hiperatividade ou indisciplina

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS: QUÍMICA DA VIDA E SAÚDE Barbara Rocha Richter Hiperatividade ou indisciplina? O TDAH e a patologização do comportamento desviante na escola Porto Alegre 2012 Barbara Rocha Richter

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Artigo fala da atual pedagogia dos humores da familia

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  • 1

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO EM CINCIAS: QUMICA DA

    VIDA E SADE

    Barbara Rocha Richter

    Hiperatividade ou indisciplina? O TDAH e a patologizao do

    comportamento desviante na escola

    Porto Alegre

    2012

    Barbara Rocha Richter

  • 2

    Hiperatividade ou indisciplina? O TDAH e a patologizao do

    comportamento desviante na escola

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao

    em Educao e Cincias: Qumica da Vida e Sade da

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul como pr-

    requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em

    Educao em Cincias.

    Prof. Dr. Lus Henrique Sacchi dos Santos Orientador

  • 3

    Barbara Rocha Richter

    Hiperatividade ou indisciplina? O TDAH e a patologizao do

    comportamento desviante na escola

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao

    em Educao e Cincias: Qumica da Vida e Sade da

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul como pr-

    requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em

    Educao em Cincias.

    Orientador:

    ___________________________________

    Lus Henrique Sacchi dos Santos

    Aprovada em 25 de junho de 2012.

    ___________________________________

    Cludia Rodrigues de Freitas/UFRGS

    ___________________________________

    Edvaldo Souza Couto/UFBA

    ___________________________________

    Loredana Susin/UFRGS

  • 4

    Agradecimentos

    Ao finalizar esta etapa de minha formao acadmica, gostaria de agradecer a todos

    aqueles que, de uma forma ou de outra, colaboraram para a realizao deste trabalho.

    minha me, pelo apoio desde sempre e por fortalecer minha capacidade de acreditar

    em mim mesma. Ao meu pai, pelas coisas que aprendi e por haver despertado em mim o

    interesse pelo estudo. minha famlia, minhas tias Maristela e Maria Lcia, pelo carinho.

    minha av Eldy, pelo amor e dedicao, pelo exemplo de fora e por tudo que aprendo com

    ela.

    Aos meus amigos e amigas, pelas vivncias, trocas e conversas, e por eu simplesmente

    saber que fazem parte da minha. Joana e Rita, pelo incentivo. Ao Adriano pelas longas

    conversas. Ao Clber, pelos contrapontos. Ziza, pelas contribuies e apoio nos momentos

    finais. Aline, que esteve sempre ao meu lado, pela compreenso, pelo carinho e pelo colo.

    Aos colegas, pelas trocas e contribuies. Ao meu orientador, pela oportunidade de

    desenvolver este estudo. Aos funcionrios, Cla, Douglas e Flahane, pela solicitude e

    atenciosidade.

    Aos componentes da banca, pela disponibilidade, leitura e sugestes.

    CAPES, rgo financiador do meu trabalho.

    UFRGS, pelo espao de ricas trocas e aprendizado.

    Muito obrigada.

  • 5

    LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 Capa e sumrio de material informativo sobre o TDAH. Produzido pela ABDA

    para ser distribudo em escolas. Disponvel no site www.tdah.otg.br. .................................63

    Figura 2 . Anncio publicitrio na Nova Escola (outubro/2008) de cursos para professores,

    dentre os quais est o curso A criana e o TDAH (indicado pela seta). ............................66

    Figura 3 Anncio publicitrio na revista Nova Escola de abril de 2000 divulgando o

    Programa de Atualizao em TDAH Ateno Professor que conta com o patrocnio da

    empresa Novartis. .........................................................................................................68

    Quadro 1 Caractersticas de diferentes fases de vida de indivduos com TDAH apresentadas

    por ROHDE & HALPERN (2004). ................................................................................56

    Quadro 2 Comparativo de recomendaes para atuar junto aos alunos inquietos/indisciplinados ou hiperativos presentes em duas reportagens da Nova Escola.

    .................................................................83

  • 6

    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    ABDA Associao Brasileira do Dficit de Ateno

    APA American Psychiatric Association

    CHADD Children and Adults with Attention Deficit/ Hyperactivity Disorder

    DSM Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders

    NE Nova Escola

    TDAH Transtorno de Dficit de Ateno e Hiperatividade

  • 7

    Resumo

    O Transtorno do Dficit de Ateno e Hiperatividade (TDAH) configura-se, atualmente,

    como um dos transtornos cada vez mais diagnosticados em indivduos de idade escolar. Ao

    invs de tomar o TDAH como um fato cientfico isolado, proponho, atravs deste estudo,

    pens-lo como um fenmeno vinculado cultura. Para tanto, valho-me do referencial terico-

    metodolgico dos Estudos Culturais e ps-estruturalistas. Busco problematizar as estratgias

    voltadas ao controle dos corpos hiperativos na escola, pensando a emergncia do TDAH no

    solo da cultura somtica, bem como sua relao com o processo a que se tem chamado de

    medicalizao do ensino, fenmeno que vem acompanhado do uso de psicofrmacos como

    soluo para problemas de comportamento em sala de aula. Analiso exemplares da revista

    Nova Escola, no perodo de 1986 (ano inicial de sua publicao) a 2011, operando com as matrias cujo ttulo ou o contedo versassem sobre hiperatividade, desateno e/ou

    indisciplina. Observo o modo como o discurso neurocientfico atravessa as noes de sujeito e

    de que maneira esse atravessamento implica em prticas no mbito da escola. Esta discusso

    permite observar que os processos de biologizao, patologizao e medicalizao constituem

    fenmenos interligados e fortemente articulados ao TDAH na contemporaneidade. Assim, o

    diagnstico de TDAH e o uso de psicofrmacos se mostraram, na anlise deste trabalho, como

    uma nova forma de controle e disciplinamento do corpo infantil/escolar. Aponto para a

    necessidade de um questionamento acerca da transferncia de problemas de ordem escolar

    para a esfera mdica.

    Palavras-chave: TDAH, disciplinamento, escola, indisciplina, medicalizao, psicofrmacos.

  • 8

    Abstract

    The Attention Deficit and Hyperactivity Disorder (ADHD) is currently one of the increasingly

    diagnosed disorders in individuals of school age. Instead of taking ADHD as an isolated

    scientific fact, I propose, through this study, think of it as a phenomenon linked to the culture.

    For this, I use the theoretical and methodological referential of Cultural Studies and

    poststructuralists. I attempt to analyze the strategies aimed at controlling hyperactivities

    bodies in the school, thinking about the emergence of ADHD in the context of somatic

    culture, and its relation to the process that has been called medicalization of education. This

    phenomenon has accompanied the use of psychotropic drugs as a solution to behavior

    problems in the classroom. I analyze copies of the magazine Nova Escola for the period 1986 (initial year of its publication) to 2011, operating with reports of hyperactivity, inattention and

    indiscipline. I regard how neuroscientific discourse through the concepts of subject and how

    this involves practices within the school. This discussion allows us to note that biologization,

    pathologizing and medicalization are interconnected process and strongly articulated with

    TDAH in contemporary. Thus, the diagnosis of ADHD and the use of psychotropic drugs

    constitute a new form of control and discipline of the infants body. I point to the need to question about the transfer of problems in educational to the medical area.

    Keywords: ADHD, discipline, school, indiscipline, medicalization, psychotropic drugs.

  • 9

    SUMRIO

    1. INTRODUO...................................................................................................................10

    1.1 A escolha do objeto de pesquisa.......................................................................................10

    1.2 A escolha do material de anlise......................................................................................14

    2. DISCIPLINAMENTO DO CORPO INFANTIL.............................................................19

    2.1. Infncia escolarizada.......................................................................................................23

    2.2 Infncia e escola hoje........................................................................................................30

    2.3 Novas formas de controle.................................................................................................35

    3. BIOLOGIZAO E MEDICALIZAO DAS CONDUTAS ESCOLARES O

    TDAH e a emergncia do sujeito cerebral no sculo XX.....................................................43

    3.1 A narrativa mdica do TDAH..........................................................................................47

    3.2 A Associao Brasileira do Dficit de Ateno...............................................................59

    3.3 A ABDA e a escola............................................................................................................61

    4. O PROFESSOR ATENTO AO TDAH: UMA ANLISE DO QUE DIVULGADO

    NA REVISTA NOVA ESCOLA............................................................................................69

    4.1. Nova Escola: a revista de quem educa...........................................................................69

    4.2 Hiperativo ou indisciplinado?..........................................................................................80

    4.3 O crebro no centro das explicaes sobre o comportamento......................................84

    5. CONSIDERAES FINAIS.............................................................................................88

    6. REFERNCIAS..................................................................................................................90

    7. ANEXOS

  • 10

    1. INTRODUO

    1.1 A escolha do objeto de pesquisa

    As inquietaes que provocaram o interesse pela temtica da hiperatividade, que

    procurei desenvolver neste estudo, esto ligadas a algumas de minhas experincias, pessoais e

    profissionais.

    Ao trabalhar por alguns anos em uma escola de educao infantil, chamava-me a

    ateno o quanto parecia ser difcil, para muitas das crianas, os primeiros dias de ingresso

    naquele ambiente que, embora fosse um ambiente alegre e amvel, era estranho aos novatos.

    O trabalho das professoras sobre as crianas era intenso (e sutil ao mesmo tempo). Intenso, no

    sentido de ser um processo contnuo, ininterrupto, isto , as crianas eram constantemente

    dirigidas, coordenadas, postas em fila, silenciadas, corrigidas: No corram, no subam, no

    batam!; Falem baixo, peam desculpas; Esperem, devagar; No hora de comer;

    Todos cantando!; Pinte assim, senta direito. Era tambm um trabalho sutil por dar-se no

    cotidiano, agindo nos mnimos detalhes, mas quase invisvel, como algo que j fazia parte da

    rotina escolar.

    Embora todas essas operaes escolares sejam tpicas sobre o indivduo que se quer

    escolarizar, e estejam, de certo modo, naturalizadas, como fazendo parte desse cotidiano,

    aponto para a importncia de nos questionarmos acerca de como estas pequenas operaes

    vo, aos poucos, atravs da disciplina, normalizando, adestrando e modelando o sujeito aluno.

    Como lembra Maria Isabel Bujes, desde a mais tenra idade, as crianas so acompanhadas e

    podem ser vigiadas para terem suas condutas escrutinadas a fim de que sejam detectados os

    mnimos detalhes sujeitos a correo (BUJES, 2006, p.228). Foram estas operaes, estas

    intervenes frequentes e que utilizei como exemplo, naquela escola, mas que exemplificam

    o cotidiano de muitas outras que me fizeram (re)pensar as relaes entre infncia e escola,

    no sentido de problematiz-las.

