h - suplemento do hoje macau #63

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h ARTES, LETRAS E IDEIAS PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2751. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE A SAGRADA PERSPECTIVA

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Suplemento h - Parte integrante da edição de 7 de Dezembro de 2012

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PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2751. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

A SAGRADA PERSPECTIVA

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VER é recor-dar e fazer é compre-ender. Mas

quando aquilo que se faz se relaciona com a beleza, já não se trata só do entendimento, está-se a tocar num mistério. O que tem o poder de nos arreba-tar todos os sentidos. Por isso quando o pintor Paolo Uccello (1397-1475), de olhos abertos na escuridão, cansados de olhar complicadíssimos po-liedros, a cabeça em maresia, conseguia, por fim, escutar os in-sistentes apelos de sua mulher que o chama-va para ir dormir, era com dificuldade que se rendia. Enquanto cruzava a ombreira da porta ela recordava-se de o ouvir murmurar: “O che dolce cosa è questa prospettiva!” Referia-se a uma for-ma de representação nova cujo poder de sedução ultrapassava o simples mostrar al-guma coisa, ela como que sugeria um pensa-mento. Certamente a ideia de capturar a ilusão dos objectos visíveis em perspectiva, através do desenho, era uma antiga ambição humana. A tradição chinesa da pintura, por exemplo, reconhece para isso três Distâncias – profunda, elevada e plana, que jogando com figuras de referência e espaços vazios criam a ilusão do es-paço tridimensional nas duas dimensões do suporte, em papel ou em seda. Antes do contacto com as formas de repre-sentação visual do Ocidente já existiam exemplos do uso da perspectiva linear não geométrica, como é o caso da famo-sa pintura de Du Jin, “Apreciando An-tiguidades”, dos fins do século XV. Mas a novidade daquilo a que se veio a de-signar como a intenção da perspectiva científica linear nem começa por ter uma origem bidimensional. Ela é, aliás, geral-mente atribuída ao escultor e arquitecto florentino Filippo Brunelleschi (1377-1446). E no texto mais antigo a codificar a perspectiva – “De Pictura” (1435-6) de Leon Battista Alberti (1404-1472), onde são identificados os co-fundadores do “novo estilo”, apenas é citado um pin-tor. Ao lado de arquitectos e escultores

Paulo Maia e CarMo

como Brunelleschi, Donatello, Lorenzo Ghiberti e Luca della Robbia estava o pin-tor Masaccio (1401-1428).

ADÃO E EVA CAMINHAM EM FLORENÇAA espantosa contri-buição de Masaccio pode ser observada em Florença, na cha-mada Capela Brancac-ci, pelo nome do seu fundador Pietro Bran-cacci, cidadão floren-tino que foi mercador, navegante e emissá-rio papal. Na capela, mandada edificar par-ta sepultura de seus familiares na igreja de Santa Maria del Carmine, o seu sobri-nho Felice di Miche-le mandaria fazer as pinturas a fresco das paredes. Para isso se-riam convocados três pintores. O primeiro a ser chamado teria sido Tommaso di Cristo-fano Fini conhecido como Masolino da Panicale (1383-depois de 1435), seguido de Tommaso di Ser Gio-vanni, que viria a ser conhecido como Ma-saccio, cujas pinturas estariam terminadas cerca de 1427. Poste-

riormente ainda lá trabalharia Filippino Lippi (c.1457-1504). Logo à entrada da capela, à mão esquerda do visitante está uma pintura de Masaccio que ilustra o episódio bíblico da Expulsão do Paraíso. Nela pela primeira vez estão representa-das duas figuras ligeiramente distorcidas pela emoção do momento, com múscu-los visíveis em acção, e que caminham. Do lado simetricamente oposto, estão outra vez as duas figuras, mas agora num momento anterior à Expulsão do Paraí-so, na altura da Tentação. Estão mode-ladas de modo estático, elegante e com economia de gestos por Masolino. A repetição do par não é um acaso e serve um propósito retórico. O que aquelas figuras faziam ali, na entrada e na saí-da da capela, era uma advertência e uma promessa: a memória do paraíso perdi-do era esperança no paraíso a alcançar. O pecado que estão prestes a cometer é “felix culpa” que promete a salvação. E existe uma dignidade inegável nisso. A questão da dignidade humana estava no centro dos debates em Florença desde

Masaccio, Expulsão do Paraíso

A INVENÇÃO DA PERSPECTIVA

Na Expulsão do Paraíso de Masaccio estão pela primeira vez representadas duas figuras

ligeiramente distorcidas pela emoção do momento, com músculos visíveis em acção,

e que caminham. Do lado simetricamente oposto, estão outra vez as duas figuras,

mas agora num momento anterior à Expulsão do Paraíso, na altura da Tentação.

Estão modeladas de modo estático, elegante e com economia de gestos por Masolino.

Masolino, Tentação

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o tempo em que Dante Alighieri escre-vera “De Monarchia” e colocara Adão como o herói dessa dignidade irredu-tível. Entregues a si mesmos, Adão e Eva seriam expulsos do Paraíso e desde então estão condenados a caminhar no Mundo. A tragédia da separação que os afasta da contemplação face a face com o seu criador leva-os a deixar a Eternida-de e dará origem ao Tempo e à História. Mas voltando o olhar, inevitavelmente, para a primeira pintura de Masaccio, o visitante podia experimentar uma im-pressão de estranheza proveniente da se-melhança, da proximidade à natureza, o que reforçava o argumento. Aquelas figu-ras, como nós, caminhavam. E esse seria talvez o primeiro passo de um caminho que levaria muito longe. Característica marcante dessa nova maneira de fazer é o facto de as figuras serem outra vez mo-deladas a partir da natureza como era na Antiguidade. E esse andar para a frente – criando novas sínteses, olhando para trás para o que fora feito na Antiguidade Clássica, faria um caminho. Caminhar e pensar.

DO USO DA NATUREZA PARA CONTAR UMA HISTÓRIAQuerer pensar de maneira elegante e engenhosa sobre um problema pode ser comparado, numa imagem, à figura de uma pessoa que dança. A projecção do pensamento na sua fronteira mais próxi-ma, o corpo, com uma intencionalidade. O nosso tempo assistiu com estupefacção à arte de um cantor bailarino que inven-tou um passo de dança que no movimento de caminhar para trás sugeria que andava para a frente. Não às arrecuas e de modo inseguro mas com a elegância de um ar-gumento surpreendente. A antiga figura da Gradiva, “a que caminha para a frente” com o pé esquerdo já avançado e o direi-to dispondo-se a segui-lo, só tocando o chão com a ponta dos dedos enquanto o peito do pé e o calcanhar se en-contram quase na vertical dava a dupla impressão de ligeireza do caminhar vivo e a segurança que inspira um espírito em re-pouso. Como Sigmund Freud observou “a sua graça particular vem dessa maneira de planar sobre o chão enquanto o pisa com firmeza”. Querer captar essa oscilação que sugere um pensamento era a ambição dos que buscavam a perspectiva. E para isso se aproximavam da na-tureza. Na pintura da Itália, ao contrário do Norte da Europa onde se acentuava a intenção expressiva, seguia-se o clássico modelo dos antigos Romanos que distinguiam entre “ritare”, a cópia simples da natureza, e “imitare”, a cópia selectiva esco-lhendo o belo. Nunca um duplo do real mas um desejo de dar expressão visível a formas per-feitas idealizadas.Pode a contemplação da natu-reza indicar o futuro? Os auspí-cios da Roma antiga desenha- Du Jin, Apreciando Antiguidades

