branco” ou o “homem ocidental”. O livro é uma colectânea de textos que derivam dos discursos e
reflexões do chefe aborígene Tuiávii das ilha Samoas situadas no Oceano Pacífico Sul, entre o Havai e a
Nova Zelândia na Polinésia.
Foto 3. Alexandre D. O’Neill “Colagem” 1985.
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O que nos motivou o interesse neste livro foi a deslocação do observador face á cultura ocidental,
isto é, são comentários de alguém que não vive segundo os nossos hábitos, expectativas e cultura. Os seus
comentários apontam sobretudo para os desvios, para aquilo que lhe é estranho, para um outro que, neste
caso, somos nós. Desse modo transmite-nos também alguns momentos de estranheza sobre a nossa
realidade, sobre aquilo que é para nós um dado “natural”, uma noção “óbvia”.
Foto 4. Alexandre D. O’Neill “Gato”(1983).
O espaço e o tempo são as bases com que construímos a nossa civilização e a nossa cultura mas o
modo como os definimos são também resultado da nossa sociedade é da nossa cultura. Por isso o texto de
Tuiávii tem a vantagem de ser um deslizamento do nosso tautológico ponto de vista, mas sobretudo dá a
ver um paradoxo gnosiológicoviii, que embora desconheça as teorias da relatividade geral de Einstein sobre
as relações entre a matéria dos corpos e o continuo espaço-tempoix, mas mais sobre as questões culturais
que afectavam a civilização de Tuiávii, não deixa de levantar questões conexasx
A visão de Tuiávii parece explicar esta coisa estranha que é a ilusão e a criação dessa “necessidade”
de “congelar o tempo e o lugar” na imagem.
.
O Papalagui nunca está satisfeito com o tempo que tem: … Chega a blasfemar contra Deus, contra a sua grande sabedoria, dividindo e subdividindo em pedaços cada dia que se levanta de acordo com um plano muito exacto. Divide o dia, tal qual um homem partiria um côco mole com uma faca em pedaços cada vez menores. Todos os pedaços têm nome: segundo, minuto, hora.
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Ao contrário do círculo do relógio cuja bidimensionalidade é incompreensível para Tuiávii, a esfera
parece ser a melhor metáfora que encontra, não que ele considere o tempo esférico, mas porque a
integração do tempo na vida não pode passar pela linearidade mas por algo com uma tridimensionalidade
e simultaneamente como uma superfície sem princípio e sem fim, e por isso não compreende nem vê
sentido na escolha arbitrária de uma divisão ou na criação de “infinitos” pontos de partida e chegada no
tempo sem, com isso, perder o efectivo sentido do tempo. O papalagui está constantemente insatisfeito
com o tempo que tem, o tempo nunca chega e por isso ele divide e subdivide o tempo através de uma
máquina que lhe apresenta o tempo que está a ocorrer e o tempo que falta para o final. Por isso, ele
assimila a ideia de que a “vida do Papalagui” é, por muitas formas, semelhante à de um homem que vai de
canoa para Saváii e que, mal se afasta da praia, pensa: Quanto tempo vou levar para chegar a Saváii? Pensa
mas não vê a paisagem agradável que tem diante dos olhos”.
É a própria criação do relógio pelo Papa Silvestre IIxi, que inicia um processo de contrafacção pura,
que diz que o relógio através da sua existência milagrosa “dá a ver o tempo” determinando-lhe espaços
abstractos. Dar a ver o que não se pode ver, pode ter implicações mais complexas do que se supõe, pois
não depende apenas do aspecto milagroso, idealista e místico que se revela nesse milagre de “tornar visível
o invisível”, mas também deve considerar as implicações que tal meio tem no que procura manifestar. Isto
porque acreditamos que os sistemas de mediação, para além de serem um real afastamento do homem
face à natureza e à coisa assim mediada, tem especificidades emergentes próprias que determinam o modo
como se desenvolve doravante o conhecimento daquilo que foi alvo da mediação, neste caso o tempoxii
Mais adiante Tuiávii expressa os meios como o “homem branco” procura parar o tempo referindo-
se ao fogo e aos relâmpagos que brilham o céu, como se através dessa comparação estivesse já presente a
fotografia.
.
O Papalagui emprega todas as forças que tem tentando alongar o tempo o mais possível.
Serve-se da água e do fogo, da tempestade e dos relâmpagos que brilham no céu, para fazer
parar o tempo. Põe rodas de ferro nos pés, dá asas às palavras que diz para ter mais tempo.
