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ARTES, LETRAS E IDEIAS PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2482. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

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Suplemento h - Parte integrante da edição de 18 de Novembro de 2011

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hPARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2482. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

O PODER DAS MÃOS

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La culture contemporaine est, en première aproximation, nulle.

Cornelius Castoriadis

A CONTEMPORANEIDADE não des-gosta, nem envergonha: é simplesmente cansativa. Na repetição dos mestres, como nas óperas; na utilização exaustiva de to-dos os media, como nas artes plásticas; mais que crer ou racionalizar, sentimos diluir-se o espanto, quase já por atitudes e estéticas civilizacionais. A tecnologia unificou o mundo e impôs a ideologia da comunicação. Como resultado, a “crise de valores” que ontem era exclusiva do Ocidente, é hoje partilhada a Oriente, informada pelo próprio pulsar das econo-mias, dos modos de vida, da organização do quotidiano, etc. Falar do “declínio do Ocidente”; propósito que marcou o pensa-mento de filósofos, de Spengler a Heide-gger, e de místicos, como René Guenon, nas suas tentativas de desconstrução dos sistemas “liberais”; é referir o “declínio do Mundo”. Estamos todos demasiado próxi-mos e partilhamos demasiadas coisas.

Durante a segunda metade do século XX, o equilíbrio do terror, baseado na amea-ça nuclear, evitou uma guerra que se adi-vinhava de proporções dantescas e que, provavelmente, acarretaria a destruição da humanidade e do próprio planeta, tal qual o conhecemos. Hoje a guerra é ain-da mais impossível porque ao equilíbrio do terror nuclear somámos o equilíbrio do terror económico. Isto é, tornou-se praticamente impensável uma guerra, na medida em que os países são de tal modo interdependentes economicamente que o confronto levaria a consequências ini-magináveis no passado. Por exemplo, o mero corte de relações económicas entre os Estados Unidos e a China provocaria um efeito de colapso em ambas as eco-nomias de tal modo sério que é bom nem se quer equacionar esse tipo de situação. Poderemos dormir descansados?Não. E não porque não temos, quando olhamos para a História, demasiados exemplos de racionalidade. Não sei se a política é a continuação da guerra por outros meios ou se a guerra é que é a continuação da política por outros meios. Não sei se a humanidade está, como queria Hobbes, em permanen-te e latente estado de “guerra de todos

contra todos”, portanto que o Homem é fundamentalmente mau. Mas hoje o exercício dessa eventual maldade traria consequências de tal ordem que nin-guém, finalmente, seria vencedor. Sabe-mos, no entanto, que o “bom selvagem” de Rousseau morreu algures entre as fogueiras da Inquisição, Auschwitz e os gulags de Estaline. O Homem será tal qual o descreve o Divino Marquês, uma besta agrilhoada, disposta a mostrar as presas sobretudo quando agrilhoada aos preconceitos, na medida em que faz do interdito o motor dos desejos.Tomemos, no entanto, a guerra, so-bretudo a clássica guerra entre nações, como algo impossível. Resta então per-guntar como se vai soltar a agressivida-de, que sublimação encontraremos para resolver o nosso conflito interno de ho-mem das cavernas preso na selva de be-tão, cada vez mais sujeito a interditos e portanto também mais sujeito à frustra-ção. Hoje o ódio passa pela imagem do Outro tal qual ela é servida nos media e não tal qual ela pode ser percebida na relação interpessoal. Esta, praticamen-te, acabou, mediatizada que está pela normalização resultante do comunicar, nomeadamente através de um rebati-

mento dos valores a quantidades, leia--se dinheiro.Por exemplo, o que odeiam os muçul-manos no Ocidente? Basicamente o que vêem e não têm acesso. Só que este ver não é real e assenta em imagens de um mundo que não existe, que ninguém vive, que se resume a uma extrapolação barata de um imaginário capitalista, derrotado à partida pela ausência de referências. Ninguém vê nada porque o que é dado a ver tem a mesma consistência dos filmes de Walt Disney. Temos as casas cheias de bruxas más, príncipes encantados, prin-cesas boazinhas. E culpamos alguém por estes personagens não existirem nas nos-sas vidas. O homem do século XXI, ao invés de ter recuperado a dignidade que os anos 60 do século passado faziam prever, vive num alucinado parque temático tão ver-dadeiro como as gôndolas do casino Ve-netian. A agressividade atinge níveis tão altos como a própria insatisfação, agrava-da pelo facto de sentirmos as nossas vidas como becos sem decente saída.A guerra, a vir, será terrível, porque pri-meiro já se desenrola dentro de cada um de nós. A bem dizer, lá fora não há nada.

DA GUERRA HOJE

O homem do século XXI, ao invés de ter recuperado a dignidade que os anos 60 do século passado faziam prever, vive num alucinado parque temático tão verdadeiro como as gôndolas do casino Venetian.