    Atravs destas pequenas aes, destas mincias que, de acordo com Michel Foucault

    (1994), se d o poder disciplinar, cujo objetivo o corpo individual em seus detalhes. No

    sentido atribudo por Foucault (idem), o poder no algo que se possua, ou algo centralizado,

    mas algo que se exerce nas relaes entre os indivduos, da falar em relaes de poder. O

    poder se exerce de forma difusa, cuja imagem que melhor poderia descrev-lo seria a de uma

    rede (CASTRO, 2009). O poder disciplinar se exerce pelos mtodos que permitem o

  • 11

    controle minucioso das operaes do corpo, que realizam a sujeio constante de suas foras e

    lhes impem uma relao de docilidade-utilidade (FOUCAULT, 1994, p.126).

    Alm do que se pode observar acerca da imposio de uma relao de docilidade-

    utilidade que se estabelece entre escola e aluno, cuja quase invisibilidade como processo

    artificial faz com que a relao de obedincia do aluno para com o professor seja quase

    naturalizada, relato algumas observaes cotidianas que me levaram a eleger um tema de

    pesquisa relacionado escola, a hiperatividade. Pergunto-me se no porque entendemos o

    comportamento obediente, a postura de bom aluno, como basais para que o dia-a-dia escolar

    transcorra normalmente, que talvez tenhamos patologizado o comportamento inquieto,

    desobediente.

    Pude observar, nos anos recentes, certa popularizao e banalizao no emprego do

    termo hiperativo para designar crianas descritas como agitadas, que esto sempre se

    movimentando, que sobem e descem de mveis, que no ficam mais que cinco minutos na

    frente da televiso, que s querem chamar a ateno, que no ouvem quando lhes dirigem

    a palavra, etc. ou mesmo quando se trata de crianas normais, mas ativas. Tal designao

    utilizada inclusive em casos de crianas que no foram oficialmente diagnosticadas como

    hiperativas pelos profissionais autorizados. O termo hiperatividade vem sendo utilizado

    popularmente como forma de classificar uma srie de comportamentos comuns na infncia

    como, por exemplo, falta de educao, oposio, curiosidade, criatividade.

    Para dar maior concretude s observaes acima citadas, apresento alguns aspectos do

    estudo realizado por Cludia Freitas1

    (2011), no qual foram entrevistadas professoras,

    educadoras especiais, psicopedagogas e assessoras da rede municipal de ensino de Porto

    Alegre. A autora mostra, com base nas falas das professoras e no que evidenciam suas queixas

    sobre alunos que causam problemas em sala, que as descries que mais aparecem so as de

    que o aluno agressivo, que no para, no aceita no, briga com os colegas, j

    destruiu a sala de aula, bagunceiro, indisciplinado, no presta ateno, sendo que a

    expresso mais corriqueira hiperativo ou muito hiperativo.

    A partir de tais experincias e observaes, penso que pode ter incio um processo de

    estranhamento frente ao que nos parece familiar, por vezes inofensivo ou mesmo necessrio.

    1 Em sua Tese de doutorado, pela Faculdade de Educao da UFRGS, Freitas (2011) procurou investigar como

    as escolas vm lidando com a inquietude dos corpos dos alunos e que recursos tm buscado para tratar essa

    questo.

  • 12

    Refiro-me, nesse sentido, popularidade que a hiperatividade tem adquirido, bem como a

    crescente prtica de diagnstico do Transtorno do Dficit de ateno e Hiperatividade (nome

    oficial que corresponde hiperatividade) e prescrio de psicofrmacos a crianas inquietas,

    desatentas, indisciplinadas ou que de alguma forma no correspondem s expectativas

    escolares.

    O Transtorno do dficit de Ateno e Hiperatividade (TDAH) caracterizado pela

    medicina como um conjunto de sintomas relativos desateno, agitao e impulsividade. O

    Manual Estatstico e Diagnstico de Doenas Mentais (DSM-IV2), editado pela Associao

    Americana de Psiquiatria (APA3), publicado no ano de 1994, descreve o TDAH como o

    transtorno psiquitrico mais comumente diagnosticado em crianas, com prevalncia em torno

    de 3 a 6 % da populao. O Manual refere que esse tipo de transtorno muitas vezes

    percebido a partir da idade escolar, j que, ainda segundo o Manual, a escola um ambiente

    que exige nveis maiores de concentrao e quietude dos corpos. O fato de haver um nmero

    cada vez maior de indivduos diagnosticados, e, talvez, um possvel exagero diagnstico,

    tem provocado divergncias no modo como se posicionam pais, educadores, especialistas e

    intelectuais a respeito do transtorno e, sobretudo, da crescente utilizao do medicamento

    Ritalina4 como forma de tratamento dos sintomas.

    O TDAH o diagnstico mais comum nas crianas que so encaminhadas ao

    atendimento mdico ou psicolgico por apresentarem comportamento considerado

    inadequado na escola, baixo rendimento escolar ou dificuldades de aprendizagem embora

    no seja um transtorno de aprendizagem (MEISTER, 2001). A importncia que dada ao

    TDAH reside no fato de ele afetar o desempenho escolar, por isso tambm que o papel dos

    professores crtico em advogar pela doena e pelo tratamento (PHILLIPS, 2006). Em funo

    dessa estreita relao entre TDAH e sala de aula, professores e professoras so peas-chave

    no processo de identificao e determinao do diagnstico de seus alunos. Esses

    profissionais tm se tornado alvo de discursos e prticas, tais como cursos, palestras e

    materiais de divulgao sobre o TDAH (COSTA, 2006b), como veremos mais adiante.

    2 Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders.

    3 American Psychiatric Association.

    4 A Ritalina, fabricada pela empresa Novartis, o nome comercial do metilfenidato, um tipo de estimulante do

    sistema nervoso central, grupo de frmacos tambm conhecidos como psicoestimulantes. Este medicamento

    utilizado no tratamento dos sintomas do TDAH.

  • 13

    O TDAH um dos transtornos psiquitricos mais estudados pela medicina, segundo a

    Associao Brasileira do Dficit de Ateno5 (ABDA), sobretudo no que diz respeito s

    tentativas em definir seus mecanismos biolgicos. As pesquisas de neuropsiquiatria tm-se

    dedicado a investigar possveis causas genticas e seus aspectos neurobiolgicos (ROHDE &

    HALPERN, 2004). Esses estudos (SZOBOT et al, 2001; ROMAN et al, 2002; ROHDE &

    HALPERN, 2004; MATTOS et al 20066) tm abordado o TDAH como uma condio mdica

    desencadeada por causas biolgicas, sem dar espao discusso aprofundada acerca de

    fatores sociais e culturais, ou do contexto no qual se inserem os indivduos diagnosticados.

    Numa perspectiva de tensionamento dessa abordagem biologicista, autoras como

    Luciana Caliman, tm questionado o TDAH enquanto condio meramente neurobiolgica,

    analisando sua constituio scio-mdica e as contingncias morais, sociais e cientficas

    que lhe do origem e sustentao (CALIMAN, 2009). Outros autores tm tambm adotado

    uma perspectiva de tensionamento frente ao modo reducionista com o qual se tem tratado o

    comportamento considerado desviante7.

    O TDAH tambm tem sido amplamente divulgado e debatido na mdia (PHILLIPS,

    2006; SANTOS & SILVEIRA, 2008). O tema vem sendo, nos ltimos anos, assunto de

    inmeras reportagens em jornais e revistas de grande circulao no pas, como Veja, poca,

    Carta Capital, O Globo, Folha de So Paulo8 e Zero Hora, no Rio Grande do Sul, entre outros.

    Programas televisivos tm tambm abordado a questo do TDAH, como o Globo Reprter9,

    alm de inmeros sites 10 que tratam especificamente sobre o TDAH (sendo que alguns

    oferecem cursos on line para educadores) e comunidades virtuais em sites de relacionamento

    como o Orkut, das quais participam membros portadores de TDAH, pais e professores.

    Em grande parte do que tem sido divulgado pela mdia, o transtorno apresentado como

    um problema neurolgico de causas genticas, em que imagens cerebrais, como, por exemplo,

    as imagens obtidas por tcnicas de escaneamento cerebral, as PET Scans11, que distinguem

    crebros de portadores do transtorno e crebros ditos normais (ITABORAHY, 2009). Em

    5 Informao presente no site da ABDA, www.tdah.org.br, consultado s 17h00min do dia 11/10/2011.

    6 Szobot et al (2001); Roman et al (2002); Rohde & Halpern; Mattos et al (2006); entre outros.

    7 A ser discutido no captulo Biologizao e Medicalizao das condutas escolares.

    8 Ver Itaborahy (2009). Esta autora realizou um amplo estudo sobre a divulgao do TDAH e da Ritalina entre

    os anos 1998 e 2008 no Brasil. A anlise incluiu jornais e revistas destinados ao pblico leigo, como os citados

    acima, alm de revistas especializadas de Psiquiatria, tais como o Jornal Brasileiro de Psiquiatria, Revista

    Brasileira de Psiquiatria, Arquivos de neuropsiquiatria, entre outros. 9 Discutido em Santos e Silveira (2008).

    10Dentre os quais podem ser citados: www.atencaoprofessor.com.br; www.portaleducao.com.br, entre outros.

    11 Positron Emission Tomography (Tomografia por emisso de psitrons).

  • 14

    contrapartida, no dia-a-dia das clnicas, estas tecnologias no fazem parte do processo de

    diagnstico, embora se diga que o transtorno real porque possui uma causa fsica

    (CALIMAN, 2006). E , exatamente, a causa biolgica um dos principais argumentos

    utilizados para se fazer uso de tratamento medicamentoso.

    Mdicos realizam o diagnstico atravs de questionrios12

    aplicados aos pais, aos

    professores13

    e, eventualmente, ao paciente, podendo incluir testes neuropsicolgicos. Nesse

    aspecto, importante ressaltar que, tanto o processo que leva o mdico a decidir pelo

    diagnstico quanto o depoimento dos pais ou professores, depende do juzo de valor de cada

    um. Aquilo que pode vir a ser julgado como normal para alguns, pode no o ser para outros;

    visto, ainda, que os critrios para avaliao so respondidos em graus de intensidade como:

    nada, pouco ou muito, para quesitos como, por exemplo, fala em excesso, ou corre

    em situaes em que isso no apropriado, entre outros. Como possvel quantificar o falar

    em excesso? Como julgar situaes nas quais correr seria inadequado?

