história do conceito de saúde

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PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 17(1):29-41, 2007 29 RESUMO Os conceitos de saúde e de doença são analisados em sua evolução histórica e em seu relacionamento com o contexto cultural, social, político e econômico, evidenciando a evolução das idéias nessa área da experiência humana. Palavras-chave: Saúde; doença; cultura; história. Recebido em: 28/02/2007. Aprovado em: 15/03/2007. História do Conceito de Saúde MOACYR SCLIAR

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  • Histria do Conceito de Sade

    PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 17(1):29-41, 2007 29

    RESUMO

    Os conceitos de sade e de doena so analisados em sua evoluo histricae em seu relacionamento com o contexto cultural, social, poltico e econmico,evidenciando a evoluo das idias nessa rea da experincia humana.

    Palavras-chave: Sade; doena; cultura; histria.

    Recebido em: 28/02/2007.Aprovado em: 15/03/2007.

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    O conceito de sade reflete a conjuntura social, econmica, poltica ecultural. Ou seja: sade no representa a mesma coisa para todas as pessoas.Depender da poca, do lugar, da classe social. Depender de valoresindividuais, depender de concepes cientficas, religiosas, filosficas. Omesmo, alis, pode ser dito das doenas. Aquilo que considerado doenavaria muito. Houve poca em que masturbao era considerada uma condutapatolgica capaz de resultar em desnutrio (por perda da protena contida noesperma) e em distrbios mentais. A masturbao era tratada por dieta, porinfibulao, pela imobilizao do paciente, por aparelhos eltricos que davamchoque quando o pnis era manipulado e at pela ablao da genitlia. Houvepoca, tambm, em que o desejo de fuga dos escravos era consideradoenfermidade mental: a drapetomania (do grego drapetes, escravo). O diagnsticofoi proposto em 1851 por Samuel A. Cartwright, mdico do estado da Louisiana,no escravagista sul dos Estados Unidos. O tratamento proposto era o do aoite,tambm aplicvel disestesia etipica, outro diagnstico do doutor Cartwright,este explicando a falta de motivao para o trabalho entre os negros escravizados.

    Real ou imaginria, a doena, e sobretudo a doena transmissvel, umantigo acompanhante da espcie humana, como o revelam pesquisaspaleontolgicas. Assim, mmias egpcias apresentam sinais de doena(exemplo: a varola do fara Ramss V). No de admirar que desde muitocedo a Humanidade se tenha empenhado em enfrentar essa ameaa, e devrias formas, baseadas em diferentes conceitos do que vem a ser a doena(e a sade). Assim, a concepo mgico-religiosa partia, e parte, do princpiode que a doena resulta da ao de foras alheias ao organismo que neste seintroduzem por causa do pecado ou de maldio. Para os antigos hebreus, adoena no era necessariamente devida ao de demnios, ou de mausespritos, mas representava, de qualquer modo, um sinal da clera divina,diante dos pecados humanos. Deus tambm o Grande Mdico: Eu sou oSenhor, e sade que te trago (xodo 15, 26); De Deus vem toda a cura(Eclesiastes, 38, 1-9).

    A doena era sinal de desobedincia ao mandamento divino. Aenfermidade proclamava o pecado, quase sempre em forma visvel, como nocaso da lepra Trata-se de doena contagiosa, que sugere, portanto, contatoentre corpos humanos, contato que pode ter evidentes conotaes pecaminosas.O Levtico detm-se longamente na maneira de diagnosticar a lepra; mas nofaz uma abordagem similar para o tratamento. Em primeiro lugar, porque taltratamento no estava disponvel; em segundo, porque a lepra podia ser doena,

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    mas era tambm, e sobretudo, um pecado. O doente era isolado at a cura, umprocedimento que o cristianismo manter e ampliar: o leproso era consideradomorto e rezada a missa de corpo presente, aps o que ele era proibido de tercontato com outras pessoas ou enviado para um leprosrio. Esse tipo deestabelecimento era muito comum na Idade Mdia, em parte porque o rtulo delepra era freqente, sem dvida abrangendo numerosas outras doenas.