Esta angústia que marca a civilização ocidental sobretudo desde a revolução industrial, é sem
dúvida o “que faz correr Sammy”xiii. Na mediação da morte e como sistema de exercício do poder o
ocidente criou as máquinas e a máquina suprema, o relógio. O relógio que inicialmente acompanha a
mecânica de uma visão funcionalista e arregimentadora do tempo (Foucault; 1975) e depois se torna
digital, mais fluido e mais intrusivo no controlo (Deleuze, 1975) é sem dúvida uma mediação que nos
permite tentar controlar o fluxo imparável do tempo, pois, de forma ordenada, este sistema de mediação
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subdivide o tempo ao infinito através da ilusão do Paradoxo de Zenoxiv
(…) lembro-me de que originalmente o material fotográfico dependia das técnicas da marcenaria e da mecânica de precisão: as máquinas no fundo eram relógios de ver, e talvez em mim alguém muito antigo ainda ouça na maquina fotográfica o ruído vivo da madeira. Roland Barthes, 1980, pag. 30
. No entanto, o tempo do relógio é
um tempo vazio, é um intervalo entre dois pontos, ele ilude um sistemática conexão com a vida, mas não a
representa, é coisa exterior e abstracta.
Tal como o relógio, mas de forma inversa, a fotografia parece ter a capacidade de capturar pedaços
do mundo através de um enquadramento que os delimita e enquadra numa nova realidade. Este mesmo
enquadramento que parece fragmentar as malhas do tempo ou que parece preenche aqueles tempos
vazios e apresenta noutro tempo e noutro lugar o que registou. Paralelo da a-historicidade Renascentista
Arquitectónica quando recolhe fragmentos de um tempo que já não existe mais, a Antiguidade Clássica
(Tafuri, 1979).
Espaços e memórias são aparentemente testemunhados pela fotografia, o reflexo desses pedaços é
capturado pela câmara, sofre um conjunto de operações e surge construindo imagens que em muito se
assemelham ao objecto do qual são o reflexo, mas com ele nunca se confundem.
Tal como o relógio a fotografia é uma aparelhagem engenhosa e “mágica” que, na criação da ilusão
de captura de um “real”, faz aparecer a ideia de que aquilo que simula teve uma efectiva existência.
Alimentando assim a ilusão paradoxal da permanência dos espaços-tempos do mundo.
Todo este texto procura dar a entender este aspecto místico que tem sido responsável por um
conjunto enorme de equívocos sobre a fotografia. A fotografia não só aparenta congelar a memória de um
lugar como na sua capacidade de contrafacção transforma-se no “índice” ou no rasto dessa memória,
permitindo que cada visita, cada olhar reconstrua simbolicamente a memória do mundo, ao ponto de
muitas vezes julgarmos que vivemos algo quando apenas vimos a fotografia. Fenómeno recorrente nas
crianças que afirmam lembrarem-se do casamento dos pais, porque viram vezes seguidas as fotografias
daquele evento. E mesmo que saibamos que o que fotografamos não é “real”, pois a fotografia, tal como o
desenho apenas enfatiza e exclui traços do mundo, não deixamos por isso de “acreditar” que o que vemos
foi real. Ideia esta imbuída na expressão do “isso-foi” e na “dualidade denotativa e conotativa da
fotografia” que tantos autores usaram para definir o “noema da fotografia” (Barthes; 1961).
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A fotografia como tecnologia de mediação:
Convém agora debruçarmo-nos um pouco sobre a “coisa em si", o mecanismo e o processo que
permitem a “emergência fantasmática” da imagem fotográfica.
O significado do nome é como sabemos "escrever com a luz" ou "escrita da luz", este último é
talvez mais curioso porque não empresta nenhuma intencionalidade àquele que fotografa, mas sim à luz
que toma um sentido quase anímico de autor, é a luz que escreve, que recorre à sua materialização gráfica
através da energia que activa processos químicos. Por outro lado a primeira definição coloca-a como verbo
ou como meio, instrumento ou acção cuja autoria é remetida para o anonimato abstracto de um utilizador
que pela sua competência domina a luz e com ela escreve.
Este meio em si, a aparelhagem fotográfica tem algumas particularidades que não podem deixar de
nos interessar, pois esta aparelhagem será sempre algo que se coloca de permeio, que permitindo a acção
e a produção de imagens não deixa de as caracterizar, isto é, não deixa de lhes colocar limites e de as
condicionar.