    1.2 A escolha do material de anlise

    inegvel o importante papel que a mdia14

    desempenha em nossa sociedade e em

    nosso tempo (SILVERSTONE, 2005), atuando como um meio de circulao de informaes

    em massa, de construo e transmisso de valores e verdades (HALL, 1997), fazendo parte

    da constituio das subjetividades individuais e coletivas. Por esta razo que, a partir dos

    significados veiculados pela mdia, busco analisar o que dito acerca do TDAH em materiais

    como a revista Nova Escola, tambm percorrendo por alguns sites especficos sobre o TDAH,

    como o caso do site da Associao Brasileira do Dficit de Ateno (www.tdah.org.br) e do

    site Ateno Professor (www.atencaoprofessor.com.br), que oferece cursos sobre TDAH para

    professores/as.

    Investiguei esses materiais com o intuito de identificar e problematizar as estratgias de

    agenciamento do TDAH voltadas aos pais e professores. Essas estratgias so, em geral,

    apresentadas por especialistas provenientes dos campos da psicologia, pedagogia e, sobretudo,

    da medicina, como a psiquiatria, pediatria e neurologia. Neste movimento, procuro tensionar

    12

    Questo a ser explorada no Captulo 2. 13

    Em se tratando de crianas. 14

    Considero a mdia como todo o conjunto de materiais grficos, televisivos, radiofnicos e digitais responsveis

    por propagar informaes de todo o tipo, tais como jornais, revistas, emissoras de televiso, rdio, internet, entre

    outros.

  • 15

    os processos de patologizao do comportamento desviante e de medicalizao da

    indisciplina, cada vez mais evidentes no mbito escolar.

    Para tanto, empreendo uma anlise cultural, buscando apoio nas contribuies dos

    Estudos Culturais da Cincia, desde uma perspectiva ps-estruturalista. De acordo com esta

    perspectiva de pesquisa, a Cincia no pode ser aceita como alheia aos cdigos culturais, s

    foras sociais e econmicas e aos interesses profissionais (WORTMANN & VEIGA-NETO,

    2001, p.13); assim, a produo do conhecimento cientfico est sempre articulada a interesses

    e crenas de um contexto cultural especfico.

    Penso que uma abordagem do TDAH a partir de uma perspectiva culturalista possa ser

    bastante frutfera, pois a partir dela que busco perceber a insero do TDAH na cultura. Faz-

    se necessrio, portanto, levar em conta esse fenmeno como algo emergente de uma

    sociedade que atribui valor supremo escolarizao, ao trabalho, cidadania, e considera

    como grandes virtudes a responsabilidade, a ateno dedicada s incumbncias, a capacidade

    de ponderar, a capacidade de realizao de projetos. E so justamente essas as virtudes que se

    diz faltar ao indivduo portador do TDAH, tido como um refm da desateno, da

    impulsividade e da hiperatividade impressas como esto a afirmar algumas vozes no seu

    prprio cdigo gentico.

    Saliento, ainda, que a anlise aqui proposta no est preocupada em como se d a

    produo do conhecimento cientfico acerca do TDAH, mas com a articulao da produo e

    divulgao desse conhecimento com as prticas que se instituem no mbito da escola. De

    modo algum tomo como verdades tais conhecimentos ou busco uma verdade, nem

    pretendo julgar se as prticas e discursos que se articulam em torno do TDAH so condizentes

    ou adequadas com relao ao que postulam as pesquisas cientficas acerca de aspectos

    genticos, neurolgicos ou neuroqumicos. A anlise que empreendo procura afastar-se de

    qualquer cientificismo, como alerta Henri Giroux (2008) acerca dos caminhos pelos quais

    podemos conduzir anlises culturais.

    Alm de buscar apoio nas contribuies dos Estudos Culturais, trago para esta discusso

    os estudos de outros autores, dentre os quais destaco Nikolas Rose, Francisco Ortega e

    Luciana Caliman. Nikolas Rose um dos autores que trazem importantes contribuies para o

    mbito das discusses sobre a cincia e suas implicaes no agenciamento dos sujeitos e de

    suas condutas. No sentido com o qual o autor se refere a agenciamentos, eles incluem um

  • 16

    conjunto de tecnologias de subjetivao, tcnicas, normas, vocabulrios, decises, entre

    outras, que so postas em prtica e que invocam os seres humanos como sujeitos de um certo

    tipo de liberdade (ROSE, 2001, p.177) Uma das discusses que este autor traz, diz respeito

    ao modo pelo qual os saberes das cincias psi (psicologia, psicanlise, etc.) estiveram

    fortemente articulados, ao longo do sculo XX, constituio da noo de eu e ao

    agenciamento dos sujeitos nas sociedades ocidentais (ROSE, 1998, 2001). Recentemente, o

    autor nos mostra algumas das mudanas que essa nossa noo de eu vem sofrendo, em parte

    devido aos avanos de reas como as das neurocincias e s novas proposies de sujeito a

    que as pesquisas neurocientficas tm suscitado, e, sobretudo, aos novos agenciamentos em

    torno desses sujeitos. Nessa direo, discuto ao longo deste trabalho algumas das formas

    como essas transformaes podem ser pensadas com relao insero do TDAH nessa

    concepo neurocientfica de sujeito.

    O trabalho de Luciana Caliman particularmente interessante, pois nos mostra com

    profundidade as condies e as contingncias econmicas, sociais e polticas que

    atravessaram a histria do TDAH (no que possua uma histria unificada) e sua estreita

    relao com a emergncia da figura do sujeito cerebral. A ideia de sujeito cerebral seria

    aquilo que Francisco Ortega (2006), entre outros autores, compreende como uma figura

    antropolgica edificada a partir do final do sculo XIX e que ganharia fora ao final do sculo

    XX e incio do sculo XXI. A ideia bsica do sujeito cerebral parte do pressuposto de que o

    crebro seria o rgo necessrio para construir nossa identidade (ORTEGA, 2006). Em outras

    palavras, a ideia de que a identidade pessoal possui uma matriz biolgica. A partir dessa

    noo, o que cabe trazer para este estudo so os desdobramentos que ela traz em nossa cultura

    acerca do modo pelo qual nos pensamos sujeitos, como agimos sobre ns mesmos e sobre os

    outros, como lidamos com nossos sentimentos, com nossas variaes de humor, emoes e

    desafetos. E essa forma de lidarmos que, cada vez mais, est de acordo com o entendimento

    de que o nosso substrato orgnico o responsvel por todos esses fenmenos da existncia,

    conforme aponta Ortega (2006b), entre outros.

    Com relao pertinncia dos estudos que se fazem atravs da anlise de materiais

    miditicos, que foi a que escolhi para proceder com este trabalho, Rosa Fischer (1997) pontua

    que a mdia no pode ser vista somente como veiculadora, mas tambm como produtora de

    saberes e formas especializadas de comunicar e produzir sujeitos, assumindo nesse sentido

    uma funo nitidamente pedaggica (FISCHER, 1997, p.60). A autora nos fala de um

    dispositivo pedaggico da mdia, partindo do pressuposto de que os meios de informao e

  • 17

    comunicao constroem significados e atuam decisivamente na formao de sujeitos sociais

    (idem).

    Marisa Costa e Rosa Silveira (2006) afirmam que a mdia pode ser entendida como um

    campo discursivo constitudo por um conjunto heterogneo de enunciados, demarcado por

    formas prprias de regularidade e por sistemas de coero e subordinao que se exercitam e

    possuem materialidade (COSTA & SILVEIRA, 2006, p.25). Sob essa perspectiva, podemos

    dizer que a revista Nova Escola produz modos de ser, governar, agir e conduzir prticas em

    sala de aula, visto que seu contedo endereado a professoras e professores, uma das razes

    pelas quais inclu essa revista na anlise. Ademais, uma das revistas mais difundidas entre

    esse pblico no Brasil, com uma tiragem mensal de 728.397 exemplares15

    .

    No captulo seguinte, intitulado Disciplinamento do Corpo Infantil, discorro sobre a

    emergncia da escola moderna e da implantao da disciplina escolar com vistas ao controle

    do crescente contingente de alunos que perfaziam o interior dessas instituies a partir da

    Modernidade. Discuto, brevemente, a importncia da consolidao do conceito de infncia, tal

    como o conhecemos hoje, para a construo dos ideais de educao do sujeito moderno.

    Veremos tambm como as transformaes culturais pelas quais passa a infncia, conforme

    tem sido apontado, podem estar relacionadas aos problemas enfrentados na escola; e a quais

    (novos) recursos a escola tem recorrido a fim de controlar os corpos.

    Em Biologizao e medicalizao das condutas escolares, irei discutir acerca das

    mudanas na concepo de sujeito em nossa sociedade que se desdobraram a partir do sculo

    XIX, ganhando fora no final do sculo XX e incio do sculo XXI e que conferem um carter

    biologicista a essa forma de compreenso de ns mesmos. Como me interessa pensar a

    emergncia do TDAH nesse contexto, analiso a narrativa cientfica sobre o TDAH a fim de

    problematizar as estratgias de agenciamento dos sujeitos diagnosticados na sua relao em

    um contexto mais amplo, que o do gerenciamento do risco e do comportamento desviante na

    escola e na sociedade. Esses agenciamentos incluem estratgias voltadas a professores e pais,

    que objetivam difundir os conhecimentos cientficos sobre o TDAH. A principal ideia de

    que atravs dessas estratgias seja possvel capacitar esse pblico a reconhecer o transtorno e

    encaminhar seus filhos e alunos a especialistas para diagnstico e tratamento.

    15

    Informaes sobre a revista sero exploradas no captulo O professor atento ao TDAH: uma anlise do que divulgado na revista Nova Escola.

  • 18

    No captulo O professor atento ao TDAH, busco analisar a forma como esses

    conhecimentos esto atravessados nas instrues que a revista Nova Escola apresenta para

    que professores lidem com o TDAH e/ou com os comportamentos que ele representa.

    Veremos que desateno, inquietao e impulsividade so e foram vistas, ao longo dos anos

    de publicao da revista, de distintas formas, bem como mudaram as proposies para lidar

    com alunos que apresentassem esses comportamentos.

  • 19

    2. O DISCIPLINAMENTO DO CORPO INFANTIL

    Os sinais do transtorno podem ser mnimos ou estar ausentes quando o indivduo se encontra sob controle rgido, encontra-se num ambiente novo, est envolvido em atividades especialmente interessantes, em uma situao a dois (p. ex., no consultrio mdico) ou enquanto recebe recompensas frequentes por um comportamento apropriado. (APA, 2003, p.113)16

    Por volta do sculo XVII, com o crescimento populacional e a urbanizao na Europa,

    formavam-se grandes concentraes populacionais em centros urbanos, ao mesmo tempo em

    que emergia a necessidade de administrao, regulao e organizao desses contingentes

    populacionais. O prprio conceito de populao emerge a partir desse contexto, e difere da

    noo de povo como conjunto amorfo de pessoas que fazem parte de uma nao no

    sentido de que a populao algo passvel de ser esquadrinhado, contabilizado, categorizado

    na medida em que se torna alvo de estratgias que tm por objetivo govern-la (FOUCAULT,

    2000).