vam no céu com um bastão a figura de um quadrado ou um rectângulo e espe-ravam para ver como por lá passavam as águias. Segundo a direcção, o número de águias e a sua velocidade, o áugure po-dia fazer esta ou aquela interpretação do

que era dito por esses signos. A essa figu-ra desenhada no céu, os antigos chama-vam o templum, palavra que, em diversas línguas, está na origem de templo, edifí-cio público destinado ao culto religioso. Leon Battista Alberti, de modo análogo, também pensava numa figura geométri-ca como uma fronteira para delimitar o olhar. Mas com uma diferença. Explica-va que ao traçar um quadrilátero sobre a superfície a pintar se abre uma janela, se estabelece esse limite a partir do qual – e não através do qual, se pode contemplar a história, fundamento da autonomia da representação. Não se trata, portanto, de uma janela para o mundo mas de uma ja-nela para a história. E a história que se quer contar pode ser mostrada de forma sofisticada como quer a arte da retórica. Alberti também via uma analogia entre a arte da retórica e a arte da pintura como antes, na Antiguidade, Aristóteles, Cí-cero e Quintiliano entre outros. Como quando Plínio, o Velho falava, no século primeiro, da pintura que trabalha “pro-metendo aquilo que não mostra”. Ou como refere Plutarco citando Heraclito nas profecias délficas de Apolo: “ela não diz nem esconde mas dá um sinal”.

ANUNCIAÇÃO, A IMAGEMQUE MOSTRA O QUE NÃO SE PODE VERO primeiro sinal da presença do Deus que caminhou entre os homens foi, compreensivelmente, motivo de assom-bro e permanente tentativa de desvelar um mistério que afinal não se desvela. Esse sinal está contado em apenas doze versículos do Evangelho de Lucas (26 a 38), santo patrono dos pintores, que a tradição mostra como pintor, em pintu-

ras dos séculos V-VI, pin-tando Maria. É o conhecido tema da Anunciação, e foi o veículo privilegiado para a expressão da perspectiva nas suas possibilidades de representação. E, de facto, como escreveu Erwin Pa-nofsky em 1927, a primeira pintura europeia em pers-pectiva “forçando as per-pendiculares do plano de base a convergir num único e mesmo ponto” foi uma Anunciação pintada numa parede em Siena em 1344, por Ambrogio Lorenzetti. Se, datados do século II, já se podem ver imagens da Anunciação nas catacumbas de Roma, é nela que, pela primeira vez, estão figura-dos os elementos simbó-licos que permaneceriam, juntamente com outros que são a expressão individual do pintor na sua tentativa de dizer o indizível. Perma-neceriam um anjo e uma ra-

O principal aliado dos tiranos é a cultura da aceitação.

Filippo Brunelleschi, Esquisso do Dome de Florença

Na China já existiam exemplos do uso da perspectiva linear não geométrica, como é o

caso da famosa pintura de Du Jin, “Apreciando Antiguidades”, dos fins do século XV

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pariga jovem envolvidos numa conversa secreta, invisível que, de alguma forma, o anjo tenta tranquilizar.O cardeal teólogo Nicolau de Cusa que nasceu no mesmo ano de Masaccio (m. em 1464), toma a pintura como modelo e define o pensamento como mens e a sua actividade como mensurare. A afinidade com a arte da pintura pode ser observada quando o termo é retomado pelo pintor Piero della Francesca (1415-1492) ao es-crever o seu tratado sobre perspectiva, “De Perspectiva Pingendi”, onde usaria o termo commensuratio, “quale diciamo prospettiva”. Em “De Docta Ignorantia” (1440) Nicolau de Cusa fala da impossi-bilidade da inteligência conhecer Deus, incomensurável a qualquer medida e le-gitimidade do conhecimento humano que é relativo. Porque o Universo visível é o desenvolvimento (explicatio) imperfei-to de Deus, a disposição na multiplica-ção daquilo que em Deus está presente numa indissolúvel unidade (complicatio). A geometria ofereceria a via mais segura através da qual se poderia apreender o in-finito não ultrapassando o limite do inco-mensurável. E o enquadramento, o ponto de fuga e o ponto de distância eram os instrumentos da linguagem da perspecti-va, ideais para figurar o que não podia ser representado.

A LINGUAGEM DO IMPREVISTOSó por intuição se pode discernir Deus, explicava Nicolau de Cusa em “Coinci-dentia Oppositorum”. E na “storia” da Anunciação realizavam-se várias coin-cidências opostas. Desde logo o tema era a antítese da Tentação de Eva, cujo nome é o exacto oposto de Ave, que é a saudação do anjo. O uso de objectos extravagantes respondia aliás, de modo engenhoso, ao método da busca da verdade espiritual, que era o objectivo a que se destinavam aquelas pinturas. Estas imagens obrigavam o observador a afastar-se do significado literal, o que mostra como os pintores sabiam que não estavam a fazer obras realistas nem ícones que exigiam a adesão completa do observador/crente. Como quando Piero della Francesca colocou um mis-terioso ovo de avestruz sobre a Virgem, isso era uma alusão a um antigo mito medieval que contava como a avestruz fertilizava o ovo apenas o expondo di-rectamente ao sol sem necessidade do masculino, um símbolo da Imaculada Conceição. Mas há também o miste-rioso e desproporcionado caracol que Francesco del Cossa pintou na margem debaixo da Anunciação (cerca de 1470-72) de Ferrara. Misterioso entre tantos e para o qual algumas explicações se pro-põem. Desde símbolo da Ressurreição, porque o caracol se pode libertar da sua casca, mas também exemplo do tem-po lento da acção de Deus na Criação humana desde Adão a Cristo ou ainda, também, figura da Imaculada Conceição pois pensava-se ser o caracol fecundado pelo orvalho. Porém, é de notar que o facto de estar pintado claramente sobre o quadro quer dizer que o pintor queria

Quando Piero della Francesca colocou um misterioso ovo de avestruz sobre a Virgem, isso era uma alusão a um antigo mito medieval que contava como

a avestruz fertilizava o ovo apenas o expondo directamente ao sol sem necessidade do masculino, um símbolo da Imaculada Conceição.

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que se percebesse que era uma pintura que ali estava – não era um facto real, mas a representação de algo que ocorre-ra cerca de mil e quinhentos anos antes.Filippo Lippi (1406-1469) é o autor de uma das mais extraordinárias figu-rações da Anunciação (Antes de 1460, 68,5x152 cm, National Gallery, Lon-dres), na qual a pomba, que é uma reco-nhecida imagem do Espírito Santo, vem descendo uma escada (clímax, em gre-go), situada no centro da composição, dentro de uma porta em direcção a Ma-ria deixando atrás círculos concêntricos que são mais pequenos à medida que se aproximam do objectivo. Se Maria quer dizer mar – e o efeito é semelhante à queda de uma pedra na água que, per-turbada, produz círculos – a beleza da metáfora também se alarga como um eco. Do bico da pomba saem raios de ouro, um dos quais vem bater perpendi-cularmente no ventre esférico da jovem. Tal disposição corresponderia, segundo Samuel Edgerton, à teoria óptica medie-val que dizia que o raio central do olhar é aquele que bate perpendicularmente a superfície do objecto que encontra. Esta teoria seria uma metáfora da Graça Di-vina, o olhar perpendicular, vertical, de Deus sobre a Terra Santa.