    Os preceitos religiosos do judasmo expressam-se com freqnciaem leis dietticas, que figuram, em especial, nos cinco primeiros livros daBblia (Tor, ou Pentateuco). Sua finalidade mais evidente a de manter acoeso grupal, acentuando as diferenas entre hebreus e outros povos doOriente Mdio. Essas disposies eram sistemas simblicos, destinados amanter a coeso do grupo e a diferenciao com outros grupos, mas podemter funcionado na preveno de doenas, sobretudo de doenas transmissveis.Por exemplo, um animal no poderia ser abatido por pessoa que tivesse doenade pele, o que faz sentido: leses de pele podem conter micrbios. Moluscoseram proibidos, e dessa forma certas doenas, como a hepatite transmitidapor ostras, podiam ser evitadas. Isso no significa que a preveno fosseexercida conscientemente; as causas das doenas infecciosas eramdesconhecidas. Seria muito difcil, por exemplo, associar a carne de porco transmisso da triquinose. Para isto h uma explicao ecolgica, por assimdizer. A criao de sunos, no Oriente Mdio, seria um contra-senso. Trata-sede uma regio rida, sem a gua de que esses animais necessitam comoforma de manter seu equilbrio trmico. Alm disso, povos nmades teriamdificuldades em manter um animal que se move pouco, como o porco.Finalmente, ao contrrio dos bovinos, que servem como animal de trao eque proporcionam leite, o suno s fornece a carne - uma luxria, portanto,uma tentao que era evitada pelo rgido dispositivo da lei.

    Em outras culturas era o xam, o feiticeiro tribal, quem se encarregavade expulsar, mediante rituais, os maus espritos que se tinham apoderado dapessoa, causando doena. O objetivo reintegrar o doente ao universo total, doqual ele parte. Esse universo total no algo inerte: ele vive e fala; ummacrocorpo, do qual o Sol e a Lua so os olhos, os ventos, a respirao, aspedras, os ossos (homologao antropocsmica). A unio do microcosmo que o corpo com o macrocosmo faz-se por meio do ritual.

    Entre os ndios Sarrum, que vivem na regio da fronteira entre Brasile Venezuela, o conceito de morte por causa natural ou mesmo por acidente

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    praticamente inexiste: sempre resulta da maldio de um inimigo. Ou, ento,conduta imprudente: se algum come um animal tabu, o esprito desse animalvinga-se provocando doena e morte.

    A tarefa do xam convocar espritos capazes de erradicar o mal.Para isso ele passa por um treinamento longo e rigoroso, com prolongadaabstinncia sexual e alimentar; nesse perodo aprende as canes xamansticase utiliza plantas com substncias alucingenas que so chamarizes para osespritos capazes de combater a doena.

    A medicina grega representa uma importante inflexo na maneira deencarar a doena. verdade que, na mitologia grega, vrias divindades estavamvinculadas sade. Os gregos cultuavam, alm da divindade da medicina,Asclepius, ou Aesculapius (que mencionado como figura histrica na Ilada),duas outras deusas, Higieia, a Sade, e Panacea, a Cura. Ora, Higieia era umadas manifestaes de Athena, a deusa da razo, e o seu culto, como sugere onome, representa uma valorizao das prticas higinicas; e se Panacearepresenta a idia de que tudo pode ser curado - uma crena basicamentemgica ou religiosa -, deve-se notar que a cura, para os gregos, era obtida pelouso de plantas e de mtodos naturais, e no apenas por procedimentos ritualsticos.

    Essa viso religiosa antecipa a entrada em cena de um importantepersonagem: o pai da Medicina, Hipcrates de Cs (460-377 a.C.). Pouco sesabe sobre sua vida; poderia ser uma figura imaginria, como tantas naAntigidade, mas h referncias sua existncia em textos de Plato, Scratese Aristteles. Os vrios escritos que lhe so atribudos, e que formam o CorpusHipocraticus, provavelmente foram o trabalho de vrias pessoas, talvez emum longo perodo de tempo. O importante que tais escritos traduzem umaviso racional da medicina, bem diferente da concepo mgico-religiosa antesdescrita. O texto intitulado A doena sagrada comea com a seguinteafirmao: A doena chamada sagrada no , em minha opinio, mais divinaou mais sagrada que qualquer outra doena; tem uma causa natural e suaorigem supostamente divina reflete a ignorncia humana.

