h - suplemento do hoje macau #45

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h ARTES, LETRAS E IDEIAS PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2627. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE CARTAS À ESQUERDA BOAVENTURA SOUSA SANTOS

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Suplemento h - Parte integrante da edição de 8 de Junho de 2012

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PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2627. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

CARTAS À ESQUERDA

BOAVENTURA SOUSA SANTOS

I D E I A S F O R T E S

GRÉCIA

“EU NÃO ACREDITO em heróis ou salvadores”, afirmou Alexis Tsipras ao Guardian, sublinhando que acredita, isso sim, “em lutar por direitos”. “Nin-guém tem o direito de reduzir um povo orgulhoso a tal estado de miséria e de indignidade”, enfatizou o líder da Syri-za.Em entrevista ao jornal britânico, Tsi-pras realçou que o que está em marcha não é uma guerra “entre as nações e po-vos”. Na realidade, avançou, este é um conflito que opõe “os trabalhadores e a maioria das pessoas” aos “capitalistas globais, banqueiros, especuladores nas bolsas de valores, os grandes fundos”. “É uma guerra entre os povos e o ca-pitalismo”, frisou Alex Tsipras, adian-tando que, “tal como acontece em cada guerra, o que ocorre na linha de frente define a batalha, que será decisiva para a guerra noutros lugares”.

O presidente do Grupo Parlamentar da coligação de esquerda Syriza susten-tou que a Grécia foi escolhida como balão de ensaio para a implementação das políticas de choque neo-liberais e que os gregos “foram as cobaias” e alertou também para o facto de, caso a experiência continue, ela será “con-siderada um sucesso e as políticas se-rão aplicadas noutros países”. “É por isso que é tão importante interromper a experiência”, frisou Tsipras, realçan-do que pôr fim a este ataque “não será apenas uma vitória para a Grécia, mas para toda a Europa”.

“NUNCA ESTIVEMOS TÃO MAL”“Após dois anos e meio de catástrofe”, e depois de sofrerem um longo bom-bardeamento de “choque neo-liberal” - aumentos de impostos draconianos e cortes nas despesas implementados

A COLIGAÇÃO da Esquerda Radical (Syriza) surgiu em 2004 e resulta de um processo de diálogo iniciado em 2001 en-tre muitas correntes da esquerda grega, de inspiração socialista, eurocomunista, ecolo-gista, maoísta e trotskista. Hoje a Syriza é composta por doze organizações e muitas personalidades independentes, entre elas algumas figuras que se afastaram do PA-SOK nos últimos anos.Em 2001, o movimento alterglobal atingia um dos seus pontos mais altos, com cen-tenas de milhares de europeus nas ruas de Génova contra os senhores do mundo que eram hóspedes de Berlusconi na cimeira do G8. A repressão policial demorou anos a ser condenada na justiça italiana, mas as cimeiras passaram a realizar-se ainda mais às escondidas.  A mobilização grega para esse protesto foi uma das primeiras tarefas do Espaço de Diálogo para a Unidade e Ação Comum da Esquerda, que agrupava várias correntes que já se tinham encontra-do noutras lutas, como a oposição à inter-venção militar no Kosovo, as privatizações ou a legislação antiterrorista que ameaçava as liberdades civis na Grécia. O “Espaço” foi também determinante para organizar o Fó-rum Social Grego em 2003.A figura de referência do “Espaço” era Ma-nolis Glezos, o conhecido resistente ao na-zismo que em maio de 1941 subiu à Acrópo-le e tirou de lá a bandeira da suástica, no que ficou conhecido como o primeiro acto de resistência do povo de Atenas contra a ocu-pação da cidade no mês anterior. Glezos foi o candidato da aliança eleitoral promovida pelo “Espaço” em 2002 à super-autarquia de Atenas-Piraeus, obtendo 10,8% dos votos. Dez anos depois, voltou a aparecer ao lado de Alexis Tsipras no comício da Syriza em Atenas antes de encerrar a campanha elei-toral.A coligação Syriza apresenta-se pela pri-meira vez a votos com programa eleitoral próprio nas legislativas de 2004 e consegue passar a barreira dos 3% para eleger seis deputados, todos pertencentes à corrente maioritária, o Synaspismos.  A coligação conseguiu sobreviver à tensão interna com a substituição da liderança do Synaspismos no fim desse ano e ganhou novo fôlego com a organização do Fórum Social Europeu em Atenas dois anos depois.2006 foi também ano de eleições autárqui-cas, com um jovem de 32 anos a ser lança-do para a disputa eleitoral em Atenas com o objetivo de abrir o movimento às novas gerações. Alexis Tsipras, líder estudantil nos anos 90 e responsável pelo sector juvenil do Synaspismos, repetiu o resultado de Glezos

Vermelho Syrizaquatro anos antes e tornou a Syriza na ter-ceira força política na capital grega.As eleições seguintes (legislativas em 2007 e 2009 e europeias de 2009) vieram confir-mar a coligação como uma força ascenden-te no panorama político nacional, ao mes-mo tempo que registaram um alargamento das forças que compõem a coligação. Ale-xis Tsipras sucedeu a Alekos Alavanos na liderança do Synaspismos e tornou-se líder parlamentar após as eleições de 2009. No ano seguinte enfrentou uma cisão impor-tante no seu partido, que retirou quatro dos treze deputados da coligação para for-marem um novo partido, a Esquerda De-mocrática.Actualmente, fazem parte da Syriza doze organizações. A corrente maioritária é o Synaspismos, uma antiga coligação entre comunistas que se transformou em partido na sequência da purga de 45% do Comité Central do PC grego após o fim da URSS. As outras organizações são a AKOA (Es-querda Comunista Ecológica e Renovado-ra, membro observador do Partido da Es-querda Europeia); DEA (Esquerda Interna-cionalista dos Trabalhadores, próxima da tendência trotskista internacional IST, fun-dada por Tony Cliff); DKKI (Movimento Democrático Social, corrente que saiu do PASOK em 1995); KOE (Organização Comunista da Grécia, de inspiração mao-ísta, integrou a Syriza em 2007); Kokkino (Vermelho, corrente de inspiração trotskis-ta); Ecosocialistas da Grécia; Cidadãos Activos (corrente fundada pelo herói da Resistência Manolis Glezos); KEDA (Mo-vimento pela Esquerda Unida na Ação, cisão do PC grego em 2000); Rizospastes (Radicais, cisão dos Cidadãos Activos, su-blinham o patriotismo no discurso); Oma-da Roza (Grupo Rosa, esquerda radical); e APO (Grupo Político Anticapitalista, cor-rente de inspiração trotskista).Para além destas organizações e partidos, e principalmente durante este ano, o Syri-za tem sido apoiada por pessoas com di-ferentes experiências de militância. Nesta campanha para as eleições de 6 de Maio, as mais fortes na polarização contra a troika, deram a cara pela coligação antigas figuras do PASOK como a ex-deputada e atleta olímpica Sofia Sakorafa - que acabou por ser a candidata mais votada – ou Alexis Mitropoulos, responsável pelo desenho das leis laborais nos anos 80. Também Stathis Kouvelakis, professor de Filosofia no King´s College em Londres e Despina Spanou, dirigente do sindicato da função publica Adedy, deram o seu apoio à Syriza nesta campanha.

“Há uma guerra entre o povo e o capitalismo”

A Grécia foi escolhida como balão de ensaio para a implementação das políticas de choque neo-liberais e os gregos “foram as cobaias”. Caso a experiência continue, será “considerada um sucesso e as políticas serão aplicadas noutros países”.

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sem quaisquer remorsos – “os gregos estão de joelhos”, referiu Tsipras.“ O Estado Social entrou em colapso, um em cada dois jovens está desempre-gado, há cada vez mais pessoas a emi-grar, o clima psicológico é de pessimis-mo, depressão, suicídios em massa”, relatou, avançando que o povo grego nunca esteve “tão mal”.Interrogado sobre se teria medo, Alex Tsipras respondeu que teria, de fac-to, caso “continuássemos por este ca-minho, um caminho para o inferno social”, contudo, destacou, “quando alguém luta tem uma grande hipótese de ganhar e nós estamos a lutar para vencer”.

A SYRIZA NÃO É CONTRA O EURO OU A UNIÃO MONETÁRIADurante a entrevista, o líder da Syriza sublinhou que não é contra o euro ou a união monetária e que essa chantagem está a ser utilizada para que as pesso-as se sintam aterrorizadas de modo a manter o status quo.“Não somos contra uma Europa unifi-cada ou a união monetária”, “nós não queremos fazer chantagem, queremos convencer os nossos parceiros euro-peus, que o caminho que foi escolhido para enfrentar a Grécia é totalmente contra producente. É como jogar di-nheiro num poço sem fundo”, esclare-ceu.Para Tsipras, é importante que os eu-ropeus saibam que o dinheiro com que contribuem para a suposta resolução da crise grega não está a ser aplicado em investimento e crescimento nem a ser utilizado para, efectivamente, fazer face ao problema da dívida.Na realidade, se a Grécia se mantiver no mesmo rumo, “em seis meses se-remos forçados a discutir um terceiro pacote e depois um quarto”, alertou o dirigente da coligação Syriza.Por outro lado, também é importan-te para Alex Tsipras que os europeus compreendam que o Syriza não tem “qualquer intenção de avançar num movimento unilateral”. “Nós [só] seremos forçados a agir, se eles agirem de forma unilateral e de-rem o primeiro passo”, afirmou. “Se eles não nos pagarem, se pararem o financiamento, então não seremos ca-pazes de pagar os credores. O que es-tou a dizer é muito simples”, adiantou ainda o político grego.Alex Tsipras fez também questão de lembrar que a crise da Grécia não é so-mente um problema do país. “Keynes disse-o há muitos anos. Não é apenas a pessoa que pede emprestado que pode ficar numa posição difícil, mas também a pessoa que empresta. Se você deve 6.200 euros ao banco, é um problema seu, mas se você deve 620 000 euros, é problema do banco”, ilustrou Tsipras.“Este é um problema comum. É o nosso problema. É o problema de Merkel. É um problema europeu. É um problema mundial”, rematou Alexis Tsipras, o lí-der do Syriza.

