imagens do anjo na contemporaneidade

114
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC CENTRO DE ARTES – CEART PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS – PPGAV FERNANDA MARIA TRENTINI CARNEIRO SOBRE ANJOS E SUAS ASAS NA ARTE FLORIANÓPOLIS / SC 2010

Upload: alessandra-valerio

Post on 05-Sep-2015

21 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Teoria Literaria

TRANSCRIPT

  • UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA UDESC

    CENTRO DE ARTES CEART

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARTES VISUAIS PPGAV

    FERNANDA MARIA TRENTINI CARNEIRO

    SOBRE ANJOS E SUAS ASAS NA ARTE

    FLORIANPOLIS / SC

    2010

  • FERNANDA MARIA TRENTINI CARNEIRO

    SOBRE ANJOS E SUAS ASAS NA ARTE

    Dissertao de mestrado elaborada junto ao Programa de Ps-Graduao em Artes Visuais, do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina, na linha de pesquisa em Teoria e Histria da Arte.

    Orientadora: Professora Dr. Sandra Makowiecky

    FLORIANPOLIS / SC

    2010

  • Ficha Catalogrfica

    (Catalogao na fonte elaborada pela bibliotecria Alice de Amorim Borges - CRB 865/14)

    C289s Carneiro, Fernanda Maria Trentini. Sobre anjos e suas asas na arte / Fernanda Maria Trentini Carneiro.

    Florianpolis: 2010. 112 f. : il. ; 30 cm.

    Inclui referncias. Dissertao (Mestrado em Artes Visuais) - Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Artes, 2010.

    Orientadora: Dr. Sandra Makowiecky.

    1. Arte contempornea. 2. Imagem. 3. Alegoria. 4. Anjo. I. Makowiecky, Sandra. Universidade do Estado de Santa Catarina. III. Ttulo.

    CDU 7.036

  • FERNANDA MARIA TRENTINI CARNEIRO

    SOBRE ANJOS E SUAS ASAS NA ARTE

    Dissertao de Mestrado elaborada junto ao Programa de Ps-Graduao em Artes Visuais do CEART/ UDESC, para obteno do ttulo de Mestre em Artes Visuais, na linha de pesquisa em Teoria e Histria das Artes Visuais.

    Banca examinadora:

    Orientador:__________________________________________________ Professora Dr. Sandra Makowiecky (UDESC)

    Membro:____________________________________________________ Professora Dr. Rosngela Miranda Cherem (UDESC)

    Membro:___________________________________________________ Professor Dr. Marcos Csar de Senna Hill (UFMG)

    Florianpolis, 12 de julho de 2010.

  • Aos meus pais, Fernando e Maria Ins.

  • AGRADECIMENTOS

    Pelo contnuo envolvimento com o tema, pude contar com a presena e colaborao de muitas pessoas queridas. Agradeo a Deus pela fora e coragem, importantes para mais esta etapa da vida.

    Agradeo aos meus pais. Maria Ins, por seu interesse neste trabalho, companhia em eventos, discusses em torno das figuras aladas, da religio e da arte, ao meu pai, Fernando, por sua presena distante.

    Agradeo ao Adriano, companheiro inquestionvel, pelo apoio e companhia nesta trajetria, muito fortaleceu uma relao de construes e conquistas, mesmo tendo pedras de aflies e de angstias.

    Agradeo minha orientadora, Professora Sandra Makowiecky, pelo seu carinho e sua confiana. Seu olhar e suas palavras foram significantes para a construo e a segurana deste trabalho.

    Professora Rosngela M. Cherem, por dispor de frestas, de caminhos movedios possveis e de seu pensamento caleidoscpico.

    Ao Professor Marcos Hill, por contribuir com suas consideraes e cooperar na construo de um pensamento complexo e inteligvel.

    Aos amigos, por suas pupilas serem aberturas possveis e por nossas conversas em tramas do trabalho e da vida.

    Ao Programa de Ps-Graduao em Artes Visuais e UDESC por investir e acreditar nesta pesquisa. Aos professores, tcnicos e colegas, que direta e indiretamente acompanharam e cooperaram na edificao profissional e pessoal.

  • De quem o olhar Que espreita por meus olhos?

    Quando penso que vejo, Quem continua vendo

    Enquanto estou pensando? Por que caminhos seguem, No os meus tristes passos,

    Mas a realidade De eu ter passos comigo?

    [...] Um momento afluente

    Dum rio sempre a ir Esquecer-se de ser, Espao misterioso

    Entre espaos desertos Cujo sentido nulo

    E sem ser nada a nada E assim a hora passa

    Metafisicamente.

    Fernando Pessoa.

  • RESUMO

    CARNEIRO, Fernanda M. T. Sobre anjos e suas asas na arte. 2010. 112 f. Dissertao (Mestrado em Artes Visuais, Linha de Pesquisa em Teoria e Histria da Arte) Programa de Ps-Graduao em Artes Visuais (PPGAV) do Centro de Artes (CEART) da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Florianpolis, 2010.

    Este trabalho prope investigar questes sobre as potencialidades reveladas pela figura alada, em especial na afinidade do anjo com temas como alegoria, modernidade e contemporaneidade. Prope analisar as significaes infinitas ressurgentes do anjo e como sua imagem sobrevive e vive com o tempo at a contemporaneidade, na arte contempornea. O primeiro captulo, intitulado Constncia e variao, apresenta as constantes figuras aladas na histria, na histria da arte at a utilizao dessa imagem como iconografia crist, quando o estudo da alegoria por meio do decoro fez com que a construo decorativa se desse de forma persuasiva, atingindo a arte colonial luso-brasileira, mediante o Padroado. A construo religiosa, ligada aos fatores econmicos, acompanhada pelo decoro, acarreta repetio e diferena singular no aparecimento do anjo. No segundo captulo, chamado Presena e ausncia, pontua-se a presena do anjo na relao com o espectador e o mundo no final do sculo XIX e incio do sculo XX, da passagem do divino ao humano. Assinala-se a imagem do anjo como alegoria da modernidade, figura adotada e estudada por Walter Benjamin, como caracterstica decorrida das transies na poca. O anjo, esquecido pela desiluso humana, aparece como reflexo desse sintoma da modernidade, da efemeridade e do sentimento de melancolia, da perda da condio divina, a queda do anjo, para o ser dotado de humanidade. O terceiro captulo, Persistncia e reelaborao, aborda a apario do anjo na arte contempornea como campo de possibilidades e probabilidades. Frente s tenses do mundo aparente, o anjo na arte surge como espelho da humanidade na contemporaneidade. Dessa forma, sobrevive pelo lado oposto, como ser disforme e por avarias. Consiste na reelaborao da imagem como sobrevivncia da forma e passa a existir como peso de sua prpria condio, insustentvel e insuportvel leveza. Este estudo concretiza-se por meio da pesquisa bibliogrfica, sob o vis terico e histrico da arte, de valor mais filosfico e especulativo relacionado com as imagens, numa operao por colagens e conexes, com possibilidade de novas interrogaes e interlocues.

    Palavras-chave: Anjo. Imagem. Alegoria. Arte Contempornea.

  • ABSTRACT

    This work proposes to investigate aspects about the potentialities revealed by the winged figure, especially in the angels affinity with thematic as allegory, modernity and contemporanity. To analyze its resurging infinite significations and how angels image survives and lives with time to contemporanity, in contemporary art. In the first chapter, entitled constancy and variation, it is presented the constant winged figures in history, in art history up to the usage of this image as Christian iconography, when allegorys study through decency made decorative construction to happen in a persuasive form, reaching colonial Portuguese-Brazilian art, through Christian Patronage. Religious construction, connected to economical factors, joined by decency, appears repetition and difference, unique in the angels appearance. In the second chapter, entitled presence and absence, we punctuate the angels presence in the relation with the spectator and the world in the end of the 19th century and the beginning of the 20th century, from the passage of the divine to the humane. We stand out angels image as modernitys allegory, Walter Benjamins adopted and studied figure, as characteristic elapsed from the transitions of the time. The angel, forgotten by human delusion, appears as a reflex of this symptom of modernity, the ephemeral and melancholy feeling. From the lost of divine condition, the angels fallen, the being endowed of humanity. In the third chapter, as persistence and reelaboration, it is approached the angels appearance in contemporary art as the field of probabilities and possibilities. Towards tensions of the apparent world, the angel in art appears as the mirror of humanity in contemporanity. This way, it survives by the opposite side, as a formless being and by damages. It consists in the reelaboration of the image as forms survival and thus exists as a weight of its own condition, unbearable and unsustainable lightness. Thereby, this study was done through bibliographical research, on theoretical obliquity and art historic, with a more philosophical and speculative value related to the images, being and operation by collage and connections, with a possibility of new interrogations and interlocutions.

    Keywords: Angel. Image. Allegory. Contemporary art.

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 - Touro alado com cabea humana............................................................................. 20Figura 2 - Estatueta do demnio Pazuzu com a inscrio ........................................................ 20Figura 3 - Pingente de falco com cabea de carneiro (1279-1213 a.C.) ................................. 22Figura 4 - Vitria alada de Samotrcia (190 a.C.) .................................................................... 22Figura 5 - Francesco Botticini. The Assumption of the Virgin (1475-6) ................................. 24Figura 6 - Frans Floris. The Fall of the Angels [A queda dos anjos] (1554) ........................... 25Figura 7 - Murillo, Bartolom Esteban. The Immaculate Conception (1678) ......................... 26Figura 8 - Cesare Ripa. Alegoria da Ambio (sc. XVI) ........................................................ 27Figura 9 - Cesare Ripa. Alegoria da Virtude (sc. XVI) .......................................................... 28Figura 10 - Igreja Matriz de N. Sra. De Nazar (1725-1755) .................................................. 29Figura 11 - Igreja e Convento de Santo Antnio (1608-1620) ................................................. 31Figura 12 - Igreja do Nosso Senhor do Bonfim (1754) ............................................................ 34Figura 13 - Igreja da Ordem Terceira dos Mnimos de So Francisco de Paula (1759-1801) . 35Figura 14 - Igreja e Convento de So Francisco (1782) ........................................................... 37Figura 15 (A e B) - Capela de Nossa Senhora das Necessidades (1755) ................................. 41Figura 16 - Catedral Baslica de N. Sra do Pilar (1732) ........................................................... 43Figura 17 - Manuel da Costa Atade. ........................................................................................ 44Figura 18 - Manuel da Costa Atade. ........................................................................................ 45Figura 19 (A e B) - Capela de Nossa Senhora das Necessidades (1755) ................................. 46Figura 20 (A e B) - Capela de Nossa Senhora das Necessidades (1755) ................................. 47Figura 21 (A e B) - Igreja de Nossa Senhora da Conceio da Lagoa (1780) ......................... 48Figura 22 - Capela de Nossa Senhora das Necessidades (1755) .............................................. 49Figura 23 - Igreja da Ordem Terceira de So Francisco da Penitncia (1718-1773) ............... 50Figura 24 - Capela de Nossa Senhora das Necessidades (1755) .............................................. 51Figura 25 - William-Adolphe Bouguereau. Young girl defending herself against Eros (1880) .................................................................................................................................................. 54Figura 26 - Eugne Delacroix. Jacob wrestling with the Angel (1857-1861) .......................... 55Figura 27 - Albert Drer. Melancolia I (1514) ......................................................................... 59Figura 28 - Paul Klee. ngelus Novus (1920) .......................................................................... 60Figura 29 - Wim Wenders. Asas do desejo [Der Himmel ber Berlin] (1987) ........................ 63Figura 30 - Wim Wenders. Asas do desejo [Der Himmel ber Berlin] (1987) ........................ 64