    Hipcrates postulou a existncia de quatro fluidos (humores) principaisno corpo: bile amarela, bile negra, fleuma e sangue. Desta forma, a sade erabaseada no equilbrio desses elementos. Ele via o homem como uma unidadeorganizada e entendia a doena como uma desorganizao desse estado. Aobra hipocrtica caracteriza-se pela valorizao da observao emprica, comoo demonstram os casos clnicos nela registrados, reveladores de uma viso

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    epidemiolgica do problema de sade-enfermidade. A apoplexia, dizem essestextos, mais comum entre as idades de 40 e 60 anos; a tsica ocorre maisfreqentemente entre os 18 e os 35 anos. Essas observaes no se limitavamao paciente em si, mas a seu ambiente. O texto conhecido como Ares, guas,lugares discute os fatores ambientais ligados doena, defendendo um conceitoecolgico de sade-enfermidade.

    Da emergir a idia de miasma, emanaes de regies insalubrescapazes de causar doenas como a malria, muito comum no sul da Europa euma das causas da derrocada do Imprio Romano. O nome, alis, vem do latime significa maus ares ( bom lembrar que os romanos incorporam os princpiosda medicina grega).

    Galeno (129-199) revisitou a teoria humoral e ressaltou a importnciados quatro temperamentos no estado de sade. Via a causa da doena comoendgena, ou seja, estaria dentro do prprio homem, em sua constituio fsicaou em hbitos de vida que levassem ao desequilbrio.

    No Oriente, a concepo de sade e de doena seguia, e segue, umrumo diferente, mas de certa forma anlogo ao da concepo hipocrtica. Fala-se de foras vitais que existem no corpo: quando funcionam de forma harmoniosa,h sade; caso contrrio, sobrevem a doena. As medidas teraputicas(acupuntura, ioga) tm por objetivo restaurar o normal fluxo de energia (chi,na China; prana, na ndia) no corpo.

    Na Idade Mdia europia, a influncia da religio crist manteve aconcepo da doena como resultado do pecado e a cura como questo de f;o cuidado de doentes estava, em boa parte, entregue a ordens religiosas, queadministravam inclusive o hospital, instituio que o cristianismo desenvolveumuito, no como um lugar de cura, mas de abrigo e de conforto para os doentes.Mas, ao mesmo tempo, as idias hipocrticas se mantinham, atravs datemperana no comer e no beber, na conteno sexual e no controle das paixes.Procurava-se evitar o contra naturam vivere, viver contra a natureza. Oadvento da modernidade mudar essa concepo religiosa.

    O suo Paracelsus (1493-1541) afirmava que as doenas eramprovocadas por agentes externos ao organismo. Naquela poca, e no rastro daalquimia, a qumica comeava a se desenvolver e influenciava a medicina. DiziaParacelso que, se os processos que ocorrem no corpo humano so qumicos, osmelhores remdios para expulsar a doena seriam tambm qumicos, e passou

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    ento a administrar aos doentes pequenas doses de minerais e metais,notadamente o mercrio, empregado no tratamento da sfilis, doena que, emfuno da liberalizao sexual, se tinha tornado epidmica na Europa.

    J o desenvolvimento da mecnica influenciou as idias de RenDescartes, no sculo XVII. Ele postulava um dualismo mente-corpo, o corpofuncionando como uma mquina. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento daanatomia, tambm conseqncia da modernidade, afastou a concepo humoralda doena, que passou a ser localizada nos rgos. No famoso conceito deFranois Xavier Bichat (1771-1802), sade seria o silncio dos rgos.

    Mas isto no implicou grandes progressos na luta contra as doenas,que eram aceitas com resignao: Pascal dizia que a enfermidade um caminhopara o entendimento do que a vida, para a aceitao da morte, principalmentede Deus. Mais tarde, os romnticos no apenas aceitariam a doena, como adesejariam: morrer cedo (de tuberculose, sobretudo) era o destino habitual depoetas e msicos como Castro Alves e Chopin. Para o poeta romntico alemo,a doena refinaria a arte de viver e a arte propriamente dita. Sade, nestascircunstncias, era at dispensvel.