AOS 37 ANOS, o engenheiro civil nas-cido poucos dias depois da queda da jun-ta militar grega, em julho de 1974, diz es-tar preparado para corresponder ao apoio popular e vir a liderar o primeiro governo de esquerda decidido a romper com a re-ceita neoliberal que afundou o seu país.O batismo de Tsipras nas lutas sociais ocorreu em 1990 nas mobilizações do ensino secundário grego, numa altura em que já militava na Juventude Comunista Grega (KNE). A participação no movi-mento estudantil prosseguiu na Universi-dade Técnica de Atenas, onde fez o curso de engenharia civil ao mesmo tempo que se tornou dirigente associativo e mem-bro eleito pelos estudantes do Senado da Universidade. Em 1995, Tsipras foi eleito dirigente do Sindicato Nacional de Estu-dantes Gregos.

Em 1999, Alexis Tsipras tornou-se o pri-meiro líder da juventude do Synaspis-mos, mantendo-se à frente da ala juvenil do partido até 2003, tendo organizado a sua participação nos movimentos pela globalização alternativa e no Fórum So-cial Grego. Um ano depois foi eleito di-rigente do Synaspismos, passando ser o responsável pela juventude e política de educação no Secretariado da organiza-ção. Aos 32 anos, foi lançado nas autár-quicas de 2006 como primeiro candidato à autarquia de Atenas na lista “Cidade Aberta”, apoiada pela coligação Syriza, entretanto já formada. Tsipras obteve o terceiro lugar com 10,5% dos votos e a lista elegeu quatro membros para o Con-selho Municipal.A entrada no Parlamento grego veio nas eleições de 2009, quando Tsipras já era

presidente do Synaspismos, a principal força que integra a coligação Syriza. À frente da bancada da Syriza, Tsipras é considerado um orador temido pelos ad-versários nos debates sobre a austeridade e raramente é visto a usar gravata. Quem o conhece aponta-lhe o perfecionismo como uma das principais características, e quanto a hobbies destacam o gosto por passeios de motocicleta e pelo clube de futebol Panathinaikos, que este ano vol-tou a ser ultrapassado pelo rival Olym-piakos na luta pelo título. Dizem que é grande admirador de Hugo Chávez e até faz anos no mesmo dia do comandante da Revolução Bolivariana, com duas décadas de diferença. Vive com a companheira dos tempos da escola secundária e espe-ram o segundo filho já no mês seguinte às eleições de 17 de Junho.

QUEM É ALEXIS TSIPRAS?

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da do Muro de Berlim. Os últimos trinta anos foram, por um lado, uma gestão de ruínas e de inércias e, por outro, a emer-gência de novas lutas contra a domina-ção, com outros actores e linguagens que as esquerdas não puderam entender. En-tretanto, livre das esquerdas, o capitalis-mo voltou a mostrar a sua vocação anti--social. Voltou a ser urgente reconstruir as esquerdas para evitar a barbárie.Como recomeçar? Pela aceitação das seguintes ideias. Primeiro, o mundo di-versificou-se e a diversidade instalou-se no interior de cada país. A compreen-são do mundo é muito mais ampla que a compreensão ocidental do mundo; não há internacionalismo sem intercultura-lismo. Segundo, o capitalismo concebe a democracia como um instrumento de acumulação; se for preciso, redu-la à irre-

levância e, se encontrar outro instrumen-to mais eficiente, dispensa-a (o caso da China). A defesa da democracia de alta intensidade é a grande bandeira das es-querdas. Terceiro, o capitalismo é amoral e não entende o conceito de dignidade humana; a defesa desta é uma luta contra o capitalismo e nunca com o capitalismo (no capitalismo, mesmo as esmolas só existem como relações públicas). Quar-to, a experiência do mundo mostra que há imensas realidades não capitalistas, guiadas pela reciprocidade e pelo coo-perativismo, à espera de serem valoriza-das como o futuro dentro do presente. Quinto, o século passado revelou que a relação dos humanos com a natureza é uma relação de dominação contra a qual há que lutar; o crescimento económico não é infinito. Sexto, a propriedade pri-vada só é um bem social se for uma entre várias formas de propriedade e se todas forem protegidas; há bens comuns da hu-manidade (como a água e o ar). Sétimo,

BOAVENTURA SOUSA SANTOS TEM UMA VISÃO

PARA AS ESQUERDAS. QUE PASSA POR QUESTIONAR

O QUE UNE DIFERENTES MOVIMENTOS. SEIS CARTAS

PARA PENSAR

CARTA I

NÃO ponho em causa que haja um futuro para as esquerdas mas o seu

futuro não vai ser uma continuação lin-ear do seu passado. Definir o que têm em comum equivale a responder à pergunta: o que é a esquerda? A esquerda é um con-junto de posições políticas que partilham o ideal de que os humanos têm todos o mesmo valor, e são o valor mais alto. Esse ideal é posto em causa sempre que há re-lações sociais de poder desigual, isto é, de dominação. Neste caso, alguns indi-víduos ou grupos satisfazem algumas das suas necessidades, transformando outros indivíduos ou grupos em meios para os seus fins. O capitalismo não é a única fonte de dominação mas é uma fonte im-portante.

Os diferentes entendimentos deste ideal levaram a diferentes clivagens. As prin-cipais resultaram de respostas opostas às seguintes perguntas. Poderá o capitalis-mo ser reformado de modo a melhorar a sorte dos dominados, ou tal só é possível para além do capitalismo? A luta social deve ser conduzida por uma classe (a classe operária) ou por diferentes classes ou grupos sociais? Deve ser conduzi-da dentro das instituições democráticas ou fora delas? O Estado é, ele próprio, uma relação de dominação, ou pode ser mobilizado para combater as relações de dominação? As respostas opostas as estas perguntas estiveram na origem de vio-lentas clivagens. Em nome da esquerda cometeram-se atrocidades contra a es-querda; mas, no seu conjunto, as esquer-das dominaram o século XX (apesar do nazismo, do fascismo e do colonialismo) e o mundo tornou-se mais livre e mais igual graças a elas. Este curto século de todas as esquerdas terminou com a que-

CARTAS ÀS ESQUERDAS

Com estas ideias, vão continuar a ser várias as esquerdas, mas já não é provável que se matem umas às outras e é possível que se unam para travar a barbárie que se aproxima.

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no deve ser substituída na medida do possível pela lógica cooperativa de go-vernança entre interesses setoriais, entre os quais o do Estado. Quinta: dos direitos sociais para os apoios em situações extremas de pobre-za ou incapacidade e para a filantropia. O Estado social exagerou na solidarie-dade entre cidadãos e transformou a desigualdade social num mal quando, de facto, é um bem. Entre quem dá esmola e quem a recebe não há igualdade pos-sível, um é sujeito da caridade e o outro é objecto dela. Perante este perturbador receituário neoliberal, é difícil imaginar que as es-querdas não estejam de acordo sobre o

princípio “melhor Estado, sempre; me-nos Estado, nunca” e que disso não tirem consequências.

CARTA III

QUANDO estão no poder, as es-querdas não têm tempo para refle-

tir sobre as transformações que ocorrem nas sociedades. Quando não estão no poder, dividem-se internamente para definir quem vai ser o líder nas próximas eleições, e as reflexões ficam vinculadas a esse objetivo. Esta indisponibilidade para a reflexão foi sempre perniciosa e

o curto século das esquerdas foi suficien-te para criar um espírito igualitário entre os humanos que sobressai em todos os inquéritos; este é um património das es-querdas que estas têm vindo a dilapidar. Oitavo, o capitalismo precisa de outras formas de dominação para florescer, do racismo ao sexismo e à guerra e todas devem ser combatidas. Nono, o Estado é um animal estranho, meio anjo meio monstro, mas, sem ele, muitos outros monstros andariam à solta, insaciáveis à cata de anjos indefesos. Melhor Estado, sempre; menos Estado, nunca.Com estas ideias, vão continuar a ser vá-rias as esquerdas, mas já não é provável que se matem umas às outras e é possível que se unam para travar a barbárie que se aproxima.

