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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E HUMANIDADES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO: MESTRADO JONAS MARCELO GONZAGA O PROCESSO FORMATIVO E A ATUAÇÃO DO ARTE- EDUCADOR: POSSIBILIDADES E CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA IRONISTA SÃO BERNARDO DO CAMPO SP 2016

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E HUMANIDADES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO:

MESTRADO

JONAS MARCELO GONZAGA

O PROCESSO FORMATIVO E A ATUAÇÃO DO ARTE-

EDUCADOR: POSSIBILIDADES E CONTRIBUIÇÕES DA

TEORIA IRONISTA

SÃO BERNARDO DO CAMPO – SP

2016

JONAS MARCELO GONZAGA

O PROCESSO FORMATIVO E A ATUAÇÃO DO ARTE-

EDUCADOR: POSSIBILIDADES E CONTRIBUIÇÕES DA

TEORIA IRONISTA

Dissertação apresentada como exigência do Programa de Pós-Graduação em Educação: Mestrado, à Universidade Metodista de São Paulo, Escola de Comunicação, Educação e Humanidades para a obtenção do título de Mestre em Educação. Área de concentração: Educação Orientação: Profa. Dra. Norinês Panicacci Bahia.

SÃO BERNARDO DO CAMPO – SP

2016

FICHA CATALOGRÁFICA

G589p Gonzaga, Jonas Marcelo

O processo formativo e a atuação do arte-educador: possibilidades e

contribuições da teoria ironista / Jonas Marcelo Gonzaga. 2016.

166 p.

Dissertação (mestrado em Educação) --Escola de Comunicação,

Educação e Humanidades da Universidade Metodista de São Paulo, São

Bernardo do Campo, 2016.

Orientação: Norinês Panicacci Bahia

1. Educador ironista 2. Arte-Educação 3. Contemporaneidade

I. Título.

CDD 379

A dissertação de mestrado sob o título “O processo formativo e a atuação do

arte-educador: possibilidades e contribuições da teoria ironista”,

elaborada por Jonas Marcelo Gonzaga foi apresentada e aprovada em 23 de

fevereiro de 2016, perante banca examinadora composta por: Profª Drª

Norinês Panicacci Bahia (Presidente/UMESP), Prof. Dr. Décio Azevedo

Marques de Saes (Titular/UMESP) e Prof. Dr. João Cardoso Palma Filho

(UNESP/SP).

____________________________________

Profª Drª Norinês Panicacci Bahia

Orientadora e Presidente da Banca Examinadora

____________________________________

Profª Drª Roseli Fischmann

Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação

Programa de Pós-Graduação: Mestrado

Área de Concentração: Educação

Linha de Pesquisa: Formação de Educadores

Dedico este estudo à minha família.

Ao meu avô, Conrado Marcelo, que me presenteava com cadernos no período

natalino; ao meu avô paterno, Edemir Gonzaga, que me permitia rabiscar os

seus livros; ao meu pai, Ademir Roberto, que possuía uma velha estante

recheada de livros, que sentia prazer ao ver os seus filhos estudarem e nos

incentivava à cultura letrada; à minha mãe, Maria Regina, por sua indescritível

e permanente atenção, fé e amor por mim; à minha irmã, Barbara, pela sua

torcida em minha trajetória e palavras de incentivo; e, à minha querida esposa,

Rosi, que se mostrou tão compreensiva, companheira, ouvinte, falante,

construtora de ideias, dedicada à harmonia e amante do nosso casamento.

AGRADECIMENTOS

Meus agradecimentos se dirigem aos professores e amigos, que

colaboraram tanto na trajetória constitutiva da dissertação quanto no respaldo

cotidiano que só as pessoas de bem sabem fazer.

Agradeço, primeiramente, à minha orientadora Profª Drª Norinês

Panicacci Bahia, que estendeu as mãos desde a entrevista do processo

seletivo, demonstrando interesse e respeito pelo tema que intencionei no início

do meu projeto, além da paciência, prontidão, perspicácia, inteligência para

além de uma prestimosa orientação e generosidade que ofertou em todo o

percurso.

Agradeço ao meu professor Dr. Décio Azevedo Marques de Saes que me

possibilitou um olhar mais aguçado às constituições sociais nas quais a

Educação se interpenetra, assim como a aprendizagem que obtive ao longo de

duas disciplinas que me ensejaram acesso à sua vastidão estética-cultural, de

fato, colossal. Assomam-se à gratidão, as considerações pontuais que me

forneceu na qualificação da dissertação, assim como para a defesa da mesma,

pois me fizeram reconsiderar elementos estruturais do objeto de estudo.

Agradeço ao professor Dr. João Cardoso Palma Filho pelos apontamentos

relevantes e construtivos realizados na banca de qualificação, e da mesma

forma, endereçados à defesa da dissertação e à sua reformulação.

Agradeço à Profª Drª Roseli Fischmann, Coordenadora do PPGE, por sua

intelectualidade e ações generosas, pelo seu acompanhamento na trajetória dos

estudos, pelo telefonema de boas-novas.

Agradeço ao professor Dr. Roger Marchesini de Quadros Souza, pelo seu

conhecimento empírico e teórico acerca da funcionalidade estatal da Educação,

pela sua ponderação sensata e crítica da realidade brasileira e sua índole

receptiva, acolhedora e gentil.

Agradeço ao professor Dr. Jean Lauand, pelas suas demonstrações de

domínio do seu campo estético-linguístico, do quão consegue desafiá-lo e

explorá-lo.

Agradeço à professora Dra. Zeila de Brito Fabri Demartini, pela sua

competência na área metodológica e histórias acadêmicas ou não, que me fez

refletir acerca da minha atuação docente e de pesquisador.

Agradeço à CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de

Nível Superior) pela bolsa de estudos que me foi concedida durante três

semestres.

Agradeço à assistente da coordenação do Stricto Sensu em Educação,

Priscila Roger, pelas inúmeras orientações que muito me auxiliaram a resolver

os processos burocráticos.

Finalizo os meus agradecimentos com os amigos Marciano do Prado,

Leandro da Nóbrega Pinheiro, Glauco Fernando Silva Santos, Teo Garfunkel,

Patricia Cristina Santos da Silva, Luciana de Freitas Lanni, Paula Andreatti

Margues, Luis Eduardo Prates da Silva, Humberto Luiz Maia da Costa, Simone

Andrade Queiroz, Rafael Cerqueira Barbosa, Malina Almeida Brandão Souza,

Pedro Campos Filho, Daniel Gregório; meus sogros, Oswaldo Moreno Munhoz

e Maria Suzana da Silva Munhoz; e meu primo, Guilherme Trindade Marcello,

por suas infindas qualidades, excelências e camadas irônicas que me fizeram

questionar o que eu avaliava saber.

“Nunca vivemos, como agora, uma

época tão rica em conhecimentos

científicos e invenções tecnológicas,

nem mais equipada para derrotar as

doenças, a ignorância e a pobreza; no

entanto, talvez nunca tenhamos ficado

tão desconcertados diante de certas

questões básicas como o que fazemos

neste astro sem luz própria que nos

coube, se a mera sobrevivência é o

único norte que justifica a vida, se

palavras como espírito, ideais, prazer,

amor, solidariedade, arte, criação,

beleza, alma, transcendência ainda

significam alguma coisa, e, em sendo

positiva a resposta, o que há e o que

não há nelas. A razão de ser da cultura

era dar resposta a esse tipo de

pergunta. Hoje ela está exonerada de

semelhante responsabilidade, já que a

transformamos aos poucos em algo

muito mais superficial e volúvel: uma

forma de diversão para o grande

público ou um jogo retórico, esotérico e

obscurantista para grupelhos vaidosos

de acadêmicos e intelectuais que dão

as costas ao conjunto da sociedade. ”

Mario Vargas Llosa

(Extraído do livro A civilização do

espetáculo)

RESUMO

GONZAGA, Jonas Marcelo. O processo formativo e a atuação do arte-educador: possiblidades e contribuições da teoria ironista. Orientação: Norinês Panicacci Bahia. 2016. Universidade Metodista de São Paulo – UMESP, São Bernardo do Campo. A presente pesquisa visa a revisão bibliográfica do processo formativo e, ao mesmo tempo, a investigação e problematização da atuação contemporânea do educador ironista na Educação. O autor Imanol Aguirre, concebe este título ao educador que seja provocativo, inteirado e propositor de experiências estéticas frente às complexidades contemporâneas, amalgamadas num tecido histórico-social caracterizado pelo trânsito da pluralidade, dos imaginários, da construção de identidade e da mobilidade social. O ironista atua dialogicamente “in loco” criando respostas às variadas demandas com os seus educandos. A fomentação da crítica, a mobilização da dúvida e da ironia, a conexão dos territórios das competências e habilidades, são os objetivos pelos quais o educador ironista intenciona um cenário educacional mais efetivo e emancipador ante as reais necessidades contemporâneas. Palavras-chave: 1.Educador Ironista; 2.Arte-Educação; 3.Contemporaneidade

ABSTRACT

GONZAGA, Jonas Marcelo. The formative process and the performance of the art educator: possibilities and contributions of ironist theory. Orientation: Norinês Panicacci Bahia. 2016. Methodist University of São Paulo - UMESP, São Bernardo do Campo. This research aims to a bibliographic review of the formative process and, at the same time, the investigation and questioning of contemporary performance of the ironist educator in Education. The author Imanol Aguirre, conceives this title to the educator who is provocative, acquainted and proposer of aesthetic experiences front to contemporary complexities, amalgamated in a historical and social fabric characterized by transit of plurality, the imaginary, the construction of identity and social mobility. The ironist acts dialogically "in loco" creating answers to the varied demands with their students. The fostering of criticism, the mobilization of doubt and irony, the connection of territories between competences and abilities, are the goals by which the ironist educator intends a more effective educational scenario and emancipator in the face of real contemporary needs. Keywords: 1. Educator Ironist; 2. Art-Education; 3. Contemporaneity.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................. 12

CAPÍTULO 1:EM BUSCA DE UMA SOCIEDADE MAIS HUMANA .................. 24

1.1 O cotidiano escolar e as competências prementes ................................ 24

1.2 O educador como potencializador de humanidades .............................. 66

CAPÍTULO 2: A IRONIA COMO INSTRUMENTO DO SABER ........................ 80

2.1 A ironia como postura epistemológica e pedagógica ............................. 80

CAPÍTULO 3: DO INOVAR AO LIBERTAR: O PENSAMENTO DE IMANOL

AGUIRRE ....................................................................................................... 101

3.1 A atuação do educador ironista – origem e desenvolvimento .............. 101

3.2 Quem é, com o que se preocupa e onde atua Imanol Aguirre? ........... 122

3.3. Por uma mediação estética que desperte a reflexão .......................... 125

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 143

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................... 147

APÊNDICE 1: Histórico do arte-educador no Brasil ....................................... 152

APÊNDICE 2: Principais produções de Imanol Aguirre ................................. 164

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INTRODUÇÃO

Um bom início do rememorar as primeiras impressões educacionais

escolarizadas se dá, de fato, no que se chamava popularmente de “Prézinho”,

a pré-escola na qual alguns discentes adentravam ainda aos cinco anos; no

meu caso, se deu aos 6 anos e durou aquele único ano como era esperado,

pois aos 7 anos todos estavam, sem exceção, na primeira série, atualmente,

segundo ano do Ensino Fundamental I.

Possuo uma foto da minha primeira professora, cujo nome é Sueli – e

dela, carrego as melhores impressões de uma atuação plena, solidária,

provocativa, imaginativa e intencional; a fotografia em questão revela-nos um

do lado do outro com um painel atrás de nós com uma pintura recheada de

motivos caipiras pendurado na parede, à frente estamos com chapéu caipira

de palha, meio que colados lateralmente, haja vista a força com a qual ela me

apertava junto a si. Sorriso grandiloquente da parte dela; sorriso receoso, de

estranhamento da minha parte. Mas, sem psicologismos, creio que sei a

resposta para tal investida da minha fisionomia: procuro esconder uma perna

atrás da outra, meio que na altura do joelho, pois a calça estava suja ou

rasgada! Saliento que nada relacionado à falta de apreço e atenção dela a

mim, muito menos quanto à dedicação da minha mãe e seu zelo pela minha

vestimenta; eu simplesmente era um rapaz inclinado aos esportes, às corridas,

ao atletismo que, inclusive, acompanharam-me por toda a vida de estudante

até o fim do Ensino Médio.

Esta exemplificação é cabal para mim, pois revela o que a escola

representava aos meus olhos e joelhos: a interação integral e literal desprovida

de receios, fosse no âmbito intelectual ou no físico. Não obstante, este

sentimento de pertinência me foi abundante até o penúltimo ano do Ensino

Médio, quando, inevitavelmente, por meio de um embate com um professor de

matemática (diga-se de passagem, não-ironista – e, mais além, pedante e

não-mediador) esconjurei a possibilidade de me tornar educador (mesmo

porque nunca havia pensado em tal), pois a deliberação da recente vice-

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diretora (já que o diretor também recém-chegado estava ausente, como se

confirmou pelo ano todo) frente ao problema foi a de me suspender por 3 dias.

O diálogo com a Educação havia se interrompido ali.

A postura ditatorial e insegura da vice-diretora frente às minhas

argumentações pontuais e contextualizadas, foi a seguinte: “...você não

precisa usar estas palavras difíceis para explicar o seu ato...”; isto, na

presença da minha mãe que, racionalmente, arguiu: “Se ele não pode

argumentar como vai se explicar?(...)” Eu era fruto de 10 anos da mesma

escola pública, que me fizera criticar, duvidar, dialetizar as condições postas

no mundo, agora, cerrava o meu direito de me expressar com os instrumentos

antes instruídos.

No ano de 1998, a Educação representada pela minha escola mostrou-se

permeada de incoerências, de escusas, de falta de transparências, de tons

autoritários que se alegrava apenas com a sua própria voz em meio ao

silêncio. Até então, apenas para reforçar o poder instrutivo e formativo dos

estudantes que a escola pública do Estado de São Paulo ensejou, pelo menos,

especificamente, em minha escola, podia-se falar francamente sobre a aliança

entre a comunidade e a gestão escolar; o espaço-tempo adequado e

sincronizado às atividades extracurriculares esportivas e artísticas; o diálogo

permanente, de cunho moral, multidisciplinar, atencioso, por fim, humano em

todas as suas possíveis leituras. O que se nota, é que quando a gestão

mudou, toda a dinâmica escolar antiga ruiu em consonância às novas

características infiltradas e alienantes.

Alguns elementos da minha própria historicidade formativa, enquanto

estudante do Ensino Médio são interessantes à exposição: a minha relação

com a aprendizagem sempre foi a de prazer, de curiosidade, de ponto de

partida para outras conexões, de perspectivas voltadas à minha vida pessoal,

de trabalho vindouro; os professores enalteciam a minha atuação tanto no

sentido de aproveitamento das próprias aprendizagens quanto no de liderar os

amigos em diferentes proposições, o que se constatou em toda a minha vida

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estudantil sendo líder de classe ou de time nas competições esportivas; a

leitura foi-me libertadora, pois descobri as entrelinhas das relações humanas

mais por meio dela e não apenas por via das experiências travadas; os

professores referenciais estavam continuamente ligados às ciências humanas,

pois conseguiam sagazmente inter-relacionar os conteúdos disciplinares à

nossa vivência, ou seja, estávamos motivados, alimentados, direcionados a

conquistar o que desejássemos, sentíamos seguros com os embates e

problematizações propositadas por eles, pois víamos naqueles exercícios a

vida, e não apenas a disciplina curricular, os desafios eram-nos postos para

serem suplantados: fomos educados para melhorar o que havia sido proposto,

criado, oferecido; os princípios que nortearam toda a aprendizagem estavam

marcadamente relacionados com o grau de empatia que se dava entre os

professores e alunos, muitos professores moravam em nossos bairros,

portanto, conheciam as nossas histórias, os enfrentamentos em diversos

níveis, assim como as nossas facilidades de assimilação, de construção e

desconstrução propositiva, enfim, o entrosamento humano para alcançar a

aprendizagem era o mais fluído possível, possuíamos um potencial

imensurável, livre e sem pré-conceitos para se dedicar para além da zona de

conforto.

Fato importante que revela uma contradição interessante e que vale a

menção, se relaciona com a minha educação profissionalizante realizada no

SENAI, onde me formei como Ferramenteiro ao passar de 2 anos de ensino

integral (durante a manhã e a tarde, pois à noite eu cursava o Ensino Médio).

Havia disciplinas teóricas e práticas, com objetivo notório de formação

tecnicista, voltado ao mercado de trabalho na indústria. Dos meus 15 aos 17

anos formei-me conhecedor da diversidade metalúrgica contemplando saberes

correlacionados ao uso de tornos mecânicos e CNC (comando numérico

computadorizado), fresadoras e retíficas.

O que há de valia quanto ao meu registro formativo é a dualidade deste

período, no qual eu era o “líder dos mecânicos” por transitar muito bem entre

os meus pares e saber detalhadamente as ansiedades levantadas para

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posteriores reivindicações, muito embora, no quesito “notas bimestrais”, eu

figurava entre as piores nas relacionadas à praticidade mecânica, pois

“matava” as peças, nunca atendendo as especificidades e dimensões

pretendidas; no entanto, as minhas notas teóricas eram as exemplares a todo

o segmento discente. A minha capacidade de ouvir e buscar a compreensão

entre os segmentos me fez um interlocutor de vontades, esperanças,

objetivos, promessas, prazos e, determinantemente, do avanço nas relações

que provocaria melhorias de todas as espécies, técnicas e humanas.

A meu ver esta sólida e diferenciada formação educativa, mediada por

professores atuantes e que constantemente se educavam estudando por suas

vezes, contribuiu com a edificação do meu olhar crítico, plural, enviesado,

ácido e por quê não, ironista? E não menos humano, coletivo, solidário,

dilatador de perspectivas e de novos panoramas, “ouvidor” de todos e para

todos. Postas estas experiências simbólicas envoltas pelo empirismo, que

formalizam o meu processo formativo primeiro, que regem a sequência com

que se deu e ainda se dá a minha trajetória enquanto educador

contemporâneo, avanço e introduzo a minha passagem pela graduação em

Artes Cênicas.

A minha escolha profissional foi a de me tornar artista cênico, algo que

acalentara durante a adolescência vendo o ator Toni Ramos e a atriz

Fernanda Montenegro se multiplicarem em inúmeras personas, cada qual com

sua identidade artística, seu digital próprio, seu registro artístico intransferível,

sua poética pessoal indelével. A vida não me permitiu experimentar os cursos

cênicos durante os longos e primeiros 17 anos de vida, por eu ter que realizar

o curso mecânico a contragosto por ordem dos meus pais, todavia, como bem

me conheciam, permitiram-me escolher qual graduação intencionaria cursar.

Pois bem, havia chegado a minha hora de inclinar-me às minhas naturais

habilidades, ao menos assim pensava e acabei (prudentemente,

irrevogavelmente) por optar às artes cênicas. Iniciei o Curso de Graduação em

Educação Artística com habilitação em Artes Cênicas aos 18 anos na FATEA

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– Faculdades Integradas Teresa D´Ávilla, hoje, FAINC – Faculdades

Integradas Coração de Jesus, extremamente motivado com a introdução às

artes em suas múltiplas e articuladas linguagens; neste ponto, compreendi o

potencial desbravador e emancipador que as artes cênicas viabilizavam por

meio do diálogo plural entre a produção estética e as suas reflexões

intrínsecas. As artes, não apenas as cênicas, promovem a criticidade e a

construção de cidadãos atuantes. Destas conclusões, vi-me num contexto

muito similar ao meu período formativo dado na escola pública (ainda de

qualidade inegável na época), onde os atores se exercitavam num

determinado tempo e espaço, com situações-problemas dados a serem

galgados num palco no qual os papéis se conectavam intuindo seus inerentes

objetivos.

Após 2 anos nesta graduação pela FATEA, minha habilitação em Artes

Cênicas não abriu por falta de alunos necessários; então, transferi-me à FPA –

Faculdade Paulista de Artes, onde concluí a minha formação em 3 anos, pois

as disciplinas não eram as mesmas nas instituições, portanto, levei 5 anos

para me graduar. Esta vivência da transferência de instituição me projetou

novos desdobramentos profissionais e referenciais. A FPA se situa ainda na

Av. Brigadeiro Luís Antônio em São Paulo, centro fervilhante das artes, região

de tradição e renovação estética, ou seja, consegui meu bacharel em Artes

Cênicas com o pé no mercado de trabalho, além de alcançar a Licenciatura

em Educação Artística cursando as disciplinas pedagógicas aos sábados.

Meu intuito estava direcionado apenas ao bacharel, e não à Licenciatura.

Meu foco era atuação cênica nos palcos da cidade de São Paulo; o lecionar

Educação Artística jamais foi considerado, exatamente por conta de a

Educação estar registrada em minhas memórias como um ambiente que se

transformara em um signo opressor, de um microcosmo anacrônico, sujeito as

roupagens equivocadas dos recentes e malformados gestores, que oprimiam

os direitos mais inerentes à atuação cidadã, conforme a minha suspensão

arbitrária no fim do Ensino Médio.

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Durante a minha graduação por meio da FPA, iniciei a minha inserção no

mercado cênico me articulando entre os amigos e me cadastrando, inclusive,

nas agências de propaganda com as quais participei de alguns vídeos. Este

período foi de intensa imersão nas artes, tanto no sentido teórico quanto no

prático, pois consegui dialogar e introjetar grande parte das aprendizagens do

meu métier. Realizei cursos em diferentes linguagens da interpretação cênica

de longas e curtas durações, incluindo os gêneros televisivos,

cinematográficos e, obviamente, teatrais. O entendimento amplo das

especificidades da interpretação me acompanhou ao longo da minha trajetória

artística, pois a minha curiosidade de dominar o maior número de linguagens

de atuação provocava a minha auto-afinação, como um instrumento em

prontidão, pré-disposto a ser manipulado conforme a necessidade.

Enquanto me dediquei exclusivamente às artes, amadureci meu senso

reflexivo, estético e humano. O fato de me apresentar continuamente a

diferentes públicos em diversas cidades brasileiras, possibilitou-me a

compreensão de que a arte possui alguns compromissos com o ser humano:

dialetizá-lo, apontá-lo, sugeri-lo, problematizá-lo, religá-lo, reconectá-lo,

ironizá-lo e por fim, humanizá-lo. Naturalmente, sem a maçante ideia didática

de “instruir quem não sabe”, mas sim, propositar uma experiência estética que

dialogue “olhos nos olhos” e que repercuta internamente de forma salutar,

libertadora, inclusiva e esperançosa.

Faz-se oportuna a evocação de alguns diretores teatrais/televisivos e de

professores da graduação em Artes Cênicas, que me acentuaram a percepção

no tocante à compreensão das fragilidades humanas, dos “fiapos humanos”,

como também fizeram por emergir das minhas ações um elo indissociável,

penetrante e transformador entre a minha arte (a minha atuação, que agora se

dá em termos educacionais também) e o público (figurado pelos estudantes):

Nicola Roberto Vignati, Antunes Filho, Roberto Lage, Prof. Dr. José Carlos dos

Santos Andrade, Analy Alvares, Prof. Dr. Marcelo Soler e Prof. Dr. Jairo

Maciel. Ressalvo estes educadores em específico, pois me ajudaram nos

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pilares básicos da minha atuação, e hoje projeto as minhas aprendizagens

como educador artístico.

Após 10 anos de atuação enquanto ator profissional, tendo vivenciado o

cenário paulista teatral, alcançado algumas metas e outras não, decidi prestar

o concurso para o Estado de São Paulo como professor de artes. Esta

mudança de perspectiva de atuação me incitou à novidade e a um novo fôlego

para desvelar o andor contemporâneo da educação pública. Assumi o cargo

em janeiro de 2011, porém, antes, participei da primeira turma de formação da

EFAP – Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Professores – Paulo

Renato Costa Souza, onde recebi instruções básicas do ensino na rede

pública do Estado de São Paulo. Assim que tomei ciência do local onde minha

sede seria, de imediato me apresentei à gestão e aguardei o início dos

trabalhos, já que ainda cursava a EFAP.

No decorrer de 4 anos e 10 meses atualizados como professor efetivo

pelo Estado de São Paulo acumulei muitas experiências e histórias. Neste

ínterim, atuei durante 2 anos para a Prefeitura Municipal de São Paulo como

professor de artes PEB I e II, cargo efetivo, o qual exonerei em fevereiro de

2014 com o intuito de me dedicar ao Curso de Mestrado em Educação pela

UMESP – Universidade Metodista de São Paulo; além de ser chamado a

assumir mais outros 2 cargos efetivos pelas Prefeituras de São Bernardo do

Campo e Mauá, também como professor efetivo em artes, porém, estes

cargos não os poderia assumir por já acumular 2 cargos como funcionário

público. É válido mencionar outrossim que, nestes anos de dedicação ao

magistério, participei de duas montagens cênicas ficando em cartaz às sextas,

sábados e domingos; em outras palavras, mantenho meu faro estético com

frescor comprometendo-me profissionalmente quando tenho oportunidade de

conciliar os horários, os empregos.

Atuei por 3 meses como professor eventual antes de assumir o cargo

pelo Governo do Estado de São Paulo, passando a lecionar em todos os anos

a partir do quinto ano do EF II, o que me serviu de baliza, de preparação para

19

os desafios inerentes à educação. Após tomar posse do cargo realizei os

seguintes cursos via Diretoria de Ensino de São Bernardo do Campo:

“Tão Perto Tão Longe II – Entrelaces com o Currículo de Artes” (2011),

este curso também foi Online e tratava de artistas visuais contemporâneos e

suas proposições estéticas particulares, culminou com a ida de todos os

professores participantes ao Pavilhão da Bienal para verem a exposição “Em

nome dos artistas – Arte contemporânea norte-americana na Coleção Astrup

Fearnley”. “Grandes Temas da Atualidade – Edição 2011”, curso composto por

12 videoconferências com duração de 2h30 cada uma e transmitidas por

streaming, observava temas presentes e correlacionados à Educação. “O

Ensino de Arte com Adaptação Curricular” (2011), neste curso, realizado

dentro da Diretoria de Ensino de São Bernardo do Campo, fez-me direcionar

um olhar mais cuidadoso às crianças deficientes, em situação de inclusão.

“Curso de Atualização Inglês Online para Servidores” (2013), o qual foi

interessante no sentido de contextualizar o inglês para uma prática cotidiana,

imediata. “Programa de Formação de Tutores – Profort” (2014), o qual me

capacita à tutoria em cursos que ensejam esta qualificação. Em 2015 realizei

três cursos complementares: “Mecanismos de Apoio ao Processo de

Recuperação da Aprendizagem: Articulação pedagógica e práticas de

intervenção”, “Recursos metodológicos e superação de defasagens” e

“Avaliação e recuperação de estudos”, cujo objetivo foi oferecer recursos que

auxiliam os professores no processo de recuperação, garantindo ao aluno o

direito de apropriação das competências/habilidades propostas pelo Currículo

Oficial do Estado de São Paulo. “Ensino Híbrido: Personalização e Tecnologia

na Educação”, foi o último curso concluído em 2015, cujo objetivo foi

apresentar possibilidades de integração das tecnologias digitais no contexto

escolar, buscando maior engajamento dos alunos na aprendizagem, assim

como, ampliação do potencial do professor para intervenções efetivas e

planejamento personalizado.

Aproximando agora de um curso especial que fiz ligado à Secretaria de

Educação de São Paulo, muito me alegra a escrita, pois foi exatamente a partir

20

da Especialização em Artes para Professores do Ensino Médio – carga

horária: 440 horas, pela UNESP – Universidade Estadual Paulista Júlio de

Mesquita Filho, que eu me voltei aberta e pacientemente à Educação, pois

esta especialização conseguiu dilatar em mim a vontade de me tornar mais

conhecedor da minha própria profissionalidade e atuação. Iniciei-a em 2011 e

a finalizei em 2013 com um artigo chamado: “A atuação do educador ironista

na Educação”. Meu artigo aborda uma nova metodologia para a atuação do

educador contemporâneo nomeado, o ironista, concebida pelo professor

espanhol Dr. Imanol Aguirre, atualmente Diretor do Departamento de

Psicologia e Pedagogia da Universidade Pública de Navarra. Este artigo foi

escolhido junto a mais outros 8 pela organizadora Dra. Elisa Tomoe Moriya

Schlünzen com o intuito de formatar o e-book intitulado: “Desafios na Docência

em Artes: teorias e práticas”.

Com base na influência e envolvimento que tive com a ideia do

“educador ironista”, considerei importante propor o desenvolvimento desta

pesquisa no Mestrado em Educação, pela possibilidade de adentrar no

universo ironista mais profundamente e integrando-o à realidade brasileira,

mais especificamente, à educação nas escolas da periferia. Pretendo uma

revisão bibliográfica relacionada a esta metodologia com o intuito de

esclarecer os desdobramentos possíveis frente a uma educação caracterizada

pelos fenômenos contemporâneos, tais como a pluralidade, a fugacidade e a

construção da identidade tendo por contraponto a transitoriedade da

sociedade.

Meu processo formativo revela a valoração da dúvida, da pesquisa

provocativa, do aprimoramento contínuo, tanto em meus períodos da

educação básica quanto da graduação universitária, junto a isto, os cursos que

me ajudaram a afinar o olhar e o tato para a Educação. Percebo que não só

realizei mais cursos pela falta de tempo por possuir dois cargos públicos;

quando se tem empregos concomitantes, de algo deve-se abdicar. Este

momento, apresenta-se perfeitamente planejado para um mergulho acadêmico

que venha contribuir com um pensamento provocativo, com uma produção

21

intelectual de valia para os educadores enquanto prática mediadora na

educação.

A minha experiência como educador em educação artística ao longo dos

três primeiros anos me revelou que, as aulas de artes possuem um potencial

de transformação social, de conscientização reflexiva que se desdobra na

pluralidade interdisciplinar dos saberes humanos, contribuindo indelevelmente

à construção identitária dos alunos em diversos níveis, como psicológico,

emocional e comportamental.

Porém, a interação do aluno-professor se revela como um dos pontos

cruciais para formatar esta nova cumplicidade de aprendizagem estética e

humana. Daí, surge a necessidade por parte do educador contemporâneo em

artes de avançar nas suas próprias qualidades, em atributos profissionais e

pessoais, e até mesmo em suas defasagens de formação, com o intuito

obstinado de se melhorar continuamente para provocar os espantos estéticos

prementes de uma educação artística valiosa, válida, contextualizada,

multidisciplinar, sagaz, dotada de conceitos e práticas que intencionem a

solidariedade, o espírito coletivo e o conhecimento.

Imanol Aguirre ao propositar o educador ironista como uma forma

atualizada de “ser” professor frente às adversidades, indica um caminho de

intervenção provocativa, pois entende que novas respostas ou novos

encaminhamentos se fazem necessários na atuação do educador na pós-

modernidade.

O educador ironista, enquanto proposição didático-pedagógica, ainda

não se faz conhecida para a maior parte do segmento dos professores, por

esta razão, talvez, trazer à luz esta possibilidade e/ou intervenção recente

desde os seus primórdios, levantando as raízes do ironista, contribua como

uma nova perspectiva de atuação e lida ante às demandas transitórias que a

sociedade vivencia.

22

A sociedade contemporânea apresenta-se fragmentada e em constante

transição; o fato do educador intencionar satisfatoriamente as suas metas

educacionais de forma atualizada, consciente e sensível às alteridades

inerentes ao processo educativo, oportuniza o esclarecimento por meio desta

pesquisa que se faz presente, um novo perfil de educador atento às

fugacidades, mediador interessado nas possibilidades que nascem do

espontâneo, do “aqui agora”.

Mediante o desinteresse crescente entre os alunos, a revelação de

baixos desempenhos por meio de pesquisas e avaliações internas e externas

à escola, é natural que as pessoas ligadas à Educação e a própria sociedade

se perguntem: Aonde está o problema? Quais são os pontos frouxos? Quais

papéis não estão desempenhando bem? Será que cada ator está ciente da

sua função e do seu objetivo? O cenário está posto, mas como podemos agir e

reinventar novas disposições dos elementos em cena? Quem media os

conhecimentos propositados pelo currículo são os professores, mas à medida

que cabe a eles, pode se reconfigurar num processo contínuo de formação, de

evolução, a ponto de atingirem um diálogo (de fato, dialógico) mais profícuo

com alunos? Será que o educador ironista por intentar ser camaleônico, ou

seja, intuir a adaptação incessante às condições postas “in loco” da escola – e

não oferecer resistências às características daquela região; flexibilizar as

certezas; duvidar e reencontrar novas sendas junto aos alunos; ironizar e

elucubrar o senso-comum, o lugar-comum, “a voz do povo”, a unanimidade;

não tenha algo a oferecer à atuação do educador, ou ainda mais, não possua

espaço para propositar o seu parecer?

Procurando sugestionar às condições apresentadas no panorama

educacional, o educador ironista se disponibiliza como uma proposição de

intervenção contínua, investigativa e contemporânea para juntar forças, somar

respostas mais adequadas ao contexto problematizado e que urge de uma

ação instituinte.

23

Assim, a questão que norteou esta pesquisa foi: qual a contribuição da

teoria ironista para a formação e a atuação do arte-educador de forma

que o mesmo possa enfrentar as demandas educacionais

contemporâneas a partir de uma atitude provocativa, instigadora e

propositiva?

Com o intuito de esclarecer e, ao mesmo tempo, apontar as

possiblidades da atuação ironista dentro da educação, seja dentro da escola

pública quanto da privada, fez-se uso da revisão bibliográfica enquanto

metodologia nesta dissertação, que está organizada em três capítulos: no

Capítulo 1 – “Em busca de uma sociedade mais humana”, é realçada a

premente necessidade de que as práticas educacionais possam desencadear

um espírito coletivo nas aprendizagens, uma construção sucessiva de

habilidades, competências e potencialidades científicas e humanas, de forma

que as relações sociais se redesenhem em perspectivas solidárias, justas e

democráticas; contempla-se em interface, apontamentos da realidade

contemporânea do arte-educador brasileiro. No Capítulo 2 – “A ironia como

instrumento do saber”, reflete-se acerca de duas dimensões atreladas à ironia:

a epistemológica e a pedagógica; onde o conceito da palavra ironia é

averiguado epistemologicamente e, ao mesmo tempo, aponta-se a

possibilidade de intervenção (postura pedagógica) do arte-educador

amalgamada à ironia. No Capítulo 3 – “Do inovar ao libertar: o pensamento de

Imanol Aguirre”, apresenta-se o educador Imanol Aguirre, assim como, uma

exposição da origem e desenvolvimento da concepção ironista no contexto

educacional, visando a mediação estética diferenciada do educador ironista

que, ao provocar o exercício da protagonia, arroje os estudantes à libertação

reflexiva. Nas considerações finais, as ponderações desenvolvidas ao longo

da dissertação foram sinteticamente pontuadas conjuntamente à percepção de

que o arte-educador precisa amiúde ampliar e investir em seu domínio de teor

histórico-estético, pedagógico, analisando criticamente o cenário educacional

disposto na contemporaneidade e suas possibilidades de intervenção.

24

CAPÍTULO 1

EM BUSCA DE UMA SOCIEDADE MAIS HUMANA

Refletiremos sobre práticas pedagógicas voltadas ao auxílio docente, à

condição ética do exercício profissional e à autocrítica. A descrença da certeza

didática será problematizada para que a criatividade possa ser impulsionada a

descobrir melhores respostas perante a dinâmica contemporânea.

Analisaremos as atitudes docentes que provocam a emancipação dos saberes

em interface à posição política da sua profissão. Buscaremos expor pontos de

tensão na atividade do educador e, ao mesmo tempo, sinalizar o compromisso

com a edificação de uma sociedade mais humana.

1.1 O cotidiano escolar e as competências prementes

A escola não possui outro papel senão aquele de ser insubstituível para o

processo formativo do ser humano, de garantir com que proficiências de

saberes e de “savoir-faire sejam adquiridos por todos de maneira sistemática e

organizada. Tem uma função social específica que é a de gerir estas

aprendizagens”, conforme Meirieu (1998, p. 17, grifo do autor). Entretanto,

pouca relevância é dada pela mídia à Escola e ao profissional que, por

exemplo, descobre um instrumento pedagógico que facilita à maior parte dos

alunos assimilarem conhecimentos, em contrapartida, qualquer engenheiro que

produza um parafuso específico que mobilizará uma indústria e, por sequência,

arrebanhará milhões de dólares, será convidado à uma entrevista exclusiva

com pompas aristocráticas. Infelizmente, ao se tratar de alunos e professores,

há uma contingência demagógica de vozes que vive a exortá-los “ao trabalho,

à disciplina e à honestidade” (p.18).

Em “Aprender... Sim, mas como? ”, há uma profunda proposição de

análise da qualidade profissional do docente. Meirieu (1998) insinua a

possibilidade da mudança na Escola “se os problemas forem colocados em

termos de competência profissional dos professores, de qualidade de serviço

25

prestado, de eficácia da gestão das aprendizagens”, neste sentido deseja se

fazer claro:

E não é para obedecer ao mito da empresa que se utiliza aqui o termo “gestão”, nem é para santificar tudo o que vem do Japão que se evocam os “controles de qualidade”. Há muito tempo os professores do primários e secundários questionam os problemas de gestão da classe, não para buscar os meios de nela trabalharem tranquilos, mas para descobrir que instrumentos podem ser eficazes, como regular o seu uso e trabalhar, juntamente com os alunos, para gerir esse sistema complexo de limitações e de recursos que juntos constituem (MEIRIEU, 1998, p. 19).

São contundentes os seus discursos, pois sabe o quão os educadores

não gostam que sua missão esteja reduzida à uma condição tecnicista. Reforça

que “não há ´boa educação` sem uma boa aprendizagem” e conclui “que toda

aprendizagem bem sucedida, realizada de maneira lúcida, tendo encontrado

meios de identificar suas aquisições e de regular seus métodos é

autenticamente educativa” (p.19). Enfatiza que a pedagogia é uma prática da

decisão concernente à ciência da educação, e que os professores são

convocados a se comportarem como “verdadeiros atores sociais” (p. 21).

Entendamos as conjecturas dialogicamente, pois na condição de abertura

nos aproximaremos de outras perspectivas; esta é a razão de estarmos aqui

averiguando outras possibilidades de percepção. A luz e o rigor atribuídos a

Sócrates, são lançados por Meirieu na direção do professor, que segundo o

autor, “não é senão aquele que ilumina... que ilumina o que já existe” (p.27).

Ao professor cabe um quê de despojamento, que se recuse a “posição de

genitor” do saber; basta que assuma, talvez, o papel de “iluminador”, tendo em

mente que “as coisas nascem através dele, não nascem dele.” Ao tentar

ensinar, há que se conduzir à descoberta e a força de transmissão se perderá;

o aluno é o detentor da aprendizagem, do conhecimento assimilado. O

educador que compreender-se limitado tal qual “um acompanhante”,

assessorará no percurso, pois sabe que não pode aprender pelo outro. Esta é

uma visão progressista de educação. (p.34).

26

O processo educativo passa a “suscitar e desenvolver” competências que

terão alguma função social, fornecerá instrumentos aos indivíduos que se

integrarão em determinado grupo social, constituindo o seu lugar. O ensino-

aprendizagem procurará mediar provocativamente as bases dos diversos

conhecimentos:

O indivíduo é irremediavelmente um ser social e, como tudo o que faz e diz é englobado, estruturado, expresso pelo social, é apenas um ser social. A sociedade nada pode dele obter que ela mesma não tenha, de uma certa forma, nele introduzido. Por mais que tentasse se emancipar, só poderia ao preço de uma difícil metamorfose exigindo novas inculcações. Por mais que se encontre privado de seus quadros sociais, ele tenta reconstruí-los minuciosamente e deve, como Robison Crusoé, ritualizá-los o suficiente para não os perder completamente, para não se perder completamente (MEIRIEU, 1998, p. 36).