    Mas a cincia continuava avanando e no final do sculo XIX registrou-se aquilo que depois seria conhecido como a revoluo pasteuriana. Nolaboratrio de Louis Pasteur e em outros laboratrios, o microscpio, descobertono sculo XVII, mas at ento no muito valorizado, estava revelando a existnciade microorganismos causadores de doena e possibilitando a introduo desoros e vacinas. Era uma revoluo porque, pela primeira vez, fatores etiolgicosat ento desconhecidos estavam sendo identificados; doenas agora poderiamser prevenidas e curadas.

    Esses conhecimentos impulsionaram a chamada medicina tropical. Otrpico atraa a ateno do colonialismo, mas os empreendimentos comerciaiseram ameaados pelas doenas transmissveis endmicas e epidmicas. Da anecessidade de estud-las, preveni-las, cur-las. Nessa poca nascia tambma epidemiologia, baseada no estudo pioneiro do clera em Londres, feito pelomdico ingls John Snow (1813-1858), e que se enquadrava num contexto decontabilidade da doena. Se a sade do corpo individual podia ser expressapor nmeros - os sinais vitais -, o mesmo deveria acontecer com a sade docorpo social: ela teria seus indicadores, resultado desse olhar contbil sobre apopulao e expresso em uma cincia que ento comeava a emergir, a estatstica.

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    O termo de origem alem, Statistik, e deriva de Staat, Estado, o que bastante significativo, pois o desenvolvimento da estatstica coincide com osurgimento de um Estado forte, centralizado. A estatstica teve boa acolhida naInglaterra, onde vigorava a idia, mais tarde expressa em um famoso dito deLord Kelvin (William Thomson, 1824-1907), segundo o qual tudo que verdadeiropode ser expresso em nmeros.

    Na verdade, mtodos numricos no estudo da sociedade, a includa asituao de sade, j haviam sido introduzidos no sculo XVII. O mdico e ricoproprietrio rural William Petty (1623-1687) iniciara o estudo do que denominavade anatomia poltica, coletando dados sobre populao, educao, produoe tambm doenas. John Graunt (1620-1674), comerciante de profisso, masmembro da Royal Society, havia conduzido, com base nos dados de obiturios,os primeiros estudos analticos de estatstica vital, identificando diferenas namortalidade de diferentes grupos populacionais e correlacionando sexo e lugarde residncia. Esse processo ganhou impulso no sculo XIX.

    Em 1826, Louis Ren Villerm (1782-1863), mdico, publicou umrelatrio analisando a mortalidade nos diferentes bairros de Paris (Tableau deltat physique et moral des ouvriers), concluindo que era condicionadasobretudo pelo nvel de renda. Na Inglaterra, bero da Revoluo Industrial,tambm surgiram estudos desse tipo: que ali se faziam sentir com mais foraos efeitos, sobre a sade, da urbanizao, da proletarizao. Esta foi a situaoque inspirou Friedrich Engels a escrever Condio da classe trabalhadora naInglaterra. A partir de 1840 aparecem os Bluebooks e inquritos estatsticos.

    Carter pioneiro nas estatsticas de sade atribudo a William Farr(1807-1883). Mdico, Farr tornou-se em 1839 diretor-geral do recm-estabelecido General Register Office da Inglaterra, e a permaneceu por maisde 40 anos. Seus Annual Reports, nos quais os nmeros de mortalidade secombinavam com vvidos relatos, chamaram a ateno para as desigualdadesentre os distritos sadios e os no-sadios do pas. Em 1842, Edwin Chadwick(1800-1890) escreveu um relatrio que depois se tornaria famoso: As condiessanitrias da populao trabalhadora da Gr-Bretanha. Chadwick, queno era mdico nem sanitarista, mas advogado, impressionou o Parlamento,que em 1848 promulgou lei (Public Health Act) criando uma Diretoria Geralde Sade, encarregada, principalmente, de propor medidas de sade pblica ede recrutar mdicos sanitaristas. Dessa forma teve incio oficial o trabalho desade pblica na Gr-Bretanha.