    Nessa conjuntura, Foucault (1994, p.191) situa o poder disciplinar como um mecanismo

    que possui um triplo objetivo em resposta a essa exploso demogrfica: tornar o exerccio do

    poder menos custoso possvel; fazer com que os efeitos desse poder social sejam levados ao

    seu mximo de intensidade; e, fazer crescer [...] a docilidade e a utilidade de todos os

    elementos do poder. As disciplinas corporais foram as tcnicas atravs das quais se buscou

    esses objetivos, sua finalidade era a ordenao das multiplicidades humanas, tornando-as,

    inclusive, favorveis umas s outras ao serem repartidas, selecionadas e utilizadas conforme

    as aptides e caractersticas de cada indivduo, formando grupos especializados para

    desempenhar determinadas funes (FOUCAULT, 1994).

    Em suma, atravs da ordenao das multiplicidades humanas, da decomposio e

    recomposio das foras e de sua mxima utilizao que se tem como meta principal

    aumentar a produtividade, do indivduo ao coletivo seja de uma nao, de uma fbrica ou de

    uma escola.

    O crescimento populacional refletiu tambm no aumento da populao que frequentava

    a escola. O ingresso progressivo de crianas nas instituies escolares, formando um

    16

    Observao sobre o Transtorno de Dficit de Ateno/Hiperatividade, constante no Manual Diagnstico e Estatstico de Doenas Mentais (DSM-IV).

  • 20

    expressivo contingente dentro desses espaos, colocava a necessidade de serem formuladas

    estratgias de conteno desses corpos. Aos poucos, instalar-se-ia um conjunto de tcnicas

    disciplinares, atravs das quais este poder disciplinar se exerceria. Instaurava-se uma srie de

    mecanismos cujo objetivo era atuar nos corpos em seus detalhes, em sua organizao interna e

    na eficcia de seus movimentos (FOUCAULT, 1994).

    Fazia-se necessrio, primeiramente, organizar as multides no espao, repartindo-as,

    seriando-as, esquadrinhando-as de acordo com determinados critrios, e reagrupando-as

    conforme, por exemplo, a idade (FOUCAULT, 1994). Posteriormente, os indivduos eram

    celularizados, isto , postos cada um em sua carteira com uma determinada distncia

    separando-as a fim de que fossem evitadas as aglomeraes, as disperses, os burburinhos.

    O mximo aproveitamento do tempo tambm uma das marcas das disciplinas.

    Segundo Foucault (1994), o horrio uma das tcnicas que permite tal sujeio do corpo ao

    tempo. Para tanto, impe-se a diviso do tempo, intensificando-se o uso do mnimo instante; e

    seriao sucessiva das atividades.

    Esse o tempo disciplinar que se impe pouco a pouco prtica pedaggica especializando o tempo de formao e destacando-o do tempo adulto, do tempo do

    ofcio adquirido; organizando diversos estgios separados uns dos outros por provas

    graduadas; determinando programas, que devem desenrolar-se cada um durante uma

    determinada fase. (FOUCAULT, 1994, p.140)17

    Foucault cita alguns instrumentos utilizados a fim de gerar a individualidade

    disciplinada, e eu os descreverei de modo sucinto, com base no que escreveu o autor. Esses

    instrumentos so: a vigilncia hierrquica, a sano normalizadora e o exame.

    A vigilncia hierrquica (olhar hierrquico) um dos instrumentos com os quais se

    busca garantir o sucesso das disciplinas. Ele parte do princpio de que ao estar sendo vigiado,

    o indivduo cumprir as normas, agir de acordo com o que foi estabelecido e obedecer ao

    seu mestre. A vigilncia hierrquica deve abarcar o maior nmero de indivduos submetidos

    ao olhar de um nmero mnimo de pessoas.

    O panptico citado pelo autor como uma das formas empregadas para aperfeioar o

    exerccio do poder. Ele configurado por um tipo de arquitetura onde, a partir de um local

    especfico, e de preferncia que no possa ser visto, um indivduo vigie aos demais e de onde

    17

    Para diferenciar citaes de trechos que tomo como referncia terica (cuja formatao a de recuo 4,0, fonte 10 e espaamento 1,0, conforme normas da Associao Brasileira de Normas e Tcnicas) convenciono que as

    citaes de trechos que esto sendo analisados tero recuo 2,0, fonte 11 e espaamento 1,0.

  • 21

    possa perceber os mnimos movimentos; e, ao mesmo tempo, permita que todos sejam

    vigiados entre si. Esse modelo de vigilncia permite que um nmero mnimo de indivduos

    exera o poder sobre um nmero mximo de indivduos. O olhar constante permite uma

    interveno permanente, agindo antes que as falhas, os erros e os crimes aconteam. A fora

    do panptico est em, justamente, nunca intervir (FOUCAULT, 1994).

    A sano normalizadora funciona como uma espcie de castigo atravs do qual se busca

    corrigir os desvios, os erros.

    Na oficina, na escola, no exrcito funciona como repressora toda uma

    micropenalidade do tempo (atrasos, ausncias, interrupes das tarefas), da atividade

    (desateno, negligncia, falta de zelo), da maneira de ser (grosseria, desobedincia),

    dos discursos (tagarelice, insolncia), do corpo (atitudes incorretas, gestos no conformes, sujeira), da sexualidade (imodstia, indecncia). (FOUCAULT, 1994, p.

    159)

    E, por fim, o exame; mecanismo em que h a combinao da vigilncia hierrquica com

    a sano normalizadora. O exame permite qualificar, classificar e punir (FOUCAULT, 1994).

    Segundo o autor, este pequeno esquema operatrio faz com que o indivduo seja mensurado,

    que cada um ingresse num campo documental, convertendo-se num caso. O exame tanto pode

    ser uma prova a partir da qual se espera medir o conhecimento de cada indivduo, quanto um

    teste visando medio das suas capacidades, ou, ainda, um parecer, um diagnstico mdico

    ou psicomotor.

    A escola torna-se um aparelho de exame ininterrupto e de comparao perptua de

    cada um com todos, que permite ao mesmo tempo medir e sancionar (idem, p. 167). Assim,

    um dos aspectos mais importantes da funo do exame de que ele oferece a possibilidade de

    extrair saberes a partir dos alunos, de modo que a escola torna-se o local de elaborao da

    pedagogia. Para o autor, esse seria o mecanismo que liga um tipo de formao de saber a uma

    forma de exerccio de poder.

    As disciplinas configuraram no somente as escolas, mas outras instituies como

    hospitais, fbricas e quartis, caracterizando o que se convencionou chamar sociedades

    disciplinares. Com o advento do Estado Moderno, as sociedades disciplinares suplantariam

    as sociedades de soberania, cujo poder do Estado era exercido atravs do poder soberano e

    tinha como preocupao principal a segurana de seu territrio. Acerca de seu povo, o poder

    do soberano era um poder de fazer morrer ou deixar viver; poder esse que, conforme

    Foucault (2000), sofrer uma transformao, no sculo XIX, no aspecto de direito poltico,

  • 22

    pois passa a ser um poder de fazer viver ou deixar morrer (FOUCAULT, 2000, p.287). Isto

    , no primeiro caso o soberano agia por meio de um poder absoluto sobre a vida dos sditos,

    com o poder de mandar matar ou deixar viver. Com base nestas transformaes pode-se dizer

    que nas sociedades modernas, a preocupao do estado passa a ser com a populao. E, neste

    contexto, surge, na segunda metade do sculo XVIII, um poder ao qual Foucault (2009)

    denomina biopoder, isto , um poder que se exerce sobre a vida das populaes, que

    procura gerenci-las, potencializar sua fora produtiva. Articulado ao poder disciplinar

    poder que se exerce sobre os corpos individuais, o biopoder poder que se faz perceber

    atravs das biopolticas trata dos processos da populao como massa global, tais como

    taxas de natalidade, de morbidade, de reproduo, de fecundidade, produo, sade

    (vacinao, risco, preveno), baseado, em primeira instncia, em clculos estatsticos.

    Foucault indica essa mudana de um poder soberano sobre o corpo, que faz morrer ou

    deixa viver, para o poder disciplinar, que procura extrair do corpo sua potencialidade mxima,

    fragmentando e seriando seu tempo e seus movimentos, exercitando-o. O que importa a

    economia e a eficcia dos movimentos.

    Houve, durante a poca clssica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo de

    poder. Encontraramos facilmente sinais dessa grande ateno dedicada ento ao

    corpo ao corpo que se manipula, se modela se treina, que obedece, responde, se torna hbil ou cujas foras se multiplicam. (FOUCAULT, 1994, p.125).

    Uma das marcas principais da disciplina a de que ela normaliza, e atravs da norma,

    do modelo do normal, que ela homogeneza (FOUCAULT, 1994, 2009). Cabe perguntar: de

    que forma isto ocorre? Foucault (2009) especifica que a disciplina, atravs de um

    adestramento progressivo e de um controle permanente, ir demarcar os que sero

    considerados inaptos, incapazes e os outros (FOUCAULT, 2009, p.75), e a partir disso que

    se demarca o normal e o anormal.

    O normal ser um modelo construdo em funo do modo como se obtm o melhor

    resultado, na menor frao de tempo, com o menor custo; um modelo que especifica a

    posio exata para obter o melhor desempenho, o modo correto de sentar, de portar-se, de

    exercitar-se. O estabelecimento de um modelo a ser seguido como norma trata-se, nesse caso,

    mais de um processo de normao do que de normalizao. A distino entre o normal e o

    anormal far-se- pela inaptido do segundo em seguir o primeiro. Para Georges Canguilhem

    (2000), o normal e o anormal no esto localizados em extremos oposto. Ao contrrio, muitas

    vezes, o que os separa so tnues fronteiras entre o que considerado normal e o que

  • 23

    anormal. Exemplo disso pode ser a diferena entre a nota de um aluno aprovado com nota

    6.0 e um aluno que repete o ano por atingir somente uma nota 5.9; ou de uma criana

    considerada ativa, uma criana que brinca, que corre, que conversa, de uma criana

    considerada (hiper)ativa, que corre demais, que fala em excesso.