Como seres sociais buscamos compreender o mundo exterior,

integrando-o em nosso universo; passamos então a construir sistemas de

representação que irão se aprimorar gradativamente até alcançarmos mais

possibilidades de ação e intervenção no mundo (p.37).

Meirieu (1998, p. 38) anuncia que a prática pedagógica é tecida de

tensões. A prática é a história adornada de fugacidades, passagens, transições

e conflitos; nada é linear, mas sim dialético. Há sujeitos que se confrontam,

trabalham e se articulam com estruturas cognitivas diferentes. O cenário

histórico inclui a construção do saber entre seres que se pressionam e

resistem, e a história se dará neste espaço onde não há receita, não há

“certeza de sair dela totalmente ilesos” (p. 39). O fato de não sacrificar nenhum

dos polos que estão em tensão, fará com que a tensão se revele maior e mais

fecunda, atendendo um objetivo ou um querer de ambos. É um “colocar-se sob

tensão” para se criar um terreno dinâmico de dialogias que fogem da

tranquilidade. Quando se pensa na realidade brasileira e todas as

complexidades que giram entorno da Educação Pública, considerando a

proposição de Meirieu, diríamos de imediato que não é uma tarefa atraente e

confortável.

27

Se o educador deseja se tornar um profissional com intencionalidade, é

natural que se esforce por dominar “o ‘conhecível’, que explore, em todos os

sentidos, os conhecimentos que deve fazer com que sejam adquiridos, que

compreenda as suas gêneses e suas lógicas, que examine todos os recursos.”

Porém, os saberes que estão sendo estimulados não pouparão “o professor da

imaginação e da inventividade didática” (MEIRIEU, 1998, p.41).

As intervenções podem explorar os pontos de apoio do estudante, como:

quem é ele? Qual a sua idade? As suas referências culturais? Quais

acontecimentos marcantes em sua trajetória de vida? O professor insistirá em

novas abordagens para tramar saberes que devem ser alcançados e

formulados; em outras palavras, o professor trabalhará a situação geral do

aluno, assim como ambiente de aprendizagem; observará em suas

proposições o domínio sensório-motor, o cognitivo e o afetivo; sensibilizará em

diversos níveis de complexidade e fará uso de diferentes suportes para tal;

manipulará a organização do seu trabalho para facilitar a aprendizagem;

lapidará as competências escolares, sociais e pessoais com os alunos,

praticando a curiosidade e estimulando o engajamento dos mesmos na

aprendizagem (MEIRIEU, 1998, p. 43).

Ao preparar uma sequência de aprendizagens, o professor seleciona

objetos que farão emergir uma noção ou conceito e dosará os documentos e as

instruções, pois o respeito ao ritmo se faz prudente. Todo sucesso alcançado

deverá “ser ultrapassado, retrabalhado, reorganizado”, as aquisições não são

definitivas, segundo Meirieu (1998, p.59).

O desequilíbrio é necessário à evolução dos saberes; ofertará a produção

de novas representações de conhecimento, pode-se apostar em informações,

materiais que interajam com o projeto de aprendizagem em teste. O projeto é

um “meio de exploração”, “um instrumento de previsão” que, se porventura,

não confirmar na realidade a eficácia, caberá uma revisão. (MEIRIEU, 1998, p.

59-60).

28

O educador pode insistir consistentemente nas propostas de situação-

problema, pois é um elemento-chave para as rupturas das representações

herméticas:

A situação-problema, simplesmente, põe o sujeito em ação, coloca-o em interação ativa entre a realidade e seus projetos, interação que desestabiliza e reestabiliza, graças às variações introduzidas pelo educador, suas representações sucessivas; e é nessa interação que se constrói, muitas vezes irracionalmente, a racionalidade (MEIRIEU, 1998, p. 63, grifo do autor).

Metodicamente, Meirieu nos oferece reflexões para a prática docente e

propõe possíveis intervenções que objetivam determinado saber; provoca-nos

mencionando que “os conhecimentos não são coisas que se acumulam, mas

sistemas de significações através dos quais o sujeito se apropria do mundo” e

que “a memória não é uma seleção de arquivos, mas a integração de

informações em um futuro possível para o qual nos projetamos”; é notório que

“os conhecimentos não se constroem sobre a ignorância, mas sim pela

reelaboração de representações anteriores sob a pressão de um conflito

cognitivo.” (MEIRIEU, 1998, p. 65).

Em síntese, indica-nos a concepção de materiais e instruções que

auxiliem a construção do conhecimento específico; o equilíbrio e, portanto, a

estabilização de uma nova representação em um nível superior; a atração que

mobilizará o aluno por meio de três ordens de situação-problema: de

comunicação, de resolução e de utilização; a distinção do aluno com

dificuldade, pois convirá intensificar a pressão do dispositivo como um

treinamento complementar, do aluno bloqueado, com o qual deverão ser

encontrados novos pontos de apoio e novas abordagens, ou seja, uma

alternativa pedagógica. (MEIRIEU, 1998).

A relação de Sócrates com quaisquer interlocutores, levava-os por si

mesmos à descoberta de alguma ciência. Meireu acentua esta intervenção que

se nega a assumir alguma autoria de ensino e “mostra a imperiosa

necessidade de levar em conta a interioridade do sujeito no exato momento em

29

que se age do exterior sobre ele”; assevera que somos “ atormentados pela

ética e sua exigência última: fazer advir a humanidade no homem” (1998, p.

72, grifo nosso).

Assegura que o centro da aprendizagem é a ética, pois nos capacita ir

além das alternativas estéreis; só a ética permite os homens determinados

instituírem enclaves educativos que se negam às simplificações “’faça como

você quiser’” e “’faça como eu quero’”. De fato, não há um mar de rosas para

este perfil de educador, pois tudo é frágil e precário e esta posição educativa é

insustentável, quase não se consegue manter-se instalado, no entanto,

conforme Meirieu, esta “é a única posição possível para quem quiser fazer com

que o outro aprenda.” Não encontramos aqui, explicitamente, os caracteres do

ironista e sua capacidade de se reinventar, de aceitar a transitoriedade como

um dos bens da contemporaneidade? (MEIRIEU, 1998, p. 75).

O aluno pode ser seduzido e sentir-se contente com o fato, pois “pode-se

encontrar prazer na dificuldade, no trabalho com a complexidade cujas chaves

são lentamente descobertas [...] e é justamente o aluno capaz desse prazer

que terá êxito na escola”, afirma Meirieu (1998, p.81). Ao sair da aula, o aluno

seduzido pela aprendizagem estará compreendendo o que pode identificar e

reutilizar em outros contextos a partir desta determinada aprendizagem

estimulada; isto é chamado de “conhecimento identificado” do qual o aluno se

torna mestre por meio do auxílio de outros. O “triângulo pedagógico” se dará

entre educando-saber-educador, o fascínio é próprio desta triangulação movida

pela lentidão e pelo caos, porém, rumo à autonomia.

Para Meirieu, o educador pode constituir a sua prática metodológica

atendendo alguns princípios de organização

[...] esforçando-se para sair das tradicionais formulações em termos de conteúdos de programas para elaborar objetivos unívocos e explícitos, construindo progressões rigorosas de identificação dos pré-requisitos e o encaixe dos objetivos uns sobre os outros, certamente, obtêm-se os meios de livrar a ação pedagógica da improvisação sistemática [...] Sendo assim, é particularmente útil que os professores façam a

30

análise, em termos de objetivos, dos saberes que têm função de ensinar e que construam caminhos didáticos rigorosos: além da fecundidade do exercício para a formação pessoal daquele que o executa, isso favorece, na verdade, um instrumento de ajuste muito precioso para a prática educativa [...] (MEIRIEU, 1998, p.81-82).

O sucesso da aprendizagem, poder-se-ia dizer, está intrincado na

capacidade de suscitar o desejo de saber, porém, sabe-se da dificuldade de

implementar desejos quando os atrativos não são os que mais apetecem o

aluno. Meirieu continuamente rediz que educar não é uma tarefa fácil e o leitor,

certamente, consente que não é uma das atividades mais domináveis, até

mesmo para o próprio profissional da educação que vive a assimilá-la.

A elucubração desta problemática evidencia que os desejos não podem

surgir do nada e, necessariamente, devem estar associados ao que já existe; o

educador se torna nestas condições um criador de enigmas, ou seja, mostra-os

o suficiente para que surta interesse pelas suas riquezas, porém, cala-se a

tempo para que os alunos possam suscitar vontade de desmascará-lo. É um

jogo no qual fala-se “’muito e não o bastante’”, não se pode descortinar a

surpresa, esta tarefa é de quem seduzido foi e agora deseja adentrar os seus

segredos (MEIRIEU, 1998, p.92).

Ao mesmo tempo, anuncia que o professor precisa, paradoxalmente, em

sua relação educativa, estar muito distante e muito próximo dos alunos:

“próximo o bastante para que se possa ser como ele um dia, distante o

suficiente para que se tenha a vontade de ser como ele um dia.” O professor,

nesta teia complexa de relações, tem de revelar a sua diferença, “mostrar-se

na posição mais bem sucedida”, assim como mostrar a sua extrema

proximidade, a sua emoção compartilhada, a sua inquietação e medos, revelar-

se humano; ainda, anunciar os seus objetivos e o seu saber convicto, ansiando

por adesão, como também, empaticamente, projetar-se na figura de alunos e

descobrir respostas aos seus problemas pedagógicos (1998, p.94, grifo do

autor).

31

Quanto à gestão de uma sala de aula, Meirieu (1998, p.102) aponta a

eficácia de rituais distintos, que garantem o funcionamento do ensino-

aprendizagem. Cita o ritual de organização de espaço que permite cada aluno

a se apropriar de um território; o ritual de divisão de tempo que organiza

momentos de trabalho individuais, em grupos ou de informação coletiva; e o

ritual de codificação dos comportamentos que assegura a segurança física e

psicológica de todos.

O esmero que um professor precisa cultivar é o de traduzir “os conteúdos

de aprendizagem” em “procedimentos de aprendizagem”, ou seja, conforme

melhora e burila esta capacidade de sequenciar operações mentais e realizá-

las compreensivamente em sala de aula, objetiva o conteúdo como um

dispositivo didático, e isto só se consegue com a análise da prática e da

atividade intelectual, tendo em vista condições que garantem êxito no ensino-

aprendizagem (MEIRIEU, 1998, p.117).

Dentre muitas ferramentas que visam a melhoria da didática docente,

Meirieu inclui operações mentais intrínsecas ao processo de aquisição do

saber: a operação mental da dedução – colocar-se do ponto de vista das

consequências de um ato ou de um princípio, neste caso, o professor deve

organizar a experimentação das consequências; a operação mental da indução

– confrontar elementos (exemplos, fatos, observações) para fazer emergir seu

ponto comum (noção, lei, conceito), neste caso, o professor deve organizar o

confronto dos materiais escolhendo os materiais, emergindo similaridades,

pedindo ao aluno para descobrir um novo material; a operação mental de

dialetizar – colocar em interação leis, noções, conceitos, evoluindo variáveis

sem sentidos diferentes e chegando à compreensão de um sistema (operações

formais, abstrações reflexivas), neste caso, o professor deve organizar a

interação entre os elementos, utilizando as formas de “de jogo” adaptadas e

impondo a rotação sistemática dos papéis; a operação mental de divergir –

relacionar elementos que pertencem a domínios diferentes, buscando novas

associações, relações originais entre as coisas, as palavras, os registros de

explicação, neste caso, o professor deve organizar o encontro com o

32

inesperado, impondo relações não habituais e permitindo avaliar a pertinência

das mesmas (MEIRIEU, 1998, p 122-123).

Com Meirieu percebe-se que o educador se apoia no sujeito e suas

aquisições prévias (“pré-requisitos estruturais” – natureza e nível das

capacidades dominadas; “pré-requisitos funcionais” - natureza dos

conhecimentos e nível atingido nas representações), inclusive em suas

estratégias, ou seja, é preciso que se integre novos dados em sua estrutura

cognitiva, assim teremos articulação com o já conhecido. A avaliação

diagnóstica possui importante função neste sistema. A ação didática é

direcionada conforme o sujeito tal como ele é, intui o enriquecimento das

competências e capacidades, além de facilitar que o indivíduo modele novas

estratégias com as suas representações (MEIRIEU, 1998, p. 135).

O educador, conforme Meirieu, precisa se inteirar com as três dimensões

do ato de aprender: a relação pedagógica, o caminho didático e as estratégias

de aprendizagem. Quão mais conhecedor destas esferas, o educador atingirá

eficazmente os seus objetivos no ensino-aprendizagem. A formação do

educador é permanente, pessoal e essencial; cabe a ele desvendar os enigmas

da sua profissionalidade.

Para o educador que atua na periferia, no subúrbio, como relata Meirieu,

(tomando por base a minha própria atuação periférica), a experiência prova que

o cotidiano é permeado de extremas dificuldades, o que permite um acesso

lúcido acerca das questões da educação e da sociedade. Contudo, esta

empiria laboriosa, suburbana, não assegura por si mesmo, a resolução dos

problemas com os quais se depara. Compreende-se que a lucidez não basta

para garantir a eficácia do ensino-aprendizagem, mas já é um começo

(MEIRIEU, 2002, p. 21).

Há um privilégio no âmbito do exercício pedagógico ao se trabalhar em

subúrbios que “continuam sendo os pontos mais sensíveis de nossas

sociedades [...] onde nossa determinação educativa é verdadeiramente posta à

33

prova.” Os vínculos sociais são sensíveis e expostos aos riscos de dissolução

nestas condições emergentes, onde o educador realiza um “esforço essencial

para permitir aos jovens que vivem ali reconhecer-se juntos em sua

humanidade e compartilhar essa humanidade sem renegar suas

especificidades” (MEIRIEU, 2002, p. 22).

[...] é nos subúrbios que se situam atualmente nossas fronteiras essenciais e que as fronteiras são sempre desafios fundamentais para os homens: fronteira entre o norte e sul, entre a democracia e o fanatismo, entre a integração absoluta e o respeito às diferenças... fronteiras que se movem, evidentemente, mas fronteiras que separam os homens e clivam seriamente todos os seres que as atravessam várias vezes por dia (MEIRIEU, 2002, p. 23).

Relata que na educação há muitas humilhações que comprometem o

desenvolvimento pleno dos estudantes, limitando o seu processo

irrecuperavelmente, de forma a bloquear a compreensão de si mesmo e do

mundo. Se a intenção é provocar o “saber libertador”, o educador precisa

firmar-se em suas aprendizagens metodológicas num contínuo garimpar-se.

Concebe que da tensão entre a prática e a teoria, pode nascer o “verdadeiro

valor pedagógico”, o qual resulta no estímulo para a criança crescer. Apenas

estimula, pois depende da decisão do outro. O crescimento é a compreensão

do mundo e de si na busca por um lugar que faça sentido (2002, p. 33).

Discute o papel da escola como mediadora das grandes obras nas quais

a razão operou, para que continue servindo como uma instituição do Estado,

inclusive ambicionando e promovendo cultura, ofertando um início às crianças

e jovens estudantes, ou seja, “que instaure as condições para que o homem

revele-se a si mesmo.” O projeto de uma escola segue em consonância com o

“acesso a uma humanidade que vai além das conjunturas e das circunstâncias

nas quais vivem” os alunos, “poderão reconhecer-se juntos como parceiros da

mesma história intelectual e partilhar ali uma experiência que é o único meio

verdadeiramente capaz de contribuir de modo autêntico para o vínculo social”

(MEIRIEU, 2002, p. 48).

34

Para tanto, esclarece que o professor não pode abrir mão, renunciar do

“momento pedagógico”, pois, então, não haveria razão da existência da

pedagogia: o ensino-aprendizagem se bastaria numa troca de nível inferior, o

rigor e as exigências cederiam ao bate-papo sem objetividade voltada à

construção do saber. O “momento pedagógico” é o instante no qual o professor

frente às resistências de aprendizagem, demonstra a sua proposição estóica

dos porquês da relevância do educar; é um ato de compromisso ético.

Na educação há alguns profissionais insidiosos – não os chamarei (neste

momento) de educadores como gostamos de nomear os bons educadores,

pois fazem um desserviço à educação, à pátria, por fim, aos humanos que

recém chegaram à existência escolar; que confirmam por meio da sua prática

docente vacilante, tratamentos que degradam o jovem aluno e que os

preparam à submissão e à humilhação para o resto da vida (MEIRIEU, 2002, p.

65). Esforçamo-nos pouco a pouco para, definitivamente, como você leitor está

percebendo, marcar as diferenças singulares entre o educador que finge sê-lo

com os seus narcisísticos truques diários e o educador que não possui

descanso, pois o que mais lhe apetece é esquecer da fadiga trabalhando

eticamente ao lado dos seres que podem erigir e povoar um futuro melhor.

Barbosa (2011)1 afirma haver “... uma onda sentimentalóide em torno da

arte-educação”, cuja perspectiva apenas objetiva a transformação dos alunos

em seres mais sensíveis; o que diminuiria drasticamente o potencial do ensino-

aprendizagem estético. Para Barbosa, “... a arte desenvolve a cognição (...) a

capacidade de aprender”. Avança em suas asseverações e recorda de

experiências realizadas nos EUA em 1977, nas quais revelaram-se os

seguintes dados: estudaram os dez melhores alunos num período de dez anos

e constataram uma única característica em comum: todos haviam feito pelo

menos dois cursos de artes ao longo da sua trajetória escolar.

1 Em uma entrevista intitulada “Caminhos para a conscientização” à Revista Educação,

concedida ao repórter Flávio Amaral.

35

Salienta ainda que, o ensino de artes na escola pode acolher as crianças

rejeitadas pela própria instituição ou por terem dificuldade de aprendizagem, ou

problemas de comportamento, de forma a oportunizá-los a experimentação de

novas capacidades, sem medo e com ousadia. O papel da arte na Educação é

de primordial relevância para os avanços técnico-humanos:

[...] a arte possibilita que os indivíduos estabeleçam um comportamento mental que os leva comparar as coisas, a passar do estado das ideias para o estado da comunicação, a formular conceitos e a descobrir como se comunicam esses conceitos. Todo esse processo faz com que o aluno seja capaz de ler e analisar o mundo em que vive, e dar respostas mais inventivas (BARBOSA, 2011, s/p.).

Quando perguntada sobre os Parâmetros Curriculares voltados à arte,

Barbosa (2011) esclarece a sua postura de ser contra o currículo nacional,

enaltecendo o melhor ensino ocidental adotado pelo Canadá que, aliás, sempre

se recusou a ter um currículo nacional; revela que a Inglaterra piorou a sua

educação ao adotar um e na Espanha, simplesmente não deu certo. Esclarece

que os “... parâmetros foram feitos por gente muito boa, mas foram elaborados

por universidades hegemônicas” e fortalece a ideia de que “... não se determina

todo o conteúdo, apenas linhas estruturais. Se isso fosse debatido em cada

Estado, em cada município e depois em cada escola, seria uma coisa

interessante” (s/p).

Nós, educadores do Governo do Estado de São Paulo, conhecemos a

prática neoliberal que o governo paulista demonstra há mais de vinte anos;

infelizmente, o diálogo que Barbosa se remete não é vislumbrado na realidade

vivenciada nas unidades escolares. Avista-se somente um efeito que se origina

no topo do poder e, consecutivamente, os dominós atingem os mais periféricos.

Sabe-se que o currículo é uma questão de poder, de identidade; ele está

imanente àquilo que o ser humano se torna, poderíamos dizer: qual é o tipo de

ser humano desejável para um determinado tipo de sociedade? Ela será

humanista? Otimizadora? Competitiva? Neoliberal ou Socialista? Em poucas

palavras, quem formata o currículo que, logicamente, não é dialogado com

quem não pertence a hegemonia, pergunta-se entre os seus pares: qual

36

conhecimento deve ser ensinado? Pois, modificaremos as pessoas conforme o

conteúdo pré-ordenado; irão segui-lo. Com a massificação da escolarização

também se instauraram processos que racionalizam os resultados

educacionais com rigorosidade e especificidade; a ideologia da escola é a

mesma do Estado e serve-o.

Quanto à profissionalização do arte-educador, Barbosa (2011, s/p) expõe

que “... falta atualização permanente e os programas de atualização, de

maneira geral, não são adequados” e quase se solidariza, tamanho o fracasso

governamental com a educação, num esforço ao asseverar que, “... algumas

universidades estão se mexendo com tentativas de se estudar estética, filosofia

da arte e novas tecnologias.” Este, específica e honestamente falando, é o

estado da arte da Educação do Estado de São Paulo no ano corrente.

Contudo, como felizmente notaremos, alçaremos voo crítico e pedagógico,

porque precisamos compreender todas as sínteses com as quais os autores

deixaram em suspensão para que pudéssemos, à nossa maneira, ler e intervir

no mundo.

Acerca do “erro epistemológico” que a Estado e os municípios praticam

contra o arte-educador nos concursos públicos, Barbosa (2011) indica que as

atuais graduações em bacharéis, tais quais, artes plásticas, artes cênicas e

música, não comportam a aprendizagem de todas as linguagens, assim, os

profissionais não estariam preparados para isso. O currículo enfatiza a

aprendizagem de todas as linguagens, muito embora, não encaminha os

profissionais cujas competências são específicas. Ou seja, se a educação

fosse realmente projetada para possuir uma intencionalidade e um avanço

determinado, mobilizaria o seu currículo de artes com modalidades e

profissionais distintos de ensino-aprendizagem.

Pouquíssimos novos pesquisadores se formam na pós-graduação de

artes, após dois anos de mestrado ou quatro anos de doutorado; no caso da

Universidade de São Paulo, apenas vinte e um ao fim do quarto ano, segundo

Barbosa (2011). Questionada sobre a improvisação que as instituições públicas

37

e privadas realizam para “tapar” a lacuna de profissional licenciado ou

bacharelado em artes, problematiza expondo que “... o grande problema é que

o arte-educador tem poucas horas de aula. Resultado: para ter 40 horas de

trabalho, o professor corre de escola em escola”, sendo que nas escolas

públicas “... é comum o professor de história ensinar arte. E ainda tem aquela

ideia de que, se está faltando umas horinhas para completar o horário, o

professor ensina arte” (s/p).

Ainda que o ensino-aprendizagem em arte-educação esteja precário,

aponta progressos imensos ao indicar que qualquer diretor já sai da

universidade com a ideia de que o ensino de artes é importante para as

crianças e adolescentes. A pesquisa passou a ser respeitada também.

Todavia, faz questão de relatar que a Capes lhe enviou uma carta em 1972

dizendo que não lhe ofereceria bolsa de estudos, pois a arte-educação não era

uma área de pesquisa; depois de trinta anos recebeu a Ordem Nacional do

Mérito Científico, justamente por suas contribuições na arte-educação. Posso

me exemplificar neste sentido, relatando que ao solicitar bolsa de estudos para

o Governo do Estado de São Paulo, tendo como mediadora a minha diretoria

regional de São Bernardo do Campo, foi-me entregue um documento com

pouquíssimas palavras alertando-me ao indeferimento do pedido, pois a minha

preocupação com o objeto de estudo, o educador ironista, não condizia com o

currículo do Estado de São Paulo, portanto, não teria valia dentro dos

parâmetros estabelecidos. Registro o fato, pois foi justamente a Capes – daí a

importância das palavras que revelam progresso, segundo Barbosa, que me

concedeu bolsa de estudos. A Capes progrediu sim, ao contrário, do ainda

conservador Governo do Estado de São Paulo.

Sinaliza que os CEUS (escolas-modelo da Prefeitura de São Paulo) foram

a melhor iniciativa em arte-educação do Brasil, porque conseguiu integrar a

ideia de educação e cultura, levando espetáculos para a escola, cuja

experiência participei como ator durante alguns anos e, explicitamente, uma

nova cultura se construiu no jogo entre a escola, o estudante e as linguagens

artísticas. A cultura pode se dinamizar, emancipou-se e mais qualidade

38

profissional adentrou os portões das escolas periféricas. Porém, em relação ao

outro lado da ponta, Barbosa declara o desserviço que empresas operam:

[...] há quem pense apenas em formar orquestras para algumas empresas mostrarem que têm responsabilidade social. Tenho visto barbaridades, projetos equivocados, pensados para projetar o presidente da empresa ou o nome da mulher dele na revista Caras . Há projetos que instalam ateliês temporários em favelas, em que a comunidade ajuda um artista famoso a pintar o que ele determina. Há outro, apresentado como grande projeto social, que leva artistas para decorar a casa de favelados. Isso é oportunismo de pessoas explorando a ingenuidade dos pobres. Ou no mínimo uma brutal falta de consciência política. Não gosto que as empresas façam projetos, prefiro que elas apoiem projetos nascidos na comunidade (BARBOSA, 2011, s/p).

Adverte que a direita política tem se apossado da palavra cidadania e

distorcido-a, então, prefere pronunciar a palavra conscientização ao

correlacionar o sentido da arte-educação e seus efeitos sobre a educação.

Compreende que “... a arte abre caminhos para a conscientização social, para

a descoberta dos direitos, das obrigações de cada um. Tem um monte de

gente com discursos vazios que abusa do termo cidadania” e declara ter

arrepios quando ouve falar em educação para a cidadania: “... dependendo de

quem fala, pode ser uma picaretagem” (BARBOSA, 2011, s/p).

No artigo “Tecendo histórias do ensino de artes: conversas com Ana Mae

Barbosa”, no qual a mesma é entrevistada por Rejane Galvão Coutinho (2015)

em um diálogo que orbita entorno do lançamento do livro “Redesenhando o

Desenho: educadores, política e história”, Coutinho argui com Barbosa

expondo a sua preocupação acerca dos jovens professores, futuros

professores que estão em formação inicial ou continuada, especificamente no

sentido de como poderiam estimulá-los mais ao pensamento histórico, ao

cultivo da memória que tanto falta ao Brasil, em “... como trazer essas questões

para a sala de aula?” Barbosa explicita que a diretriz do exercício de memória

que concerne à constituição do ensino de artes no Brasil, assim como do arte-

educador, é fazer com que os próprios educadores ou futuros educadores

analisem a maneira como aprenderam:

39

[...] Como é que eles chegaram a universidade para cursar arte. Você faz com que eles, recuperando sua própria história e, através dela, relacionem aos acontecimentos do país, das mudanças políticas que levam as mudanças educacionais [...] Seus alunos, todos, tem respeito pela história e sabem que ela pode explicar algo do presente. Eu vejo isso em seus alunos. A pergunta: Onde começou? É uma pergunta que você sempre procura fazer para que seus alunos busquem analisar e responder questões. Onde começou essa prática de desenho pedagógico? Onde começou essa mania de polivalência? Importante analisar juntos e buscar as respostas. Eu acredito que a chave é essa: saber onde começa tudo, os problemas que temos hoje onde se iniciaram? E nossos grandes ganhos onde começaram? Esse é o caminho. Para se entender o hoje é preciso voltar, é preciso das origens, do passado (COUTINHO, 2015, p. 16, grifo nosso).

Nota-se em seus colóquios a necessidade de estimular os professores a

pensar de onde vêm as suas práticas, pois não podem ser alheios,

inconscientes de uma atuação que reproduz modelos, sejam enrijecidos ou

burocráticos, hegemônicos ou excludentes. É importante a consciência sobre a

metodologia empregada em sala de aula “... sabendo onde ela começa,

sabendo no quanto ela se transformou ao longo dos anos e de como nos

apropriamos dessa metodologia” (COUTINHO, 2015, p. 17).

O nosso estudo presente possui o intuito de, justamente, levantar o

questionamento sobre as possibilidades de atuação pedagógica do arte-

educador, impregnada da metodologia ironista, compreendida sobretudo pela

sua postura pedagógica, na qual o arte-educador se preenche com a certeza

de sempre duvidar, embora saiba muito bem orquestrar o processo de ensino-

aprendizagem minuciosamente, tendo em vista mais horizontes com os quais

possa se deparar.

Voltando ao Meirieu que acerta ao creditar para o seu livro o nome de “A

Pedagogia entre o Dizer e o Fazer – A Coragem de Começar”, pois é sincero

ao insistir em dizer que a tarefa de educar é difícil, que as crianças e jovens

estão em situação de descompromisso, com preconceitos até mesmo contra o

professor e resistentes às restrições; sabemos que muitas vezes, as primeiras

coibições sensatas direcionadas aos alunos acontecem em sala de aula

40

quando possuem cinco, seis anos, algumas vezes aos quinze, dezesseis anos.

Onde estava o exemplo, o reflexo, a referência familiar? São destas

complicações de cunho socioeconômicos, destes espelhos sociais, destas

marcas contemporâneas na unidade familiar que estamos a todo tempo nos

remetendo e, cada honesta intenção de conhecer metodologias e didáticas que

melhor funcionem frente a rede complexa da contemporaneidade, mais dignos

serão os resultados.

A coragem é imprescindível para se indignar, e em um sentido

educacional, o educador carrega em si o estigma rebelde contra o

establishment. O docente que se mobiliza incessantemente, não deseja que a

alienação seja amiga das mentes em processo formativo, não permite a miséria

se apossar do espírito da juventude mesmo que o seu entorno seja violento e

sádico. Este valioso docente não pode orquestrar um espetáculo fantasioso,

muito embora, possa sonhar boas esperanças após um dia exaustivo,

conflituoso, de um ofertar-se sobre-humano (MEIRIEU, 2002, p. 68-69).

Praticar o ensino exige solicitude, ou seja, uma entrega deliberada que

assessore a aprendizagem alheia, nestes termos, Meirieu ressalta:

Significa dizer também que a solicitude pedagógica não é de modo algum uma intenção pura, livre de qualquer envolvimento pessoal, uma espécie de “santidade educativa” acessível apenas aos seres excepcionais... Ela é a expressão do fato de que a preocupação consigo e a preocupação com o outro estão sempre estranhamente misturadas, indissociáveis, em um tormento que permite entabular, exatamente por sua complexidade, uma história surpreendente e singular com os outros seres humanos que se pretende, dessa maneira, educar e salvar da ignorância e da infelicidade (MEIRIEU, 2002, p. 73, grifo do autor).

Educar exige ética, remete à responsabilidade, à relação e o quão o

educador se disponibiliza a um real encontro de aprendizagem, que possa

gerar felicidade e saber. Um projeto que esteja comprometido com o

desenvolvimento educacional, particularmente representado pelo educador em

sua aula, demanda “’trabalho sobre o saber que ensina’”, ou seja, por ser

41

evidente, muitos professores, instituições formativas, podem subestimar este

fator, porém, é ele que dá sentido ao trabalho: dar atenção à especificidade

epistemológica do que é ensinado; compreender os princípios organizadores

da disciplina considerada em função dos imperativos dos programas e

identificar os objetivos-núcleos em sua especificidade e em sua complexidade.

Porém, o professor saberá a medida da transposição deste estratagema

didático à realidade; a ética deve imperar no processo até que a relação de

ensino-aprendizagem alcance a partilha (MEIRIEU, 2002, p. 91-92).

Tal qual Philippe Perrenoud, Meirieu, aprecia o “’trabalho do sonho’”, no

qual o professor mediante dificuldade, duvida, hesita, reflete, formula hipóteses

e estratégias; justifica-se relatando que quem não sonha não duvida, então

sabe o tempo todo o que pode e sabe fazer, não conhece a incerteza, perde

tempo arquitetando coisas que não fará, esta pessoa não se arrisca a inventar

nada, está condicionado a enfrentar problemas apenas cujos dados sejam

identificados, do contrário está perdido. Portanto, às vezes pode-se perder

tempo, energia e ideias, mas só desta forma, alguma condição criativa

suscitará (MEIRIEU, 2002, p. 107-108).

O educador é fundamental na construção da autonomia que vai se

efetuando por meio de níveis de aprendizagem, cabe a ele oferecer confiança e

honrar esta trajetória de dignidade com “formulações que permitam apreender

aquilo que se quer transmitir” assim como “inventar permanentemente novas

situações de aprendizagem”; percebe-se um faro educativo insatisfeito que

planeja “investir sua energia na busca de demonstrações mais eficazes e de

mediações que permitam ao aluno ter acesso à cultura que o livrará de seu

preconceitos e que lhe oferecerá os meios de se pensar no mundo”.

Considerando que este educador em prontidão jamais imporá nada ao outro

com violência de algum dispositivo (MEIRIEU, 2002, p. 123-124).

Meirieu compartilha que a pedagogia é uma gramática de saberes, que

pode organizar o caos de todos os conhecimentos, de forma a ofertar acesso

42

progressivo ao espírito humano e, ao mesmo tempo, experienciar o limite do

poder entre os homens (MEIRIEU, 2002).

Criteriosamente, proposita-nos uma configuração que muito servirá ao

educador ironista – não podemos esquecer que todo aparato aqui refletido

incrementa possibilidades, sugestões, que visam a constituição e a reflexão

acerca de um novo perfil de docente, seja para a atuação na disciplina de Artes

como a priori Aguirre (2009) nos apresentou, seja para a pluralidade das

disciplinas que constituem o Currículo; revela-nos saberes pedagógicos que

podem auxiliar a percepção docente. A descrição das quatro divisões que

Meirieu concebe para os operadores pedagógicos pode parecer confusa, como

até mesmo o autor avalia, porém, as modalidades de operação são plataformas

que manifestam intencionalidade pedagógica, obviamente irão requerer em sua

prática especificidades de objetivos e de métodos que o educador irá aliar;

contudo, salientamos, como sugerido por Meirieu, o professor pode encontrar

liga, por um lado, entre as operações de continuidade e ruptura, por outro,

entre suspensão e risco:

Se consideramos o aluno como um sujeito já constituído, cujas representações, desejos e interesses devem ser levados em conta, e se acreditamos na necessidade de lhe fornecer ferramentas intelectuais necessárias ao seu desenvolvimento, o operador pedagógico será exatamente a continuidade: continuidade entre sua história e seu projeto, continuidade entre o sujeito reconhecido como tal e as responsabilidades que deverão ser confiadas a ele, continuidade entre sua inserção cultural e social e os saberes que serão ensinados.

Se consideramos o aluno como um sujeito em formação que se deve

libertar de todas as aderências psicológicas e sociais que o prendia, se essa concepção é acompanhada da convicção de que os saberes são juntamente os meios que lhe permitirão aceder à condição de adulto, o operador pedagógico será a ruptura: ruptura entre o caráter aleatório e caprichoso de seus desejos e a realidade universal de uma cultura emancipadora, ruptura entre os caprichos, suas decisões imaturas, e a reflexão profunda que requer o acesso à cidadania, ruptura entre os ritos e a violência da sociedade infantil e o poder de argumentação que está na base de uma sociedade de adultos.

Se percebemos o aluno sobretudo como uma pessoa que se deve interpelar para que encontre em si mesmo a coragem exigida para estabelecer um contato com os outros seres e com outros saberes, e se, por outro lado, o consideramos como um sujeito já constituído, então o operador pedagógico será a suspensão: suspensão da imediaticidade dos posicionamentos, que é preciso reconhecer como legítimos, mas que se deve pedir que os reavalie quando um outro se opuser a ele, suspensão de seus compromissos institucionais, sociais ou mesmo

43

político aos quais ele tem direito, mas que se preocupará inserir em um conjunto de regras de funcionamento que permitirão o debate sem violência... suspensão da expressão de uma personalidade digna de ser reconhecida como tal, mas que também deve aceitar e reconhecer o direito dos outros à sua própria expressão.

Se consideramos o aluno como um sujeito em formação, cujas posições são ainda muito frágeis e aleatórias para que se possa alimentar nele a ilusão de participar de uma vida democrática prematura, porém se fixamos como objetivo educativo essencial para ele a perspectiva de um engajamento pessoal e a “coragem de começar”, então o operador pedagógico será o risco: risco de um sujeito que aprende a se colocar em cena sem recorrer à reprodução ou à imitação, risco de um sujeito que pela interpelação pedagógica, escapa aos conformismos sociais, assim como às imagens de si mesmo, nas quais sua história e o olhar dos outros ameaçam aprisioná-lo, risco que a educação deve ensinar o sujeito a assumir, mas sem alimentar nele a ilusão de que isso já lhe dá direito, antes mesmo de ingressar na sociedade adulta, a um reconhecimento incondicional (MEIRIEU, 2002, p. 146-147, grifo do autor).

Fornece-nos um material repleto de matrizes que possibilitam a leitura das

condições, posicionamentos, níveis, avanços nos quais os alunos estejam. Há

que se levar em conta no processo de ensino-aprendizagem, naturalmente, os

centros de interesse do aluno, as aquisições já realizadas, as representações,

as estratégias individuais de aprendizagem, a relação social com o saber, a

inserção familiar e local, a cultura de referência, a violência de seus impulsos,

seus engajamentos espontâneos, a obediência ou a resignação à lei do mais

forte, os papéis que foram atribuídos ao sujeito pelo grupo, a imagem de si na

qual se aprisionou, suas próprias dificuldades pessoais, sua ignorância, sua

incapacidade, seu fracasso ou seu medo (MEIRIEU, 2002).

Recomenda um “princípio regulador”, uma transferência, que será

realizada pelo educador ao trabalhar nos quatro setores. Nada mais é que a

dinâmica pela qual o indivíduo se apropria do saber incorporando-o em seu

desenvolvimento para alcançar novos saberes. Há três abordagens que o

educador poderá transitar conforme os níveis dos alunos:

a) a transferência utiliza um conhecimento, uma competência ou um

domínio. O professor introduz uma dinâmica que conduza o aluno a se projetar

em seu próprio futuro e tecer relações possíveis do que está aprendendo.

Neste processo pode haver incitação de novos problemas e paralelos de nova

aprendizagem com o que outrora já havia sido aprendido.

44

b) a transferência remete à possibilidade de “criar pontes”. Neste caso, as

pontes são entre as disciplinas, entre a situação de formação e a de trabalho,

entre os saberes escolares e a vida pessoal e social do aluno. Supõe-se uma

“transposição”, um “transporte” de uma ferramenta ou situação a outra, intuindo

uma “reconstrução de esquemas de ação em função daquilo que já foi

aprendido e de elementos novos que são descobertos”, considerando também

os códigos sociais e hábitos deste aluno, a sua história pessoal que agora se

insere em um novo jogo de representações. O professor pode “modificar as

situações de inserção social e simbólica dos saberes transferidos e trabalhando

com os próprios alunos sobre a complexidade das condições de transferência

assim analisadas.”

c) a transferência possibilita a incorporação de conhecimentos “mortos”

em uma dinâmica pessoal e da construção de si mesmo como sujeito de seus

atos. Neste aspecto, o sujeito possui intencionalidade em sua conduta, nada é

“mecânico”; os saberes foram incorporados pelas pessoas, contribuindo para o

seu desenvolvimento pessoal e coletivo. O professor e sua capacidade

pedagógica promove a circulação do aluno entre os quatro setores

mencionados, fazendo com que se jogue em cada registro sistematicamente,

inserindo questões para os savoir-faire por meio dos saberes, para os

conhecimentos, atitudes, para os interesses sociais e pessoais, para o universo

abstrato em relação a subjetividade individual, constituindo “uma conduta de

construção identitária” que nunca formará uma identidade fixa, como se fosse

dado rígido ou limitado a um conhecimento por segurança. A ideia é que seja

uma identidade em percurso inacabado, “um estabelecimento de relação

sistemático”, um questionamento do que constitui os pontos de apoio

necessários da construção de si (MEIRIEU, 2002, p. 216-217, grifo do autor).

