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ISSN 1646-5180

www.facfil.ucp.pt/pessoas-e-sintomas

Psicologia e Psiquiatria

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PSICOLOGIA - PSIQUIATRIA - SAÚDE - FAMÍLIA - CONHECIMENTO

PESSOAS E SINTOMAS

Periodicidade: 3 números por anoN.° 2 - Julho de 2007ISSN: 1646-5180

DirectorAlfredo Dinis

Assessor EditorialJoão Carlos Major

Conselho de RedacçãoAlfredo DinisFabrizia RagusoJosé Manuel LopesMiguel Dias CostaZeferino Venade Ribeiro

Conselho CientíficoAlfredo Dinis (Universidade Católica Portuguesa)Angela Azevedo (Universidade Católica Portuguesa)Carlos Gonçalves (Universidade do Porto)Clara Costa Oliveira (Universidade do Minho)Constança Machado (Universidade de Évora)Fabrizia Raguso (Universidade Católica Portuguesa)Fátima Lobo (Universidade Católica Portuguesa)José Manuel Lopes (Universidade Católica Portuguesa)Maria Rita Mendes Leal (Universidade de Lisboa)Miguel Dias Costa (Universidade Católica Portuguesa)

DesignJoão Carlos MajorFotografia da capa: cortesia de morgueFile

ImpressãoDiário do Minho

EdiçãoEdição conjunta do Curso de Psicologia da Faculdade deFilosofia de Braga - Universidade Católica Portuguesa e daCasa de Saúde de S. João de Deus, Hospital Psiquiátricoda Província Portuguesa da Ordem Hospitaleira de S. Joãode Deus.

ContactosRevista "Pessoas e Sintomas"Faculdade de Filosofia de BragaUniversidade Católica PortuguesaCentro Regional de BragaPraça da Faculdade de Filosofia, n.° 14710-297 BRAGATel.: 253 201 200 Fax: 253 201 210

E-mail: [email protected]

Internet: www.facfil.ucp.pt/pessoas-e-sintomas

03 EditorialZeferino Ribeiro

06 A "Pessoas e Sintomas" na TSF

10 A Representação Mentalcomo Vivência do SujeitoMaria Rita Mendes Leal

16 Psicanálise e Teoria Mimética:Freud e GirardMiguel Dias Costa

25 Por um Novo ParadigmaJoão Carlos Major

26 l Congresso Pessoas e Sintomas

28 Desde Ia Formación a IaPrevención e Intervención enSalud Mental: Una PerspectivaRelacional SistémicaEmílio Ricci

34 A Relação Terapêutica naPsicologia RelacionalFabrizia Raguso

38 Fenomenologia (Psicopatologia)e IntersubjectividadeZeferino Ribeiro

42 Re-habilitar em Saúde MentalMaria Beatriz Santos

45 Psicologia vs. Psiquiatria:Que Caminhos a Percorrer?Cláudia Sousa e Ana Boaventura

47 O Futuro da Psicologia...Manuel Curado

Número avulso: 8 eurosAssinatura (3 números por ano):

- Alunos ou antigos Alunos da UCP: 15 euros- Normal: 20 euros- Instituições: 25 euros- Estrangeiro: 30 euros

O pagamento poderá ser feito por cheque ou vale postal emnome de: "ALETHEIA - Associação Científica e Cultural".Morada: Faculdade de Filosofia de Braga, UniversidadeCatólica Portuguesa, Praça da Faculdade de Filosofia, n.° 14710-297 BRAGA.

Advertência: as ideias e opiniõesemitidas nos artigos e outros trabalhosconstantes desta revista são daexclusiva responsabilidade dos seusautores, não reflectindo, necessaria-mente, as opiniões dos editores ou atendência editorial desta publicação.

O Futuro daPsicologia... Manuel Curado

manucnrado@gmail. com

Qual é o futuro da Psicologia, cinquenta anos depoisdas Ciências Cognitivas? Esta questão parece complica-da mas, de facto, tem uma estrutura simples. Trata-se demais uma manifestação do velho conflito entre os Anti-gos e os Modernos. Os Antigos são aqui representadospela Psicologia que tem como pais fundadores os DoisGuilhermes, isto é, Wilhelm Wundt e William James. OsModernos são aqui representados pelas Ciências Cogni-tivas que celebram por estes dias os seus cinquenta anos.Pouco mais de meio século aparta estas duas ciências.Parece ser, pois, um exemplo de conflito de gerações emque os mais novos procuram um lugar ao sol que os maisvelhos tardam em conceder. Esse meio século correspondeaproximadamente ao tempo de vida do Behaviorismo.Os novos desta história parecem ter como agenda retirara pedra no sapato que foi o Behaviorismo durante tantotempo. Por um lado, este movimento era uma boa ciênciadevido ao seu apreço pelo método rigoroso; por outrolado, era incapaz de ver os aspectos mais surpreendentesda mente humana.