IMAGENS PARA A MEMÓRIAAristóteles designou o homem sábio com uma expressão geométrica - o homo quadratus, o que permanece fir-me e de uma só intenção. Vitrúvio, o arquitecto romano, cujo tratado seria editado pela primeira vez em 1486, mediu todas as partes do corpo hu-mano, numa racionalização geomé-trica dirigida ao mais irredutível da percepção humana. A consciência de si mesmo adequava-se ao observador da imagem em perspectiva, ao dar-lhe um lugar diante de uma história. E isso se pretendia que o observador levasse na memória. Uma figura convincente como um argumento. “Ut rhetorica pictu-ra”, sintetizava Poggio Bracciolini em 1452, e Alberti recomendava mesmo que os pintores se familiarizassem com poetas, retóricos e outros igualmente versados em letras. Quando os artistas de Florença, no sé-culo XV, codificaram a nova maneira de contemplar a história, a que chamaram a perspectiva regular, fizeram-na para poder dizer o indizível. Sabiam que não estavam a criar imagens realistas que seriam um duplo do mundo visí-vel. Mas usavam a ciência óptica num processo que reflectia a perfeição das relações geométricas e das proporções que se encontra na natureza. Que en-tendiam como a manifestação do Espí-rito Criador, ou seja de Deus. Era uma forma de fazer ver a sabedoria e a graça divinas. Mas eram imagens que preten-diam capturar a atenção do espectador. Para isso procuravam a beleza das for-mas, seguindo a ideia de Platão de que “a beleza é o esplendor da verdade”. O que buscavam já tinha sido formula-do cerca do ano 500 por Dionísio, o

Pseudo Areopagita naquela que de-signou como teologia negativa (ou apophasis): “o raio divino não nos al-cança a não ser que venha coberto de véus poéticos.”Em “Vite”, obra que Giorgio Vasari escreve cerca de 1550, utiliza pela primeira vez a palavra “rinascità” para designar a “boa arte” que é como ele classifica a arte produzi-da após o período medieval. Estava certamente familiarizado com uma conversa comprida ocorrida de noi-te, quando é maior o silêncio e os la-bores do dia estão terminados. Um homem chamado Nicodemos arris-ca-se a ir ter com uma pessoa que actuava à margem do discurso ins-titucional porque queria saber. Nes-sa vontade de conhecer arriscando a sua posição de “mestre em Israel”, como Jesus se lhe refere, surge a pa-lavra renascer. E a perplexidade de Nicodemos: “Como pode nascer um homem sendo velho? Poderá entrar segunda vez no seio de sua mãe e voltar a nascer?” Na história da noi-tada longa em que Paolo Uccello descobria a doçura da perspectiva, relatada por Giorgio Vasari, manti-nha-se a noite e a disponibilidade. Pintores que usavam a perspectiva sabiam que não estavam a traduzir a inteligibilidade da História huma-na, cujo sentido não era claro senão do ponto de vista da Providência. Se por vezes a noite se lhes alongava era, talvez, do espanto de descobri-rem um dispositivo que permitia ver o invisível.

Filippo Lippi, Anunciação

Francesco del Cossa, Anunciação

Ambrogio Lorenzetti, Anunciação

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(…) no modo como são apresentados à His-tória, estes proscritos, estes povos sem História marcham frequentemente nos desfiles de uma mo-dernidade secular. Quando chegam às placas que assinalam o progresso, são despojados dos seus relatos e tradições; já não são escondidos da História, mas entretanto foram transformados em figuras espetrais, testemunhas transparentes do triunfo mundano de uma modernidade capi-talista e secular.

Homi K. Bhabha

A História da fotografia está inti-mamente relacionada com a de uma modernidade específica, no seio da qual as convenções

de representação refletem e avaliam identidades de um modo discursivo. Ansiosos por inscrever África nos siste-mas de representação criados pela era industrial, pelos seus prolongamentos imperialistas e pelas suas tecnologias de abstração da realidade, os explora-dores, etnógrafos e artistas europeus transmitiam quase unanimemente, nas primeiras fotografias a preto e branco, o relato de um povo com um passado a desvanecer-se e sem lugar no presente, a não ser como objeto da «benevolente» arte europeia.Estes antigos trabalhos europeus mos-tram um povo que não estava preparado para a câmara – um povo cujo «primiti-vismo» é a outra face, o «outro» relati-vamente à modernização europeia e às noções de progresso científico.Fotografados em ambientes bucólicos, onde quase parecem intrusos face à mo-numental beleza da natureza, ou prepa-rados para desempenhar os seus cultos e danças rituais à vista dos seus benfei-tores e detratores, os africanos surgem

A FOTOGRAFIA COLONIAL E OS PROSCRITOS DA HISTÓRIA

ÁFRICAAwAm AmkpA

em estados de perpétua reificação. Nas suas imagens figuram um futuro sem voz e a marcha progressiva da História, um destino em que estará ausente qualquer papel na modelagem das excitantes con-venções de representações que se apro-ximam, prometidas pela fotografia. A câ-mara fotográfica, enquanto tecnologia da era industrial e colonial, tornou-se assim uma ferramenta tranquilizadora, ao apre-sentar uma interpretação naturalista do

povo africano como um subconjunto da humanidade, inferior aos seus equivalen-tes europeus. A escolha dos fotografados e o modo de os compor e contextualizar constituíam uma retórica de imagens que desculpabilizava a escravidão e a coloni-zação. Essas imagens acabavam em pos-tais e pósteres que vincavam as aventuras dos exploradores e administradores colo-niais, arriscando as vidas pelos projetos europeus de civilização da África. Os

olhares eurocêntricos de inúmeros «nar-radores experientes» e instituições con-temporâneos sustentaram as estruturas epistemológicas que continuam a fazer de África um lugar pré-moderno ou um objeto das interpretações ocidentais e imperialistas do progresso.Contudo, não foi preciso esperar muito para que os próprios africanos começas-sem a utilizar a tecnologia e as histórias da sua reificação para comporem os seus relatos, funcionando assim como agen-tes de um mundo histórico diferente, colorido por modernidades múltiplas. Os fotógrafos africanos tinham herdado modelos para as representações fotográ-ficas, contextualizados por arquétipos coloniais que definiam a História como um paradigma em que os africanos esta-vam presentes mas que nunca poderiam escrever. As várias gerações de fotógra-fos africanos vistos nesta exposição, e em outras, oferecem uma reelaboração antimodernista e interrogatória dessas convenções na fotografia. Os seus tra-balhos são uma lufada de ar fresco para os modos e a linguagem das representa-ções que antes serviram para os afastar da História. A energia que anima as in-terpretações contemporâneas, tanto da fotografia atual como da antiga, impõe no meio uma incerteza deliberada e poli-ticamente lúdica. Estas reinterpretações sugerem a incompletude dos assuntos abordados na fotografia. Apenas ofere-cem significantes fragmentados de uma história e uma cultura polissémicas. De-safiam e problematizam noções de pro-gresso e de modernização, além de pro-cederem à pidginização da linguagem da fotografia, para assim produzirem, num processo política e culturalmente tenso, uma crioulização da identidade. Tam-

Os trabalhos destes fotógrafos representam uma violenta reinterpretação dos textos

fotográficos coloniais, reinterpretações essas que convidam os historiadores, os curadores e outros

a historiar os arquivos visuais das interações de África com a Europa.