  • Figura 31 - Wim Wenders. Asas do desejo [Der Himmel ber Berlin] (1987) ........................ 65Figura 32 - Cemitrio da Recoleta ............................................................................................ 67Figura 33 (A e B) - Cemitrio da Consolao e Cemitrio do Ara ....................................... 68Figura 34 - Detalhe da fachada da Igreja da 3. Ordem de So Francisco ............................... 69Figura 35 - Cemitrio da Recoleta. ........................................................................................... 73Figura 36 - Adriana Varejo. Anjos (1988) .............................................................................. 84Figura 37 (A e B) - Damien Hirst. Anatomy of na Angel (2008). ............................................ 86Figura 38 - Vera Chaves Barcellos. O que restou da passagem de um anjo (2007) ................ 87Figura 39 - Anthony Gormley. Angel of the North (1998) ....................................................... 89Figura 40 - Anthony Gormley. A Case for an Angel - Angel III (1990) .................................. 89Figura 41 - Laura Vinci. Anjo de pedra (1998) ........................................................................ 91Figura 42 - Ernst Barlach. Schwebender Engel (1937) ............................................................ 93Figura 43 - Ron Mueck. Angel (1997) ...................................................................................... 95Figura 44 - Ron Mueck. Angel (1997) ...................................................................................... 95Figura 45 - Hugo Simberg. O anjo ferido (1903) ..................................................................... 97Figura 46 (A e B) - Banda Nightwish. Amaranth (2007) ......................................................... 98Figura 47 - Sun Yuan e Peng Yu. Angel (2008) ....................................................................... 99Figura 48 - Sun Yuan e Peng Yu. Angel (2008) ....................................................................... 99

  • SUMRIO

    INTRODUO ................................................................................................................... 11 1 CONSTNCIA E VARIAO ........................................................................... 18 1.1 O ANJO NA ARTE COLONIAL LUSO-BRASILEIRA ....................................... 33

    2 PRESENA E AUSNCIA .................................................................................. 52 2.1 A ALEGORIA, OS ANJOS E A MODERNIDADE .............................................. 55 3 PERSISTNCIA E REELABORAO ............................................................ 74 3.1 APARIES DO ANJO NA ARTE CONTEMPORNEA .................................. 82 3.1.1 O anjo exposto ....................................................................................................... 83 3.1.2 O anjo imobilizado ................................................................................................ 88 3.1.3 O anjo suspenso ..................................................................................................... 90 3.1.4 O anjo depressivo .................................................................................................. 93 3.1.5 O anjo debilitado ................................................................................................... 96 CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................. 104 REFERNCIAS ................................................................................................................. 107

  • INTRODUO

    A construo imagtica da figura alada na vida humana surge da necessidade de aplicar como referencial a intermediao entre plano terreno e plano celeste. Esses seres divinos foram construdos simbolicamente para associar os episdios ocorridos em torno do coletivo e as atitudes humanas como propsito da vida, exemplaridade divina e espelho das configuraes desejadas. Mas o aparecimento desse ser como imagem s foi possvel com a assimilao necessria de uma crena, uma fora alm de sua representao. Pois o anjo, intermedirio entre cu e terra, no humano, nem Deus incorporal, indizvel, indescritvel visualmente. O modelo edificado e dotado de caractersticas visveis somente foi possvel mediante a analogia de significados em imagens, representados principalmente pela arte. A arte o campo da construo de sentidos improvveis e provveis, de possibilidades e probabilidades. Assim, cria bloco de sentidos. Quais sentidos essas partes compem dentro da obra, quais fatores externos que interferem em sua leitura e quais questes so possveis de alternativas sobre as potencialidades reveladas pela imagem do ponto de vista de sua memria e tempo? A obra de arte a relao da imagem como acontecimento, como atravessamento, o futuro que existe para iluminar no presente os aspectos do passado. A imagem do anjo verificado no tempo e no espao aparece como sintoma necessrio s insurgncias humanas. Deleuze aborda o acontecimento como um campo investigativo das potncias incessantes, de cada nova proposio, um novo sentido. Quando aparece, o sentido est antes mesmo de realizar a ao, e no h como executar na sua totalidade, pois o sentido vai modificando-se com as pressuposies. preciso fragmentar para buscar campos e terrenos para o acontecimento, construes para que definam seu aparecimento e sua presena. Cria-se uma proposio para que as ocorrncias existam, um campo para que se possa afirmar. Nisso, a

    obra de arte cria uma instncia de possibilidades e de probabilidades ao mesmo tempo, isto , uma imagem-acontecimento. Sendo um acontecimento, ser um estudo construdo e envolvido de janelas possveis, de novas disposies operatrias.

    O acontecimento se inscreve na lgica do sentido produzida a partir de uma infinidade de submltiplos que se combinam como partes moventes de um fluxo, permitindo que o feito artstico possua a fora de um sonho e reinscrevendo a experincia imagtica de uma clave que extrapola o visual e o dizvel. (CHEREM, 2009, p. 155).

  • A presena da imagem do anjo na arte procura suscitar questes com o propsito de fortalecer a memria visual e sua vitalidade. Procura observar a arte como poder da imagem, incompreensvel na sua totalidade, que no interpretvel, e sim vista como campo infinito de anlises, criao de mundos e de sonhos. A construo divina requer referncia visual das formas incorpreas como necessidade de preenchimento de um vazio contemplativo. Mesmo descrevendo suas formas, a imagem construda para tais seres informes constituiu-se como espelho humano, tornando-se familiarizada.

    A inquietao neste trabalho parte de uma assiduidade desse estudo do anjo presente na relao imagem e espectador, como isso foi construdo na histria da arte e como essa imagem sobrevive e persiste hoje, principalmente na arte contempornea. Tendo como foco inicial a imagem de anjos, desvia-se para a sobrevivncia da simbologia atravs dos tempos e a permanncia da forma na arte contempornea. No se trata, portanto, de um estudo histrico aprofundado, mas da identificao na relao com a arte, da presena do anjo como imaginrio simblico, que continua sendo utilizado por artistas na contemporaneidade; de como essa imagem se sustenta como mensageiro de Deus em uma sociedade que aniquilou esse Deus e que ainda estabelece uma relao persuasiva com o espectador. Outro questionamento emerge sobre a simbologia do anjo, vista em sua fora principalmente no perodo anterior ao sculo XVII. Desde esse perodo at os dias atuais, a construo imagtica dos anjos sofreu mutaes para aproximar-se ao mximo das afinidades humanas sem perder sua essncia.

    Na arte contempornea, a representao do anjo constitui a condio humana e aparece na sociedade contempornea definida pela globalizao e capitalismo avanado sob os aspectos reflexivos vividos desse contexto. Assim, a imagem transforma esse ser em uma potncia prxima da vida humana, ou seja, esse ser dotado de caractersticas mundanas, que transgridem o ser sereno, bondoso e imortal. Dessa maneira, analisamos suas significaes infinitas ressurgentes ao longo do tempo at a contemporaneidade, como potncia de imagem, que cunha blocos de questes e de problemticas, de acontecimentos como fora, quando possui energia, marcas e vestgios do tempo.

    Pressupomos que as figuras aladas estiveram sempre presentes no contexto imaginrio humano, e sua simbologia sofreu variaes conforme necessidade afetiva e perceptiva. Dentro do espao e do tempo, a humanidade dotada de continuidade e efemeridade, enquanto o anjo suspenso e eternidade. A imagem do anjo uma potncia oculta das necessidades humanas e s faz sentido para quem cr, ou seja, para quem tem a crena em uma veracidade invisvel.

  • O anjo, ser incorporal, aparece na arte como existncia permissiva de apario como campo de perspectiva e construda para efeitos de persuaso.

    Como objetivo principal, esta pesquisa prope suscitar questes sobre as potencialidades desvendadas pela figura alada do ponto de vista de sua memria e de seu tempo e na relao do anjo com a alegoria, modernidade e contemporaneidade. Como finalidades especficas, esta investigao pretende observar as relaes das figuras aladas encontradas na arte como elemento persuasivo em determinados contextos histricos; apresentar o anjo como elemento compositivo da arte colonial luso-brasileira com suas especificidades e poder de persuaso; associar o anjo como alegoria e como sintoma da modernidade como espectro geral; relacionar a apario do anjo na arte contempornea como reflexo do mundo hoje.

    Trata-se de uma pesquisa bibliogrfica na linha de teoria e histria da arte, cujo mtodo de abordagem utilizado, por suas caractersticas e objetivos, ser com base em bibliografias que abordem o referente tema. O levantamento desse referencial ser por meio de livros, catlogos e internet e a leitura de imagens de obras da histria da arte que possam fazer conexes com o tema abordado. O mtodo de abordagem utilizado no trabalho o de uma pesquisa bsica, qualitativa e exploratria, e os procedimentos sero de pesquisa bibliogrfica, documental, levantamento e estudo de caso. A leitura das obras ser por meio de imagens digitais, obtidas de referencial bibliogrfico e eletrnico e, em alguns momentos, de fotografias obtidas diretamente da fonte.

    Este trabalho prope ampliar as condies de acesso a um saber que seguramente oferecer mais consistncia e densidade, tanto ao pensamento artstico como aos procedimentos plsticos e s operaes conceituais, como contribuio na formao tanto dos que se dedicarem pesquisa como ao ensino de arte. Este trabalho volta-se para uma pesquisa bibliogrfica e de valor mais filosfico e especulativo. Para elaborao deste trabalho estabeleceu-se interlocuo fundamentada com tericos como Gilles Deleuze, Georges Didi-Hubermann, Merleau-Ponty, Walter Benjamin, entre outros. Entende-se como um trabalho que opera por montagens e produz outros tipos de conexes, possibilitando novas interrogaes e interlocues, mesmo sob o risco da perda da unidade no assunto escolhido como problemtica - os anjos. O trabalho possibilita, quem sabe, um enigma, entendendo este como algo que suscita o desejo em um movimento de ensaiar respostas e perguntas, de fazer associaes inusitadas.