Carlos Morais José

JORGE MOLDER

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ESCREVEREI ESTE TEXTO sem as preocupações que certamente o tema merece. Pouco citarei ou fá-lo-ei de me-mória, se a tanto o abuso da paráfrase me obrigar. Trata-se, afinal, de relatar uma experiência de solidão, entre um povo que não se expressa na minha lín-gua e cujo idioma não domino. Este tipo de situação remete-nos a uma solidão quase essencial, sobretudo se não procu-ramos, de facto, a comunicação. Como foi o meu caso nestes dias que passaram.Quando andamos pela cidade onde ha-bitamos, quando nos deixamos dominar pelo nosso quotidiano, pela companhia de conhecidos e amigos, pouco tempo reservamos para ouvir o nosso próprio pensamento e temos mesmo a tendên-cia para o exprimir em voz alta, para os outros, ao sabor dos interesses ou do desejo de partilha. Já o caso muda com-pletamente de figura quando circulamos entre um povo estranho, estrangeiro, cuja linguagem é para nós um rumore-jar distante e sem consequências. Tudo começa por ser uma espécie de aven-tura, que a experiência desvaloriza em optimismo, ao qual a mesma experiên-cia acaba por dar razão. Os pequenos acontecimentos mais não são que isso mesmo: pequenos eventos sem conse-quência para o desenrolar agradável dos dias e o descanso absoluto das noites. Ou talvez não.É que a nossa presença em nós mesmos acaba por se tornar no único diálogo possível (e como somos tão viciados no diálogo!, e como recusamos o silên-cio interior!), uma espécie de orquestra interminável que nos assombra com os

seus diversos tons, nos quais começa-mos a reconhecer cada um dos nossos mais temíveis e familiares fantasmas. Até que, finalmente, advém a consciên-cia progressivamente lúcida da solidão, ao contemplar qualquer paisagem de-sagregadora do que nos é quotidiano e constante.

1. A consciência da solidão é, acima de tudo, a saudade de algo.Jamais saberia estar só porque a solidão não passa da memória de algo ausente e nunca de um estado puro, virginal, de mim próprio. Não falaria de Ser porque não me refiro impunemente a algo de brutal que se arquitecta fora de mim, algo cuja distância invoca o terror. Falo de um ego que pressente uma hiância surda, abismal, entre si e o mundo, e na tentação de se julgar sozinho, enfim de se deusificar sem pejo nem hesitações. Mas não. Sabe esse pensamento escon-dido, por detrás do orgulho e da vaida-de, que qualquer solidão é ausência e não presença absoluta, perante o mar, sob o sol, face as estrelas... bref, no aus-cultar atento do universo.Sei então apenas avaliar a dimensão des-sa voz e tentar transformar o indizível em palavras, como se me subornasse a mim próprio. Rapto de si. Refém de palavras. Terrorismo avant d’être. Uma escrita in-terna que passa pela procura da palavra certa, da frase pouco sonante mas justa. Da frase que encontra e recria o mundo num adágio. Pela suavidade, conquistar a paisagem, ser Ser sem linhas traçadas na superfície geométrica da Terra, ser pouco planetário, ser mais, muito mais

do que sou, sem conhecimento de nada nem fronteiras. Ser o momento em que se apagam as barreiras pelo recolhimen-to a mim próprio e ser tudo isso para, finalmente, reconhecer que nada sou à excepção da saudade.Que a solidão paga-se e apaga-nos, afi-nal. Qualquer consciência de si mergu-lha as suas raízes na falta de algo. Al-guém falou na visão da morte, mas é muito mais e muito menos do que isso. Cada um transporta em si a sua morte, como carrega a maldição de viver. Sen-do que a morte é um pensamento solitá-rio, talvez por isso mais suportável, e a vida um negócio infame que nos afasta de nós próprios.

2. A saudade é uma partilha exangue que nos transforma em homens.Para pensar a morte é necessária a me-mória da vida, a consciência do prazer. Esse é o grande estratagema de todos os deuses, a sua maldade, o saborear absurdo da sua companhia, no saber pleno da nossa exiguidade. Na balan-ça da vontade irreprimível oscilam os pratos absurdamente distantes, porque os valores são opostos à nossa realida-de mais íntima e poucos têm coragem absoluta de respirar o ar puro das suas montanhas interiores. Ser homem é, sobretudo, partilhar. Por isso, ser ho-mem é também sentir enormemente a solidão, paradoxalmente como falta. A saudade é o movimento que nos reco-lhe, o sentimento que desgraçadamente nos humaniza e, felizmente, fragiliza e engrandece. A saudade é a re-ligação ao nada do tudo que esquecemos, a religião

que nos transporta a regiões amoráveis, aos desertos limpos, aos mares ainda por navegar, aos caminhos por percorrer. A saudade faz-nos homens sem temor.Daí o meu absurdo amor ao que se man-tém, na medida do possível, alterável, em metamorfose silente e constante, e capto a imagem do insecto cuja vida mais não dura que um dia como ima-gem, como repetição de mim, dia após dia, num assomar infinito de responsabi-lidades universais.Como é bela a pedra sob o efeito in-cessante da água, mas só no momento exacto em que a encontro! Bela! Plena! Imortal! Como surge, indiferente, a meus olhos para que a escute, como se me aguçam os ouvidos para a ver. Sinto todos os ventos que por uma eternidade a incomodaram, cada gota de chuva que persistentemente ali moldou uma forma ínfima que seja. Cheiro a eternidade e rio-me do silêncio ensurdecido de bom-bas e de guerras. Uma desgraça nunca vem só.Terei sempre saudades, sobretudo no momento em que me julgar sozinho. E essas saudades manter-me-ão vivo e ar-rogante. Os outros não sabem... porque não perceberam ainda o que é ser só. O que é caminhar sem palavras por corre-dores sombrios ou vias estelares de mil dimensões. E ter sempre a mesma ânsia de procurar as palavras como se elas jus-tificassem o mundo. Procurá-las como se estivesse cego, como se o quotidiano se apagasse subitamente. O verdadeiro pesadelo é a ausência da saudade. Por-que essa é verdadeira e irrefutavelmente uma ausência de mim.