A fotografia é uma impressão luminosa num material fotosensivel, esse procedimento é levado a
cabo através de um dispositivo que permite regular essa exposição. A regulação é conseguida através do
controle da relação entre o tempo de exposição e/ou quantidade de luz incidente no material fotossensível
e uma película com diversas sensibilidades. O controle da incidência de luz é conseguido pela velocidade de
obturação e pela maior ou menor abertura de um diafragma. A película não é mais do que um suporte de
plástico (acetato de celulose ou poliéster) onde se colocou uma gelatina que agrega brometos de prata,
sendo esta última a solução química que é sensível à luz. Existe actualmente um padrão, que procura
quantificar essa sensibilidade, designado pelo acrónimo ISO (5800 de 1987) ou International Organization
for Standardization que concilia dois padrões anteriores, o ASA (American Standards Association) e o DIN
(Deutsches Institut für Normung), sendo o primeiro aritmético e o segundo logarítmico.
Assim, uma película com um número ISO elevado significa uma película mais sensível à luz e por
isso com necessidade menor de exposição à luz. A exposição depende de três factores a intensidade da luz
do ambiente, a quantidade luz que o diafragma permite passar e o tempo em que o obturador está aberto
e expõe a película. Dado que quanto menor for a exposição menos tempo tem o filme para a captura da
imagem, as películas com maior sensibilidade originam impressões com uma granulosidade maior.
Inversamente o uso de uma película de fraca sensibilidade (ISO baixo) para um ambiente com pouca luz
implicará, ou uma maior abertura do diafragma ou uma velocidade de obturação mais lenta, ou ambos e
corremos o risco de ter um esmagamento da imagem, ou uma imagem desfocada, quer pelos ligeiros
tremores da máquina provocados pelo seu manuseamento quer pelo movimento das coisas fotografadas.
Assim, quanto menor é a abertura do diafragma mais tempo de exposição pode um filme aguentar
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permitindo que todos os objectos se apresentem nítidos e criando um efeito de maior profundidade de
campo da imagem. Quanto mais lenta a velocidade de obturação maiores os riscos de desfocagem.
Há por isso um “trabalho” que tem de ser realizado entre fotógrafo e aparelhagem que depende da
boa conjugação entre a quantidade de luz existente no ambiente externo (medida pelo fotómetro ou
luxímetro), a velocidade de obturação (medida dada pelo tempo de exposição e controlado
mecanicamente em velocidades que vão da indefinida – B ou bulb – até velocidades de 1/8000sxv
Posteriormente apareceram as máquinas semiautomáticas e automáticas. As primeiras
automatizam através de pequenos processadores digitais, quer a abertura do diafragma, quer a velocidade
de obturação de acordo com a sensibilidade da película e finalmente as máquinas totalmente automáticas
que apenas deixam ao fotógrafo o papel de enquadrar e escolher o tema, pois para além de controlarem a
velocidade e a luz, calculam o ISO de sensibilidade necessária e focam automaticamente os objectos.
) e o
controlo de abertura do diafragma (que varia entre valores f-stop numa escala que vai de 1 de abertura
total e 64 de maior fechamento).
Assim, cada fotografia é específica para cada situação e seu contexto.
Funcionalmente, entre a fotografia analógica e digital o que varia é o registo, pois o sistema de
captura é igualmente óptico-mecânico. Não sendo algo que se diferencie imediatamente não deixa de ter
implicações com alguma complexidade que evidenciam a sua diferença. A película e a reacção química
controlada na película, que implicava a posterior revelação e fixação (em absoluta ausência de luz – tanque
de revelação) e a ampliação para papel fotográfico com um processo semelhante de revelação e fixação,
desaparecem para dar lugar a um aparelho semicondutor que regista a energia da luz, sendo no caso dos
sensores CCD (charge coupled device) esta informação analógica transformada em dados digitais, processo
que é dispensado no caso dos sensores CMOS (complementary metal oxide semiconductor) que captam a
luz electronicamente em formato digital. Dado o processo ser por medição directa da luz a não por reacção
química não existem negativos a revelar nem é necessário o processo de ampliação sendo a imagem
armazenada digitalmente em chips de memória. A própria impressão, que é doravante o processo de
materialização da imagem, é vulgar e só é realizado em casos específicos pois a imagem pode ser vista em
qualquer ecrã.