Com este pano de fundo, qual é o futuro da Psicolo-gia? Começarei pelo fim. Esse futuro é brilhante, isto é,ocupará cada vez mais áreas da vida dos indivíduos e dassociedades. Brilhante porquê?

Assistimos a um processo civilizacional extraordinário.A Ciência e o Direito entraram em áreas da vida privadaque tinham antigamente a dignidade de não serem ob-jectos de ciência e a dignidade de não serem assunto dediplomas legais dos estados. A vida contemporânea podeser descrita rapidamente. No nosso sangue correm vacinasque são obrigatórias. Dificilmente teremos uma vida con-

fortável se recusarmos participar nos planos nacionais devacinação. Este é um padrão geral. Também dificilmenteteremos vidas confortáveis se recusarmos que os nossosfilhos entrem nos sistemas de ensino. A escolaridade éobrigatória e toca por aí uma música feliz em que todosafirmam que isso é sinal de grande progresso. É difícil en-contrar alguém que não tenha hipotecado a sua autonomiaao permitir a escravidão simpática de ter um bilhete deidentidade. Rios de dinheiro público são desviados todosos anos para assuntos que cada pessoa e cada famíliadeviam tratar em privado: educação, segurança e, até,cultura, como se a Cultura fosse um assunto que pudessecrescer com subsídios.

Cada uma destas situações permite vidas confortáveise suburbanas. Mas o que é que todas elas significam,quando as juntamos e procuramos apreender o seu al-cance? A tarefa de viver parece ser, cada vez mais, umassunto difícil que rapidamente se delega em alguém ouno estado. Vivemos na época mais paternalista da história.O discurso público é um maravilhoso discurso de liber-dade. Mas temos que fazer um teste. Atreva-se cada uma não colocar os filhos na Ditadura Higienista dos planosnacionais de vacinação. Atreva-se cada um a recusar aescolaridade obrigatória. Atreva-se cada um a recusar queo seu dinheiro seja aplicado em gastos como os que vãopara os organismos policiais e para a educação e cultura.Será uma vida infernal. O campo da liberdade é falacioso.Vivemos de facto numa civilização que nos permite muitopouco mas que nos dá muito para esquecermos o pequenodetalhe de que aquilo que recebemos não chega para pagara dignidade que perdemos.

Os estados, o Direito e a Ciência são as realidadesimperialistas da nossa época. Não param na fronteira dapessoa, na fronteira do privado e na fronteira da dignidade.Vendo as coisas com equilíbrio, ganha-se sempre algumacoisa quando se evitam os excessos do privado. Porém, opanorama geral é o de que perdemos no somatório geralsempre que a esfera do privado é invadida.

As nossas vidas estão cada vez mais transparentes.A Psicologia é parte deste processo. Coisas que sempreconsiderámos que devessem ser tratadas com mero bom--senso são hoje tratadas com Ciência. Eis alguns exemploscaricatos. A primeira vez que as pessoas encontram aPsicologia acontece geralmente antes da Universidade.Inventou-se um pseudo-assunto científico chamadoOrientação Profissional. Não existe no nosso mundo esseassunto. É óbvio que parece que existe; mas, de facto, nãoexiste. Isto é, se desligarmos o bom-senso, a razoabilidademínima da inteligência humana, até parece que o mundoprecisa de um assunto chamado Orientação Profissional.Os índios das pradarias do Oeste não precisavam deorientação profissional. Bem, talvez eles tivessem umadignidade que hoje já não compreendemos. A tarefa deviver implica escolher de forma certa e de forma errada.Isso é viver e não algo que a Ciência ou o Direito possamfazer por cada um de nós.

Se o único exemplo fosse a Orientação Profissional,estaríamos todos melhor. Multipliquemos centenas devezes este exemplo. O mundo clínico da Psicologia estáabsurdamente rico com muitos outros exemplos da abdi-cação da tarefa de viver. Aconselhamento sexual, aconse-lhamento conjugal, terapia familiar, combate à obesidadedos consumidores compulsivos... a lista é infindável.