DA SOLIDÃO E DA SAUDADE

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Carlos Morais José

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ESTÁ PATENTE desde o dia 21 de Se-tembro e preenche até domingo a sala do Museu de Arte de Macau (MAM) a exposição intitulada “Falando com as mãos”. A exibição apresenta fotogra-fias e esculturas de mãos e de todo um universo expressivo, que inconsciente-mente criamos com simples gestos. As mãos comunicam de forma mais anó-nima e espontânea que o rosto, e num olhar apercebemo-nos do mundo em que aquele movimento é produzido. “As mãos não mentem, facilmente se controlam as expressões faciais, mas o comunicar com as mãos é algo involun-tário”, comenta Weng Chiao, coorde-nadora da exposição.O que é e o que murmura a mão? Um órgão com ausência de pensamento, tentáculos de um corpo principal, mas um meio fundamental de percepção humana e de transmissão de mensa-gens. Através do contacto e do toque a mão responde de forma inconsciente, projectando “mensagens originárias do sistema nervoso periférico, assim como do sistema de controlo cerebral atra-vés da linguagem gestual”, enuncia a coordenadora. Ainda nas suas palavras é observando a atitude espontânea das mãos de uma pessoa, que se encontram indícios das suas características men-tais, numa espécie de espelho da alma, que escondem milhares de palavras. Todas estas reflexões deram origem a uma exposição que corre mundo e, que se tornou um marco no espectro da arte fotográfica entre os séculos XIX e XX. Tudo começou com as mãos de Geor-gia O’Keeffe, pintora americana. A lente de Alfred Stieglitz guardou-as em 1920, com o nome de Mão de Dedal, Henry Buhl, adquiriu-as, em 1993 e a partir daí nunca mais parou de coleccionar “mãos”. A Colecção Buhl conta agora com mais de 1000 fotografias e mais de cem es-culturas. Uma visão bidimensional e tridimensional de um par de órgãos que traduzem o complexo de emoções inex-plicáveis numa linguagem verbal. O espólio abrange três séculos de obras, corre o ano de 1840 e chega aos dias da arte moderna. Os trabalhos têm a assi-natura de mestres da arte de fotografar, de artistas famosos e emergentes. “Uma das raras colecções do mundo construí-da em torno de um só tema e que inspi-rou artistas de Bruce Nauman a Rodin”, explica Weng Chiao. A primeira exibição teve lugar no ano de 2004, no Museu Solomon R. Gugge-nheim de Nova Iorque. Desta data em

diante não de percorrer mundo. já foi exibida em variados espaços culturais na Europa e Estados Unidos. À Ásia chegou em 2009, quando se apresentou no Museu Daelim em Seul, Coreia. A itinerância levou-a Taiwan e chegou ao território, pelas mãos do embaixador francês de Hong Kong e Macau. A Co-lecção Buhl oferece uma janela através da qual podemos observar os aspectos visuais da mão, em peças de escultura e em fotografias.

Uma visita ao mundo gestualUma sala enorme que se apresenta re-pleta de mãos. Mãos que pedem, mão que abençoam, mãos feridas, mãos ale-gres, mãos tristes, mãos que gritam e até mãos que curam. Mãos e mais mãos que nos invadem o olhar e o imaginário. Descrito assim e numa primeira aborda-gem, talvez se pense que entrar naquele cosmos nada tem de interessante. É pre-ciso prestar atenção e “ouvir” o que elas têm para dizer. O início da jornada con-ta-nos a história e o desenvolvimento da fotografia. A coordenadora explicou, que para a entrada na exposição o cri-tério decorador foi cronológico. Depois de um recuo no tempo, há um evoluir de cor e de sentimentos que se pretende transmitir. A passividade da introdução, para a qual os trabalhos tridimensio-nais contribuem, transporta-nos para uma atmosfera de estímulos. Há cor, há mensagens a serem enviadas e pessoas a contarem histórias de vida, aconteci-mentos de guerra e de paz. Mais de cem fotografias e 31 esculturas, que nos ofe-recem um mundo para além da comuni-cação verbal. O silêncio da sala contrasta com o fre-nesim de mensagens que cada um dos trabalhos nos quer revelar. Marcamos encontros com Pablo Picasso, Andy Warhol, Madre Teresa de Calcutá, Henry Moore, com quem faz da fé uma guerra, entre muitos outros. Um uni-verso de pessoas e de estórias contadas na extremidade. Deambular naquela sala é viver todo um misto de emoções, simplesmente pelo olhar a uma mão. Há raiva, amor, sexo, apelos, descon-fiança, pessoas abastadas e pessoas que pedem misericórdia. Um tema a que poucos artistas recor-rem, mas que nesta exposição se jun-tam - diferentes artistas, de diferentes décadas – dos famosos Auguste Rodin, passando por Pablo Picasso, Fernando Botero, Tom Otterness e Annette Mes-sager até alguns artistas asiáticos emer-gentes, como os chineses Ahang Huan e Chen Long-bin e os coreanos Suh Do-ho e Noh Sang-kyoon.