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    Em 1850, nos Estados Unidos, Lemuel Shattuck, livreiro, faz um relatosobre as condies sanitrias em Massachusetts - e uma diretoria de sade criada nesse Estado, reunindo mdicos e leigos. Ao mesmo tempo, outrasrevolues, estas sangrentas, ocorriam, como a de 1848, como a Comuna deParis: Karl Marx estava diagnosticando os males do capitalismo e propondoprofundas modificaes na sociedade. Mesmo que estas no ocorressem,modificaes precisavam ser feitas. Os capitalistas e latifundirios precisavam,nas palavras de Otto von Bismarck, o chanceler de ferro, serem salvos delesprprios, de sua ganncia que ameaava sacrificar a mo-de-obra operria.Bismarck criou, em 1883, um sistema de seguridade social e de sade que, porvrios aspectos, foi pioneiro. Alis, na Alemanha j tinha surgido, em 1779, aidia da interveno do Estado na rea de sade pblica. Naquele ano comeavaa ser publicado o System einer Vollstndigen medicinischen Polizei, obramonumental com a qual Johan Peter Frank (1745-1821) lanava o conceito,paternalista e autoritrio, de polcia mdica ou sanitria.

    Depois da Alemanha, o sistema foi implantado na Frana, que, tendoanexado a Alscia-Lorena aps a Primeira Guerra Mundial, no quis privar apopulao dessa regio dos benefcios de que gozava sob o Imprio Alemo.Vrios outros pases foram copiando o sistema. Mudana substancial ocorreria poca da Segunda Guerra, na Gr-Bretanha. Com o intuito de oferecer aopovo ingls uma espcie de compensao pelas agruras sofridas com o conflitoblico, o governo de Sua Majestade encarregou, em 1941, Sir William Beveridgede fazer um diagnstico da situao do seguro social. Dezoito meses maistarde, Beveridge submeteu ao governo um plano, em conseqncia do qual foicriado, como parte do Welfare System, que prometia proteo do bero tumba, o Servio Nacional de Sade, destinado a fornecer ateno integral sade a toda a populao, com recursos dos cofres pblicos.

    Mas no havia ainda um conceito universalmente aceito do que sade.Para tal seria necessrio um consenso entre as naes, possvel de obter somentenum organismo internacional. A Liga das Naes, surgida aps o trmino daPrimeira Guerra, no conseguiu esse objetivo: foi necessrio haver uma SegundaGuerra e a criao da Organizao das Naes Unidas (ONU) e da OrganizaoMundial da Sade (OMS), para que isto acontecesse.

    O conceito da OMS, divulgado na carta de princpios de 7 de abril de1948 (desde ento o Dia Mundial da Sade), implicando o reconhecimento dodireito sade e da obrigao do Estado na promoo e proteo da sade, diz

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    que Sade o estado do mais completo bem-estar fsico, mental e social e noapenas a ausncia de enfermidade. Este conceito refletia, de um lado, umaaspirao nascida dos movimentos sociais do ps-guerra: o fim do colonialismo,a ascenso do socialismo. Sade deveria expressar o direito a uma vida plena,sem privaes. Um conceito til para analisar os fatores que intervm sobre asade, e sobre os quais a sade pblica deve, por sua vez, intervir, o decampo da sade (health field), formulado em 1974 por Marc Lalonde, titulardo Ministrio da Sade e do Bem-estar do Canad - pas que aplicava o modelomdico ingls. De acordo com esse conceito, o campo da sade abrange:

    a biologia humana, que compreende a herana gentica e osprocessos biolgicos inerentes vida, incluindo os fatores deenvelhecimento;

    o meio ambiente, que inclui o solo, a gua, o ar, a moradia, o local detrabalho;

    o estilo de vida, do qual resultam decises que afetam a sade:fumar ou deixar de fumar, beber ou no, praticar ou no exerccios;

    a organizao da assistncia sade. A assistncia mdica, osservios ambulatoriais e hospitalares e os medicamentos so asprimeiras coisas em que muitas pessoas pensam quando se fala emsade. No entanto, esse apenas um componente do campo da sade,e no necessariamente o mais importante; s vezes, mais benficopara a sade ter gua potvel e alimentos saudveis do que dispor demedicamentos. melhor evitar o fumo do que submeter-se aradiografias de pulmo todos os anos. claro que essas coisas noso excludentes, mas a escassez de recursos na rea da sade obriga,muitas vezes, a selecionar prioridades.