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bém expõem a perversidade das figuras espectrais que dominavam os contextos da perspetiva eurocêntrica. A África de modernidades sobrepostas, de diferen-tes povos e linguagens do devir, parece exigir novos imaginários. Esses imaginá-rios emergem na arte de muitos africa-nos contemporâneos, que situam os afri-canos nas encruzilhadas das histórias do continente e do mundo. Já não privadas da História, essas reconstruções são sa-

turadas de relatos de passados e futuros incertos.Já muitos académicos e curadores escre-veram sobre as antigas fotografias, em grande parte etnográficas, mas é a sua reinterpretação actual que espicaçou a minha curiosidade. Caracterizado por um preto e branco encantador, opondo--se ao impacto da luz directa ou indirec-ta nos tons de pele e nos planos de fun-do dos fotografados, as 3000 (ou mais)

fotografias coloniais de africanos que eu recebi do meu amigo, o colecionador David Gelbard, inspiraram a exposição Africa: See You, See Me! Os meus alunos na licenciatura de Estudos Africanos e eu não pudemos evitar pensar que as preten-sões do artista ou do etnógrafo em aceder à autenticidade «primitiva» poderiam ser ilusórias. Talvez os «nativos» se pu-sessem deliberadamente uma cortina de opacidade para as fotografias amplamen-

te celebradas como verdadeiras repre-sentações daquelas pessoas «estranhas». Ao mesmo tempo que alguns fotogra-fados posavam como lhes era indicado, outros projetavam um «véu» de reserva discernível, ou mesmo dissimulação. E se os «nativos», na sua imobilidade, trans-mitissem ao etnógrafo relatos incomple-tos e distorcidos de modo a satisfazer as

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MUSEU DE ARTE DE MACAU ATÉ DIA 17 DE FEVEREIRO DE 2013

expectativas dos próprios registadores? O que se escondia por trás desses relatos e onde está arquivado? Essas partes em falta ajudariam os africanos a reinventar-se? Se a hereditariedade e o ambiente não de-finiam a individualidade e a História africa-nas, como exigiam as convenções dos tem-pos coloniais, quais eram, e onde estavam, os recursos com que captavam a natureza, a cultura e as suas diferentes sociedades? As fotografias facilitam perguntas e respostas relacionadas com estes assuntos, e, como tal, complementam o tesouro por explorar de uma literatura interdisciplinar que reve-ja a taxonomia dos Estudos Africanos. Os meus alunos e eu reparámos que, nas oca-siões em que os africanos são convidados a participar na própria modernidade colonial que os envolve, a sua presença «demasiado presente» evidenciava uma ausência enquan-to indivíduos. As fotografias, na sua notável imobilidade, acenavam com significados que transcendiam os contextos que as continham. Elas codificavam subjetividades esquivas que escapavam às epistemologias, instituições e tecnologias das representações que, nos tempos coloniais, procuravam compreender, domesticar e estancar essas subjetividades. As fotografias tornavam-se tão importantes pelo que não diziam como pelo que transmi-tiam de um modo explícito. Com o tempo, as fotografias de artistas como Meissa Gaye, Seydou Keïta, Pa Ojeikhere e, mais tarde, Charlie Rangel, a par de outros fotógrafos mais velhos, inaugurariam convenções que desafiaram o naturalismo, desencadearam o realismo e ofereceram perspetivas pós-estru-turais de um povo em estados perpétuos de devir, para o qual uma fotografia é uma decla-

ração e uma História incompletas, um lugar onde se desencadeiam negociações e confli-tos entre ambientes e individualidades. Os trabalhos destes fotógrafos representam uma violenta reinterpretação dos textos fotográfi-cos coloniais, reinterpretações essas que con-vidam os historiadores, os curadores e outros a historiar os arquivos visuais das interações de África com a Europa.Se respondermos à incansável demanda de Édouard Glissant (1) de novos imaginários e textos que desloquem o nosso enraiza-mento numa História, as coleções de etno-grafias coloniais não estarão seguras. Com o olhar desprendido que Glissant defende, olhamos para as fotografias e questionamos as suas perspectivas vigilantes e as suas «ver-dades» colonizadoras. Os fotógrafos estão a indicar-nos o caminho com as suas obras; as instituições académicas e de curadoria têm de acompanhar estas energias artísticas, recontextualizando-as de modo a produzir novos textos, arquivos e metodologias para as imagens de uma História e uma política transcendentes que perpetuamente ques-tionem os contextos em que se compõem as «verdades». Tais reinterpretações farão com que os africanos sejam «proscritos» de Histórias estanques. Na verdade, e em certa medida, nós andamos a tentar fundar a fo-tografia africana com esses «proscritos» das Histórias convencionais, apresentando-os como momentos de compromisso entre go-vernantes e governados. A nossa esperança é de que surjam imagens de modernidades sobrepostas, democráticas e facilitadoras.

1 Glissant, E., Poética da Relação, trad. Manuela Mendonça, Porto Editora, 2011

Africa see you see me

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Será legítimo tomar este filme de Iwai Shunji como emblema possível do cine-ma que se fez no Japão na primeira déca-da do século XXI? Deixando espaço a ou-tras opiniões, talvez se trate de um exer-cício inconsequente. Um país que já teve, em contemporaneidade, autores como Kurosawa Akira, Ozu, Oshima e Mizo-guchi (últimos filmes respectivamente em 1993, 1962, 1999 e 1956), ou que mais tarde podia exibir, pelo menos, Imamura e Suzuki (últimos filmes respectivamente em 2002 e 2005), que tem hoje para ofe-recer? Um cinema cada vez mais insular, mais metido consigo, espelho perfeito de um país cada vez mais fechado e cada vez menos inovador – ao contrário do que acontece com a Coreia. Koreeda Hirozaku continua sujeito a um sentimentalismo estático; Kitano igual-mente trancado numa excentricidade estafada que faz lembrar um gin tónico feito com bom gin mas sem gás. Miike Takashi, o único realizador que parece exibir alguma fibra, e que mantém a pe-tulância e a atitude blasé que distingiu positivamente este cinema no passado, fechou-se num género pouco internacio-nal, o do filme de samurais (golpes magis-trais, contraste preciso entre a frieza da lâmina e o calor do sangue, Miike Takashi sabe exactamente o que está a fazer e este é o único entre os demais que não pare-ce bloqueado. Dele espero mais golpes, mais mortes, mais nervo e mais surpre-sas). O último filme de Shindo, Postcard,

só receberá um elogio entusiasta quan-do acompanhado de uma benevolência paternalista a propósito da sua idade (o exemplo de Oliveira não permite, no en-tanto, condescendências baseadas nesse critério). Okuribito, de Yojiro Takita, sus-citou um interesse cuja memória rapida-mente se desvaneceu. Iwai Shunji será demasiado pop e infanti-lóide nos seus retratos de adolescentes? Estou muito preparado para admitir aqui uma certa dose de dúvida ou para esten-der aos seus quadros aparentemente in-fantilóides e adolescentóides uma certa admiração. A sua pequena metragem Ari-ta, por exemplo, para além da sua imensa sinceridade, tem uma simplicidade incó-moda. Ocorre-me que estes filmes não são, afinal, feitos para adolescentes.Porque escolher All About Lily Chou Chou? Porque tanto faz? Este será o filme de Iwai Shunji em que mais me apetece acredi-tar, mesmo que nele persistam alguns dos tiques do cinema sobre jovens que outros apresentam. Nele há um espaço vazio esperado, um vácuo que é o vácuo da vida de algumas das personagens que se pretende ilustrar, e que é muito gran-de. Mas há um outro, um vácuo que é a distância criada pela obsessão por Lily Chou Chou, a cantora, autora e imagem da vertigem pop desesperada que alimenta o desejo aniquilador dos alunos da escola. Iwai Shunji, que neste filme se afasta dos aspectos mais delicodoces de Love Letter ou outros projectos em que se viu envolvido