Lia CoeLho

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A COLECÇÃO BUHL é uma das raras colecções do mundo construída em torno de um só tema: a mão. De Bruce Nauman a Rodin, a mão inspirou vários artistas como uma das mais expressivas e com-plexas partes do corpo humano. A mão, reveladora de uma vastidão de expressões que abrangem todas as emoções humanas, e que reflecte a ocupação, o estatuto social e a idade do seu detentor, foi sempre uma fonte de inspiração para os artistas.As mãos comunicam de forma mais anóni-ma do que o rosto, apesar de serem extre-mamente descritivas. Podemos considerar algumas mãos como clericais (como as mãos do Pastor Ledbetter retratadas por Gordon Parks), poéticas (como as de Jean Cocteau por Berenice Abbott; e Azalea de Rona Pondick), divertidas (como as Sem Título/Mãos de Hans Bellmer; as mãos de

AS MÃOS COMO METÁFORAElga WimmEr

A sabedoria chinesa...A palavra “mão” em chinês diz-se shou. De shou originam várias outras palavras que representam muito daquilo que podemos sentir depois de uma visita à exposição: como shoufa - habilidades, shoufeng – sorte - shou-gan - toque - shouqi - sorte - shouduan - meios - shouwu zudao - dançar por diversão - shouzu wucuo – perda - shoumang jiaoluan - azáfama - e estes são apenas alguns exemplos. Todas estas palavras descritivas não só reflectem a expressividade da “mão” na linguagem escrita, como também conferem uma associação abstracta e metafórica. E são estas figurações que fazem também sentido na língua chinesa. Exemplificando: xindao shoudao - a coordenação do coração e das mãos - dexin yingshou - o que o coração de-seja a mão executa - e shoudao qinlai - estende a mão e agarra-o. Isto acon-tece porque no processo da criação de formas para expressar ou transmitir os nossos pensamentos, as mãos desempenham muitas vezes o eloquente e principal papel. “Existe um ditado chinês que nos diz: yangao shoudi - grandes pretensões mas poucas capacidades, uma criíca ao embaraço de uma descoordenação entre a mão e a mente”, escreveu Weng Chiao.

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Picasso por Robert Doisneau; e as da Ex-periência pelo Fogo de Sarah Charleswor-th), auto-biográficas (como as de John Coplans e Lucas Samaras), industriais (como as de A Corrente Está Ligada de El Lissitzky), medicinais (O Curandeiro da Fé de Anon), e artísticas (como as mãos de Picasso por Brassai; e, as de George Bra-que por Paul Strand).A linguagem gestual é um ponto forte da obra de muitos artistas da primeira gera-ção da performance-arte (como os Cin-co Pensamentos Masculinos (De Fren-te) de John Baldessari; Etapas de Vito Acconci), assim como por artistas que politicamente mais empenhados (como Barbara Krüeger em Sem Título-Não Se-remos Mais Vistos nem Ouvidos; Shirin Neshat em Estórias em Martírio; Michel Francois em O Braço). Por vezes, as mãos são representadas gordas, de dedos cur-tos, como nas esculturas de Botero e nos Novos Britânicos de Martin Parr, outras

vezes, são representadas delicadamente com as marcas das veias como as de Ro-din e Louise Bourgeois.As fotografias e esculturas da Colecção Henry Buhl incluem não só trabalhos inspiradores e de artistas importantes, desde os meados do século XIX ao século XXI, como também transmitem todas as emoções humanas. Nós beijamos a mão, mexemos as mãos, colocamos anéis para as embelezar, pintamos as unhas para lhes dar um ar de moda e de erotismo (como no trabalho de Lillian Bassman no Harper’s Bazaar), e expressamo-nos com as mãos desde os nossos primeiros senti-mentos e pensamentos de criança até ao último dos nossos dias na terra. Estas são as razões que me motivam como curadora desta exposição itinerante.A inspiração do Sr. Buhl para iniciar esta colecção foi uma fotografia de Alfred Stie-glitz às mãos de Georgia O’Keeffe (Mãos com Dedal). Esta fotografia única foi um

achado de coleccionador tanto em termos de qualidade como de valor de mercado e é actualmente uma importante peça da história da fotografia. Mais tarde, o Sr. Buhl começou a adquirir esculturas, que actualmente dão uma imagem transversal de arte contemporânea desde os anos ses-senta aos nossos dias.A exposição itinerante Falando com as Mãos teve a sua primeira paragem na Ásia no Museu Daelim em Seul (Coreia), e de-pois foi para o Museu de Belas-Artes de Kaoshing (Taiwan). Agora é exibida no reconhecido Museu de Arte de Macau. Muitos dos artistas aqui revelados serão vistos pela primeira vez neste museu, por isso esperamos transmitir novos conheci-mentos aos nossos visitantes. A arte é uma linguagem universal, e esta colecção é um exemplo perfeito de comunicação desde Nova Iorque (E.U.A.) a Macau (China)!