    A amplitude do conceito da OMS (visvel tambm no conceitocanadense) acarretou crticas, algumas de natureza tcnica (a sade seria algoideal, inatingvel; a definio no pode ser usada como objetivo pelos serviosde sade), outras de natureza poltica, libertria: o conceito permitiria abusospor parte do Estado, que interviria na vida dos cidados, sob o pretexto depromover a sade. Em decorrncia da primeira objeo, surge o conceito deChristopher Boorse (1977): sade ausncia de doena. A classificao dosseres humanos como saudveis ou doentes seria uma questo objetiva, relacionadaao grau de eficincia das funes biolgicas, sem necessidade de juzos de valor.

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    Uma resposta a isto foi dada pela declarao final da ConfernciaInternacional de Assistncia Primria Sade realizada na cidade Alma-Ata(no atual Cazaquisto), em 1978, promovida pela OMS. A abrangncia do temafoi at certo ponto uma surpresa. A par de suas tarefas de carter normativo -classificao internacional de doenas, elaborao de regulamentosinternacionais de sade, de normas para a qualidade da gua - a OMS haviadesenvolvido programas com a cooperao de pases-membros, mas essesprogramas tinham tido como alvo inicial duas doenas transmissveis de grandeprevalncia: malria e varola.

    O combate malria baseou-se no uso de um inseticida depoiscondenado, o dicloro-difenil-tricloroetano (DDT), tendo xito expressivo masno duradouro. A seguir foi desencadeado, j nos anos 60, o Programa deErradicao da Varola. A varola foi escolhida no tanto por sua importnciacomo causa de morbidade e mortalidade, mas pela magnitude do problema (oscasos chegavam a milhes) e pela redutibilidade: a vacina tinha alta eficcia, ecomo a doena s se transmite de pessoa a pessoa, a existncia de grandenmero de imunizados privaria o vrus de seu hbitat. Foi o que aconteceu: oltimo caso registrado de varola ocorreu em 1977. A erradicao de uma doenafoi um fato indito na histria da Humanidade.

    Quando se esperava que a OMS escolhesse outra doena transmissvelpara alvo, a Organizao ampliou consideravelmente seus objetivos, comoresultado de uma crescente demanda por maior desenvolvimento e progressosocial. Eram anos em que os pases socialistas desempenhavam papel importantena Organizao - no por acaso, Alma-Ata ficava na ex-Unio Sovitica. AConferncia enfatizou as enormes desigualdades na situao de sade entrepases desenvolvidos e subdesenvolvidos; destacou a responsabilidadegovernamental na proviso da sade e a importncia da participao de pessoase comunidades no planejamento e implementao dos cuidados sade. Trata-se de uma estratgia que se baseia nos seguintes pontos: 1) as aes de sadedevem ser prticas, exeqveis e socialmente aceitveis; 2) devem estar aoalcance de todos, pessoas e famlias - portanto, disponveis em locais acessveis comunidade; 3) a comunidade deve participar ativamente na implantao ena atuao do sistema de sade; 4) o custo dos servios deve ser compatvelcom a situao econmica da regio e do pas. Estruturados dessa forma, osservios que prestam os cuidados primrios de sade representam a porta deentrada para o sistema de sade, do qual so, verdadeiramente, a base. O

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    sistema nacional de sade, por sua vez, deve estar inteiramente integrado noprocesso de desenvolvimento social e econmico do pas, processo este do qualsade causa e conseqncia.

    Os cuidados primrios de sade, adaptados s condies econmicas,socioculturais e polticas de uma regio deveriam incluir pelo menos: educaoem sade, nutrio adequada, saneamento bsico, cuidados materno-infantis,planejamento familiar, imunizaes, preveno e controle de doenas endmicase de outros freqentes agravos sade, proviso de medicamentos essenciais.Deveria haver uma integrao entre o setor de sade e os demais, comoagricultura e indstria.