No final o resultado não é exactamente igual ao da película, pois sente-se a pixelização que é
sempre matematicamente ordenada no suporte ao passo que na película a homogeneização dos
halogenetos de prata no suporte sensível é orgânica. Tal facto permite por exemplo que a ampliação das
fotografias analógicas corra de modo menos limitado senão através da ISO, enquanto nos sistemas digitais
há um limite que se prende com a dimensão da matriz electrónica de pixéis (memória). Este facto leva a
que os profissionais de cartazes de grande dimensão e os profissionais de publicidade continuem a usar a
película em muitos dos seus trabalhos. Mas, em que medida nós sentimos esta diferença da imagem
fotográfica analógica e digital, para lá das necessidades operativas dos profissionais?
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Na verdade, esta questão não tem uma única resposta, pois depende da qualidade da fotografia
específica e da sensibilidade do observador. Dado tratar-se de uma alteração parcial da fotografia, não
afectando a lógica óptico-geométrica de captura da luz apenas em determinadas situações de pixelização
das imagens em formato bitmap (mapa de bits, que implica uma descrição de cada um dos pixéis em
formato binário) aparece um padrão (textura) que difere do habitual padrão ou textura dos materiais que
reconhecemos quando em observação directa do mundo. Tal deve-se à artificialidade destes padrões
formados por interpolação e álgebra matricial. Este facto ajuda à percepção da fotografia como aparelho
de mediação e reduz o seu nível de transparência construtiva do referente ou como alguns preferem o seu
nível de morfogénese por projecção (Eric Alliez, 1994: 269).
No entanto existe um aspecto da fotografia digital que vem ao encontro daquilo que referia W.
Bnjamin em 1936 no seu artigo, “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”, existe um
acréscimo geométrico no valor de exposição da imagem digital, pois doravante esta é disseminada através
das redes digitais mundiais.
A descrição que fazemos aqui não tem apenas um papel enfadonho e técnico, visa sobretudo
perceber como estes processos têm evoluído. O desenvolvimento desde a fotografia realizada por uma
caixa de madeira perfeitamente estabilizada num tripé, com baixas velocidades de obturação e suportes
com relativamente pouca sensibilidade - que necessita de um conjunto de procedimentos de
revelação/ampliação para que a imagem fotográfica se manifeste – até às máquinas automáticas e digitais
que não só calculam as resoluções, como automaticamente nos permitem ver a imagem fotográfica e cuja
massificação máxima foi a integração em outros aparelhos como o telemóvel, não deixa de ter
consequências enormes para a nossa análise.
As discussões iniciais sobre o choque entre a pintura e a fotografia tinha naquela época alguma
razão de ser, pois as primeiras fotografias (foto 2) ainda provocavam a sensação de imagens mais
duradouras, mais próximas da pintura, facto que segundo Benjamin (1931) vinha da maior duração da
exposição que as mesmas tinham de ter dada a fraca sensibilidade à luz das primeiras emulsões de prata.
Ainda hoje constatamos uma relação directa entre sensações de maior inquietação, stress, calma ou
permanência e as velocidades de obturação, abertura do diafragma e as sensibilidades da película à luz.
Perante uma fotografia com maior profundidade de campo, resultante de uma menor abertura do
diafragma e de uma velocidade mais reduzida de obturação, sentimos uma imagem mais estável com maior
duração temporal na sua produção, pois implica que o olhar tenha tido tempo para focar os diversos planos
separadamente. Em contrapartida uma imagem mais plana ou “esmagada”, resultante de uma maior
abertura de diafragma e/ou mair velocidade de obturação, com apenas um plano focado e os restantes
desfocados, surge como uma imagem mais instantânea, mais frágil, mas simultaneamente mais próxima de
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uma simulação do olhar quotidiano. Esta tendência para uma próximidade quase pornográfica a que
designamos simulação, marca o início do fim da representação.