É já difícil encontrar uma área da vida humana em que umPsicólogo não esteja presente. E ao lado do Psicólogo oudo Cientista Cognitivo, rapidamente se coloca o Juristae o Político.

A vida íntima é um campo de poder e de riqueza,exactamente como os campos de petróleo e diamantes daSibéria e de Angola são campos de poder e de riqueza.Na vida íntima, no segredo das mentes humanas, deci-dem-se assuntos mais importantes do que o petróleo e osdiamantes. Quais são esses assuntos? São estes: decisõescomerciais, decisões de escolha política, decisões de cren-ça. É no segredo da intimidade que escolhemos se vamoscomprar um automóvel de 10000 euros ou de 80000 euros.É no segredo da intimidade que decidimos se votamos nopartido X ou no partido Y. Quem dominar a intimidade fazum curto-circuito aos mecanismos do Poder. Se antes dasdecisões se puder influenciar as decisões, as decisões serãoa favor do que se quiser. Não há novidade neste processo.Sempre foi assim. Por exemplo, as religiões estiveramquase sempre em relações íntimas com os estados. OSacerdote e o Príncipe sempre tiveram muito a dizer umao outro. A existir alguma novidade neste processo, é ada rapidez em que acontece e a da ausência de crítica. Arapidez justifica-se pela tecnologia que auxilia os estados,a Ciência e o Direito a dominarem as pessoas. A ausênciade crítica justifica-se pelas vidas confortáveis que levamos.A barriga cheia sempre deu vontade de dormir. O nossotempo está, pois, numa siesta permanente que pode facil-mente transformar-se em coma.

Como é que a simpática Psicologia participa neste pro-cesso? Toda a gente gosta da Psicologia! A Psicologia temacesso fácil à vida interior das pessoas. Porém, ninguém

ainda explicou como é que a realidade mais excepcionalde todo o universo conhecido, a mente humana conscien-te, pode ser objecto de ciência. Podemos estudar ossose fígados: todos os animais têm ossos e fígados. Coisacompletamente diferente é estudar o que estuda, é estudara mente consciente. Não é possível ver uma vaca a pastarno campo a estudar-se a si mesma. Não há vacas com aconsciência humana, nem montanhas, nem computadores.Isso faz toda a diferença. Seja como for, tomou-se comoevidente que a mente humana pode ser estudada cienti-ficamente, e vai daí começou o domínio não científico,mas político-científico da Psicologia. Onde há séculosatrás estavam os Inquisidores a controlar as crenças daspopulações saudáveis da Europa, estão hoje os Psicólogose os Psiquiatras. Eles não querem ciência e não conseguemprovar que a mente humana, realidade única no universo,pode ser compreendida cientificamente. Digamos comtodas as letras: eles querem poder social.

Como funciona, então, a Psicologia? Bem, simplifi-quemos: funciona inventando categorias de distúrbios. Aestratégia é semelhante àquela que a Psiquiatria sempreutilizou. A nosografia é a porta de acesso ao poder social.A descrição do que se vê e do que não se compreende érapidamente acompanhada pela imposição de um nome.Sem nome não há distúrbio, nem doença. O domínio doindivíduo acontece pela linguagem. Inventam-se condi-ções, distúrbios, síndromes, patologias, enfermidades. Osnomes auxiliam a solidificar uma realidade que se alterarapidamente. Depois de existir o nome, até parece que omundo tem aquela coisa que se chama de um modo ou deoutro. O que não se compreende torna-se mais pequenoe tende a desaparecer.

É interessante fazer o seguinte exercício em primeirapessoa. Façamos de forma deliberada as nossas própriasdoenças e distúrbios. 'Eu tenho olhos verdes. Será quesofro de um distúrbio de olhosverdites?' 'Sou português.Se calhar padeço da patologia da portugalite.' 'Quandome sento no sofá para ver televisão, mudo rapidamen-te de canal com o telecomando. Será que sofro de um

grave distúrbio chamado zappinguite? Agora que digoisto, o mundo parece mesmo ter uma condição chamadazappinguite. Quando estou em conferências aborrecidas,digo para os meus botões 'Ah, como seria bom mudar decanal!' Quando estou numa reunião social em que as pes-soas parecem todas lobotomizadas, e são muitas as vezesem que isso acontece, suspiro pelo zapping. Se calharpreciso de uma consulta de Psicologia para me auxiliarneste distúrbio de comportamento.'