Curadora

AS MÃOS COMO METÁFORA

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luz de inverno Boi Luxo

“Fico à tua espera às Portas do Inferno” (Nakadai, para Mifune).

QUEM SEGUE ESTES TEXTOS com mais atenção terá já reparado que a atenção e a admiração aqui dispensada aos actores e às actrizes é muito escassa. Desinteressa-do das suas capacidades interpretativas, no sentido americano do termo, o autor des-tas linhas acredita mais na eficiência de um casting sensato e numa direcção de actores eficiente. Testemunhas da eficácia desta escolha são os muitos actores amadores e não-actores que, bem dirigidos, fazem o mesmo papel. No entanto, há também es-paço para a criação de uma pessoa de filme, uma personalidade que se torne própria a um papel, muitas vezes através da sua fama e do conhecimento que temos da sua car-reira ou apenas através de um trabalho. O valor icónico de um actor ou actriz é, por vezes, superior, ou paralelo, às suas capaci-dades interpretativas, na linha do que Ge-orge M.Wilson (Wilson, 1986) caracteriza como a representação fotográfica e a repre-sentação dramática.Uma figura como a Clint Eastwood, por exemplo, desde que se não exceda em pirotecnias, actua com uma certeza que está para lá dessas capacidades. O mes-mo se poderá dizer dos James Bond, que precisam, essencialmente, de um rosto adequado que perpetue ou introduza al-guma pequena alteração à sua imagem. Catherine Deneuve pouco mais precisa do que estar presente no filme. Por ou-tro lado, muitos não-actores constituem a escolha perfeita para emprestar o rosto necessário a um papel.Do cinema japonês, onde também há um sistema de estrelato, escolhemos dois rostos, duas personas, cujo confron-to particularmente nos excita: Mifune e Nakadai, só assim, sem mais. O primeiro muito conhecido, o segundo menos in-ternacional mas imediatamente reconhe-cido no Japão.Mifune e Nakadai são dois actores que entraram em muitos filmes. Ao longo das respectivas carreiras encontraram-se

MIFUNE CONTRA NAKADAI

inúmeras vezes em filmes de samurais e, uma vez, num filme de outro tipo (High and Low, de Kurosawa, em que um e outro, no entanto, não entram em con-fronto directo – um o homem de negó-cios condenado a pagar um resgate pelo rapto do filho do seu motorista, outro o detective encarregado do caso policial). Nakadai, lembre-se, será mais tarde a escolha de Kurosawa para os seus dois últimos chambara, Kagemusha e Ran, os filmes que elevaram definitivamente este género a um género internacional depois de terem beneficiado de uma distribuição muito abrangente.Mas é em filmes de samurais que as suas personalidades e rostos se cruzam de um modo mais estridente. Lembremos pri-meiro um filme de Kurosawa de 1962, Sanjuro. A entrada em cena de Mifune é inesquecível, a imagem exagerada até ao ponto imediatamente anterior à caricatura do ronin insolente – a bocejar e a coçar--se, numa continuação da caracterização aragoto de Yojimbo, que este filme de certo modo continua. Se aqui não há uma descrição cronológica é porque Yojimbo, que é anterior a este, ocupa um lugar tão central nestas considerações que merece o destaque de não ser o primeiro. Em Sanju-ro quase todos os exímios espadachins são samurais. Apenas Mifune e, claro, Naka-dai, não o são. No meio de tanta cagança quem acaba por protagonizar o combate final (que quase não existe) são precisa-mente estes dois “rufias”, um do lado dos Bons (Mifune na figura de Sanjuro) mas sem amo a quem servir, e o outro do lado dos Maus (Nakadai na figura de Hanbei), duas figuras que são a imagem perfeita do desprezo pelo sistema. Este é um filme muito mais palaciano e labiríntico do que Yojimbo, que é mais aparentado ao wes-tern e muito mais exterior, talvez mais uni-versal e certamente mais fácil de entender.A cena mais memorável de todo o fil-me será a do duelo final. Aqui se encena um encontro de características especiais mas, no fundo, dispensável. Hanbei de-safia Sanjuro para um duelo numa altura

em que tudo parecia estar resolvido e por essa razão é que Sanjuro se quer escusar a combater. Não é facilmente identificável o motivo que move Hanbei. A relação entre Mifune e Nakadai nunca é linear. Mas o combate é belo. Como acontece em outros filmes, os oponentes perma-necem quase imóveis durante bastante tempo. Apetece prolongar esta inacção indefinidamente, os guerreiros investidos de uma qualidade etérea. Para os amantes do duelo de espada estas são momentos elevados. De súbito há um golpe único. Evito descrever com mais detalhe o seu desfecho.Yojimbo e Sword of Doom, este último merecedor de tanta admiração nestas páginas que se ameaça tornar doentio, são os dois filmes onde a petulância de Mifune e Nakadai se exprime com mais brilho. No filme de Okamoto Kihachi o duelo entre os dois não chega a dar-se devido a uma desarticulação feliz. Esta história foi inicialmente concebida para ser filmada em três episódios mas esta intenção não chegou nunca a concreti-zar-se. O grande duelo entre Mifune e Nakadai, que deveria, assim, ter lugar no fim da última instalação, não chega a dar--se. Ao invés, o filme resolve-se num ver-tiginoso fim em que, no entanto, Mifune não participa. Mas a rivalidade não deixa de existir e de marcar o filme até à altura em que se começa a encaminhar, inespe-rada e felizmente, para uma orgia assassi-na que o torna inesquecível e que reforça o valor icónico de Nakadai. Num cartaz publicitário de 1965, japonês, Nakadai aparece como figura de destaque mas, um pouco em baixo, vigilante, o rosto sério de Mifune prepara o espectador avisado para a rivalidade que os opõe. A ausência do combate final (técnica narrativa que o western usa até à exaustão), ironica-mente, acaba por ajudar a perpetuar esta expectativa, mesmo que neste filme se insinue muito subtilmente e hipótese de que Mifune (uma personagem que ganha sentido enquanto oponente de Nakadai) pode não estar à altura da perícia deste