A fotografia introduz uma alteração radical no processo de produção das imagens e na construção
de referentes imageticos ou icónicos. A “responsabilidade”, leia-se o controle do processo de produção,
passou da mão para o olho, criando uma maior abstracção e consequente libertação dos processos de
produção mas simultaneamente convoca uma maior tactilidade e próximidade nos processos de recepção e
tal tem as seguintes repercussões:
- introduz-se uma distância maior entre os sistemas de produção e os modo de apropriação dos seus produtos, acentuando-se um processo de alienação global, no qual à abstracção produtiva de uma hipermediação (Bolter et all.; 2000) se desenvolve uma imediatez na recepção dos referentes produzidos pelos novos sistemas de mediação do mundo; - esse distanciamento faz-se através daquilo que designamos por tecnologia (para a distanciar da técnica que é ainda algo ligado ao artesanato), inaugurando uma fase sistémica dos processos de mediação reforçada e possível pela revolução digital; - “fazer as coisas 'ficarem mais próximas' é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua tendência a superar o carácter único de todos os factos através da sua reprodutibilidade.”(Benjamin; 1916; 170). Esta necessidade de proximidade espelhada na imediatez da recepção, “de possuir o objecto, de tão perto quanto possível” recebe hoje o nome de simulação e é também a destruição da “aura” do referente pela sua sobreexposição pornográfica; - simultaneamente, na fotografia mas também noutros processos de mediação, assistimos a um fechamento tecnológico dos sistemas abstractos de produção, isto é, se os processos iniciais de produção ainda contemplavam a distância de uma “alquimia” mecânica e química por parte do produtor/fotógrafo, hoje estes mesmos processos de produção, fecham-se em subsistemas tecnológicos que se tornam progressivamente em pequenas “caixas negras” simbólicas e onde o processo de produção assume cada vez mais uma qualidade manipulatória de entidades abstractas e mágicas. - por tudo isto não só há um extremar das posições quer dos valores de exposição quer da aura (conceitos propostos por Benjamin em 1936), pois o referente assume a totalidade do valor de exposição e a aura – e a sua magia mistica - passa integralmente para os processos de produção, como se inicia aquilo que hoje vulgarmente se designa por tecnologia e que não é apenas um conjunto de técnicas, mas a autonomia de um campo disciplinar que pela assunção dos valores empiricos de verdade parece ser o natural herdeiro da ciência e dos procedimentos levados a cabo para a obtenção da verdade. Isto é, ao assumir estes valores de veracidade a actual tecnologia, ao nível social e cultural propicia o maior movimento de contrafacção a que a civilização ocidental assistiu, sendo o cinema, a realidade virtual, a realidade aumentada, etc. A substituição efectiva da natureza naturata (Spinoza, 1677) por uma natureza artificial capaz de iludir tanto o seu produtor como o seu consumidor sobre a sua origem.
Assim, não tendo sido a fotografia a iniciar este movimento sociocultural, coube à fotografia como
meio de comunicação a transformação dos processos técnicos em sistemas técnológicos de produção da
imagem, coube à aparelhagem fotográfica instituir não só os novos sistemas de mediação como permitir a
sua massificação.
Fotografia, Memória e Arte: uma reflexão em volta das fotografias de Alexandre D. O’Neill.
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Fotografia e Referente
Compreender o mito do “real” fotográfico é compreender porque razão a crítica continua a ter
muitas dificuldades em abordar a fotografia. Agarrada à confusa ideia de que o referente é igual ao real, a
cultura de “testemunho da realidade”, que tem percorrido a critica fotográfica, vem de longe e baseia-se na
ideia de que o referente e o sentido ou as leis naturais estão no mundo, constituem e pertencem ao
Mundo, crença já rebatida no século XVIII por David Hume. Também é certo que tal preconceito é
facilmente explicável pelos graus de semelhança e por uma tendência sociocultural modernaxvi
A noção deste paradoxo da fotografia, a de que ela não reflecte nada senão aquilo que reflecte
como um espelho de denotação ou nas melhores hipóteses quando surge um suplemento conotativo ou
artístico, está patente no uso de colagens fotográficas autobiográficas de Alexandre O’Neill. Neste tipo de
colagens Alexandre O’Neill mostra a angústia das diversas reconstruções das suas experiências passadas.
Por cada tentativa, apenas surgem fragmentos que nem sempre revelam os seus efectivos valores de
experiência, mas que mostram a capacidade que a fotografia tem de reinventar o passado, de reinventar o
referente e de “fugir ao real” de escapar à reprodução da experiência mesmo para aquele que a ela esteve
sujeito.
para, como
diz Benjamin, “encontrar o semelhante no mundo” (1992, 81).
A conclusão será sempre a inversa daquela que refere uma denotação de base, um studium como o
define Barthes (1980; 45). Somente se esse studium se constituir como grau-zero da fotografia lhe
podemos permitir a existência e nunca como algo que se confunda de algum modo com a realidade. Neste
sentido o quarto termo introduzido por Barthes (1980; 33), o intersum poderá exprimir melhor este estado
que já Benjamin havia pensado, essa capacidade da fotografia de construir um referente que é
simultaneamente o passado e o presente mas não é nenhum deles.