    No primeiro captulo, Constncia e variao, o estudo apresentou a presena do anjo ao longo da construo simblica da humanidade. A imagem alada esteve fortemente ligada

  • arte e religio. Sendo considerados os intermedirios entre o cu e a terra, dotados de preceitos divinizados, os anjos na antiguidade eram vistos como deuses, seres protetores, associados aos estragos, proteo divina, transformaes terrenas e comportamentos humanos. Na arte religiosa crist, o anjo fez-se indispensvel mediador entre o divino e o profano. As imagens aladas foram construdas tendo como referncia modelos artsticos passados e de diferentes culturas, sobretudo nos sculos XVI e XVII, principalmente as alegorias desenvolvidas pela Iconologia de Cesare Ripa (edio de 1909). A construo figurada apresentada serve para demonstrar a amplitude de Deus e sua potncia. As imagens introduzidas e produzidas, especialmente nas igrejas, so para recordar as aes divinas e as atitudes esperadas dos homens da terra. Aprofundamento e mobilizao de novas formas de representaes simblicas foram predominantes nos sculos XVI e XVII, devido aos conflitos econmicos, sociais e religiosos que abalaram a Europa e que atingiram o Novo Mundo. A essa tenso, deu-se o nome de Barroco. No Brasil, caracterizado por unidades estticas e ideolgicas, o Barroco tornou-se uma arte colonial luso-brasileira. Recorremos a Joo Adolfo Hansen, em seus estudos Notas sobre o barroco (1997) e Teatro da memria (1995), sobre a aplicao do termo barroco no perodo seiscentista do Brasil, visto que esse perodo ultrapassou o tempo comum e estava elaborado sob o olhar da retrica, bem como a realizao do teatro sacro. O Padroado cumpria seu papel de disseminador das ideias persuasivas da religio e do reinado portugus. O decoro nesse perodo foi o cerne na execuo das artes nas igrejas, ou seja, o uso correto dos modelos reconhecidos e adequados. Para uma abordagem sobre o decoro, recorreu-se a A maravilhosa fbrica de virtudes, de Rodrigo Bastos (2009), sobre o estudo do decoro na regio de Vila Rica em Minas Gerais, com questes gerais desse conceito aplicado no Brasil e outras especificidades. A construo das imagens com referncias na retrica foi garantia da soberania e difusora dos dogmas de forma clara e persuasiva. A presena do anjo tornou-se um smbolo figurativo e decorativo, como um figurante nesse cenrio do teatro sacro. Como questo persuasiva, relacionamos Imagem e Persuaso, de Giulio Argan (2004), sobre a funo da imagem e a retrica na elaborao imagtica. A constituio decorativa foi sempre baseada na expectativa econmica regional, sendo vistas diferentes composies nas igrejas do Pas, sem perder seu foco decoroso. Na arte, a representao dos smbolos pela iconografia crist, os seres alados, como os anjos, so fonte de referncia e de modelo como espelho humano.

    No entanto, o anjo esteve, por um perodo na histria da arte, em suspenso, esquecido, mas no extinto. No final do sculo XIX e incio do sculo XX, o mundo percorria um trajeto de mudanas e transformaes, constituindo um mundo de aparncia, de

  • espetculo. Nesse momento, o anjo aparece como a passagem do divino ao humano. No segundo captulo, Presena e ausncia, o aparecimento de anjos como alegoria da

    modernidade justifica a imagem singular, para interpretar algo do campo universal das significaes. o anjo que s pensa na catstrofe, pois desconfia da revoluo humana. Uma alegoria que mostra o carter efmero e frgil da vida humana.

    Os aspectos alegricos foram estudados com base nas obras de Walter Benjamin, como Origem do Drama Barroco Alemo (1984), na relao entre anjo, alegoria e modernidade, a runa do presente como resqucios de um passado e o papel do anjo diante da experincia do choque, da catstrofe e da sua relao com a humanidade e o espectador. Por meio de seu pensamento sobre a obra ngelus Novus de Paul Klee, no captulo Sobre o conceito de histria (1987), percebemos a forte presena do anjo nos estudos de Benjamin como referente da alegoria e do espanto pela catstrofe instaurada devido ao progresso da poca. Walter Benjamin apresenta questes da alegoria na modernidade. Trouxemos inicialmente Joo Aldolfo Hansen, em Alegoria construo e interpretao da metfora (2006), sobre um panorama do estudo da alegoria e o desenvolvimento desta na arte e na literatura de uma forma geral, como base para entender o que denota a alegoria como um todo. Logo Maria Joo Cantinho, no artigo O Flneur e a Flnerie na lrica de Baudelaire: a cidade como alegoria da modernidade (2003), apresenta-nos Walter Benjamin como estudioso da alegoria da modernidade, a experincia vivida do choque, propondo a figura do anjo como imagem que deseja salvar a humanidade da catstrofe que se construiu. Outros autores que estudam a dimenso alegrica do anjo no pensamento de Benjamin nos apresentaram essa experincia do choque e da catstrofe, tais como Jeanne Marie Gagnebin com a Histria e narrao em Walter Benjamin (2007) e Sete aulas sobre linguagem, memria e histria (2005), Mrcio Seligmann-Silva com o artigo Catstrofe, histria e memria em Walter Benjamin e Chris Marker: a escritura da memria (2003).

    Analisado por Walter Benjamin, o anjo lana o olhar sob sua representao no papel importante na salvao da catstrofe. Reporta-nos vida de incertezas, de luto e de runas, das impossibilidades, do sentimento de melancolia. Ao invs de comemorar, enluta-se. Esse anjo possui emoes e sentimentos humanos, da suspenso das certezas, dos sintomas do mundo moderno. Na aparncia de outra realidade, sugere a crtica sobre a construo da e na vida. O anjo possui o desejo de finitude, vivencia sensaes e sensibilidades humanas, inclusive a morte. A perda da potncia divina refere-se prpria queda. O anjo est para a queda como o homem est para a morte. Essa queda abordada por Emanuele Coccia, em conferncia sobre Anjos (2010) em seu estudo na relao do anjo com o poder, do poder divino por excelncia,

  • bem como a perda da sua potncia divina. No entanto, impossveis de se tornarem Deus, os anjos simulam e se assemelham a Ele. Dessa queda, relacionamos o anjo acompanhado da morte. Por isso, muitos anjos so encontrados nos cemitrios, como escavao da memria humana, que um dia estar tambm naquele lugar, e tornou-se vestgio, resqucio do tempo, testemunha dos acontecimentos.

    A imagem do anjo vista ao longo da histria da arte como uma produo de sentido e nos aproxima de uma proposio para que as coisas existam. A obra de arte um biombo que fica entre o espectador e o mundo. E na relao do entreolhar espectador e obra de arte, Georges Didi-Hubermann, em seu livro O que vemos, o que nos olha (1998), apresenta o entre ambos os sujeitos de uma unicidade. O anjo suspenso no tempo, o homem continuidade do esgotamento no mundo. O homem efmero, diferena e repetio das angstias, vitrias e medos. Seu corpo fenece, e o que permanece a imagem do anjo sem cessar sua potncia. Ao pensar na imagem do anjo como acontecimento, utilizamos esse conceito dado por Gilles Deleuze em A lgica do sentido (2007), quando remetemos ao sentido que produzido no espao e no tempo, sua inesgotvel significao e abertura de campo de proposies para possibilidades e probabilidades. Nessa produo de sentido em que a imagem do anjo tida como potncia, que detm pontos do passado e lana outros para o futuro, utilizamos Potncia da imagem (2004), de Ral Antelo.

    Na arte contempornea, a imagem anjo aparece como sobrevivncia e metamorfoses no paradoxo do mundo que no define ao certo o bem e o mal. Mesmo incorporado como temas ordinrios, como anjo da autoajuda ou fantasia contempornea, o anjo detm todo o conhecimento das memrias apagadas. Mas h uma persistncia e reelaborao, como mostra o terceiro captulo, Persistncia e Reelaborao. Quando o anjo se humaniza, as formas em que isso acontece so de perceptos e afectos. A imagem do anjo, mesmo deslocada, nesse sentido, de sua religio, retorna aos olhos do espectador como potncia visvel do invisvel. Essa relao Merleau-Ponty traz em seus estudos O olho e o esprito (2004) e O visvel e o invisvel (2007), que os relacionamos ao que percebido na leitura de cada um de ns, em contato com a obra. Aquilo que o espectador percebe. No mais na construo da forma corporal, mas na visibilidade do impossvel e do improvvel. Isto , os anjos s podem ser vistos pelo seu oposto, pelo peso, matria inalcanada, como debilitado, decado, suspenso e impedido. O anjo, aqui, ser aquele que j partiu, ausentou-se. A arte ento criar uma substncia para que esse anjo sobreviva, a partir do sculo XX, pelas avarias, pelo informe.

    nessa reelaborao de seu aparecimento como sobrevivncia da forma que Henri Focillon prope em A vida das formas (1988) a observao das imagens como configurao

  • de novas resolues sem perder sua essncia. A Arte hoje nos permite permear nas fissuras e nos faz pensar alm das possibilidades de experimentaes mltiplas. Com as ideias contidas em Mutaes (2008), de Adauto Novaes, e em Mestiagem na arte contempornea (2007), de Iclia Catani, relacionamos a humanidade e o anjo na sua vivncia intercomunicante, na captao das foras como reflexo contemporneo. A tenso desse mundo cria essa iluso em que no mundo nada o que parece ser; uma vida de sonhos. O anjo na arte contempornea aparece justamente na condio em que o homem vive: apreensivo, exposto, suspenso, imobilizado, depressivo, debilitado, efmero. A cartografia de anjo apresentada na arte contempornea neste trabalho tenta mostrar a permanncia e as transformaes dessa figura, sem, contudo, perder seu cerne. Assim, o anjo na arte cria um campo de potncia para alm de sua prpria imagem.

  • 1 CONSTNCIA E VARIAO

  • O aparecimento dos anjos pode ser encontrado em religies como o Cristianismo, na Bblia, desde o Antigo at o Novo Testamento; no Judasmo, no Tor (conjunto de livros bblicos); no Budismo, que acreditavam que esses seres pudessem ser tanto benficos e amistosos com as pessoas, quanto malficos e hostis (AMORIM, 2003), sendo caracterizados, principalmente, como seres que proporcionavam a relao entre o campo terreno e o espao

    divino e celestial. Problematizados e apresentados pela histria da arte, esses seres foram representados como figuras aladas, dotadas de preceitos divinizados.

    Na Antiguidade, antes do nascimento de Cristo, povos tais como os assrios, mesopotmicos, egpcios, entre outros, representavam sua arte principalmente com esculturas

    e alto-relevos. No Perodo Assrio, por exemplo, por volta de 1000 a 700 a.C., a arte era representada por deuses, cenas com a presena do rei, de guerra e de culto e cenas de luta contra monstros alados [...] e que parece estar intimamente ligado com o sentimento religioso do perodo, na sua preocupao com a luta entre o bem e o mal. Aqui, durante o reinado de Assurnasrpal II, por volta de 800 a.C., a entrada de seu grande palcio era ladeada por enormes figuras de touros alados, com cabeas humanas, esculpidas [...] em relevo [...] cujo fim era impedir a entrada das foras do mal, esto executadas dentro do mesmo esprito que as esttuas. (GARBINI, 1966, p. 46). (Figura 1).

    Assim, esses seres protetores ficavam nos portes da cidade de Khorsabad e tinham como objetivo vigiar as pessoas e os edifcios protegendo-os contra os maus espritos. Ainda na Mesopotmia, h mil anos antes de Cristo, tambm encontramos a imagem de Pazuzu, um demnio hbrido mitolgico, associado aos estragos da terra, porm apropriado em alguns momentos como proteo divina. composto por um par de asas, com garras, rabo e coberto por escamas, possui uma inscrio na traseira das asas como um aviso e apresentao: "Eu sou Pazuzu, filho de Hanpa, rei dos espritos maus do ar, que irrompe violentamente das montanhas, causando muito estrago.1 Por sua feio horrenda, tinha tambm o propsito de repelir outros espritos do mal (Figura 2).