louco. Há vários encontros entre ambos, encontros onde se desenha um olhar que por vezes é quase sexual, mas em nenhum deles estes chegam a trocar golpes de es-pada. A relação entre Mifune e Nakadai nunca é tradicional. No primeiro encon-tro, na escola que Mifune/Shimada diri-ge, este recusa um encontro com o visi-tante. No segundo Nakadai deixa aquele matar todos os homens que atacaram a liteira em que seguia. Deixa-se ficar a ob-servar. Desta feita é Mifune que parece impressionar Nakadai com a sua perícia. O encontro entre os dois nunca se dará porque o filme se dirige para outro lugar. Esta ausência do duelo ecoa ainda hoje.O filme em que estas duas figuras, no en-tanto, melhor exibem o seu pendor sar-dónico é no exemplar filme de Kurosawa: Yojimbo. Aí Mifune/Sanjuro atravessa o filme com uma arrogância única. Atraves-sa é o verbo certo já que nesta história, que se passa numa rua onde se dão con-frontos entre dois grupos de bandidos, este entra por um lado da aldeia e sai pelo outro, indiferente, sem aumento de qual-quer categoria que não seja a do gozo que extrai da lutas intestinas que os dois gru-pos travam. De entre os seus oponentes directos só um se destaca - naturalmente, Nakadai. Mais arrogante e sardónico ain-da, vestido de um quimono às riscas mais próprio para o interior de uma casa de bebida e volúpia que para um confronto de rua e, brilho máximo da sua indepen-dência e arrojo, munido (para além de uma espada) de, imagine-se a ousadia, uma pistola. Aparece regressado de uma viagem de um ano, cínico e cosmopolita, já o filme vai quase a meio. O plano que o introduz é filmado de baixo, a rua da aldeia varrida por um vento tão maléfi-co quanto possível neste filme onde tudo é relativo. Pela primeira vez o rosto de Mifune mostra uma pequena apreensão. Como se aponta no texto que a este filme exclusivamente se dedicou, este Nakadai é um Jack Palance japonês. É de homens destes que o cinema precisa arrogantes até às Portas do Inferno.

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próximo oriente Hugo Pinto

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11EM ENTREVISTA RECENTE à Al Jazeera, o filósofo eslove-no Slavoj Zizek expressava o desencanto: triste mundo este que oscila entre o “liberalismo anglo-saxónico” e o “capitalismo chinês-singapurense de valores asiáticos”. São as únicas alterna-tivas que existem, lamentava Zi-zek, para quem a distância que vai da falência da democracia à inflação do autoritarismo encur-ta-se a passos largos. A China, já se sabe, caminha ve-loz para tornar-se na economia mais poderosa; Singapura, com um misto de economia ultra--liberal e política musculada, é uma das mais dinâmicas socie-dades capitalistas. Com pouco mais de 130 qui-lómetros quadrados, a cidade--estado ostenta uma série de invejáveis títulos, entre os quais “4º centro financeiro mundial”, além de possuir um dos portos

marítimos mais movimentados do globo. Banca internacional, poderosos advogados ao ser-viço da alta finança, corridas nocturnas de ‘fórmula 1’ e casi-nos megalómanos compõem um cenário que faz sonhar o mais empedernido dos especuladores bolsistas. Todavia, por entre os arranha--céus que sobem como setas em gráficos financeiros e a alga-zarra dos milionários negócios que todos os dias, a todas as horas, são selados com apertos de mãos, serpenteia, insuspeita, uma música feita de murmúrios e de melodias de um lirismo de veludo que contrasta com o as-falto tremeluzente de reflectir os berrantes néon.“Emanations of a New World” (Utech Records, 2010) foi o justo título que Leslie Low e Vivian Wang, ambos do grupo The Observatory, chamaram ao

disco com que estrearam a dupla Arcn Temple. São, de facto, “emanações de um novo mundo” que ouvimos ao longo das oito canções do disco, vapores que se despren-dem criando o efeito de um ou-tro universo, de uma Singapura diferente, ainda que o “novo mundo” seja, na verdade, uma referência ao passado, esse “país distante”, como alguém uma vez disse.A matéria prima a partir da qual se fez “Emanations of a New World” é a memória de Leslie Low e Vivian Wang de quan-do eram crianças e visitavam o parque temático Haw Par Villa. Também conhecido por Tiger Balm Garden (foi construído pelos irmãos que criaram o cé-lebre bálsamo-panaceia “Tiger Balm”), Haw Par tem como te-mas principais a mitologia e cul-tura popular chinesas, com re-