A importância da “coisa ter estado lá juntamente com o fotógrafo” é, contráriamente ao que
Barthes advoga, relativa e geralmente falsa
xviii
xvii, o importante é o ter sido desviada da existência temporal,
para uma existência congelada do tempo, foi suspensa temporalmente e arrancada para um suporte
transportável. Doravante o isso-foi de Barthes, perde a sua existência real e transforma-se, pela sua
suspensão e fixidez em algo completamente diferente. Na verdade, e com as escassas excepções em que a
fotografia é uma fotografia cujo referente é um conhecido ou uma situação experimentada directamente
pelo observador, não interessa saber quem era aquela Rainha sentada no seu cavalo , quem eram os
personagens das Barbearias ou os pescadores de atum e cachalote, ou mesmo os personagens das
fotografias de Boston de Alexandre O’Neil, porque esse conhecimento, essas estórias, foram
absolutamente destruídas, ficou apenas um referente construido pela e na fotografia. Tal como a minha
imagem fotográfica não sou eu, é a imagem de um estranho em mim que percorre como eu os mesmos
Fotografia, Memória e Arte: uma reflexão em volta das fotografias de Alexandre D. O’Neill.
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caminhos cronológicos, mas no qual não me revejo como entidade, apenas vejo uma imagem com algumas
semelhanças, fixada num instante, num fragmento que dizem ser a minha existência, também a fotografia
do outro já não é o outro mas um outro que se criou na própria fotografia.
As colagens pessoais que têm continuidade nos desenhos e nos diários de Alexandre, são parte de
um processo de questionamento que Alexandre irá fazer à fotografia. Um questionamento obcessivo sobre
o Tempo, sobre o Mundo e sobre a sua relação pessoal com o Mundo.
Foto 5 e 6. Alexandre D. O’Neill “Colagem nº3” “Colagem nº13” (1985).
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Foto 7 e 8. Alexandre D. O’Neill “Colagem nº10” “Colagem nº21” (1985).
Algumas fotografias de Alexandre Delgado O’Neill
Deixamos aqui algumas fotografias que procuram um discurso estritamente imagético onde apenas
os títulos e as datas são permitidos.
O que verdadeiramente nos interessa é o reconhecimento de que a fotografia tem uma estrutura
autónoma que face ao texto é heterogénea e não se mistura pois “ici (dans le texte), la substance du
message est constituée par des mots; là (dans la photographie), par des lignes, des surfaces, des teintes”
(Barthes; 1961; 128).
O mesmo pensamento ocorrera a Walter Benjamin em 1931 quando este autor refere a propensão
natural da fotografia para um certo “inconsciente óptico”xix
Se a comunicação da fotografia “é, certamente, de um tal tipo de comunidade, que considera o
mundo, em geral, como um todo indivisível” é porque a sua compreensão passa pela teoria dos signos. E a
tradução da fotografia para a linguagem dos homens implica que consideremos dois planos
hierarquicamente sobrepostos, o plano plástico que se ocupa de texturas e materialidades, de formas e
, pois as “características de estruturas, os
tecidos de células, com os quais a técnica e a medicina gostam de se ocupar são, originalmente, mais
familiares à câmara do que uma paisagem expressiva ou um retrato inspirado” (Benjamin; 1992; 119).
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figuras, de luz e de cor e de profundidade e movimento e o plano icónico que representa a identificação de
padrões criados pelo plano anterior. Essa identificação é uma redução tipológica e tipificada segundo a
cultura e a sociedade e é simultaneamente uma tentativa de redução à linguagem verbal ou natural do
homem.
Para se compreender o que isto significa atente-se na seguinte análise de uma fotografia de William
Klein, usada por Roland Barthes e debatida por mim e pelo Alexandre já em 1987.
Foto 9. William Klein “Primeiro de Maio em Moscovo” de 1959.
A adolescência tem aspectos interessantes relativamente à idade adulta, o que lhe falta em rigor
sobra-lhe em entusiasmo e assim a minha primeira leitura da “Câmara Clara” de R. Barthes foi uma leitura
entusiasmada, uma leitura que procurava encontrar alguma fundamentação para o acontecimento
fotográfico, discuti acaloradamente com o Alexandre os termos usados por Barthes em especial o punctum
esse elemento de desvio que sempre nos interessou mais do que esse studium que sempre quisemos ver
como o grau-zero do referente. Era nesse click do olhar, nesse reflexo do instante do obturador, que se
poderia produzir a arte e só a arte nos interessava, o real foi sempre e ainda é algo que deve ser filtrado
pela arte, para que o possamos entender.