    1 Texto original: I am Pazuzu, son of Hanpa, king of the evil spirits of the air which issues violently from mountains, causing much havoc. Disponvel em: . Acesso em: 12 jan. 2010.

  • Figura 1- Touro alado com cabea humana Perodo neo-assrio. Reinado de Sargon II (721-705 a.C). Mesopotmia. Museu do Louvre. Paris, Frana Fonte: Disponvel em: Acesso em: 12 jan. 2010.

    Figura 2- Estatueta do demnio Pazuzu com a inscrio. Incio do primeiro milnio antes de Cristo. Mesopotmia. Museu do Louvre. Paris, Frana. Disponvel em: . Acesso em: 12 jan. 2010.

  • A arte egpcia, cerca de cinco mil anos atrs, associava as mudanas do tempo, principalmente transformaes terrenas, como as cheias do rio Nilo, as pestes da lavoura e as humanas e o comportamento humano aos deuses ou como prprio ser divino, como era considerada a figura do fara. Para a ascenso das almas, os egpcios antigos ergueram pirmides, embalsamavam os corpos para a preservao do corpo sagrado, alm de objetos e imagens que substituam os servos e o tesouro daqueles mais poderosos, e acreditavam que estes serviriam alma em outro plano (GOMBRICH, 1999). Posteriormente, com as escavaes feitas por volta de 1800, muitas relquias foram encontradas e estudadas suas significaes. Citamos o pingente de ouro com corpo de falco e cabea de carneiro (Figura 3). Esta joia excepcional composta por 99,5% de ouro puro e pedras preciosas, com delicada preciso das formas, habilidade e destreza na execuo dos materiais. A figura alguma divindade estranha, at pela sua composio de seres, e certamente est relacionada a uma das formas dada ao rei-sol, pois nas escrituras funerrias, como o Livro das Cavernas, do perodo de Ramss, so encontradas outras dimenses dessa mesma imagem. Por essa imagem, os egpcios acreditavam que o sol escondia-se em uma caverna no submundo e no dia seguinte surgia regenerado para o dia. Assim a joia provavelmente estaria ligada renovao da alma quando colocada junto ao corpo no tmulo.2

    Nessa perspectiva, as antigas esculturas orientais de figuras humanas aladas como personificao de gnios e seres sobrenaturais influenciaram a representao crist do anjo como criatura alada, evitada por muito tempo na arte dos primrdios do cristianismo (BIEDERMANN; CAMARGO, 1993, p. 32), pois poderia haver confuses entre as personificaes antigas, mitolgicas e os anjos. As crianas aladas j aparecem no sculo IV a.C. em um meio imbudo da substncia da filosofia platnica, para quem a asa, que subtrai o corpo gravidade, o elemento divino (VILA, 1997, p. 92). Alguns dos mais familiares desses proto-anjos so as monumentais figuras aladas dos palcios assrios, pinturas de murais de vrios espritos greco-romanos e principalmente da deusa Vitria retratada na escultura clssica (Figura 4).

    2 Disponvel em: . Acesso em: 12 jan. 2010.

  • Figura 3- Pingente de falco com cabea de carneiro (1279-1213 a.C.). 19. Dinastia Reinado de Ramss II. Egito. Mesopotmia. Disponvel em: . Acesso em: 12 jan. 2010.

    Figura 4 - Vitria alada de Samotrcia (190 a.C.). Mrmore e calcrio, 328 cm de altura. Muse du Louvre, Paris. Fonte: NRET, 2003.

    A constituio da imagem alada esteve fortemente ligada arte e religio. Ao longo da histria da arte, as imagens de seres alados homem, mulher e animal encontravam-se

  • em muitas culturas da antiguidade. No entanto, com a chegada da era crist, os anjos tornaram-se substncias incorporais, inteligentes, superiores alma do momento. A Igreja ensina que os anjos foram criados num estado de felicidade e de graa, mas com a liberdade de escolher entre o Bem e o Mal (NRET, 2003, p. 13).

    Em alguns casos [...] o anjo aparece numa forma visvel, assumindo a responsabilidade pelo bem-estar de pessoas em dificuldades, guardando-as do mal, apoiando-as ou livrando-as do perigo. [...] ficou associada principalmente a crianas e jovens amantes, que so mostrados sob as asas protetoras [...]. (GRUBB, 1997, p. 271-273).

    Dessa maneira, como intermedirios entre o cu e a terra, os anjos contavam com as asas para se transportarem entre esses dois mundos. [...] os artistas comearam a descrever o vo dos anjos de forma cada vez mais literal. Assim como [...] na Arte Renascentista, os anjos passaram a ser mais prximos do real, e, portanto precisavam de asas mais consistentes para sustent-los (GRUBB, 1997, p. 187). Os anjos so agrupados, de acordo com a teologia crist, em trs ordens hierrquicas, possuindo trs tipos cada uma, e possuem tarefas determinantes e singulares medida que se distanciam de Deus.

    Na primeira hierarquia, os Serafins circundam o trono de Deus e so geralmente de cor vermelha; os Querubins conhecem Deus e a ele adoram, sendo representados na cor de ouro ou em azul; os Tronos, usando vestes de juzes, carregam seu assento e representam a justia divina, que conferem segunda hierarquia. Esta segunda hierarquia consiste de Domnios, Virtudes e Poderes, que governam as estrelas e os elementos, e iluminam a terceira hierarquia com a Glria de Deus. Os Domnios aparecem com coroas, cetros ou globos, para representar o poder de Deus; as Virtudes tm lrios brancos ou rosas vermelhas, que em si mesmos so smbolos da Paixo de Cristo; os Poderes so figuras combativas, vistas lutando contra demnios ubquos. A terceira hierarquia, que consiste de Principados, Arcanjos e Anjos, fazem o contato entre o Cu e a Terra e executa a vontade de Deus. Os Principados tomam conta de territrios; os Arcanjos so figuras independentemente de Miguel, Gabriel, Rafael e Uriel que, juntamente com os Anjos, so portadores das mensagens de Deus para humanidade. (CARR-GOMM, 2004, p. 21).

  • Figura 5 - Francesco Botticini. The Assumption of the Virgin (1475-6). Egg tempera on wood. 228.6 x 377.2 cm. Disponivel em: . Acesso em: 17 abr. 2007.

    Na obra de Francesco Botticini (1446-1497), observamos no plano terreno os apstolos na tumba da Virgem Maria, que est com seu filho Jesus Cristo no Cu. Ao entorno deles, encontra-se a hierarquia celestial: prximos a Deus esto os conselheiros, no meio os governadores e, por ltimo, prximo ao plano terreno, os ministros (Figura 5). Junto a estes, os santos foram agrupados prximos fileira dos anjos.

    Ainda assim, so quatro os anjos mencionados na Sagrada Escritura que possuem nomes: Gabriel, Rafael, Miguel e Belial. No entanto, os trs primeiros nomes fazem referncia aos anjos que possuem significados virtuosos, dignos de seres divinos, celestes. De tal modo, o nome de Miguel significa, como j dissemos, quem semelhante a Deus? O de Gabriel significa fora de Deus, e o de Raphael remdio de Deus ou mdico de Deus. (GUILLOIS, 1878, p. 131). No entanto, o anjo denominado Belial o anjo das trevas, aquele que por sua cobia e soberba fora precipitado ao inferno. citado tambm como Lcifer, o mais belo anjo, anjo luz, que, pelo orgulho, inveja e ambio da magnitude de Deus, foi expulso do Paraso. Seu nome ainda dado como Satans ou Belzebu e tinha como desgnio prosseguir com o mal aps a expulso. Sua representao seria como um ser hbrido com chifres, orelhas pontudas, rabo, garras, ps de cabra, asas de morcego e cara de animal (CARR-GOMM, 2004, p. 199) ou como citado na Bblia (Apocalipse 12, 7-9), como Drago com quem Miguel e seus anjos travaram uma batalha no cu e que, uma vez sendo vencido o

  • Drago, este foi precipitado a terra. Nisso vimos que os anjos simbolizam, em menores propores, as seivas do mal. Os anjos rebeldes, aqueles decados do Cu ao Inferno, representam-se tambm em figura de alimrias horrendas e ferozes, para nos dar a conhecer quanto so para temer, e quo desgraada uma alma que se tornou pelo peccado escrava do demnio (GUILLOIS, 1878, p. 138). (Figura 6).

    Atribui principalmente ao Judasmo que interpretou a origem das foras do mal como uma queda de anjos criados bons. O anjo mau procede de uma necessidade humana fundamental, vinda de foras agressivas e perigosas, internas e externas ao homem. As imagens representadas por essas foras malficas so de homens feios com capa preta e chapu, asas de morcego, animais com chifres, cauda e garras. O anjo mal remete s energias negativas. (GIRARD, 1997, p. 45).

    Figura 6 - Frans Floris. The Fall of the Angels [A queda dos anjos] (1554). Oil on panel, 308 x 220 cm. Koninklijk Museum voor Schone Kunsten, Antwerp. Fonte: Disponivel em: . Acesso em: 11 maio 2007.

    Na arte religiosa crist (Figura 7), o anjo se fez necessrio como mediao entre o divino e o profano. As representaes dos anjos, na Idade Mdia e primrdios do Renascimento, primeiramente, em sua maioria, so como andrginos ou meninas. Posteriormente ao sculo XII, as representaes simbolicamente so de cabeas aladas

  • (expresso da incorporeidade) e como crianas (inocncia), tendncia que encontra depois sua definitiva manifestao idlica nos anjinhos tpicos do Barroco (BIEDERMANN, 1993) que, na linguagem popular, diz-se cara de anjinho barroco, ou seja, aquele que possui bochechas rosadas, cabelos cacheados, rosto redondo. E no perodo barroco os anjos se tornaram no apenas inequivocadamente humanos, mas tambm sensuais, sendo suas asas e seu corpo pintados ou esculpidos em detalhes amorosamente executados (GRUBB, 1997, p. 14).

    Figura 7- Murillo, Bartolom Esteban. The Immaculate Conception (1678). Museo del Prado, Madrid. Fonte: NRET, 2003.

    Muitas das imagens aladas foram construdas tendo como referncia modelos artsticos passados e de diferentes culturas, com propsito de representarem vcios, virtudes e estados da vida utilizados como alocuo em um verificado contexto. Dentre essas referncias, esto as alegorias estudadas por Cesare Ripa, que se preocupou em explicar os significados de cada detalhe figurado. Principalmente nos Sculos XVI e XVII, a chamada Iconologia, estudo da imagem, tornou-se aluso na execuo de desenhos, gravura, esculturas e pinturas, bem como literatura. Para o autor, existem dois tipos de conceitos possveis de alegorias: os acontecimentos naturais, sendo criadas imagens dos deuses pelos antigos e aqueles inerentes

  • aos homens, como virtudes, vcios, entre outros (RIPA, 1909).3 As imagens aladas, encontradas nesse catlogo de emblemas, possuem as asas que nascem dos ombros, da cabea ou dos ps, sendo dada significao de acordo com a alegoria representada. Nisso, muitas das alegorias dotadas de asas simbolizam a agilidade, a espiritualidade, a vontade, o intelecto pelo pensamento estendido ao alto para melhor compreenso dos saberes celestiais, a presteza, o desapego, enfim, muitos dos significados esto relacionados ao tempo e s virtudes. Em sua maioria, essas imagens esto figuradas por mulheres ou crianas, supondo a relao da fragilidade, segurana e proteo, vistos com bons olhos s normativas religiosas esperadas da poca.