Para Meirieu (2002) há quatro dimensões que uma vez articuladas,

acessam o educador “a um verdadeiro profissionalismo”, que não está apenas

ligado ao seu acúmulo de saberes acadêmicos e pedagógicos, às suas

competências técnicas:

45

1. A primeira dimensão diz respeito ao “momento pedagógico”, onde o

professor busca compreender a resistência do aluno, suspende a sua

lógica de ensino e sua exposição enciclopédica do seu saber. Entende

que a realidade não lhe satisfaz, mas não se culpabiliza; neste

instante, embora haja preconceitos com o termo, a compaixão é

identificada, ela “faz sorrir os espíritos fortes e rir os cientistas”, torna-

nos compreensivos com a dificuldade alheia, inventores de algo que

permitirá o encontro com o outro. Acena à literatura, vista como um

cabedal de léxicos, que pode compatibilizar as conexões entre os

seres, ela nos dá permissão ao conhecimento que atravessa o

sofrimento, a solidão, a exclusão, por fim, aproxima os universos e as

identificações humanas, portanto, há uma semelhança, uma alteridade

irredutível (p. 278).

2. A segunda dimensão é constituída pela “memória pedagógica” do

ensino, que se dá em uma espécie de reserva heterogênea de

saberes e resultados de pesquisas experimentais, por exemplo, onde

coexistem “resultados quantitativos de estudos de campo, informações

sobre os processos de cognição e de aprendizagem e de dados

relativos às interações individuais e sociais na instituição escolar.” Esta

memória estará indissociável dos “mestres”, das suas produções, das

suas pesquisas e lógicas, das suas contradições e limites, pois como

bem declara Meirieu: “... é mais que construir para si um “’reservatório

de dados’”; é realmente construir para si uma memória viva” (p. 281-

282, grifo do autor).

3. A terceira dimensão de modelo está relacionada ao levantamento de

índices. Trata de o educador captar correspondências entre o que tem

na memória e o que é levado a viver. O exercício de se aproximar das

situações estudadas na formação, das leituras; discernir o que há por

trás de contextos diferentes ou uma questão que se está vivenciando

e até mesmo uma tensão que se entremeia e opera na prática diária.

Pode deixar-se ser guiado por “proximidades estranhas, aproximações

46

incongruentes, analogias e metáforas.” O educador é desafiado a lidar

com alguma proposta situacional que, de repente, não lhe permite

programar nada, está em uma esfera nunca antes tocada por si

mesmo (p. 283).

4. A quarta dimensão proposta por Meirieu corresponde à junção das

dimensões anteriores; é a restauração de “uma unidade em uma

intencionalidade que associa uma decisão ética, a correspondência

possível entre a memória e uma situação, uma decisão” que anteceda

o ato. No entanto, ainda há consciência da incerteza, pois arrisca-se a

realizar algo que permita apenas o aluno a fazer o que pode. A

proposição não se constitui unilateralmente, há um devir que demanda

da resposta do aluno. Trata-se do educador em um momento

intencional e pedagógico, valorizá-lo no conjunto das “dimensões do

projeto de educar”; é um situar-se em sua história e construir. Relatar

e escrever encurtam a distância entre o dizer e o fazer; registrarão-se

em um texto sempre em construção, justificativas rigorosas,

diversidade de experiências e riquezas da memória. Esta narrativa é

“um espaço de reconciliação provisória no qual se pode encontrar um

mínimo de serenidade [...] que nos torna suportáveis aos nossos

próximos e permite-nos não cair no romantismo estéril [...]” (p. 284-

285).

Desta forma, tivemos até aqui ponderações pedagógicas que movem à

ação mais acertada conforme as necessidades particulares do aluno, sem que

o professor esteja sendo alvo de prescrição salvadora. Certamente, Meirieu

não se convenceria de alguma certeza, já que literalmente pensa a dúvida

como elemento inerente à pedagogia; a nossa investida se concentra em

analisar recursos que ao menos não vitimam a curiosidade de alguma possível

descoberta. O processo de intervenção pedagógica é complexo, inacabado e

sujeito a constantes transformações; o educador pode manipular, transferir,

mediar, desvirtuar, deslocar, recuar, incorporar, agir de forma não-convencional

47

e imaginativa, tendo em vista a promoção multifacetada de saberes que se

correspondem à vida e à identidade personalizada do aluno.

Quando nós, professores atuantes nas periferias, lemos na face dos

alunos, um abandono, uma miséria, uma exclusão - e isto, não é raro;

compreendemos racional e afetivamente o quão ainda somos imperfeitos para

solucionar pedagogicamente a aprendizagem destes alunos, pobremente

referenciados por todo o aporte da indústria cultural, que as redes

contemporâneas fazem emergir. O fato é que o professorado está na linha de

frente onde todas as manifestações sociais irão se convergir; ali residirá à flor

da pele, os acometimentos, os paradoxos, os prélios, a constatação da

marginalização e o descaso oriundos de todas as gerações anteriores. É uma

história plantada sobre a ignorância alheia.

Contudo, Meirieu (2006, p. 12) nos convoca à provocação de que “ aceitar

a mediocridade inevitável do cotidiano não significa condenar-se

irremediavelmente à rotina e à insignificância”, vai além, relatando que mesmo

com as instruções mais ou menos oficiais, com a complexidade da instituição

escolar, do fardo das tarefas administrativas que precisam ser realizadas

diariamente, com a formatação dos alunos pela mediocridade televisa

(incluímos aqui todas as mídias que veiculam artefatos unicamente com

propósitos econômicos), com as pressões sociais sobre o professorado (como

se fosse o culpado pelo fenômeno do fracasso escolar), apesar deste bojo

atrelado à docência, "ainda é possível que a transmissão advenha na sala de

aula. E que então, de súbito, o ofício passe a ter sentido” (p. 15).

O educador, mesmo que onisciente das dificuldades materiais que

massacram o pleno funcionamento educacional, como todos os demais

problemas que a vida em um subúrbio pode criar, não pode deixar de refletir

sobre os conteúdos do ensino, sobre o como se aproximar pedagogicamente

de uma determinada comunidade, há tempos esquecida em sua integralidade

pelo poder público.

48

Faz-se oportuna uma asseveração simples e tão diretiva que Meirieu

(2006) partilha em seu livro “Carta a um jovem professor”, tendo como pano de

fundo a problemática docente frente à precariedade que assola o ensino

público, complementa:

Em todos os casos, o professor deve possibilitar a cada aluno confrontar-se com um saber que o ultrapassa e, ao mesmo tempo, fornecer-lhe a ajuda necessária para se aproximar dele; e deve solicitar o comprometimento da pessoa e, simultaneamente, colocar à sua disposição os recursos sem os quais não poderá ter êxito em suas aprendizagens (2006, p. 19).

As certezas balançam, desestabilizam quando encontramos o novo, mas

precisamos de referências estáveis provindas do profissional do ensino, o

educador; ele ofertará saber e acompanhamento, permitirá que cada um se

introduza nesse saber rigoroso com os recursos que estão dispostos a si, com

a sua própria organização mental aos poucos se apropriará dos conhecimentos

organizados (MEIRIEU, 2006, p. 21).

Meirieu evoca a reminiscência de que, provavelmente, todo educador

possui como registro, uma atuação específica e especial de algum professor

em seu passado, que o atingiu na alma e na memória de forma tão tocante que

o fez, posteriormente, tornar-se, por sua vez, um docente. Revela o

pensamento a seguir num tom profético, de promessa: “Não há nada de

extraordinário, então, em considerarmos nosso ofício como um meio de

possibilitar a outros que vivam a alegria das descobertas que nós próprios

vivemos.” É uma mostra de dignificar quem um dia o ensinou, de encontrar

energia criadora ante “... às humilhações de um concurso de seleção com

provas sempre difíceis, em geral maçantes e raramente pertinentes em relação

ao ofício que iremos exercer” (2006, p. 25). Quem entre nós, não concordaria

com estas ponderações honestas e irrefutáveis, que cabem em nosso contexto

brasileiro?

São acúmulos infindáveis que obstaculizam o simples projeto de educar,

desde os preenchimentos burocráticos em cada aula, em cada diário – o que

49

pensar dos professores de Artes, Sociologia, Filosofia, por exemplo, que

possuem apenas duas aulas semanais e, portanto, numa carga horária de 32

aulas semanais, preenchem 16 diários? Não é uma demanda facílima, ainda

mais quando este educador, invariavelmente, possui dois cargos

concomitantes, pois o que recebe em um cargo não oferta dignidade

econômica o suficiente para apenas exercer, dedicadamente, seus esforços à

uma única unidade escolar. Meirieu nos desperta o interesse ao conceber uma

ideia que, certamente, todo educador brasileiro vive a comentar entre os seus

pares pelos corredores escolares:

É por isso que defendo a ideia iconoclasta segundo a qual toda pessoa que assume responsabilidades administrativas ou pedagógicas deveria manter um contato regular com os alunos: que o diretor da escola continue lecionando algumas horas por semana em sua disciplina de origem [...] Que os funcionários da administração central do ministério assim como os reitores e seus colaboradores continuem a assumir cargas de ensino escolar ou universitário. [...] Para que ninguém esqueça jamais de onde emana e onde se pode regenerar permanentemente o projeto de ensinar (2006, p.28).

Para definitivamente humanizar Meirieu (se ainda se faz necessário),

disponho em perspectiva mais do que acessível a todos nós, educadores,

exemplos tão ordinários do autor, correlatos à natureza da docência, com o

propósito de desmistificar alguns posicionamentos, que insistem abarcar todos

teóricos e jogá-los em um mesmo caldeirão onde só haveria verborragia

insípida, restos de teia secular e vetusta e, por fim, descrédito pelo simples fato

de teorizar o que a maioria não pratica; o sentimento de Meirieu perpassa pela

profissionalização de todo educador brasileiro quando se anunciam

“perseguições administrativas irrisórias”:

“’Professor Meirieu, o senhor não preencheu corretamente o diário de classe... O senhor está atrasado com seus boletins... O senhor esqueceu as últimas instruções ministeriais sobre a gramática? O senhor tratou de convocar os pais desse aluno? De encaminhar esse outro ao conselheiro de educação e de procurar a assistente social para relatar o caso desse terceiro? [...] Professor Meirieu, o senhor não fez nada para a semana da imprensa na escola? O que o senhor está pensando em fazer para a semana contra o racismo? O senhor não está subestimando seu papel em matéria de educação para a

50

saúde? O senhor parece estar esquecendo de nossas responsabilidades em matéria de prevenção de acidentes de trânsito. E o senhor tem certeza mesmo de que esse livro que está usando para ensinar seus alunos a ler faz parte do programa?’”. A gente acaba explodindo!” (2006, p. 27).

Como apresentamos, o nosso autor possui experiência do que

poderíamos chamar de “chão de fábrica”, ou seja, sempre observado e com

baixa autonomia, uma menção de atividade mecânica, mas, é claro, nas suas

devidas proporções. Meirieu se dedicou a contemplar todas as gamas de seu

ofício, então, natural que ele possa testemunhar legitimamente qualquer

parecer educacional.

Reflete a didática como sendo nada mais que “a investigação pela qual

tentamos compreender “’como as coisas funcionam’” na cabeça de um aluno

para que ele faça o melhor aproveitamento dos conteúdos programa” (2006, p.

41). Pondera que para ensinar, o educador precisa organizar situações de

aprendizagens que sejam eficazes, e nisto, haverá questionamento dos

próprios saberes docentes, pois, como pesquisador, há um empenho na

elaboração de sequências didáticas que revisitarão, redescobrirão os seus

próprios conhecimentos (2006, p. 43).

Sinaliza que a escola precisa trabalhar para modificar as práticas de

avaliação que se assemelham ao sistema produtivo de mercado, à economia

de mercado; torna-se inútil o confronto com o capitalismo se os profissionais da

educação não combaterem “as formas de exclusão e banimento”, de

assegurarem a todos, os fundamentos da cidadania, mesmo que não adentrem

às universidades mais prestigiadas. A escola precisa ofertar os saberes que

sem os quais, os mais carentes não chegarão a nem compreender a sua

própria condição; neste sentido, o educador se atentará ao acontecimento

pedagógico, de forma que facilite a sua ocorrência e mais alunos possam

aprender a saber, a ser e a conviver (p. 46-47).

De mãos dadas, o trabalho e a motivação seguem no cotidiano escolar,

segundo Meirieu (2006). São elementos que se conjugam e que se

51

condicionam um ao outro. O esforço sempre estará impregnado na atividade

docente, mas de forma consubstancial ao esforço do aluno, ambos podem

atingir “satisfações intelectuais inéditas, horizontes novos que estimularão sua

curiosidade” (p. 51). Com a mesma convicção, Meirieu afirma que é por meio

da exigência da qualidade do próprio trabalho, que o educador desejoso, busca

“a perfeição de humanidade”, pois poderá distinguir o que vale a pena (p. 56).

Todo material, objeto, gesto, palavra e expressão que se estude com

afinco pode se tornar digno de elucubração da condição humana, desde que

vasculhado em toda a sua potencialidade, em todo o emaranhado cultural no

qual se insere; nestas ações sistemáticas há de se encontrar qualidade e

formação cidadã. Uma intencionalidade que tenta alcançar magníficos saberes,

talvez, despertos e fruídos por meio de um momento pedagógico inesperado,

como o nosso exemplo:

Devo confessar que levei muito tempo para compreender e formalizar isso. Acho que percebi pela primeira vez quando era professor de Letras e estava tentando fazer teatro com meus alunos. É que, nesse aspecto, o teatro é uma grande escola: o cenário, os ritos, a iluminação... tudo convida a abandonar a gesticulação que nos ocupa tanto na “’vida’” para tentar chegar à densidade do gesto. [...] A qualidade da expressão não é um suplemento de alma, mas o próprio tema que se torna corpo e palavra... E, ainda hoje, sempre que participo ou assisto a um trabalho de expressão artística com alunos – de dança, teatro, música, caligrafia, pintura ou escultura – fico encantado com o trabalho extraordinário que se executa ali: [...] eles se dedicam, ajustam o foco para se comunicar com os outros: pouco a pouco interiorizam a exigência até levá-la ao mais profundo de si e até – um dia, talvez – não precisarem mais ter um professor ao seu lado para encarná-las (MEIRIEU, 2006, p. 54, grifo nosso).

Analisa que os nossos alunos são consumidores de imagens; o universo

das crianças e jovens está abarrotado de artefatos culturais que em nada

contribuem para o seu crescimento: “as mídias exaltam o infantil quando a

escola tenta fazer a criança crescer” (Meirieu, 2006, p. 61). O controle remoto

não estará nas mãos do aluno em sala de aula como alternativa, por exemplo;

o aluno não poderá ao seu bel-prazer modificar a sintonia na qual oferece um

determinado professor em sua frente. Não há “possibilidades inesgotáveis” e

52

“infinitude de atividades” que digam apenas ao seu capricho (p. 60). Muitos

professores acabam por apenas lamentar e acusar as famílias de indulgência,

por fim, deixam de ensinar, de insistir, pois creem que os alunos são indignos;

Meirieu incita o professor com a sua própria performance, construir

pacientemente, dia a dia, a disciplina escolar que afeta a todos os profissionais

docentes, sendo minucioso na preparação do seu trabalho, cuidando do

ambiente, tendo firmeza nas instruções e distribuindo os papéis que cada um

tem na obra coletiva (p. 62, grifo do autor).

Ao aprofundar a disciplina a ser ensinada que surgirá a disciplina

esperada, o ambiente promissor de aprendizagens. Portanto, com projetos e

definições de tarefas, respeitando as estruturas de funcionamento da aula, os

alunos, aos poucos, abandonam as suas satisfações imediatas apreendidas do

mundo infantilizado das mídias e se permitem ao envolvimento e construção de

aprendizagens (2006, p. 65).

Meirieu se ressente pelo fato do Ministro da Educação da França ter

modificado a nomenclatura de “instituidor2” para “professores de Escola”, pois a

etimologia identifica-o como “”aquele que instrui, aquele que institui a

humanidade no homem’” (2006, p. 67) e é na Escola, seu ambiente de

trabalho, que transmite conhecimentos e forma cidadãos; a unidade escolar

não é lugar de acolhimento e de passagem, mas sim de contexto educativo que

precisa fazer sentido, onde há ao molde instituidor, “o reconhecimento da

alteridade, a exigência de precisão, de rigor e verdade, aprendizagem conjunta

da constituição do bem comum e da capacidade de “’pensar por si mesmo’” (p.

68).

O bom educador demonstra probidade quando, inclusive, revela suas

falhas e ignorâncias, não possui receio de se mostrar perplexo intelectualmente

diante de alguma situação surpreendente. Ele constrói o ambiente apropriado

às aprendizagens e trocas por meio da sua probidade; o aluno reconhece

2 Instituidor, vocábulo que designa aquele que dá início, cria, educa, forma, disciplina, declara

por herdeiro.

53

quando a inteligência, a argumentação, a razão, a verdade, estão legitimadas

no ambiente escolar e todos são coparticipantes. É responsabilidade do

professor indicar o exercício de contradizer o mundo rigorosa e eticamente;

incentivar os alunos a examinarem as palavras e sua coerência, não o prestígio

de quem as profere; de checarem sistematicamente as fontes. São práticas

que motivam a expressão pessoal, “a aprendizagem da liberdade de pensar”

(MEIRIEU, 2006, p.74, grifo do autor).

A escola possibilita ao aluno entrar em contato com a esfera coletiva,

onde aprenderá a respeitar o ponto de vista alheio e construir um objetivo em

comum, um saber objetivo. O desenvolvimento é progressivo e abrange os

aspectos intelectual, social e político do aluno. Meirieu (2006) aponta o direito

como peça fundamental da democracia, pois rege as relações civilizadas e

teria de ser estudado, assimilado por todos desde os primeiros anos escolares:

Primeiro em cada aula: proporcionando sistematicamente aos alunos os meios de recorrer a experiência ou a documentos a fim de habituá-los a não mais acreditar apenas nas palavras de alguém. Depois em cada classe: adotando sistematicamente objetos de observação, de estudo e de debate, discutindo regularmente e serenamente com os alunos sobre os métodos de trabalho utilizados e sua eficácia. Finalmente, nas escolas de nível fundamental e médio: promovendo instâncias de representação dos alunos sob mandato, e assegurando-lhes sistematicamente uma formação para saber tomar a palavra, para o debate argumentado, para a conduta de reunião [...] (p. 77, grifo do autor).

Reflete as sociedades democráticas como um combinado que hesita

entre “a tirania de elites e o populismo demagógico” (p. 79). De fato, não sabe

se é possível a criação de uma verdadeira democracia. Ainda assim, acredita

que não há outra solução a não ser fomentá-la. Acena que o Estado faz uso da

violência de forma ilegítima e os governantes requisitam à escola o ensino de

virtudes que eles mesmos não praticam. A ditadura já deixou marcas indeléveis

tanto para os franceses quanto aos brasileiros: não exercitar os conhecimentos

e os princípios políticos e democráticos é deixar margem à insurreição do

poder violento e tirânico, novamente. O educador como profissional da

54

aprendizagem é também um militante político, em seu aspecto mais nobre, pois

edifica sobriamente humanidade.

Meirieu aponta os educadores como seres que são o futuro. São seres

esperançosos que criam pontes dialógicas, que provocam os alunos a se

compreenderem em interação com o mundo numa perspectiva subversiva,

questionadora, arguidora e que atenda a ética. Como não encontrarmos

semelhanças nas descrições dos pilares que regem um bom educador ao

evocarmos a imagem pluralista do educador ironista? Entendemos que o

ironista e a sua atuação da dúvida, da descrença, da promoção da alteridade e

do confronto às humilhações humanas, já que se esforçará em ampliar os

léxicos dos alunos, redesenha possibilidades dignificantes de intervenção no

ensino-aprendizagem, injeta ânimo na prática docente porque lhe dá sentido e

valor. A sua sina é refutar para si e, conjuntamente aos seus alunos, qualquer

indício de subserviência e inanição, está em prontidão para captar

possibilidades que destruam a alienação, o conformismo e a subjugação.

Ao buscar um diálogo com o suíço Perrenoud (2000), percebemos que

um dos matizes que se acentuam na atuação do docente contemporâneo se

manifesta em “decidir na incerteza e agir na urgência” (p. 11). Corrobora junto à

Meirieu (1998) ao enfatizar que o aluno resiste ao saber e à responsabilidade e

que, portanto, a intervenção afinada do educador faz-se necessária. Coloca em

questionamento a crise das finanças públicas e das finalidades da escola e

neste contexto socioeconômico frágil e débil, contudo, o professor precisa

dominar os saberes a serem ensinados, administrar a sala de aula e avaliar;

incita à forma mais inovadora, de prática democrática, que impugna a clássica

administração da progressão das atividades, pautada em anúncios de

reprovação provável e regida por provas escritas regulares, ao contrário da

avaliação formativa que já nos debruçamos um tanto sobre a sua reflexão

amadurada, pois induz a um apoio integrado, formas diferenciadas de ação que

evitam as distâncias entre as progressões de conhecimentos (PERRENOUD,

2000, p. 13).

55

Tardiff (2012) nos convida ao entendimento de que a prática profissional

do educador é senão a pedagogia, ou seja, de um ser ético e autônomo, que

cotidianamente enfrenta problemas que não possuem respostas prontas;

considera que

Um profissional do ensino é alguém que deve habitar e construir seu próprio espaço pedagógico de trabalho de acordo com limitações complexas que só ele pode assumir e resolver de maneira cotidiana, apoiado necessariamente em uma visão de mundo, de homem e de sociedade” (p.149).

Perrenoud (2000) compreende as competências correlacionadas entre si

e ligadas a um conjunto delimitado de tarefas, problemas; junto a este

movimento, os recursos cognitivos (saberes, técnicas, savoir-faire, atitudes,

competências mais específicas) seriam mobilizados pela competência que está

em foco. Ou seja, um diálogo entre competência e uso dos recursos cognitivos

para se alcançar outras competências, saberes. Justifica a necessidade de se

refletir sobre a atuação, as competências profissionais, de colocar as crianças

no centro das atenções pedagógicas, de buscar métodos ativos e projetos

dotados de sentido, de desenvolver as competências e educar objetivando a

cidadania:

O ofício não é imutável. Suas transformações passam principalmente pela emergência de novas competências (ligadas, por exemplo, ao trabalho com outros profissionais ou à evolução das didáticas) ou pela acentuação de competências reconhecidas, por exemplo, para enfrentar a crescente heterogeneidade dos efetivos escolares e a evolução dos programas. Todo referencial tende a se desatualizar pela mudança das práticas e, também, porque a amaneira de concebê-las se transforma. Há 30 anos, não se falava tão correntemente de tratamento das diferenças, de avaliação formativa, de situações didáticas, de prática reflexiva [...] (p. 14).

Proposita uma lista que não se pretende ser “consensual, completa e

estável de um ofício ou das competências que ele operacionaliza” (p.14) em

famílias:

1. Organizar e dirigir situações de aprendizagem. 2. Administrar a progressão das aprendizagens.

56

3. Conceber e fazer evoluir os dispositivos de diferenciação. 4. Envolver os alunos em suas aprendizagens e em seu trabalho. 5. Trabalhar em equipe. 6. Participar da administração da escola. 7. Informar e envolver os pais. 8. Utilizar novas tecnologias. 9. Enfrentar os deveres e os dilemas éticos da profissão. 10. Administrar sua própria formação contínua.

Como observamos, anuncia competências prementes que,

indubitavelmente, qualquer educador contemporâneo não poderia dar as

costas a estas considerações, ou poderia? Conforme estamos refletindo, o

ironista, naturalmente, se distanciaria e não pré-julgaria; ele não sabe e,

portanto, deseja aprender. Cremos que basta este apontamento para não

incidirmos em certezas que em nada nos farão acrescentar à nossa reflexão.

Define com precisão o seu entendimento e o emprego da palavra

competência, designando-a como uma “’capacidade de mobilizar diversos

recursos cognitivos para enfrentar um tipo de situações’”, especificando-a em

quatro aspectos: 1. As competências não são por si mesmas saberes, savoir-

faire ou atitudes, porém, integram, orquestram, mobilizam os recursos. 2. Cada

situação é única e essa mobilização só é pertinente em situação, mesmo que

possa operá-la de forma analógica com outras já apreendidas. 3. Exercitar as

competências requer operações mentais complexas, esquemas de

pensamento, que permitem determinar (quase consciente e rapidamente) e

realizar (de modo mais ou menos eficaz) uma ação relativamente adaptada à

ação. 4. As competências profissionais constroem-se, em formação, com a

navegação diária do professor, de uma situação de trabalho à outra (p. 15, grifo

do autor).

A descrição de qualquer competência nos remete a três elementos que se

complementam, segundo o autor:

Os tipos de situações das quais se dá um certo domínio; Os recursos que mobiliza, os conhecimentos teóricos ou metodológicos,

as atitudes, os savoir-faire e as competências mais específicas, os esquemas motores, os esquemas de percepção, de avaliação, de antecipação e de decisão;

57

A natureza dos esquemas de pensamento que permitem a solicitação, a mobilização e a orquestração dos recursos pertinentes em situação complexa e em tempo real.

Pondera que as análises de competências se remete à teoria de

pensamento, à ação situada, da prática como ofício e condição, portanto, o

educador sempre estaria em terreno instável no plano dos conceitos, das

ideologias. No plano da ação, o professor gera uma situação de aprendizagem

global, porém, mobiliza competências específicas; percebe todas as cenas ao

seu redor com o intuito de gerir as aprendizagens e envolver todos os alunos,

inclusive, os distraídos.

Ao visualizar as competências específicas, que são componentes

principais ao “administrar a progressão das aprendizagens”, Perrenoud (2000,

p. 17) elabora cinco competências:

1. Conceber e administrar situações-problema ajustadas ao nível e às possibilidades dos alunos.

2. Adquirir uma visão longitudinal dos objetivos do ensino. 3. Estabelecer laços com as teorias subjacentes às atividades de

aprendizagem. 4. Observar e avaliar os alunos e situações de aprendizagem, de acordo

com uma abordagem formativa. 5. Fazer balanços periódicos de competências e tomar decisões de

progressão.

Considera que ao objetivar um projeto comum que envolva todos os

alunos, o educador necessita se atentar aos aspectos metacognitivos

mobilizados por algumas competências, tais como:

Trabalhar a partir das representações dos alunos. Trabalhar a partir dos erros e dos obstáculos à aprendizagem. Fornecer apoio integrado, trabalhar com alunos portadores de grandes

dificuldades. Suscitar o desejo de aprender, explicitar a relação com o saber, o

sentido do trabalho escolar e desenvolver na criança a capacidade de auto avaliação.

Favorecer a definição de um projeto pessoal do aluno.

No tocante à uma “cultura em psicossociologia das organizações”,

Perrenoud (2000, p. 17-18) sinaliza à gestão escolar, assim como ao educador,

58

em suas respectivas funções, o desenvolvimento de determinadas

competências específicas que se assomam, inextricavelmente, à sua atuação:

Instituir e fazer funcionar um conselho de alunos (conselho de classe ou de escola) e negociar com eles diversos tipos de regras e de contratos.

Abrir, ampliar a gestão de classe para um espaço mais vasto. Desenvolver a cooperação entre os alunos e certas formas simples de

ensino mútuo. Elaborar um projeto de equipe, representações comuns. Dirigir um grupo de trabalho, conduzir reuniões. Formar e renovar uma equipe pedagógica. Administrar crises ou conflitos interpessoais. Elaborar, negociar um projeto da instituição. Organizar e fazer evoluir, no âmbito da escola, a participação dos alunos. Dirigir reuniões de informação e debate. Prevenir a violência na escola e fora dela. Participar da criação de regras de vida comum referentes à disciplina na

escola, às sanções e à apreciação da conduta. Desenvolver o senso de responsabilidade, a solidariedade, e o

sentimento de justiça. Negociar um projeto de formação comum com os colegas (equipe,

escola, rede).

Percebemos que determinadas competências se relacionam mais às

disciplinas; outras competências, aos problemas teóricos e de campo. O fato, é

que Perrenoud nos suscita muitos elementos que estão interligados à atuação

docente, e que nos auxilia a conectar mais atribuições criteriosas às

ferramentas e/ou instrumentos ironistas. Nas palavras de Perrenoud (2000), o

seu estudo sobre as competências prioritárias se dirige “aqueles que trabalham

para modernizar e para democratizar o sistema educativo” e que em seu

trabalho se encontrará “um conjunto de propostas relativas aos recursos de

que depende a mudança” (p. 19, grifo nosso). Mesmo que o educador seja o

“conceptor e dirigente” das situações de aprendizagem, isto não garante a si

mesmo a não ocorrência de riscos e falhas, o que inclui, portanto, necessárias

reinvenções didático-metodológicas (p. 24). Neste sentido, Tardiff (2012, p. 61)

colabora ao manifestar a ideia de que os saberes profissionais do educador

são heterogêneos e plurais porque “trazem à tona, no próprio exercício do

trabalho, conhecimentos e manifestações do saber-fazer e do saber-ser

bastante diversificados e provenientes de fontes variadas [...]”.

59

O professor sempre se atentará ao seu planejamento didático, pois deseja

identificar os objetivos trabalhados em cada situação em questão; analisará

posteriormente o que se desenvolveu nas atividades e situações, de fato, de

forma a modificar a sequência das atividades propositadas e, por meio da

avaliação, controlará os conhecimentos adquiridos pelos alunos (2000, p. 27).

Estes procedimentos permitirão uma intencionalidade mais precisa no ensino-

aprendizagem.

Acerca das representações oriundas dos alunos, afirma que é preciso

trabalhar a partir das suas concepções, e por meio do diálogo avaliá-las e

aproximá-las dos conhecimentos científicos a serem ensinados. Para tanto, o

educador precisa apurar a sua competência didática, daí encontrará “um ponto

de entrada” no sistema cognitivo do aluno para desestabilizá-lo, o suficiente, ao

incorporar “novos elementos às representações existentes”, reorganizando-os

(p. 29).

Descreve que quando o aluno é levado a trabalhar cognitivamente, aos

poucos, acontece a reestruturação do “seu sistema de compreensão de

mundo” (p. 30), de forma que dominará melhor a realidade simbólica e prática

da sua existência. Ao travar contato com alguma situação-problema será

obrigado “a transpor um obstáculo graças a uma aprendizagem inédita” (p.31).

Haverá um movimento de hipóteses, explorações e tentativas para mais um

reequilíbrio.

Perrenoud (2000, p. 39) avalia que o professor poderia transmitir a sua

paixão pelo conhecimento, mas isto seria uma questão de identidade e projeto

pessoal do próprio profissional. No entanto, reflete que a competência ligada a

este posicionamento perpassa pela “arte de comunicar-se, seduzir, encorajar,

mobilizar, envolvendo-se como pessoa”. Ainda assim, o professor teria que ser

cúmplice e solidário na busca pelo conhecimento, “renunciando a defender a

imagem do professor “’que sabe tudo’”. Tardiff (2012) salienta que o educador

não atua sozinho, ele está em contínua relação com o aluno:

60

A atividade docente não é exercida sobre um objeto, sobre um fenômeno a ser conhecido ou uma obra a ser produzida. Ela é realizada concretamente numa rede de interações com outras pessoas, num contexto onde o elemento humano é determinante e dominante e onde estão presentes símbolos, valores, sentimentos, atitudes, que são passíveis de interpretação e decisão que possuem, geralmente, um caráter de urgência (p. 49-50).

Ao tratar da temática formativa do educador brasileiro, Perrenoud (2002,

p. 13) coloca em xeque se nós, brasileiros, ofertaremos a educação em linhas

democráticas “ou se a educação continuará sendo, como na maioria dos

países, um instrumento de reprodução das desigualdades e de sujeição das

massas ao pensamento dominante”. Estas palavras foram proferidas no ano

2001, aqui no Brasil e agradecemos a reflexão direcionada: todos nós,

educadores, após 14 anos, precisamos ter isto em mente e constatar quais são

as relações de forças que movem os objetivos no ensino público brasileiro.

Explicita algumas contradições que já haviam se pronunciado em meados

de 2000, e agora, mais do que nunca, convivemos e tratamos delas: cidadania

planetária e identidade local; globalização econômica e fechamento político;

liberdades e desigualdades; tecnologia e humanismo; racionalidade e

fanatismo; individualismo e cultura de massa e, por fim, democracia e

totalitarismo. Para atuar competentemente neste panorama, no mínimo,

movediço e sensível, o educador que deseja “desenvolver uma cidadania

adaptada ao mundo contemporâneo” (p. 14), segundo Perrenoud (2002),

deveria ser: uma pessoa confiável; um mediador intercultural; um mediador de

uma comunidade educativa; uma garantia de lei; um organizador de uma vida

democrática; um transmissor cultural e um intelectual. De forma complementar,

Tardiff (2012) descreve o seu ponto de vista sobre o que é um professor ideal:

[...] é alguém que deve conhecer sua matéria, sua disciplina e seu programa, além de possuir certos conhecimentos relativos às ciências da educação e à pedagogia e desenvolver um saber prático baseado em sua experiência cotidiana com os alunos (p. 39).

61

No que diz respeito à construção de competências e saberes, o educador

contemporâneo deveria ser: um organizador de uma pedagogia construtivista;

garantia do sentido dos saberes; um criador de situações de aprendizagem; um

administrador de heterogeneidade e um regulador dos processos e percursos

de formação. Sua postura fundamental estaria ligada à prática reflexiva de uma

sociedade em transformação, da capacidade de inovar e favorecer a

construção de novos saberes. A sua implicação crítica se correlacionaria ao

envolvimento nos debates políticos sobre a educação em todas as escalas:

escolar, regional e federal; debates estes, de cunho corporativo, sindical, de

programas escolares, à democratização da cultura, à gestão do sistema

educacional (PERRENOUD, 2012, p. 15).

Afirma que o educador privilegia o desenvolvimento global do aluno,

considerando a sua abertura para o mundo e o seu juízo, muito mais

importantes que apenas a acumulação de saberes; além disto, considera que

os professores são mais “sensíveis à diversidade das relações com o saber,

das maneiras de aprender, dos ritmos de desenvolvimento e das trajetórias dos

indivíduos” (PERRENOUD, 2012, p. 35).

Ao analisarmos as características propostas para este perfil de educador,

entendemos que há a possibilidade de relacionarmos este profissional descrito

com o ironista. A este educador explicitado tanto por Meirieu (2002) quanto por

Perrenoud (2002) poderíamos chamá-lo - claro que, convenientemente; de

ironista, um tipo que se assemelha ao personagem John Keating, interpretado

pelo extraordinário ator Robin Williams em 1989, cujo nome do filme é

“Sociedade dos poetas mortos”. Keating inseria sentido às aprendizagens

literárias que vivia a transmitir, jorrava paixão em cada gesto e palavra, enchia

com sopro de vida as atividades da sua disciplina e era aceito como um ser

confiável pelos jovens inquietos, receosos e ávidos pelas experiências que a

vida pudesse ofertar, mas a contrapartida dos seres ortodoxos a estas

proposições não era da mais complacente e democrática. Podemos imaginar.

Estamos apenas tentando elucidar as potencialidades de um educador

contemporâneo, que esteja vívido o bastante para enfrentar com maturidade,

62

humor, paciência e uma ironia ácida, este mundo complexo, corrosivo,

truculento e muito pouco convidativo da educação do homem pós-moderno. E

nisto tudo há de ter poesia.

Para Tardiff (2012) quando se trata do trabalho docente, o educador se

comporta como um agente organizacional, “ele é sujeito de seu próprio trabalho

e ator de sua pedagogia, pois é ele quem a modela, quem lhe dá corpo e

sentido no contato com os alunos (negociando, improvisando, adaptando)” (p.

149).

Aponta a prática do educador como uma mistura de talento pessoal,

experiências, intuições, bom senso e de habilidades que foram confirmadas

pelo tempo e uso; sua prática educativa será melhor operada se cambiar entre

uma arte, uma técnica e uma interação, como assevera: “[...] devemos evitar

rejeitar, de maneira dogmática e unilateral e em proveito de um único tipo, os

diferentes tipos de ação que existem efetivamente na educação” (p. 175).

Conceitua a arte de educar pautada sob um triplo fundamento:

[...] ela tem seu fundamento em si mesma (é ensinando que nos tornamos bons professores); tem seu fundamento na pessoa do educador (é possível aprender a educar, contanto que o educador já possua as qualidades do ofício); e, enfim, tem seu fundamento na pessoa do educando, cuja formação constitui a finalidade interna, imanente da prática educativa (p. 161, grifo nosso).

Tardiff afirma que o professor sabe o que faz e por que o faz, ele possui

consciência profissional “[...] que se manifesta por meio racionalizações e

intenções (motivos, objetivos, premeditações, projetos, argumentos, razões,

explicações, justificações [...]” (p. 208, grifo do autor). Entretanto, não só este

profissional consciente, mas qualquer “ator humano” possui limitações, sabe

das coisas até certo ponto, “[...] não é necessariamente consciente de tudo o

que faz no momento em que o faz [...] suas ações têm muitas vezes

consequências imprevistas, não intencionais, cuja existência ele ignora” (2012,

p. 211).

63

Acerca das “’competências profissionais’” do professor, Tardiff (2012)

compreende que estão “[...] ligadas às suas capacidades de racionalizar sua

própria prática, de criticá-la, de revisá-la, de objetivá-la, buscando fundamentá-

la em razões de agir” (p. 223). Seu enfoque é argumentativo e deliberativo,

tendo aporte em uma “[...] racionalidade limitada e concreta, enraizada nas

práticas cotidianas dos atores, racionalidade aberta, contingente, instável,

alimentada por saberes lacunares, humanos, baseados na vivência [...]” (p.

224).

O educador é considerado como ator principal e mediador da cultura e

dos saberes escolares; está sobre ele a responsabilidade do papel educativo

da escola. Tardiff sinaliza-o como um sujeito do conhecimento, ator que

desenvolve, produz e assume teorias, conhecimentos e saberes de sua própria

ação. Contudo, há desvalorização dos seus saberes pelas autoridades

educacionais, escolares e universitárias; há intenção política nesta ação,

situando-o longe da “sequência dos mecanismos de decisão e das estruturas

de poder que regem a vida escolar” (TARDIFF, 2012, p. 243).

Defende “a unidade da profissão docente do pré-escolar à universidade”

(2012, p. 244), objetivando o reconhecimento social dos professores como

seres do conhecimento e como atores sociais, de forma que todos os

educadores se reconheçam como pessoas competentes, que podem aprender

juntos como melhorar a profissão em comum. O seu profissionalismo o conduz

à uma autogestão dos conhecimentos dos seus pares, portanto, a

incompetência de um profissional só poderia ser avaliada por seus pares (p.

248).

Segundo Tardiff, o professor precisa ter inúmeras habilidades e

competências, pois estará cotidianamente atrelado à mobilização plural de

objetivos: “[...] emocionais ligados à motivação dos alunos, objetivos sociais

ligados à disciplina e à gestão da turma, objetivos cognitivos ligados à

aprendizagem da matéria ensinada [...] ao projeto educacional da escola [...]”.

Há um quê de pragmatismo em seus saberes profissionais, tal qual o artesão

64

que possui uma caixa de ferramentas que “constituem recursos concretos

integrados ao processo de trabalho, porque podem servir para fazer alguma

coisa específica relacionada com as tarefas que competem ao artesão” (2012,

p. 264). Todo educador é um ator social com personalidade, poderes,

pensamento e ação que mostram em quais contextos se insere e transita; tem

uma história de vida e suas particulares emoções; seu saber é personalizado e

encravado numa situação de trabalho a qual deve atender (p. 265-266).

Enfatiza que o trabalho docente objetiva os seres humanos, portanto, traz

consigo “as marcas de seu objeto de trabalho” e, aos poucos, desenvolve a

sensibilidade para distinguir a diversidade entre os alunos, para evitar

generalizações, por exemplo. Sensibilidade que exigirá investimento contínuo e

de longo prazo; da mesma forma, investirá na revisão dos seus saberes

oriundos da experiência, que aliás, o conectarão permanentemente com os

componentes éticos e emocionais, pois saberá mais de si mesmo por meio da

sua prática com os alunos, pelas “mudanças emocionais inesperadas na trama

experiencial” (p. 267-268).

Reflete sobre o processo formativo do educador contemporâneo,

indicando que quanto à continuidade dos estudos, o tempo se torna escasso,

não permitindo uma maior dedicação ao desenvolvimento profissional ou a

discussões coletivas sobre os problemas do ensino e da profissionalização.