CARTA II

A democracia política pressupõe a ex-istência do Estado. Os problemas

que vivemos hoje na Europa mostram que não há democracia europeia porque não há Estado europeu. E porque muitas prerrogativas soberanas foram transfe-ridas para instituições europeias, as de-mocracias nacionais são hoje menos ro-bustas porque os Estados nacionais são pós-soberanos. Os défices democráticos nacionais e o défice democrático euro-peu alimentam-se uns aos outros e todos se agravam por, entretanto, as institu-ições europeias terem decidido transfer-ir para os mercados financeiros parte das prerrogativas transferidas para elas pelos Estados nacionais. Ao cidadão comum será hoje fácil con-cluir (lamentavelmente só hoje) que foi uma trama bem urdida para incapacitar os Estados europeus no desempenho das suas funções de proteção dos cidadãos contra riscos coletivos e de promoção do bem-estar social. Esta trama neoli-beral tem vindo a ser urdida em todo o mundo, e a Europa só teve o privilégio de ser “tramada” à europeia. Vejamos como aconteceu. Está em curso um processo global de de-sorganização do Estado democrático. A organização deste tipo de Estado baseia--se em três funções: a função de confian-ça, por via da qual o Estado protege os cidadãos contra forças estrangeiras, cri-mes e riscos coletivos; a função de legiti-midade, através da qual o Estado garante a promoção do bem-estar; e a função de acumulação, com a qual o Estado garante a reprodução do capital a troco de recur-sos (tributação, controle de setores estra-tégicos) que lhe permitam desempenhar as duas outras funções. Os neoliberais pretendem desorganizar o Estado democrático através da inculca-ção na opinião pública da suposta neces-sidade de várias transições. Primeira: da responsabilidade coletiva para a responsabilidade individual. Para os neoliberais, as expectativas da vida dos cidadãos derivam do que eles fazem por si e não do que a sociedade pode fazer por eles. Tem êxito na vida quem toma boas decisões ou tem sorte e fra-

cassa quem toma más decisões ou tem pouca sorte. As condições diferenciadas do nascimento ou do país não devem ser significativamente alteradas pelo Estado. Segunda: da ação do Estado baseada na tributação para a ação do Estado base-ada no crédito. A lógica distributiva da tributação permite ao Estado expandir--se à custa dos rendimentos mais altos, o que, segundo os neoliberais, é injusto, enquanto a lógica distributiva do crédito obriga o Estado a conter-se e a pagar o devido a quem lhe empresta. Esta transi-ção garante a asfixia financeira do Estado, a única medida eficaz contra as políticas sociais. Terceira: do reconhecimento da existên-

cia de bens públicos (educação, saúde) e interesses estratégicos (água, teleco-municações, correios) a serem zelados pelo Estado no interesse de todos para a ideia de que cada intervenção do Estado em área potencialmente rentável é uma limitação ilegítima das oportunidades de lucro privado.Quarta: do princípio da primazia do Es-tado para o princípio da primazia da so-ciedade civil e do mercado. O Estado é sempre ineficiente e autoritário. A força coercitiva do Estado é hostil ao consenso e à coordenação dos interesses e limita a liberdade dos empresários que são quem cria riqueza (dos trabalhadores não há menção). A lógica imperativa do gover-

A democracia liberal agoniza sob o peso dos poderes fáticos (Máfias, Maçonaria, Opus Dei, transnacionais, FMI, Banco Mundial) e da impunidade da corrupção, do abuso do poder e do tráfico de influências. O resultado é a fusão crescente entre o mercado político das ideias e o mercado económico dos interesses.

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agora é suicida. Por duas razões. A di-reita tem à sua disposição todos os inte-lectuais orgânicos do capital financeiro, das associações empresariais, das insti-tuições multilaterais, dos think tanks, dos lobistas, os quais lhe fornecem dia-riamente dados e interpretações que não são sempre faltos de rigor e sempre in-terpretam a realidade de modo a levar a água ao seu moinho. Pelo contrário, as esquerdas estão desprovidas de instru-mentos de reflexão abertos aos não mili-tantes e, internamente, a reflexão segue a linha estéril das fações. O desequilí-brio entre as esquerdas e a direita no que respeita ao conhecimento estratégico do mundo é hoje maior que nunca.A segunda razão é que as novas mobili-zações e militâncias políticas por causas pertencentes às esquerdas estão a ser fei-tas sem referência a elas (salvo ao anar-quismo) e muitas vezes em oposição a elas. Proponho duas linhas de reflexão. Das enormes desigualdades sociais está a emergir uma forte polarização social. Vi-vemos um tempo que tem algumas seme-lhanças com o das revoluções democrá-ticas que avassalaram a Europa em 1848. A polarização social era enorme porque o operariado (então uma classe jovem) dependia do trabalho para sobreviver mas (ao contrário dos seus pais e avós) o trabalho não dependia dele, dependia de quem o dava ou retirava a seu bel-prazer, o patrão; se trabalhasse, os salários eram tão baixos e a jornada tão longa que a saú-de perigava e a família vivia sempre à bei-ra da fome; se fosse despedido, não tinha qualquer suporte exceto o de alguma eco-nomia solidária ou do recurso ao crime.Não admira que, nessas revoluções, as duas bandeiras de luta tenham sido o di-reito ao trabalho e o direito a uma jor-nada de trabalho mais curta. 150 anos depois, a situação não é totalmente a mesma, mas as bandeiras continuam a ser atuais. E talvez o sejam hoje mais do que o eram há 30 anos. As revoluções foram sangrentas e falharam, mas os próprios governos conservadores que se seguiram tiveram de fazer concessões para que a questão social não descambasse em ca-tástrofe.A que distância estamos nós da catástro-fe? Por enquanto, a mobilização contra a escandalosa desigualdade social é pacífi-ca e tem um forte pendor moralista-de-nunciador. Não mete medo ao sistema financeiro-democrático. A direita está preparada para a resposta repressiva a qualquer alteração que se torne ameaça-dora. Quais são os planos das esquerdas? Vão voltar a dividir-se como no passado, umas tomando a posição da repressão e outras a da luta contra a repressão?A segunda linha de reflexão tem igual-mente a ver com as revoluções de 1848 e consiste em saber como voltar a co-netar a democracia com as aspirações e as opções dos cidadãos. Das palavras de ordem de 1848, sobressaíam liberalismo e democracia. Liberalismo significava governo republicano, separação entre estado e religião, liberdade de imprensa; democracia significava sufrágio “uni-

versal” para os homens. Neste domínio, muito se avançou nos últimos 150 anos. No entanto, as conquistas têm vindo a ser postas em causa nos últimos 30 e nos últimos tempos a democracia mais parece uma casa fechada ocupada por um grupo de extraterrestres que decide democraticamente pelos seus interesses e ditatorialmente pelos interesses das gran-des maiorias.Um regime misto, uma “democradura”. O movimento dos indignados e do oc-cupy recusam a expropriação da demo-cracia e optam por tomar decisões por consenso nas suas assembleias. São lou-cos ou são um sinal das exigências que vêm aí? As esquerdas já terão pensado que se não se sentirem confortáveis com formas de democracia de alta intensida-de (no interior dos partidos e na Repú-blica), esse será o sinal de que devem retirar-se ou refundar-se?

CARTA IV

AS divisões históricas entre as es-querdas foram justificadas por uma

imponente construção ideológica mas,

na verdade, a sua sustentabilidade práti-ca—ou seja, a credibilidade das propos-tas políticas que lhes permitiram colher adeptos—assentou em três fatores: o colonialismo, que permitiu a deslocação da acumulação primitiva de capital (por despossessão violenta, com incontável sacrifício humano, muitas vezes ilegal mas sempre impune) para fora dos paí-ses capitalistas centrais onde se travavam as lutas sociais consideradas decisivas; a emergência de capitalismos nacionais com características tão diferenciadas (capitalismo de estado, corporativo, libe-ral, social-democrático) que davam cre-dibilidade à ideia de que haveria várias alternativas para superar o capitalismo; e, finalmente, as transformações que as lutas socias foram operando na demo-cracia liberal, permitindo alguma redis-tribuição social e separando, até certo ponto, o mercado das mercadorias (dos valores que têm preço e se compram e se vendem) do mercado das convicções (das opções e dos valores políticos que, não tendo preço, não se compram nem se vendem). Se para algumas esquerdas tal separação era um fato novo, para outras, era um ludíbrio perigoso.

Os últimos anos alteraram tão profunda-mente qualquer destes fatores que nada será como dantes para as esquerdas tal como as conhecemos. No que respeita ao colonialismo as mudanças radicais são de dois tipos. Por um lado, a acumulação de capital por despossessão violenta vol-tou às ex-metrópoles (furtos de salários e pensões; transferências ilegais de fundos colectivos para resgatar bancos privados; impunidade total do gangsterismo finan-ceiro) pelo que uma luta de tipo anti--colonial terá de ser agora travada tam-bém nas metrópoles, uma luta que, como sabemos, nunca se pautou pelas cortesias parlamentares.Por outro lado, apesar de o neocolonia-lismo (a continuação de relações de tipo colonial entre as ex-colónias e as ex--metrópoles ou seus substitutos, caso dos EUA) ter permitido que a acumulação por despossessão no mundo ex-colonial tenha prosseguido até hoje, parte deste está a assumir um novo protagonismo (India, Brasil, Africa do Sul, e o caso es-pecial da China, humilhada pelo impe-rialismo ocidental durante o século XIX) e a tal ponto que não sabemos se haverá no futuro novas metrópoles e, por impli-cação, novas colónias.Quanto aos capitalismos nacionais, o seu fim parece traçado pela máquina tri-turadora do neoliberalismo. É certo que na América Latina e na China parecem emergir novas versões de dominação ca-pitalista mas intrigantemente todas elas se prevalecem das oportunidades que o neoliberalismo lhes confere. Ora, 2011 provou que a esquerda e o neoliberalis-mo são incompatíveis. Basta ver como as cotações das bolsas sobem na exata me-dida em que aumenta desigualdade social e se destrói a proteção social. Quanto tempo levarão as esquerdas a tirar as con-sequências?Finalmente, a democracia liberal agoniza sob o peso dos poderes fáticos (Máfias, Maçonaria, Opus Dei, transnacionais, FMI, Banco Mundial) e da impunidade da corrupção, do abuso do poder e do tráfico de influências. O resultado é a fusão crescente entre o mercado político das ideias e o mercado económico dos interesses. Está tudo à venda e só não se vende mais porque não há quem compre. Nos últimos cinquenta anos as esquerdas (todas elas) deram uma contribuição fun-damental para que a democracia liberal tivesse alguma credibilidade junto das classes populares e os conflitos sociais pudessem ser resolvidos em paz.Sendo certo que a direita só se inte-ressa pela democracia na medida em que esta serve os seus interesses, as esquerdas são hoje a grande garantia do resgate da democracia. Estarão à altura da tarefa? Terão a coragem de refundar a democracia para além do liberalismo? Uma democracia robusta contra a antidemocracia, que combine a democracia representativa com a de-mocracia participativa e a democracia direta? Uma democracia anticapitalista ante um capitalismo cada vez mais an-tidemocrático?