Para os mais distraídos, é necessário afirmar que nomundo não há olhosverdites, portugalites e zappinguites.E absolutamente certo que, se se falar do assunto muitasvezes, se algumas pessoas fizerem teses de mestrado sobrea zappinguite e se a CNN e a BBC falarem sobre o assunto,o mundo vai acreditar que existe uma zappinguite. Parecedivertido, não é? Bem as ciências que se ocupam da mentee do comportamento de seres humanos são uma vasta co-lecção de zappinguites. De facto, essas ciências não sãosérias e aproveitam-se da credulidade de todos nós.

Só nos apercebemos disto com a panorâmica histórica.As ciências de vanguarda como as Ciências Cognitivas e,em parte, a Psicologia, só estão interessadas na rapideze no futuro. Não é por serem grandes ciências que elasfazem isso. Fazem isso como a Medicina e a Física fazemisso. Nenhuma ciência gosta da história da sua ciência.A história das ciências não é, como se sabe, um assuntodos cientistas, psicólogos, engenheiros, médicos ou ar-quitectos. A história das ciências é uma disciplina dosdepartamentos de Filosofia das universidades. A históriada ciência é uma gigantesca colecção de embaraços em queos tontos facilmente puseram as mãos no fogo da verdadepor algo que, entretanto, se veio a descobrir que não valianada. Como os departamentos de Filosofia se inseremgeralmente em Faculdades de Letras, estão próximos domundo da ficção das Artes e Espectáculos e apreciam asfalsas verdades que mais ninguém quer.

A história dos assuntos mentais dá-nos esta verificaçãoperplexa: o que diabo eles, no passado, queriam dizer como nome deste distúrbio ou doença? A natureza humana

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não muda assim tão rapidamente. Como é que eles pude-ram ver no mundo coisas que nós, pura e simplesmente,não conseguimos ver? Já sabem qual é a resposta a estasquestões. De facto, no mundo não há nada dessas coisas,tanto antigas como modernas. Mas um mundo em que nãohá nada é insuportável. O que é que fazemos todos? Nãohá nada mas inventamos que há. Por isso, povoamos omundo com pseudo-assuntos, pseudo-distúrbios e pseudo-doenças. No mundo não há Norte, nem Sul, nem Zénite,nem Nadir. Porém, os seres humanos descobriram desdehá muito tempo que o melhor truque evolutivo para senavegar na paisagem é o de inventar um sistema artificial.A receita do sucesso é sempre a mesma: substituir o mundovasto e infinito por uma representação pequenina, por ummundo de brinquedo.

Tente-se descobrir de que loucura eram acusadas aspessoas de outras épocas. O Doutor José Pedro Paiva, daUniversidade de Coimbra, tem um livro muito interes-sante sobre a Diocese de Coimbra (Práticas e CrençasMágicas, 1992). Os nossos antepassados do século XVIIdessa diocese acreditavam que o mundo tinha distúrbiose doenças como o mal de ar, a espinhela, o quebranto, omal do sentido, o cobrão, o fogo e a carne talhada. Quandoalguém sofre de espinhela, sofre de quê? E de quebranto?Será que todos sofremos de cobrão sem saber?

Estas lições do passado auxiliam-nos a compreender ofuturo. Qual é, pois, o futuro da Psicologia? Como afirmei,será um futuro brilhante. A nossa época sente que precisade auxílios para realizar a tarefa de viver. Não seria surpre-endente que aparecessem novos ramos da Psicologia paraestudar a Amizade, o Amor, as Compras no Centro Comer-cial, o Desporto, as Crenças Religiosas, a Vida Depois doDivórcio. O modelo do sucesso futuro da Psicologia nãodeve ser a tradição científica mas a vida empresarial. Tudoisto lembra o episódio da gestão de empresas em que aYamaha decidiu começar a produzir pianos. O piano nãoé um instrumento musical japonês nem tem tradições noJapão. Tanto faz. Se não há tradição, cria-se uma, cria-seo instrumento e cria-se a necessidade do instrumento e opúblico para o instrumento. A Yamaha fez os seus próprioscompradores de pianos quando financiou muitas escolas depiano. As ciências da mente humana, Psicologia e CiênciasCognitivas, fazem a mesma coisa. Ao lado das actividadesacadémicas a que apenas se dedicam alguns, existe umexército de vulgatas e de consultórios de psicologia nosjornais, revistas baratas e programas de televisão. Estasciências, na sua enorme sabedoria, sabem que não têmqualquer possibilidade de sobreviver se não inventaremo seu próprio público.