produções que vão de aspectos da vida quotidiana a conceitos como o “inferno”, passando pe-los inevitáveis ensinamentos de Confúcio.De fantasia em fantasia, a mú-sica dos Arcn Temple leva-nos em viagem por diversos cantos da memória de Haw Par Villa, à boleia e ao som de folk de to-nalidades negras, psicadelismo “soft”, sintetizadores sugestivos, “theremins” encantatórios, gui-tarras esparsas e vozes dispersas criando harmonias que conju-ram quadros surrealistas que têm tanto de estranho quanto de belo.Mesmo que nunca tenhamos posto um pé na terra imaginária dos Arcn Temple, ouvindo esta música não é difícil conceber os demónios e os guerreiros, as criaturas e os animais mitoló-gicos, todos presos nesse país distante e passado, tentando

libertar-se de um sonho onde tudo se move num tempo e num jeito diferentes. À memória que os Arcn Temple guardam de Haw Par acrescen-temos, ainda, as imagens actu-ais e reais do decrépito parque, hoje uma atracção em decadên-cia, uma feira de bizarrias e um cemitério de estátuas longe dos tempos áureos em que as crian-ças aprendiam, entre o fascínio e o terror, modos de viver antigos. Sem querer, como num sonho, “Emanations of a New World” mantém-nos cativos num mo-mento algures entre o passado, a memória desse tempo e o seu presente. Do futuro é que não se vislumbra nada, mas apenas por-que existe a enorme possibilida-de de já ter acontecido.

“Emanations of a New World”Arcn Temple

Utech Records, 2010

REQUIEM PARA UM NOVO MUNDO

Triste mundo este que oscila entre o “liberalismo anglo-saxónico” e o “capitalismo chinês-singapurense de valores asiáticos”. São as únicas alternativas que existem, lamentava Zizek, para quem a distância que vai da falência da democracia à inflação do autoritarismo encurta-se a passos largos.

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2011 C I D A D E S I N V I S Í V E I S

VERÃO DE 1991. José Maria Cabral Ferreira, Padre Jesuíta e socióogo, convida um grupo de amigos, heterogéneo na formação e idades, para percorrer parte da Índia Portuguesa. José Grade, Madalena Cabral, Sérgio Fernandez, João Men-des Ribeiro, José Campos, Carlos Dias (descen-dente de indianos que visita pela primeira vez o seu país de origem), Cândida Pinto, Rui Ramos e Paula Santos, são os felizes contemplados. Uns do Porto, outros de Lisboa, conheceram-se em Dezembro, dias antes da partida. Os emoti-vos e surpreendentes dias passados juntos (31) ficaram registados nas memórias de cada um, ligados por uma indelével amizade. Durante anos os reencontros fizeram-se em restaurantes indianos. Por iniciativa da Associação Cultural Circo das Ideias, a aventura chega-nos agora no formato de livro. Contada por Paula Santos, no âmbito da Colecção Viagens.

De Setembro a Dezembro desenhou-se o programa de viagem. Cabral Ferreira definiu o itinerário Jesuíta e Português: Goa, Damão e Diú, Baçaim e Margão, e ainda Nova Delhi, Agra, Fatehpur Sikri, Jaipur, Ajmer, Adjanta, Ellora, Elephanta, Bombaim e Goa. Os arqui-tectos, no entanto, impuseram Chandigarh, sob protestos do agente de viagens que acha-va que nenhuma arquitectura justificava o ris-co de uma incursão no Punjab, atribulado por guerrilhas independentistas. A ideia, porém, de desistir desta visão, numa altura em que se via Le Corbusier de forma sistemática era impensável.

No dia anterior à partida para Chandigarh, o guia declara que de modo nenhum acompa-nhará o grupo. Cerca de vinte dias antes, um massacre, no comboio que liga Delhi a Chan-digarh, tinha feito 46 vítimas, na sua maioria hindus. Perante este imprevisto, Cândida Pinto resolve telefonar a Álvaro Guerra, embaixador português em Delhi. Pergunta-lhe se o grupo poderia subir a Chandigarh. A resposta: “Numa escala de 1 a 5, há um grau de risco 3. Têm que ter muito cuidado.” Desligando o telefone, a jornalista de Guerra afirma peremptória: “Pode-mos ir!”. Parte da comitiva, porém, reserva-se a ficar em Delhi. Os mais afoitos ou os mais in-conscientes, decidem ir: Cândida Pinto, Rui Ra-mos, João Mendes Ribeiro, José Campos e Paula Santos. Durante o percurso de mais de quatro horas, o comboio pararia várias vezes em esta-ções como Sonepat, Garnam, Parnitap, Karnal, Kunukshetra, Ambala. Chegados a Chandigarh, um autocarro de cinquenta lugares aguarda a ex-cursão de turistas que, afinal, se resume a cinco portugueses ansiosos e curiosos. Entre o Palácio das Assembleias e a cobertura do Secretariado, a Índia de Le Corbusier, híbrida e confusa, mol-

daria definitivamente a visão da arquitectura deste grupo de jovens.

