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ARTES, LETRAS E IDEIAS h PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2501. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE CARLOS MARREIROS O ARQUITECTO EM LUANDA E EM PEQUIM NUNO CALÇADA BASTOS

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Suplemento h - Parte integrante da edição de 25 de Novembro de 2011

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hPARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2501. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

CARLOS MARREIROSO ARQUITECTO EM LUANDA

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Em que ponto está na sua vida profis-sional?Continuo a aprender embora a minha carreira já tenha trinta anos. Em Macau, vai fazer 28. Formei-me há trinta e qua-se dois, mas comecei a trabalhar desde logo com os meus professores. Andei a viajar pela Europa. Andei, só um vez, de inter-rail e o trabalho, para além da ex-periência e do salário, permitiu-me via-jar pela Europa toda. Fiz toda a Europa de Leste, passei o Muro em 78, resolvi a minha questão militar, norte de África quase todo, alguma América Latina, do norte. Isto foi até regressar a Macau. Na arquitectura, temos de estudar e não só através das revistas. Tem de se ir aos sí-tios, apalpar, compreender os materiais, perceber como é que as coisas funcio-nam. Ainda hoje faço isso, não chateio ninguém nem a família.

Mas esse olhar de arquitecto começou logo de novo, ou como foi?Eu, desde miúdo que desenhava muito bem e desde novo fazia decorações para o liceu. Normalmente, só no quinto ano é que os alunos eram convidados pelos finalistas a ajudar a fazer adecoração para a festa dos finalistas para angariar fundos para a passeata final. Eu, come-cei logo a fazer isso. É curioso, isto! Eu desenhava muito bem, era bom aluno a Matemática, era bom a Português mas não era muito dado a Letras. Os meus professores dividiam-se em dois grupos. Havia uns que diziam, ‘o Carlos Marrei-ros vai seguir a carreira de Belas-Artes, Arquitectura e Pintura’ e havia outros que diziam ‘o Carlos Marreiros vai para Direito’. Acho que venceram ambos. A arquitectura dá-me grande prazer. Além da parte inventiva, inovadora, cultural, da parte artística, há uma componente muito realista. Uma boa arquitectura resolve os problemas da funcionalida-de, as questões sociais, as valências, mas também tem um componente especula-tiva, identitária, experimentalista, con-temporânea.

Já conquistou essa liberdade...Sempre a tive, com maior ou menor grau. Por isso é que as pessoas dizem que aos 50 anos tenho muita obra. Não me queixo. Tenho muita obra. Mas po-dia ter muito mais. Há-de reparar que não tenho muitos prédios grandes, es-peculativos.

TENHO MAIS LIBERDADE EM PEQUIM DO QUE EM MACAU

EntrEvista por Carlos piCassinos

UM NOVO PASSO NA CARREIRA DE TRINTA ANOS ASSINALA

O FUTURO PRÓXIMO DE CARLOS MARREIROS. COM OBRA

PROJECTADA PARA O CENTRO HISTÓRICO DE PEQUIM E

PARA LUANDA, UM DOS MAIS CARISMÁTICOS ARQUITECTOS

LOCAIS EXTRAVA AS SUAS FRONTEIRAS HABITUAIS

RECONHECENDO, HOJE, NA CHINA O FULGOR CRIATIVO

E A INVENTIVA QUE A MACAU AINDA ESCAPA. APESAR DA

ABERTURA DA CIDADE AO MUNDO, DA SINGULARIDADE

DA SUA ARQUITECTURA E DOS NOVOS CASINOS DO

COTAI. NUMA ENTREVISTA DE UMA HORA, MARREIROS

RADIOGRAFIA OS NOVOS TEMPOS, O URBANISMO, O MODO

DE VIDA, O PATRIMÓNIO, A ESCOLA PORTUGUESA, E NO

FIM A SENSAÇÃO É A DE QUE UMA ANSIEDADE CÉPTICA

SUBSTITUIU O OPTIMISMO EXPANSIVO DOS PRIMEIROS

TEMPOS DA RAEM. “JÁ NÃO TEMOS MUITO TEMPO”, DEIXA

ESCAPAR A MEIO DA CONVERSA PORQUE HOJE “HÁ UMA

INCAPACIDADE” QUE TOLHE A ENERGIA DE QUEM QUER

PARTICIPAR NA COISA PÚBLICA E UMA INERCIA QUE

DECORRE DO MEDO DA CRÍTICA.