Não passa pela cabeça de ninguém razoável acreditarque existe no mundo um problema chamado hiperactivi-dade das crianças. É incrível, mas não se consegue vereste distúrbio em outras épocas. Não existia, mas passou aexistir como os cogumelos depois das chuvas de Outono.Na índia, as milhões de crianças que trabalham tambémnão têm qualquer distúrbio de hiperactividade. Se calhar éuma coisa só da nossa época. Seja como for, é um facto que

encontrámos um negócio que dá para centenas de artigos epara manter muitos consultórios! Por vezes, reparamos queeste estado de coisas é estranho e, muito possivelmente,errado. Um dos logros mais fascinantes e documentadosdos últimos tempos foi a epidemia das Falsas Memórias.De um dia para o outro, milhares de pessoas passaram aacusar profissionais insuspeitos de as terem molestado nainfância. A história da epidemia das Falsas Memórias jáestá feita, bem como a história de uma condição engraça-da chamada Personalidade Múltipla. Os filósofos DanielDennett e lan Hacking e o psicólogo Nicholas Humphreyfizeram a história cheia de aventuras de como uma pseu-do-condição chamada Personalidade Múltipla entrou nabíblia dos distúrbios psiquiátricos, o DSM.

Agarrem nos anuários e catálogos das universidadesque têm cursos de Psicologia e mestrados em CiênciasCognitivas. Está aí a lista dos assuntos que podem facil-mente substituir as Falsas Memórias e a PersonalidadeMúltipla.

Este não é um panorama agradável. A benefício daverdade, que é a única coisa que importa, dois argumentosracionais apoiam o que se afirmou. Se em privado cada umproduzir argumentos melhores, tudo o que foi dito acimapode ser esquecido.

O primeiro argumento é este. A Psicologia é uma arte ouuma actividade empresarial mas não uma ciência porquenão consegue explicar a natureza última do seu objectomaior, a mente humana. Ninguém consegue explicar porque razão átomos e campos de força têm vida mental,sentem, têm emoções e crenças. Átomos e campos de forçanão deveriam sentir o que quer que seja. Este é, como sesabe, o problema difícil da consciência. Ninguém no mun-do sabe por que razão existe consciência quando poderianão existir. Este não é um aspecto clínico ou terapêuticoda Psicologia. Trata-se do problema fundamental. Se nãohá qualquer ideia sobre a natureza dos eventos e estadosmentais, tudo o que a Psicologia possa fazer está baseadonuma ignorância fundamental, mesmo que seja feito comboa intenção. Qualquer pessoa razoável recusa-se a entrarnum prédio se souber que os alicerces não são de confian-ça. Com a ciência é a mesma coisa. Se não confiarmos nosalicerces, tudo o que se faça é arte, filantropismo, literaturaou gestão de empresas, mas não pode ter a honra de serCiência. Para se compreender bem o que está em causa,um paralelo é útil. Suponham que a geologia não faz amínima ideia dos objectos geológicos. Não saberia o quesão as rochas, os sedimentos, os estratos, de onde vieramas montanhas e a paisagem, etc. Não nos atreveríamos achamar ciência a uma actividade que desconhecesse a esseponto os seus objectos fundamentais. Para as pessoas maispreocupadas, cumpre informar que as ciências são muitopoucas, e que não é mau que assim seja. Vivemos umaépoca desgraçada em que os Departamentos de Humani-dades das universidades para receberem financiamentotêm que inventar pseudo-ciências como as Ciências da

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Literatura. Até a Medicina conta como ciência quandoé elementar que é uma arte sofisticada. Se à Medicinase retirar a farmácia e a prodigiosa investigação feitapelas engenharias, gostaríamos todos de saber o que éque fica. Provavelmente, nem a clínica sobreviveria.

Qualquer ciência tem a obrigação mínima de res-peitar os seus objectos, isto é, de os descrever e deexplicar por que razão existem quando poderiam nãoexistir. As actividades humanas que não respeitam osobjectos e se entretém a inventar e a criar objectosdenominam-se artes, engenharias e política. As quepassam por ciências da mente na nossa época são, defacto artes, aqui e ali engenharias (sobretudo as Ciên-cias Cognitivas) e muita actividade de convencimentopolítico. Têm tudo, pois, para serem bem sucedidas epara que o futuro seja brilhante para elas.