Sendo certo que a direita só se interessa pela democracia na medida em que esta serve os seus interesses, as esquerdas são hoje a grande garantia do resgate da democracia. Estarão à altura da tarefa?

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CARTA V

PORQUE é que a actual crise do capi-talismo fortalece quem a causou? Por-

que é que a racionalidade da “solução” da crise assenta nas previsões que faz e não nas consequências que quase sempre as desmentem? Porque é que está ser tão fá-cil ao Estado trocar o bem-estar dos cida-dãos pelo bem-estar dos bancos? Porque é que a grande maioria dos cidadãos assis-te ao seu empobrecimento como se fosse inevitável e ao enriquecimento escanda-loso de poucos como se fosse necessário para a sua situação não piorar ainda mais? Porque é que a estabilidade dos merca-dos financeiros só é possível à custa da instabilidade da vida da grande maioria da população? Porque é que os capitalis-tas individualmente são, em geral, gente de bem e o capitalismo, no seu todo, é amoral? Porque é que o crescimento eco-nómico é hoje a panaceia para todos os males da economia e da sociedade sem que se pergunte se os custos sociais e am-bientais são ou não sustentáveis? Porque é que Malcom X estava cheio de razão quando advertiu: “se não tiverdes cuida-do, os jornais convencer-vos-ão de que a culpa dos problemas sociais é dos oprimi-dos, e não de quem os oprime”? Porque é que as críticas que as esquerdas fazem ao neoliberalismo entram nos noticiários com a mesma rapidez e irrelevância com que saem? Porque é que as alternativas escasseiam no momento em que são mais necessárias?Estas questões devem estar na agenda de reflexão política das esquerdas sob pena de, a prazo, serem remetidas ao museu das felicidades passadas. Isso não seria grave se esse facto não significas-se, como significa, o fim da felicidade futura das classes populares. A reflexão deve começar por aí: o neoliberalismo é, antes de tudo, uma cultura de medo, de sofrimento e de morte para as gran-des maiorias; não se combate com efi-cácia se não se lhe opuser uma cultura de esperança, de felicidade e de vida. A dificuldade que as esquerdas têm em assumirem-se como portadoras desta outra cultura decorre de terem caído durante demasiado tempo na armadilha

com que as direitas sempre se mantive-ram no poder: reduzir a realidade ao que existe, por mais injusta e cruel que seja, para que a esperança das maiorias pareça irreal. O medo na espera mata a esperan-ça na felicidade. Contra esta armadilha é preciso partir da ideia de que a realidade é a soma do que existe e de tudo o que nela é emergente como possibilidade e como luta pela sua concretização. Se não souberem detectar as emergências, as esquerdas submergem ou vão para o museu, o que dá no mesmo.Este é o novo ponto de partida das es-querdas, a nova base comum que lhes permitirá depois divergirem fraternal-mente nas respostas que derem às per-guntas que formulei. Uma vez ampliada a realidade sobre que se deve actuar po-liticamente, as propostas das esquerdas devem ser credivelmente percebidas pelas grandes maiorias como prova de que é possível lutar contra a suposta fa-talidade do medo, do sofrimento e da morte em nome do direito à esperança, à felicidade e à vida. Essa luta deve ser conduzida por três palavras-guia: demo-cratizar, desmercantilizar, descolonizar. Democratizar a própria democracia, já que a actual se deixou sequestrar por po-deres anti-democráticos. É preciso tor-nar evidente que uma decisão democra-ticamente tomada não pode ser destruí-da no dia seguinte por uma agência de rating ou por uma baixa de cotação nas bolsas (como pode vir a acontecer proxi-mamente em França). Desmercantilizar significa mostrar que usamos, produzi-mos e trocamos mercadorias mas que não somos mercadorias nem aceitamos relacionar-nos com os outros e com a natureza como se fossem apenas merca-dorias. Somos cidadãos antes de sermos empreendedores ou consumidores e para o sermos é imperativo que nem tudo se compre e nem tudo se venda, que haja bens públicos e bens comuns como a água, a saúde, a educação. Descolonizar significa erradicar das relações sociais a autorização para dominar os outros sob o pretexto de que são inferiores: porque são mulheres, porque têm uma cor de pele diferente, ou porque pertencem a uma religião estranha.

CARTA VI

HISTORICAMENTE, as esquerdas dividiram-se sobre os modelos de

socialismo e as vias para os realizar. Não estando o socialismo, por agora, na agen-da política, as esquerdas em várias regiões do mundo dividem-se sobre os modelos de capitalismo. À primeira vista, esta divi-são faz pouco sentido pois, por um lado, há neste momento um modelo global de capitalismo, de longe hegemónico, do-minado pela lógica do capital financei-ro, assente na busca do máximo lucro no mais curto espaço de tempo, quaisquer que sejam os custos sociais ou o grau de destruição da natureza. Por outro lado, a disputa por modelos de capitalismo deve-ria ser mais uma disputa entre as direitas do que entre as esquerdas.De facto, assim não é. Apesar da sua globalidade, o modelo de capitalismo agora dominante assume característi-cas distintas em diferentes regiões do mundo, e as esquerdas têm um interesse vital em discuti-las, não só porque estão em causa as condições de vida, aqui e agora, das classes populares que são o suporte político das esquerdas, como também porque a luta por horizontes pós-capitalistas - de que algumas es-querdas ainda não desistiram, e bem - dependerá muito do capitalismo real de que se partir.Curiosamente, ao contrário do que se passa em outras regiões do mundo, há um consenso perturbador entre as es-querdas europeias. As esquerdas euro-peias parecem estar de acordo em que o crescimento é a solução para todos os males da Europa. A aposta no cres-cimento económico é o que as distin-gue das direitas, apostadas na consoli-dação orçamental e na austeridade. O crescimento significa emprego e este a melhoria das condições de vida das maiorias.Este consenso é perturbador porque não problematizar o crescimento implica a ideia de que qualquer crescimento é bom, inclusive aquele que é obtido à custa da exploração desenfreada dos recursos naturais, da destruição ambiental e dos modos de vida de populações inteiras no

mundo, seja europeu ou extraeuropeu, precisamente o tipo de crescimento que divide, por exemplo, a esquerda latino--americana.Ora, a ideia de que todo o crescimento é bom é suicida para as esquerdas. Por um lado, as direitas facilmente a aceitam (como já estão a aceitar, por estarem con-vencidas de que será o seu tipo de cresci-mento a prevalecer). Por outro lado, sig-nifica um retrocesso histórico grave em relação aos avanços das lutas ecológicas das últimas décadas. Ou seja, omite-se o facto hoje comprovado de que o modelo de crescimento dominante é insustentá-vel. Em pleno período preparatório da Conferência da ONU Rio+20, não se fala de sustentabilidade, não se questiona o conceito de economia verde, mesmo que, para além da cor das notas de dólar, seja difícil imaginar um capitalismo verde.Este consenso entre as esquerdas euro-peias decorre do “pacto colonial” que sempre subscreveram, segundo o qual os avanços do capitalismo valem por si, mesmo que tenham sido (e continuem a ser) obtidos à custa da opressão de tipo colonial dos povos extraeuropeus. Nada de novo na frente ocidental enquanto for possível fazer o outsourcing da miséria humana e da destruição da natureza. Mes-mo quando é cada vez mais visível que este outsourcing se complementa com o insourcing, isto é, com o empobrecimen-to e a miséria humana dos europeus.É urgente que as esquerdas europeias po-nham em causa o consenso do crescimen-to, o qual ou é falso ou significa uma cum-plicidade repugnante com uma injustiça histórica. É imperioso recomeçar a discu-tir a questão da sustentabilidade, pôr em causa o mito do crescimento infinito e a ideia da inesgotável disponibilidade da natureza, assumir que os crescentes cus-tos socioambientais do capitalismo não são superáveis com imaginárias econo-mias verdes, defender que a prosperida-de e a felicidade da sociedade dependem menos do crescimento do que da justiça social e da racionalidade ambiental, ter a coragem de afirmar que a luta pela redu-ção da pobreza é uma burla para disfarçar a luta que não se quer travar contra a con-centração da riqueza.