Afirma que o professor tem mantido uma posição individualista, sendo os seus

métodos de ensino-aprendizagem, em sua maior parte, tradicionais. Percebe

uma necessidade de melhorar a formação intelectual dos professores, porém,

os cursos universitários diminuem as cargas horárias de disciplinas teóricas e

conceituais em detrimento das questões utilitárias e práticas, portanto,

disciplinas como Filosofia, Sociologia e Economia ficam esquecidas do

currículo de formação docente. Frisa que os currículos universitários são muito

fragmentados e as disciplinas pouco dialogam, são demasiadamente

especializadas. No entanto, demonstra que os cursos aumentaram em média

mais um ano para se completar a formação de docente, no sentido de tentar

elevar a qualidade formativa dos alunos, dos futuros educadores (p. 282-283).

65

Proposita a concepção do prático reflexivo que se associa mais ao

professor experiente do que o perito; é visto com um sólido repertório de

conhecimentos, embora se diferencie pelo seu modelo deliberativo e reflexivo,

pois a sua ação vai além de resolução de problemas e escolha de meios, ela

delibera os fins e está em constante reflexão da construção da atividade

profissional, contextualizada pelas contingências das situações de trabalho. O

prático reflexivo é igualmente conhecido pela sua capacidade de adaptação às

situações novas, além da concepção de soluções inovadoras, originais.

Descreve-o como “o próprio modelo do profissional de alto nível, capaz de lidar

com situações relativamente indeterminadas, flutuantes, contingentes, e de

negociar com elas, criando soluções novas e ideais” (p.302).

Observamos por meio dos autores Meirieu (1998), Perrenoud (2002) e

Tardiff (2012), aspectos do cotidiano escolar e as competências relacionadas à

atuação de um bom educador contemporâneo. Os autores sugerem em suas

pesquisas que o docente é um ser em constante aperfeiçoamento, de forma

que possa valorar a si mesmo e incrementar a sua performance diante às

transformações, contingências e representações. Possui alta relevância como

ator social, embora a sua profissionalidade sofra consequências ante às ações

e forças do poder. Sua responsabilidade diz a respeito da sua própria

profissionalização, que possui ares pragmáticos e, ao mesmo tempo, à

construção de uma sociedade na qual os futuros homens e mulheres estejam

mais compassivos, rigorosamente instruídos, e detentores das capacidades de

reflexão, deliberação e inovação.

No próximo subcapítulo, atentaremo-nos às considerações do

estadunidense Henry A. Giroux (1987), do jamaicano Stuart Hall (2006), do

polonês Zygmunt Bauman (1999) e da brasileira Ana Mae Barbosa (2005) que,

conjuntamente, oferecerão reflexões acerca das forças políticas e ideológicas

que envolvem a profissão docente, assim como referências sobre os aportes

com os quais o educador da contemporaneidade pode se respaldar e operar

crítica e reflexivamente a sua profissão, intuindo a edificação de saberes

ligados às múltiplas urgências fomentadas pela globalização. Anunciaremos

66

paralelamente as esferas sob as quais o educador potencializará, junto aos

seus alunos, uma sociedade desbravadora e ética, que não se envergonhe em

ser regida sabiamente pela dúvida.

1.2 O educador como potencializador de humanidades

Pensar as mudanças que constituam um novo panorama social, que seja

verdadeiramente democrático, implica em refletirmos o potencial que se

resguarda em cada camada compositora da sociedade. A escola pública é a

ambiência, o estabelecimento, o espaço cuja potencialidade (se assim

explorarmos) provocará reações e reflexos nas demais esferas que compõem a

vida social. Ao refletirmos sobre uma composição, um perfil de educador que

possa intervir e instaurar possiblidades críticas, estratégias pragmáticas no

ensino-aprendizagem, voltamo-nos às ponderações dos autores pedagógicos

que constituíram identidades de modelos docentes que, se nos esforçássemos

apenas um pouco, naturalmente, poderíamos complementá-las entre si

mesmas; ou, intentaríamos sem a menor certeza, mas com clareza de espírito,

reagrupá-las e, possivelmente, daríamos um nome (como já o fizeram) que

abreviasse muitas qualidades de atuação: educador reflexivo, intelectual

transformador, instituidor e até mesmo, por que não, educador ironista.

Inseriremos este arquétipo docente nas elucubrações pontuais e lúcidas dos

nossos autores em diálogo com as nossas percepções.

Como Giroux (1987, p. 8) assevera, a escola já foi e ainda é um

instrumento que produz intelectuais, movimentos sociais de resistência,

discursos de liberdade e potencialização de capital cultural de grupos

populares, ou seja, “[...] a escola como esfera de oposição e a pedagogia

radical como uma forma de política cultural.” Segundo o autor, a escola é

submetida às forças políticas e ideológicas, e o magistério, subordinado à

divisão técnica e social do trabalho, distanciando aqueles que controlam a

escola daqueles que trabalham nela diariamente com os alunos, distanciando-

os das “práticas sociais de oposição”. A pedagogia, sob a pressão dessas

67

forças ideológicas, acaba por se resumir em teorias de ensino mais técnicas,

padronizadas, e o interesse nisto consiste na eficácia, no gerenciamento e no

controle de formas limitadas de conhecimento (p. 9).

Analisa que o professor, mediante estas imposições, está perdendo o seu

potencial intelectual, seu trabalho de intelectual na própria pedagogia crítica;

está sendo formatado em um escriturário que cumpre ordens alheias, um

técnico especializado. Neste formato, a possibilidade de um intelectual cede a

de um reprodutor dedicado da cultura dominante no interesse do bem comum;

a escola pública ficou “[...] a serviço de interesses corporativos capitalistas” (p.

10). Há desde o século XX uma crescente “[...] desvalorização do trabalho

intelectual crítico, em benefício de considerações de ordem prática” (p.12-13).

Os próprios programas de formação de professores não educam os estudantes

à uma profissionalidade crítica, o eixo das disciplinas não promove a

descoberta de quem é o educador e o seu papel, e de quais são as “condições

subjacentes à estrutura da vida escolar”; no entanto, os alunos são treinados

para compartilhar técnica e dominar a disciplina da sala de aula.

[...] os professores são considerados mais como obedientes servidores civis, desempenhando ordens ditadas por outros, e menos como pessoas criativas e dotadas de imaginação, que podem transcender a ideologia dos métodos e meios a fim de avaliar criticamente o propósito do discurso e da prática em educação (p. 14).

Avalia que a mensagem oculta nesta fórmula tecnocrática de se pensar e

gerir a escola é: docentes, não participem criticamente da produção e da

avaliação dos currículos escolares! Sem a influência dos professores

transformadores, questões como: “o que vale como conhecimento”, “o que é

importante ensinar” e “a forma como se vê o papel da escola na sociedade e a

consequente compreensão dos interesses sociais e culturais que modelam

todos os níveis da escola” (p. 16) passam sem deixar vestígio, não são

elaboradas e discutidas pela instituição escolar, assim como pela sociedade. A

autonomia dos professores vai decrescendo em virtude também dos “’pacotes’”

de materiais escolares”, que os desqualificam em dada medida (p. 17).

68

Giroux (1987) reclama ao professor o direito de se envolver na produção

dos materiais curriculares, respeitando, assim, as especificidades culturais, o

julgamento do professor e as histórias de vida dos alunos junto ao processo de

ensino-aprendizagem. Para os administradores escolares, as soluções técnicas

são o bastante para dar conta da complexidade dos problemas sociais,

políticos e econômicos que assolam as unidades escolares, ou seja,

representam a ideologia na qual “se o problema pode ser medido, pode ser

solucionado” (p. 18); a quantificação é a lei para mensurar o sucesso.

Questiona a falsidade com a qual a racionalidade tecnocrática direciona

os currículos, pois se recusa a considerar que nem todos os alunos aprendem

a partir dos mesmos materiais ou pedagogias empregadas, ou ainda, formas

de avaliação. Os alunos são oriundos de práticas, culturas e talentos

diferentes. Portanto, como não incluir o papel que cabe ao educador nas

decisões curriculares? Isto é inexplicável do ponto de vista pedagógico, não faz

o menor sentido (p. 19).

A condição perspicaz e intelectual que todo professor deveria assumir,

pode repensar a natureza do seu trabalho, as questões materiais e ideológicas

para o seu trabalho intelectual, assim como desvelar outras inteligências,

ideologias e interesses que são oriundas do próprio trabalho docente. O

professor, neste caso, seria um alguém especial a serviço dos valores

intelectuais, que desenvolvesse o senso crítico dos alunos (p. 21). Como

esclarece Giroux, “[...] é importante enfatizar que os professores devem

responsabilizar-se ativamente por levantar questões sérias sobre o que

ensinam, como devem ensinar e quais os objetivos mais amplos por que lutam”

(1987, p. 22).

Insiste que todo educador intelectual, criativo e crítico precisa se revestir

em sua prática reflexiva com a dimensão política da sua atividade, ou seja, um

conjunto intelectual que deseje o desenvolvimento de uma sociedade

democrática, de uma escola pública com caráter democrático, “dedicada a

formas de fortalecimento pessoal e social.” O professor intelectual é

69

significativo demais, pois desenvolveria conhecimentos e habilidades que

ofertassem ferramentas aos alunos para não se tornarem apenas gerentes ou

empregados qualificados, mas sim, líderes. Uma luta contra a reprodução dos

privilégios de poucos que subordina a existência achatada de muitos:

Todas as correntes da teoria educacional representam uma forma de ideologia que tem íntima relação com as questões de poder. Isso é evidente no modo como tais discursos teóricos surgem, como estruturam as distinções entre conhecimento de status superior e inferior, como legitimam modelos culturais, que reproduzem específicos interesses patriarcais, raciais e de classes, e como ajudam a manter determinados padrões organizacionais e de relações sócias de sala de aula (GIROUX, 1987, p. 25, grifo do autor).

Abordaremos neste momento, extensamente, por exatamente fazer

sentido à nossa pesquisa, quatro categorias idealizadas por Giroux (1987) no

tocante a função social dos educadores como intelectuais, trazendo mais

variações de atuação docente à nossa reflexão sobre as possibilidades e

contribuições ironistas:

1. Intelectuais transformadores: esta categoria sugere que os professores intelectuais podem emergir de qualquer grupo e trabalhar com grupos diversos, desenvolvem as culturas e tradições emancipatórias dentro e fora das esferas públicas, utilizam a linguagem da crítica, empregam o discurso da autocrítica, de forma a tornar claros os fundamentos para uma pedagogia radical, enquanto, simultaneamente, enfatizam a importância dessa abordagem para os estudantes e para a sociedade. Sua tarefa central é tornar o pedagógico mais político e o político mais pedagógico, ou seja, inserir a educação diretamente na esfera política, afirmando que a escolarização representa tanto uma disputa por significado, como uma luta a respeito de relações de poder. A escola se torna espaço central, onde poder e política operam a partir de uma relação dialética entre indivíduos e grupos, que funcionam dentro de condições históricas e limites estruturais específicos. A escolarização, a reflexão crítica e a ação tornam-se parte fundamental de um projeto social para ajudar os alunos a desenvolverem uma profunda e inabalável fé no combate para vencer as injustiças e mudarem a si próprios. Conhecimento e poder estão ligados, pois para mudar a vida de maneira a torná-la possível, é necessário compreender as precondições necessárias para lutar por ela. Por outro lado, tornar o político mais pedagógico significa utilizar formas de pedagogia que: tratem os estudantes como agentes críticos, problematizem o conhecimento, utilizem o diálogo e tornem o conhecimento significativo, de tal modo a fazê-lo crítico para que seja emancipatório. Os intelectuais transformadores dão voz ativa aos alunos em suas experiências de aprendizagem. Para os intelectuais, os estudantes são como atores coletivos em suas várias características de

70

classe, culturais, raciais e de sexo, em conjunto com as particularidades de seus diversos problemas, esperanças e sonhos. É neste ponto que a linguagem crítica se une à linguagem da possibilidade. Isto significa trabalhar para criar condições materiais e ideológicas na escola e na sociedade mais ampla que deem aos alunos a oportunidade de se tornarem agentes de coragem cívica; isto é, cidadãos que possam atuar como se uma autêntica democracia realmente prevalecesse, fazendo desespero parecer inconvincente e a esperança exequível.

2. Intelectuais críticos: são ideologicamente alternativos às instituições e às formas de pensamento existentes, mas não se consideram ligados a qualquer formação social específica, nem tampouco se veem desempenhando uma função social que seja expressamente política por natureza. Seus protestos constituem uma função crítica que eles compreendem como parte de seu status profissional ou de sua obrigação como intelectuais. Na maioria dos casos, a postura dos intelectuais críticos é a-política ao nível de sua consciência e eles tentam definir sua relação com o resto da sociedade como livre de amarras. Como indivíduos, são críticos das desigualdades e injustiças, mas frequentemente se recusam ou são incapazes de avançar de sua postura isolada para o terreno da solidariedade coletiva e da luta. Muitas vezes, essa omissão é justificada com argumentos que colocam a impossibilidade da política por razões ideologicamente tão diversas, tais como: a alegação de que vivemos em uma sociedade totalmente administrada ou de que a história está em mãos de uma tecnologia fora de controle, ou há a simples recusa em acreditar que exista ação humana que tenha qualquer efeito sobre a história (grifo do autor).

3. Intelectuais adaptados: adotam uma posição ideológica e um conjunto de práticas materiais que sustentam a sociedade dominante e os grupos de elite. Não estão, geralmente, conscientes desse processo, uma vez que não se definem como agente do status quo, embora sua postura política promova os interesses das classes dominantes. Essa categoria também se define em termos que sugerem ser livre de amarras, distante das incertezas geradas pelos conflitos de classe e pelo engajamento político. No entanto, a despeito de tais racionalizações, esses intelectuais funcionam principalmente para produzir e mediar, acriticamente, ideias e práticas sociais que servem para reproduzir o status quo. Esses são os intelectuais que denunciam a política, enquanto, simultaneamente, recusam-se a correr riscos. Outra variação sutil é o intelectual que desdenha a política ao tomar o seu profissionalismo como um sistema de valores, sistema que frequentemente envolve o conceito espúrio de objetividade científica (grifo do autor).

4. Intelectuais hegemônicos: fazem mais do que se renderem a modalidades de

cooptação acadêmica e política ou esconderem-se atrás de afirmações espúrias de objetividade: conscientemente definem-se pelas formas de liderança moral e intelectual que colocam à disposição dos grupos e classes dominantes. Esse estrato de intelectuais fornece, às várias facções das classes dominantes, a homogeneidade e a consciência de suas funções éticas, políticas e econômicas. Os interesses, que definem as condições e a natureza de seu trabalho, são subordinados à preservação da ordem existente. Esses intelectuais podem ser encontrados nas listas de consultoria das maiores fundações, nas congregações das maiores universidades, como gerentes na indústria cultural e, na prática educacional, em postos docentes dos vários níveis de ensino. Quaisquer que sejam os interesses ideológicos

71

que tais educadores representam, há sempre a possibilidade de tensões e antagonismos reais entre: sua falta de controle sobre as metas e propósitos do processo educacional, e a relativa autonomia que gozam. É dentro dessas tensões e contradições objetivas que surgem possibilidades para a alteração de alianças e para que os professores se movam de uma categoria para outra.

Literal e meticulosamente, expusemos as análises de Giroux (1987)

acerca dos tipos de intelectuais que compõem categorias e que se distinguirão,

inevitavelmente, em sua atuação docente, contudo, zonas de contato podem

possibilitar um diálogo, uma tensão positiva. Giroux aponta que o intelectual

transformador está inserido em um contexto no qual há produção da cultura

dominante, porém, “[...] definem seu terreno político ao oferecerem aos

estudantes discursos alternativos e práticas sociais críticas [...]” (p. 40).

Considera que se o intelectual transformador se permitir ao discurso da

crítica e ao discurso da possibilidade, pode desvelar, positiva e negativamente,

o funcionamento do poder na escola; o que não quer dizer que o poder seja

apenas repressivo, mas sim, um jogo de forças dialéticas, uma “base de todas

as formas de comportamento, por meio das quais as pessoas resistem e lutam

por sua concepção de um mundo melhor” (p. 41).

Corroborando com Aguirre (2009), compreende a linguagem não apenas

como uma ferramenta para expressar o pensamento, pois ela está impregnada

de um locus de significado, “[...] tornando-se possível levantar questões sobre o

padrão da autoridade que legitima e utiliza a linguagem a fim de alocar

recursos e poder para alguns grupos, negando-os a outros” (1987, p. 43). Há

uma disputa entre os grupos de como a realidade deve ser compreendida e

reproduzida, portanto, há

[...] tipos de dominação que penalizam o corpo e o psiquismo, que “’penetram’” o corpo a fim de colocá-lo em uma teia de tecnologias e práticas que servem para prendê-lo a ideologias específicas ou a valores úteis à sociedade mais ampla” (GIROUX, 1987, p. 45).

A cultura deve ser analisada e praticada como elemento da política e do

poder, na esfera de luta e de contradições; não pode apenas ser “depósito de

72

conhecimentos”, formas e valores que são transmitidos aos alunos, pois as

culturas dominantes e institucionalizadas, certamente, discursarão de forma

selecionada e privilegiada, ou seja, legitimará novamente os seus interesses

específicos. A cultura tem de ser construída de forma emancipatória:

“[...] é uma expressão concreta da afirmação, da resistência, do desejo e de

luta do povo para se “’representar’” como agentes humanos, estabelecendo

seu lugar de direito no mundo” (p. 47).

Os professores intelectuais estarão sempre conectando as experiências

dos jovens e dos adultos à produção de saberes, aos debates, de forma que se

compreenda aspectos constitutivos da realidade social. Os intelectuais notarão

o capital cultural dos alunos e, pedagogicamente, os colocará em

possibilidades expressivas; é assim que se engajam “[...] criticamente as

linguagens, os sonhos, os valores e as descobertas daqueles estudantes cujas

histórias são, muitas vezes, silenciadas” (p. 48). O intelectual ao propiciar

outras experiências culturais criticamente, ajudará os alunos a desenvolver

habilidades, valores e senso de responsabilidade; em seu trabalho, buscará

apoio em condições práticas e sustentadas por ideologias democráticas,

promoverá novos espaços para teorias, práticas criativas e reflexivas (p. 51).

Está em questão aqui a necessidade de se fazer a associação teórica entre conhecimento e poder, de tal maneira a dar aos estudantes a oportunidade de aprenderem mais criticamente o que são, como parte da formação social mais ampla, ajudando-os a compreender como têm sido formados pelo contexto social e como são aí posicionados (GIROUX, 1987, p. 97).

Giroux (1997) reflete que a escola pública enquanto instrumento da

cultura dominante, tem enfatizado a técnica e a passividade: “a ênfase não é

mais ajudar os estudantes a “’lerem’” o mundo criticamente; em vez disso, é

ajudá-los a “’dominarem’” as ferramentas de leitura” (p. 33). Indica aos

educadores pais que vejam a escola não como neutra, objetiva, porém, “[...]

como uma construção social que incorpora interesses e suposições

particulares” (p. 39). Aos educadores, propõe que compreendam como a

sociedade moldou os indivíduos

73

[...] no que é que acreditam, e como estruturar os efeitos que têm sobre estudantes e outros. Em outras palavras, os professores e administradores, em particular, devem esforçar-se para compreender como as questões de classe, gênero, e raça deixaram uma marca sobre sua maneira de pensar e agir. Esta interrogação crítica fornece os fundamentos de uma escola democrática (p. 40).

No campo curricular, o esforço se dá na construção de condições

apropriadas para que a humanidade encontre auto compreensão e significado;

que o currículo observe a qualidade e o propósito da escolarização e da própria

vida; seus fundamentos sejam tanto históricos quanto críticos; reconheça a

singularidade e necessidades individuais como parte de uma realidade social

específica; dirija-se às experiências pessoais concretas de grupos e

populações culturais específicas e subordine os interesses técnicos às

considerações éticas (GIROUX, 1997, p. 50-51).

Analisa que a escola socializa os alunos para conformarem-se ao status

quo, não para trabalharem com habilidades que permitissem de forma crítica

intervirem no mundo e modificá-lo (p. 67). Portanto, proposita aos professores

que orientem os seus alunos a compreenderem por meio das aprendizagens, a

dialética dinâmica entre consciência crítica e ação social (p. 68). Segundo

Giroux, o intelectual transformador é mais do que uma pessoa, um produtor ou

transmissor de ideias: “os intelectuais são também mediadores, legitimadores,

e produtores de ideias e práticas sociais; eles cumprem uma função de

natureza eminentemente política” (p.186). Ainda mais, os intelectuais “[...]

podem fornecer a liderança moral, política e pedagógica para aqueles grupos

que tomam por ponto de partida a análise crítica das condições de opressão”

(p. 187).

No sentido da solidariedade, da ética e da educação crítica, Giroux (1997)

explicita que os professores atuariam “[...] como ativistas sociais cujo trabalho é

sustentado e informado por lutas e movimentos sociais mais amplos” (p. 245);

aponta-se contemporaneamente

74

[...] para a necessidade de reconstruir-se uma política cultural na qual os educadores críticos e outros intelectuais possam tornar-se parte de qualquer um dos diversos movimentos sociais nos quais utilizam suas habilidades teóricas e pedagógicas na construção de coligações históricas capazes de mudança social emancipadora (p. 250).

Giroux (1999, p. 20) esclarece-nos que a educação radical está pautada

em três peculiaridades: a educação radical tem uma natureza interdisciplinar;

questiona as categorias fundamentais de todas as disciplinas e tem uma

missão pública de tornar a sociedade mais democrática. Enquanto campo de

ação oferece um traço único que une a teoria e a práxis. Compreende o

educador radical da mesma forma que o assimila como educador crítico, uma

designação não poderia anular a outra. O educador radical não aceita a ideia

de que a educação pública tenha propósitos econômicos, não pode se tornar

loja de uma corporação. Portanto, a educação radical tem como pressuposto,

uma linguagem de possibilidades que investiga uma linguagem de

empoderamento humano (p. 21).

A liberdade e as capacidades humanas dos indivíduos devem ser desenvolvidas ao máximo, mas os potenciais individuais devem ser vinculados à democracia, no sentido de que a melhoria social deve ser a consequência necessária do florescimento individual. Os educadores radicais encaram as escolas como estruturas sociais. Essas estruturas devem educar as potencialidades que as pessoas têm para pensar, para agir, para ser indivíduos e para ser capazes de compreender os limites de seus compromissos ideológicos. Esse é um paradigma radical. Os educadores radicais acreditam que o relacionamento entre as estruturas sociais é tal que as potencialidades humanas conseguem ser educadas a ponto de questionar as próprias estruturas (GIROUX, 1999, p, 21, grifo nosso).

Em “Cruzando as fronteiras do discurso educacional: novas políticas em

educação”, Giroux (1999) indaga sobre os propósitos da educação e qual tipo

de cidadão a sociedade vem produzindo; sinaliza a categoria de pedagogia de

fronteira reforçando os processos pedagógicos como uma forma de transpor

fronteiras: “formas de transgressão em que as fronteiras existentes de

dominação podem ser desafiadas e redefinidas” (p. 41). Define que o conceito

de pedagogia de fronteira está além de colocar o aluno em contato com

75

culturas, “[...] significa entender como a identidade é frágil quando se

movimenta rumo a fronteiras transpostas, que apresentam uma variedade de

linguagens, experiências e vozes” (p. 47). Esta espacialidade pode ser

compreendida como uma fonte potencial de experimentação pedagógica,

criatividade e possibilidades democráticas.

Giroux (1999, p. 66) não descarta as possibilidades de intervenção em

contexto pós-moderno, pois há espaço para “pluralidade, diferença e

multinarrativas”; o trabalho de mudança vai se compondo em um projeto radical

de luta democrática. A pós-modernidade contribui com “os relacionamentos

culturais e estruturais instáveis” e a incidência de seus melhores insights

podem adequar-se em “uma política democrática progressista e

emancipatória”. O educador radical, transformador, ironista, sem dúvida

alguma, estaria se articulando entre estas zonas mais promissoras de

convergência.

[...] a pós-modernidade aponta para o papel cada vez mais poderoso e complexo do novo meio eletrônico na constituição de identidades individuais, linguagens culturais e novas formações sociais. Dessa maneira, a pós-modernidade proporcionou um novo discurso que nos permite compreender a natureza mutável da dominação e da resistência nas sociedades capitalistas tardias (GIROUX, 1999, p. 70).

Neste sentido, os professores intelectuais podem oportunizar e explorar

“relações de conhecimento/poder”, onde as narrativas e práticas sociais sejam

construídas e embasadas “de uma política e de uma pedagogia da diferença”

que permita aos alunos interpretarem o mundo de formas diferentes, resistindo

ao abuso de poder, com o intuito de construir “comunidades democráticas

alternativas” (p. 92). Incrementa acerca do trabalho docente nos parâmetros

pós-modernos, indicando à pedagogia crítica, a necessidade de uma nova

linguagem que permita o fluxo da solidariedade e para que as questões de

poder, justiça, luta e desigualdade não se reduzam a um único roteiro, ou “a

uma narrativa dominante que suprima o contingente, o histórico e o cotidiano

como objetos sérios de estudo” (p. 92).

76

Giroux (1999) pondera que “para o desenvolvimento de uma pedagogia

crítica é fundamental explorar como a pedagogia funciona como uma prática

cultural para produzir – em vez de meramente transmitir – conhecimento [...]”

(p. 117). Está direcionada à construção de condições específicas, que permitirá

professor e aluno pensar sobre o modo como o conhecimento é produzido e

transformado na relação com experiências sociais informadas pela relação

particular entre o self, os outros e o mundo (p. 117).

Os educadores precisam encorajar os alunos através do exemplo para encontrar maneiras de ficarem envolvidos, para se destacarem, para pensarem em termos globais e para agirem segundo contextos específicos. O conceito dos professores como intelectuais transformadores é marcado por uma coragem moral e um criticismo que não requer que eles se retirem da sociedade, mas que apenas se distanciem para não serem implicados naquelas relações de poder que subjugam, corrompem, exploram ou infantilizam (GIROUX, 1999, p. 125).

Giroux (1999, p. 162) valoriza e ratifica a luta antirracista, assevera que a

“[...] pedagogia antirracista deve demonstrar que os nossos pontos de vista

sobre raça têm um peso histórico e ideológico diferente [...]” ou seja,

“[...] não pode tratar as ideologias simplesmente como expressões individuais

de sentimento, mas como práticas históricas, culturais e sociais que servem

para corroer ou reconstruir a vida democrática”.

Para os professores e professoras progressistas da contemporaneidade,

segundo Giroux (2000, p. 70), o enfrentamento, o desafio posto, é de conseguir

unir cultura e política, transformar e fazer o pedagógico aderir mais caracteres

políticos, unindo a aprendizagem em toda a sua globalidade às mudanças

sociais, pois “[...] a cultura está composto de indivíduos e política, porque esta

proporciona recursos por meio dos quais as pessoas aprendem a pensar sobre

si mesmas e a relacionar-se com as demais e com o mundo que as rodeia”.

Giroux (2000, p. 74) convoca-nos à urgência de “[...] criar práticas

pedagógicas em uma diversidade de culturas públicas que ofereçam

facilidades à juventude, para que ela aprenda como ser sujeito da história [...]”

É justamente nesse labor, o de criação de práticas pedagógicas que, Aguirre

77

(2009) provoca-nos, minimamente, a perscrutar um pouco mais as ferramentas

metodológicas do educador ironista; e, além disto, convida-nos a entrar em um

universo que justifica a dúvida e a incerteza como dispositivos operacionais.

Uma das suas poucas certezas se ampara na construção de uma sociedade

que oportunize o acesso dos alunos à uma vida mais plena.

Aderimos Hall (2006) às nossas reflexões pós-modernas no sentido de

problematizar a complexidade identitária, assim como, as consequências

inextricáveis da contemporaneidade sob o sujeito, principalmente, em seu

processo formativo. Oferece-nos, primeiramente, o conceito do sujeito do

Iluminismo, centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de

consciência e de ação, cujo “’centro’” consistia num núcleo interior que era

contínuo. O seu centro era o seu eu interior. O segundo exemplo de

transformação identitária se dá com o sujeito sociológico: seu núcleo interior já

não era autônomo e autossuficiente, mas estava em relação com “’outras

pessoas importantes para ele’”, que mediavam para ele os valores, os sentidos

e os símbolos, portanto, a cultura. A sua identidade se formava na “’interação’”

entre o eu e a sociedade; ainda assim, o seu “’eu real’”, a sua essência,

permanecia em si, porém, num diálogo contínuo com os mundos culturais

“’exteriores’” (p. 11-12). A terceira identidade, a pós-moderna se insere num

campo provisório, variável, problemático, fragmentado; onde a identidade do

sujeito não é fixa (centrada), essencial ou permanente. Hall a nomeia de

“’celebração móvel’”: está se transformando e se formando “continuamente em

relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos

sistemas culturais que nos rodeiam” (p. 13).

Agora, por que trazemos estas concepções? E, principalmente, por que

daremos atenção específica à terceira identidade? Bem, há “jogos de

identidade" na sociedade contemporânea, e nossos alunos da educação

básica, certamente, estão em jogo e em processo constitutivo de sua

identidade. A formação identitária é suscetível às persuasões, e o educador

transformador, intelectual, ironista, pode auxiliar na sua constituição,

pluralizando aspectos culturais (capital cultural) e problematizando criticamente

78

a sociedade global (híbrida) e suas linhas de força e poder junto aos alunos.

Contudo, é certo que usamos aqui uma transposição metafórica dos recursos

sociológicos de Hall.

As representações culturais estão correlatas ao processo histórico do

indivíduo, e os efeitos da globalização têm surtido deslocamentos culturais, ou

seja, certas “identificações “’globais’” começam a deslocar e, algumas vezes, a

apagar, as identidades nacionais” (2006, p. 73). Em virtude da

interdependência global, ocorre a fragmentação de códigos culturais, que

acaba por gerar a exposição das culturas nacionais, das identidades culturais.

Este fenômeno cultural e global, não passa despercebido pelo ironista que atua

em loco; analisa as tensões entre ambas esferas, pois compreende as gamas

implícitas em seus alunos no que se refere a vínculos a lugares, eventos,

símbolos, histórias particulares, por exemplo. Sabe das sujeições dominantes

que acompanham as culturas homogeneizantes e sempre procurará por meio

do diálogo, confrontar com os seus alunos, o que está em jogo, o que pode se

perder, o que pode se ganhar mediante determinada postura:

No interior do discurso do consumismo global, as diferenças e as distinções culturais, que até então definiam a identidade, ficam reduzidas a uma espécie de língua franca internacional ou de moeda global, em termos das quais todas as tradições específicas e todas as diferentes identidades podem ser traduzidas. Este fenômeno é conhecido como “’homogeneização cultural’” (p. 75-76, grifo do autor).

Como Bauman (1999, p. 25) sinaliza, “[...] em vez de homogeneizar a

condição humana, a anulação tecnológica das distâncias temporais/espaciais

tende a polarizá-la”; notamos que a globalização, segundo o viés do autor,

promove infindos debates, justamente, por polarizar, ironicamente, agora que

detentores da tecnologia, as representações culturais e seus sujeitos. Este

pensamento de Bauman só vem a acrescentar o âmbito duvidoso no qual o

ironista seleciona as suas reflexões contemporâneas.

Conforme Bauman (1999, p. 67), “[...] O significado mais profundo

transmitido pela ideia da globalização é o de caráter indeterminado,

79

indisciplinado e de autopropulsão dos assuntos mundiais [...] A globalização é a

“’nova desordem mundial’” [...]. Considerando as perspectivas de Bauman

acerca da globalização e seu cunho desorganizado, quando recordamos da

sala de aula que abriga toda uma multiplicidade, diversidade, contingência, só

podemos, realmente, acreditar que apenas um perfil bem distinto de educador

poderia colocar os pés dentro dos limites do ensino-aprendizagem.

Preocupamo-nos neste subcapítulo com um diálogo com o autor norte-

americano Giroux e a sua ponderação incisiva no tocante à pedagogia radical,

ao mesmo tempo, que aponta o desígnio de que o educador deveria assumir a

sua condição de intelectual, de transformador, que arquiteta possibilidades

entre a pedagogia e a política como cúmplices de uma vida mais respeitável e

consciente. Tomamos, mesmo que brevemente, apontamentos sociológicos de

Hall e Bauman acerca das rupturas nas representações culturais do homem

contemporâneo, pertencente ao universo globalizado e, aparentemente,

desorganizado, ou teriam razões para assim sê-lo?

No entanto, cremos que conseguimos expor neste primeiro capítulo,

algumas matrizes referenciais do que significa ser um bom professor, passando

por Meirieu, Perrenoud, Tardiff e, apontando por meio de Barbosa, alguns

aspectos que permeiam a arte-educação e o processo formativo do arte-

educador brasileiro na contemporaneidade, alcançando, por fim, as ações

comprometidas do professor intelectual (radical) de Giroux.

No próximo capítulo, abordaremos um breve histórico do uso da ironia

como instrumento para desarmar falsas ideias, motivações escusas e

paradigmas. A ironia é vista como uma ponte capacitadora de intervenções

pedagógicas que acabam por acurar a postura do professor.

80

CAPÍTULO 2

A IRONIA COMO INSTRUMENTO DO SABER

Este capítulo dedica-se a explanar acerca da ironia, a partir da leitura

kierkegaardiana que se remete à Sócrates, compreendendo-a em sua

dimensão epistemológica, assim como pedagógica. A ironia é assumida como

um instrumento do saber, um recurso propositivo que abarca uma

intencionalidade e uma funcionalidade, circunscrevendo-a numa possibilidade

de filiação pedagógica entre mestre e discípulo, docente e discente, ou seja,

uma postura pedagógica. Enseja-se, proveitosamente, o Apêndice 1 que

oportuniza em caracteres históricos o processo formativo do arte-educador no

Brasil3.

2.1 A ironia como postura epistemológica e pedagógica

Soren Kierkegaard (1991) introduziu a sua reflexão sobre a ironia – e, por

que não, a sua reflexão irônica? –, por meio da sua dissertação de Mestrado

realizada na Faculdade de Filosofia da Universidade de Compenhague no ano

de 1841. A título de curiosidade, a sua obra foi traduzida mui tardiamente pelos

italianos em 1989, pelos franceses em 1975; em contrapartida, os japoneses já

se dispunham do “O conceito de Ironia – constantemente referido a Sócrates”

em 1935, ao passo que a primeira versão portuguesa com a tradução de

alguns textos selecionados se deu na década de 1970, no entanto, apenas na

década de 1980 culminou-se a tradução a partir do original. A edição que

fazemos uso é uma tradução da 3ª edição dinamarquesa de 1962.

Soren (1991, p. 25) revitaliza a nossa memória ao propor que “todo

fenômeno individual contém apenas um momento...” e, que por fim, não

satisfaz, mas sim confere nostalgia; contrabalança aludindo à história, onde

3 Histórico do processo formativo do ensino de artes no Brasil, assim como do arte-educador

brasileiro e suas influências estrangeiras, enlaçada a sua atuação frente a um ideal mais

realista, portanto, ligado às demandas educacionais contemporâneas.

81

ocorre que todo fato individual testemunha um estado evolutivo, uma

participação momentânea do todo, ou seja, os fragmentos existenciais-

históricos constituem um medium imperfeito, aspectos temporais e particulares,

que podem ser avaliados pela consciência retrospectiva num olhar para trás,

não a representação exata que abarca o todo. Frente esta premissa,

partilharemos dos saberes que nos foram outorgados e orbitam ao redor da

ironia verificada em Sócrates, porém, conscientes de alcançarmos com a nossa

elucubração, um medium imperfeito.

Quando Soren explana a este respeito, mais do que nunca se remete a

Sócrates (470/469 a.C. – 399 a.C.), pensador ateniense, que apenas poderá

ser revisitado por meio de uma evocação combinatória de elementos, dada as

suas multifaces e ambiguidades, pois até mesmo os seus contemporâneos da

Grécia Antiga4 não tiveram êxito imediato ao tentar compreendê-lo. Sócrates

nada escreveu, muito disse. Tudo o que sabemos dele foi escrito por meio dos

seus discípulos como Xenofonte (430 a.C. – 355 a.C.) e Platão (427/428 a.C. –

348/347 a.C.), ou de adversários, como Aristófanes (447 a.C. – 385 a.C.).

Faremos uma análise da ironia por meio das observações de Kierkegaard,

quando cotejou os diálogos travados por Sócrates. O nosso intuito é clarear a

importância da ironia como um instrumento do saber. Perceberemos que

muitas vezes os discursos não estão longe da mentira ou do preconceito.

Porém, não tardaremos em avançar objetivamente, haja vista não ser o objeto

do nosso estudo demonstrar as especificidades de cada discípulo de Sócrates

e seus pontos de vista; apenas nos interessa as suas exemplificações que

fortalecem a ironia, ainda assim, citamos a predileção de Kierkegaard (1991)

pelas obras de Platão, sendo este, o mais reconfortante. O dinamarquês

oferece uma reflexão acerca das suas apreensões naqueles tempos idos da

primeira metade do século XIX:

[ ] e quando é que no mundo se precisou de mais de repouso, senão em nosso tempo, em que as ideias se atropelam umas às outras com a pressa da loucura, em que as ideias só

4 A Grécia Antiga é o termo usado para descrever o mundo grego que abrangeu desde 1 100

a.C. até a dominação romana em 146 a.C.

82

anunciam a sua presença no fundo da alma por uma bolha na superfície do mar, em que elas jamais se desenvolvem, mas se consomem em seus tenros brotos, apenas levantam a cabeça para a vida, mas em seguida morrem de tristeza, como aquela criança de que fala Abraão de Santa Clara, que no mesmo instante em que nasceu ficou com tanto medo do mundo, que retornou para o seio materno.” (p. 36-37).

Neste ponto há que se fazer uma ponderação: Kierkegaard não havia

nem chegado aos 30 anos quando da sua dissertação e titulação em 1841, ou

seja, um jovem provocativo que se atentava aos tempos atribulados,

desconfortáveis à reflexão que exige de “repouso”, nos quais as ideias se

perdiam ante a voracidade da loucura vivenciada em seus tempos; o que se

pensar do nosso tempo histórico no qual duas das suas marcas mais insignes

é a fugacidade, com a qual se dão as inter-relações e o movimento tecnológico,

que mais superficializa e distancia as pessoas da sua própria humanidade? Em

outras palavras, o educador contemporâneo que atua neste cenário

tresloucado, mesmo que em constante reflexão da sua profissionalidade e das

transitoriedades inerentes a toda espécie de fenômenos sociológicos, terá de

encontrar mais do que nunca um “repouso” em movimento.

Porém, antes de gravitarmos ao redor da obra kierkegaardiana,

basilarmente, apontamos (para nossa melhor compreensão) algumas

definições que o dicionário Houaiss e Villar (2007), assim como o Dicionário de

Filosofia (1994), sequencialmente, atribuem à ironia:

1. Retórica – figura por meio da qual se diz o contrário do que se quer dar a entender; uso da palavra ou frase de sentido diverso ou oposto ao que deveria ser empregado para definir ou denominar algo [A ironia ressalta do contexto.] 1.1 Literatura – esta figura, que se caracteriza pelo emprego inteligente de contrastes, usando literariamente para criar ou ressaltar certos efeitos humorísticos 2 m.q. ASTEÍSMO (´uso sutil e delicado da crítica irônica`) 3 qualquer comentário ou afirmação irônica 4 p.ext. uso de palavra, expressão ou acepção de caráter sarcástico; zombaria 5 fig. contraste ou incongruência entre o resultado real de uma sequência de acontecimentos e o que seria o resultado normal ou esperado 5.1 fig. acontecimento ou resultado marcado por esse contraste ou incongruência <uma i. do destino> i. dramática TEAT descompasso entre a situação desenvolvida num drama e as palavras ou atos que a acompanham, os quais são entendidos pela plateia mas não pelas personagens. i. socrática FIL disposição apara aprender com outrem que fingidamente se adota para, interrogando-o habilmente, fazê-lo entrar em contradição e deixar bem evidente o caráter errôneo de suas concepções, do que resulta o reconhecimento por aquele interlocutor da autêntica

83

ignorância do interrogado [Era o procedimento característico de Sócrates, registrado nos Diálogos, de Platão] ETIM gr. eirõneía,as ´ação de interrogar fingindo ignorância; dissimulação´, de eirõneúomai ´fazer-se de ignorante´. (grifo nosso). 2. Definições particulares de filósofos FONTANER (B) “A ironia consiste em dizer, por uma zombaria, agradável ou séria, o contrário do que se pensa ou do que se quer fazer pensar.” (As Figuras do Discurso, p. 145, Champs, Flammarion.) BERGSON (B) “Ora se enunciará o que deveria ser, fingindo acreditar que é precisamente o que é: nisso consiste a ironia. Ora, ao contrário, se descreverá minuciosa e meticulosamente o que é, fingindo acreditar que é exatamente isso que as coisas deveriam ser: assim procede frequentemente o humor.” (O Riso, p. 83, Skira.)