    A normalizao parece se ocupar de categorizar, classificar, esmiuar, por exemplo, os

    comportamentos, atravs de exames, tabelas, escalas, pontuaes, questionrios, que

    procuram definir de modo mais preciso e objetivo possvel o normal e o anormal. Cito

    como exemplo atual o SNAP-IV18

    , um recurso criado para a avaliao/identificao de

    crianas hiperativas. O SNAP-IV uma escala para diagnstico criada com base nos critrios

    do DSM-IV19

    para o Transtorno do Dficit de Ateno e Hiperatividade, adaptada a uma

    verso para ser aplicada a professores e pais. Nele consta a descrio de 26 comportamentos

    ou situaes que podem ser avaliados, cada um, numa escala de intensidade qual se

    atribuem pontos que vo de zero a trs. A seguir, destaco alguns desses

    comportamentos/critrios presentes no questionrio SNAP-IV, principalmente os critrios que

    considero especialmente problemticos. Creio que o ato de julgar se um comportamento

    patolgico ou no, se normal ou excessivo, est sempre vinculado s diferentes

    subjetividades (seja do/a professor/a, dos familiares ou do mdico) e, tambm a diferentes

    discursos.

    Distrai-se facilmente com estmulos internos.

    Mexe bastante as mos, ps ou cadeira.

    Corre de um lado para outro ou sobe demais nas coisas.

    Fala em excesso. [Grifos meus]

    2.1 Infncia escolarizada

    Os sintomas so mais provveis em situaes de grupo (p. ex., no ptio da escola, na sala de aula ou no ambiente de trabalho). (APA, 2003, p.113)

    O conceito de infncia, tal como o conhecemos hoje, como um perodo especfico do

    desenvolvimento, com determinadas caractersticas e peculiaridades que lhe so especficas,

    nem sempre existiu. Existe hoje a dificuldade de se pensar [...] a infncia dissociada do

    aparato pedaggico montado para imprimir-lhe uma determinada feio da Modernidade

    (BUJES, 2006, p.219). 18

    A sigla refere-se s iniciais dos sobrenomes dos autores que elaboram o questionrio: Swanson, Nolan and Pehlam (SWANSON, 2001). Em anexo (Anexo 1). Disponvel em www.psiqueweb.com.br. 19

    Quarta edio do Manual Diagnstico e Estatstico de Doenas Mentais, publicado pela Associao

    Americana de Psiquiatria.

  • 24

    At o sculo XVIII, no havia um local especfico, como a escola, onde as crianas

    fossem educadas e adquirissem conhecimentos. As crianas vivenciavam cotidianamente as

    atividades dos adultos, adquirindo conhecimentos que eram apreendidos em meio a essas

    atividades, como sugere Philippe Aris (1981).

    De acordo com os estudos realizados por esse autor, a escola do perodo anterior ao

    sculo XV no era exclusivamente destinada s crianas, ela acolhia pessoas de todas as

    idades de acordo com suas possibilidades de frequent-la (ARIS, 1981). Estudar ou

    escolarizar-se naquele perodo era uma deciso autnoma ou da famlia e no uma imposio

    do Estado. Em especial, no incio do perodo feudal (sculo V a X aproximadamente) no

    havia um currculo pr-estabelecido. O contedo a ser ensinado dependia da negociao entre

    professor/tutor e aluno, dos interesses de cada parte e de acordo com o que julgavam ser

    importante (RIBEIRO, 2006). A adoo de um currculo universal, para todos, ocorre por

    volta do sculo XV com o advento da Modernidade, envolvendo formas de conhecimento

    cujas funes consistem em regular e disciplinar o indivduo (POPKEWITZ, 2008, p.186).

    Jlia Varela (2008) argumenta que, em funo de uma nova concepo de infncia,

    surgida entre os sculos XVI e XVII, a separao entre adultos e crianas comea a se tornar

    mais marcada, surgindo em razo disto, a necessidade de especificar os processos de educao

    da criana, e a partir desse quadro que comea a se delinear um novo tipo de instituio

    escolar.

    Filsofos humanistas e reformadores dos sculos XVI e XVII, dentre os quais esto

    Jean-Jacques Rousseau20

    , John Locke21

    , Ren Descartes22

    e Immanuel Kant23

    , comearam a

    fazer referncia a uma natureza infantil dotada de talentos, dons e aptides como

    predisposies naturais da criana (BUJES, 2002). Porm, essa natureza infantil tambm

    era vista como ameaa, desafio e risco. Para Descartes, a animalidade e a selvageria

    voltadas ao instinto e desordem traduziam a falta de razo do indivduo. Portanto, como

    conclui Bujes (op.cit) acerca do que propunham aqueles autores, a educao das crianas

    deveria curv-las obedincia, for-las razo (p.49).

    20

    Filsofo do Iluminismo que viveu de 1712 a 1778. Dentre suas publicaes destaca-se Emlio ou Da Educao. 21

    Defendia a ideia de a o ser humano nascia como uma tbula rasa, ideia segundo a qual no existem ideias inatas. Viveu de 1632 a 1704. 22

    Considerado o fundador da filosofia moderna. Viveu de 1596 a 1650. 23

    Escreveu Sobre a Pedagogia, tendo vivido de 1724 a 1804.

  • 25

    Do mesmo modo, para Kant a educao o que tiraria o homem do estado de

    selvageria para atingir o estado de racionalidade, sem o qual no se tornaria

    verdadeiramente homem (BUJES, 2002). A partir do que nos mostra a autora, pode-se dizer

    que o estado de razo e o estado de selvageria so posicionados como opostos por aqueles

    autores, sendo que o primeiro deveria sobrepor-se ao segundo atravs da educao e

    disciplina. Paradoxalmente, o verdadeiro homem somente seria revelado, emancipado,

    quando, finalmente, dominasse seus instintos. Pressupunha-se a existncia de uma natureza

    como essncia inata ao ser humano, como estado primrio de selvageria cujos impulsos

    deveriam ser domesticados e esculpidos com a finalidade de tornar o indivduo um sujeito

    emancipado, dotado e guiado por sua razo.

    A elaborao de um discurso sobre a infncia pode ser considerada essencial para

    construo de um projeto educacional moderno, pois a infncia serve como justificativa para

    proposio de novos saberes, que, por sua vez, traam o caminho para que se veja como

    factvel e desejvel nela intervir (BUJES, 2002, p.63). Com o advento da Idade Moderna, as

    crianas passam a ser tomadas no mais somente como responsabilidade familiar, mas como

    uma preocupao social, constituindo-se como alvos de poder de inmeros discursos

    normativos. Elas se tornam objetos de interesse de inmeras classes profissionais, de

    iniciativas governamentais, de prticas especializadas, de legislao, de regimentos de

    estatutos, de convenes (idem).

    A fim de atender a esse contingente infantil, a escola moderna comea a ser moldada

    incluindo neste processo a categorizao da educao em um currculo progressivo e seriado

    de acordo com as faixas etrias. Junto a esse processo e sob influncia exercida pelos

    Iluministas, surge a ideia de um ensino universal, aberto a todos (ARIS, 1981). Para Philippe

    Aris, entre os moralistas e educadores do sculo XVII que se visualiza a formao de um

    sentimento de infncia que passa a consider-la como a idade da imperfeio, havendo,

    portanto, a necessidade de uma educao, sem a qual as crianas se tornariam mal-educadas.

    Surge, assim, uma pedagogia que considerava necessrio conhec-las para corrigi-las,

    servindo de base para a elaborao e execuo do projeto educacional moderno.

    O projeto educacional moderno um projeto civilizador voltado para a

    institucionalizao das crianas, operando com o distanciamento entre homem e natureza

    (BUJES, 2002). O sujeito que este projeto visava formar, o sujeito moderno, era um sujeito

  • 26

    autnomo, autoconsciente, autodisciplinado (idem). A escola seria o meio atravs do qual os

    futuros cidados seriam preparados para o mundo do trabalho.

    O surgimento da escola moderna, nos moldes de um ensino seriado, progressivo,

    universal e obrigatrio s foi possvel em funo de algumas condies. Para Julia Varela &

    Fernando Alvarez-Uria (1992), as condies que na poca favoreceram o surgimento dessa

    escola foram: a emergncia de um estatuto da infncia; a definio de um espao especfico

    para as crianas; o aparecimento de um corpo de especialistas da infncia; a destruio de

    outros modos de educao; e a imposio da obrigatoriedade da escola. H de se ressaltar a

    importncia da elaborao de um conceito sobre a infncia em que as crianas so

    apresentadas como seres dependentes, desprotegidos, incompletos, mas tambm como uma

    instncia de risco, o que predispe esse grupo interveno de adultos, que se exerce atravs

    do Estado, da escola, da famlia. Tal definio remontava educao escolar a tarefa de

    formar futuros cidados autnomos, produtivos e independentes, mas obedientes (BUJES,

    2002).

    Conforme apontado por Thomas Popkewitz (2008), o uso da designao estudante

    somente apareceu no final do sculo XIX, e mais tarde a de aprendiz, em vista da

    reconstruo da criana como um objeto de escrutnio por parte do professor, que at ento

    tinha a tarefa de professar ensinamentos religiosos, como ocorria nos colgios de ordem

    jesutica. Nesses colgios, a escolarizao detinha-se moralizao dos sujeitos e dos saberes

    (VARELA & ALVAREZ-URIA, 1992).

    Popkewitz (2008) refere que no momento em que as crianas passaram a ser concebidas

    como aprendizes, foi introduzida uma concepo moderna de infncia. O autor destaca que

    criana transformada em aprendente algum que d ateno s coisas do mundo, e no

    somente confia numa f transcendental como nos colgios de ordem jesutica. Ela vista e

    tambm compreende a si como uma pessoa racional, solucionadora-de-problemas e em

    desenvolvimento (POPKEWITZ, 2008, p.177).

    Ocorre o aperfeioamento gradual de tcnicas e de procedimentos que procuram

    mensurar de forma cientfica as capacidades das crianas, dentre elas a ateno

    (POPKEWITZ, 2008). Esses procedimentos, tais como exames fsicos e cognitivos,

    converteram-se em meios que permitiram extrair saberes dos prprios escolares. Os dados

    agregados sobre como aprendiam, sobre seus ritmos e suas capacidades, tornaram-se fonte de

  • 27

    exerccio de poderes por tornarem possvel a formao da cincia pedaggica (VARELA,

    2008).

    Varela (2008) argumenta que um dos efeitos dessa pedagogizao dos saberes foi a

    instaurao progressiva de um aparato disciplinar, de modo que a disciplina e a ordem em sala

    de aula passaram a ser precondio da transmisso de conhecimentos no interior do sistema

    de ensino. A importncia da ordem disciplinar nas instituies escolares modernas constitui-

    se quase que com um fim em si, seno totalmente, pondo o aprendizado em segundo lugar,

    conforme destaca Varela (2008). Uma supervalorizao da disciplina, no s como

    precondio a fim de que se possam executar as atividades em sala de aula, mas como meta

    escolar, pode ser visvel mesmo nos dias de hoje.