em capacidades que não a de realizador, não parece estar preocupado em fazer--nos entender aspectos da sua violência e em preparar-nos o caminho para uma compreensão total.Por outro lado, os lugares comuns e as re-ferências musicais são demasiado banais para um realizador que se mostra tantas vezes acima do hábito neste tipo de fil-mes – Beatles ou Björk, John Lennon, ou, mesmo nos exemplos clássicos – Debussy e Satie. Este mosaico heterógeneo tem ângulos difíceis. Todo o episódio filmado em Okinawa (quase 20 minutos) é filma-do com câmara à mão com um imagem de vídeo amador, suficientemente crua para afastar espectadores formatados para um produto banal e comercial.Em Hana e Alice, um filme de 2004 que parece, a uma primeira vista, uma banal historinha sentimental entre um rapaz e duas amigas que por ele se apaixonam, os longos diálogos que aqueles entre si entretêm, a improbabilidade das suas ex-pressões e a rejeição de algumas fórmu-las mais estabelecidas do cinema japonês sobre jovens obriga-nos também a dar--lhe uma credibilidade. É uma credibi-lidade que dimana de uma indefinição, uma indefinição da mesma qualidade da que se liberta dos espaços onde es-tas histórias se desenrolam. Este não é o Japão das grandes cidades mas também não é o Japão rural, o Japão costeiro ou montanhoso mas antes uma espécie de suburbia de nada. Não é o Japão dos qui-

monos e dos jardins programaticamente odiados por Oshima, nem o Japão das espadas ou das suas expressões tribais, nem o Japão da alienação urbana nem tão pouco o das histórias sentimentais e, ou, familiares.Os seus filmes também são uma espécie de suburbia de uma cidade inexistente, limpa e anódina, em All About Lily Chou Chou por vezes de uma violência inesperada, sur-da e incompreensível. Ao invés da outra violência, extrema, a da crueldade da vida escolar japonesa, que já estamos à espe-ra e que não surpreende. Há uma surdez nestes bairros que é difícil de explicar e só há no Japão dos pais distantes e impoten-tes, no Japão das azáleas e dos rododen-dros e dos jovens entregues a si próprios e a uma sinistra e gigantesca indústria do desespero e da solidão cuja construção não pode ser concertada (música, manga, jogos de computador, internet). No mun-do japonês do entretenimento adolescen-te há produtos para todos os desesperos e para todos os desejos.O mesmo acontece em Suwaroteiru (Swallowtail Butterfly, de 1996), o filme futurista espécie de mistura de Blade Run-ner e Mad Max também de Iwai Shunji. Nele há uma violência que é óbvia a este tipo de conto mas há outra mais escondi-da que o espectador não japonês poderá ter mais dificuldade em perceber.Talvez o Kaiser tenha razão e eles tenham sido todos submetidos a uma lavagem ao cérebro.

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luz de inverno Boi Luxo

ALL ABOUT LILY CHOU CHOU, 2001, IWAI SHUNJI

P R I M E I R O B A L C Ã O

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De paradoxo em paradoxo, eis-nos num “mundo em que há cada vez mais e mais in-formação, e cada vez menos e menos sentido”, diria Baudrillard.

Indiferente às autofagias desta nossa mo-dernidade que, apesar de tudo, sempre vai mostrando que menos é mais (e o seu con-trário), há uma incansável massa informe que continua a adicionar nadas a uma imensa mon-tanha de vazio, e a anunciar com gravidade a generosa dádiva.

Nesta encenação de importâncias, quem se abstém do dízimo considera-se, contra qual-quer apelo, um proscrito, um pária condena-do a cirandar sem propósito pelos esconsos da “era digital” e sem media onde cair morto. Fe-lizmente, outros há que continuam indiferen-tes à febre. E, como é sabido, “silence speaks volumes”.

Em 2010, do nada apareceu uma cassete áu-dio (sim, aquele objecto de plástico no interior do qual se desenrola uma banda magnética de gravação de som) com uma capa cujo grafismo (a imagem de uma mulher sozinha numa praia, que parecia retirada de um qualquer poster es-quecido num sótão) acentuava a sensação de falta de sincronia entre o que vemos e o tempo em que estamos.

Tratava-se de “Jet Set Siempre No. 1”, de Clive Tanaka y Su Orquesta. Pelos dois lados da cassete azul dividiam-se equitativamente

próximo oriente Hugo Pinto

oito temas – quatro “For Dance” e outros qua-tro “For Romance” –, quarenta minutos num invólucro de mistério, sem referências quanto à origem do artista ou da música, adensando uma já de si espessa aura exótica e singular.

Nas várias publicações onde o correio dei-xou a enigmática encomenda, os que conse-guiram desencantar “walkmans” em condições partilharam maravilhados relatos de “des-coberta”, crónicas de uma música que com-pensava a nostalgia com “good vibes”, que ensaiava passos retro-futuristas no limiar do “kitsch”, ritmos disco, pausas baleares, “voco-ders”, letras simples de amor, tudo embebido num “lo-fi” umas vezes mais granulado, outras mais cristalino.

Um ano depois da cassete, haveria de sur-gir a edição em vinil de “Jet Set Siempre No. 1”. Logo de seguida, chegou a mais democrá-tica versão digital. No entanto, continuou a não haver a confirmação de quem é Clive Ta-naka ou se “Su Orquesta” é apenas um nome.

Pela página electrónica de Clive Tanaka (ou será “Clive Tanaka”?) somos levados a pensar que se trata de um japonês, mas neste universo nem tudo o que parece é.

Um rumor que entretanto surgiu e ao qual tem sido dada alguma consistência conta-nos que Clive Tanaka foi um “hikimori” (termo que designa os adolescentes japoneses que nunca abandonam os quartos, aí chegando

a ficar, por vezes, largos anos), residente em Hokkaido, e que agora se dedica a gerir um conglomerado industrial pomposamente cha-mado Tanaka Heavy Industries, LTD. Outros rumores, menos elaborados, definem Clive Tanaka como a ficção de um qualquer produ-tor. De Chicago, talvez. Mas... Isso interessa? Tanaka parece dizer “não”.

Depois do disco de estreia, os únicos sinais de vida do produtor e da “Su Orquesta” foram uma colaboração com o projecto Groundis-lava, de Los Angeles, no tema “TV Dream”, e uma ou outra “mix tape” de irrepreensível bom gosto (repletas de pérolas que, com mui-ta probabilidade, saíram de uma qualquer co-lecção de discos com residência japonesa). E mais Clive Tanaka não diz nem quer que se saiba.

“O fogo parece o destino final das biblio-tecas”, escreveu Enrique Vila-Matas, o catalão que nos deu essa encantadora antologia da “li-teratura do Não” chamada “Bartleby & Com-panhia”, feita dos que renunciaram à escrita para melhor a poderem afirmar: “Beckett diria que até as palavras nos abandonam e que com isso fica tudo dito”. Et voilà. É apenas elemen-tar que a música viva do silêncio.

“Jet Set Siempre 1º”Tall Corn Music, 2011Clive Tanaka & Su Orquesta

CASSETE CONTRA OS PIRATAS

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perspectivas Jorge rodrigues simão

C I D A D E S I N V I S Í V E I S

metrópolis

A ERA DAS MEGACIDADES

A ÁSIA terá mais de vinte das primeiras cinquenta cidades mundiais ordenadas pelo seu PIB no ano de 2025. No mesmo período, mais da metade das primeiras cinquenta cidades europeias sairão da lis-ta ora existente, o mesmo acontecendo com três cidades dos Estados Unidos.