    Ambicin: Mujer joven de verde, ligera de ropa y con los pies desnudos. De los hombros le nacern unas alas, y con ambas manos, confusamente, intentar colocarse en la cabeza muchas y distintas coronas. Llevar los ojos vendados. Por eso se le pintan alas en los hombros, mostrando con ello que los ambiciosos apetecen y desean ardientemente aquellas cosas que no les convienen, es decir, volar ms alto que los dems, y an ser superiores a todos. (RIPA, 1909, p. 83) (Figura 8).

    Figura 8 - Cesare Ripa. Alegoria da Ambio (sc. XVI). Fonte: RIPA, 1909.

    3 O autor Cesare Ripa desenvolveu esse estudo da Iconologia entre os sculos XVI e XVII. A edio utilizada neste trabalho foi traduzida por Juan Barja e Yago Barja, em Madri, no ano de 1909. Preservou-se a traduo dessa edio utilizada.

  • Virtud: Joven graciosa y bella con alas en las espaldas, que ha de coger un asta con la derecha y con la izquierda una corona de Laurel, llevando dibujada sobre el pecho la figura del Sol. Con sus alas se muestra que es la cosa ms propia de la Virtud el remontar el vuelo por encima de los usos de los hombres vulgares, complacindose slo en aquellos deleites que conocen las gentes virtuosas, las cuales, como dijo Virgilio, se elevan a las estrellas de la ardiente Virtud. (RIPA, 1909, p. 429) (Figura 9).

    Figura 9 - Cesare Ripa. Alegoria da Virtude (sc. XVI). Fonte: RIPA, 1909.

    Os anjos, seres de significado religioso, possuem a funo determinante de serem os mensageiros de Deus e que ocupariam para Deus as funes de ministros: mensageiros, guardies, condutores de astros, executores de leis, protetores dos eleitos, etc., [...] e tambm o papel de sinais de advertncia do Sagrado. Vimos que a figura do anjo, em sua maioria, aparece como seres do bem, aquelas que fazem boas aes, que formam o Exrcito de Deus, sua corte, sua morada. Transmitem suas ordens e velam sobre o mundo, como anjos da guarda e acompanhantes (CHEVALIER, 2003, p. 60-61). Os anjos da guarda, na teologia crist, so aqueles [...] que Deus encarregou de cuidar de ns e de guardar-nos, e estes espritos bem-aventurados, esquecidos de que nos so superiores, desempenham estas funces com a mais terna solicitude (GUILLOIS, 1878, p. 134). Entretanto, a forma do anjo foi criticada pelo catecismo cristo, pois o significado dado ao anjo como mensageiro de Deus no seria por sua natureza, mas como ministrio de ofcio, espritos puros (Figura 10).

  • Representam os anjos sob figuras humanas, porque effectivamente as tomaram algumas vezes semelhantes para apparecer aos homens, e executar com relao a elles as ordens de Deus. Representam-os com azas, j para mostrar a incrvel rapidez com que se transportam em um instante, duma a outra extremidade do mundo; j porque os prophetas, em sua sublime e figurada linguagem, nos fallan das azas com que se cobrem com respeito em presena de Deus. Mas o que se deve crr sobre este assumpto, que os anjos no teem corpo, que lhes seja proprio, e quando para dar a conhecer sua presena, revestem, por ordem de Deus, uma figura humana, esta figura humana -lhes inteiramente estranha; no lhe esto substancialmente unidos, como nossas almas o esto aos nossos corpos; e no neste estado, que apparecem diante do throno de Deus.4 (GUILLOIS, 1878, p. 129).

    Ainda assim, nas Sagradas Escrituras, a construo figurada apresentada nas passagens serve para demonstrar a amplitude de Deus e sua potncia diante das criaturas e da natureza. As imagens produzidas para os seres incorpreos so construes adquiridas nas profundezas de seu conceito, este sendo impossvel alcanar na sua totalidade, e o que emerge so fragmentos alcanados superfcie, dado a visibilidade imaginvel em imagem. Como o ser divino incorpreo no se faz presente, por meio das aparies de smbolos instantneos e duradouros que se comete mostrar diante dos olhos mundanos. Assim, para a compreenso do incompreensvel, para ensinar e projetar mensagens confusas viso humana, [...] a imagem impressiona mais facilmente o esprito que a palavra. (BOAVENTURA, 2004, p. 47).

    Figura 10 - Igreja Matriz de N. Senhora De Nazar (1725-1755). Detalhe da tarja do retbulo-mor (1726). Minas Gerais, Cachoeira do Campo. Fonte: TIRAPELI, 2008.

    4 Preservou-se a grafia da referncia da poca.

  • Entretanto, as Sagradas Escrituras contribuem, por meio de smbolos e analogias, para a construo obscura das coisas invisveis, como Deus e os anjos, pois a construo divina requer a referncia visual das formas incorpreas como necessidade de preenchimento de um vazio contemplativo. Mesmo descrevendo suas formas, a imagem construda para tais seres informes constitui-se como espelho humano, tornando-se familiarizada, pois tais seres so indizveis e destitudos de visibilidade, sob impossibilidade de serem notados. A prpria Escritura Sagrada apresenta a revelao das coisas divinas atravs das coisas mundanas, como representao. A contemplao das imagens construdas da invisibilidade divina s dada como referncia no momento que se acredita nela, mesmo sendo aparncia de algo escrito e passado. o crdito dado a uma verdade invisvel (LICHTENSTEIN, 2004).

    A imagem do anjo teve grande predomnio na arte crist, principalmente nas construes decorativas cenogrficas da Sagrada Escritura no interior das instituies religiosas. Dentro das igrejas e das capelas, a insero das imagens divinas deu-se visando educao, principalmente para aqueles que desconheciam as Escrituras Sagradas por no saberem ler. Retomavam-se atitudes sagradas como referncia para as atitudes humanas, pois as imagens so mais bem compreendidas e gravadas pela memria, sendo relembradas posteriormente. Assim, as imagens introduzidas e produzidas, principalmente nas igrejas, so para recordar as aes divinas e as atitudes esperadas pelos homens na terra. O que contribuiu para o aprofundamento e mobilizao de novas formas de representaes simblicas foi a instaurao persuasiva da Contra-Reforma, possibilitando Igreja Catlica a construo de um repertrio vasto e rico da iconografia crist, principalmente no perodo dos sculos XVI e XVII, originariamente na Europa, na ocasio das divergncias quanto s questes ticas, sociais e morais e especialmente religiosa.

    Na perspectiva de Biancardi (2005, p. 42) os monumentos religiosos, em toda histria, estiveram sempre cercados por uma aura mstica, prpria de tudo que detm relao com o sagrado. Nisso, a Igreja Catlica precisou rever seu dogma e funcionamento, fundando diversas ordens religiosas motivadas pela f catlica, de forma que revitalizassem as atividades religiosas. Somam-se aos dois marcos, Reforma Protestante e Contra-Reforma, a Revoluo Comercial, como resultado de grandes navegaes, a descoberta de novas terras, como Amrica, frica e sia, motivando, dessa maneira, a fundao das colnias expansionistas, verificando desse modo a ascenso da burguesia e de seu especfico sistema econmico (SOUZA, 1973).

  • Figura 11 - Igreja e Convento de Santo Antnio (1608-1620). Tarja do retbulo-mor (1628). Rio de Janeiro, RJ. Fonte: TIRAPELI, 2008.

    tenso ocorrida neste perodo, em que o homem prope-se a conciliar dois valores, o antropocentrismo e o teocentrismo, lanando angstias e ansiedades frente s suas ideias, s concepes e s manifestaes artsticas, deu-se o nome de Barroco. Termo este que se caracterizou como resposta a algumas instigaes ocorridas durante esse tempo, enfatizadas na histria e histria da arte. A origem da palavra desconhecida, mas existem ideias que a associam irregularidade e ao excesso. O Barroco um conceito vasto e estudado por muitos tericos, exigindo-se o manuseio de um considervel nmero de informaes profundas. Aqui veremos de maneira sinttica como alguns tericos relacionam esse conceito na histria e na arte.

    Para Ernst Gombrich, por exemplo, a palavra barroco teria sido usada por alguns crticos para designarem tendncias da poca em exp-la ao ridculo. Esse ridculo significaria tambm o grotesco ou o absurdo. Destaca ainda o aparecimento de caractersticas importantes do sculo XVII: a nfase sobre a luz e a cor; o desprezo pelo equilbrio simples; e a preferncia por composies mais complicadas. Ressalta que o intuito do Barroco era seduzir, convencer o espectador pelo apelo s emoes, luz spera e quase ofuscante no contraste com as sombras profundas (GOMBRICH, 1999, p. 387-390). Nisso confere uma

  • esplendorosa nfase na carne e no desejo, apresentado por sua textura e seu volume, os aspectos superficiais da pele e as dobras da carne humana. Outros traos apontados referindo-se ao barroco esto na colocao enfadonha e abstrata de figuras e cenas alegricas na composio, atribuindo-as ao mundo fantstico, ao movimento e esplendor teatral, como uma forma de aproximao do espectador ao mundo celestial. Assim arquitetos, pintores e escultores foram convocados para transformar as igrejas em exibies grandiosas cujo esplendor e glria quase nos cortam a respirao (GOMBRICH, 1999, p. 436-437). Para alm dos fatores histricos, a esttica barroca prope analisar alguns conceitos questionados por historiadores.

    Para Argan, frente crise religiosa no sculo XVI, a defesa e a revalorizao das imagens e, portanto, da arte que as produz, a grande empreitada do barroco, que comea quando a Igreja, j certa de ter contido o ataque protestante, passa contra-ofensiva. E ressalta a imagem como poder de persuaso poltico-teolgica, ou seja, de poder condicionar todas as aes dos homens, qualquer que seja sua posio social e sua preparao cultural (ARGAN, 2004, p. 56-57). Essa condio trata a imagem como educadora dos impulsos emotivos como orientao para as aes humanas em um agir almejvel. Nisso, preciso deixar-se persuadir, ou seja, a arte de predispor a alma e a vontade a aceitar como desejveis as coisas sobre as quais se quer persuadir, fazendo com que se deseje ardentemente ser persuadido (ARGAN, 2004, p. 185). Para o historiador Hauser:

    A concepo artstica do barroco , numa palavra, cinemtica; os incidentes representados parecem ter sido entreouvidos por acaso e observados em segredo; qualquer indicao que possa denunciar uma reflexo ao observador apagada, tudo se apresenta em aparente concordncia com o puro acaso. Mas, alm da atrao do novo, difcil e complicado, isso constitui, uma vez mais, uma tentativa de suscitar no observador o sentimento de inesgotabilidade, incompreensibilidade e infinidade de representao uma tendncia que domina toda a arte barroca. (HAUSER, 1998, p. 447).