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12 C H I N A C R Ó N I C A

EMBORA atravessada pelo rio Haihe -- e um curso de água costuma sempre alin-dar qualquer burgo --, a cidade de Tianjin (ou Tient-sin) é feia e não costuma constar de quase nenhum itinerário turístico chinês. Está cheia de fábricas, de ar-mazéns, de camiões, de mo-vimento intenso, do bulício infernal das enormes metró-poles. Tianjin (ou Tientsin) terá hoje quase 11 milhões de habitantes. Duzentos e vinte quilómetros a sudes-te de Pequim situa-se perto de Dagu, o porto no mar de Bohai por onde se escoa muita da produção indus-trial da vasta região norte da China que se estende desde Pequim a Tianjin, pontilha-da por pequena e grande indústria. No passado, era já um centro importante de comércio e de distribuição de produtos, atravessada pelo troço final do Grande Canal que, com quase dois mil quilómetros de exten-são, unia as regiões do sul com o norte da ChinaConheci Tianjin pela pri-meira vez em 1980 e no ano seguinte estava de regresso, já conto porquê. Depois a cidade tem-me ficado dis-tante porque é um lugar que não me diz quase nada, com que não me identifico, que me passa ao lado da sensibi-lidade e do mediano gosto.Em 1980, com o embaixa-dor João de Deus Ramos, de automóvel, percorri pela primeira vez os quilómetros que separam Pequim da ci-dade de Tianjin. Queríamos ambos conhecer o grande burgo e o nosso diplomata, amante dos livros como eu, ouvira falar no meio diplo-mático de Pequim de dois ou três alfarrabistas que em Tianjin vendiam livros anti-gos, obras das já então rarís-simas edições publicadas em

inglês e francês nas primeiras décadas do século XX pela Commercial Press, Xangai, pela editora Henri Vetch, de Pequim, pela Imprimerie de la Mission Catholique, de Sien Sien, traduções de textos clássicos sobre a His-tória, Filosofia, Civilização Chinesa. Depois de muito calcorrear as ruas do enor-me burgo, lá chegámos a bom porto e regressámos a Pequim com a mala do carro carregada com uma colec-ção completa iniciada em 1898 do Toung Pao, Archives por servir à l’Étude e L’Histoire, des Langues, de la Géographie et de l’Etnographie de L’Asie Orientale, uma History of Chinese Philoso-phy, de Feng Yu-lan, de 1937, e mais uns tantos valiosos e raros livrinhos.Em 1981 viajei outra vez para Tianjin, de comboio, agora para aí permanecer durante quatro dias. Em Pequim conhecera um brasileiro de São Paulo cha-mado Tao Yu-shing, filho de pai e mãe chinesa, mas cidadão do Brasil, país onde já nascera. Os pais eram originários da província de Shandong e haviam emigra-do para as terras brasileiras nos anos quarenta do século passado. Tao era o filho mais velho de três irmãos, tinha 25 anos, estava na altura de casar. O pai, para o colocar à frente dos seus negócios (possuía restaurantes, etc.), apresentou uma condição ao rapaz. O primogénito tinha de casar com uma mu-lher chinesa e de a ir buscar às origens, à China, a pátria que o Tao nem sequer co-nhecia. Ora na vasta família da província de Shandong existiam umas tantas me-ninas casadoiras. Troca de correspondência, o trabalho de uma casamenteira local que, pelos signos chineses dos potenciais nubentes ia

António GrAçA de Abreu

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descobrindo compatibilida-des, afinidades e gostos co-muns, e aí estava encontrada a eleita, uma prima em ter-ceiro grau, Tian Meichun, da família de Shandong mas há vários anos a residir com a mãe em Tianjin. O brasi-leiro Tao veio de São Pau-lo conhecê-la e concordou com a escolha. A menina não seria uma beldade mas era dócil, abria-se num sor-riso afável, e prometia aturar todos os desvairos paulistas do seu chinês do Brasil, até ao fim da vida.Foi nesta fase, Julho ou Agosto de 1981, que co-nheci o Tao Yu-shing em Pequim. Eu estava então quase de partida para Portu-gal, a desfazer a minha casa no Youyi Binguan, o Hotel da Amizade onde residira nos

NOS ATALHOS DA CIDADE DE 天津 TIANJIN

meus primeiros quatro anos de China. Algumas das coi-sas do meu lar foram vendi-das ao Tao e embarcadas numa camioneta que veio buscá-las, desde Tianjin. Eram um frigorífico, um for-no, móveis, uma aparelha-gem Hi-Fi e destinavam-se a parte do dote para a mãe da Tian Meichun. Convida-do pela família, visitei-as em Tianjin e fui impecavelmen-te bem recebido. Depois, na embaixada brasileira o Tao esperou meses e meses pelo visto de entrada no Brasil para a esposa Tian, que en-tretanto engravidou e aca-bou por ter um filho varão, já em terras brasileiras, para enorme satisfação dos avós paternos. A continuidade da família chinesa estava garantida e o Tao, em São

Paulo, passou a gerir os res-taurantes e empresas do pai. Escreveu-me ainda uma vez a dar conta dos seus suces-sos e a convidar-me para ir ao Brasil.Que será hoje feito do Tao Yu-shing e da Tian Mei-chun?A cidade de Tianjin não parou de crescer, acompa-nhando os ventos de mo-dernidade que têm assolado a China. Conserva feliz-mente -- ao lado de recentes e horrorosos aranha-céus –, muitos dos edifícios dos anos dez e vinte do século XX quando era uma conces-são estrangeira, uma espécie de “Xangai do norte” habi-tada por gente dos quatro cantos do mundo que por aqui soube acumular pe-quenas e grandes fortunas.

Estes estrangeiros deixaram a atestar a sua presença, sig-nificativa até 1949, cerca de uma centena de magníficos exemplares da arquitectu-ra europeia de outrora. Até a igreja católica de Xikai construída em 1917 por je-suítas franceses, num estra-nho estilo neo-gótico com suas torres verdes a sobres-sair quase no centro da cida-de, é um curioso exemplar da arquitectura com marca europeia na China.Tianjin é uma óptima cidade para compras. Nos shoppin-gs, com a roupa tão barata e de alguma qualidade, as mu-lheres chinesas, sempre tão vaidosas, não param de vas-culhar montras e prateleiras. Nestes últimos vinte e cinco anos foram reconstruídos uns tanto bairros antigos como a

Guwenhua Jie, a rua da Velha Cultura ou o Guwan Shichang, isto é, o Mercado Antigo, onde se podem encontrar, com a vetusta ambiência a flutuar pelos lugares, e a bons preços depois da necessária discussãozinha com o ven-dedor, os mais diversos pro-dutos, como livros antigos (quase todos em chinês), móveis, pinturas, porcelanas (atenção que 4/5 das jarras, potes e vasos Ming e Qing são falsificações, puras anti-guidades modernas), moe-das, pincéis, tinta da China, lacas, cloisonnés, selos, pratas, cobres, madeiras gravadas, frasquinhos de rapé, relógios, os mais diversos objectos relacionados com Mao Ze-dong e a Revolução Cultural, enfim, “chinoiserie”, chinesices ao montes.

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ACNE PAPER

Pedro Lystmanna revolta do emir

Ir sozinho a um bar pode ser um supremo prazer, livros, jornais ou revistas companhias quase insubstituíveis e garante da sua ob-servância. No primeiro desta série de textos lamentava-se a inexistência de um bar que proporcionasse o conforto necessário a este exercício, de modo nenhum exclusivamente masculino como alguns misóginos insistem em alardear. Esse lamento pode ter sido exagerado mas nasceu de uma indignação precisa e bem intencionada, resultante da falta de um lugar onde se aliasse o conforto ao bom gosto. Estou preparado para mudar um pouco de opinião e aceitar que há em Macau sítios decentes. Há, por exemplo, hotéis com lounges à altura, mas isso será conversa para outra sexta-feira.

O lugar escolhido para esta é parte daquele que é, incontornavelmente, o bar mais animado da cidade e ilhas: O bar do décimo sexto andar do Hotel Star World. Em altura mais oportuna se falará da diversidade da sua geografia e da sua animação, hoje lembre-se apenas que a sua sala de fumo é um lugar decentíssimo para dis-sipar parte destas semanas que medeiam entre Roland Garros e Wimbledon, o início oficial do Verão.

Mas não nos antecipemos. Esta Primave-ra aparece adornada com a saída de mais um número de uma revista de leitura imprescindí-vel, companhia suprema de um fim de tarde: uma revista que trai uma legítima ambição, a

de Criar uma Nova Expressão – a Acne Paper. A sala de fumo do bar do décimo sexto andar é suficiente à celebração da chegada do número de Primavera, este dedicado ao corpo.

Nela (na revista, não na sala de fumo), se estendem, inscrevem, encolhem, exibem e surpreendem, corpos femininos e masculinos (muitos), mais ou menos despidos, contem-porâneos, seiscentistas e setecentistas, cheios e delgados, numa mesma celebração de qual-quer coisa, que eu não sei bem o que é mas que faz antecipar com muita ansiedade a chegada ao território de cada um dos seus números, poucos, cerimoniosos, quase tímidos. Torsos, pernas, genitalia, mãos de homens e mulheres novos e velhos, o mesmo papel macio e as pa-lavras expostas num lettering elegante e miúdo.

Esta sala, uma pequena chambre, propicia in-timidade bastante para a satisfação deste pra-zer, de desfrute preferencialmente solitário. A bebida de abertura será obrigatoriamente algo erótico e primaveril, um martini líchea. A esta hora da tarde praticamente não há outros clientes e ainda está sol.

São variadíssimos os assuntos tratados na Acne Paper da Primavera deste ano. Estudos ana-tómicos de Leonardo da Vinci, a imagem do corpo de Cristo, a arte perturbante, feminista e violenta de Louise Bourgeois, o corpo no Egipto Antigo, muita moda, dança, desenhos a carvão, uma separatazinha deliciosa sobre

Lillian Bassman e Paul Himmel, 15 reproduções de quadros de Rubens cheios de mulheres gor-dinhas barrocas fofinhas, fotografias de Gillian Wearing, futilidades utilíssimas e um longo et cetera de mais de 250 páginas. Se isto começa a parecer uma lista é que há aqui um deleito-so delírio e uma vertiginosa abundância. Faz lembrar que perder tempo com revistas como a Wallpaper ou a Monocle (gazetas oficiais de um tipo de ditadura do gosto) é um puro disparate, um suicídio, penso eu a meio do cosmopolitan onde vou buscar o açúcar que o martini parece que não tem.