    O estudo de Maria Lusa Xavier (2003) acerca da disciplina escolar, feito em uma

    escola municipal de Porto Alegre, pe em evidncia a nfase dada, ainda hoje, ao

    comportamento, disciplina, obedincia e comprometimento do aluno. A autora observa que,

    de acordo com os critrios que a escola valoriza nos documentos avaliativos, comum que

    mesmo os avanos na aprendizagem dos contedos sejam relegados a um segundo plano. A

    disciplina entra como um critrio de avaliao dos alunos, embora no mbito escolar

    contemporneo no se tenha total conscincia disso (XAVIER, 2003).

    Jorge Ramos do (2006) indica a ocorrncia de uma importante mudana na pedagogia

    a partir do incio do sculo XX. Distanciando-se do esprito autoritarista da educao

    tradicional e do rigor disciplinar apoiado em algo exterior criana, as novas propostas

    pedaggicas24

    passaram a defender que somente atravs da sua prpria vontade o aluno

    poderia superar os seus desejos mais primrios e impulsos agressivos; e que a educao s

    seria possvel pela aquisio de uma obedincia consentida e dcil (, 2006). O poder

    disciplinar, em seu sentido mais rgido caracterizado pela coero, pelas sanes, pela

    aplicao de recompensas e castigos distingue-se de um poder pedaggico sedutor,

    convincente. O primeiro teria seu foco de ao diretamente no corpo, enquanto que o segundo

    prima pela convocao da mente, do intelecto, embora tambm esteja agindo sobre o corpo.

    Como refere este mesmo autor,

    a cincia psicopedaggica afirmou, a uma s voz, que era possvel uma eficaz

    regulao dos comportamentos individuais deslocando o trabalho normalizador para

    o interior do aluno e para as profundezas da sua mente. Para desvincular o educando

    24

    John Dewey, na Amrica do Norte; Ansio Teixeira e Loureno Filho, no Brasil; Montessori, Decroly e Binet,

    na Europa; entre outros autores citados por (2006).

  • 28

    dos vrios perigos que o rodeavam, afastando-o das mltiplas solicitaes viciosas

    do mundo, o educador podia contar apenas, com o carter e a fora do querer do

    primeiro. Na verdade, nenhum poder externo, nenhuma barreira disciplinar se

    poderia erguer contra a espontaneidade infantil, posto que era exatamente a que

    residia a marca distintiva de cada criana que urgia preservar. (, 2006, p.295).

    [Grifo do autor]

    A pedagogia, em articulao com os saberes de cincias psi, ambicionava agir sobre e

    governar o esprito e o corpo das crianas e jovens. Sua questo era tornar visvel e

    manipulvel cada um dos sujeitos, algo vivel a partir do mapeamento da alma do educando

    (, 2006). A descrio, medio e quantificao de determinadas faculdades humanas, tais

    como memria, ateno, imaginao, fora de vontade, motricidade e coisas do tipo, serviam

    de parmetros para classificao, discriminao e categorizao desses sujeitos em normais e

    anormais. Iniciava-se a aplicao de testes que visavam no s medir o saber, mas tambm

    conhecer rigorosamente o ser. Para Ramos do , os testes surgiram como um instrumento que

    combinava cincia e subjetividade e foram as experincias para diagnosticar as patologias que

    estiveram na origem de dispositivos que definiam o normal.

    Conforme indica Ramos do , a partir do incio do sculo XX, o termo anormal para

    designar a criana que no se ajusta ao ritmo e s normas escolares, que no aprende, cair em

    desuso. Passa-se a falar em aluno (ou criana) problema. O termo serve no tanto para

    designar a criana com problemas orgnicos, mas sim para designar a criana com

    dificuldades de aprendizagem, de socializao, a criana desassistida, ou com problemas de

    nutrio (, 2006).

    Se, por um lado, a escola se configura como uma instituio que procura normalizar

    indivduos e homogeneizar populaes, por outro, ela acaba por promover a emergncia dos

    ditos anormais e da prpria definio do que um comportamento anormal. Ou seja,

    enquanto uma instituio disciplinar que busca ajustar a multiplicidade dos indivduos, a

    escola na medida em que normaliza, faz surgir necessariamente em suas margens, por

    excluso e a ttulo residual, anomalias, ilegalismos, irregularidades (FOUCAULT, 2006b,

    p.137). Em outras palavras, a busca pelo normal far emergir os anormais atravs daquilo que

    passa a distinguir como certo ou errado, atravs dos exames, das descries, dos pareceres.

    Como afirma Bujes (2006, p.218), a busca implacvel pela similitude [ir mascarar] a

    ineludvel presena da diferena.

    Destaco, a partir de um exemplo acerca da elaborao da noo de idiotia no final do

    sculo XIX, o modo como a escola passou tambm a ser um espao de demarcao dos

  • 29

    anormais; e que foi, ao mesmo tempo, a via pela qual se deu a psiquiatrizao da infncia e a

    difuso do prprio poder psiquitrico no sculo XIX, conforme mostra Foucault (2006b). Esse

    autor afirma, a partir de Canguilhem, que foi no decorrer do sculo XIX que o termo

    normal passou a designar o prottipo escolar e o estado de sade orgnica, junto com a

    difuso do poder psiquitrico.

    Foucault (2006b) afirma ainda que foi a elaborao terica da noo de idiotia ou

    imbecilidade infantil que esteve relacionada ao processo de psiquiatrizao da infncia, e no

    pela criana louca; diferente do processo de encarceramento da loucura na idade adulta. A

    idiotia era um estado de estupor ou de abolio das funes intelectuais e afetivas conforme

    descrevia Jaquelin Dubuisson (apud FOUCAULT, 2006, p.259), psiquiatra do incio do

    sculo XIX. Foucault (2006) relata que os idiotas eram descritos como espcie de alienados

    despojados das faculdades que distinguiam o ser pensante e social, eles estariam condenados a

    uma existncia puramente maquinal, guiados somente por seus instintos. Diferentemente da

    loucura, que era algo que surgia somente na idade adulta, a idiotia estava presente no

    indivduo desde o seu nascimento.

    durante a elaborao da noo de idiotia que comeam a ser citadas causas centradas

    no desenvolvimento para explicar problemas de comportamento. Para Foucault (2006), a

    introduo do critrio de erro de desenvolvimento, permitiu elaboraes importantes para o

    domnio terico da psiquiatria a partir, justamente, dessa noo de erro na constituio

    orgnica, descrito com base nas prticas de abertura do crnio. A noo de desenvolvimento

    estabelece, nas palavras do autor, uma linha de clivagem entre duas espcies de

    caractersticas: uma que da ordem da doena mental, da loucura, do delrio; e outra que da

    ordem da enfermidade, da doena cerebral.

    Os esforos de normalizao desses indivduos eram feitos com base em uma norma

    que se definia pelo status das demais crianas. Dizia-se que nos idiotas faltariam as

    dimenses superiores da vontade intelectual e moral (LOBO, 2008, p.373), pois neles

    haveria uma vontade puramente instintiva que os jogaria no caos da animalidade. A

    educao teria a finalidade de retir-los desse estado de estupor e elev-los ao universo das

    possibilidades humanas, conforme aponta Lilia Lobo (2008).

    O que merece ser destacado a respeito dos saberes que foram construdos em torno da

    idiotia o modo pelo qual se dava o tratamento. Embora a idiotia tivesse sido definida como

  • 30

    um distrbio orgnico, seu tratamento caracterizava-se por ser um trabalho eminentemente

    moral, ou, conforme assinala Foucault (2006, p.265), a teraputica ser a prpria pedagogia,

    uma pedagogia mais radical. Para Lobo (2008), a educao moral do idiota evidenciava um

    duplo movimento em emergncia no sculo XIX: a naturalizao da moral e a moralizao da

    natureza (discusso que ser retomada mais adiante).

    Enfim, ser a partir da criana idiota que surgir a distino entre criana normal e

    criana anormal. A designao de criana anormal se referia aos incapazes, cuja causa do

    problema estaria neles mesmos, em sua biologia. Estes termos vigorariam at o incio do

    sculo XX, como apontado por Ramos do (2006). A partir de ento, entra em cena a

    criana problema, cuja investigao debruar-se- sobre sua condio familiar, social, de

    nutrio, psicolgica, em causas externas (idem).

    Caliman (2006) ressalta que o movimento que determinaria a criana anormal iniciava-

    se no final do sculo XIX pela definio biologizada do anormal (dos idiotas, dos imbecis),

    cujo tratamento era moral, pelo exerccio do autocontrole e da disciplina, principalmente.

    Ainda segundo a autora, a partir das primeiras dcadas do sculo XX at por volta dos anos

    1970, seria uma definio psicologizada que assumiria os anormais, rebatizados como

    crianas-problemas, conforme tambm apontado por Ramos do . O tratamento j no se

    efetivaria pelo exerccio do autocontrole e da disciplina, mas pela assistncia social,

    psicolgica e familiar da criana, com o objetivo de resgat-la (CALIMAN, 2006).

    2.2 Infncia e escolarizao hoje

    No perodo atual, os ideais da educao para todos e da construo do sujeito moderno,

    pautados na emancipao dos indivduos e na promoo de sua autonomia e racionalidade,

    encontram-se confrontados ao crescente e diverso contingente de alunos que ingressam nas

    escolas (XAVIER 2003). A escola lida, ainda, com a obrigatoriedade do ensino e com as

    metas de educao de governo movidas, em parte, por metas estabelecidas por acordos

    internacionais e por interesses econmicos. Bujes nos lembra de que a infncia moderna

    nunca existiu seno como um ideal (BUJES, 2006, p.219). No entanto, faz-se necessrio

    recordar que, embora no se tenha alcanado os objetivos que almejava, foi esse o ideal deu

    forma s prticas que foram institudas na busca da construo desse sujeito.

    De acordo com Bujes (2002) haveria, nos dias de hoje, um esgotamento na perspectiva

    que v a criana como sujeito da educao moderna; como um ser transcendental, unitrio,

  • 31

    racional, estvel. Esgotamento esse que concomitante com o lugar da infncia como espao

    utpico de inocncia, sensibilidade, desproteo, felicidade. Tal viso teria dado lugar a uma

    viso de criana como sujeito de seu tempo, pressionada pelas condies do meio, marcada

    por diferenas de gnero, classe, etnia, raa, idade, corpo, etc. (BUJES, 2002 p.18). Uma

    infncia que, diferentemente da infncia moderna idealizada, nos surpreende com suas

    perguntas e respostas, domina certas tecnologias por vezes ensinando os adultos , bate o

    p para ter seus desejos atendidos o mais breve possvel e escolhe o canal que ser assistido

    na televiso da sala. So essas crianas que parecem desconcertar os adultos. Uma infncia

    que parece no condizente com a infncia que se esperava obediente, dependente,

    heternoma e que foi naturalizada desta forma.