Comecemos pela definição que Barthes dá de Studium. O exemplo que usa é de uma fotografia de
William Klein “Primeiro de Maio em Moscovo” de 1959, na qual se limita a um conjunto de observações
muito superficiais, geralmente de carácter etnográfico pois, como refere, a fotografia, “mostra-me como se
vestem os Russos (…) reparo no grande boné de um rapaz, na gravata de outro, no lenço de cabeça da
Fotografia, Memória e Arte: uma reflexão em volta das fotografias de Alexandre D. O’Neill.
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velha, no corte de cabelo de um adolescente” (Barthes, 1989, 49). Barthes esquece-se ou não observa que
a fotografia lhe prendeu a atenção e que tal não se deve às características etnográficas e iconográficas que
enumera, mas à dinâmica de olhares e faces que a foto apresenta, dinâmica essa que é responsável pelo
equilíbrio da composição – duas horizontais uma arquitectónica outra criada pelas três faces no plano mais
recuado e um triângulo invertido conseguido pelos dois volumes (corpos) de primeiro plano e pela cabeça
do rapaz que o fecha no vértice inferior – conseguindo assim superar por centralização progressiva, como
numa espiral, o próprio enquadramento da foto, centrando-a em torno da fabulosa cabeça da senhora mais
velha que fixa e retribui todos os olhares. Naturalmente que aquela fotografia é também passível de
múltiplas leituras e interpretações, etnográficas, sociológicas, antropológica, históricas, etc., inclusivamente
poderia ser interpretada de modo diferente por exemplo pelos próprios fotografados ou pelas pessoas que
os conheciam, mas nenhuma dessas leituras é responsável pela qualidade da fotografia, nenhuma dessas
aproximações determina que a seleccionemos entre outras. São os seus valores plásticos que determinam
o nosso olhar, são esses valores que desmistificam radicalmente e politicamente essa ideia de que é
possível aprisionar/possuir o tempo e o espaço do mundo.
Foto 10. Máscara funerária (1979).
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Foto 11. Montra em Lisboa. (1980).
Foto 12. Alcácer do Chão, operários. (1981).
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.
Foto 13. Autoretrato (1982).
Foto 14. Açores, pesca do Atum (1983).
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Foto 15. Açores, pesca do Atum (1983).
Foto 16. Açores, pesca do cachalote (1983).
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Foto 17. Açores, pesca do cachalote (1983).
Foto 18. Açores, pesca do cachalote (1983).
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Foto 19: Colagens (1985).
Foto 20. Colagens (1985).
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Foto 21. Barbearias, Lisboa (1986).
Foto 22. Barbearias, Lisboa (1986).
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Foto 23. Boston (1988).
Foto 24. Boston (1988).
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Foto 25. Boston (1988).
Foto 26. Boston (1988).
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Foto 27. Boston (1988).
Foto 28. Boston (1988).
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Foto 29. Autoretrato (1990).
De regresso a Portugal, o Alexandre abandonou a fotografia e deu continuidade ao conjunto de
desenhos e diários pessoais. A fotografia perdera a sua capacidade de dar respostas à sua busca.
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Notas i Impõe-se aqui o esclarecimento de um novo pressuposto. Como veremos aceitamos que refer ente e significado são uma e a mesma coisa, mas não confundimos referente com as coisas materiais em si. Um referente é sempre uma construção resultante de uma escolha de traços e detrimento de outros traços, as coisas materiais são por isso interpretadas e, tal como as leis científicas não existem no mundo, os significados e a sua construção são selecções humanas realizadas sobre a materialidade contínua do Mundo.