Neste número 13 da revista sueca há uma entrevista com a irmã Wendy Beckett sobre um assunto de especial relevância pascal e erótica (perdoar-me-ão decerto o atraso), o da repre-sentação da imagem do corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo. Confesso-me. De entre as imagens crísticas em que este aparece quase nu tenho as minhas preferidas. Às pietàs, aos baptismos e às crucificações prefiro uma outra, mais con-torcida e dramática, despida de esperança - a apokathelosis (a descida, ou descimento da cruz), precisamente a décima terceira estação da via dolorosa. Admito que o meu quadro preferido é uma escolha um pouco banal, o famoso quadro de van der Weyden que está no Prado, em Ma-drid, provavelmente, entre outras razões, pelo tratamento de câmara dado a um assunto que é normalmente exterior. A terrível diagonal de um dos quadros de Rubens que retrata o mesmo episódio poderia, no entanto, levar-me a mudar de opinião.

Muito interessante é o esclarecimento que a famosa virgem consagrada, autora de 15 livros e inúmeros programas para a BBC, nos oferece ao dizer que não existe na Bíblia a mínima refe-rência à aparência física de Cristo, todas as ima-gens que conhecemos são puras conjecturas. A pietà, como todas as outras representações, não passa de uma invenção artística, a crucificação, por exemplo, estabelecida como hábito numa época relativamente tardia. Não há qualquer pista quanto à sua altura, traços fisionómicos ou cor da sua pele. A irmã Beckett esclarece ainda que até aos mestres italianos o seu aspecto per-maneceu muito palestiniano, e só com o hábito daqueles Cristo passou a ter um rosto mais eu-ropeu. Tudo é invenção nossa.

Nesta altura, em que a noite já se instalou, e a meio do segundo cosmopolitan, o rosto da empregada que tão industriosamente me serve, a Senhora Amy, excepcionalmente bronzeado, começa a ganhar um sinistro contorno crístico. Apetecia-me recuar e falar de uma Anunciação mas isso ficará para outra sexta-feira.

T E R C E I R O O U V I D O

EM REDE

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Há duas semanas, falei aqui do projecto Me-trowaves, dinamizado por Markus M. Schneider, alemão residente em Pequim, e Mumu Wang. Com origem na capital chinesa, Metrowaves centra a acção na promoção de novos formatos de encontro e diálogo entre produtores de músi-ca electrónica e a respectiva audiência.

Com o inestimável apoio do Goethe-Institut, Metrowaves organizou, entre 23 e 26 de Maio, a primeira edição da conferência “ME:CON - Me-trowaves Electronic Music Convention”.

Pela primeira vez, vários agentes da Chi-na e do estrangeiro (responsáveis de editoras, promotores de eventos, gestores de clubes nocturnos e de outros recintos de espectácu-los, músicos, DJ e membros dos media) deba-teram, em conjunto, o presente e o futuro do movimento da música electrónica na Repúbli-ca Popular.

Não tendo podido participar neste evento, restou-me acompanhar a iniciativa à distância graças à Internet e graças à disponibilidade e generosidade de Markus M. Schneider. Foi ele que me deu conta de “quatro dias intensos de música, reflexões, conversas e intercâmbios”.

Já aqui destaquei que esta conferência sur-giu num momento oportuno em que urge pen-sar os caminhos que a música electrónica vai tomando na China. Quem conhece Pequim (a capital a diversos níveis, incluindo as expres-sões artísticas urbanas e contemporâneas, nas quais se inscreve a música electrónica), sabe das transformações que vão acontecendo a todo o momento e em (quase) todos os lugares da imensa urbe.

Há uma vaga de expatriados (muitos já enraizados) dinâmicos e em perfeita sintonia com os residentes locais mais criativos. Há eventos e há espaços (discotecas, salas de con-certos, bares, restaurantes), onde o bom gosto reina e a atmosfera faz esquecer que Pequim é a capital de um regime comunista e algo fe-chado. Na verdade, a cidade pulsa e tem sede.

A conferência “ME:CON”, como não po-dia deixar de ser, enquadrou-se neste espírito.

Diz Markus que “a reacção [dos participan-tes e da audiência] foi imediata e positiva”, ten-do-se tornado “óbvio”, desde o primeiro mo-mento, que uma segunda edição realizar-se-á no próximo ano. “Tanto a conferência como os contactos pessoais demonstraram que existe a necessidade para um formato destes, e mostra-ram também que há um grande potencial para o desenvolvimento futuro e para que se torne na plataforma da cena musical de Pequim”.

Ainda em tempo de balanços, Markus pre-vê que uma segunda edição da conferência aproveite as ideias entretanto afloradas na pri-meira edição, e que uma maior audiência possa contribuir para “um novo capítulo da cultura de música urbana da cidade”.

A escolha dos locais por onde “ME:CON” foi passando nesta sua primeira vida espelham a “movida” da Pequim actual.

Sempre em “tom aberto e informal”, como se impõe, a conferência abriu num sítio chama-do “The Other Place”, “um pátio recente, loca-lizado no cruzamento entre Beiluoguxiang com Langjia Hutong”; ou seja, “o sítio ideal para uma noite relaxada de conversa, comida e bebida.”

Seguiram-se outros locais “trendy”, da moda, incluindo paragens no recentemente aberto XP (sucessor da lendária sala de concertos D-22), na “Tangsuan Radio”, a estação de rádio onde a música electrónica domina, entre outros.

O programa da conferência estava dividi-do em quatro grandes secções: história recen-te e contexto actual da música electrónica em Pequim, com Josh Feola (Pangbianr/XP, Pe-quim), Michael Vonplon (SwissKiss/MiroChi-na, Zurique) e Zhang Youdai (Pequim), dois dos pioneiros da música electrónica chinesa; outra secção aberta às contribuições regionais (Xangai, Chengdu e Taipé); uma secção foca-da nos convidados estrangeiros; e, finalmente, uma secção dedicada à produção e actividade editorial, bem como aos processos e mode-los de distribuição da música, com o músico/produtor/curador de Colónia Till Rohmann (Glitterbug) e Detlef Diedrichsen, da editora C.Sides e director do festival Worldtronics, que se realiza em Berlim.

Além da partilha de experiências, era von-tade da organização criar, também, o ambiente propício para encetar colaborações que dêem sentido a uma rede internacional ligando a China ao resto do mundo.

Nesse sentido, um fruto que já pode ser colhido desta primeira conferência é a parti-cipação da organização Metrowaves na edição deste ano do festival Worldtronics, com a res-ponsabilidade de programar um dia dedicado à música electrónica “made in China”. Espero dar muitas mais notícias deste tipo nos tempos vindouros. Há um próximo Oriente.

próximo oriente Hugo Pinto

À S U P E R F Í C I E

“BRANCO NO Branco” é o diário de um pe-ríodo passado num “lugar ao sul”, onde o sal e a areia pontuam o desejo. E, sobretudo, onde se vislumbra em filigrana a perfeição. Poemas iluminados pelo sol cru do sul, constituem uma obra que prima por uma sensibilidade sensual e delicada. Escrito na sua maioridade literária, este livro valeu a Eugénio de Andra-de vários prémios, entre os quais o prestigio-so Pen Club 1984.

O POETAEugénio de Andrade nasceu em 19 de Janei-ro de 1923 em Póvoa de Atalaia, Fundão, no seio de uma família de camponeses. A sua in-fância foi passada com a mãe, na sua aldeia natal. Mais tarde, prosseguindo os estudos, foi para Castelo Branco, Lisboa e Coimbra, onde residiu entre 1939 e 1945. Em 1947 entrou para a Inspecção Administrativa dos Serviços Médico-Sociais, em Lisboa. Em 1950 foi transferido para o Porto, onde fixou residência. Abandonou a ideia de um curso de Filosofia para se dedicar à poesia e à escrita, activida-des pelas quais demonstrou desde cedo pro-fundo interesse, a partir da descoberta de tra-balhos de Guerra Junqueiro e António Botto. Camilo Pessanha constituiu outra forte influ-ência do jovem poeta Eugénio de Andrade. Embora não se integre em nenhum dos mo-vimentos literários que lhe são contemporâ-neos, não os ignorou, mostrando-se solidário com as suas propostas teóricas e colaborando nas revistas a eles ligadas, como Cadernos de Poesia; Vértice; Seara Nova; Sísifo; Gazeta Musical e de Todas as Artes; Colóquio, Re-vista de Artes e Letras; O Tempo e o Modo e Cadernos de Literatura, entre outras. A sua poesia caracteriza-se pela importância dada à palavra, quer no seu valor imagético, quer rítmico, sendo a musicalidade um dos aspectos mais marcantes da poética de Eugé-nio de Andrade, aproximando-a do lirismo primitivo da poesia galego-portuguesa ou, mais recentemente, do simbolismo de Cami-lo Pessanha. O tema central da sua poesia é a figuração do Homem, não apenas do eu individual, inte-grado num colectivo, com o qual se harmoni-za (terra, campo, natureza - lugar de encon-

A editora Livros do Meio vai lançar na próxima quarta-feira, dia 13 de Junho, pelas 18 e 30 horas, na Casa de Porgtugal, por ocasião do sétimo aniversário da morte do poeta, a tradução em Língua Chinesa, por Yao Feng (pseudónimo de Yao Jingming), do livro “Branco no Branco”, de Eugénio de Andrade (1923 - 2005).