As cidades de Xangai e Pequim, nes-te novo cenário, excederão as cidades de Los Angeles e Londres, e as cidades de Mumbai, antiga Bombaim, centro econó-mico e financeiro da Índia e tão impor-tante a Portugal nos séculos XVI e XVII e de Doha superarão as cidades de Muni-que e Denver.

As implicações dessas alterações se-rão profundas, quanto às estratégias a aplicar, tendo em vista o crescimento das empresas, relações económicas dos paí-ses e a sustentabilidade do mundo. Um dos exemplos mais relevantes da mu-dança global, manifesta-se na tendência acelerada para a urbanização, com a for-mação de cidades de grande dimensão e megacidades em todos os continentes, e em particular nos países em desenvolvi-mento.

As cidades desse tipo, têm a carac-terística de amontoarem enorme popu-lação, capitais, recursos e bens de toda a espécie e natureza. A transformação e densificação da população conduzem a uma transição urbana. Tal transição, está produzir-se com uma rapidez que põe à prova a capacidade de resposta, adapta-ção e inovação do ser humano. A popu-lação das cidades cresce anual e mundial-mente em cerca de sessenta milhões de habitantes.

A ONU designou de megacidades as urbes com mais de dez milhões de habi-tantes. O forte crescimento económico da China está a criar sérios e graves de-safios de política urbana. A migração em massa para as cidades acarreta a perda de terras aráveis, aumentando a procura de energia e recursos naturais, bem como acrescenta um novo problema a ser re-solvido em termos de política social, que é o da prestação de serviços sociais.

As cidades chinesas albergam no pre-sente cerca de seiscentos milhões de ha-bitantes, representando 45 por cento da população total do país, apresentando os Estados Unidos comparativamente mais de 80 por cento da sua população total. Assim, as cidades chinesas irão crescer

“The rise and decline of great cities past was largely based on their ability to draw the ambitious and the restless from other places. China’s cities are on the rise. Their growth has been fuelled both by the large-scale internal migration of those seeking better lives and by government initiatives encouraging the expansion of urban areas. The government hopes that the swelling urban populace will spend more in a more highly concentrated retail environment, thereby helping to rebalance the Chinese economy towards private consumption.”

Supersized cities - China’s 13 megalopolisesThe Economist Intelligence Unit 2012

muito mais no futuro próximo, e prevê--se que em 2025 acolham mais trezentos e vinte e cinco milhões de pessoas, o que significa que duzentas e trinta milhões de pessoas migraram da zona rural (campo) para a zona urbana (cidades).

A continuar a seguir a actual tendên-cia, a população urbana da China atingirá cerca de novecentos e trinta milhões de habitantes em 2025 e passará dos mil mi-lhões em 2030. A acelerada urbanização concorrerá para o crescimento do PIB, mas também acarretará sérios reptos. A procura de energia será mais do dobro da actual e a da água aumentará entre 80 a 100 por cento nas áreas urbanas.

A prestação de serviços sanitários e de educação aos novos habitantes, trará um encargo adicional às finanças munici-pais. A forma de urbanização escolhida, mais concentrada ou dispersa, poderão conduzir à perda de 8 por cento a 20 por cento das terras aráveis do país.

A propagação das cidades, com enor-mes “bidonville” de miséria, criminalida-de, marginalidade e exclusão social, além de excesso de poluição e congestão de tráfego, são alguns dos problemas que as cidades em todo mundo terão de fazer face. Será quase impossível os serviços municipais, e as infra-estruturas acom-panharem o ritmo de entrada de pessoas nas cidades.

As decisões que forem tomadas no presente pelos governos, determinarão se as cidades conseguirão suportar o cres-cimento no futuro. Tal problema, põe-se com maior acuidade na China e Índia. O mundo urbano está em mutação. As grandes áreas urbanas das regiões desen-volvidas, apresentam-se como gigantes económicos.

A metade do PIB global provinha de cerca de quatrocentas cidades situadas em regiões desenvolvidas do mundo, e cerca de duzentas cidades americanas produziam mais de 20 por cento do PIB global, há cinco anos. Actualmente, mais de metade do PIB global vem da Ásia.

O centro de gravidade do mundo ur-bano, está a deslocar-se para o Sudeste Asiático, fundamentalmente para a Chi-na, que nos próximos quinze anos, terá cem cidades com as características referi-das e que contribuirão com 30 por cento do PIB global. Ainda que o Sudeste Asiá-tico possa vir a ser a região de maior peso económico, tendo como líder a China, é de considerar a Índia que contribuirá com 3 por cento do PIB global e a Amé-rica do Sul com 4 por cento.

Um terço das grandes cidades situa-das em países desenvolvidos não perten-cerão ao grupo das primeiras seiscentas cidades no final de 2025, e uma em cada vinte das cidades dos países emergentes

têm tendência a desaparecer, igualmente desse grupo. No final desse ano, cerca de cento e quarenta novas cidades entrarão no referido grupo, sendo cem pertencen-tes à China.

O desenvolvimento e a implementa-ção de uma estratégia centrada nas eco-nomias dos países desenvolvidos e nas megacidades dos países emergentes, era algo lógico até ao presente, porque tal combinação contribuía com mais de 70 por cento do PIB global. As grandes cida-des dos países desenvolvidos podem vir a contribuir, em apenas um terço para o crescimento económico global até 2025.

Uma estratégia concentrada nessa combinação será deficiente para as em-presas que procurem crescer, sendo um erro pensar que as megacidades impul-sionaram o crescimento económico glo-bal nos últimos quinze anos. A maioria das megacidades, não cresceram mais rápido do que as economias dos países onde estão localizadas.

Um total de cerca de 580 cidades de média dimensão, com populações va-riáveis entre o milhão e meio e os dez milhões de habitantes, contribuirão em mais de 50 por cento para o crescimento económico global até 2025, em que parte dessa participação é retirada às megaci-dades.

É previsível que treze das cidades de média dimensão se venham a tornar me-gacidades até 2025, estando doze situa-das em países emergentes, à excepção de

Chicago, e sete serão chinesas. É previ-sível que as cidades de grande e média dimensão situadas nos países emergentes contribuam com mais de 45 por cento para o crescimento económico mundial até 2025.

A nível mundial, quatrocentas cida-des de média dimensão contribuem com cerca de 40 por cento para o crescimen-to económico global, ou seja, superior ao total dos países desenvolvidos e das megacidades dos países emergentes. O papel económico das cidades de gran-de dimensão altera-se em conformidade com a região e padrões futuros de cres-cimento.

O veloz crescimento da China é ali-mentado pelo contínuo desenvolvimento das suas megacidades e das novas em for-mação. A urbanização na Índia está numa fase inicial, enquanto as cidades de mé-dia dimensão, desenvolvem-se nos países sul-americanos de maior economia.

É irreal o mito do método científico como o único capaz de definir a forma de explorar os mercados urbanos dos países emergentes. Eleger os mercados adequados é um trabalho que exige a combinação da inteligência e estudo mi-nucioso do mercado, com a informação específica sobre cada empresa, tendo em vista determinar o potencial das diferen-tes geografias urbanas e o custo da sua penetração.

Uma estratégia baseada em “clusters de cidades” é uma opção atraente para muitas empresas, especialmente em gran-des países como a China e a Índia que têm importantes diferenças regionais nos seus mercados. Essa estratégia está a ser aplicada pela China, desde o início de 2009, em que o governo decidiu organi-zar as cidades em “clusters” para comba-ter a poluição atmosférica.