Notamos que a palavra ironia oferece, de fato, uma polifonia de sentidos e

usos, mas, como indica o excerto acima destacado, adotamos aqui neste

estudo, a ironia nos termos socráticos; a ironia instrumentalizada e a serviço de

uma área na qual o homem capacita o seu semelhante à evidência real,

descortinada das inverdades e/ou falsas certezas; a ironia como fundamento

da prática consciente da dúvida e da descrença (AGUIRRE, 2009).

Kierkegaard (1991, p. 29) expõe uma percepção quanto ao método

socrático de ser, apresentado por Xenofonte no qual “o decisivo em Sócrates

não era o ponto fixo, mas um ubique et nusquam (em toda parte e em nenhum

lugar).” Podemos atribuir a Sócrates uma sensibilidade aguda para se conectar

à presença da mais sutil ideia, ou seja, Sócrates cambiava de um ponto para o

outro em seus diálogos com o intuito de mobilizar e desarmar “verdades”

engendradas na falta de certezas do seu interlocutor.

O método socrático averiguado nos diálogos escritos por Platão, tendo

como base as interlocuções do seu mestre, Sócrates, conduzia a um processo

de reflexão que desvendava ao interlocutor os seus próprios valores, muitos

deles amparados nos preconceitos da sociedade. A contradição dos

argumentos era desmascarada em camadas por meio de perguntas simples,

ingênuas, que aos poucos revelavam os limites do conhecimento alheio; no

84

entanto, Sócrates instruía, auxiliava as pessoas a pensarem por si mesmas,

sem cobrar nada, ao contrário dos sofistas que, invariavelmente, inclusive,

eram expostos por ele.

Sócrates assumia-se um “parteiro do conhecimento”, homenagem dada à

sua mãe, uma parteira. Em seus diálogos ironizava as interpelações do seu

interlocutor sem o ofendê-lo, com o propósito de evidenciar a sua ignorância e,

uma vez, consciente, talvez, pudesse evitar o preconceito que viria amealhado

à sua antiga e frágil ignorância. Em poucas palavras, Sócrates educava, não

desmoralizava, pois com o seu método, a maiêutica, conduzia a pessoa

ironicamente de forma não pejorativa, ao ponto de fazê-la responder coisas

que nunca imaginaria precisar com tanta clareza, tal como um conceito, por

exemplo. Ou seja, com o autoconhecimento, a pessoa chegaria a conhecer o

seu próprio contexto.

O método socrático inspirava-se em seu objetivo último, que era a

elevação do homem, mas, naturalmente, construía-se dialogicamente em

camadas de esclarecimentos, embrenhando entre tabus e senso comuns para

desativá-los, desestruturá-los. Saviani (1991, p. 39) ilustra-nos a coordenação

existente entre a educação, o homem e o sentido filosófico para com a vida: “E

como a educação se destina (senão de fato, pelo menos de direito) à promoção

do homem, percebe-se já a condição básica para alguém ser educador: ser

profundo conhecedor do homem.”

Alimenta-nos, alinhado à reflexão filosófica impregnada em Sócrates, com

exigências que compõem, verdadeiramente, uma reflexão que valha ser

declarada filosófica; seu requisito é composto de radicalidade, rigor e

globalidade. Ou seja, é preciso enxergar o problema nas raízes em questão,

em seus fundamentos, em sua profundidade; é necessário sistemas e métodos

determinados que averiguem a sabedoria popular e as generalizações que a

ciência menos rigorosa possa produzir; faz-se inerente um olhar de conjunto,

não parcial, mas de perspectiva, com o intuito de contextualizar, examinar os

85

aspectos e propor à ciência, após a reflexão, uma possível delimitação de área

científica na qual se encontra o problema.

Kierkegaard (1991) nos lança luz a respeito dos desdobramentos das

ações de uma personalidade detentora imediata do divino. Neste sentido,

veremos uma analogia propositada por ele que, com as devidas precauções e

proporções abordaremos, com a intenção última de correlacioná-la à matriz

atitudinal da qual o educador ironista5 poderá fazer uso, intencionando a

protagonia e a autonomia do aluno. Platão via em Sócrates uma personalidade

original que agia em sua geração, desta relação resultaria uma comunicação

de vida e espírito:

[...] (quando Cristo assopra sobre os discípulos e diz: Recebei o Espírito Santo), e em parte numa liberação das forças presas do indivíduo (quando Cristo diz ao paralítico: Levante-te e anda,) ou melhor, realizam-se em ambas as formas ao mesmo tempo. A analogia para este caso pode portanto ser dupla: ou ela é positiva, isto é, fecundante, ou é negativa, isto é, auxiliando o indivíduo paralisado, volatilizando em si mesmo, a reencontrar a flexibilidade original, apenas protegendo e observando o indivíduo assim fortificado, e assim auxiliando-o a refletir sobre si mesmo e tomar consciência de si mesmo (KIERKEGAARD,1991, p. 37).

Sem dúvida, temos uma metáfora potente, que com o devido cuidado

podemos nos apossar positivamente, interligando a existência do que pouco a

pouco iremos esclarecer o que vem a ser o educador ironista e a sua

potencialidade de trazer consigo (minimamente) o interesse de reverter o

estado debilitado do seu interlocutor. Com calma, vamos nos aprofundar nestas

esferas. Todavia, é-nos imperioso esclarecer (mesmo que mui brevemente)

que a postura pedagógica é a mais apropriada ao educador ironista, pois o seu

ambiente profissional é o pedagógico, é o escolar, portanto, o que concerne ao

estudo epistemológico apresentado neste subcapítulo, unicamente vem a

somar, introduzindo-nos à história contada de Platão à Kierkegaard, de

Kierkegaard a nós.

5 Concepção criada pelo autor/educador Dr. Imanol Aguirre acerca do educador

contemporâneo. O ironista é reflexivo, pesquisador e provoca o constante uso da dúvida junto

ao aluno com o intuito de desarmar o senso comum.

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O segredo nos diálogos travados por Sócrates reside justamente na “arte

socrática de perguntar, ou, para recordar a necessidade dos diálogos para a

filosofia platônica, a arte de conversar.” (KIERKEGAARD, 1991, p. 40).

Sócrates utilizava a ironia para repreender os sofistas6 altivos que sabiam

muito bem falar, porém não conversar. Os ensinamentos e os objetivos que

Sócrates e os sofistas propunham, eram contrários e inconciliáveis:

Se a apresentação dos sofistas era pomposa e pretensiosa, o modo de Sócrates se apresentar era tranquilo e modesto; se a conduta dos sofistas era exuberante e voluptuosa, a dele era singela e moderada; se a meta dos sofistas era a influência no Estado, Sócrates não se sentia inclinado a ocupar-se com os assuntos do Estado; se o ensino dos sofistas era impagável, o de Sócrates também o era, no sentido inverso; se o desejo dos sofistas era sentar à mesa nos lugares mais importantes, Sócrates se sentia satisfeito ocupando o último lugar; se os sofistas desejavam ser algo, Sócrates preferia ser simplesmente nada. Tudo isso podia ser concebido como um exemplo de fortaleza moral de Sócrates (KIERKEGAARD, 1991, p.164-165).

Ao conectarmos a ponte que há entre a ironia presente nas conversas

entre Sócrates e os seus interlocutores, com a possibilidade de atuação do

educador irônico, ou ironista, encontramos na conversação o trunfo para que

aprendizagem venha a se instalar. Educador e aluno podem orquestrar juntos a

composição da dúvida e da incerteza com o objetivo de atingir o conhecimento,

conforme o ateniense aconselhava: “conhece-te a ti mesmo”.

A dialogia é o setor privilegiado às emancipações. A ironia contida nos

diálogos, tal qual utilizada por Sócrates e manifestada como um recurso de

libertação, oferece propulsão à aprendizagem. Neste tocante, Kierkegaard

(1991) afirma sobre os benefícios de quem faz uso direcionado da ironia:

Na medida, porém, que o indivíduo especulante sente-se libertado e uma grande riqueza se apresente diante de seus

6 Os sofistas eram mestres que viviam a viajar e atrair estudantes em suas aparições públicas

com os seus discursos. Os estudantes pagavam taxas em troca de educação. Os seus

ensinamentos eram em forma de discursos com estratégias de argumentação.

87

olhos, facilmente ele poderá vir a crer que tudo isto também é devido à ironia, e a gratidão que ele sente pode desejar que ele se considere devedor à ironia por tudo (p. 104, grifo do autor).

Todavia, como nos precave Kierkegaard (1991, p.106) para assimilar a

“ironia socrática em seu empenho total”, não bastaria ao indivíduo lidar apenas

“com as manifestações particulares da ironia”, mas sim, “ter uma disposição

espiritual sui generis que se distingue qualitativamente de qualquer outra”.

Kierkegaard não se contenta, avança e anuncia que este indíviduo sui generis,

que se sente tocado pelas manifestações particulares que concernem à ironia,

“pode brincar com elas sem nem de longe imaginar o demônio monstruoso que

habita os sítios desertos e áridos da ironia.”

Conduz-nos, consistentemente, nos limiares da ironia em sua dissertação,

muito embora esclarece o quão perigoso pode ser o caminhar hipnótico e

salutar da senda irônica, quando nos remete em seus estudos acerca da

oposição poderosa dos políticos e sofistas atenienses, que acabaram por

acusar Sócrates de corromper os jovens e ser ateu. Sócrates era perigoso por

democratizar o saber e inquirir o modus vivendi, o status quo do seu tempo. O

tipo irônico que Sócrates personificou revela a mais autêntica ironia, por

justamente ser o “dialogador” empírico de todos os seus diálogos, e não uma

máscara, um personagem literário que não sobrevive se não forem as páginas;

ele que era conhecido por proclamar nada saber e por nada cobrar pelos

ensinamentos. Tornou-se, destacadamente, via Platão, em um irônico com

“validade universal”, segundo Kierkegaard (1991).

A eloquência oriunda do sabor da libertação, cuja promessa Sócrates

trazia em seus pulmões, criava o cenário dialógico ideal para as metamorfoses

das mentes, e isto é corrosivo e, ao mesmo tempo, uma força contra os

caracteres da cultura vigente, uma afronta a quaisquer estados/ideologias

dominantes. Neste sentido, Saviani corrobora acerca da prontidão ativa dos

seres dispostos à reflexão:

Mas se o homem não fica indiferentes às coisas, isso significa que ele não é um ser passivo. Ele reage perante a situação,

88

intervém pessoalmente para aceitar, rejeitar ou transformar. A cultura não é outra coisa senão, por um lado, a transformação que o homem opera sobre o meio e, por outro, os resultados desta transformação. O homem é então capaz de superar os condicionamentos da situação; ele não é totalmente determinado; é um ser autônomo, um ser livre. E a liberdade abre ao homem um novo campo amplo para a valorização e os valores. Sendo a liberdade pessoal e intransferível, impõe-se aqui o respeito à pessoa humana; como eu sou um sujeito capaz de tomar posições, de avaliar, fazer opções e engajar-me por elas, assim também aquele que vive ao meu lado, perto ou longe, é igualmente um sujeito e jamais um objeto (SAVIANI, 1991, p.40, grifo nosso).

A capacidade irônica de Sócrates, conforme Kierkegaard (1991),

insistentemente demonstrada nos colóquios repletos de sua sagacidade

esclarecedora, legitimava-o como “uma profecia ou uma abreviatura de uma

personalidade completa” (p. 121).

Pensar a respeito da totalidade intelectual de Sócrates, no sentido de

suas palavras, de suas interpelações, puras condutoras à verdade, não menos

edificantes do que provocativas, induz-nos a visualizá-lo entrecruzando,

freneticamente, os saberes ligados à matéria e ao abstrato. Com tamanha

sapiência, apenas um irônico tal qual Sócrates para se sentir mais leve que o

mundo, embora ainda pertencente ao mundo, conforme Kierkegaard (1991).

Em sua existência, o ser humano detentor de uma ideia sofre ações de

todas as espécies, sejam elas em seu benefício ou não; assim como toda

reação, muitas vezes, é encaminhada ao receptor que, unicamente, pode

deferi-las. Este é o caso (literalmente clássico) que se fixa em Sócrates e de

que certa forma, evidencia-se na obra “Apologia de Sócrates”, na qual o próprio

Sócrates se autodefende dos seus algozes. Kierkegaard (1991) recorda-nos de

que “a gente não se lembra”, mas, assim como a ironia, todo e qualquer ponto

de vista tem as suas lutas, provações, recuos e vitórias. Não foi diferente para

o nosso eloquente Sócrates.

Buscaremos ao longo da nossa reflexão, religar a ideia socrática da

atuação junto aos jovens ao exercício do educador contemporâneo ironista,

89

pois, segundo Kierkegaard (1991, p. 144), Sócrates via na juventude “um

terreno propício onde suas ideias só poderiam prosperar” uma vez que ela

“sempre vive de maneira mais universal do que os homens adultos.”

A juventude é uma esponja na qual ilimitados conhecimentos e saberes

são direcionados. Então, sob o ponto de vista educacional, o que significaria a

promoção do homem? Esta pergunta, Saviani (1991) nos coloca observando os

ditames reflexivos e socráticos:

Significa tornar o homem cada vez mais capaz de conhecer os elementos de sua situação para intervir nela transformando-a no sentido de uma ampliação da liberdade, da comunicação e colaboração entre os homens. Trata-se, pois, de uma tarefa que deve ser realizada. Isto nos permite perceber a função da valoração e doa valores na vida humana. Os valores indicam as expectativas, as aspirações que caracterizam o homem em seu esforço de transcender-se a si mesmo e à sua situação histórica; como tal, marcam aquilo que deve ser em contraposição àquilo que é. A valoração é o próprio esforço do homem em transformar o que é naquilo que deve ser (p.41).

Kierkegaard (1991) assevera que Sócrates “estava sempre num contato

muito vivo” com a vida. Ora, um homem devotado às inter-relações, curioso por

excelência e avesso às cobiças, às vaidades que o dinheiro insiste em doar,

não poderia deixar de sorver qualquer circunstância que um único ouvido e

língua se pusessem em prontidão. Sócrates foi um homem que:

[ ] gostava igualmente de falar com agricultores, alfaiates, sofistas, homens do Estado, poetas, com jovens e velhos, falava facilmente sobre todos os assuntos, porque em toda parte encontrava uma tarefa para sua ironia (p. 142, grifo nosso).

Ainda segundo este autor, Sócrates não utilizava grandes palavras,

longos oratórios, demonstrações do seu saber aos gritos tais quais os

mercadores; ao contrário, andava tranquilo por aí fingindo indiferença ante os

jovens, porém, não discutia com os jovens a sua relação com eles, mas sim,

assuntos que para os jovens eram importantes, mantinha-se totalmente

objetivo e focado nisto, e por baixo desta suposta indiferença, Sócrates se

90

permitia ser observado por eles: sentimentos transpassavam-lhes as suas

almas como um punhal. Sócrates havia ganhado a confidência da mentalidade

dos jovens, como se ouvisse as conversações íntimas de cada alma.

Vejamos em um excerto da obra “Apologia de Sócrates” de Platão (1972,

p. 17), a atuação irônica que Sócrates metodicamente fazia uso. Sócrates

estava sendo julgado por corromper a juventude e, portanto, interpelava um

dos seus acusadores, Meleto:

“- Dize-me cá, Meleto: dás muita importância a que os jovens sejam quanto melhores?

- Dou, sim. - Faze, então, o favor de dizer a estes senhores quem é que os torna melhores;

evidentemente o sabes, pois que te importa. Descoberto o corruptor, segundo afirmas, tu me conduzes à presença destes senhores e me acusas; portanto, faze o favor de dizer quem os torna melhores; conta-lhes quem é. Estás vendo, Meleto, que te calas e não sabes o que dizer? Com efeito, não achas que isso é feio e prova que não fazes o mínimo caso, como eu disse? Vamos, bom rapaz, fala; quem é que os torna melhores?

- São as leis. - Não é isso o que estou perguntando, excelente rapaz; pergunto que homem é,

o qual, para começar, sabe exatamente isso, as leis. - As pessoas presentes, Sócrates; os juízes. - Que dizes, Meleto? Os presentes são capazes de educar os moços e os

tornam melhores? - Sem dúvida. - Todos? Ou uns sim e outros não? - Todos. - Boa notícia nos dás, por Hera! Sobejam os benfeitores! Que mais? E esses da

assistência os tornam melhores ou não? - Eles também. - Que dizer dos conselheiros? - Também os conselheiros. - Mas, então, Meleto, acaso os homens da assembleia, os eclesiastas

corrompem a mocidade? Ou eles todos também a tornam melhor? - Também eles. - Logo, não é assim? todos os atenienses a tornam gente de bem, menos eu; eu

sou o único a corrompê-la! É isso o que dizes? - Exatamente isso é o que digo. - Que imensa desdita apontas em mim! Responde também a esta pergunta: no

teu entender, com os cavalos sucede o mesmo? Toda gente os melhora e um só os vicia? Ou se dá inteiramente o contrário: quem os sabe melhorar é um só, ou muito poucos, os adestradores; a maioria, quando trata de cavalos e os monta, vicia-os?”

Neste trecho, percebemos que a ironia está onipresente no discurso de

Sócrates, aproxima-se das incertezas e fragilidades de Meleto, induzindo-o a

91

reconhecer a sua própria ignorância, condição na qual mais se justifica; mas,

não consegue formular um pensamento inteiro enquanto resposta que o valha,

pois, o seu argumento não se pauta na verdade, mas sim no erro, na mentira e

na inobservância.

Sócrates tinha um sentido apurado, desenvolveu a habilidade de

conversar com as necessidades e incongruências de ideias alheias. O seu

auxílio vinha em benefício de seu interlocutor que, dependendo, do estado de

sua disponibilidade mental, poderia vir a se libertar. Quando o interlocutor

estivesse livre dos laços dos preconceitos, dos enrijecimentos espirituais, e os

questionamentos ajustados, seria possível a mudança. Neste ponto, culminava

a relação plena de significação, pois, Sócrates teria revirado tudo diante dele

num piscar de olhos (KIERKEGAARD, 1991). Vemos um furacão que

desestabiliza a natureza do ser, muito embora, faça-a se reconstruir

grandiloquentemente, já que todos os seus elementos estão reconectados,

rearranjados e dialogando sobriamente como jamais estiveram.

Sócrates auxiliava as pessoas num sentido de parto espiritual, era

infatigável no exercício de serrar a floresta primitiva da consciência dos jovens,

pois o intuito era o de abrir espaço para novas visões e novos plantios; os

preconceitos baseados no senso comum seriam extirpados com o manejo do

observador irônico, conforme Kierkegaard (1991).

Em Sócrates encontramos a figura do arauto compromissado com a

verdadeira e não aparente atitude da ironia, pois indica a ideia do bem, do belo,

do verdadeiro, ou seja, propõe estas condições ideais e infinitas como

possibilidade a ser vivenciada por todos aqueles que a aspiram. Kierkegaard

(1991) sinaliza que “o que vemos em Sócrates é a liberdade, infinitamente

transbordante, da subjetividade, mas isto é justamente a ironia” (p.164).

Observaremos agora, parte do diálogo travado por Sócrates em “Ditos e

feitos memoráveis de Sócrates”, escrito por Xenofonte (1972, p. 46-47), seu

discípulo, no que tange a proibição da oratória realizada por Sócrates em toda

92

palestra com os jovens. Sócrates argui questionando Cáricles, um dos

acusadores:

“- Estou pronto – disse – a obedecer às leis. Mas para que não me aconteça infringi-las por ignorância, eis o que claramente desejo saber de vós. Que entendeis, quando lhe proibis a prática, por arte da palavra? O mal ou o bem falar? Porque se vós referis à arte de bem falar, evidente é dever abster-se de bem falar. Mas se tendes em vista a má oratória, claro é dever esforçar-se por bem falar.

- De vez que é tão bronco, ó Sócrates – repostou Cáricles colérico, - interdizemos-te expressamente, o que é mais claro, o conversar com os moços.

- Para evitar – volveu Sócrates – que por equívoco não observe o que me é defeso, dizei-me até que idade deve ter-se os homens por moços.

- Enquanto não tiverem acesso ao senado – respondeu Cáricles, à míngua de razão suficiente. – Não fales, pois, com os jovens de menos de trinta anos.

- Então se quiser comprar alguma coisa de homem de menos de trinta anos não poderei perguntar-lhe: Quanto custa isso?

- Sim, isso se te permite – assentiu Cáricles. – Mas tens a mania, Sócrates, de viver fazendo perguntas sobre coisas que sabes, e isso é que te proibimos.

- Quer dizer que não poderei responder a um jovem que me perguntar: Onde mora Cáricles? Onde está Crítias7?

- Ainda isso se te permite – disse Cáricles. - Sim, Sócrates – interferiu Crítias – é preciso deixar em paz os sapateiros,

carpinteiros e ferreiros. Eles estão fartos das tuas parolagens. - Como! – exclamou Sócrates – devo, pois, renunciar às conclusões de justiça,

piedade, etc., que deles tirava? - Sim, por Júpiter! – respondeu Cáricles. – E renuncia também aos teus

vaqueiros. De outra forma arriscas diminuir por tua vez o número de bois.”

Neste excerto, Sócrates fingindo ingenuidade conduz os seus ex-

discípulos ambiciosos a se aterem aos argumentos que minguam de razões

suficientes. Nada justificava a proibição por lei do não uso da oratória por

Sócrates; em suas juventudes, tanto Cáricles quanto Crítias, viveram tal qual o

seu mestre, Sócrates, debaixo da sombra das virtudes e, agora, afastados da

moderação e prudência, cúpidos e homens de estado que se tornaram,

articulavam o extermínio da liberdade que gozava todo interlocutor jovem de

Sócrates. Os ambiciosos com o passar do tempo deixaram de exercitar as

virtudes e se permitiram às impressões vaidosas e referências viciosas.

Na próxima exemplificação, veremos em “As nuvens”, comédia de

Aristófanes (1972, p. 187-188), opositor e contemporâneo de Sócrates, que

7 Crítias foi discípulo de Sócrates; conta-se que foi o mais cúpido, violento e sanguinário dos

oligarcas.

93

erroneamente julgava ser Sócrates um dos responsáveis pela decadência que

sofria Atenas. Atentaremos ao personagem Estrepsíades que vai ao encontro

de Sócrates com o intuito de aprender a arte da conversação, pois deseja

eloquentemente convencer o seu credor de que não precisa honrar as suas

dívidas pendentes, como também, as dívidas oriundas do seu filho viciado em

jogos com cavalos e de sua nora frívola:

“- Sócrates! Socratesinho! - (Do alto.) Por que me chama, ó efêmero - Em primeiro lugar, eu lhe peço, explique-me o que está fazendo. - Ando pelos ares e de cima olho o Sol. - Ah, então você olha os deuses aí de cima, do alto de uma peneira e não aqui

da terra, se é que se pode... - Pois nunca teria encontrado, de modo exato, as coisas celestes se não tivesse

suspendido a inteligência e não tivesse misturado o pensamento sutil com o ar, o seu semelhante. Se, estando no chão, observasse de baixo o que está em cima, jamais o encontraria. Pois de fato a terra, com violência atrai para si a seiva do pensamento. Padece desse mesmo mal até o agrião...

- (Muito espantado.) Que diz? O pensamento puxa a seiva para o agrião? Então venha, meu Socratesinho, desça aqui para ensinar-me aquilo que vim procurar...

- (Descendo.) Mas a que veio você? - Porque desejo aprender a falar. Com efeito, estou sendo saqueado, pilhado e

penhorado nos meus bens, por credores e juros muito cacetes... - E como você não percebeu que se endividava? - Foi uma doença de cavalos que me arruinou, terrível, devoradora... Mas

ensine-me o outro dos seus dois raciocínios, aquele que não devolve nada. Pelos deuses, juro pagar-lhe qualquer salário que você cobrar!...

- (Em terra.) Por quais deuses você pretende jurar? Para começar, em nosso meio os deuses são moeda fora de circulação...

- Como é que vocês juram? Acaso será por peças de ferro, como em Bizâncio? - Você quer conhecer claramente as coisas divinas e exatamente o que elas

são? - Sim, por Zeus, se é possível... - E travar relações com as Nuvens, as nossas divindades, para conversar com

elas? - Sim, demais! - Então sente-se no leito sagrado. - Pronto; estou sentado. - (Com uma coroa nas mãos.) Pois tome aqui esta coroa... - Para que uma coroa? Ai de mim, Sócrates, contanto que vocês não me

sacrifiquem como ao pobre Atamante! - Não, mas fazemos tudo isso aos que vão iniciar. - O que é que eu ganho com isso? - Tornar-se-á escovado na fala, charlatão, uma flor de farinha! (Sócrates,

enquanto fala, esfrega as costas de Estrepsíades e esparge farinha sobre a sua cabeça.) Mas, fique quieto!

- Por Zeus, você não vai me enganar: de fato, polvilhado, serei uma flor de farinha...

- É preciso que o velho fique calado e preste atenção à prece! (Solenemente.) Senhor soberano, Ar incomensurável, que sustentas a Terra suspensa no espaço! Éter

94

brilhante e veneráveis deusas, Nuvens, portadoras do trovão e do raio! Levantais-vos, Senhoras, mostrai-vos ao pensador, suspensas no ar!

- Não, ainda não! (Procura cobrir a cabeça com uma ponta do manto.) Antes vou cobrir-me com isto, para não me encharcar... Desgraçado de mim... Sair de casa sem nenhum bonezinho!”

Nesta demonstração, Aristófanes ridiculariza Sócrates disponibilizando-o

a um néscio qualquer, como se Sócrates possuísse interesse em fazer das

pessoas, seres eloquentes com fins viciosos e errôneos. Naturalmente, não

encontramos a concepção irônica da negatividade que estamos tratando sob o

viés de Kierkegaard; aqui, nesta comédia grega, enxergamos um jogo

dramatúrgico com propósitos cômicos, que expõem Sócrates a toda sociedade

do seu período.

Em todo o “Conceito de Ironia”, Kierkegaard (1991), intenciona validar a

ironia numa condição histórico-universal, e em Sócrates, a ironia assume

roupagem e potencial máximo para incitar a subjetividade como jamais foi

realizado. Por meio desta dialética subjetiva, o indivíduo pode se transfigurar

em um outro melhor de si mesmo. Kierkegaard (1991, p.165) anuncia que “a

ironia é, assim como a lei, uma exigência e a ironia é uma exigência enorme,

pois ela desdenha a realidade e exige a idealidade.” Naturalmente, somente

um idealista para desejar circunscrever a realidade em outros moldes menos

fantasiosos e mais palpáveis à uma vida plena. Posteriormente a Sócrates, a

ironia viria ganhar um entendimento mórbido e egoísta, que não é o contexto

que temos utilizado até então.

Compreendemos até aqui que Sócrates gozava de uma liberdade irônica,

“mas sua ironia não é o instrumento que ele usava a serviço da ideia, a ironia é

o seu ponto de vista.” (KIERKEGAARD, 1991, p.165, grifo do autor). A ironia é

preponderante em seu eixo de equilíbrio, em sua ação, ela é a premissa para

ele se portar confortavelmente negativo frente as arguições, pois isto lhe

capacita buscar por infinitas possibilidades de todas subjetividades, tanto as

suas quanto as subjetividades alheias, “mas é preciso acrescentar que a

negatividade infinita possibilitou com sua pressão toda a positividade, foi um

95

incitamento e um estímulo infinitos para a positividade” (KIERKEGAARD, 1991,

p.167, grifo do autor).

Graças a sua negatividade, Sócrates é impedido de recuar, portanto, está

compelido a descobrir as entranhas viscerais da realidade, e trazer consigo os

jovens por esta inequívoca senda. Kierkegaard (1991) relata que Sócrates com

sua mobilidade e seu entusiasmo espiritual, diariamente, animava os seus

discípulos; o ponto de vista de Sócrates, ou seja, a prática irônica em sua

inteireza, é a energia que vibrava na/pela positividade.

Sócrates instrui com o tato de um escultor, crê que toda massa pode

assumir o modelo idealizado, o modelo incrustado de positividades, de valores

reais e verdadeiros. Neste sentido, Kierkegaard (1991, p.178) pondera que “o

indivíduo moral jamais consegue realizar o bem, somente o sujeito

positivamente livre pode ter o bem como o positivo infinito, como sua tarefa, e

realizá-lo.” O quadro que se apresenta, guardadas as devidas proporções,

poderia ser o de Sócrates, ironicamente, anunciando no deserto a todos os

seres inteligíveis e sedentos: “... tome sobre si a sua cruz, e siga-me8”; no

entanto, mais ao temperamento de Sócrates, poderíamos, talvez, convir desta

maneira: “Faça como eu, porém, uma vez liberto das inverdades, reflita e aja

por si mesmo.”

Kierkegaard (1991, p.178) consegue visualizar uma perspectiva irônica

para quem foi acusado de desvirtuar os jovens: “o movimento em Sócrates é

este: ir até o bem.” O nosso autor dinamarquês confere um propósito capital

para toda historicidade socrática, sintetizando as ações de Sócrates rumo à

benignidade, à claridade das ideias e ações. Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.),

discípulo de Platão, em “Arte Retórica” reforça a ideia de que a retórica

presente também em Sócrates “é útil, porque o verdadeiro e justo são, por

natureza, melhores que seus contrários” (p. 32).

8 Mt (16:24).

96

Desde que a subjetividade se anunciou ao mundo, o mesmo não recaiu

na forma anterior de desenvolvimento; na verdade, o antigo desapareceu e o

novo pode desabrochar, os rastros da subjetividade não puderam ser

apagados pela história, segundo Kierkegaard (1991, p. 212). Isto vale para

todas personalidades imbuídas do espírito irônico, que por ser negativo e livre

na/da realidade, enxerga as possibilidades positivas, ideais. Avante,

Kierkegaard (1991, p. 223) reitera que “na ironia, o sujeito bate em retirada

constantemente, contesta a realidade de todo e qualquer fenômeno, para

salvar a si próprio, na independência negativa em relação a tudo.”

Enquanto tudo se caracteriza pela vaidade, o sujeito irônico não se

permite envaidecer a si mesmo, segundo Kierkegaard (1991, p. 224), mas sim

se liberta da sedução da sua própria vaidade. O irônico está sempre

exercitando o seu polo negativo, prefere a contramão de todo e qualquer

primeiro instinto social, que se baliza no ideário do homem ordinário. Como

Kierkegaard (1991) destaca:

[ ] fica suficientemente indicado que a ironia já não se volta para este ou aquele fenômeno individual, contra um existente individual, e sim toda a existência se tornou estranha ao sujeito irônico e este por sua vez se torna estranho à existência, que o próprio sujeito irônico, na medida que a realidade perdeu sua validade para ele, até certo ponto (também) se tornou irreal (p.224, grifo do autor).

Kierkegaard (1991) analisa a ideia de que nem sempre a humanidade e

os indivíduos de uma determinada época estão em consonância com o

desenvolvimento do mundo, que arrasta consigo aquele que se recusa ao

movimento estabelecido. Esta situação revela o indivíduo que está justificado

historicamente, porém não autorizado à ação irônica; neste caso, Kierkegaard,

reflete o surgimento de uma vítima justificada que, provavelmente, trará a luz

para um novo momento.

Com esta alternância das páginas na história, percebe-se que o novo

deve vir à luz e por outro lado, o velho necessita ser realojado. Com o novo

está o indivíduo profético, que o avista mesmo com limitações; ele pressente,

97

não possui como carta na mão o porvir, portanto, não o faz vigorar, no entanto,

o indivíduo profético está mergulhado pacificamente em sua realidade, seu

caráter trágico o faz lutador pelo povo, esforça-se em aniquilar o que passou do

ponto e precisa desaparecer. Para isto, busca evidenciar o desalojar do velho

que está imperfeito. Em suma, temos o perfil do sujeito irônico, ansioso em

oferecer novos ares à realidade que perdeu sua validade, sua legitimidade, que

incomoda e constrange, conforme Kierkegaard (1991). A ironia é vista,

portanto, como uma negatividade infinita absoluta, pois nega todos os

fenômenos em sua totalidade; ela não estabelece nada, virão após ela

estabelecer. A ironia se equivale a “uma demência divina” (p. 227).

No que concerne ademais às características do sujeito irônico,

salientamos que por meio da ironia o sujeito está irrevogavelmente preso à

liberdade, como nos descreve Kierkegaard (1991):

Na ironia o sujeito está negativamente livre; pois a realidade que lhe deve dar conteúdo não está aí, ele é livre da vinculação na qual a realidade dada mantém o sujeito, mas ele é negativamente livre e como tal flutuante, suspenso, pois não há nada que o segure. Mas esta mesma liberdade, este flutuar, dá ao irônico um certo entusiasmo, na medida que ele como que se embriaga na infinitude das possibilidades, na medida que ele, quando precisa de um consolo por tudo o que naufraga, pode buscar refúgio no enorme fundo de reserva da possibilidade (p. 227).

Quanto a formação irônica: como desenvolvê-la completamente?

Kierkegaard (1991, p. 228) sugestiona que “o sujeito tome consciência de sua

ironia”, sinta-se negativamente livre para condenar a realidade dada gozando a

liberdade negativa. Conforme a subjetividade for desenvolvida, a ironia vai

aparecendo e ganhando espaço; a subjetividade se vê forte, válida e plena de

significados quando está liberta e empreendida ao serviço da ideia, mesmo que

o sujeito irônico não tenha compreendido o processo em sua plenitude.

Assim como Sócrates, o sujeito irônico finge ignorância “e, sob aparência

de se deixar ensinar, ensina os outros” (KIERKEGAARD, 1991, p. 231). O

98

irônico conserva em si a liberdade poética, “e quando ele nota que não se torna

nada, então poetiza isto também” (p. 243).

Tudo é possível ao irônico, ele faz o que lhe dá prazer; vestir-se com a

roupagem correta é um dos esmeros do irônico, às vezes, utiliza as máscaras e

fantasias de um patrício orgulhoso, de um peregrino penitente, ora se assenta

de pernas cruzadas, ora toca cítara com leveza e liberdade. Detalhes que

fazem o irônico viver poeticamente, criando a si mesmo (KIERKEGAARD,

1991, p. 244).

Verdadeiramente, ao irônico, nenhuma realidade lhe será conveniente e

suficiente, pois muito pelo contrário, o irônico não “se coloca fora e acima da

moral e da vida ética, mas ele vive de uma maneira demasiado abstrata,

demasiado metafísica e estética para poder chegar à concreção do moral e do

ético”, conforme Kierkegaard (1991, p. 245) que, continua a manifestar a

tipologia na/da qual o sujeito irônico pertence:

Para ele, a vida é um drama, e o que ocupa é o enredo engenhoso do drama. Ele mesmo é espectador, ainda quando ele próprio é o ator. Infinitiza por isso o seu eu, volatiliza-o metafísica e esteticamente, e embora de vez em quando se recolha tão egoística e estreitamente quanto possível, em outras horas tremula tão solto e distendido, que o mundo inteiro poderia caber nele. Ele se entusiasma diante de uma virtude que se sacrifica, assim como um espectador se entusiasma no teatro; ele é um crítico rigoroso que sabe muito bem quando esta virtude se torna ríspida e falsa. Ele é capaz de se arrepender, mas se arrepende estética e não moralmente. No instante do arrependimento, ele está esteticamente por cima de seu arrependimento, examina se este está correto esteticamente e se caberia bem como uma réplica na boca de uma personagem poética (KIERKEGAARD, 1991, p. 245, grifo nosso).

O irônico é o poeta que se recria no exercício da sua poesia, na reflexão

dos seus estados de ânimo. A existência do tédio na vida do irônico o faz

possuir a unidade negativa, que o possibilita para o todo, mesmo que esteja em

sua própria realidade (KIERKEGAARD, 1991).

99

A interação com a realidade só se concretizará para o sujeito irônico

quando este estiver orientado; poderá viver poeticamente e integrado, pois

estará positivamente livre na realidade à qual pertence. Ao mesmo tempo,

Kierkegaard (1991), prontifica-se a retratar o sujeito irônico como um modelo

poético que pode ser apreendido, portanto, vivido.

Notamos que a ironia orientada cumpre e provoca sua intencionalidade;

ela não é arbitrária e frágil. Portanto, o sujeito irônico é um ser povoado de

direcionamentos e intervenções; pressentimentos vindouros; negatividades que

tocam a liberdade e a essência das coisas pelo lado oposto, na positividade.

Faz-se oportuna, agora, uma consideração sintética da ironia como um

recurso linguístico da nossa contemporaneidade, pois, já dissemos o suficiente

no tocante à ironia como instrumento do saber, especialmente o socrático, que

era a nossa primeira intenção.

Absolutamente diferente da ironia socrática, que conservava a ironia

como ponto de vista do sujeito, a ironia ao passar dos séculos se condensou,

principalmente, como um recuso discursivo, um processo estilístico, uma

linguagem específica que possibilita a ambiguidade, por fim, uma figura de

pensamento no âmbito da frase, onde reside a emoção, o sentimento e a

paixão (CEGALLA, 1990, p.525).

Podemos dizer que, basicamente, enquanto figura de linguagem, a ironia

diz o contrário do que se pensa, e nesta medida, há uma intenção sarcástica

que permeia cada palavra. Citamos alguns exemplos: a) Trabalhas em excesso

e ganhas um soldo tão proporcional ao teu esforço que, as nossas roupas

surradas são forçadas a não saírem do nosso corpo. b) Vejam os nossos

amados políticos: conduzem a nossa pátria com magnificência à derrocada

apoteótica!

Brait (2008) afirma que “o procedimento irônico multiplica suas faces e

funções, configurando diversas estratégias de compreensão e representação

100

do mundo” (p. 13). A autora discorre sobre a ironia relacionando-a à produção

de uma série de artifícios expressivos que podem estar em diferentes níveis

linguísticos, tal qual o humor. Neste processo haveria um produtor, um sujeito

estratégico, que mediaria os níveis linguísticos ao seu interlocutor.

Ainda segundo a autora, a ironia pode ser considerada uma estratégia de

linguagem, partícipe da constituição do discurso como fato histórico e social,

mobilizadora de vozes que instaura, portanto, a polifonia, ainda que esta

polifonia não represente a democratização dos valores veiculados ou criados.

Reflete a possibilidade de a ironia desnudar determinados aspectos culturais,

sociais e estéticos, encobertos por uma suposta seriedade, embora menos

crítica.

Como apresentado, analisamos a arte socrática detentora da ironia como

baluarte. Sócrates, iniciou o processo de desmistificar os valores arraigados

pela falsa moralidade que imperava em seu tempo; viu nos jovens a

possiblidade de transformação, já que ansiavam por um diálogo esclarecedor.

A ironia, posteriormente, deixa de assumir a propriedade socrática, aquela que

separa em definitivo a pessoa irônica enquanto ponto de vista; porém, ainda

assim, é empregada com fins subversivos à ordem, está a serviço do sujeito

que busca na interrogação e no humor, alguma reivindicação.