EUGÉNIO DE ANDRADEEDITORA DE MACAU PUBLICA TRADUÇÃO CHINESA

“BRANCO NO BRANCO”

tro) ou luta (cidade - lugar de opressão, de conflito, de morte, contra os quais se levanta a escrita combativa). A figuração do tempo é, assim, igualmente essencial na poesia de Eugénio de Andrade, em que os dois ciclos, o do tempo e o do Ho-mem, são inseparáveis, como o comprova, por exemplo, o paralelismo entre as idades do homem e as estações do ano. A evocação da infância, em que é notória a presença da figura materna e a ligação com os elementos naturais, surge ligada a uma visão eufórica do tempo, sentido sempre, no entanto, retros-pectivamente. A essa euforia contrapõe-se o sentimento doloroso provocado pelo enve-lhecimemto, pela consciência da aproxima-ção da morte (assumido sobretudo a partir de Limiar dos Pássaros), contra o qual só o refúgio na reconstituição do passado feliz ou a assunção do envelhecimento, ou seja, a es-crita, surge como superação possível. Ligada à adolescência e à idade madura, a sua poe-sia caracteriza-se pela presença dos temas do erotismo e da natureza, assumindo-se o autor como o «poeta do corpo». Os seus poemas, geralmente curtos, mas de grande densidade, e aparentemente simples, privilegiam a evo-cação da energia física, material, a plenitude da vida e dos sentidos. Foi galardoado com o Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores, atribuí-do a O Outro Nome da Terra (1988), e com o Prémio de Poesia Jean Malrieu, por Branco no Branco (1984). Recebeu ainda, em 1996, o Prémio Europeu de Poesia. Foi criada, no Porto, uma fundação com o seu nome. Autor de uma importante obra poética, po-dem referir-se os seguintes títulos: Adoles-cente (1942); As Mãos e os Frutos (1948); Os Amantes sem Dinheiro (1950); As Palavras Interditas (1951); Até Amanhã (1956); Co-nhecimento da Poesia (1958); O Coração do Dia (1958); Os Afluentes do Silêncio (1968); Obscuro Domínio (1971); Limiar dos Pás-saros (1972); Véspera da Água (1973); Me-mória de Outro Rio (1978); Matéria Solar (1980); O Peso da Sombra (1982); Poesia e Prosa, 1940-1989 (1990), O Sal da Lín-gua (1995), Alentejo (1998), Os Lugares do Lume (1998) e Antologia Pessoal de Poesia Portuguesa (1999). Organizou ainda, várias

antologias, como a que dedicou ao Porto (Daqui Houve Nome Portugal, 1968) e a An-tologia Breve (1972). Em 2000, publica Poe-sia. Escreveu também livros para crianças. É um dos poetas portugueses mais traduzidos para outras línguas. Em 1982, o Governo português atribuiu--lhe o grau de Grande Oficial da Ordem de Sant’Iago da Espada e a Grã-Cruz da Ordem de Mérito em 1988. Em 1986, recebeu o Pré-mio da Associação Internacional dos Críti-cos Literários. Em 1996, recebeu o Prémio Europeu de Poesia da Comunidade de Var-chatz (Jugoslávia). Em 1999 organizou a obra Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa. Em Maio de 2000, recebeu o Prémio Vida Li-terária da Associação Portuguesa de Escrito-res, entregue pelo Presidente da República. O prémio distingue todo o percurso e toda a obra do escritor. Também recebeu, no mes-mo ano, o Prémio Extremadura de criação li-terária e o Prémio Celso Emilio Ferreiro, para autores ibéricos. Em Fevereiro de 2001, Eugénio de Andrade recebeu o Prémio Celso Emilio Ferreiro, na Galiza. Em Maio, Eugénio de Andrade foi homenageado no Carrefour des Littératures, em França.Em Julho, foi atribuído ao poeta

o Prémio Camões, que se mostrou satisfeito, quer pelo prestígio do galardão, quer por ver o seu nome associado ao de Luís de Camões. O poeta faleceu na cidade do Porto, em Por-tugal, no dia 13 de Junho de 2005.

O TRADUTORPseudónimo de Yao Jingming, nascido em Pequim, 1958. Doutorou-se em Literatura Comparada pela Universidade Fudan, em Shangai. Actualmente, é Professor Auxiliar no Depar-tamento de Português da Universidade de Macau. Além de ter traduzido para o chinês dezenas de poetas portugueses, já publi-cou cinco obras de poesia, em chinês e em português: Nas asas do vento cego (1990), Confluência (1997), Viagem por momentos (1999), A noite deita-se comigo (2001) e Canção para longe (2006). A ligação de Yao Jingming à poesia portugue-sa e a Eugénio de Andrade começou há cerca de 20 anos, quando se preparava para viver em Lisboa.Recebeu vários prémios e coordena a revista Poesia SinoOcidental. Em 2006, recebeu a in-sígnia da Ordem Militar de Santiago de Espa-da, atribuída pelo Estado português.

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À S U P E R F Í C I E

DOIS VENCEDORES do Prémio Nobel da Literatura (Orhan Pamuk e Mario Vargas Llosa) escreveram recentemente pequenos ensaios, com a característica comum do estilo elegante e da riqueza de ideias.O escritor turco publicou um livro já traduzido em português O Romancista Ingénuo e o Sentimental (Ed. Presença) que junta as suas conferências sobre literatura, na Universidade de Harvard. Estas conferências são uma velha série que já deu pelo menos um outro livro famoso sobre a arte da escrita, Aspects of the Novel, de E. M. Forster (este último escrito nos anos 20, é provável que esteja em português, mas só conheço a versão inglesa).Julgo que o livro de Pamuk não é apenas sobre a escrita, mas sobre o prazer da leitura. O texto está repleto de observações acessíveis, nada pretensiosas ou demasiado técnicas. A certo ponto, o escritor explica como um dos seus prazeres na leitura de romances é o de tentar adivinhar aquilo que num texto é imaginário ou vivido. O autor explora de forma muito inteligente conceitos como a autenticidade, os jogos entre o real e o imaginário, a fragmentação e a noção de que os grandes romances têm um “centro”, enfim, chamem-lhe eixo ou núcleo, mais ou menos escondido e cuja busca é, para Pamuk, o essencial do prazer da leitura. “A escrita do romance, para mim, é a arte de falar de coisas importantes como se fossem insignificantes e de coisas insignificantes como se fossem importantes”, escreve o romancista na pág. 120 deste breve ensaio que não se esgota numa única leitura.

O peruano Vargas Llosa publicou entretanto em Espanha um trabalho, La civilización del espectáculo, (Alfaguara) que certamente não tardará a ser traduzido em Portugal, pois é o seu primeiro livro escrito depois do prémio. A obra é bem mais pessimista do que a de Pamuk, tratando-se de uma reflexão sobre a degradação da cultura e o declínio dos intelectuais e das elites. “Na civilização do espectáculo, o intelectual só interessa se seguir o jogo da moda, tornando-se num bobo” (pág. 46), afirma Vargas Llosa, descrente da qualidade da literatura contemporânea e muito crítico da falta de originalidade e do excesso de niilismo nas artes. “Nos nossos dias, o que se espera dos artistas não é o talento nem a destreza, mas a pose e o escândalo, os seus atrevimentos não são mais do que as máscaras de um novo conformismo” (pág. 49).O livro explora outros aspectos do quotidiano, da educação à política, a banalização do poder e das ideias, a superficialidade nas próprias relações humanas, o consumismo desenfreado. São amplamente citados e discutidos outros autores que exploraram esta ideia da civilização do espectáculo (a expressão não é de Vargas Llosa) e talvez o autor seja demasiado pessimista na sua visão de que a cultura está a ponto de desaparecer. Certas ideias foram exploradas pelo romancista peruano em crónicas antigas, algumas das quais são incluídas no volume. É inegável que, tal como diz Vargas Llosa, hoje triunfa o frívolo e o entretenimento, ao mesmo tempo que os intelectuais (como os concebemos no passado) se tornam invisíveis na nossa sociedade, desprovidos de qualquer influência. Enfim, este é um livro muito bem escrito e de grande clareza, cuja rápida tradução será bem útil.

Luís Navesin Fragmentário

DOIS ENSAIOS SOBRE ARTE CONTEMPORÂNEA

O mestre da ficção científica, o escritor norte-americano Ray Bradbury, autor de Fahrenheit 451 (1953), adaptado ao cinema pelo francês François Truffaut, e de Crónicas Marcianas (1950) morreu terça-feira, aos 91 anos, em Los Angeles.“Mr. Bradbury morreu serenamente, a noite passada, em Los Angeles, depois de uma longa doença”, disse à Reuters um porta-voz da editora norte-americana HarperCollins. O seu neto Danny Karapetian e o biógrafo, Sam Weller, confirmaram a notícia ao blogue dedicado à ficção científica io9. “O mundo perdeu um dos seus maiores escritores e uma das pessoas que me eram mais queridas”, twittou Karapetian. “[Foi] a maior criança que conheci”, disse ainda ao blogue especializado.Nascido em Agosto de 1920 no estado do Illinois, Ray Bradbury, um dos fundadores da literatura fantástica contemporânea, deixou-se fascinar pelos livros aos sete anos, com Edgar Allan Poe, e aos 17 estreava-se nas páginas de uma revista de ficção científica, com a primeira novela das quase 500 que assinou, “Script”.Aos 14, quando os pais se mudaram para Los Angeles, transformara-se num rato de biblioteca e dizia muitas vezes que era um escritor autodidacta, que aprendera simplesmente a ler os grandes autores: “Ensinaram-me Shakespeare e Júlio Verne. Foi Edgar Allan Poe que me disse para escrever. […] Os grandes nomes foram a minha influência e com eles nunca precisei de mais conselhos”, contou numa entrevista agora citada pelo diário espanhol El País. Tendo começado pelas novelas de terror, foi com Crónicas Marcianas e Fahrenheit

451 que atingiu o sucesso. A primeira é uma obra sobre os riscos da desumanização perante o avanço científico, a segunda, feita numa máquina de escrever que precisava de uma moeda para funcionar, na biblioteca da Universidade da Califórnia, evoca os perigos do totalitarismo através da criação de uma era de guerra em ignorância, em que os bombeiros se ocupavam da queima de livros e não da extinção de incêndios, explicava ontem o diário britânico The Guardian. Autor prolífico – para além de centenas de novelas escreveu mais de 30 romances, contos e poemas, além de guiões para cinema e televisão –, Ray Bradbury fazia dos seus livros em que criava mundos fantásticos espaços de crítica aos excessos da sociedade contemporânea. Em 2010, por exemplo, chegou mesmo a defender numa entrevista ao jornal Los Angeles Times que os Estados Unidos precisavam de uma “revolução” para travar o poder desmesurado do Governo. “Na vida, como na escrita, devemos agir com paixão: [assim] as pessoas vêem que somos honestos e perdoam-nos muita coisa”, disse Bradbury noutra conversa citada esta quarta-feira pela AFP. Um dos autores mais lidos da sua geração, Ray Bradbury manteve até ao fim o mesmo entusiasmo, dizem familiares e amigos. “A coisa mais divertida da minha vida é levantar-me cada manhã e correr para a máquina de escrever porque tenho uma ideia nova”, confessou em 2000 este homem da ficção científica que sempre se recusou a publicar seus livros em formato electrónico e dizia com frequência que as pessoas tinham gadgets a mais.