CARLOS MARREIROS, ARQUITECTO, COM PROJECTOS NA CAPITAL CHINESA E EM ÁFRICA

Mas gostava de ter ido para as gran-des escalas?Não, não. Fui sempre defensor do pa-trimónio dentro de uma certa escala. Não tenho nada contra a arquitectura em altura mas é difícil inovar em Macau dado o conservadorismo do promotor e não é agradável porque é um exercício chato fazer edifícios com T3 e T2, que é sempre igual e se quisermos inovar não é fácil. Tive sorte de ter creches, centros de saúde, escolas...

Equipamentos sociais...Sim, mas também isso depende da es-colha de cada um porque isso é mais fácil. Fazem-se três plantas e ganha-se bem porque mesmo mal pago, compen-sa. Fazer edifício com três andares mas com programas próprios dá muito mais trabalho.

Viveu também tempos de grandes mu-dancas. Vive-se agora uma certa ressa-ca da “starchitecture” e parece haver uma inclinação para uma arquitectura mais austera, mais contida, sustentá-vel. Pelo meno,s no mundo existe uma mudança de discurso, entre os novos, mais preocupados com a escala, a co-munidade, a proximidade, e menos com a espectacularidade.Mas eu acho que isso tem a ver com o facto do arquitecto ter ganho uma di-mensão de responsabilidade social...

Que não tinha...Que não tinha tanto, digamos assim. Há aquela ideia um bocado errada mas que foi um cliché: há trinta ou quaren-ta anos atrás, o arquitecto gostava de ser artista plástico quando conversava com os engenheiros civis, e depois era engenheiro civil quando falava com os colegas das Belas Artes. Havia este equívoco de que ou o arquitecto devia ser artista ou devia ser mais engenhei-ro. Eu pertenço a uma geração em que se assumiu a parte mais técnica, mais científica. Sou da reforma de 76. Ti-nhamos cadeiras iguais aos do Técnico, ou seja, os arquitectos tinham de ser mais engenheiros não deixando de ser arquitectos. Acho que o arquitecto não tem de morrer tísico ou ser atropelado. Por um lado, é preciso aprender mais sobre tecnologias, comportamento dos materiais, ou seja, fazer esforço para ser mais engenheiro para compreen-

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der a linguagem do engenheiro e vice--versa. Mas, Portugal nunca teve tantos e tão bons arquitectos como nos últimos trinta, quarenta anos. A prova é que, em dois anos, tivemos dois prémios Prit-zker. Para um país de dez milhões de habitantes, com os problemas que tem... Há excelente arquitectura em Portugal e já podemos dar-nos ao luxo de exportar boa arquitectura.

E em Macau?Acho que o lugar dos arquitectos portu-gueses é, extremamente, bom. Ao con-trário do que muita gente pensa a arqui-tectura que tem sido feita nos últimos anos, para nao irmos há cem anos, os anos sessenta desde o Chorão Ramalho ao Manuel Vicente, ao próprio Maneiras quando jovem arquitecto nos anos ses-senta tem trabalho de grande qualidade, e até aos dias de hoje, essa arquitcetura que ainda está em Macau é muito res-peitada pelos jovens arquitectos. Muita gente não sabe que de Hong Kong, da universidade, da sua faculdade de arqui-tecura, todos os seus alunos passaram por Macau. Os professores vieram cá não só para desenhar o património mas vieram ver o modernismo e também as tipologias. Por exemplo, a Escola Portu-guesa, inaugurada em 1969, é conside-rada pelos nossos colegas da Ásia como das melhores escolas de raíz europeia, portuguesa neste caso, com o entendi-mento do clima e sócio-cultura de Ma-cau, jamais feita nesta área do mundo.