No próximo capítulo, trataremos da origem moderna e do

desenvolvimento do educador ironista a partir dos autores pragmáticos Richard

Rorty, que nos apresentará o ironista liberal, e o controverso politicamente,

Sidney Hook. Por fim, apresentaremos o espanhol Imanol Aguirre e suas

pesquisas atreladas ao arte-educador ironista.

101

CAPÍTULO 3

DO INOVAR AO LIBERTAR: O PENSAMENTO DE IMANOL AGUIRRE

O capítulo pretende a articulação de alguns aspectos da produção dos

norte-americanos Richard Rorty e Sidney Hook, buscando correlacioná-los

(cada qual em sua medida) à concepção ironista. Ao mesmo tempo, reflete-se

acerca do processo formativo de Imanol Aguirre, que dialoga com a ideia do

educador ironista e suas possibilidades de atuação pedagógica dentro de uma

era marcada pela visualidade no ensino das artes. São abordadas reflexões e

posicionamentos do autor no tocante ao ensino-aprendizagem, contemplando

as esferas estéticas, humanas e sociais.

3.1 A atuação do educador ironista – origem e desenvolvimento

Buscaremos expor neste ponto dissertativo, primeiramente, o filósofo

pragmatista nova-iorquino Richard Rorty, nascido em 1931, chegando muito

jovem à Universidade aos 15 anos. Seus pais lhe ofereceram um olhar

trotskista9 e, ao mesmo tempo, aproximaram-lhe do pensamento liberal-social

de John Dewey10.

Obteve o seu bacharelado e mestrado pela Universidade de Chicago.

Doutorou-se em Yale, lecionou filosofia como titular em Princeton durante 15

anos. Professou também na Universidade Virgínia e, posteriormente, na

Universidade de Stanford como professor de Literatura Comparada. Conseguiu

desde os seus primeiros escritos relacionar originalmente as teorias dos

9 Leon Trotsky (1879-1940) foi um ucraniano intelectual, marxista, revolucionário bolchevique,

escreveu teorias políticas e ideológicas que contrariavam o posicionamento de Josef Stalin,

secretário geral do Partido Comunista da União Soviética, que defendia a não expansão da

Revolução em outros países.

10 John Dewey (1859-1952) doutorou-se pela Universidade John Hopkins, exerceu a função de

professor em inúmeras Universidades. Seus estudos e teorias se desenvolveram tendo o

Pragmatismo por tradição. Ver "A Escola e a Sociedade", 1899; "Democracia e Educação",

1938 e "Arte como experiência", 1958.

102

primeiros pragmatistas que, geralmente, entendiam a importância de uma ideia

em função da sua utilidade, eficiência, em resolver determinado problema.

Rorty descrevia-se como um liberal de esquerda com uma posição

socialdemocrata. Uma década anterior ao seu falecimento em 2007, revelou

uma constante necessidade das universidades se voltarem aos mais pobres,

fazendo com que os ricos não os desvalorizasse. Algumas de suas obras mais

conhecidas são “A filosofia e o espelho da natureza” de 1979, “Contingência,

ironia e solidariedade” de 1989 e “O futuro da religião – solidariedade, caridade

e ironia” de 2005.

Atentaremos, especificamente, na obra “Contingência, ironia e

solidariedade” de 1989, a qual desvela o ironista e seus caracteres que o

fazem potenciar. Este livro possui três partes, faremos uso dos conceitos

atrelados à segunda parte do mesmo, que leva o nome “Ironismo e Teoria”. Os

três tópicos da segunda parte seguem consecutivamente tal qual está presente

na obra original: “Ironia privada e esperança liberal”; “Auto-criação e filiação:

Proust, Nietzsche e Heidegger”; “Da teoria ironista às alusões privadas:

Derrida”.

Rorty (1989) sinaliza que todos os seres humanos carregam um conjunto

de palavras que utilizam para justificar as suas ações, crenças e vidas; são

palavras que formulam elogios aos amigos e desprezos aos inimigos, podendo

participar dos planos e projetos, das mais profundas dúvidas e esperanças.

Palavras que se ligam à prospecção e à retrospectiva de todas as vidas. Rorty

nomeia estas palavras de “vocabulário final” de uma pessoa. Este vocabulário

é o quanto se pode ir com a linguagem, além destas palavras “há apenas a

passividade impotente ou o recurso à força” (p.73, tradução nossa).

Oferece elementos ímpares e indissociáveis para a composição do

ironista, sua análise identifica o ironista correlacionado à dúvida com o seu

próprio léxico contínua e irrevogavelmente:

103

Eu devo definir um "ironista" como alguém que preencha três condições: (I) Ela tem radical e continuamente dúvidas sobre o vocabulário final que ela atualmente usa, porque ela tem sido impressionada por outros vocabulários, vocabulários tomados como final por pessoas ou livros que ela tem encontrado; (2) ela percebe que a argumentação formulada no seu vocabulário presente não pode nem subscrever ou dissolver essas dúvidas; (3) na medida em que ela filosofa sobre sua situação, ela não acha que seu vocabulário é mais próximo da realidade do que outros [...] lronistas que estão inclinados a filosofar veem a escolha entre vocabulários como se feitos nem dentro de um metavocabulário neutro e universal ou por uma tentativa de combater aparências passadas para o real, mas simplesmente por jogar fora o novo contra o velho (RORTY, 1989, p.73, tradução nossa).

Estes tipos irônicos renunciam à tentativa de formular critérios de escolha

entre os vocabulários finais, como Rorty pondera. O ironista nunca será capaz

de se levar a sério completamente, pois há muito compreendeu que os termos

que descrevem a si mesmos estão sujeitos a alterações, às contingências e

fragilidades, por fim, aos próprios egos e sua infinda limitação.

O senso comum bloqueia toda a possibilidade de vir à tona o caráter

ironista, porém, se o senso comum for desafiado, mesmo que os seus adeptos

respondam generalizada e explicitamente as regras de linguagem que estão

acostumadas (como bem o fizeram os sofistas gregos e até mesmo Aristóteles

em seus escritos éticos) muito embora percebam a necessidade de atender ao

desafio indo além dos seus próprios recursos, teremos então a produção de

uma vontade de ir além dos clichês, conforme Rorty (1989, p.74).

O ironista é um nominalista e um historicista, segundo Rorty (1989, p.74-

75, tradução nossa): “Ele acha que nada tem uma natureza intrínseca, uma

essência real.” A mutabilidade do universo faz com que o “vocabulário final”

seja apenas uma quimera; não há condição estanque para os jogos de

linguagem. Sempre haverá uma pergunta socrática a se fazer que está além

dos jogos de linguagem do seu tempo. O ironista está sempre preocupado com

a possibilidade de ter sido iniciado em uma tribo errada, que foi ensinado a

jogar com a linguagem errada do jogo, daí a sua constante reformulação,

inquietação, reconstrução de sentidos e regras.

104

O ironismo acredita que o ponto não é encontrar algum vocabulário final

que ponha as dúvidas para descansar ou que satisfaça critérios de adequação

ou otimização; a reflexão não pode ser regida por critérios, pois não são mais

que clichês que definem os termos de um vocabulário final que está em uso.

Por exemplo, os ironistas tomam os escritos de todas as pessoas com dons

poéticos, todas mentes originais com talento para redescrição, tais quais:

Platão, Goethe, Kierkegaard, Darwin e Freud – “como grão para ser colocado

por meio do mesmo moinho dialético” (RORTY, 1989, p.76, tradução nossa).

Richard exemplifica o ironista e a sua discordância mediante a chavões

que a cultura ocidental inculca, como: “Todos os homens, por natureza,

desejam conhecer” ou “A verdade é independente da mente humana”; estes

exemplos representam o senso comum dos quais o ironista não faz noção em

seu próprio vocabulário. Naturalmente, quando o ironista vê o seu vocabulário

final, vislumbra possibilidades, dominações poéticas e metafóricas; na visão do

ironista, vocabulários não são frutos de inquérito com critérios formulados

(RORTY, 1989, p.77).

O ironista utiliza o seu argumento de forma dialética, sua persuasão se

constrói em um sentido de que o seu método seja a redescrição em vez da

inferência, ou seja, a capacidade de se autodescrever abre as comportas para

que a vida se ressignifique, portanto, o ironista estabelece que as tradições e

as instituições sociais não determinem mais quem ele é, assume a sua

liberdade de existência poética e criativamente. Rorty afirma que o ironista é

um especialista em redescrever objetos ou eventos praticando o neologismo,

com o intuito de incitar as pessoas a adotar esta prática (RORTY, 1989, p.78).

Desta forma, percebemos que o ironista possui habilidade literária que

produz mudanças surpreendentes e transições rápidas de uma terminologia

para outra. Rorty (1978, p.80, tradução nossa) relata que, o ironista,

abandonou a ideia de chegar à verdade em favor da ideia de fazer coisas

novas; inclui-se neste jogo conceitual-prático e afirma: “Nós ironistas

105

esperamos, por esta contínua redescrição, para fazermos o quanto pudermos

melhores eus para nós mesmos.”

Existe uma revisão da própria identidade moral por meio da revisão do

próprio vocabulário final, o ironista se mostra um observador de si mesmo ad

continuum. As dúvidas atreladas à nossa própria cultura só podem ser

resolvidas ou amenizadas apenas ampliando o nosso conhecimento: isto é

cabal ao ser humano que, ansioso pela própria evolução, busca novos léxicos.

Rorty (1989) diz que a maneira mais fácil de conhecer é lendo livros e o ironista

por temer ficar preso ao seu vocabulário, amplia-o tentando dialogar com

pessoas estranhas, famílias estranhas, comunidades estranhas, observando-se

obviamente o sentido literário, como por exemplo, a família Karamazov de

Fiódor Dostoiévski.

Rorty relata que os ironistas tem de ter alguma coisa para duvidar, que o

incite à prática solidária, que o leve ao auxílio daqueles que não detenham o

domínio do jogo da linguagem, portanto, sofrem injustiças na sociedade. Neste

sentido, Rorty enfatiza o cenário dialógico no qual o ironista está inserido e as

dificuldades em provocar o senso comum:

Ironismo, como eu tenho definido, resulta da consciência do poder de redescrição. Mas a maioria das pessoas não quer ser redescrita. Elas querem ser tomadas nos seus próprios termos - levadas seriamente como elas são e como elas falam (RORTY, 1989, p.89, tradução nossa).

O ironista não vende gato por lebre, então precisa dizer que as nossas

chances de liberdade dependem das contingências históricas e que

ocasionalmente são influenciadas pelas nossas auto-redescrições. O fato de

um alguém se redescrever, ou seja, assumir conscientemente a

responsabilidade por si e de sua situação, não o faz melhor para conquistar as

forças que marcham contra si, não é uma questão de ter a verdade ao seu lado

ou de ter detectado o “movimento da história” (RORTY, 1989, p.91).

106

Para o educador ironista, a preservação e o zelo pela dúvida constituem

sólidas colunas às provocações contínuas e, que se aprimoram e se elevam

conjuntamente aos educandos. O ironista é sistêmico, não está

despropositado, é revolucionário – e por quê não, anárquico, sob determinado

ponto de vista mais conservador? Saviani (1991) contribui com o nosso

pensamento reflexivo no tocante à composição de um educador aspirante, de

fato, a sê-lo:

Quanto a nós, se pretendermos ser educadores (especialistas em educação) é porque não nos contentamos com a educação assistemática. Nós queremos educar de modo intencional e por isso nos preocupamos com a educação (p.52).

Rorty (1989, p.93, tradução nossa) assevera que o ironista sabe da

importância da solidariedade nas relações “e deseja evitar, a humilhação atual

e possível dos outros - apesar das diferenças de sexo, raça, tribo e vocabulário

final [...]” Muitas das mazelas sociais possuem estreita relação com os jogos de

linguagem e a não possibilidade de apreendê-los:

Então vítimas de crueldade, pessoas que estão sofrendo, não têm muito na maneira de uma linguagem. É por isso que não há nenhuma coisa como a "voz dos oprimidos" ou a "linguagem das vítimas." A linguagem das vítimas uma vez utilizada não está funcionando mais, e eles estão sofrendo muito para colocar novas palavras juntas. Assim, o trabalho de colocar a sua situação em linguagem vai ter que ser feito para elas por outra pessoa. O romancista liberal, o poeta, ou o jornalista é bom nisso (RORTY, 1989, p.94, tradução nossa).

Perceptivamente, os leitores de “Contingência, ironia e solidariedade” são

conduzidos para dentro de um emaranhado filosófico (e não menos empírico,

postas as análises históricas e contundentes) que Rorty se debruça

perspicazmente, de forma que aponta ao fim do estudo os seguintes

apontamentos/provocações:

A auto-dúvida parece-me a marca característica da primeira época na história humana em que um grande número de pessoas tornou-se capaz de separar a pergunta "Você acredita e deseja o quê acreditamos e desejamos?" da pergunta "Você está sofrendo?" No meu jargão, esta é a capacidade de

107

distinguir a questão de saber se você e eu compartilhamos o mesmo vocabulário final da questão de saber se você está com dor. Distinguir estas perguntas torna possível distinguir questões públicas a partir de questões privadas, questões sobre a dor de questões sobre o sentido da vida humana, o domínio do liberal do domínio do ironista. Isto, portanto, torna possível para uma única pessoa ser ambas” (RORTY, 1989, p.198, tradução nossa).

Tal qual Rorty, o filósofo Sidney Hook (1957) vinculou-se ao Pragmatismo

contribuindo em diversas áreas do conhecimento: filosofia da educação, teoria

política e ética, filosofia da história, entre outras. Nascido em 1902 em Nova

York, filho de imigrantes judeus austríacos, Hook se afeiçoou ao Partido

Socialista em sua juventude. Em 1923 obtém seu diploma pela Universidade da

Cidade de Nova York e em 1927 conquista seu doutorado pela Universidade de

Columbia; Hook sempre foi um estudante do pragmatista John Dewey, assim

como Richard Rorty.

Hook tornou-se professor de filosofia e chefe do Departamento de filosofia

da Universidade de Nova York por mais de vinte anos, aposentando-se em

1972. Esteve relacionado, posteriormente, às críticas contra o totalitarismo

tanto dos fascistas quanto de origem marxista-leninista, muito embora, Hook

tenha sido um dos maiores especialistas de Karl Marx, assistindo palestras em

Berlim em 1928 e participando de atividades no Instituto Marx-Engels em

Moscovo em 1929.

Nos Estados Unidos, Hook apoiou em 1932 o candidato William Foster do

Partido Comunista à presidência norte-americana, porém, rompe em 1933 com

a Internacional Comunista, dizendo que Stálin havia colocado a Revolução

Internacional em segundo plano. Ainda assim, Hook colaborou com causas da

esquerda, auxiliando e organizando o Partido dos Trabalhadores da América.

No período da Guerra Fria opôs-se ao comunismo, embora fosse

considerado um humanista democrático. Tentou dissuadir esquerdistas norte-

americanos de cooperar com a União Soviética. Na década de 1960, Hook se

opôs à retirada das forças armadas americanas do Vietnã. Em 1965 foi eleito

108

para a Academia Americana de Artes e Ciências, como também pertenceu

como membro da conservadora Hoover Institution, em Stanford, Califórnia. Foi

condecorado com a Medalha Presidencial da Liberdade pelo presidente Ronald

Reagan em 1985. O ano de 1989 marca a sua morte.

Hook descreve em um dos seus livros mais significativos, “O herói da

história” (1962) a possibilidade dos seres humanos exercerem um papel

criativo na construção do mundo social, que o determinismo não poderia

liquidar a intervenção humana, mesmo que dramática. Procuraremos

apresentar por meio da sua obra “A educação do homem moderno” (1957),

escrita em 1946 no pós-guerra, as ideias mais proeminentes que Hook

vislumbrava para a educação, aos professores.

Em 1946, Hook (1957) realizou uma análise educacional do seu tempo na

qual, oportunamente, respaldaremos a nossa visão contemporânea da

educação, em um sentido dialógico, que provoque a nossa percepção sobre as

empirias modernas sobre as quais Hook se debruçou, além, obviamente, de

refletirmos a nossa experiência pós-moderna.

Ironicamente, Sidney Hook (1957, p.16, tradução nossa) indica a não

dificuldade em compor uma lista de objetivos pedagógicos que um professor,

independentemente de sua posição filosófica, minimamente, poderia saber:

1. A educação deve aspirar o desenvolvimento das faculdades do pensamento crítico, independente.

2. Deve aspirar a produzir sensibilidade de percepção, receptividade para as ideias novas, simpatia imaginativa com as outras experiências.

3. Deve procurar o conhecimento das principais correntes das nossas tradições culturais, científicas e literárias.

4. Deve pôr ao alcance de todos, importantes entidades de ensino, relativos à natureza, à sociedade, a nós mesmos, ao nosso país e à sua história.

5. Deve esforçar-se em cultivar uma fidelidade inteligente aos ideais da comunidade democrática.

6. Deve, em certa medida, dotar os jovens, homens e mulheres dos conhecimentos práticos e técnicos gerais e conhecimentos especializados que, unidos às virtudes e habilidades mencionadas, capacitarão-os para realizar algum trabalho produtivo, vinculado com as suas aptidões e interesses.

109

7. Devem vigorar aqueles recursos internos e traços de caráter que permitam ao indivíduo, se for o caso, deixar por si mesmo.

Hook (1957) nos indica as sete artes liberais em sua versão moderna e

suas aspirações por uma educação liberal. Descreve sobre a importância da

construção de ideais que orquestram a escola, além de desvelar as mudanças

que ocorrem no organismo escolar:

Os ideais educativos apenas são eficazes quando correspondem a “quais” temas se estudam e “como” se estudam. Seu verdadeiro sentido aparece nas práticas e instituições educacionais. Quando estas mudam, muda o significado dos ideais, mesmo se conservarem as mesmas palavras (p.19, tradução nossa).

As aspirações educacionais instituídas em determinada comunidade, são

idênticas às aspirações da ação moral ou imoral da mesma comunidade.

Portanto, quando as pessoas desaprovam as aspirações de um sistema

educativo e anunciam quais mudanças deveriam ocorrer dentro de uma

aplicabilidade, estariam também dizendo as aspirações de uma vida perfeita.

Assim, em um jogo de palavras, Hook (1957, p.20, tradução nossa) expõe

alguns limites entre a realidade e a impossibilidade no campo educacional:

“Uma educação não deve ser o que não pode ser; pode ser o que não deve

ser; pode ser o que deve ser”.

Saviani (1991, p. 131) acredita que a educação, uma vez sistematizada a

partir das inovações implícitas ao “poder criador do homem”, poderá reforçar os

laços sociais, porém por meio das formas de convivências dos diversos grupos

sociais, dando possibilidade aos dotes originais e promoção ao intercâmbio

entre eles. Pensa em elos que dialogam “num mesmo tecido social”; seria

estéril visualizar o quadro da educação brasileira como um elemento da

sociedade a se bastar quando se pensa em resolver os problemas de todas as

esferas sociais, portanto, para as questões problemáticas da educação

escolarizada deveria ser levado em conta “o quadro cultural mais amplo.”

110

O homem, segundo Hook (1957), é um ser biológico sujeito a leis

definidas de crescimento, algumas faculdades e capacidades maduram,

prosperam e declinam, conforme um ciclo determinado; é um membro da

sociedade com herança cultural (patrimônio) e de uma organização social que

determina que suas necessidades e impulsos biológicos encontram expressão;

detentor de personalidade ou individualidade biológica, mostra um jeito de

proceder característico, influenciado pelas normas dominantes da sua cultura

que vai desenvolvendo gradual e seletivamente.

No plano da personalidade e do caráter, a educação deve aspirar ao

desenvolvimento da inteligência, assevera Hook (1957) que, ao mesmo tempo,

retoricamente, pergunta-nos o porquê de educarmos para a inteligência,

oferecendo-nos a sua contribuição assertiva:

A inteligência nos permite romper as cegas rotinas do costume ao enfrentarmos dificuldades novas; descobrir alternativas quando um impulso não pensado fosse lançar-nos à ação; prever o que não pode ser evitado e controlar o que pode ser. A inteligência nos ajuda a discernir os meios para classificar as possibilidades, a calcular os gastos antes de realizá-los, a ordenar a nossa comunidade, nossa família e nossa própria economia moral. Tudo isto e mais, sem contar os gozos que proporciona o conhecimento (p. 24, tradução nossa).

Enaltece o valor intelectual no sentido da sua virtuosidade rara, pois o

fortalecimento da inteligência fará com que o indivíduo resista mais facilmente

à tirania das modas, por exemplo; aumentará a variedade e os bens na

experiência e o seu labor muitas vezes beneficiará à sociedade. A educação

liberal que o nosso autor aponta vai na direção de consentir ao espírito humano

vivificar-se, de manter viva a sua chama, porém, responsabilizando-se

socialmente.

As aspirações educacionais ligadas ao desenvolvimento humano,

podemos dizer – interessadas na evolução intelectual do homem que se educa

-, segundo Hook (1957, p. 34, tradução nossa), “não fazem senão afirmar no

que cremos que os homens deveriam chegar a ser, tanto quanto possam estar

inflados pelo processo de ensino e aprendizagem.”

111

A educação precisa ser adequada ao homem, de forma que cabe ao

homem discernir tanto os elementos permanentes quanto os mutáveis. Assim

sendo, uma educação adequada ao homem revelará um quadro que reflete

este desenvolvimento. Nesta dimensão encontramos o pedagogo experimental

(HOOK, 1957).

A sina do experimentador é buscar a descoberta do que seja uma

educação adequada para o homem moderno e provar todas as premissas

práticas atreladas ao método, ao conteúdo e levá-las a cabo. Hook (1957, p.37,

tradução nossa) reconhece que o experimentador é chave do desenvolvimento

“de um programa educativo para o homem moderno, cujos frutos na

experiência sejam tão excelentes que possam aceitá-los todos os democratas

[...]”.

A escola exerce um propósito social que varia com o tipo de sociedade

em que se desenvolve e com as diferentes etapas de desenvolvimento social.

Os propósitos educacionais estão inerentes aos eixos que fundamentam a

sociedade e seu caráter, os ideais predominantes. “A bondade ou maldade da

educação é ao mesmo tempo causa e efeito da bondade ou maldade da

sociedade”, sentencia Hook (1957, p.43, tradução nossa).

Saviani discorre com sapiência sociológica, inclusive, com um quê

didático, acerca das funções da escola sem tocar nas ingênuas asserções que

a canonizam como o único e último ultimato à salvação da sociedade, e deste

tipo limitado de consideração se projetam outras pilhérias ora mais cândidas,

ora mais mordazes, que abastecem a fragilidade do senso comum:

A escola só poderá desenvolver um papel que contribua – veja bem, não que transforme, mas que contribua – para a transformação da sociedade, na medida em que ela discuta as condições essenciais em que os indivíduos vivem. Então, nesse sentido, ela permitiria – a par de uma função técnica, que é a função daqueles instrumentos fundamentais de acesso à cultura erudita, - ela facilitaria aos indivíduos a percepção da divisão de classes e de seu pertencimento a uma dessas

112

classes. A escola, nesse caso, só poderia cumprir essa função, na medida, em que seu papel político estivesse explícito e não implícito. Papel político quer dizer mostrar como se dão as relações de poder e quais as bases de poder. Isso levaria, então, à descoberta do lugar que se ocupa no processo produtivo. Descobrindo-se o lugar que se ocupa no processo produtivo é que, então, seria possível a organização para reivindicações de acordo com os reais interesses das camadas dominadas e, dessa forma, caminhar para a superação dos problemas enfrentados por essas camadas (SAVIANI, 1991, p. 187, grifo nosso).

A educação pode preparar por meio de adequados sistemas críticos,

ideias e atitudes que ajam cirurgicamente em momentos de crise. O

desenvolvimento de sensibilidade e discernimento são importantes para

resolver problemas passageiros, cujas sucessões constituem a substância da

história contemporânea. A educação tem alguma influência na ordem social

das sociedades, e em especial na democrática, sendo os professores, como

grupo, influentes; servidores da democracia com uma série de ideais que

buscam se validar (HOOK, 1957, p.49).

Os educadores e todos os cidadãos não poderiam fugir e/ou fingir quando

é premente tomar uma posição frente aos problemas essenciais que dividem

os homens. Ponderando acerca do exercício consciente do professor, Hook

desenvolve:

Mas seu trabalho de pedagogos não é pregar as soluções que sustentam como cidadãos. Seu dever é ensinar de tal modo que, nos níveis adequados, os estudantes vão conhecendo os processos centrais da sua cultura, habituando-se a escrutinar cientificamente nas consequências das soluções propostas, fazendo-se sensíveis aos valores implicados nessas soluções e interessados nelas, e valentes para aceitar as conclusões que o método e o discernimento conduzam (HOOK, 1957, p.71, tradução nossa).

Hook (1957, p.76-77) em suas análises sociais no tocante ao destino da

sociedade, condiciona-a por meio de prolongamentos futuros, ou seja, a nossa

sociedade atual será o prolongamento de si mesma ou surgirá de seus

choques e problemas. Se a escola está neste entrechoque de forças, também

resultará destas contingências. Quando se pensa em um ensino-

113

aprendizagem, um conteúdo adequado ao presente, não se exclui um estudo

do passado; isto faz com que não percamos o passado, mas nos capacita a

selecionar inteligentemente os materiais herdados do pretérito.

Seguindo esta linha de pensamento, como em um brainstorming

ininterrupto, natural que consideremos: qual é o prolongamento que está sendo

construído na contemporaneidade da educação brasileira? Quais são as teias

que interligam os agentes da educação, a comunidade escolar e os planos

políticos que se seguirão? E o nosso específico e, não obstante, plural, papel

de orientadores: em qual medida somos eficazes e quais são os limites de uma

atuação (pretensiosamente) ironista?

Conforme Saviani (1991, p.193, grifo do autor), “... o orientador é antes de

tudo um educador...” e “... a educação é sempre um ato político, a atividade

educacional é sempre um ato político.” Nestes termos, o ironista, o educador

estético ironista, poderá mobilizar o que o pretérito nos deixou e nos ensinou,

quer para o bem, quer para o mal, em todas as gamas produtivas da

sociedade, não apenas artística, e plugar aos sentidos dos alunos

contemporâneos. Ouvir, refletir e vivenciar a arte é um ato político, é uma ação

que contempla a individuação e se reverbera coletivamente. Toda produção

estética propositada à aprendizagem será melhor aproveitada se conectar o

indivíduo à consciência de si mesmo e do seu entorno socioeconômico. A

atuação que se espera de um orientador ironista está para além da apreciação

de cores, formas e estórias que se narram; entendemos aqui, que o educador

ironista está criando possibilidades de intervenção na vida, ensejando – agora,

sim -, um resplandecente apreciar, um olhar de águia11.

É de uma clareza e coragem as dúvidas levantadas por Hook nos anos

1946, quando indaga sobre o que se deveria referir, no presente, o conteúdo

do estudo? Audazmente se remete aos principais problemas de sua época –

que não são nada diferentes da nossa-, apontando-os: as questões sociais,

11 Ver BOFF, Leonardo. A águia e a galinha – uma metáfora da condição humana. São

Paulo: editora Vozes, 1997.

114

políticas, intelectuais e, se quiser, espirituais, frutos do nosso tempo e cultura.

Hook (1957) persiste:

São estes problemas – problemas que não cabe negar mesmo que resistamos a estudá-los – que deveriam servir de temas principais e, em torno dos quais, edificar a instrução educacional. Por temas principais não entendo simplesmente que ao chegar a um determinado ponto da educação se convertam nos problemas centrais do estudo, mas que sirvam de pontos de partida para planificar o conteúdo do curriculum, também em outras etapas. Longe de estreitar indevidamente o curso do estudo, veremos que tal orientação amplia e enriquece, sem convertê-lo em uma arcaica miscelânea contemporânea (HOOK, p.78, tradução nossa).

A educação liberal possui a função no mundo moderno de levar certa

ordem aos espíritos que têm herdado tradições de forma conflituosa; tecer os

problemas e materiais deste emaranhado social em um modelo reconhecível,

pelos quais as pessoas possam se orientar, tomando posições para uma vida

plena, responsável e convicta. Hook (1957, p.89, tradução nossa) relata que

esta educação libera dentro dos indivíduos “energias novas para voltar a dirigir

ou refazer, separada ou conjuntamente, os mundos em que vivem”. Se a ação

for acertada, terá um aumento da liberdade humana na sociedade; se for

madura, realizará a caridade por libertar a si e as outras pessoas.

Os estudantes, segundo o pensamento liberal de Hook (1957, p. 91),

deveriam ter acesso por meio da escola ao conhecimento de como funciona a

sociedade em que vivem, às grandes forças que moldam a civilização

contemporânea e, inerentemente, à reflexão sobre os problemas mais cruciais

da sua época que esperam por soluções.

Natural que pensemos em nossa escola contemporânea e, num esforço

talvez, esperançoso, vejamos algumas possibilidades, resistências criadas

pelos docentes frente ao aparelho educacional montado pelo Estado, que não

atende a sociedade e suas demandas cada vez mais crescentes. O exercício

cotidiano de buscar revoluções diárias com solidariedade e ciência está

impregnado nas ações do ironista, pois é da sua essência compartilhar o olhar

115

questionador que perscruta os papéis sociais que cada um desempenha, por

infelicidade na maior parte das vezes, inconscientemente. Mas, o primeiro ato

de liberdade é saber-se, situar-se; neste ponto, o ironista pode intervir passo a

passo e oferecer pistas a todos que se aproximam dele e/ou que ele vai atrás.

Desde os anos 1940, Hook (1957) defende que os conhecimentos e o

raciocínio que os estudos sociais proporcionam são extremamente necessários

a todos os estudantes, pois, mais adiante, podem se tornar extensões dentro

de suas tarefas na vida, contextualizados em seus campos de trabalho; estes

saberes se encontram na área da história, da economia, do governo, da

sociologia, da psicologia social e na antropologia, por exemplo. Novamente,

poderíamos no mínimo nos indagar: a escola contemporânea contém as

condições ideais para que esta instrução plural, alertada por Hook na década

de 1940, possa ser provocada? Se não, como sairá o estudante após 9 anos

de ensino básico? Preparado e munido da ciência necessária para protagonizar

os seus desejos humanos, sejam eles éticos ou não? Pode-se construir os

alicerces que o impulsionam à prática mais solidária e menos

hedonista/alienada?

Não importa a vocação de um indivíduo, a condição de sua atuação

depende das tendências sociais que ocasionam a aplicação da ciência, ou

seja, oferecem oportunidades de emprego, porém, o mais importante para

Hook (1957) se baseia no entendimento de que

[...] toda premissa da teoria democrática é que o eleitorado será capaz de tomar decisões racionais sobre o problema que tem adiante. Estes problemas são essencialmente sociais e econômicos. Seu caráter específico muda de ano em ano. Mas a sua forma genérica e a natureza dos problemas básicos, não” (p. 92, tradução nossa).

Entende-se que o corpo da sociedade é dotado de indivíduos sociais, que

zelam pela saúde de todo o organismo. A partir deste princípio, é necessária

uma participação inteligente na vida social e a escola, de forma exemplar,

deveria promover a inserção de todos os alunos neste plano de iniciação

crítica, de discernimento, de ações responsáveis. Com estes valores

116

experienciados, o aluno ampliará as suas iniciativas e responsabilidades,

vendo mais profundamente a si mesmo dentro de contextos coletivos e

complexos. Os educadores são mais contundentes e propositivos quando

trazem métodos que provocam a reação dos alunos (HOOK, 1957, p.140).

No capítulo IX – “o bom professor” da obra “A educação do homem

moderno”, Sidney Hook de imediato empresta um pensamento de Karl

Manheim de forma a dar o tom aos desígnios do professor moderno, que se

considera um professor da vida:

Procurará formar uma geração de jovens que una estabilidade emocional com um espírito flexível; mas, unicamente triunfará se for capaz de ver cada um dos problemas da nova geração contra o pano de fundo de um mundo cambiante (MANNHEIM apud HOOK, 1957, p.163, tradução nossa).

Pode-se dizer que a maior parte das pessoas escolarizadas se recorda de

algum professor que lhe ensinou; o fato reside nas memórias que se evocam e

constituem o professor como carismático, de uma imaginação provocativa, de

uma grandiosidade interpessoal diferenciada, de um cabedal de saberes entre

cruzantes que não se restringiam apenas à sua área de concentração. Este

profissional mobilizou e permeou as marcas mais edificantes da construção

cultural do estudante. No entanto, é possível evocar exemplos que

testemunhariam o exercício de um mau profissional da educação, contudo,

ficaremos nos matizes da boa prática. Provavelmente, ninguém colocaria em

destaque os métodos e técnicas com as quais este bom profissional exercia a

sua função didático-metodológica, mas sim, sua pessoalidade e o quão

humano demonstrava ser no ensino-aprendizagem. O ser humano quer se

identificar com o seu interlocutor, porque do contrário, as aversões dominariam

as pretensões tanto de quem quer ensinar quanto de quem quer aprender; por

fim, trocar. E, se houver possibilidade, o professor ou o aluno dão as costas um

ao outro se o mínimo respeito não for assistido, se não houver um terreno

generoso, paciente, dialógico e frutífero.

O professor faz e desfaz programas conforme as suas próprias

competências; ele manipula, reordena o saber. O bom professor, o

117

extraordinário, nunca será o bastante (numericamente falando) para adentrar

em todas as unidades escolares. Precisaríamos de milhares deste tipo

especial: a demanda não será suprida por inúmeras razões. No entanto, a

docência é uma arte como todas as outras, alguns professores não precisam

aprender as artes de ensinar assim como alguns cantores magníficos jamais

educaram a sua voz; o efeito contrário também é verdadeiro, alguns

professores são tão inaptos à docência tal qual um surdo de nascimento ao

estudar a música (HOOK, 1957, p.164).

Hook (1957, p.165) afirma que é um delito o fato de professores de

segunda categoria desempenharem a cátedra, por maiores que fossem as

suas outras habilidades em outros setores. Difícil não correlacionar com a

nossa realidade brasileira, uma vez que muitos professores efetivos são de

uma segunda linhagem que abarrota os cargos públicos tanto na educação

básica das prefeituras municipais quanto dos estados. Após o estágio

probatório (se não antes), a maior parte do professorado se acomoda e raras

vezes realiza um curso de aperfeiçoamento ou muito menos desenvolve

pesquisa de qualquer natureza didático-pedagógica.

Elucida a primeira função do professor: “[...] auxiliar os jovens a alcançar

a maturidade intelectual e emocional ensinando-lhes a manejar certas ideias e

ferramentas intelectuais. Isto exige ciência e familiaridade com a pesquisa

corrente [...]” (HOOK, 1957, p.166, tradução nossa). Como imaginarmos um

ensino sério, intencional, propositivo, humanizador, se o professor não realiza o

seu dever de casa? Não estaria ele faltando com a dignidade ao ousar

professar valores que não possui? Alguma carapuça serve ao suposto

educador que, inconsolavelmente, vende a verdade de um prestidigitador do

tipo mais mixuruca, semelhante àquele que vende gato por lebre e, como

sabemos, não tratamos aqui do cônscio ironista, que se distancia das quimeras

por possuir a coragem de se metamorfosear tal qual o camaleão dentro de

contextos locais, diversos e ordinários.

Como dissemos anteriormente, o bom professor aludido, sempre foi de

rara presença, é de se contar os bons profissionais que assumem a roupagem

118

do ofício e os seus inerentes desafios impregnados. Estaria o professor da

contemporaneidade lendo menos, pesquisando menos, se auto reformulando

menos, em poucas palavras: sabendo menos? Agora, pondo por ora o

semiprofissional ou o antiprofissional de lado e olhando honradamente ao

educador que anseia por se melhorar e, por sequência, contribuir com a vida

do seu semelhante, poderíamos interrogar: qual medida caberia ao Estado de

promover mais possibilidades efetivas aos professores da escola pública de se

aperfeiçoarem, de uma forma que os cursos não tenham o cunho raso,

esporádico, obsoleto? Quais são as motivações que estão presentes na

profissionalização deste educador que possui inúmeros antagonistas, como a

precarização erigida década após década da sua própria imagem profissional,

atrelada ao baixo salário, às péssimas condições materiais de trabalho e à falta

de perspectiva, de avanços?

Estas questões não são injustas quando intencionamos pulverizar a

injustiça, a subestimação, o ato algoz, provenientes das demandas que não

intencionam ofertar uma educação de qualidade e respeito ao ser humano em

estágio de formação, ou seja, pensando em um princípio de cadeia, o bom

professor, dentro das suas cercanias de atuação, é um dos elementos

propulsores de uma nova sociedade; tê-lo em maior quantidade disseminaria

em menor tempo mais seres interventores, imbuídos de ética e de um supremo

respeito à vida. Estaria o Estado tratando o solo para que frutos – talvez,

ironistas, ou não, poderiam caber outros adjetivos, atributos, sabores -

pudessem nascer/crescer vigorosos, vistosos, bons de serem provados? O que

está sendo depositado junto às sementes? Mais joio, menos trigo em um

contínuo fingir atrás da peneira?

A função do professor é uma das mais importantes da nossa cultura,

porém, não é valorizada em sua justa medida e, ironicamente, segundo Hook,

até mesmo pelos professores. O professor transmite capacidades,

conhecimentos essenciais e quando leva a sério o seu ofício, “[...] influi

profundamente na formação de hábitos e no descobrimento de uma filosofia de

vida”, conforme Hook (1957, p.168).

119

Agora, é claro que necessitamos de uma reforma educacional na qual o

governo ofereça condições mínimas de trabalho, incluindo melhorias salariais

pois, definitivamente, o professor competente e que está em ação, aspira por

um salário digno com o qual possa viver e honrar a sua família. Tudo isto

perpassa pela democratização da escola, suas adaptações estruturais, seus

novos fundamentos (HOOK, 1957, p.169).

No que concerne aos critérios de um bom professor, aborda a questão da

capacidade intelectual deste profissional, que não se refere apenas ao saber

ensinar conhecimentos derivados do seu assunto/tema, assim como estar

inteirado dos acontecimentos mais importantes dentro do seu campo: é ter

certa aptidão para as análises. Não é uma questão de ciência acumulada. É

saber lidar com diferentes tipos e planos de análises como abordar os

problemas, separar as ideias, relacionar os nossos hábitos idiomáticos com

nossas práticas intelectuais. Este professor diferenciado tende de saber sobre

outros campos, além da sua própria especialidade. Participa de discussões

com outros departamentos, pois sabe que nesta inter-relação, cada um se

relaciona com o objeto específico de uma maneira peculiar, o que no fim

enriquecerá o diálogo e as aproximações conceituais/práticas (HOOK, 1957,

p.170).

A boa vontade deste educador frente às perguntas embaraçosas, mas

não só isto, mais, a pré-disposição para estimular a contradição intelectual é

uma constante para este articulador de jogos intelectuais, que não cala o

espírito inquisitivo dos jovens (HOOK, 1957). Se, por ventura, os alunos não

participam da aula, faz-se imprescindível avaliar a própria postura, muito

embora, saibamos de condições adversas que escandalizam, alienam,

corrompem, desconstroem, desapropriam, iludem a história deste alunato, não

lhe permitindo a abertura natural ao conhecimento junto aos seus colegas e

professor, daí a resistência amarga, cruel, revoltada, que apenas o distancia de

novas revelações. A complexidade que envolve o ensino-aprendizagem na

120

sociedade contemporânea está para além de receitas que ofertem milagres

para o dia.

Ainda, concernente às qualidades do bom professor, anunciamos a

independência intelectual que é recebida de bom grado por este profissional.