    Porm, conceitos da esttica barroca so problematizados por historiadores de arte recente, no qual discute a retomada destes ao longo da histria da arte. Destacam-se, nesse caso, os pressupostos defendidos por Wlfflin, que aborda conceitos originados do Renascimento e do Barroco, como fendas e constelaes que reaparecem na histria da arte. Entende que o curso da evoluo da arte no pode ser decomposto em uma srie de pontos isolados: os indivduos se organizam em grupos maiores. E destaca o termo barroco como um sistema de forma que oferece o agitado, o mutvel; [...] o ilimitado e colossal. As massas,

  • pesadas e pouco articuladas (dado ao Renascimento), entram em movimento (WLFFLIN, 2000, p. 9-12).

    Assim, Wlfflin parte de cinco categorias que resumem conceitos cintilantes na evoluo da histria da arte, dado que o primeiro conceito faz referncia ao Renascimento e o segundo ao Barroco: o linear e o pictrico; plano e profundidade; forma fechada e forma aberta; pluralidade e unidade; clareza e obscuridade. Deparamos esta referncia barroca na configurao das instituies religiosas.

    Para atender a essa nova demanda da liturgia, as igrejas adotaram planos de construo ousados e suntuosos. Configuraram-se assim, na arquitetura religiosa e na decorao de seus interiores, as caractersticas bsicas do que viria a ser esttica barroca: gosto pelo monumental; vontade de impressionar, exibio de riqueza material; superposio decorativa; gosto pelo inslito e pelo singular. (BIANCARDI, 2005, p. 46).

    O aspecto dado no barroco religioso teria como motivo expressar e propagar caractersticas repletas de signos, smbolos e significados, e o interior dos templos religiosos, como igrejas e capelas, foram palco e cenrio de enorme execuo artstica no entrecruzamento de linguagens, como escultura, pintura e arquitetura, caracterizando um espao que enfocasse a suntuosidade da casa do Senhor Deus. Nessa ocasio, precisava-se apelar para as emoes frente aos fiis que pudessem provocar temeridade religio e, ao mesmo tempo, o envolvimento com ela.

    Tanto na ordem cultural quanto na ordem artstica instala-se um desequilbrio, constitudo de tortuosidade, ambigidade, complicao (do sentir e da expresso) numa palavra, extremamente significativa da esttica barroca, do excesso que faz explodir o papel das referncias alegricas. (AGNOLIN, 2005, p. 175, grifo do autor).

    1.1 O ANJO NA ARTE COLONIAL LUSO-BRASILEIRA

    As ocorrncias das estruturas histricas na Europa atingiram o Novo Mundo, a colonizao das Amricas, no reflexo das caractersticas artsticas, principalmente entre as portuguesas e espanholas. Em Portugal, essas caractersticas artsticas referentes ao perodo foram diferentes tanto de seu pas vizinho, a Espanha, quanto da arte francesa e alem. Cabe ressaltar que os aspectos predominantes da arquitetura religiosa no Brasil so provenientes do conhecimento artstico portugus (Figura 12):

  • Muito simples no exterior, que praticamente s exibe ornamentao na fachada, as igrejas possuem interiores forrados de talha dourada, que em geral cobre por inteiro as paredes e o teto. Esse tipo de ornamentao adquiriu extraordinria exuberncia [...] caminhou para a unidade e a harmonia sob a influncia do rococ. (BAZIN, 1993, p. 235).

    Figura 12 - Igreja do Nosso Senhor do Bonfim (1754). Salvador, Bahia, 2009. Fonte: Fotografia da autora.

    O Brasil, na condio de colnia portuguesa, teve grande diversidade cultural de extenso europeia, que pode ser encontrada nas construes religiosas, como igrejas e capelas, difundidas para representar e inserir na construo social a ordem e os mandamentos da Igreja Catlica. Para que os marceneiros-entalhadores pudessem ter modelos para a execuo dos trabalhos, o repertrio artstico aqui inserido foi construdo, de acordo com Oliveira (2006, p. 46), com os estudos de fontes impressas que incluem tanto os tratados tericos e manuais tcnicos de arquitetura e ornamentao, quanto colees de gravuras ornamentais avulsas de todos os tipos [...]. As igrejas trouxeram, alm da religio, uma forma de iniciar o povoamento local e os aspectos artsticos da poca, sendo apresentados em seu interior e seu exterior. Isto , no sculo XVIII a arte colonial ainda era principalmente religiosa, e o estilo barroco produziu grande proliferao de formas, tanto na talha dourada dos interiores quanto nas fachadas de pedra [...] (BAZIN, 1993, p. 240). Nisso caracteriza-se por uma cultura barroca que permite percepes mltiplas, uma multiplicao dos significados, uma exploso das alegorias (AGNOLIN, 2005, p.175) (Figura 13).

  • Figura 13 - Igreja da Ordem Terceira dos Mnimos de So Francisco de Paula (1759-1801). Antnio de Pdua Castro (1855.1865). Arco cruzeiro (detalhe). Rio de Janeiro, RJ. Fonte: TIRAPELI, 2008.

    Esses novos condicionamentos da arte estiveram presentes na construo de igrejas e de mosteiros que, embora havendo escassez de materiais encontrados no Brasil, utilizaram-se da matria-prima regional. A maneira artstica no Brasil caracterizava-se por mltiplas unidades estticas e ideolgicas, tornando-se uma arte colonial luso-brasileira, devido ao seu domnio catlico do poder poltico portugus. Utilizamos como referncia artstica no perodo colonial do Brasil o termo arte colonial luso-brasileira, defendido por Hansen, que critica a aplicao indiscriminada do termo barroco para as obras do sculo XVII e XVIII ou do XVII que ultrapassa os cem anos convencionais. Para o autor [...] o barroco [...] produto de uma prtica situada, [...] no tem existncia independente do corpus que serve para defini-lo (HANSEN, 1997, p. 12). A representao da arte colonial luso-brasileira, na perspectiva de Hansen, uma tcnica no uma esttica que regula os efeitos, [...] argumentos e ornatos aplicados segundo os vrios decoros e verossmeis de gneros integrados s prticas de celebrao da hierarquia (HANSEN, 1995, p. 40). Desse modo, a classificao barroco e clssico, desenvolvida por Wlfflin implica caractersticas estticas abrangentes a cada poca debaixo da etiqueta de um nico conceito, defendido pelos neoclssicos e romnticos (HANSEN, 1997, p. 12-13).

    Hansen explica que a arte colonial dos sculos XVII e XVIII ultrapassa os cem anos convencionais, e a construo era baseada na teologia neo-escolstica, ou seja, considerava a retrica na construo vinculada produo de sentido a um corpo previamente legitimado de

  • modelos jamais esquecidos ou omitidos. De tal modo, era uma sociedade baseada fundamentalmente na idia de representao seiscentista [...], genericamente falando, sistemas retricos [...], referncias histricas de duraes muito diversas, [...] que define a arte como mimese ou imitao de modelos (HANSEN, 2005, p. 183).

    No sculo XVII [...] a apropriao catlica da Retrica, da tica, da Poltica, da Potica prope, ento, que, ao imitar os modelos, a conscincia dos artesos, poetas e escritores aconselhada ou originada pela luz natural da Graa inata [...]. Logo, a imitao seiscentista luso-brasileira feita segundo a doutrina teolgica neo-escolstica, que regula o uso retrico dos signos. (HANSEN, 2005, p. 183).

    No conjunto representativo da arte colonial luso-brasileira, Hansen considera como um teatro de princpios teolgico-polticos [...], theatrum sacrum, [cuja] hierarquia do corpo poltico do Estado dada a ver como um espetculo sagrado e natural, mstico e histrico. Assim, parte da representao construda na [...] imagem eqestre do Rei como o vir virtutum, varo de virtudes, modelo cristo de perfeio tico-poltica em que toda a ordem temporal do Reino se espelha [...]. Assim, a coisa, pessoa ou evento comemorados so dados a ver nas imagens como modelos de ao herica e virtuosa j vivida por vares ilustres, reciclveis na memria coletiva para a experincia do presente e do futuro (HANSEN, 1995, p. 43-44). Argan menciona nas representaes artsticas do perodo a persuaso, que prope um modelo de exemplaridade para aquele que [...] vive no presente, mas as suas decises implicam uma reflexo sobre o passado e uma previso do futuro. [E] se a arte persuaso, no dever persuadir a isto ou aquilo, mas sim assumir uma atitude clara e coerente em relao a isto, quilo, a tudo (ARGAN, 2004, p. 113).

    Como centro irradiador e construtor cultural e histrico da sociedade nesse perodo, a Igreja esteve submissa aos domnios do poder poltico portugus. Assim, apresentam-se dois contrastes no patrimnio religioso influenciado tambm pela caracterizao teolgica. A Igreja buscava mostrar-se [...] de um lado, por edifcios grandiosos nas dimenses e na riqueza de seus interiores; de outro, por construes muito singelas, ambos revelando os contrates socioculturais da vida colonial (BIANCARDI, 2005, p. 50), pois a grandiosidade vinha da magnitude de Deus, e a inocncia e a simplicidade propunha como virtudes para os homens. Ricamente ornamentada, a Igreja cumpria seu papel de disseminadora das ideias persuasivas da religio, e como local explorado pelo reinado portugus como difusor de normas sociais, possibilitando-nos ver em algumas obras a presena figurada da imagem do

  • rei. Nisso, no contexto colonial luso-brasileiro, o Padroado portugus era tido como referncia fundamental da vida religiosa do perodo.

    A relao entre a religio e a fundao de vilas no se limita, porm, aos patrimnios: Igreja e Estado, no perodo colonial, formavam um s poder; tendo o rei a autoridade a ele concedida pelo papa, mediante um tratado denominado Padroado de instituir bispos, padres e demais membros do clero secular. Ao rei de Portugal, e unicamente a ele, cabia, tambm, desde a concesso das fundaes das vilas at a salvao da alma dos vassalos. (TIRAPELI, 2005, p. 16).

    Figura 14 (A e B) - Igreja e Convento de So Francisco (1782). Salvador, Bahia, 2009. Fonte: Fotografia da autora.

    A preocupao da Igreja na construo, conservao e controle por parte dos fiis com base nos preceitos religiosos, principalmente na relao dos fiis com a igreja, tanto espiritual quanto estrutural, ou seja, administrativa e arquitetnica, fez com que houvesse uma responsabilidade ainda maior na construo arquitetnica e ornamentao das igrejas aplicadas sob regulamentos eclesisticos. Por meio do decoro (Figura 14 A e B), pressupunha-se como costume, como constncia, o uso correto dos modelos reconhecidos e adequados para o desenvolvimento conveniente na construo, execuo e imitao da arquitetura e artes (BASTOS, 2009). O decoro, principalmente aps o Conclio de Trento, foi responsvel pela conformidade dogmtica da Igreja Catlica, tanto nos quesitos arquitetnicos

  • quanto no uso e venerao das imagens sagradas. Essa orientao caberia para que os fiis pudessem imit-lo e, assim, seriam conduzidos moralidade e compostura religiosa catlica.