O crescimento económico mundial nos próximos quinze anos, irá ser impul-sionado por quarenta cidades que não são citadas amiúde. Essas cidades de di-mensão intermédia contribuirão com 40 por cento do crescimento económico mundial. As prioridades capitais dos pró-ximos anos, será o de conhecer os gostos dos consumidores nas cidades de média dimensão, desenhar estratégias para pe-netrar nos seus mercados e decidir como distribuir os recursos.

As empresas terão de formar executi-vos com os conhecimentos necessários para aproveitar o crescimento urbano global. Existem cidades nos países emer-gentes que estão a crescer rapidamente, e que podem atingir o limite de dez mi-lhões de habitantes a curto prazo. Essas futuras megacidades, podem contribuir em grande parte para o crescimento eco-nómico dos anos vindouros.

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C I D A D E S I N V I S Í V E I S

metrópolis Tiago Quadros*

LI XIAODONG pertence à nova geração de ar-quitectos chineses que desenha alternativas ao modelo de desenvolvimento da China actual. Ao procurar ler a densidade ontológica dos luga-res onde intervém, Li Xiaodong trabalha a partir de conhecimentos ancestrais, na procura de um novo respirar para a arquitectura contemporânea chinesa. Na verdade, a sua abordagem consiste em dispôr as coisas em contexto. O arquitecto chinês acredita que há sempre um “desafio espe-cífico para um local específico”. Embora a frase de Li Xiaodong traduza o óbvio, ela diverge da história que a enorme indústria de construção civil chinesa vem revelando nos últimos anos. Exemplo, disso mesmo, é o número de novas ci-dades planeadas em função de princípios econó-micos e métodos operacionais gerados, apenas, em torno da importância da velocidade.Confrontado com as enormes mudanças que o país atravessa, Li Xiaodong lamenta a falta de importância atribuída às características específi-cas do lugar em projecto. O arquitecto chinês defende que esse abandono decorre da súbita expansão da sociedade chinesa. Com efeito, as mudanças drásticas em torno de valores culturais e estéticos, deixam uma geração de arquitectos chineses sem tempo e sem memória.Para Li Xiaodong, uma tentativa de reconciliação e resolução deve começar com os arquitectos a tornarem-se conscientes dos desafios que um projecto impõem através da análise da paisa-gem, dos seus recursos naturais, bem como das especificidades culturais das populações locais. Li Xiaodong refere-se a uma “essência espiritual” do Lugar. O Lugar, cada lugar, não é um espaço in-diferenciado, existem pontos singulares em cada sítio que lhe dá origem, que são identificados de modos muito diversos. Este põe sempre em rele-vo as qualidades preexistentes, as condições que necessitamos para a concepção de um facto urba-no singular, que pelas suas próprias características simbólicas afirma a sua identidade. Segundo Li Xiaodong, a Arquitectura deverá ser, pois, funda-da em continuidade com o que a tradição de cada Lugar configurou no desenrolar da sua história particular. “Um Lugar tem as suas raízes e a sua história; está ancorado no tempo e num ponto preciso da Terra. Um Lugar tem a sua abóbada, o seu Céu e, talvez, a sua estrela. Ao construir nós fi-xamos relações espaciais entre a Terra, o Céu e o Tempo.”1 A este propósito, refira-se Christian Norberg-Schulz que defende que a vida huma-na não pode desenvolver-se em qualquer parte, porque esta pressupõe um espaço que seja na realidade um pequeno cosmos, um sistema de lugares, para o qual é necessário que captem o seu “genius”2. Neste sentido, Li Xiaodong desen-volve projectos, sobretudo, em áreas rurais, na sua maioria financiados por fundações privadas. Esse é o caso do projecto da Escola-Ponte Pin-ghe County. Concluída em 2009, na Aldeia de Xiashi, Província de Fujian, trata-se da ligação entre dois monumentos que representam a histó-ria local: dois Tulou do século XVII. A província de Fujian tem mais de três mil destes edifícios,

A ESCOLA-PONTEagora classificados como Património Mundial da UNESCO. Suportada por dois pilares de betão, a estrutura é constituída por duas vigas de aço triangulares que atravessam um curso de água. No centro da estrutura proposta, Li Xiaodong organiza as ins-talações da escola. Em ambas as extremidades, duas salas de aula ajudam a ancorar a estrutu-ra central do objecto, surgindo no centro uma pequena biblioteca municipal. Embora seja pos-sível utilizar o edifício como ponte, uma passa-gem estreita em suspensão sob a estrutura de aço oferece uma alternativa mais directa, unindo os dois Tulou. O invólucro do edifício é constituído por peças de bambu, conferindo ao objecto uma aparência de sentido abstracto e misterioso, per-mitindo, ao mesmo tempo, uma circulação de ar mais franca. A relação cromática entre o bambu e a terra local ajudam à integração do edifício no contexto em que se insere.Li Xiaodong formou-se em 1984, na Universida-de de Tsinghua, em Pequim. Entre 1984 e 1993, Li Xiaodong residiu na Holanda, onde trabalhou com Peter Schmid e Tzonis Alexander, tendo concluído o seu Doutoramento na Universidade de Tecnologia de Delft/Eindhoven. Em 1997, Li Xiaodong fixou residência em Singapura para en-sinar na Universidade Nacional de Singapura. Em 2004, foi distinguido pela UNESCO com uma comenda para a inovação. Em 2005, Li Xiaodong regressou a Pequim para ensinar história e teoria da arquitectura na Universidade de Tsinghua. Em 2009, Li Xiaodong viu o seu trabalho ser reconhe-cido com o prémio Architectural Record Emer-ging Architecture.Com o projecto para a Escola-Ponte Pinghe County, Li Xiaodong procurou dar vida à comu-nidade local, que sofre de um êxodo rural gra-dual. Para Li Xiaodong, esta Escola-Ponte não é apenas um símbolo de reunião e encontro entre as duas partes da Aldeia, mas sobretudo um lu-gar que coloca a criança no centro das atenções. Alguns arquitectos chineses, conscientes dos efeitos que a rápida expansão na China está a causar, procuram referências culturais nos deta-lhes da arquitectura tradicional e vernácula. De entre todos, Li Xiaodong é aquele que, de forma mais persistente, procura um sentido constru-tivo referido a um contexto particular. E é em cada procura, cada nova procura, que um novo carácter expressivo – de certo integrado com as caterísticas do Lugar, com os seus valores e com a Natureza – nasce.

*Arquitecto, Mestre em Cor na Arquitecturapela Faculdade de Arquitectura da UniversidadeTécnica de Lisboa

1 - VON MEISS, Pierre (1990). Elements of Architecture – From Form to Place, Londres: E & FN Spon Ed., p. 135.

2 - NORBERG-SCHULZ, Christian (1975). El Significado en Arquitectura, in Charles Jencks & George Braid, El Significado en Arquitectura, Madrid: Hermann Blume Ediciones.