Tem também agora trabalhos em Lu-anda e em Pequim, o que é uma novi-dade...Eu tenho muito trabalho na zona do sul, na regiao de Cantão. Fui convida-do, em Pequim, para fazer uma estrutura grande, em extensão, em Pequim, numa zona do centro histórico, em Huang Fu Jiang, perto da igreja jesuítica. O desa-fio é interessante porquanto é o centro historico e financeiro de Pequim, com cerceas baixas. É um edifício comercial, com escritórios, bancos, parque subter-râneo. Nao é equipamento cultural. E tem grandes preocupações ambientalis-tas. A primeira fase foi aprovada. Fico

feliz por me darem essa oportunidade por ser na capital e também porque Pe-quim é agora uma cidade que entrou nos roteiros do turismo arquitectónico. Os papas da arquitectura mundial estão lá e as pessoas já vão lá visitar. Pequim é Pequim e tenho orgulho neste facto. E o facto de ter bastante liberdade em fazer... Tenho mais liberdade em fazer arquitectura em Pequim do que em Ma-cau porque as pessoas ali estão abertas à inovação, aceitam discutir questões am-bientais, e deixam-nos fazer. Aqui, em Macau, já fiz bastante propostas para projectos do governo e ainda não con-segui incorporar estas ideias porque aca-bam sempre por dizer, ‘ai é mais barato assim’. Pois é mais barato agora mas em três anos estaria pago e o governo tem de dar o exemplo. Tenho esperanças que isto mude. As pessoas em Pequim estão muito mais abertas à contempora-neidade do que aqui em Macau. Mesmo Hong Kong cedeu um bocado neste as-pecto. Em Pequim, as pessoas arriscam. Gostam de correr riscos. Aceitam. Basta ver o que o Koolhaas fez em Pequim, ou mesmo o Estádio Nacional, se isso al-guma vez se faria em Macau. E, mesmo, culturalmente Pequim está muito mais interessante.

E, em Luanda, uma lança em África.Fui convidado para fazer uma urbaniza-ção e um hotel nos suburbios de Luanda. O cliente é de Hong Kong e tem inves-timentos com o Estado. Ele quer entrar neste mercado. Eu de Angola só conhe-cia Luanda. Quero fazer as coisas com a minha marca e respeitar a identidade local. Os grandes arquitcetos respeitam a socio-cultura e, tal como em Pequim, não farei o mesmo que faço em Macau porque ali é tudo diferente. É preciso compreender a realidade de Luanda. A parte velha é muito bonita. Estão a res-taurar muito bem não só património de 500 anos mas também o modernismo. Se fosse realizador inventava um guião a acontecer nos anos 50 só para mostrar aquela arquitectura! Luanda cresceu até ter mais de meio milhãode pessoas e, de repente, tem sete milhões. É uma cidade que está a fervilhar com construção.

“O lugar dos arquitectos portugueses Macau é, extremamente, bom. Ao contrário do que muita gente pensa a arquitectura que ainda está em Macau é muito respeitada pelos jovens arquitectos”

“As pessoas em Pequim estão muito mais abertas à contemporaneidade do que aqui em Macau. Mesmo Hong Kong cedeu um bocado neste aspecto. Em Pequim, as pessoas arriscam. Gostam de correr riscos. Aceitam.”

A dúvida sobre o destino da Escola re-side em quê?A Escola está situada naquele local que é o chamado corredor de segurança. O strip do tempo dos portugueses chama-va-se corredor de segurança. Começava no Hotel Lisboa até ao Sands, e no tem-po dos portugueses ia até ao mandarim e aí surgiram o Sands, o Wynn, o Galaxy, o L’Arc, o Landmark e isto era o corre-dor de segurança. Isto por um lado, por outro, a Escola dada a valia daquele lote não é fácil manter-se. Embora em termos pessoais eu gostava que aquilo preserva-do como está.