O segundo argumento é este. A natureza humana émais estável do que se pensou alguma vez. Como ocirco dos media e das novas ideias académicas é muitorápido, facilmente nos distraímos com a aparência denovas naturezas humanas. Não é certo que elas exis-tam, nem que a alteração da natureza humana estejapara breve. Porém, todos os pseudo-cientistas da mentetêm em segredo a crença de que é possível alterar emparte a natureza humana. O verbo preferido de todosé 'ajudar'. Não existiria clínica ou terapêutica se nãose acreditasse que o que está à nossa frente pode seralterado para melhor. Bem, de modo decorativo alte-ramos a natureza humana. É a parte de engenharia daPsicologia. Não se sabe o que é a mente, mas sabe-seque se pode dar um jeito.

Para termos uma visão da prodigiosa estabilidadeda natureza humana, nada como ler os Clássicos. Nãose deve confiar em nenhum Psicólogo, ou CientistaCognitivo ou, até, Médico, que não tenha lido osGregos. Nesse caso, temos que temer o pior. Eis umasugestão. O Canto 18 da Ilíada descreve o Escudo deAquiles. Este texto é uma descrição notável de comoera a humanidade pelo século IX a.C. Apartam-nosdesse mundo trinta séculos. Se lermos o Escudo deAquiles sem ideias preconcebidas, seremos atingidospor uma verificação extraordinária. A humanidade dehá trinta séculos ocupava-se dos mesmos assuntos quenós. Isto é incrível. Reparemos na lista: continuamosa viver em cidades, temos bodas e celebrações de ca-samentos, as pessoas reúnem-se nas praças públicas,os conflitos existem entre privados, os juizes dirimemesses conflitos, os juizes recebem pagamento pelo seutrabalho, o povo toma partido por cada uma das par-tes, os polícias controlam o povo exaltado, o mundocontinua a ter exércitos e não há um dia da nossa vidaem que em alguma parte do mundo não aconteça umconflito armado, os beligerantes recorrem ao logro eàs emboscadas, as mulheres e as crianças são protegi-

das, continuamos a ter actividade pecuária e agrícola,continuamos a beber vinho e a apreciar o mel, o nossomundo também tem desigualdade de distribuição dariqueza e da propriedade, continuamos a ter governan-tes e governados, deliciamo-nos com a música e coma dança e os rapazes continuam a procurar cair nasboas graças das raparigas. Este era o mundo há trintaséculos e, tirando alguns pequenos detalhes, continua aser o nosso mundo. (Os detalhes são mesmo pequenos.Homero descreve manadas de bois atacadas por leões,mas já não há leões na Europa).

A natureza humana tem uma carapaça de tartarugaimune a qualquer terapia, a qualquer clínica e a qualquerteoria. Isto é espantoso! Séculos e séculos de reflexãosobre o mental não alteraram o que quer que seja. Nãoé credível que a Psicologia, as Ciências Cognitivas e,até, a Medicina Psiquiátrica, consigam alterar o quequer que seja na mente humana. Já tiveram muito tempopara tentar e continuamos a ter os mesmos defeitos e asmesmas virtudes dos Gregos de há trinta séculos.

Toda esta situação faz com que seja um bom negócioum pai colocar o seu filho a estudar Psicologia ou Ciên-cias Cognitivas. Já sabemos que funciona. Já sabemosque o nosso mundo é absurdamente paternalista e adoraauxiliar-nos na tarefa de viver e adora impor-nos oauxílio na tarefa de viver. Já sabemos que rapidamentetrocamos o que temos que fazer como seres humanospor um suborno de conforto. Este é um bom negócio.Convém investir nele. As bolsas de valores de NovaIorque, Londres e Frankfurt terão a cotação de empresasde psicólogos e de psiquiatras e de cientistas cognitivos.Livros antigos, como o já clássico Physical Control ofthe Mind, do médico espanhol José Delgado, ou recentescomo Brainwashing, de Kathleen Taylor, e Mind Wars,de Jonathan Moreno, apontam para essa direcção. Amente subjectiva é um vasto campo de petróleo e dia-mantes. Só pode dar origem a bons negócios. Comonão há nenhuma razão para que os empresários sejamatormentados pela verdade, o futuro profissional ligadoa estas áreas deverá ser incentivado*.

*Conferência realizada no Colóquio Pessoas e Sintomas a 18 de No-vembro de 2006. Muito agradeço a hospitalidade generosa do Dr. ZeferinoRibeiro e do Professor Alfredo Dinis.

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