    O decoro nesse perodo foi o cerne na execuo das artes nas igrejas, e alguns artistas foram criticados, pois suas obras no eram adequadas s exigncias decorosas, tidas como critrio para a decncia das artes efetuadas em espaos sacros. Para outros artistas, o decoro tornou-se um elemento bastante custoso, devido imensido de possibilidades que a natureza permitiria na sua relao com a construo das imagens e as orientaes exigidas. Norbert Elias explica que o decoro regia praticamente todos os atos e representaes, a composio das artes e da arquitetura, os protocolos e as cerimnias que teatralizavam todos os diferentes aspectos exteriores da vida (BASTOS, 2009, p. 25).

    A construo das imagens com referncias retricas eram pressupostas pelo Estado Portugus como garantia de soberania e pela Igreja como difusora dos dogmas de forma clara e persuasiva. A representao das imagens era orientada pela prudncia, de modo que o decoro dos estilos evidencia o decoro tico-poltico da subordinao. Nas artes visuais, o decoro ficou resumido aplicao correta, justa e rigorosa de uma iconografia autorizada aplicada s imagens e cenas (BASTOS, 2009, p.56).

    [...] o decoro conservou sempre a responsabilidade por orientar o artista na procura do que adequado e conveniente, tanto em relao aos aspectos internos e implcitos obra (matria, gnero, estilo, propores, ordem e disposio apropriada de elementos e partes, ornamentos e elocuo, caracterstica, tica e pattica, proporo de comodidades e efeitos adequados), quanto tambm em relao aos aspectos e circunstantes a ela, a recepo que a obra deveria ter pelos destinatrios. (BASTOS, 2009, p. 39-40, Grifo do autor).

    No tratado do decoro usam-se termos qualificadores para as aes e intervenes construtivas, justificando e classificando cada espao do lugar, principalmente nas igrejas e capelas. Mesmo nas pinturas, a irrelevncia de elementos caractersticos nas passagens da Sagrada Escritura poderia ser motivo de acusaes pela falta de decoro, quando esses elementos fazem parte e interpretao da narrativa (BASTOS, 2009). Cada imagem instituda pelo decoro procura apresentar uma aparncia exemplar tanto na figurao em si quanto no propsito que procura mostrar. So as partes e o todo tendo base no decoro que contribuem como referncia e modelos para a formao visual e o comportamento, atitudes e aes humanas.

    A presena do anjo no decoro encontra-se na construo da composio artstica das instituies religiosas, como ser divino que aproxima o homem do divino, do celeste, de Deus. O repertrio para a insero dos anjos na proposio decorativa encontrado em

  • gravuras, em livros, em catlogos da poca ou anteriormente a ela, de forma a seguir os preceitos exigidos no momento. A utilizao do anjo no decoro foi como elemento decorativo, plstico-artstico e persuasivo de um espao sacro. A imagem do anjo como corpo persuasivo aos ideais exigidos foi construda como corpo sedutor e sagrado, mediador do celeste ao terreno, e vice-versa. A utilizao do anjo procurou direcionar o olhar do espectador para o espao e o cenrio sagrados. Encontrados nas construes religiosas, os anjos seguiram composies prximas, sendo localizados em ascenso imagem sagrada, adorando-a ou guardando-a, entre nuvens, ou posicionados como guardies. Eles aparecem frequentemente em torno do padroeiro, como mediador entre sagrado e profano, carregando objetos religiosos e divinos, como alegoria no cenrio sacro.

    Dessa forma, o decoro foi uma configurao no apenas para reformular dogmas da Igreja Catlica, mas tambm nos procedimentos antes, durante e aps a execuo artstica e arquitetnica. Quanto s imagens, esculpidas e pintadas, executadas nos estabelecimentos religiosos, foi preciso decoro, a inveno, a execuo e a aprovao desse modelo para que servisse de imitao e consolidao como costume. A consolidao do decoro e decncia aprovada em Portugal serviria como modelo na execuo deste em suas colnias. Dessa maneira, a preocupao com o decoro instaurada em Portugal tambm refletiu na execuo decorosa em suas colnias, mesmo auxiliada pelos modelos trazidos da Corte com a limitada elaborao artstica e arquitetnica pelos materiais regionais, repertrio local e desenvolvimento econmico.

    Inicialmente, a arte religiosa luso-brasileira colonial deu-se no litoral em funo da colonizao, principalmente Nordeste e Sudeste, em que grande parte da imponncia dos materiais preciosos era originada da extrao do ouro (Figura 14). O Rio de Janeiro, por sua localizao estratgica, tornou-se receptor dessa matria, e em outras localidades adquiriam caractersticas particulares, devido ao poder econmico local. Assim, em meados dos Sculos XVII e XVIII, com o ciclo do ouro, a decorao interior de igrejas e capelas, como talhas e objetos, foram suportes e palcos para a suntuosidade do poder ocasionado pelo material precioso.

    Na Regio Sul, o desenvolvimento da arte colonial luso-brasileira surgiu diferentemente dos principais estados do perodo colonial, como Minas Gerais, Bahia ou Rio de Janeiro. Entre os Sculos XVII e XVIII, no Sul, havia uma limitao para o desenvolvimento, devido ao fato de sua economia estar voltada para a agricultura, pois a extrao de ouro e o ciclo da cana-de-acar eram ausentes na regio.

  • O Sul foi pobre, e o eco das minas de ouro e diamante talvez nem tivesse chegado at l. O sul foi o grande enjeitado do Brasil-colnia; medrou na luta contra os castelhanos e manteve-se em p de guerra para se sustentar. No teve possibilidade alguma de uma fuga da realidade montona, em busca de um ideal religioso. Tudo era rotina e isolamento. O barroco que nos legou foi espordico, frio e tranqilo. Existiu, por certo, at mesmo belo na sua modstia, mas sem emoo. Frio e calculado, mas nem por isso menos barroco. A religio e a forma de governo foram as mesmas, mas no houve condies econmicas para qualquer tipo de exaltao coletiva. Houve um ideal no Sul, mas, por exceo, no foi religioso, foi poltico: o ideal das ptrias, pois seus habitantes, portugueses, defenderam para suas ptrias, e para ns, a terra que ocupavam. O lan poltico sobrepujou o religioso. (ETZEL, 1974, p. 56).

    Uma das consequncias para essa ausncia de investimento cultural foram os conflitos ocorridos entre espanhis e portugueses. Em decorrncia de seu posicionamento geogrfico, um lugar de passagem, o povoamento foi bastante prejudicado por saques, invases e destruies. Os investimentos estavam voltados segurana do espao, por meio do povoamento das terras. Dessa forma, foram pouqussimos os recursos investidos nas edificaes e decoraes, e as que foram erguidas e decoradas possuem certa singeleza e simplicidade, mas continuaram com as caractersticas devocionais da f do povo.

    As igrejas acompanharam o homem do barroco; nelas ele deixou a marca de suas angstias, representadas por uma arquitetura cheia de profunda f, opulenta em ouro e arroubos plsticos, que marcou esta poca frentica da nossa histria, perpetuando e como que desmentindo a dura realidade do mundo exterior, o fim da opulncia da poca do ouro do Brasil - colnia. (ETZEL, 1974, p. 48).

    Em Santa Catarina, estado situado ao sul do Pas, o povoamento deu-se por meio dos jesutas e bandeirantes. Dentre essas ocupaes, destaca-se a fundao da Pvoa de Nossa Senhora do Desterro, atual cidade de Florianpolis (1673). Inicialmente, a ilha permanecia deserta e, em consequncia das invases e necessidades em povo-la, executaram procedimentos enrgicos para o povoamento da regio. A colnia portuguesa enviou a Pvoa famlias aorianas, que tiveram grande contribuio na formao urbana, na histria, na cultura e nos costumes.

    Ausente o progresso, faltavam o dinheiro e o alento, promotores das grandes realizaes artsticas. [...] podemos compreender o porqu dos raros remanescentes barrocos do Sul, presentes, belos, embora modestos, em plena harmonia com a histria do Brasil-colnia. Outras, completamente alteradas na sua feio exterior e, sobretudo na interior, com acentuada mistura de estilos e at figuras antropomorfas de sabor missioneiro. (ETZEL, 1974, p. 237).

  • Os carpinteiros e artesos aorianos, movidos pela religio catlica, construram dessa forma igrejas, capelas e retbulos. O interesse pela arte religiosa consistiu no seu contexto colonial luso-brasileiro, no seu valor como elemento integrante e indispensvel na decorao total dos interiores das igrejas e na teatralizao sobre a afirmao da soberania da corte portuguesa em integrao com o poder religioso, com o objetivo de propagao da f e domnio portugus. Na cidade de Florianpolis, pela falta de especializao, a execuo nem sempre obedecia s especificidades exigidas, mas a iconografia crist permanecia na representao da iconografia da Contra-Reforma, destacando a motivao pela f crist (Figura 15).

    Em todo o mundo catlico, principalmente na Espanha, em Portugal e nas colnias, tanto os retbulos quanto os plpitos eram peas fundamentais para a estruturao do espao sagrado do templo. A talha assumia, portanto, papel fundamental na ordenao do espao e na preparao e adequao deste para o culto divino. (FREIRE, 2006, p. 144).

    Figura 15 (A e B) - Capela de Nossa Senhora das Necessidades (1755). Nave lateral com sacrrio. Florianpolis, Santa Catarina, 2008. Fonte: Fotografia da autora.

    Na decorao das igrejas, usava-se a abundncia do ouro e dos materiais preciosos, que emergiram muitas vezes nos retbulos e nos veios da arquitetura interna assim como nos

  • objetos religiosos, formando muitas vezes uma representao de gruta sagrada e temerosa. O material regional propiciava a explorao da madeira no interior das igrejas, sendo elaboradas as talhas com detalhes. Ao contrrio da parte externa, pela carncia de amplos recursos e de materiais apropriados, a decorao tornou-se mais simples e singela. Algumas dessas caractersticas so apontadas por Etzel, que utiliza o termo barroco, ao contrrio de Hansen, que utiliza colonial luso-brasileiro como significao prtica arquitetnica e artstica do Sul.

    Em contraposio, temos que reconhecer que nem sempre o barroco no Brasil foi assim representado, pois houve regies onde as condies socioeconmicas determinaram outro tipo de construes. Neles, teve expresso modesta, sem ouro; a talha, ambiciosa na sua pobreza, manifesta-se em alguma coluna salomnica, em raras volutas simtricas, em linhas curvas, numa que outra folha de acanto, em raros e grosseiros anjos. O intuito na f foi o mesmo, os recursos que foram mnimos. (ETZEL, 1974, p. 29).

    O interior das igrejas e capelas apresenta-nos uma preciosidade de detalhes, pois sua execuo requereu destreza e qualificao na utilizao dos materiais corretamente. Os elementos alegricos e signos encontrados tiveram como modelo reprodues ou representaes de materiais propagadores dessas imagens, como pinturas e gravuras. Esses modelos que serviram aos mestres-entalhadores, foram transpostos para monumentos, retbulos executados em madeira, depois dourada e policromada (COSTA, 2005, p. 62). A partir desses exemplares, criavam outras formas das partes de um todo, apresentando diversos jogos de composio.