Chandigarh – o lugar é o sítio, são os limites e os níveis, é a orientação e o percurso – de um lu-gar a outro. Por último, o problema da forma e da matéria é o do epílogo do projecto. Paula Santos mostra-nos que penetrar no território da arqui-tectura é aceitar a arquitectura como uma arte do espaço. Nesse sentido, Chandigarh coloca à dis-posição do arquitecto-visitante uma panóplia de instrumentos úteis na constatação, por exemplo, de que o projecto é o fruto de um processo de decomposição e de densificação mentais.

Nas palavras de João Mendes Ribeiro: “Em Chandigarh, estamos perante uma pureza for-malista que associamos à herança do modernis-mo e, no entanto, tudo isso é contaminado por uma “sujidade” vivencial, uma espécie de desi-quilíbrio provocado pelos contextos sociais e históricos da região. Paralelamente, apresenta--se como a materialização de uma utopia, como a construção de um lugar inventado, sugerindo um território desfasado do seu entorno: uma paisagem sintética, numa fronteira clara entre natureza e artifício.”

A viagem de Paula Santos fala-nos de ques-tões essenciais ligadas à problemática da ordem e da razão. Isto é, questões de natureza percep-tiva (onde é possível o prazer de olhar, escutar, sentir, tocar e percorrer a arquitectura), questões de ordem e de desordem (a ordem inevitável – a ordem da construção, o sentido da ordem), os factores de coerência da ordem, a regularidade e a irregularidade, a ordem e o caos.

Paula Santos é licenciada pela Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto em 1986. Inicia a sua actividade de projecto as-sociada a Rui Ramos. Trabalha em escritório a partir de 1999, no Porto. Grande parte da actividade de projecto resulta da participação com sucesso em Concursos Públicos e por convite, tendo participado em diversas expo-sições e publicações. Professora convidada do Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, desde 2008. É estudante de Douto-ramento no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra.

Em Chandigarh a arquitectura surge en-quanto processo de conformação de um habitat, isto é, da instauração de um lugar funcional, ou multifuncional. Com efeito, os lugares, a cida-de, a arquitectura considerados neste livro, são interpretados, enquanto fenómenos que contri-buem para a sedimentação do “carácter” de um ambiente, no qual se fundamenta a vida das for-mas e, necessariamente, a dos homens.

Aquitecto, Mestre em Cor na Arquitectura pela Faculdade de Arquitectura da Universidade

Técnica de Lisboa

CHANDIGARH, 1991Tiago Quadros

Todas as imagens apresentadas são da autoria de José Campos e Rui Ramos e foram retiradas do livro

“1991 Chandigarh” de Paula Santos, editado pela Associação Cultural Circo das Ideias.

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E, assim, foi a inteligência seduzida pelas coisas exteriores.

A COMPREENSÃO DOS MISTÉRIOSWEN ZI 文子

O texto conhecido por Wen Tzu, ou Wen Zi, tem por subtítulo a expressão “A Compreensão dos Mistérios”. Este subtítulo honorífi-co teve origem na renascença taoista da Dinastia Tang, embora o texto fosse conhecido e estudado desde pelo menos quatro a três séculos antes da era comum. O Wen Tzu terá sido compilado por um discípulo de Lao Tzu, sendo muito do seu conteúdo atribuído ao próprio Lao Tzu. O historiador Su Ma Qian (145-90 a.C.) dá nota destes factos nos seus “Registos do Grande Historiador” com-postos durante a predominantemente confucionista Dinastia Han.

A obra parece consistir de um destilar do corpus central da sabedoria Taoista constituído pelo Tao Te Qing, pelo Chuang Tzu e pelo Huainan-zi. Para esta versão portuguesa foi utilizada a pri-meira e, até à data, única tradução inglesa do texto, da autoria do Professor Thomas Cleary, publicada em Taoist Classics, Volume I, Shambala, Boston 2003. Foi ainda utilizada uma versão do texto chinês editada por Shiung Duen Sheng e publicada online.

CAPÍTULO 172, PARTE I

Lao Tzu disse: Na alta antiguidade, os homens reais respiravam o yin e o yang e todos os seres viventes tomavam exemplo de sua virtude, assim se harmonizando em paz. Nesses tempos, a liderança se escondia, criando espontaneamente pura simplicidade. A pura simplicidade ainda não se gorara, de modo que a miríade de seres permanecia em abundante tranquilidade.Mas a sociedade acabou por deteriorar-se. Já ao tempo de Fu Xi se verificava o despontar de um esforço deliberado; todos estavam à beira de deixar a sua mente de inocência e começavam a perceber conscientemente o universo. Suas virtudes eram complexas, mas não unificadas.Pelos tempos em que Shen Nung e Huang Ti governavam a terra e faziam calendários para estar de harmonia com o ying e o yang, todos eram probos e, em consciência, suportavam o peso de ver e escutar. Eram, por isso, ordeiros mas não harmoniosos. Depois, na sociedade dos tempos da Dinastia Shang- Yin, as gentes chegaram a um ponto em que desejavam coisas e coisas lhes apeteciam. E, assim, foi a inteligência seduzida pelas coisas exteriores.E a vida essencial perdeu a sua realidade.

Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

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