    Segundo Bujes (2006), haveria um desencaixe entre a sociedade e a escola, isso porque

    hoje estamos assistindo ao que se convencionou chamar de crise da escola. Essa

    instituio tem sido vista como desencaixada da sociedade. O momento que vivemos

    se caracteriza por um descompasso entre as prticas escolares e as rpidas

    modificaes espaciais e temporais pelas quais passa a sociedade, o que daria o tom

    a isso que sentimos como desencaixe, descompasso, disjuno, desproporo.

    (BUJES, 2006, p. 223)

    Para David Buckingham (2010), haveria, igualmente, um alargamento da lacuna entre a

    cultura escolar e a cultura das crianas fora da escola, marcado, sobretudo, pelo papel cada

    vez mais significativo que a mdia desempenha na vida dos jovens, em especial a mdia

    digital, apresentando-se como um amplo desafio perante a escola enquanto instituio.

    Embora no procure aprofundar a discusso acerca da cultura, creio ser relevante pensar

    a importncia dessa dimenso e das revolues culturais, como centrais na constituio da

    subjetividade, da prpria identidade da pessoa como um ator social como indica Stuart Hall

    (1997, p.23). O encurtamento das distncias entre pessoas e naes e a velocidade de

    transmisso de informaes proporcionadas pela mdia e por outras tecnologias teria um

    impacto significativo na vida das pessoas (idem), e nesse sentido, a escola parece no estar

    atenta (ou no creditar a devida importncia) a essas modificaes culturais em que esto

    imersas as novas geraes.

    Autores como Bill Green e Chris Bigun (2008) exploram a tese de que estaria

    emergindo uma nova gerao, com uma constituio radicalmente diferente (p.208),

    trabalhando a ideia da emergncia de um sujeito-estudante ps-moderno, dotado de novas

    necessidades e novas capacidades. Trata-se das novas geraes, crescidas em meio s

  • 32

    tecnologias digitais, familiarizadas com o uso de computadores, de games, da internet, num

    tempo em que a velocidade na transmisso de informaes supera seus recordes diariamente,

    em que as distncias so encurtadas, em que o tempo de espera outro. De acordo com esses

    autores, a forma particular desses dispositivos na vida desses usurios constitui a norma;

    eles/as no tm nenhuma experincia bsica comparvel nossa (GREEN & BIGUN, 2008);

    e ns tambm no tivemos experincia comparvel deles/as, no entanto seguimos tentando

    enquadr-los s antigas formataes da escola.

    Leni Dornelles (2005) emprega o termo cyber-infncia25 para se referir quela infncia

    afetada pelas novas tecnologias e que produz nos adultos certo sentimento de medo, visto que

    esta infncia nos escapa. V-se na cyber-infncia certo perigo, talvez por no se ter

    produzido um saber suficiente para control-la ou porque no se consegue melhor govern-la

    (DORNELLES, 2005, p. 78). Segundo Dornelles (op.cit.), a interatividade que ocorre entre os

    games e as crianas, acaba por produzir, um determinado tipo de sujeito infantil. Cabe pensar,

    se, de fato, estamos diante de outra infncia (ou outras infncias) ou se as crianas esto

    crescendo em um mundo diferente daquele em que as geraes anteriores foram criadas e

    subjetivadas.

    provvel que estejamos ainda tentando encaixar as novas geraes s velhas normas,

    ao passo que as possibilidades de se viver a infncia nos dias de hoje incluem estar habituado

    s novas tecnologias digitais, a domin-las, e a descobrir novos mundos digitais. No entanto,

    penso que apesar de muitas crianas possurem certa autonomia no que se refere ao uso e ao

    domnio sobre essas tecnologias, por saberem us-las sem a necessidade de auxlio de adultos

    e por poderem navegar por espaos virtuais e comunicar-se com outras pessoas elas tm

    passado por muitas restries com relao aos espaos fsicos que podem ter acesso e

    explorar. Pensemos, por exemplo, nas crianas criadas em creches desde cedo: dentro de

    apartamentos, acompanhadas por babs; dentro das escolas, delimitadas por pequenos

    espaos. Conforme observa Bujes (2006), essas seriam algumas das novas formas de

    confinamento da infncia, e que limitam e interditam os movimentos e deslocamentos das

    crianas, confinadas aparentemente com o intuito de serem protegidas e vigiadas.

    Alm da prpria escola, Bujes (2006) afirma que essas novas formas de confinamento

    so os espaos dos condomnios residenciais da classe mdia, os espaos de lazer, as prises

    25

    Termo empregado de forma semelhante ao de infncia hiper-realizada por Mariano Narodowski (1999) em seu texto Adeus infncia. No entanto Dornelles (2005) faz ressalvas quanto esta infncia ser, de fato, hiper-realizada.

  • 33

    femininas (onde vivem at certa idade os filhos das apenadas), as favelas em situaes de

    cerco. Alm desses espaos citados pela autora, eu acrescentaria as zonas temporrias de

    enclausuramento, como os playgrounds dos shoppings, ou mesmo os prprios quartos, onde

    as crianas permanecem por horas envolvidas com o computador ou com o videogame. Alm

    dos espaos que as incluem, que as cercam, h os espaos interditados, dos quais, nas

    cidades grandes, as crianas foram sendo banidas, como a rua em frente de casa, que servia

    como um campinho de futebol, o ptio do vizinho, que agora cercado, as praas pblicas,

    agora perigosas.

    As novas geraes parecem atemorizar professores e pais. Elas impressionam por suas

    respostas inesperadas, pela sua habilidade com os aparelhos eletrnicos. Elas desconcertam e

    constrangem por se mostrarem desobedientes e exigentes em muitas ocasies. Estaramos

    ainda buscando a imagem (ou presos a ela) da infncia inocente, desprotegida, dependente,

    relegada pelas formulaes acerca do sujeito infantil na Modernidade? Como essas

    concepes estariam atravessando prticas e discursos acerca do sujeito infantil? De acordo

    com Green e Bigun (2008):

    [...] as diferenas radicais [...] com respeito a novas formas de subjetividade e

    identidade estudantil, no estaro sendo simplesmente incorporadas e acomodadas

    norma (no sentido de Foucault) dos modos convencionais de pesquisa? [...] podemos

    nos limitar a acomodar e a assimilar a diferena e os desafios que nos confrontam

    em tantas frentes, simplesmente trazendo-os para dentro dos quadros de referncia

    normativos atualmente existentes? (p.211)

    Bem como a indisciplina, a diminuio na concentrao das crianas constitui uma das

    reclamaes recorrentes por parte dos professores (BUCKINGHAM, 2010). Este autor aponta

    para a disparidade dos nveis de concentrao que caracterizam o interesse das crianas por

    fenmenos como, por exemplo, personagens famosos de desenhos animados ou jogos

    eletrnicos (dinmicos, coloridos e vibrantes) em contraponto com os desanimadores testes

    mecnicos que predominam em muitas salas de aula. As crianas esto hoje imersas numa

    cultura de consumo que as situa como ativas e autnomas, mas na escola uma grande

    quantidade de seu aprendizado passiva e dirigida pelos professores (idem, p.144). Esta

    disparidade entre a criana de hoje ou melhor, a disparidade entre as possibilidades da

    infncia de hoje e o modelo escolar inspirado no projeto educacional moderno, deve ser

    levada em conta. No entanto, o autor nos alerta que

    [...] se pretendermos atrair os aprendentes desafetos, a resposta no ser enfeitar os

    materiais de ensino com penduricalhos dar mais vida ao currculo com o brilho superficial da cultura digital amiguinha das crianas. Nem ser adotar a tecnologia

  • 34

    digital a servio de formas estritamente instrumentais de aprendizagem, numa

    tentativa de torn-la mais agradvel. Embelezar os testes ou tabelas de multiplicao

    com um polimento mais divertido estratgia que a maioria das crianas percebe logo. preciso um compromisso mais inteiro e mais crtico com as culturas digitais

    infantis. (BUCKINGHAM, 2010, p.47).

    Deste modo, a necessidade de conteno dos corpos infantis, de fazer com que prestem

    ateno, que obedeam ao/a professor/a, que permaneam sentados, implicou/implica na

    criao de estratgias dentre as quais est a implementao de um aparato disciplinar,

    impondo ritmos externos ao corpo infantil. Visto que a criana no est naturalmente

    predisposta a exercer o papel de aluno, como reitera Xavier (2003), a escola ter de lidar com

    a inquietude, a desorganizao, a distrao, o desinteresse, enfim, com a indisciplina, que vem

    se configurando, cada vez mais, como um dos maiores problemas da escola. Como aponta

    Bujes (2006), a indisciplina est no cerne da crise escolar.

    Para Xavier (2003), estaria ocorrendo um apagamento nos discursos pedaggicos acerca

    do papel que a escola tem no processo de disciplinamento dos corpos infantis, embora a

    indisciplina seja um dos problemas que persiste nas escolas, que, em outras palavras, nada

    mais que a resistncia a se enquadrar s normas, tempos e demandas escolares. A autora

    refere-se quase inexistncia de propostas com vistas formao/construo do ser aluno,

    como era propsito claro da escola moderna. No entanto, a escola no deixou de cobrar dos

    alunos uma postura disciplinada, obediente, organizada, silenciosa.

    Xavier (op. cit.) tambm observa que nos cursos de pedagogia, as propostas

    pedaggicas defendidas seguem correntes democratizantes/progressistas que comearam a

    entrar em voga na dcada de 1980. Essas propostas enfatizavam a necessidade de o/a

    professor/a observar as peculiaridades de cada grupo a fim de pensar propostas de trabalho

    condizentes com a realidade do aluno, propiciando experincias de aprendizagem construdas

    coletivamente, procurando, assim, afastar-se do esprito autoritarista da escola tradicional.

    Apesar disso, enfatiza essa mesma autora, a forma de conduo do trabalho pedaggico um

    aspecto que tem sido negligenciado na formao dos/as professores/as. Haveria uma

    dificuldade em se assumir o papel produtor da escola e de admiti-la como uma instituio

    de regulao e de controle. A autora identifica tal dificuldade como possivelmente decorrente

    de movimentos que nas ltimas dcadas vm questionando o autoritarismo nas organizaes

    sociais dentre as quais se inclui o sistema escolar. Na educao esses movimentos

    democratizantes postulam posturas mais igualitrias nas salas de aula e relaes entre

  • 35

    docentes e escolares, o que pra Xavier (2003) poderia estar gerando insegurana no fazer

    docente pela perda de um referencial tradicional sobre o qual a profisso estava alicerada.