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gente sagrada José simões morais

O L H O S A O A L T O

HUI NENG

惠能 NÃO É preciso saber ler ou escre-ver para se ser, um ser desperto e eles andam entre nós ajudando--nos, mas porque nós lá não esta-mos, não os vemos. O que fazem, quem são e o que falta para os ver?Hui Neng (638-713), com o ape-lido Lu, nasceu em Xinxing, na província de Guangdong, duran-te a dinastia Tang. O pai morreu muito cedo e por isso Lu nunca estudou, tendo que cuidar do sus-tento dele e da mãe. Ainda rapaz, um dia no mercado onde vendia lenha, ouvindo ser re-citado um mantra, escutou a frase: “Deixa a mente vaguear livremen-te, sem se quedar em algo” e logo ali se fez Luz. Inquirindo o mon-ge sobre que mantra era aquele e onde o poderia aprender, soube ser do “Sutra Diamante” e quem lhe poderia dar os ensinamentos era o Quinto Patriarca (Wu Zu), que se encontrava no Mostei-ro de Dong Chan, na província de Hubei. Logo ali decidiu ir até esse mosteiro, mas antes de em-preender a viagem, providenciou alguém para tratar da mãe, deixan-do-lhe os proventos necessários e só depois se meteu a caminho.No mosteiro encontrava-se o Quinto Patriarca que, após uma breve conversa, o aceitou, apesar de não ser monge. Deixou-o ficar como criado na cozinha.Um pouco mais de meio ano pas-sara e no mosteiro preparava-se a sucessão de Hong Ren (602-675), o Quinto Patriarca. Todos os monges traziam como certo que Shen Xiu, o encarregado do mos-teiro e o mais catedrático de todos eles, seria o escolhido.Mas tal não aconteceu, já que Shen Xiu ainda não se tinha des-pido do material e como espelho projectava o pó. Ao contrário, Hui Neng advogava que, se tudo é vazio, onde pode haver pó?!Palavras tão sapientes de quem não tinha estudos, mas vivia pela meditação e atingira, fora da trans-missão dos textos, a iluminação.Prevendo a revolta no mosteiro, ao se saber que a escolha fora para Hui Neng, um mero criado para os sapientes monges, o Quinto Patriarca acautelou a divulgação do seu sucessor. Transmitiu-lhe à noite no seu quarto o dharma e entregou-lhe o recipiente e o manto, símbolo material da posi-

ção de Patriarca, o topo da hierar-quia budista.Hong Ren, como Quinto Pa-triarca, ao passar-lhe o manto e o dharma, símbolos da matéria e espírito transmitidos desde o Pri-meiro Patriarca, Bodhidharma, avisou-o para os perigos de mor-te que corria se alguém soubesse que ele os tinha consigo, pois não pestanejavam em matá-lo para o roubar. Aconselhou-o a caminhar para Sul, dia e noite, sem parar até encontrar um lugar chamado Huai e daí procurar o povoado de Hui, onde devia permanecer escondido por 15 anos. As inúmeras peripécias da vida de Hui Neng, já como Liu Zu, o Sex-to Patriarca e Guardião do Dhar-ma, que não sabia ler nem escre-ver, foram ditadas pelo próprio ao seu discípulo, Fa Hai, que compi-lou ‘Tanjing’. Este livro tornou-se no “Sutra de Hui Neng”, o único Sutra que não é proveniente dos Sermões do Buda Sakyamuni.Foi com Liu Zu que se deixou de fazer a transmissão dos bens ter-renos, como o manto de Bodhi-dharma e o seu recipiente para a recolha de comida e em função de onda no estar, configurado pela Geometria do Sagrado, é revela-do o caminho dharmaparyaya – a transmissão fora dos textos. A cegueira do indivíduo, com que o ser humano se deixa guiar atrás de raciocínios lógicos e científi-cos, está na ausência do espírito com que olha/usa a matéria. É pela inteligência do espírito (intuição), a estratégia no enquadrar o espa-ço que englobamos, e não pela intelectual, onde apenas contam as formas e suas relações, que di-ferencia o nosso pensar. Não inte-ressa o que pensamos, mas como pensamos. E ao chegar ao vazio, estamos no UNO, a Natureza na sua essência.O Budismo Chan foi transportado para o Japão onde é conhecido por Budismo Zen. Hui Neng está ao mesmo nível de importância de Lao Zi (Láucio) e de Kong Fu Zi (Confúcio), fazendo entre eles o círculo mais importante de sábios da China. Em Macau, a estátua de Hui Neng encontra-se no templo de Hong Chan Kuan, mais conhecido por Hong Kung Miu, situado no Lar-go do Pagode do Bazar.

O SEXTO PATRIARCA DO BUDISMO NA CHINA

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L E T R A S S Í N I C A S

HUAI NAN ZI 淮南子 O LIVRO DOS MESTRES DE HUAINAN

Se queres saber a via do céu, observa os ciclos sazonais.

Huai Nan Zi (淮南子), O Livro dos Mestres de Huainan foi composto por um conjunto de sábios taoistas na corte de Huainan (actual Província de Anhui), no século II a.C., no decorrer da Dinastia Han do Oeste (206 a.C. a 9 d.C.).Conhecidos como “Os Oito Imortais”, estes sá-bios destilaram e refinaram o corpo de ensina-mentos taoistas já existente (ou seja, o Tao Te Qing e o Chuang Tzu) num só volume, sob o patrocínio e coordenação do lendário Príncipe Liu An de Huainan. A versão portuguesa que aqui se apresenta segue uma selecção de extrac-tos fundamentais, efectuada a partir do texto ca-nónico completo pelo Professor Thomas Cleary e por si traduzida em Taoist Classics, Volume I, Shambhala: Boston, 2003. Estes extractos en-contram-se organizados em quatro grupos: “Da Sociedade e do Estado”; “Da Guerra”; “Da Paz” e “Da Sabedoria”.O texto original chinês pode ser consultado na íntegra em www.ctext.org, na secção intitulada “Miscellaneous Schools”.

DO ESTADO E DA SOCIEDADE – 26

O Tao é misterioso e silencioso, sem aparência ou modelo. A sua dimensão é infinita, a sua pro-fundidade impossível de medir. E, no entanto, participa no desenvolvimento humano apesar do conhecimento ordinário não o atingir.Na antiguidade, quando Shennong, “O Génio Agrícola”, governava a terra, o seu espírito não fremia no seu peito, a sua sabedoria não era usada para o expansionismo. O seu coração era bondoso e sincero.As doces chuvas vinham a tempo e os cinco cereais floresciam. Havia crescimento na Primavera, maturação no Verão, colheita no Outono e armazenamento no Inverno.Havia relatórios mensais e considerações atempadas. No final do ano os frutos do labor eram apresentados e as colheitas de cada cereal eram saboreadas nas respectivas estações.Sob o cuidado imparcial do seu líder ilumi-

nado, o Génio Agrícola, o povo era simples, directo e honesto. Obtinham bens suficientes sem contenda; realizavam o seu trabalho sem magoarem seus corpos. Confiavam no sustento do céu e da terra e os harmonizavam.Assim, a autoridade era severa, mas nunca testada; os castigos estabelecidos, mas nunca aplicados; as leis simples em vez de excessi-vamente elaboradas.Por isso, o reinado de Shennong foi um rei-nado de génio.

* * *

Aqueles que compreendem o Tao não se centram apenas em si próprios e também se encontram ligados ao mundo.

* * *

Se queres saber a via do céu, observa os ciclos

sazonais. Se queres saber a via da terra, deter-mina que árvores lá crescem. Se queres saber a via dos homens, deixa que tenham aquilo que lhes apetecer.

* * *

Se esticares uma rede onde voam pássaros, só uma malha da rede apanhará um pássaro, mas se fizeres uma rede de uma só malha nunca apanharás um pássaro.

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Quando vais ao mercado pela manhã, vais a correr, mas quando passas pelo mercado à tarde passas devagar, pois a tua necessidade já lá não reside.

Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

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