Assomamos a paciência com os principiantes no exercício progressivo da

intelectualidade, que devem ser respeitados conforme o seu ritmo de

aprendizagem. A aptidão para planejar uma lição entra nas características de

um bom professor; ele não é mecânico ao introduzir os assuntos e conduz os

debates, sabe improvisar com legitimidade para despertar interesse nos alunos

ou ilustrar princípios, porém, jamais entra em sala de aula sem saber o que

falar, ensinar, produzir intelectualmente.

Podemos incluir em igual importância o conhecimento que ele possui dos

seres humanos, como cita Hook (1957, p.173-174) “um psicólogo prático”. Este

professor sabe das pessoas, estuda-as e conhece as suas diferenças, assim

consegue motivá-las em suas aulas; é necessário manter o frescor intelectual

para si e para os alunos, como por exemplo, “ fazer com que os alunos

cheguem ao resultado conhecido, com a impressão de ter sido eles que

descobriram.” Ou seja, o fingir visto no ironista se revela nos jogos

provocativos, fingir ignorância e conduzir o interlocutor a outro estado de

percepção como se o fizesse sozinho.

Quando o professor tratar de assuntos já gastos, mas com entusiasmo, e

conseguir atrair os desejos dos alunos e satisfazê-los, podemos compreender

que a chama da vontade de conhecimento estará instalada nos alunos. Hook

conclui: “Por último o bom professor resulta supérfluo e o bom estudante

aprende a arte da auto-educação” (HOOK, 1957, p.175).

Recorda que o professor pode amar os seus alunos na proporção

adequada, que ele chama de simpatia. Ao bom professor devem agradar-lhe as

pessoas, porém não é necessário lhe interessar por cada uma delas. A

121

simpatia é uma atitude positiva que produz a empatia, uma capacidade de

imaginar as necessidades pessoais dos outros.

Sua simpatia tem que se encaminhar primordialmente aos alunos como organismos intelectuais em desenvolvimento, à uma comunidade intelectual em desenvolvimento, convencido de que chegarão a ser pessoas cabais, aptas a agir de forma responsável. [...] Não pode cobrir todas as necessidades emocionais nem assumir as responsabilidades da família e da sociedade, da igreja e do juiz. [...] O professor que se converter em “um dos meninos”, que cultiva a popularidade, que fabrica lealdades pessoais em troca de um trato indulgente, tem errado em sua vocação. Deveria abandonar ao ensino para dedicar-se à política profissional (HOOK, 1957, p. 177, tradução nossa).

O nosso pragmático autor, de fato, finaliza a caracterização do bom

professor aludindo-o à posse da visão. Todo bom professor possui visão, pois

esta é a origem do seu entusiasmo intelectual, assim como do momento que se

retira diante da presença inevitável dos fracassos e reveses. Sem visão ele

seria um técnico modesto e limitado. A visão pode adotar uma doutrina, um

sonho, uma esperança, uma aspiração, um trabalho que progride, porém não

só de cunho pessoal e que tenha uma chamada imaginativa. Onde houver um

bom professor haverá amplas perspectivas de interesse nas sinuosidades de

seus assuntos, como Hook (1957) socraticamente vaticina:

Se o fogo prende nos estudantes não será para fazê-los crer em algum dogma, mas sim para alentá-los na busca da verdade e fazê-los mais sensíveis às visões que representam outros pontos de experiência (p.180, tradução nossa).

Anteriormente, pudemos refletir sobre as matrizes filosóficas socráticas

junto ao Kierkegaard, o efeito de iluminação que a ironia pode produzir na

reflexão/ação ética, racional, sensível e científica de cada ser humano,

reverberando em sua sociedade com perspectivas salutares, emancipatórias,

de teor coletivo. Ressaltando que a ambiência escolar, institucional, faz com

que o educador ironista adote a ironia enquanto postura pedagógica,

dialetizando ironicamente os conhecimentos, a sua metodologia, as estruturas

burocratas. Com Horty e Hook, compreendemos o arquétipo moderno do

educador moderno e seus domínios, assim como os princípios que regem o

122

caráter do ironista liberal em uma atuação ideal e, deliberadamente, encorpada

pela dúvida, pelo desassossego com a ampliação do seu próprio léxico. Agora,

debruçaremo-nos na vida e obra do autor espanhol, Imanol Aguirre, que,

contemporaneamente, vem propondo a concepção do educador ironista com

matizes ímpares e complementares.

3.2 Quem é, com o que se preocupa e onde atua Imanol Aguirre?

O autor espanhol Imanol Aguirre Arriaga nasceu em 1956, iniciou a sua

formação acadêmica pela Universidade de Valladolid em 1978, sendo

diplomado em “Professorado de EGB (Educación General Básica)”, hoje em

dia, esta nomenclatura passou a ser designada “Educación Primaria” na

Espanha, que atende as crianças entre seis e doze anos; licenciou-se em

Filosofia em 1989 pela “Universidade del País Vasco” e, posteriormente,

doutorou-se pela mesma instituição em 1993 pelo Departamento de Filosofia

dos Valores e Antropologia Social com a tese “Metáforas especiais do

imaginário vasco: uma exemplificação antropológica do espaço como trama

narrativa na arte moderna vasca”.

Traz em sua experiência acadêmica o cargo de professor titular de

Didática da Expressão Plástica e Diretor do Departamento de Psicologia e

Pedagogia da Universidade Pública de Navarra. Em 1993 adentrou à

Universidade como professor associado e em 1998, definitivamente, passa a

fazer parte do corpo docente, adquirindo nesta passagem de tempo, dois

doutorados. Conseguiu em seu processo formativo duas “becas” (bolsa de

estudo), uma concedida pelo Departamento de Educação, Universidades e

Investigação do Governo Vasco para a Formação de Pesquisadores (1990-

1993) e outra do Vicerrectorado de Investigação da Universidade do País

Vasco em um projeto orientado pelo Dr. Mikel Azurmendi, obtendo

reconhecimento posterior pelas pesquisas.

123

No ensino básico possui mais de 15 anos de atuação como educador do

ensino infantil (1979-1981), primário e secundário no bacharelado (1994-1996).

Esta empiria na educação básica possibilitou ao autor compreender a potência

e o impacto da cultura visual no ensino de artes desde os primeiros anos da

escolarização.

Aguirre, entre tantas atribuições vinculadas à academia, é também

assessor e professor dos programas de Formação de Professores do

Departamento de Educação do Governo de Navarra na área de Educação

Plástica e Visual desde 1993. Seus projetos de pesquisa, geralmente, são

financiados e se debruçam sob a compreensão da cultura visual e a identidade

da cultura espanhola como elementos referenciais a serem investigados;

citamos um projeto que exemplifica essas matrizes de pesquisa: “A construção

da identidade territorial nas ilustrações dos livros textuais do ensino primário e

secundário das comunidades da Cataluña, País Vasco e Navarra.”

Enquanto gestor, participou de inúmeras comissões da Universidade

Pública de Navarra que tratavam da Cultura, da Normalização Linguística da

própria Universidade. Publicou mais de 40 artigos em revistas especializadas,

além de participar de congressos onde apresenta suas pesquisas temáticas,

como: “Construção da imagem da mulher vasca através da arte e da ideologia”,

“A educação artística como reconstrução identitária do sujeito” e “Arte e

sentimento na crise do academicismo”.

Em um sentido de produção artística, Aguirre realiza exposições

individuais e coletivas nas quais suas esculturas podem ser apreciadas.

Trabalhou intensamente como escultor entre 1979 e 1986. É membro da Junta

do Patronato do Museu San Telmo de San Sebastián, onde atuou como

curador nas exposições sobre “Ibarrola 1948-1991” e “ARTE 80” ambas em

1991, possui também a experiência de passar como membro dos conselhos de

Redação das revistas BITARTE e HIK-HASI.

124

Outras linhas de pesquisa compõem o seu trabalho de campo: a

compreensão de uma nova educação estética que conceba a arte como uma

experiência pessoal e recortes conceituais desenvolvidos dentro da estética de

forma a trabalhar concretamente dentro da sala de aula, atendendo as etapas

da educação obrigatória. Poderíamos, ainda assim, tecer precisamente as

linhas de concentração do nosso autor: educação artística, cultura visual e

experiência estética em contextos formais e não formais de aprendizagem.

Imanol Aguirre orienta e co-orienta teses de doutorado na Universidade

Pública de Navarra e na Universidade de Granada. Destacamos duas teses

sob sua orientação: “Arte Contemporânea e Construção Identitária na

Educação Infantil” (2007) de María Reyes González Vida e “Concepções de

arte e interpretação no discurso educacional e práticas no Tate Britain em

Londres” (2009) de Amaia Arriaga Azkarate.

Publicou os livros “Estética da diferença: a arte vasca e o problema da

identidade” (1995) com Martínez Gorriarán; “Teorias e práticas na educação

artística: ensaio para uma revisão pragmatista da experiência estética na

educação” (2005) e coordenou “O acesso ao patrimônio cultural: desafios e

debates” (2007).

Pode-se observar alguma parcela da produção investigativa de Imanol

Aguirre, - já que não é o nosso foco abarcar toda a sua feitura acadêmica, mas

sim, o seu viés acerca do educador ironista -, sinalizando uma pesquisa

debruçada na compreensão das artes como cultura visual e suas

possibilidades na construção de novos territórios no ensino-aprendizagem,

entrelaçando-as às experiências de cada estudante. Ainda assim, o APÊNDICE

2 revela dezenas de produções que Aguirre vem publicando e contribuindo com

a comunidade científica, além de proporcionar reflexões na/da sociedade.

Poderemos no próximo subitem nos aproximar pormenorizadamente das

contribuições que Imanol Aguirre vem praticando e intuindo na arte-educação.

Notaremos que o seu entendimento artístico promove múltiplas interpretações

125

e ações para e da prática artística no período de escolarização do ensino

básico. As artes assumem para o nosso autor o potencial de emancipar o

mundo dos seus leitores, abrindo campo para que vasos e rizomas se

entrelacem num diálogo de estruturas móveis de conhecimentos; críticas

incisivas, porém solidárias e que ensejam melhorias coletivas e ironias

socráticas (postura pedagógica), de forma que o homem possa se transformar

paulatina e produtivamente em diversas gamas do saber.

3.3. Por uma mediação estética que desperte a reflexão

Imanol Aguirre (2009, p.157) em seu texto “Imaginando um futuro para a

Educação Artística” nos introduz ao conceito do educador ironista em

confluência aos paradigmas e desafios postos na nossa civilização

contemporânea. As teias da pós-modernidade são tão complexas que “fica

muito difícil fazer prognósticos confiáveis sobre o futuro e adotar medidas

efetivas, ante as questões, às quais enfrentamos em cada momento do

presente”, esclarece-nos acerca das mobilidades e aleatoriedades que

vivenciamos.

Encadeia os seus pensamentos justificando que quando se projeta uma

resposta educacional que atenda as contingências da sociedade, ela já estaria

desconfigurada à realidade, pois as mudanças contínuas fazem com que as

demandas assumam outros caracteres, portanto, estão e são de outra natureza

e necessitam, novamente, de uma nova abordagem. Exemplifica

metaforicamente “que não é fácil confeccionar uma roupa para quem não para

de se mexer e muda de forma e lugar constantemente” (p.157).

Segundo Aguirre (2009), as ideias básicas e os imaginários constituintes

das atuais propostas em educação artística precisam se renovar, por mais

“incerto” que possa ser o futuro, pois não atendem à utilidade do presente.

Amparado em Manuel Delgado, justifica as necessárias mudanças

educacionais por conta das inerentes transições que competem à formação

126

geográfica humana da sociedade: por sermos “praticantes do urbano”, de

configurações que não são sólidas e que se findam.

Emaranhadas a estas tramas, Aguirre aponta “situações caleidoscópicas”

nas quais as práticas sempre se reconfiguram; ao mesmo tempo, denuncia o

retorno de comportamentos racistas e segregadores dentro de certos setores.

Na multiplicidade de surgimentos e ressurgimentos de fenômenos, Aguirre

(p.158) conceitua os sujeitos como nódulos, “cruzamentos de territórios

autônomos, com seus próprios sistemas normativos, independentes entre si.”

Ao cotejar os aspectos disponíveis à construção identitária dos

estudantes na escola básica, Aguirre visualiza que as culturas juvenis e as

tramas simbólicas que as constituem não são padronizadas e homogeneizadas

como pretendem revelar os meios audiovisuais e a cultura da imagem.

Aprofunda a análise situando os jovens como partícipes de uma sociedade

“multiambiental ou multicontextual”, inserindo-os em contextos simbólicos, tais

quais o familiar, escolar, grupal e virtual. Nesta passagem entre os vários

símbolos que, aliás, a juventude perpassa muito bem, estão indissociáveis

muitos valores estéticos e éticos; justamente, neste trâmite de combinações de

imaginários e valores, o jovem construirá a si mesmo enquanto identidade. A

partir destes elementos estruturais, Aguirre reflete sobre os espaços da

experiência estética na vida dos aprendizes (AGUIRRE, 2009, p.160-161).

Evidencia “dois grandes epítomes da identidade fragmentada” na

sociedade contemporânea, com a qual os jovens lidam, que são a sala de aula

e o quarto. Constituído de

[...] dois espaços vitais, complementares e justapostos, mais arquetípicos dos imaginários juvenis e, cada um deles representando um compêndio de valores, atitudes, comportamentos e gostos diferentes do outro, mas fundamental na configuração das identidades juvenis (AGUIRRE, 2009, p.161).

O quarto é composto de emotividades e afetividades, há uma composição

visual que integra a família, preferências e diversões. Neste ambiente se

127

situam as experiências estéticas e os motivos que representam as práticas

culturais deste sujeito. Para os jovens, a alta cultura lhe é semelhante quando

uma arte ou artista se transforma em ícone da cultura de massa por um breve

tempo, ainda assim, jamais é apropriada verdadeiramente. Conforme o nosso

autor, as artes cultas se delimitam com os saberes escolares e/ou o mundo

adulto, portanto, “longe dos cantos mais intensos da sua experiência estética,

vital e pessoal” e, “como consequência lógica, essa percepção acarreta uma

refração imediata” (AGUIRRE, 2009, p.162).

A questão é surpreendentemente desvelada, pois temos uma proposição

de senso comum, onde “a conexão entre os materiais curriculares e os

repertórios estéticos juvenis é, completamente, deficitária ou nula”, conforme

Aguirre (p.162). Assim, obviamente, a assimilação da alta cultura e as artes

visuais deixam de ser uma experiência vital para os jovens, deixando de operar

possibilidades de uma identidade mais ampla, consciente, fortalecida e

transformadora. O fato é que, os estímulos visuais e musicais desempenham

influência sobre os imaginários dos jovens e não estão sendo, em sua maior

parte, articulados de forma atrativa dentro da cultura escolar. A história tem nos

demonstrado que a cultura midiática possui enorme proliferação e influência

acerca dos desejos e práticas juvenis.

Notoriamente, vê-se na contemporaneidade que a indústria cultural12

configura e oferece suporte à construção dos imaginários por meio dos “meios

eletrônicos, televisivos e gráficos de difusão massiva.” Há abundância, porém

não variedade. A “retroalimentação” de intensidade visual e iconicidade são,

atualmente, um substitutivo do conceito estético de beleza e, criou, segundo

Aguirre, o que podemos nomear de “filhos da imagem”: jovens aderentes à

cultura do espetáculo, promotora visual de sentimentos e sensações de grande

12 Ver Dialética do Esclarecimento (1947). Theodor Adorno e Max Horkheimer descrevem a

indústria cultural como uma ameaça à subjetividade; o eu é enfraquecido e sua construção é

estimulada ao comportamento de assimilação e adaptação das massas. A cultura

contemporânea é submetida à indústria cultural que, impossibilita experiências formativas

dialéticas, emancipatórias; “... determina toda a estrutura de sentido da vida cultural pela

racionalidade estratégica da produção econômica, que se inocula nos bens culturais enquanto

se convertem estritamente em mercadorias [...]” (ADORNO, 1995, p. 21).

128

intensidade emotiva; uma juventude ansiosa por uma narrativa oriunda dos

artefatos visuais e que, por sua vez, estão agregados por tons pitorescos,

grotescos, humorísticos e de horror (AGUIRRE, 2009, p.164).

As mudanças no ensino-aprendizagem de artes na escola pública, não se

daria no sentido de apenas “acrescentar mais arte” (cultura da rua) “ou

incorporar flertes com a cultura de massa” aos conteúdos dos “velhos

currículos”; tampouco, revalorizar a cultura popular a despeito da alta cultura.

Problematiza questionando se se fazem necessárias as mudanças de “status

nas relações de poder estabelecidas entre os artefatos estéticos e as práticas

culturais.” Para o autor, o objetivo de uma nova reformulação de aprendizagem

estética é

[...] entrelaçar os sujeitos em experiências educacionais, pela capacidade de propiciar transformações pessoais, de formar critério, de enriquecer a experiência estética, de ampliar o conhecimento de si mesmo e dos outros, pela possibilidade de gerar tramas com causas próprias e alheias ou de suscitar o ânimo compassivo. Em suma, a capacidade de contribuir para isso que tantas vezes se denomina como a construção identitária (AGUIRRE, 2009, p.166).

As artes canônicas estão sempre acompanhadas de um caráter elitista,

portanto, caracterizando-se como uma “coisa de outros, de pessoas mais

velhas”. Desta forma, Aguirre em suas análises compreende que os produtos,

os artefatos culturais da alta cultura são “afastados da experiência vital dos

jovens”. Sua proposta seria aproximar o estudante à experiência “com outras

formas culturais do seu próprio entorno, com as formas mais tradicionais da

cultura artística canônica e com a de outros entornos culturais distintos”

(p.167).

A escola tal qual se encontra subdividida, fragmentada em disciplinas e

padronizada acerca dos conhecimentos compelidos aos alunos, não é o

terreno mais propício à interação do currículo escolar e cultural. Aguirre (2009)

discute a possibilidade das mudanças relativas aos imaginários que estão por

129

trás da distribuição disciplinar dos saberes, das “noções básicas dos saberes

que os consolidam”.

Intenciona a experiência artística dentro do contexto escolar como um

relato aberto no qual não há “discursos conclusivos” com significados fixos; a

aproximação da obra de arte estaria mais para “um condensado de experiência

gerador de uma infinidade de interpretações” a um “texto cifrado”. Assim,

Aguirre socializa a ideia de que o caráter elitista da arte deve ser neutralizado;

a experiência estética pode vazar potencialmente para outras possibilidades

que permitam-na ser praticada, materializada, com toques singulares.

Outrossim, o experimento compreenderia o entendimento do papel histórico e

cultural da obra ou experiência, criando abertura para novos significados que

transformem as práticas e as realidades.

O cerne desta proposição residiria numa reescrita da própria história da

arte, além das sucessões organizadas de estilos e momentos estéticos, mas

sim, dentro de um bojo com “jogos metafóricos que aparecem e desaparecem

em função de contingências históricas e culturais” (AGUIRRE, 2009, p.169).

Embasado no pragmatista John Dewey13, compreende que as

experiências estéticas devem ser “experiências vividas” como “tramas de

crenças e desejos”. O educador interligaria com suas provocações,

experiências refinadas e intensas com fatos da vivência cotidiana. Adotando a

concepção de Dewey, Aguirre (2009) enquanto educador abarca todos os

artefatos, sejam eles das belas artes, das artes populares, da cultura de massa

incrustada na cultura visual, ou seja, vê solução para a educação artística

descontruindo as hegemonias que, por ventura, se concentram em apenas esta

ou aquela forma de se produzir, disseminar e experienciar arte.

13 O norte-americano John Dewey (1859-1952) foi filósofo e educador. Influenciou os

pragmatistas vindouros, entre eles, Richard Rorty. Suas obras abordavam a Filosofia da

Educação, a Ética, a Arte. Escreveu “Democracia e Educação” (1938) e “Arte como

experiência” (1934).

130

O interesse de uma nova educação artística se voltaria a contemplar as

inúmeras formas de experienciar a arte, em suas múltiplas facetas históricas e

contextuais, como também implementar a não menos importante história de

vida do estudante às experiências estéticas. Isto é ressignificar algo em

construção: a experiência estética, a identidade, os imaginários, a criticidade.

Aguirre atribui à Richard Rorty (1989) o espírito da atitude ironista,

propositando-o como uma “renovação do imaginário docente”. A intervenção

ironista poderia auxiliar no combate aos desafios educacionais

contemporâneos, reavaliando as próprias posturas do professorado e seu

campo de atuação.

Entendemos, primeiramente, que o ironista visto pelo viés socrático, fingi

ignorância. Quando tratamos do ironista liberal alçado por Richard Rorty, vimos

que ele reconhece a contingência da linguagem, portanto, seu léxico final

estará sempre aberto: sabe a sua incapacidade sobre as verdades postuladas

para si e para o mundo, inclusive, não acredita estar mais próximo da realidade

do que qualquer outro, então abre-se às novas configurações; duvida

constantemente, pois o que sabe não é o suficiente para pôr fim a alguma

dúvida; seu fundamento é compreender por meios variados o que se percebe

na/da realidade e a sua função dentro deste sistema de jogos, não se exclui da

dialogia, não se afasta, não evita participar, pretende assimilar, alterar,

problematizar, subverter, reconfigurar (AGUIRRE, 2009, p.172-173).

Conforme Aguirre (2009, p.174) visualiza, a redescrição dos imaginários

dos docentes na educação artística, correlacionada à atitude ironista,

potencializaria alguns aspectos fundamentais às novas formas do ensino-

aprendizagem em artes:

- A ironia é um instrumento com o qual se pretende saber e compreender;

exclui o léxico último de “conhecer a verdade”.

- A prática da dúvida e da descrença precisa estar alicerçada na

consciência.

131

- A dinâmica que envolve os jogos de linguagem intermedia as descrições

de mundo.

- A liberdade e a tensão dos antagônicos se tecem no jogo do ironista, em

seu método de ação.

- O ironista corrói o dogma, joga com as verdades dos léxicos, consegue

se manter distante de seu próprio discurso e do meio no qual ele se produz: é

um colocar-se em xeque para desvelar as falhas e falsas verdades.

- Sua ação é de cunho individual, pessoal, muito embora, ao contribuir

com os avanços dos léxicos alheios, difunde exponencialmente, reverbera para

as esferas públicas.

Aguirre pretende que a prática artística no contexto escolar seja

reveladora e útil, capaz de produzir alteridade e discernimento. Não credita às

artes o fardo de exclusiva emancipadora do homem, que isoladamente

propiciará progressos e alívios, mas que pode ser eficaz em sua dimensão,

incluindo o seu cultivo dentro da sala de aula. Partindo da ironia implícita ao

trabalho do artista ironista, discorre que

[...] não será difícil achar exemplos na história de artistas que, como ironistas deformadores, lançam um olhar corrosivo sobre uma realidade que não lhes agrada, propondo um jogo satírico ou burlesco de deformações, que façam mais evidente a futilidade ou a infâmia de dita realidade. Do mesmo modo que, praticando um ironismo revelador, muitos outros artistas projetaram seu olhar sobre a realidade, procurando novos léxicos nos quais se desenvolver e proporcionando, com isto, a incorporação, ao mundo da arte, de novos repertórios, estendendo os limites do estético e, por esse meio, propiciando certa abertura da sensibilidade estética. A luz do ironista nos permite descobrir, portanto, também na atitude dos artistas e na história da arte, sólidos fundamentos para transformar nosso imaginário docente. Observar o trabalho do artista, a partir de uma perspectiva ironista, permite-nos sugerir que os modos de operar da arte são muito adequados para uma educação artística do tipo pragmatista, baseada no jogo ironista [...] (AGUIRRE, 2009, p.175, grifo nosso).

Apoiado nas asseverações rortynianas, examina as qualidades inerentes

ao ironista, anteriormente vistas no subitem 3.1, contudo, revela,

destacadamente, que o ironista não é regido por critérios: ele submete os fatos

132

à analise num esforço de enxergar as camadas além da superfície de qualquer

objeto com que lide, e isto, metaforicamente, fazendo uso contínuo da dialética,

transitando de uma terminologia à outra, inesperadamente. Sua esperança está

depositada na ampliação do jargão alheio, no tecido que acolha em suas

tramas todas as relações contingentes, incluídos o pretérito e o porvir; estamos

falando aqui, de uma cadeia infinda de saberes na qual os seres ironistas vêm

beber, partilhar e produzir mais deste típico manancial de esclarecimentos de

toda ordem.

Enaltece a atitude ironista por sê-la competente ao situar-nos os artistas,

os escritores, filósofos e suas obras em seus respectivos pilares, como

elementos que se re-descrevem uns aos outros, se citam, se referem, se

baseiam, se constroem com o melhor do outro. Percebamos que, o educador

ironista serve a fomentar as conexões caleidoscópicas entre as obras, os

autores oriundos de diversos gêneros, entre os léxicos fervilhantes da

vizinhança convidativa. A desconfiança produz por meio do ironista, a

curiosidade; os léxicos, sobretudo, não são finais; os produtos e artefatos da

cultura visual não são um fim em si mesmo, - melhor crê-los como meios

eternos - incapazes de povoar todo o solo da realidade, portanto, jamais sabê-

la em sua inteireza (AGUIRRE, 2009, p. 176-177).

O pensamento ironista está vinculado à renovação do olhar, do

posicionamento ideológico, pois pretende ser fresco tal qual a vida em sua

cíclica mutação de valores, prerrogativas e morais. O ironista se revisiona

eticamente perante as necessidades de atuação e, em sala de aula,

comungará de leituras ocultas, particulares e díspares de cada aluno,

preparando o terreno para novos jogos que reflitam os desejos e reais

emergências dos discentes.

As obras de arte não possuem apenas um apelo racional, estão imanadas

e detentoras de um poder purgativo, e o ironista prevê em sua mediação

estética, quais proporções e âmbitos empregará na experiência estética

propositada. Há um cabedal informal e emotivo que precisa ser explorado

133

conscientemente pelo ironista. A prudência (razão) e o arrebatamento estético

estão sempre em trilhas confluentes, nas quais a elaboração da identidade

assimila novos léxicos, uns mais surpreendentes que outros, porém

emaranhados em um conjunto de saberes entrecruzados (AGUIRRE, 2009,

p.178).

Em Rorty (1989) havíamos identificado algumas premissas: o ironista

edifica a sua identidade, tornando o seu eu (self) melhor; o ironista se solidariza

(alteridade), pois amplia a sua noção dos “nós” e do “outro”, não permite a

humilhação alheia, pois sabe usar o seu léxico em defesa do oprimido. Destes

conceitos, Aguirre (2009) se apropria com o propósito de propor uma revisão

dos imaginários em educação artística, como uma alternativa e possível

melhora da sociedade como um todo. Como toda produção visual está repleta

de significados e referências, segundo o autor, talvez estas imagens “se

convertam em mediadoras de valores, crenças, desejos e fantasias” (p.179).

Aguirre pontua sobre a construção do eu simbólico, onde sentimentos e

experiências se assomam na jornada. Conectando aos contextos estéticos, o

aluno exerceria o ato de redescrever as obras e aliá-las à sua própria criação

biográfica, ou seja, apreenderia mais léxicos em seu eu, um eu em melhoria.

Estes nutrientes auxiliariam a configuração da identidade, dos imaginários

juvenis e, consequentemente, a transformação do seu entorno vital.

O exercício de redescrição de si e do outro vai criando o juízo do que é

bom, do que se pode e deve incorporar em si, baseando-se nas virtudes

lexicais de outrem. Nesta junção constitutiva, o educador ironista assessoraria

as redescrições, impactaria a razão e emoção, criaria um novo espaço

educativo, estético, de trocas solidárias, porém, como frisa Aguirre, seria

necessário “um tipo de docente em sintonia com tais métodos e propósitos”

(2009, p.180).

A partir da vivência espanhola, avalia que a proposta educacional para a

escola pública está minando o poder criativo dos docentes, em virtude de

134

interesses políticos e editoriais, modelando-os em “meros transmissores de

conhecimentos pré-fabricados e pré-digeridos, já prontos para uso” (p.180).

Complementa problematizando a prática docente num momento no qual a

sociedade se caracteriza pela informação e pelo conhecimento, no entanto, a

escola não possibilita o despertar de um mediador que saiba usar

intencionalmente os saberes, a ponto de contagiar os alunos em um sentido

emancipatório, em prol da formatação de uma sociedade ideal na qual as

oportunidades sejam ofertadas para todos.

Contudo, Aguirre (p.181) não mergulha nos meandros políticos do

sistema educacional e societário que cerceiam a prática docente; natural e

ironicamente, motiva o leitor à percepção, talvez, mais que óbvia, que a

essência pedagógica e os desdobramentos deste singular educador, seja

perpetrar as raízes para além das salas de aula, ainda assim, enfatiza que não

é do bojo dos educadores ironistas, a transmissão de verdades, o

desvelamento de significados, sejam artísticos ou de artefatos da cultura visual.

O nosso autor condensa as suas ideias no que tange à atuação do

educador contemporâneo, do bom professor anteriormente visto, apontando

ações intrínsecas que contribuam com o desenvolvimento dos alunos:

[...] convém começar a imaginar-nos como docentes pesquisadores, versáteis, capazes de trabalhar com a contingência e dispostos a nos deixarmos enredar por ela, pelas obras e pessoas que passem por ela. Nosso papel como docentes deveria ser o de enlaçadores, o de provocadores de interferências e relações, que têm o eixo da sua ação formativa na tomada de consciência sobre a grande interação cultural, que existe por detrás, ou no seio de cada artefato estético e, mais particularmente, das relações que se produzem entre estes artefatos, a cultura visual, os produtos estéticos canonizados e o devir de ideias, crenças e desejos dos seus criadores e usuários (AGUIRRE, 2009, p.181).

Esclarece que o educador ironista é o educador artístico mais edificante

para a escola presente e futura, perfilando-o como um conspirador contra as

narrativas fechadas nas interpretações e usos da cultura. Entende a arte como

contingência, representação da realidade, não como manifestação superior do

135

espírito humano. Concebe tanto a arte como os produtos da cultura como

elementos simbólicos de experiência. Propicia projetos identitários

entrelaçando com projetos alheios e impulsiona a destreza na identificação

imaginativa dos outros, para incrementar a sensibilidade e não permitir a

propagação da humilhação de si e do outro. A sua atitude compreensiva é vista

como um ato criativo, uma oportunidade de se exercitar a crítica cultural

(AGUIRRE, 2009, p. 182).

O educador artístico calcado nas estruturas ironistas de Rorty (1989),

conforme Aguirre, é um mediador estético aberto e propositor de novos léxicos,

um “tramador” “aberto às emergências”, um potencializador de territórios,

imaginários e identidades em construção. Se importa em destruir os

estereótipos que possam viver nas imagens estéticas dos alunos, com o fim de

oferecer mais possibilidades dentro da vastidão das artes visuais e suas

correlatas contingências. Intuindo a mudança dos objetivos formativos, atraindo

a aprendizagem à experiência dos jovens, Aguirre, proposita-nos uma reflexão

da reinvenção do ensino de artes perante um currículo engessado, porém, que

possa ser alterado de forma a corresponder às necessidades da sociedade;

fala-nos de um “currículo motivador” que faça os jovens se engajar nas artes

visuais, configurar com criticidade a sua identidade e “reconhecer as

identidades alheias” (p.183).

Aguirre demonstra profunda reflexão ao revelar que o ensino de artes por

si mesmo não é o bastante para um educador artístico; a intervenção docente

sempre tocará níveis vitais se estiver compromissada com o capital humano

em processo formativo. Enfatiza a necessidade de o ensino-aprendizagem

estar correlato à “formação de pessoas capazes, competentes ou bem

preparadas para os novos mundos que vamos habitar”, e deliberadamente

sentencia que “o fato de que os estudantes saibam mais ou menos de arte é

tão irrelevante, quanto o fato de que saibam muita álgebra, trigonometria ou

nomes de reis godos” (2009, p.184).

136

Neste contexto, percebemos que os limites de uma atuação irônica são

indeterminados, e se projetam a todos os estratos da educação pública

contemporânea, urdida e sistematizada verticalmente, até o ponto de um dia se

reconfigurar. Aguirre se atém ao ironismo como um libelo que rompa com a

estrutura e conjuntura vigentes na forma de se compreender e realizar,

especificamente, o ensino de artes, embora, vislumbre-o proveitosamente

como um referencial oportuno e incisivo para todos os profissionais da

educação. Pretende para a ironia uma imanência mutável e polifônica que afete

salutarmente, uma arapuca para regenerar a intenção humilhante, uma força

benéfica e tão somente humanizante que ceda chaves para infindos léxicos: a

ironia a serviço da dignidade humana.

Aguirre (2003) aponta no artigo intitulado “¿Estamos impartiendo la

formación inicial que precisan los enseñantes de hoy? El Practicum de maestro

como ámbito para el desarrollo de proyectos de trabajo en educación de las

artes visuales” a necessidade dos futuros educadores em educação artística de

romperem com a prática que mais se assemelha com a qual foi-lhes ofertada

pelos seus próprios educadores à prática contemporânea que se manifesta

pela ordem da “inovação educativa” (p. 33).

Com este olhar, pondera sobre os agravantes que estão imbricados no

ensino de artes, como a baixa valorização social da arte e da própria educação

artística, assim como a escassa flexibilidade da escola para adaptar-se às

mudanças que a escola contemporânea requer. Cita que a educação artística é

contemplada como uma disciplina menor nos planos educativos em qualquer

nível escolar, além de pouco importar às competências administrativas e

acadêmicas. Cotejando com a realidade brasileira, podemos atestar

similaridades, inclusive do ponto de vista da sociedade e suas esferas.

Reflete sobre o círculo vicioso no qual a formação de arte educadores

incide, revelando que há escassa formação de sensibilidade artística, de

presença curricular e profissional, além da já citada falta de valorização social.

Neste redemoinho dificilmente haveria uma composição de um professorado de

137

arte que possua conhecimentos e atitudes adequadas para ultrapassar os

limiares desta conjuntura; portanto, Aguirre, discute que a questão necessita,

impreterivelmente, do apoio conjunto de professores universitários e dos

graduandos em artes, na direção de uma aprendizagem universitária com

vistas à “sensibilidade artística, em definitivo” (AGUIRRE, 2003, p. 34).

Ao mesmo tempo, discute que a escassez de materiais está mais

correlata às matérias “menos ‘necessárias’ para a formação da cidadania” (p.

35) e aprofunda ao observar os raros exemplos nos quais há espaços

apropriados para o ensino das atividades artísticas. Aguirre sugere que não é

apenas a falta de condições econômicas que faz com que a escola reaja com

lentidão em função das mudanças educativas, assomados a isto, implicam

também os próprios desenhos curriculares que anseiam por preparar o alunato

às futuras provas de acesso às universidades públicas, ou cursos técnicos, que

são seletivos e excludentes, como se fossem a razão primordial da Educação;

ao invés de proporcionar, de fato, uma sólida educação no presente.

Possibilidade para a inovação e renovação fica apenas exposta a quem,

voluntária e solitariamente, consegue se servir de meios reais e laboriosos para

construir-se profissionalmente, de forma que a sua sensibilidade artística vá se

aperfeiçoando, tornando-se um profissional mais conhecedor, estratégico,

inquieto e distribuidor de suas excelências adquiridas a duras penas. Aguirre

desenvolve estas afirmativas, somando a elas o fato de os conteúdos artísticos

não estarem respondendo à realidade educativa atual, nem mesmo às culturas

visuais que a sociedade vivencia (AGUIRRE, 2003).

Propõe aos futuros educadores em artes que sejam aplicadores de

debates, “de confrontação interdisciplinar de informações, de análises, de

criação de opinião ou de crítica” (p. 36). Interessa-se que o professor não

pronuncie “inequívocas verdades sobre as teorias”; faz-se prudente a

imaginação e raciocínio dos alunos ante à aprendizagem, daí o exercício crítico

de toda construção de pensamentos e aferições. A imutabilidade não está

presente nos processos criativos, nas análises de produção estética, portanto,

138

a dúvida e o questionamento a partir do senso comum será material constante

à reflexão artística.

Em outro artigo nomeado “Estudio sobre jóvenes productores de cultura

visual: evidencias de la brecha entre la escuela y la juventude”, Aguirre (2013,

p. 525-526) proposita-nos o educador artístico como um sujeito que possui

cumplicidade com os códigos tecnológicos do audiovisual, transcendente do

âmbito de mero receptor para projetar-se em um produtor da imagem, com

formatos, suportes e temáticas diversas, criador de estímulos e referências

audiovisuais. Esta persona educativa é a que se afina com o ironista

mencionado em meados de 2009 quando da escrita de “Imaginando um futuro

para a educação artística”.

Sinaliza o esforço premente ao mediador estético, o ironista, que maneje

junto aos alunos as suas respectivas construções da subjetividade e da

identidade, uma vez que se produza a aprendizagem em diálogo com a vida

presente e as necessidades que surgem; o educador ironista sabe que a

cultura visual está imanente à contemporaneidade e, portanto, inerente aos

jovens, por isto, sua ação didática-metodológica vai implicar em conscientizar,

desnudar, questionar todos os artefatos prontos e idealizados da sociedade,

com o objetivo dos alunos compreenderem o que está em seu entorno, o que é

produzido pela cultura visual como simples objeto de consumo, inclusive. O

ironista intenciona uma aprendizagem que manipule as produções visuais de

forma crítica, contudo, respeitando o desvelamento natural e contínuo dos

alunos que, ao passar do tempo, aglutinam, descontroem e reengendram suas

próprias identidades como agentes protagonistas (AGUIRRE, 2013, p. 532).

No artigo “Hacia una nueva narrativa sobre los usos del arte en la escuela

infantil”, Aguirre (2012) indica que as obras de arte, assim como outras formas

da cultura visual, são oportunidades de enriquecimento empírico para as

pessoas. Propõe uma reflexão na qual os arte-educadores necessitam

desmistificar o gênio criador dos grandes artistas, a não romantizar e, portanto,

não distanciar os artistas prodigiosos de determinada condição histórica na

139

qual os alunos estejam inseridos; ou seja, contextualizar sobriamente a

realidade dos artistas e suas obras, pode ser muito mais proveitoso, educativo

e crível para possíveis conexões com a vida dos alunos, como por exemplo, a

exemplificação da vida de Van Gogh e suas lutas.

Enfatiza que o recurso educativo de cunho artístico possibilita um jogo no

qual os papéis identitários se constroem e se confluem: o cultural com o

psicológico, o social com o privado, e os signos coletivos com as paixões

pessoais. Este condensamento de componentes que se processam em

interação entre a vida e a arte é chamado de experiência estética, que se

traduz em exercícios contínuos que possibilitarão rupturas com o status quo:

[...] é importante ter em conta que a arte e a cultura visual, além de ser objetos a conhecer, são terrenos propícios para a geração de emergências surpreendentes e de rupturas emotivas que podem se tornar em rupturas simbólicas, estéticas, éticas, ideológicas e políticas” (AGUIRRE, 2012, p. 166, tradução nossa).

Neste sentido, Aguirre (2008) assevera que a interação das artes com o

contexto é algo vivo e está em evolução, pois o mediador estético alimentará

sentidos e valores, histórias e interpretações. O ensino da arte vai ao encontro

das experiências vitais, às reestruturações intelectuais, sensíveis, de noções e

decisões. Assim, considerando a constante transformação social, seria implícito

ao ensino de arte a promoção de projetos curriculares mais versáteis,

adaptáveis à transição cultural, desde os conteúdos aos modelos de

ensino/aprendizagem.

Em seu artigo “La educación artística en el centro de un proyecto

humanista para la escuela” visualiza que o futuro da educação artística pós-

moderna incide sobre contínuas mudanças dos métodos educativos que

buscam por uma maior eficácia formativa, mobilizando como objetivos

principais o desenvolvimento humanista, a formação de valores, a formação

pessoal e o desenvolvimento da sensibilidade (2005, p. 373).