    O conceito de cuidados primrios de sade tem conotaes. umaproposta racionalizadora, mas tambm uma proposta poltica; em vez datecnologia sofisticada oferecida por grandes corporaes, prope tecnologiasimplificada, de fundo de quintal. No lugar de grandes hospitais, ambulatrios;de especialistas, generalistas; de um grande arsenal teraputico, uma lista bsicade medicamentos - enfim, em vez da mstica do consumo, uma ideologia dautilidade social. Ou seja, uma srie de juzos de valor, que os pragmticos darea rejeitam. A pergunta : como criar uma poltica de sade pblica semcritrios sociais, sem juzos de valor?

    Por causa disso, nossa Constituio Federal de 1988, artigo 196, evitadiscutir o conceito de sade, mas diz que: A sade direito de todos e dever doEstado, garantido mediante polticas sociais e econmicas que visem reduodo risco de doena e de outros agravos e ao acesso universal e igualitrio saes e servios para a promoo, proteo e recuperao. Este o princpioque norteia o SUS, Sistema nico de Sade. E o princpio que est colaborandopara desenvolver a dignidade aos brasileiros, como cidados e como sereshumanos.

    Leituras adicionais

    AGRIMI, J.; CRISCIANI, C.Charit et assistance das la civilisation chrtiennemdievale. In: GRMEK, M. G. (Org.). Histoire de la pense medicale enOccident. Paris: Seuil, 1995. p. 162-163.ATLAN, H. A Tort et raison: intercritique de la science et du mythe. Paris:Seuil, 1986.

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    BIRABEN, J. Les maladies en Europe: equilibres et ruptures de la pathocnose.In: GRMEK, M. G. (Org.). Histoire de la pense medicale en Occident.Paris: Seuil, 1995. p. 299.CHANTLER, C. Reinventing doctors. British Medical Journal, n. 317, p.1.670-1.671, 1998.FOUCAULT, M. Histoire de la folie. Paris: Plon, 1961.______. Naissance de la clinique. Paris: PUF, 1963.GOLUB, E. S. The limits of medicine. Chicago: The University of ChicagoPress, 1997.GELFAND, T., 1994. The history of the medical profession. In: BYNUM, W.F.; PORTER, R. (Eds.). Companion Encyclopedia of the History ofMedicine. London: Routledge. p. 1.119-1.121.HELMAN, C. G. Cultura, sade e doena. Porto Alegre: Artes Mdicas, 1994.HIPOCRATES. The sacred disease. In: KING, L. B. (Org.). A History ofMedicine. Middlesex: Penguin, 1971. p. 54-61.______. Aforismas. So Paulo: Zumbi, 1959.JACOB, M. C. The cultural meaning of scientific revolution. New York:Alfred C. Knopf, 1988.LAMBRICHS, L. La vrit mdicale. Paris: Robert Laffont, 1993.KING, L.S. Medical thinking. Princeton: Princeton University Press, 1982.LAST, J. M.; WALLACE, J. (Orgs.). Maxcy-Rosenau Public Health andPreventive Medicine. East Norwalk: Appleton and Lange, 1992.LBRUN, F. Mdcins, saints et sorciers aux 17e. et 18e. sicles. Paris:Temps Actuels, 1979.McKEOWN, T. The role of medicine. Princeton: Princeton University Press, 1979.______. The origins of human disease. Oxford: Blackwell, 1988.MCNEILL, W. Plagues and peoples. New York: Anchor Press, 1976.MCVAUGH, M. R. Medicine in the Latin Middle Ages. In: LOUDON, I (Org.).Western Medicine Oxford: Oxford University Press, 1997. p. 56.

  • Histria do Conceito de Sade

    PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 17(1):29-41, 2007 41

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    ABSTRACT

    History of the Concept of Health

    The concepts of health and disease are analyzed in their historical evolutionand in their relation with the cultural, social, political and economic contexts,highlighting the evolution of ideas in this field of human experience.

    Key words: Health; disease; culture; history.

    NOTA

    Mdico especialista em Sade Pblica, doutor em Cincias pela ENSP e professor de Sade

    Coletiva na Fundao Faculdade Federal de Cincias Mdicas de Porto Alegre. Escritor, autorde vrias obras sobre sade pblica e medicina. Endereo eletrnico: [email protected].

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