RAY BRADBURY (1920-2012)

“Na civilização do espectáculo, o intelectual só interessa se seguir o jogo da moda, tornando-se num bobo”, afirma Mario Vargas Llosa, descrente da qualidade da literatura contemporânea e muito crítico da falta de originalidade e do excesso de niilismo nas artes.

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gente sagrada José simões morais

O L H O S A O A L T O

BAO SHENG DA DI,DEUS DA MEDICINA

Wu Tao (吴本) nasceu no dia 15 da tercei-ra Lua do ano de 979, durante a dinastia Song do Norte, na prefeitura de Quan-zhou, actual província de Fujian. Divergentes são as histórias contadas so-bre esta pessoa, que dedicou a sua vida a curar todos os que lhe pediam ajuda, sem cobrar dinheiro aos mais pobres. Como daoista, prezava a vida acima de toda a materialidade e não poupava esforços para conseguir encontrar uma solução, ou uma planta, o que o tornou num grande alquimista, adquirindo assim excepcionais conhecimentos médicos. Por tudo isso se tornou um imortal e um dos deuses da Medicina.Há fontes que afirmam ter Wu Tao como antepassado longínquo Tai Bo, um dos dois príncipes do reino Zhou, irmãos do rei Tai, que emigraram no século XI a.C. do Noroeste para junto do rio Yangtze, onde fundaram o reino Wu, tendo tomado o apelido Wu. Desde cedo Wu Tao revelou ser uma pes-soa inteligente e com grande memória, sempre atento aos efeitos das plantas nas curas de doenças, mostrando aos 17 anos apetência para a medicina tradicional. Pe-rante tamanhas capacidades, muita gente cria que ele estava tocado pela protecção e apoio divino.Mas já outras fontes dizem ser de uma fa-mília pobre de agricultores. Logo desde pequeno começou a trabalhar a terra, fa-zendo uso também da cana de pesca para trazer algum peixe para casa. Ainda ado-lescente, perdeu o pai vítima de doença e pouco tempo depois, da mesma forma, a mãe. Com grande interesse em aprender e muito curioso, foi adquirindo os saberes das pessoas da sua aldeia sobre os efeitos terapêuticos das plantas. Certa vez, anda-va ele pelos 17 anos de idade quando teve a sorte de encontrar o seu mestre de medi-cina tradicional. Este passava pela povoa-ção e, percebendo o interesse de Wu Tao, que sem família lhe propôs ser seu ajudan-te, acolheu-o e tomou-o como discípulo. Assim começaram as suas viagens. Na montanha aprendeu a reconhecer novas plantas e as suas propriedades e pelas po-voações ajudava o seu benfeitor a tratar das maleitas das pessoas. Como bom alu-no ganhou o ofício de médico e pela gran-de experiência adquirida, o seu nome pas-sou a ser conhecido pelo território Song.

Tinha fama de muitas vezes ter soluções que contradiziam as dos mais conceitua-dos doutores e, no entanto, revelavam-se mais eficientes. Certo dia, a imperatriz so-frendo de um problema num seio e, sem que os médicos da corte conseguissem encontrar a solução, foi então necessário chamar Wu Tao, que a curou. Logo o im-perador lhe propôs ficar como médico da corte, o que recusou tal como os outros favores materiais que lhe foram dados.No segundo dia do quinto mês lunar do ano de 1036, andava pela montanha à pro-cura de uma planta para tentar salvar uma pessoa pobre, que tinha uma doença mui-to difícil de curar, quando caindo por uma ravina se passou desta vida.Os habitantes da localidade de Xiamen construíram-lhe um pequeno templo. Quando mais tarde, quiseram-no ampliar mas perceberam não ter dinheiro para tal. Um dia a água do poço do templo come-çou a transbordar e as pessoas acharam o fenómeno estranho. Então provaram a água, achando-a muito pura e com um cheiro perfumado, percebendo depois ter propriedades curativas.Já na dinastia Song do Sul, o imperador Gao Zong (1127-62) mandou construir um templo em sua honra, Ci Ji Gong e o seu filho, Xiao Zong Di (1162-89), em 1171 deu-lhe o título de “Imortal do Gran-de Tao”.Séculos depois na dinastia Ming, durante o reinado do imperador Cheng Zu (1403-1424), a rainha com um problema num seio e após muitos médicos não consegui-rem encontrar uma cura, foi lembrada a história de Wu Tao. Assim a imperatriz foi orar ao templo e através do mestre daoista que segunda a lenda deu corpo ao espírito de Wu, ficou curada do cancro da mama.Logo o imperador lhe atribuiu o título de Grandioso Imperador que Preserva a Vida e mais tarde o imperador Ren Zong (1424-25) colocou o manto imperial a Bao Sheng Da Di.Conhecido em Macau pelo deus I Leng, é um dos muitos deuses da Medicina, e está intimamente ligado aos habitantes de Fu-jian. A sua estátua não se encontra na sala principal do templo I Leng, mas noutra que compartilha com vários outros deu-ses, mas nunca com A-Má. O templo de I Leng situa-se paredes meias com o templo a Bao Gong, na Rua da Figueira.

保生大帝

O médico que há mil anos curavao cancro da mama ainda agora é um deus

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2012L E T R A S S Í N I C A S

HUAI NAN ZI 淮南子 O LIVRO DOS MESTRES DE HUAINAN

HUAI NAN ZI (淮南子), O Livro dos Mestres de Huainan foi composto por um conjunto de sábios taoistas na corte de Huainan (actual Província de Anhui), no século II a.C., no decorrer da Dinas-tia Han do Oeste (206 a.C. a 9 d.C.).Conhecidos como “Os Oito Imortais”, estes sábios destilaram e refinaram o cor-po de ensinamentos taoistas já existen-te (ou seja, o Tao Te Qing e o Chuang Tzu) num só volume, sob o patrocínio e coordenação do lendário Príncipe Liu An de Huainan. A versão portuguesa que aqui se apresenta segue uma selec-ção de extractos fundamentais, efectua-da a partir do texto canónico completo pelo Professor Thomas Cleary e por si traduzida em Taoist Classics, Volume I, Shambhala: Boston, 2003. Estes extrac-tos encontram-se organizados em quatro grupos: “Da Sociedade e do Estado”; “Da Guerra”; “Da Paz” e “Da Sabedoria”.O texto original chinês pode ser con-sultado na íntegra em www.ctext.org, na secção intitulada “Miscellaneous Schools”.

Quando a água está poluída, os peixes asfixiam.

DO ESTADO E DA SOCIEDADE – 8

Aqueles que conhecem a fonte da lei e da ordem mudam de forma a se adaptarem aos tempos. Aqueles que não conhecem a fonte da lei e da ordem mudam com os costumes. As maneiras e os deveres mudam com os costumes. Os eruditos ocupam-se em seguir precedentes, mantendo o novo com base no convencional e considerando que, de outro modo, a governação seria impossível. Ora, isto é como tentar introduzir uma cavilha quadrada num orifício redondo.

* * *

A razão pela qual se estabelecem líderes é para eliminar a violência e estancar a desordem. Nos dias que correm, [os líderes] aproveitam-se do poder do povo para, eles próprios, delapidarem. São como tigres alados – porque não deveriam ser eliminados? Se queres criar peixes num lago, tens de te livrar das lontras; se queres criar animais

domésticos tens de te livrar dos lobos – quão mais verdade é isto no governo do povo!

* * *

Os líderes de nível inferior perdem a sua liderança de nível inferior na ambição por autoridade de nível médio. Os líderes de nível médio perdem a sua liderança de médio nível na ambição por autoridade de alto nível.

* * *

Acalentar as perversidades de um indivíduo, assim aumentando os problemas por toda a terra, é inaceitável à razão natural.

* * *

Quando os líderes são dados à benevolência, os meritórios são recompensados e os criminosos andam à solta. Quando os líderes são demasiado dados ao castigo, os meritórios são rejeitados e

os ignorantes massacrados. Quanto àqueles que a nada são dados, oferecem sem recompensa e castigam sem ressentimento.

* * *

Quando a água está poluída, os peixes asfixiam; quando o governo é duro, o povo revolta-se.

* * *

Quando a sociedade é ordeira, protegemo-nos com a justiça; quando a sociedade é confusa, temos de nós próprios proteger a justiça.

* * *

A duplicidade não conquista nem uma só pessoa; a franqueza pode conquistar cem pessoas.

Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

O SOL, A LUA E A VIA DO FIO DE SEDA

FERNANDA DIASU m a l e i t u r a d o

YI JING

A nova traduçãodo livro que há milénios

ilumina a civilizaçãochinesa