140

Aguirre (2007) regozija-se com a atitude ironista, metáfora desenvolvida

por Rorty (1989), por ser uma das mais frutíferas e que, inclusive, capacitou

uma regeneração de pensamento para com os modelos metodológicos de

intervenção na arte-educação. Com novos jogos de linguagem e a prática da

redescrição, com a ampliação dos léxicos e a anulação da humilhação, com o

saber partilhado e a solidariedade sendo convidada às descobertas estéticas; o

ironista cultivará em sua seara cotidiana os elementos de extrapolação,

influenciará experiências vitais, reinventará seus modus operandis sem apego

a qualquer certeza que outrora apontou, coibirá socraticamente os alunos que

por ignorância e/ou desventura histórico-circunstancial veem na descortesia

uma ação comum e indiferente, semeará entre os jovens a inquietação

intelectual ansiosa pela ciência e pelo refinamento ético, pois deseja-se entre

os sábios, reais produções de igualdade de oportunidade, independentemente

de grupo étnico, classe social, sexo e condição de necessidade especial (se

não há nada que impeça o desempenho da atividade pleiteada), já que a

colheita mais esperada por estes homens e mulheres pós-modernos é de uma

sociedade isenta de demagogia e falsas promessas políticas.

No artigo “Diversidad cultural e educación artística” são enunciadas

premissas que estão imanentes à diversidade e ao processo de ensino artístico

na escola pública. A contemporaneidade indica às instituições que a

multiculturalidade e a multitemporalidade são aspectos que precisam ser

atendidos; trânsitos e fluxos migratórios, inclusive, revelam o teor híbrido com o

qual a escola lida em sua rotina, portanto, a construção da cidadania passa

pela capacidade de reconhecer, respeitar e interagir com o distinto. Em síntese,

observemos esta reflexão que traduz o diálogo cultural:

1. Como convivência entre culturas. Quer dizer, olhando com respeito para o exterior das fronteiras do que consideramos o nosso entorno cultural, reconhecendo a diferença entre "nós" e os "outros", negando a uniformidade como um valor e promovendo o respeito pelos sistemas de valores dos grupos humanos diferentes dos nossos. 2. Como convivência dentro da mesma cultura. Reconhecendo a existência de desigualdades dentro do nosso próprio nicho, rejeitando a marginalização e promovendo a inclusão. (AGUIRRE; JIMÉNEZ, 2009, p.32, tradução nossa).

141

O pluralismo cultural remodela os programas educacionais. Nesta esfera,

a educação artística, presentificada pelo ironista, promoveria a multiplicidade

de perspectivas e estratégias cognitivas; geraria atitudes críticas analisando

épocas, estilos, correntes estéticas, tomando por fundamento a equidade

(idem, p.34). A diversificação cultural que se trabalha em sala de aula permite a

incorporação de formas culturais antes excluídas, desta forma há um

reequilíbrio das forças culturais a despeito de apenas um saber hegemônico.

Podemos compreender que a prática e assimilação da diversidade cultural

objetiva por uma restauração social que nos conduza, verdadeiramente, à uma

educação democrática (p.42).

No tocante às culturas juvenis e os ambientes escolares, nota-se que o

imaginário estético do estudante da educação básica é regado por um

repertório visual configurado por meios eletrônicos, televisivos e gráficos de

difusão massiva. Nunca houve tamanha acessibilidade às imagens, aos

recursos icônicos e sonoros, no entanto, não vêm acompanhados de

variedade, assim, os jovens estão impregnados pela redundância:

característica da cultura de massa. Nesta retroalimentação que produz culturas

visuais e musicais é comum indeterminar qual referencia qual. Há

desconhecimento da parte dos jovens quanto a procedência dos parentescos

temáticos, formais e conceituais, da mesma forma, há uma inclinação pelo

pitoresco, grotesco, humorístico, por sentimentos e sensações de muita

intensidade emotiva, relativas à cultura do espetáculo, excetuando a sutileza ou

delicadeza de outras expressões. A experiência estética juvenil não requer a

beleza em si mesma como determinante; a narrativa densa e a intensidade

emotiva são mais comuns entre os produtos visuais que são arquetípicos para

a cultura juvenil (AGUIRRE, 2009, p. 47).

Com estes parâmetros culturais que a sociedade contemporânea produz

e consome, o ironista intervirá provocando uma interação entre as culturas,

incluindo as feituras da alta cultura e de cunho popular. A ideia é que não se

permita a permanência de uma única voz cultural no ambiente educativo-

142

formativo, pois a reprodução de saberes hegemônicos consolidaria a

impossibilidade de mudanças sociais.

Conforme analisamos, o educador ironista age desconfiando de todos os

discursos pressupostos e ativos no sistema educacional, pois sabe que a

cultura escolar é permeada de jogos léxicos, de poder e de barreiras

construídas para que se diferencie o status social, os códigos de conduta e de

submissão. O ironista buscará por meio da sua metodologia, da sua postura

pedagógica e irônica, ações que integrem e não excluam os já excluídos em

enes sentidos, trabalhará estoicamente procurando dignificar os estudantes,

para que não se sufoquem talentos singulares, criatividades infantis e juvenis.

143

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O educador ironista assim como o seu processo formativo, além das suas

ações pedagógicas e possibilidades de atuação, foram alvos da nossa

pesquisa, que intentou correlacionar os posicionamentos ideológicos e de

pesquisa dos autores apresentados aos trabalhos e estudos de Aguirre. Sem

dúvida, encontramos inúmeros aspectos que se assemelham às qualidades do

educador ironista quando o referenciamos ao lado dos arquétipos docentes

apresentados pelos autores. Pudemos notar que o bom educador está em

constante perspectiva de aprendizagem (formação contínua), é um

pesquisador incansável das suas práticas e das teorias que se ligam às

didáticas e metodologias; possui tenacidade e alteridade, além de ser

conhecedor profundo da sua disciplina e, imperiosamente, almeja a realização

de pontes entre os saberes disciplinares e de vida.

O ironista trabalhará inserido na história brasileira que avançou

introduzindo leis que oportunizaram o ensino-aprendizagem à sua população,

no entanto, não garantiram condições de aprendizagem adequadas e justas.

São necessários investimentos na formação contínua dos profissionais, de

forma que se preparem profunda e conscientemente dos desafios da sua

profissionalização; que haja uma remodelagem das estruturas arcaicas dos

prédios que mais se assemelham à prisões a locais de ensino-aprendizagem; a

escola não é convidativa da forma que se anuncia às classes populares, é um

organismo ideológico que inicia a população ao jogo penoso de punição e

submissão, propagando a ideia de que o esforço, o mérito, lhe serão o

bastante. Contudo, enfatiza-se: a escola ainda é passível do jogo de forças, de

resistência, foco de luta quando há um mínimo de consciência da divisão social

do trabalho, por exemplo; assomado ao contexto escolar, ainda temos o tema

do fracasso escolar que é complexo, multifacetado e multideterminado; o

currículo não responde sozinho as razões do fracasso, que pode estar nos

âmbitos estruturais e conjunturais.

144

É notório que o ambiente escolar está inculcado ideologicamente, há

seleção, competividade, classificação e distinção de classes. O fato, é que a

população da escola pública terá muita dificuldade ao competir com os alunos

da escola particular, pois as condições de aprendizagem não são equânimes,

muito embora há um crescente ingresso de alunos da escola pública nas

universidades públicas. Perante à realidade, quais seriam as reais eficiências

e/ou possibilidades de atuação do ironista, já que ele está envolto às pressões

burocráticas, de gestão, de tempo-espaço, de efeitos da inculcação há muito

presente na comunidade a qual serve? Projeta-se, neste caso, o que lhe

compete, dentro das macroestruturas seculares e conservadoras: atuará em

uma micro dimensão – o que poderia verdadeiramente ser, senão isto?,

liquidamente, se infiltrando com o seu melhor instrumento, a ironia, adotando

uma postura irônica que fustigue com maestria pedagógica, os discursos

hegemônicos, pré-idealizados e pseudo-equitativos.

O ironista (o mestre) deseja ofertar aos seus estudantes (seus discípulos),

a história real da humanidade, sem máscaras ilusórias, com o seu know-how

multicultural e agora sim, sob o ponto de vista da hegemonia, perfidamente. O

ironista é um ser pedagógico em prontidão, à espera dos momentos precisos e

preciosos que conseguiu engendrar, pré-disposto a colocar em cheque,

indubitavelmente, as intenções maquiadas do Estado que, inclusive,

contemporaneamente, tem se servido de um banquete composto de corrupção

e impunidade; o Estado em todas as suas autarquias tem servido muito pouco

aos interesses dos cidadãos, e com brutalidade, perfídia, paliativos, indiferença

e preconceitos, faz o convite à ceia. Contudo, há pessoas com honestos

propósitos, atuantes nas Câmaras e Senado? Para o nosso bem, que haja

ironistas, tal qual nos propusemos a estudar, em suas devidas proporções, nos

corredores legislativos, executivos e judiciários do nosso país.

O ironista, o arte-educador, intentará pedagogicamente intervir no

universo cultural dos alunos da periferia; a marginalização cultural não será

permitida em seus poucos minutos de aula, ele usará todos os ambientes

estruturais e digitais dentro e fora da escola, conforme for possível a si e ao

145

estudante; mesmo com o contínuo declínio da autonomia docente, garimpará a

sua metodologia ironista para atrair os seus discípulos tal qual Sócrates. Aqui

está uma questão que não nos foi possível tratar com maior acuidade: a filiação

pedagógica anunciada no capítulo dois, que em um futuro próximo

mergulharemos intuindo descortinar os elos entre o mestre e o discípulo, ou

seja, como o ironista (mestre) lançaria luz e com maior eficácia sobre o

processo de aprendizagem de seu aluno (discípulo).

Como apreciamos no desenvolvimento da dissertação, somos conduzidos

à compreensão de que o ironista incitará atitudes cooperativas e não

comparativas no processo de aprendizagem. A dialética do contexto escolar

permitirá com que atue empossado da sua confiança para desbravar novas

relações e consciências que podem se graduar política e qualitativamente. O

ironista é uma potente, radical, persuasiva e contumaz voz que brada: não ao

racismo, não à desumanização, não ao estigma! Ele mostrará a importância em

dissociar os conceitos que envolvem as aparências e os valores, pois

herdamos mais de trezentos anos de escravidão, e esta marca, explícita e

vergonhosamente, ainda reverbera em todos os níveis da nossa sociedade.

Consequentemente, vemos as implicações do escravagismo atreladas ao

modus vivendi dos alunos da periferia, o quão é laborioso adquirir o

conhecimento científico que pouco é assimilado diante às condições de ensino-

aprendizagem que o Estado gesta. O educador precisa saber do seu papel e

de seus objetivos ante este cenário truculento, malicioso e por quê não, de uma

arena viciosa? A consciência pode ser um fardo para muitos, mas só é um

alívio para quem realmente sabe.

Buscamos trazer um olhar sobre a perspectiva ironista dentro da

Educação, no entanto, há muito o que discutir acerca da atuação do educador

ironista no sistema econômico neoliberal, que muitas vezes se mascara

grotescamente atrás de mensagens e apelos que procuraram se assemelhar,

que buscam aderência juntos aos anseios populistas, a exemplo do Brasil,

contudo, mais que comprovadamente, não se interessa em provocar mudanças

radicais na sociedade e se alinha aos princípios eurocêntricos. O Brasil ainda

146

não se descobriu, não aprendeu que as suas lições de casa devem estar,

primeiramente, voltadas à valorização e à formação dos seus cidadãos e, ao

mesmo tempo, conectado sobriamente com as relações globais.

Concluindo, entendemos que a Escola desvela um jogo entre ideologia e

conhecimentos, as carências sociais são avistadas em seu interior e papéis

substitutivos são endereçados a ela sem ao menos capacitá-la para absorver

tamanha ordem de serviço; o que já bastaria para colocarmos em

questionamento a sua eficácia em ensinar e produzir ciência. Intentamos

problematizar a seara de trabalho na qual o educador ironista brasileiro está

inserido, e que busca brechas com a sua postura pedagógica no desenho da

escola contemporânea estratificada.

Em seu campo estético, agirá transformando o cotidiano de tônica

alienante, provocando-o às questões extraordinárias e prementes. Podemos

asseverar que o educador ironista propositará uma aula com Skholé: “...a alma

em festa que se abre para o saber”, conforme Lauand (2013, p.4). O nosso

ironista, em certa medida, fulguraria ao lado do perfil rebelde de educador

(SAES, 2011, p. 14), no entanto, expomos ao longo da dissertação a

possibilidade de sua intervenção em nossa atual conjuntura, ao contrário do

perfil psicossocial do rebelde que “... só mesmo numa situação de profunda

crise das instituições sociais e do modelo de sociedade” poderia existir. O

nosso educador ironista, atua em qualquer disposição/modalidade de palco,

modifica os elementos de cena, inclui novos adereços, problematiza o jogo

cênico, faz com que os atores compreendam a sua importância intransferível, a

sua protagonia; por fim, o ironista transbordará e irrigará as mentes com todo o

seu manancial científico-humanista.

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152

APÊNDICE 1

Histórico do arte-educador no Brasil

A história do ensino de artes no Brasil possui as suas idiossincrasias que

estão indissociáveis ao processo formativo da República. Neste subitem,

atentaremos aos aspectos correlatos da implantação do ensino artístico e as

ações políticas que mobilizaram as vias para o surgimento da atual disciplina

curricular chamada Artes.

Ana Mae Barbosa (1991) nos elucida sobre a organização da Academia

de Belas-Artes no estado do Rio de Janeiro, identificando inúmeros artistas de

origem francesa que pertenciam ao Instituto de França e à Academia de Belas

Artes que, curiosamente, sendo bonapartistas, aceitaram ao convite de vir ao

Brasil com o intuito também de se esquivar da perseguição antibonapartista.

Joachim Lebreton (1760-1819), foi o líder que agrupou artistas renomados

franceses para implantar e pôr em funcionamento a Escola Real de Ciências,

Artes e Ofícios no ano de 1816 que, após algumas mudanças de nome por

meio de designações, finalmente, posterior a Proclamação da República,

determinou-se o nome: Escola Nacional de Belas-Artes. Este grupo francês foi

chamado, posteriormente, de A Missão Francesa. Dom João VI, o rei, fugindo à

responsabilidade pública de tê-lo oficialmente convidado, não desejava ser

vinculado à condição política destes artistas, como cita Barbosa (1991, p.18).

A vinda da Missão Francesa foi mal digerida por muitos brasileiros e

portugueses, pois, além de Portugal não possuir uma Academia de Arte de alto

nível, como a erigida por Lebreton aqui no Brasil, “a colônia portuguesa”;

assoma-se a este fato a probabilidade factível dos artistas franceses da Missão

Francesa poderem (supostamente) participar do plano de fuga de Bonaparte

para a América! Por trás desta aparente jogada “estratégica” mui jocosa,

concebeu-se uma ojeriza preconceituosa (que, aliás, como dimensioná-la

enquanto reflexo em nossa contemporaneidade?) por parte da oposição

política, entre outros segmentos, a respeito do ensino da arte no Brasil.

153

A condição estética nacional também enfrentou um desconforto com a

vinda da Missão Francesa, pois ela propunha saberes neoclássicos e a nossa

tradição pregava o barroco-rococó, que já assumia propriedades brasileiras de

produção e concepção, portanto, o nosso barroco não era o barroco português.

Os nossos artistas populares eram vistos apenas como artesãos pelas

camadas superiores; estes especiais “artesãos” brasileiros assumiam uma

estética particular, fugindo dos moldes jesuíticos. O resultado foi a debandada

do povo em relação à Arte. Houve apenas interesse da burguesia, porque o

neoclassicismo injetado no Brasil propositava uma forma de ascensão na

sociedade, de entrar em uma classificação social privilegiada (Barbosa, 1991,

p. 20).

A possibilidade de uma construção autêntica, nacional, mestiça da arte foi

fustigada com a implementação forçada do neoclassicismo; a massa se afastou

da arte e aos seus olhos tornou-se algo de fora para dentro e não o contrário: a

arte foi compreendida desde então, como afirma Barbosa (1991, p. 20) “uma

atividade supérflua, um babado, um acessório da cultura”.

A Missão Francesa intencionava o ensino técnico, voltado para ofício

artístico e mecânico. Porém, a literatura era entendida como a alta cultura, e as

artes manuais sofreram “rebaixamento” frente à linguagem tão enraizada pelos

jesuítas em nossa cultura. Outras razões também cooperaram com a rejeição

de atividades manuais e técnicas, como a exploração do trabalho escravo e a

falta de atividades industriais; porém, quando as classes mais abastadas

utilizaram em suas horas vagas a criação em artes manuais, simbolicamente,

passou-se a aceitá-las numa proporção maior. Barbosa (1991, p. 27) em uma

análise cabal aponta que “o preconceito contra a atividade manual teve uma

raiz mais profunda, isto é, o preconceito contra o trabalho, gerado pelo hábito

português de viver de escravos.”

No tocante ao ensino na Academia de Belas-Artes em 1855, o seu

dirigente, Araujo Porto Alegre, pretendeu um elo entre a cultura de elite e a

cultura de massa propondo duas classes de alunos, o artesão e o artista, que

154

frequentavam as mesmas disciplinas básicas, porém, a formação do artista

possuía mais disciplinas e ligadas à teoria em contraponto às aplicações do

desenho e na prática mecânica aos artificies. O desenho figurado, “a

valorização da cópia fiel e a utilização de modelos europeus” (GUERRA,

PICOSQUE, MARTINS, 1998, p. 10) constituíam-se de cópia de estampas,

método oriundo da pedagogia neoclássica.

Com esta Reforma que pretendia instaurar, Araujo questionou-se: “O

novo sistema de educação artística ordenado pela Reforma preencherá os

seus fins ou será necessário um novo método?” (BARBOSA, 1991, p. 29).

Nós, contemporâneos, fazendo jus às reflexões realizadas no século XIX,

não nos caberia perguntar, se no século XXI, a educação artística está sendo

aplicada com eficácia? Se a metodologia aplicada pelo ensino público

responde à altura das exigências e demandas tanto dos alunos quanto dos

professores e seus métodos de ensino? Haveria espaço para repensar novas

estratégias metodológicas e didáticas para uma mediação provocativa e

condizente com os anseios e expectativas dos atores/discentes? Tais

questionamentos serão tratados ao longo desta exposição.

Apenas no fim do século XIX, com o fim tardio da escravidão no país

(1888) e o início da República (1889), modifica-se a perspectiva do uso das

Artes aplicadas à indústria e à técnica. A classe obreira, agora, alvejada com

outros fins, poderia apreender as Artes e contribuir com os avanços

econômicos do país.

O início do século XX é marcado por influências filosóficas, estéticas e

pedagógicas, por exemplo, que embasaram o movimento republicano de 1889.

Estas mesmas influências foram sentidas quanto aos objetivos do ensino da

Arte na escola primária e secundária; ressaltam-se o desenvolvimento das

habilidades técnicas e o domínio da racionalidade (FERRAZ e FUSARI, 1993,

155

p. 30). Estes embriões atingiram o grau máximo com o Modernismo a partir da

Semana de 2214.

O desenho era a linguagem artística que predominava no ensino artístico,

devido ao encontro com a indústria e o processo de cientifização da Arte. As

profissões liberais utilizavam o desenho como um recurso importante, daí a

necessidade do mesmo ser oferecido à escolarização como parte do currículo,

ainda que “o objetivo primordial do seu ensino fosse a preparação do povo para

o trabalho” (BARBOSA, 1991, p. 41).

Segundo Ferraz e Fusari (1993), nas primeiras décadas do século XX, o

ensino da arte estava condicionado à preparação técnica com fins trabalhistas,

de profissionalização; os desenhos nas escolas primárias e secundárias

estavam análogos ao universo do trabalho, caracterizados pela valorização dos

traçados, do contorno e a repetição dos modelos europeus. A cópia e o

desenho geométrico visavam a futura relação entre o estudante e sua vida

profissional, fosse dentro de fábricas ou com serviços artesanais.

Destacavam-se os programas de desenho natural, decorativo e

geométrico objetivando as representações convencionais de imagens.

Tecnicamente, tratavam das proporções, perspectiva, composição, assim como

dos esquemas de luz e sombra. Do ponto de vista metodológico, Ferraz e

Fusari (1993) indicam:

[ ] os professores, seguindo essa “pedagogia tradicional” (que permanece até hoje), encaminhavam os conteúdos através de atividades que seriam fixadas pela repetição e tinham por finalidade exercitar a visão, a mão, a inteligência, a memorização, o gosto e o senso moral. O ensino tradicional está interessado principalmente no produto do trabalho escolar e a relação professor e aluno mostra-se bem mais autoritária. Além disso, os conteúdos são considerados verdades absolutas (p. 30).

14 A Semana de Arte Moderna ocorreu entre os dias 11 a 17 de fevereiro em 1922 no Teatro

Municipal de São Paulo. Representou uma renovação de linguagem, na busca da

experimentação, na liberdade pela ruptura. Novas ideias e conceitos artísticos foram

propositados, de forma que o Modernismo se iniciou a partir deste marco histórico.

156

Como é interessante observar, certos matizes tradicionais estão

presentes no ensino da arte em pleno século XXI, sob o ponto de vista da

metodologia de ensino, intrinsecamente, corresponderá a determinada didática

no ensino-aprendizagem. Provavelmente, encontrar-se-á uma matriz de

mediação obsoleta que resiste aos novos encaminhamentos e demandas da

sociedade pós-moderna; assunto este, que será tratado no decorrer dos

capítulos.

Ainda correlacionada à Pedagogia Tradicional, a partir dos anos 1950,

junto com o Desenho no currículo escolar, são inseridas as matérias de

Música, Canto Orfeônico e Trabalhos Manuais, porém o caráter e a

metodologia do ensino-aprendizagem anterior permanecem como

“transmissão” de conteúdos reprodutivistas, desvinculados da realidade social

e das óbvias diferenças individuais dos alunos. O professor continua a inserir

hábitos de precisão, organização e limpeza nas aprendizagens (FERRAZ E

FUSARI, 1993).

Ferraz e Fusari (2010) descrevem a Pedagogia Tradicional nas aulas de

arte como idealista, pois crê que os indivíduos são “libertados” pelos

conhecimentos adquiridos e que, por esta razão, podem organizar a sociedade

em uma sociedade democrática. Seu ensino é mecanizado e sem relação com

o cotidiano; o professor professa “verdades” como se fossem as únicas.

De outra perspectiva, a “Pedagogia Nova”, conhecida por Movimento da

Escola Nova também, iniciou-se na Europa e Estados Unidos no século XIX,

porém, aqui no Brasil, chegou a partir de 1930 e sua disseminação se deu

entre 1950/1960 com as escolas experimentais. Conforme Ferraz e Fusari

(1993) elucidam:

Sua ênfase é a expressão, como um dado subjetivo e individual em todas as atividades, que passam dos aspectos intelectuais para os afetivos. A preocupação com o método, com o aluno, seus interesses, sua espontaneidade e o processo do trabalho caracterizam uma pedagogia essencialmente experimental, fundamentada na Psicologia e na Biologia. (p. 31).

157

Alguns autores influenciam, com a “Pedagogia Nova”, a atuação dos

arte-educadores brasileiros até hoje, tais como John Dewey, Viktor Lowenfeld e

Herbert Read, este último em especial, com a publicação do seu livro

Educação pela Arte contribuiu com a formação de um movimento artístico

importante, encabeçado por Augusto Rodrigues: a criação da “Escolinha de

Arte”, no Rio de Janeiro em 1948. A aprendizagem artística se dava no fazer,

na possibilidade de entender a criança com um ser criativo, a quem deveria

receber todos os estímulos e oportunidades para a sua expressão artística; o

fato de “aprender fazendo”, capacitaria o potencial das crianças em saber

coletivamente trabalhar em sociedade, em cooperação.

A Pedagogia Nova também é conhecida por movimento Escolanovismo

ou movimento da Escola Nova; Ferraz e Fusari (2010) posicionam-na

opostamente à educação tradicional, pois estaria a um passo de organizar a

sociedade com mais justiça. Os professores com esta tendência, romperiam

com as “cópias” de modelos e de ambientes, valorizando os aspectos

psicológicos do aluno, tais como: estruturação de experiências individuais de

percepção, de integração (psicologia cognitiva); expressão, revelação de

emoções, de insights, de desejos (estética de orientação expressiva, apoiada

na Psicanálise).

Cronologicamente, chegamos ao período conhecido como o da

“Pedagogia Tecnicista”. Iniciou-se na segunda metade do século XX e,

especificamente no Brasil, a partir de 1960/1970. Nesta “Pedagogia”, tanto o

professor quanto o aluno estão numa posição secundária, pois, “o elemento

principal é o sistema técnico de organização da aula e do curso”, segundo

Ferraz e Fusari (1993, p. 32).

A Pedagogia Nova assim como a Pedagogia Tecnicista estão ainda

presentes em sala de aula, como destacam Ferraz e Fusari (1993), pois o

ensino da educação artística reflete o período histórico e, portanto, está

coadunado às transições sócio-políticas, às influências externas, às demandas

históricas.

158

Os professores operavam mecanicamente no sentido de planejar os

planos de aula com objetivos que eram operacionalizados minuciosamente. O

uso irrestrito de recursos tecnológicos e audiovisuais se remetiam à

“modernização” do ensino, ao passo que, o “saber construir” é reduzido nas

aprendizagens apenas aos aspectos técnicos e à utilização de materiais

diversificados como a sucata, por exemplo, e o “saber exprimir-se” com

espontaneidade, caracteriza o descompromisso pedagógico com os saberes

das outras linguagens artísticas.

A falta de base teórica fez com que os professores utilizassem atividades

de livros didáticos que nas décadas de 1970 e 1980, vendiam-se em grandes

quantidades, mesmo que não representassem, necessariamente, qualidade e

aprimoramento dos conceitos artísticos (FERRAZ e FUSARI, 1993, p. 33).

Assim como a falta de condições de trabalho desses profissionais,

formação insuficiente, a insegurança, a falta de tempo para explicitar, discutir e

praticar um planejamento mais sofisticado para o ensino de arte, demonstraram

a fragilidade na qual este educador foi concebido (FERRAZ e FUSARI, 2001, p.

42).

A tendência tecnicista nasce em um momento de apelo, pois a educação

não conseguia preparar os profissionais, tanto os de nível médio quanto de

superior, para atender a expansão tecnológica no mundo. Esta tendência

pretendeu preparar os indivíduos “competentes e produtivos” para o mercado

de trabalho. Toda a lógica organizacional como documentos, planos de curso e

aulas, visa:

[ ] estabelecer mudanças nos comportamentos dos alunos que, ao saírem do curso, devem corresponder aos objetivos preestabelecidos pelo professor, em sintonia com os interesses da sociedade industrial (FERRAZ e FUSARI, 2001, p. 41).

Entre 1961/1964 surge um trabalho progressista, a “Pedagogia

Libertadora”, que promove o diálogo entre o educador-educando, a consciência

crítica dos envolvidos; a sua maior parte está relacionada a pessoas que foram

alfabetizadas já adultas, visando libertá-las da opressão da ignorância e da

159

opressão. “Alunos e professores dialogam em condições de igualdade,

desafiados por situações-problemas que devem compreender e solucionar”,

conforme Ferraz e Fusari (2001, p.44). Os movimentos populares, assim como

a educação não-formal foram base para este trabalho realizado pelo educador

Paulo Freire.

A “Pedagogia Libertadora”, a tradicional, a nova e a tecnicista foram

analisadas e debatidas com o interesse de captar os seus pontos positivos

para que houvesse uma pedagogia mais realista e crítica. Com este propósito

de possibilitar acesso aos saberes artísticos-históricos e à promoção da

autonomia e do protagonismo dos alunos, Saviani (1983), indicará que a

escola, nestes moldes de emancipação:

[...] estará interessada em métodos de ensino eficazes. Tais métodos se situarão para além dos métodos tradicionais e novos, superando por incorporação as contribuições de uns de outros. Portanto, serão métodos que estimularão a atividade e iniciativa dos alunos, sem abrir mão, porém, da iniciativa do professor; favorecerão o diálogo dos alunos entre si e com o professor, mas sem deixar valorizar o diálogo com a cultura acumulada historicamente; levarão em conta o interesse dos alunos, os ritmos de aprendizagem e o desenvolvimento psicológico, mas sem perder de vista a sistematização lógica dos conhecimentos, sua ordenação e gradação para efeitos do processo de transmissão-assimilação dos conteúdos cognitivos. Não se deve pensar, porém, que os métodos acima indicados terão um caráter eclético, isto é, constituirão uma somatória dos métodos tradicionais e novos. Não. Os métodos tradicionais assim como os novos implicam uma autonomização da pedagogia em relação à sociedade. Os métodos que preconizo mantêm continuamente presente a vinculação entre educação e sociedade. Enquanto no primeiro caso professor e alunos são sempre considerados em termos individuais, no segundo caso, professor e alunos são tomados como agentes sociais (SAVIANI, 1983, p. 72-73).

Nesta tendência Realista-Progressista, há a Pedagogia Libertária que, por

sua vez, importa-se com as “experiências de auto-gestão, não-diretividade e

autonomia vivenciada por alunos e seus professores”, segundo Ferraz e Fusari

(2001, p. 45). Acreditavam na independência teórica e metodológica, livres de

amarras sociais.

160

Outra vertente pedagógica se deu nos anos 1980 com a Pedagogia

Sociopolítica, que precisou superar o posicionamento unilateral de que a escola

é apenas reprodutora de desigualdades sociais. Por fim, compreendeu-se que

a educação escolar pública competente precisa ser efetivada como um ato

público, pois a escola é direito de todos; além do entendimento de que a

educação escolar sofre determinantes sociais, históricos, porém, é capaz de

influenciá-los, de intervir na transformação social.

Por fim, a tendência histórico-crítica ou crítico-social dos conteúdos não

era otimista como os “idealistas-liberais”, nem tão pessimista como os “críticos-

reprodutivistas”; portanto, nesta tendência “realista-crítica”, o educador atuará

fornecendo o instrumental necessário para que o aluno exerça uma cidadania

consciente, crítica e participante (FERRAZ e FUSARI, 2001, p. 46).

Em 1971 a Educação Artística foi incluída no currículo escolar pela Lei

5692, com o intuito de melhorar o ensino de Arte na educação escolar e,

naturalmente, de oficializá-la. O movimento da Arte-Educação se dá no final da

década de 1970 em meio a um quadro emergencial drástico da

profissionalização em Artes, pois os professores desinformados estavam sendo

preparados por cursos de curta duração, em detrimento de uma formação

aprofundada, o que acabou por tornar-se um problema já que não poderiam

exercer a sua profissão no ensino fundamental e médio, conforme esclarece

Ferraz e Fusari (2001, p. 20).

A Arte-Educação baseada na Escola Nova e na Educação Através da

Arte (difundida pelo britânico Herbert Read na década de 1940) propõe uma

ação educativa com caracteres de criação ativa centrada nos alunos. O

movimento da Arte-Educação contribuiu para que a presença da Arte na Lei de

Diretrizes e Bases da Educação fosse efetivada15 (FERRAZ e FUSARI, 2001).

15 A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9394, de 20 de dezembro de 1996,

estabelece a obrigatoriedade da arte na educação básica (educação infantil, ensino

fundamental e ensino médio): Cap. II, Art. 26, 2º parágrafo – “O ensino da arte constituirá

componente curricular obrigatório, nos diversos níveis da educação básica, de forma a

promover o desenvolvimento cultural dos alunos.”

161

Enquanto a Educação Artística mostrava-se apenas interessada quanto à

expressividade individual, com técnicas, e insuficiente no aprofundamento do

conhecimento da arte, a Arte-Educação apresentava a busca de novas

metodologias de ensino e aprendizagem de arte nas escolas (FERRAZ e

FUSARI, 2001).

Ana Mae Barbosa, no início dos anos 1990, desenvolveu e pesquisou em

São Paulo, no Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC-USP) e no sul do

país, pela Fundação Iochpe e Universidade Federal do Rio Grande do Sul

(UFRGS) uma proposta teórico-metodológica conhecida por “Metodologia

Triangular”, que visa interferir qualitativamente no processo e melhoria do

ensino de arte. Este trabalho pedagógico integra três abordagens do

conhecimento da arte: o “fazer artístico”, a “análise de obras artísticas” e a

“história da arte”.16 A sua metodologia possui grande aderência pelos

profissionais da Arte-Educação, inclusive, é adotada pela Rede Estadual de

Ensino de São Paulo.

O Currículo do Estado de São Paulo propõe um pensamento curricular

estruturado numa cartografia que inclui as aprendizagens em territórios que se

conectam, conjuntamente os conceitos e conteúdos que gerarão processos

educativos (Currículo do Estado de São Paulo, 2010, p. 143). No sentido de

parcerias com instituições culturais, cursos, materiais educativos, a Cenp

(Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas) da SEESP tem ofertado

continuamente ao professor, para que a sua profissionalização seja burilada.

Pelo viés pedagógico, o Currículo do Estado de São Paulo proposita por

meio do arte-educador, o acesso dos alunos aos processos de criação que

envolve uma operação poética, pesquisa da materialidade e procedimentos

que ofereçam forma-conteúdo à composição artística. Nesta mediação cultural

cabe ao professor articular as gamas que se entrelaçam, desenvolvendo

16 O projeto D.B.A.E. (Disciplined Based Art Education), incentivado pela Getty Foundation,

embasa as fundamentações da “Metodologia Triangular”. Este projeto prevê quatro momentos

educativos: ”fazer artístico”, “história da arte”, “estética” e “crítica da arte”.

162

saberes estéticos e culturais, o sentimento de pertinência, e a aproximação dos

alunos com a arte e suas múltiplas linguagens artísticas.

No tocante à metodologia de ensino-aprendizagem dos conteúdos

básicos, direcionados pela Proposta Curricular do Estado de São Paulo de Arte

(2008), e o Currículo do Estado de São Paulo: linguagens, códigos e suas

tecnologias (2010), encontram-se três eixos metodológicos:

Criação/produção em arte - o fazer artístico

Fruição estética - apreciação significativa da arte e do universo a

ela relacionado, leitura, crítica.

Reflexão - a arte como produto da história e da multiplicidade de

culturas.

A junção filosófica da proposta triangular com a concepção dos territórios

de Arte e Cultura, oportunizam mergulhos em conceitos, conteúdos e

experiências estéticas nas linguagens da Arte (Currículo do Estado de São

Paulo, 2010, p. 153).

A aprendizagem ocorre com o subsídio do Caderno do Professor e o

Caderno do Aluno, de forma a contemplar os processos educativos em Arte da

5ª série/6ºano do Ensino Fundamental à 3ª série/3º ano do Ensino Médio. Em

cada linguagem artística (teatro, música, dança e artes visuais) os conteúdos e

habilidades vão se entrecruzando por bimestre. O professor pode oferecer

destaque à linguagem artística da sua formação, procurando atender durante o

ano letivo as outras linguagens.

Distingue-se a Proposta Triangular de Ana Mae Barbosa acerca da

capacidade metodológica, da inteireza da proposição. Sua contribuição ao

ensino-aprendizagem é de suma relevância no cenário nacional e internacional.

Ao mesmo tempo, quando analisamos de um ponto de vista socioeconômico a

condição educacional contemporânea, sabemos dos fragmentos, das

incongruências, dos fracassos que a escola enfrenta, e não basta uma

163

metodologia certeira para que se dissolvam os problemas inerentes ao

aparelho ideológico representado pela escola contemporânea.

164

APÊNDICE 2

Principais produções de Imanol Aguirre

Aguirre representou como pesquisador responsável muitos projetos que

se delimitam na área de sua investigação, destacando-se “O muro: um projeto

educativo” e “Do we live in Public? Debate aberto sobre como vivemos as

redes sociais” pela Fundação Centro de Arte Contemporânea de Huarte no ano

de 2011. Dentro destes limites temáticos encontram-se “Jovens produtores de

cultura visual: competências e saberes artísticos na educação secundária”

(2012) movido pelo Ministério de Ciência e Inovação; “Relatório sobre a

situação e as práticas de interesse da educação artística na Iberoamérica”

(2010) pela Organização dos Estados Iberoamericanos; “Isto não é uma

exposição” (2009) pelo Centro Huarte de Arte Contemporânea e Fundação

Ordoñez; relatório “O valor do trabalho educativo com as artes para o

desenvolvimento humano: a criatividade e a formação em valores” (2008) pelo

Grupo Xabide S.L.; “Desenho e validação de um documento conceitual, técnico

e metodológico, que contenha as orientações pedagógicas em Educação

Artística para a Educação básica e média” (2008) pelo Ministério da Educação

Nacional da Colômbia; “A formação em artes visuais nas instituições sociais e

culturais da cidade de Montevideo” (2006) pelo Ministério de Assuntos

Exteriores e Cooperação; “Estética das identidades modernas. Narrativa,

poética e retórica do eu” (1998) pela Universidade do País Vasco e “Metáforas

e espaços qualitativos da imaginação cultural vasca: o caso nacionalista”

(1992) pela Universidade do País Vasco.

Contribuiu com capítulos em dezenas de livros em seu próprio país, assim

como no estrangeiro. Entre as obras brasileiras, destacam-se “Cultura das

Imagens: desafios para a arte e para a educação” (2012) com o capítulo

“Experiência estética e transmissão dos saberes associados ao graffiti juvenil”;

“Educação da Cultura Visual: conceitos e contextos” (2011) com o capítulo

“Cultura visual, política da estética e educação emancipadora”; “Educação da

Cultura Visual: narrativas de ensino e pesquisa” com o texto “Imaginando um

futuro para a educação artística” (2009).

165

Na Europa e em Montevidéu, Aguirre, participou dos livros “Infância,

mercado e educação artística” (2011) com o capítulo “O mercado midiático e a

configuração dos critérios e experiências estéticas dos adolescentes”;

“Investigar com os jovens: questões temáticas, éticas, metodológicas e

educaticas” (2011) com o texto “Efeitos da reflexão em uma prova piloto sobre

uma investigação com jovens”; “Educação artística, cultura e cidadania” (2009)

com os capítulos “Diversidade cultural e educação artística” e “Culturas juvenis

e ambientes escolares”; “O acesso ao patrimônio: desafios e debates” (2008)

com o texto “Novas ideias de arte e cultura para novas perspectivas na difusão

do patrimônio”; “A educação artística pré-universitária” (2005) com o capítulo

“Educar desde e para a experiência estética: a educação artística e a formação

dos sujeitos” em Montevidéu; “Os valores da arte de ensinar” (2002) com o

texto “Estimar a experiência para apalpar o futuro da educação artística” e

“Educação artística e arte infantil” (2000) com o capítulo “Estereótipo,

integração cultural e criatividade”.

Por meio das publicações dos seus artigos percebe-se uma coerente e

contínua pesquisa em sua área de concentração. Destacamos “The role of the

learner in the construction of meaning at Tate Britain17” e “Concepts of art and

interpretation with educators from Tate Britain18” ambos de 2013; “Por uma

nova narrativa sobre os usos da arte na escola infantil” (2012); “Um aparato

metodológico para analisar as ideias de arte e interpretação que subjazem em

discursos e práticas educativas de museus de arte” (2010); “As artes na trama

da cultura: fundamentos para renovar a educação artística” (2008); “Beyond the

understanding of visual culture: a pragmatist approach to Aesthetic Education19”

(2004); “Estamos dando a formação inicial que precisam os estudantes de

hoje? O estágio do professor como campo para o desenvolvimento de projetos

de trabalho na educação das artes visuais” (2003); “A escola vasca de

escultura e a construção do sujeito vasco: a arte na configuração das

17 “O papel do estudante na construção de significado na Tate Britain” (tradução nossa).

18 “Conceitos de arte e interpretação com educadores da Tate Britain” (tradução nossa).

19 “Além do entendimento da cultura visual: uma abordagem pragmatista para a Educação

Estética” (tradução nossa).

166

identidades coletivas” (1997); “A arte como sistema cultural e suas implicações

na educação artística” (1997); “A caixa e a casa: de Oteiza e Chillida como

escultores do espaço” (1994); “Presença da antropologia no nascimento de

uma estética vasca: Telesforo de Arazandi” (1993).