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ii Essa separação é baseada na física de Newton na qual o espaço e do tempo são absolutos, um espaço que conserva as suas propriedades mesmo no caso da ausência de matéria e um tempo que se escoa indefinidamente sempre à mesma velocidade. iii Veja-se a reflexão de Galileu (1638) “Discurso acerca das Duas Novas Ciências” sobre a r elatividade dos movimentos e a afectação que o referencial de observação imprime na própria velocidade dos objectos. iv A noção de tempo na antiga Grécia é dada pelos dois termos: o chronos é um tempo sequencial, como a noite se sucede ao dia, tal como as estações do ano ou as marés; o kairós é “O” momento certo e oportuno, indeterminado mas em que algo específico acontece e locos é o espaço culturalmente qualificado e significado. v A palavra não-lugar é tomada de Marc Augé e é preferível a utopia ou dystopia, já que estas últimas remetem para situações inexistentes (utopia) ou conotadas negativamente (dystopia) enquanto o conceito de não-lugar remete para a existência de espaços culturalmente desqualificados, psicologicamente propícios à suspensão do significado, já que transitórios e resistentes a toda a apropriação, espaços do limbo. Penso que a música de Brian Eno “Music for airports” define esses espaços melhor do que as palavras. vi A relação entre sentido e referente é circular e como tal é um sistema. A sua circularidade relaciona aquilo que Ducrot (1984; 426) designa por intralinguístico e extralínguístico, referindo, a inviabilidade das teorias da separação entre sentido e referente. vii O livro surge em 1920 na Alemanha e apresenta-se sobretudo como critica civil izacional, propondo uma utopia de paraíso na terra do romantismo tardio. Embora o tema das utopias e destas utopias românticas em particular seja muito interessante, não será sobre este aspecto que nos iremos debruçar. viii Dado que a gnoseologia vai variando nas suas definições de acordo com os autores, aqui considera-se o seu significado genérico, considerando-a como a reflexão que se preocupa com a validade do pensamento face às condições da relação entre o objecto e o sujeito cognoscente. Por outr as palavras, trata-se do modo como abordamos e “vemos” o mundo. ix Para Einstein o espaço e o tempo são directamente afectados pela matéria dos corpos, gerando-se um campo de forças que dobra o espaço e o tempo ao ponto do universo ser finito e simultaneamente ilimitado. Paradoxo que repete o da superfície esférica. x Isto se considerarmos que Einstein é talvez o último físico a colocar problemas ontológicos. Sobre o mal entendido entre March e Einstein é importante a obra de Heisenberg (1990; 88-89). xi Consideramos aqui esta versão, que sabemos não ser real em termos históricos absolutos, mas que acr editamos que inicia o processo de absorção da ideia no ocidente que na revolução industrial tem a possibilidade de se massificar. xii Mas importa reflectir aqui um pouco sobre esse medo do real que tanto a humanidade tem manifestado. É que o real nos sistemas de mediação é algo sistematizado, ar tificial e criado pelo prório sistema. A descoberta da linguistica contribuiu para que se percebesse que o meio como designamos e delimitamos as coisas é um meio de produção do real e este meio foi sistemáticamente transposto para todos os sistemas de mediação ligados à comunicação. O que significa que o melhor sistema de mediação é aquele que melhor comunica o medo do real, pois é esse que terá o indice de produção de sentido mais elevado. A ideia de milagre é uma ideia de terror, de que tudo está fora das nossas mãos e que o mundo é governado ao acaso. Pois o milagre que se apresenta ou é o da história e do sublime ou é o do eventual acaso da captura da imagem. xiii Trata-se de uma alusão metafórica ao livro de Budd Schulerg (1994) Que faz correr Sammy? Lisboa. Editora: Record. Neste caso a metáfora é feita porque para Sammy o que o faz correr incansavelmente e contra o tempo é a aquisição do dinheiro sentido como liberdade e possibilidade de parar o tempo. xiv No paradoxo de Zeno está o paradoxo espácio-temporal que nos permite a sensação ilusória de que o tempo é infinito. Deste modo o stress do tempo quotidiano transforma-se numa ilusão de intemporalidade natural. xv Uma fracção de 8000 partes de segundo. xvi "No interior de grandes períodos históricos, a for ma de percepção das colectividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência. O modo pelo qual se organiza a percepção humana, o meio em que ela se dá, não é apenas condicionado naturalmente, mas também historicamente." (Benjamin; 1987; 169)
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xvii Eu não experimento o objecto fotografado senão posteriormente e já na imagem fotográfica, pois a fotografia “inventa-o”, falsifica-o. Vejam-se as expressões “feias” e distraídas dos rostos, capturadas nos microssegundos que escapam ao olho humano, mas não à objectiva e entende-se o sentido que damos ao texto. xviii Referência à fotografia da Rainha Vitória e seu escudeiro, apresentada por Barthes na “Câmara Clara”. xix Daqui a ideia de fotogenia que sempre surge quando as características de exposição do fotografado são excessivas ao ponto de poderem ser capturadas. Existe na fotogenia algo de semelhante à pornografia, ambas vivem do seu excesso de exposição. Sem querer insultar ninguém ser á interessante procurar quem é fotogénico e quem não é, pois os valores de fotogenia demonstram sobretudo o vazio.