    Dentre esses elementos, podemos observar a presena de anjos. As figuras antropomrficas so formas de aproximar o homem ao semelhante, tornando-se assim um caminho mais estreito chegada ao paraso. Os anjos nas talhas e pinturas luso-brasileiras muitas vezes possuem corpos sedutores, olhares sensuais e delicados, formas angulosas, movimentos e gestos sinuosos. Parecem danar e voar entre os veios da madeira, em poses delicadas e sensuais ao mesmo tempo. A presena do anjo na poca seiscentista, e disposto da maneira talhada que se apresenta, apontada por Hansen como o anjo que conhece a Deus (Figura 16):

    Aqui, um lugar-comum muito corrente no sculo XVII o do pensamento do Anjo. Pergunta-se, ento, como diz Santo Toms de Aquino na Suma Teolgica, se o anjo usa representaes quando pensa e a concluso a de que o intelecto anglico v diretamente a Deus, por isso no pode usar imagens para representar o que v. A discusso do intelecto humano, que qualitativamente diferente. O anjo no conhece a representao porque v diretamente a Deus; por definio, como a mente humana finita, ou seja, incapaz de conceber Deus sem imagens, todo conhecimento humano indireto, ou terico ou analgico, feito sempre mediante representao ou imagens dos conceitos, ou seja, por meio de metforas. (HANSEN, 2005, p. 183).

  • Figura 16 - Catedral Baslica de N. Senhora do Pilar (1732). Detalhe do coroamento do retbulo-mor (1732). So Joo Del-Rei, MG. Fonte: TIRAPELI, 2008.

    Percebemos que nas igrejas onde foram executadas intensas ornamentaes a presena do anjo torna-se um smbolo figurativo e decorativo, como um figurante nesse cenrio do teatro sacro, quase desaparecendo entre outros elementos nos veios das talhas e cenas alegricas de pinturas. No entanto, apesar do imenso nmero de elementos compositivos em uma mesma igreja, os anjos so executados com detalhes, harmonia e destreza. Nisso, confere uma imagem doce, sinuosa e delicada, mesmo apresentando muitas vezes um semblante envelhecido e um corpo desproporcional. Nesse perodo, entre os sculos XVIII e XIX, destacamos a presena de pintores e escultores que foram significativos para a construo desse repertrio iconogrfico cristo nas instituies religiosas do perodo luso-brasileiro. Dentre eles, destacamos Manoel da Costa Atade (Figura 17), artista mineiro, cujas pinturas e esculturas apresentam as proposies dogmticas crists, como a representao de anjos, santos, padroeiros das igrejas e capelas e outros. Para a execuo dessa composio e personagens, como os demais artistas do seu tempo, recorria bblia e a missais impressos na Europa como ponto de partida para a seleo iconogrfica das suas composies, que ento recriava com inventiva liberdade (ANDRADE; FROTA; MORAES, 1982, p. 46). Tinha ao mesmo tempo referncias do seu contexto, como a construo dos corpos mestios e a insero de instrumentos do cotidiano na construo cenogrfica, como os instrumentos musicais e manuais e trabalhos de douramentos, na interao entre as linguagens plsticas,

  • como pintura, escultura e arquitetura. Atade realizou a pintura do forro da nave da Igreja de So Francisco de Assis de Ouro Preto, em Minas Gerais, colaborando com o escultor Aleijadinho. O forro mostra um persuasivo cenrio celeste. Observam-se estes anjinhos, em vo espiralado, evoluem de uma nuvem concheada em tons spia, movimentando com a sua circularidade um espao de clmax na pintura do quadro, bem acima da cabea da Virgem. (ANDRADE; FROTA; MORAES, 1982, p. 54). Sustentada pela arquitetura, Atade procurou trat-la como parte desse plano que, repleto de personagens celestiais, de formas contorcidas e gesticuladas rpidas, alcana a unicidade das partes. Nessa pintura aparece parte da hierarquia celeste, como descreve Hill (Figura 18):

    Nesta parte central do forro analisado, a Virgem encontra-se subindo aos cus, rodeada por representantes de trs dos nove Coros anglicos. Eles cantam e tocam uma grande variedade de instrumentos. Trata-se dos Querubins, dos Serafins e dos Anjos. Os dois primeiros representam as classes mais elevadas na hierarquia celeste. Tradicionalmente, eles se diferenciam pelo nmero de asas, tendo os Querubins, quatro, e os Serafins, seis. (HILL, 2000, p. 135).

    Figura 17- Manuel da Costa Atade. Forro da nave da Igreja de So Francisco de Assis de Ouro Preto (1801-1802). Fonte: ANDRADE; FROTA; MORAES, 1982.

  • Figura 18 - Manuel da Costa Atade. Forro da nave da Igreja de So Francisco de Assis de Ouro Preto. Pormenor do quadro central. Fonte: ANDRADE; FROTA; MORAES, 1982.

    J as igrejas na Ilha de Santa Catarina que possuem a imagem do anjo demonstram um carter singular. Mesmo estando em torno das imagens divinas, os anjos esto dispostos to separadamente que conferem uma posio de protagonistas dentro desse cenrio sacro. Contudo, os anjos aqui presentes mostram pouco movimento, confeco pouco rebuscada e simplicidade das formas e figurabilidade. Isso demonstra o baixo investimento cultural, porm no ignorado, devido escassez de materiais e qualificao dos artesos. Apresentamos duas igrejas na Ilha de Santa Catarina que possuem imagens de anjos em suas talhas e pinturas, porm de forma simples e escassa, em comparao com as demais igrejas observadas no Sudeste e Nordeste do Pas.

    A presena dos anjos na Capela de Nossa Senhora das Necessidades (1755) pode ser vista em maior nmero em seus dois retbulos laterais (Figura 15 A e B). Aqui notvel nos dois retbulos so as numerosas cabeas de anjos que se encontram no fronto, nos coarteles e no sacrrio. No mais, enfeites fitomorfos com margaridas e guirlandas (ETZEL, 1974, p. 246). No altar-mor, a presena do anjo se d pelo olhar minucioso, pois devido s inmeras camadas de tinta branca, a presena do anjo na talha torna-se de difcil identificao (Figura 19 A e B). Apesar dessa complicada assimilao, Etzel (1974) d pistas de sua localizao: [...] o escudo do fronto do altar-mor, a nosso ver, esclarece a disparidade apontada, cujo apontamento explicava a falta de figuras antropomorfas no altar-mor, diferentemente dos laterais, ostenta o Divino, encimado por um querubim e uma grande coroa [...]. Etzel supe que provavelmente esse escudo foi inserido posteriormente. Os anjos encontrados na Capela

  • de Nossa Senhora das Necessidades demonstram a simplicidade de ornamentos, e suas formas so simples, com poucos detalhes pictricos elaborados.

    Figura 19 (A e B) - Capela de Nossa Senhora das Necessidades (1755). Altar-mor e escudo. Florianpolis, Santa Catarina, 2009. Fonte: Fotografia da autora.

    Ainda assim, na Capela de Nossa Senhora das Necessidades, na pintura do nicho principal do altar-mor (Figura 20 A e B), so encontradas figuras de anjos, especificamente cabeas aladas em seis tbuas ordenadas e que circundam uma imagem no identificvel, mas que visvel a presena de linhas retilneas que apresentam ao seu redor, como uma silhueta de luz resplandecente. Muitas vezes, esses anjos esto ao redor de uma imagem, no identificada, mas que podemos interpretar como uma figura de santo, Virgem, Jesus ou padroeiro da Capela, que est sendo adorado ou acompanhado na sua ascenso pelos anjos. Em algumas pinturas do perodo colonial luso-brasileiro, alguns anjos velam ou carregam a imagem central sobre nuvens encapeladas e querubins apinhados em torno dela, como enxames de insetos em redor de uma vela acesa (KITSON, 1966, p. 46). Entretanto, ao observarmos o interior das igrejas, principalmente aquelas do perodo colonial, que dispem de anjos na composio decorativa, existem repeties em seu arranjo, porm contidas com certa singularidade.

  • Figura 20 (A e B) - Capela de Nossa Senhora das Necessidades (1755). Nicho principal do Retbulo do altar- mor. Florianpolis, SC, 2009. Fonte: Fotografia da autora.

    A Igreja de Nossa Senhora da Conceio da Lagoa (1780) apresenta um nmero maior de anjos entalhados nos retbulos do altar-mor. Dispondo de um arco dourado e contendo elementos fitomorfos, aparecem trs anjos em forma de cabeas aladas. Esses anjos possuem detalhes nos rostos e em suas asas, ressaltando suas partes. Seus olhos so contornados em preto e pupilas azuis, sua boca rosada e sua pele clara e redonda. Percebe-se que esses anjos laterais so executados diferentemente dos anjos observados no retbulo do altar-mor. possvel que sejam retbulos executados por outro arteso ou posteriormente (Figura 21 A e B).

  • Figura 21 (A e B) - Igreja de Nossa Senhora da Conceio da Lagoa (1780). Retbulo do altar-mor e detalhes. Florianpolis, Santa Catarina, 2009. Fonte: Fotografia da autora.

    Esses anjos observados na capela e na igreja, de modo geral, possuem um semblante sbrio e ameno. So poucos aqueles que demonstram movimento, conferido em alguns anjos da Capela de Nossa Senhora das Necessidades, no posicionamento de estar voltado para diagonal ou para cima, mas, em sua maioria, os anjos esto apresentados apenas como cabeas aladas de frente e estticas. Seus traos so rpidos e h pouco movimento dado s asas. Em uma licena potica, relacionando esse anjo de forma menos simblica da iconografia vista at aqui, referimos esses anjos como anjos desterrados, uma aluso queles que, vindos de longe para o povoamento e desenvolvimento local, encontravam-se esquecidos, isolados e desatados, devido condio econmica e social que encontravam. Ou seja, simples e escassa era a vida proporcionada. Ocorre-nos ento pensar no desterrado como algo vindo de outro lugar refletindo o novo sem deixar o velho; pensar nesse anjo como construo do repertrio construdo e no excludo.

    Esse povo de devoo forte da f catlica ergueu suas igrejas na esperana e no conforto de serem acolhidos e salvos dos acontecimentos em uma terra desconhecida. Mesmo com as invases, saques e destruies, e, ainda, pelas funes de povoamento da ilha para manter a segurana e garantir as terras da colnia, estes no impediram de o povo aplicar seus costumes, suas histrias e sua religio.

  • Figura 22 - Capela de Nossa Senhora das Necessidades (1755). Detalhe da talha. Florianpolis, SC, 2009. Fonte: Fotografia da autora.

    Esse anjo desterrado est ento relacionado ao contexto da poca, como um espelho dos povos que para c vieram, desiludidos pela falta de perspectivas e limitaes socioeconmicas, um espelho desse homem que viveu tomando parte numa poca de sobressaltos, esperanas e desiluses, no em torno de ambies polticas, mas em torno de riquezas palpveis, reais, [...] criando fantasias das massas, algo maravilhoso como um sonho (ETZEL, 1974, p. 48).

    Assim, encontra-se a presena da figura antropomrfica nessas igrejas, nesse caso, representada pelos anjos, em conjunto aos demais elementos com predomnio de