    2.3 Novas formas de controle

    Se, por um lado, a escola contempornea no reconhece, no discute ou no percebe seu

    papel no disciplinamento dos corpos (XAVIER, 2003) ao no abordar, pelo menos de forma

    explcita, quais seriam suas estratgias disciplinares e como seriam implementadas; por outro,

    a escola recorre a novas formas de controle. Segundo Cristianne Rocha (2005), trata-se de um

    controle que se efetiva pela utilizao de instrumentos tecnolgicos dentro da escola, tais

    como cmeras de vigilncia, detectores de metais, cartes de identificao, raios-X, e que so

    implantados com vistas a garantir a segurana destes ambientes. um controle que se exerce

    no pela imposio da fora fsica, mas pelo constrangimento, pela produo, no sujeito, de

    uma sensao de permanente ateno (ROCHA, 2005). A ideia de que o sujeito exera um

    controle sobre si mesmo, mantendo-se consciente de suas aes.

    Segundo Rocha, a presena de equipamentos como os descritos acima, a fim de prevenir

    ou constranger atos de violncia, furto, brigas, ou algazarra, denota uma mudana de nfase

    dos dispositivos disciplinares para os dispositivos de controle (ROCHA, 2005). A forma

    como o termo dispositivo empregado diz respeito acepo foucaultiana, segundo a qual:

    [...] dispositivo um conjunto decididamente heterogneo que engloba discursos,

    instituies, organizaes arquitetnicas, decises regulamentares, leis, medidas

    administrativas, enunciados cientficos, proposies filosficas. Em suma, o dito e o

    no dito so elementos do dispositivo. O dispositivo a rede que se pode estabelecer

    entre estes elementos [...] heterogneos. (FOUCAULT, 1989, p.244)

    No entanto, no se trata de uma substituio dos dispositivos disciplinares pelos

    dispositivos de controle, mas de uma articulao entre ambos, na qual uns potencializam os

    outros. Rocha (2005) afirma que o que mudou foi o como do exerccio do controle e da

    vigilncia, j a existncia de uma rede de observao vigilante e controladora no exclusiva

    de nosso tempo. Nas sociedades de soberania (FOUCAULT, 1994) o poder se exercia pela

    ao violenta e o suplcio em praa pblica; na sociedade disciplinar o poder-saber se exercia

    pela disciplina, pela categorizao, classificao, normalizao, sob a forma de um poder

    difuso e hierrquico. Porm, tomando como base a discusso de Gilles Deleuze sobre

    sociedade de controle, Rocha sublinha que nestas sociedades que o poder adquire maior

    eficincia por meio do auxlio de tecnologias que permitem um controle permanente e quase

    invisvel de um grande nmero de indivduos, de uma forma menos violenta e mais eficaz.

  • 36

    H alguns indivduos, porm, que nem o confinamento nem a vigilncia conseguem

    controlar, como destaca Bujes (2006). Eles no obedecem aos ritmos da escola, seja porque

    no os acompanham, so dispersos ou tendem a ultrapassar a velocidade da escola,

    aborrecem-se facilmente, procuram outra atividade, no param, deslocam-se incessantemente,

    apressam-se nas respostas. Esses indivduos vm sendo classificados como portadores do

    Transtorno de dficit de ateno/hiperatividade e a eles se recomenda o uso de frmacos que

    operam na direo de controlar seus corpos.

    Esse enquadramento dos alunos indisciplinados, dispersos ou incontrolveis a alguma

    classificao mdica, reflete um fenmeno cada vez mais comum na escola, conforme

    discutido por Freitas (2011). A autora afirma que muitos dos problemas antes considerados

    como questes do domnio da educao escolar, como a indisciplina, a distrao, a inquietude,

    e que a escola no assume mais como seus, tm sido transferidos a outros domnios, como os

    da medicina, psicologia, psiquiatria, neurologia. Com relao a isso, Xavier (2003), aponta

    para a proliferao de diferentes classificaes que tm enquadrado os alunos em diagnsticos

    de hiperatividade/dficit de ateno, dislexia, disritmia, entre outros.

    A designao de novos diagnsticos psiquitricos evidencia um processo que ocorre na

    escola e que Guillermo Zamdio (2010) descreve como a produo de restos26. Isto , o

    prprio processo que visa homogeneizar acaba surtindo um efeito que coloca em evidncia os

    restos, os problemas, os sintomas, os mal-estares. Esses empecilhos (indisciplina,

    dificuldades de aprendizagem, inadaptao e desinteresse por parte dos alunos, por exemplo)

    impedem que a escola funcione totalmente, ou fazem com que funcione a um alto custo

    (idem). Para esse autor, a possibilidade de se perceber um determinado fenmeno estaria

    subordinada prpria perspectiva de onde ele emerge. Por isso no se pode ter primeiro os

    dados para depois fazer-lhes uma descrio, faz-se primeiramente a descrio de um

    fenmeno, um recorte particular, que pode vir a culminar em um registro, uma classificao,

    um quadro clnico, um diagnstico, para depois investigar suas causas. O dado no est a,

    dcil, com a finalidade de ser percebido (ZAMDIO, 2010, p.62).

    A imposio de diagnsticos psquicos permite alocar no corpo individual a causa e a

    resoluo de determinados problemas. Ocorre a transferncia do problema de uma dimenso

    para outra: da dimenso social (da indisciplina ou do fracasso escolar) para uma dimenso

    biolgica e individual (do indivduo portador de TDAH, por exemplo), e desta para, cada vez

    26

    Idem em espanhol.

  • 37

    mais, uma dimenso molecular. Em se tratando de um desajuste no nvel de

    neurotransmissores, no resta, aparentemente, alternativa seno medic-lo, pondo em ordem

    esse suposto desequilbrio.

    A justificativa de que o erro encontra-se no prprio corpo do indivduo, no seu

    crebro, parece ser uma alternativa que desbanca a ao da prpria escola, dos pais e do

    indivduo, ele prprio, sobre seu comportamento. A resoluo do problema entregue s

    mos de especialistas. Na escola ou em casa, o diagnstico do TDAH agrega uma srie de

    comportamentos no desejados, funcionando, assim, como um diagnstico guarda-chuva

    (CALIMAN, 2010). Na medida em que desateno, impulsividade e agitao tornam-se

    patologias, o indivduo que apresent-los torna-se um problema mdico e no um problema

    pedaggico ou social. A isto tem se chamado medicalizao, o processo de transformao

    de problemas sociais e institucionais dificuldades de escolarizao em problemas

    individuais e em distrbios orgnicos (TAVERNA, 2011, p. 169).

    Peter Conrad (1992) assinala que o termo medicalizao tem sido frequentemente

    utilizado em um contexto de crtica da medicalizao (ou da hipermedicalizao27

    ) e no

    somente de modo neutro para descrever algo que se tornou mdico. Em geral o termo

    aplicado em se tratando do processo ou resultado do ingresso de problemas humanos na

    jurisdio mdica, licenciando a profisso mdica a prover algum tipo de tratamento,

    conforme frisa o autor. Uma das formas em que pode ocorrer a medicalizao o processo

    que transforma o comportamento considerado desviante em algum tipo de patologia (loucura,

    alcoolismo, homossexualidade, drogadio, anorexia). Sobre a patologizao e medicalizao

    de problemas de comportamento na infncia, o autor cita como principais casos a

    hiperatividade e os distrbios de aprendizagem.

    A imposio de rtulos cientficos funciona como uma eficiente estratgia de controle

    (FIORE, 2005), pois deste modo possvel tratar (controlar) o indivduo atravs de

    medicamentos. A medicalizao do corpo infantil escolar tem constitudo um fenmeno

    alarmante no que concerne ao nmero de crianas rotuladas de hiperativas e que vem sendo

    tratadas com psicoestimulantes base de metilfenidato28

    , como a Ritalina.

    27

    No texto de origem: overmedicalization (CONRAD, 1992, p.210). 28

    O metilfenidato uma substncia do grupo das anfetaminas, produzido e comercializado pela Novartis com o

    nome Ritalina. Trata-se de um medicamento de tarja preta, vendido sob a apresentao e reteno de receita mdica. Ele indicado principalmente para o tratamento dos sintomas do TDAH, narcolepsia e fadiga.

  • 38

    Os efeitos do metilfenidato no comportamento do indivduo so uma maior

    concentrao e quietude, embora em algumas pessoas possa provocar uma maior agitao. As

    crianas ficam mais calmas durante o efeito e mais focadas em suas tarefas, por isso o

    metilfenidato ser apelidado de droga da obedincia ou bala mgica. H tambm relatos de

    crianas que se tornam apticas, ficam com olhar perdido ou deixam de demonstrar

    interesse at pelo brincar no recreio (BRZOZOWSKI & CAPONI, 2010; BOARINI &

    BORGES, 2009). O medicamento no cura o TDAH, mas ameniza os sintomas durante cerca

    de at quatro horas aps ser ingerido, podendo apresentar reaes adversas como perda de

    apetite, cefaleia, nuseas, insnia, taquicardia, tonturas, vmitos, psicose, e, em alguns casos,

    perda de peso e diminuio do crescimento, possivelmente em funo da perda de apetite

    ocasionada pelo medicamento (PASTURA & MATTOS, 2004).

    Em termos numricos, deve-se destacar o crescimento exponencial no consumo e na

    produo mundial do metilfenidato. De acordo com dados apresentados por Cludia Itaborahy

    (2009), a fabricao mundial declarada de metilfenidato em 1990 foi de 2,8 toneladas; em

    1999, passou para 19,1 toneladas, o que representou um aumento de 580% na sua produo.

    Em 2006, o consumo mundial da substncia atingiu 35,8 toneladas, sendo 82,2% do total

    consumido pelos Estados Unidos.

    Para Itaborahy (2009), o aumento na produo e consumo de metilfenidato talvez se

    deva a uma ampla divulgao do TDAH a partir da dcada de 1990, alm do intensivo

    marketing realizado nos Estados Unidos pelas empresas fabricantes. No Brasil, o

    metilfenidato passou a ser comercializado no ano de 1998 e seis anos depois, em 2004, j

    eram comercializadas 740.420 caixas, passando para 1.146.592 caixas em 2007. Ainda de

    acordo com Itaborahy (2009), a produo brasileira de metilfenidato alcanou 226 quilos em

    2006, alm dos 91 quilos importados pelo Brasil. Segundo dados da Organizao das Naes

    Unidas29

    (ONU), apresentados em setembro de 2011, o Brasil havia apresentado at aquele

    ms 740 quilos, enquanto que os Estados Unidos (destacado como um dos maiores produtores

    de metilfenidato) havia produzido mais de 55 toneladas. O metilfenidato a anfetamina mais

    consumida no mundo, como confirma Itab