Na proposta de lei do património, creio que não surge classificada...Oxalá ficasse...

Acha que a SJM tem essa consciência?Provavelmente não tem, porque não é fá-cil as pessoas compreenderem que uma peça dos anos sessenta, moderna seja bonita. Há gente que olha e pergunta o que é que tem de bonito aquilo. Há gen-te licenciada, viajada que acha que aquilo não tem grande valor! Por isso, pedir a pessoas de casino que vejam naquilo es-pectacularidade, cultura arquitectónica não é fácil. Por outro lado, como está organizado, a beleza daquilo não são só fachadas. São os pátios, aqueles elemen-tos orgânicos...

Trabalhou na ampliação...E não só. Trabalhei também no restau-ro de como foi. Eu introduzi o desenho original. Desculpe mas não é presunção minha! Peguei os desenhos originais do Chorão Ramalho. A escola estava cheio de abcessos, o material estava degradado, tudo pintado de verde. As portas, muitas, não eram originais.Não foi fácil, mas a Fundação Escola Por-tuguesa aceitou.

Se a Escola for abaixo não é também uma perda pessoal para si?Ah, terei muita pena porque a escola para além de ser uma belíssima peça de arqui-tectura é uma das vitrinas de Portugal, na China e em Macau. E, portanto, uma es-cola onde se formam jovens e agora, cada vez mais, bilingues, uma escola interna-cional é a melhor vitrina que Portugal pode ter no mundo. É pena.

E a Associação de Arquitectos e o pró-prio Carlos Marreiros não sentem essa responsabilidade social?Claro que sentimos.

SALVAGUARDA DA ESCOLA PORTUGUESA E A RESPONSABILIDADE ÉTICA DOS ARQUITECTOS

“PORTUGAL DEVIA FAZER MAIS PELA EPM”

E a Associação onde anda?Bem, mas isso terá de falar com o presi-dente. Eu percebo o que é. Ás vezes é difí-cil. Contestar é simples. Hoje em dia toda a gente contesta. Ainda bem. Em Macau, depois de 1999, nas estruturas chinesas ‘everybody wants to voice’. Mas entre o protestar e o conseguir, objectivamente salvaguardar as coisas tem mais valor do que protestar só para sair na fotografia.

E estava a dizer que se a Escola for em-bora é uma perda para a imagem de Ma-cau, de Portugal e da comunidade.Acho que sim, Portugal perde uma vitrine de grande valor. Perde uma escola portu-guesa. Neste momento, conjuga-se num bom edificio com uma função nobre. Por-tugal devia fazer mais por isso e as estru-turas de Macau também.

Bem, a Ordem portuguesa tem dito alguma coisa, os jornais portugueses também têm escrito, dado voz. O que é possível fazer mais?Arranjar alternativas. Acho que o gover-no português não pode deixar tudo ao governo da RAEM. Acho que o governo da RAEM vai dar dinheiro à construção da nova escola se é que ela sai daqui. Este terreno também tem muito valor, mas já é bom. Para quem vai? Não se sabe. Para a SJM? Acho que o governo português também deve entrar e tentar negociar com eles. Depois há uma coisa muito curiosa aqui em Macau. As pessoas fa-lam de património português em Macau. Onde é que está? Existe é património de Macau, RAEM, China, o que é diferente. Património mesmo português de Portugal é a residência consular. Porque as pesso-as falam património português de Macau, em Goa, na Ásia.... é que Portugal não é dono destas coisas. Portugal também devia investir, se não há dinheiro, inte-ligência, que invista com trabalhos de investigação... Nós, em Portugal, temos boa investigação. Portugal não pode dar dinheiro para este património mas pode ao nível de inteligência, da historiografia, fazer levantamento, estudos aprofunda-dos...

Partilha da ideia de que é muito difícil, não apenas em Macau, mas na Ásia em geral, de que é muito difícil preservar fisicamente este tipo de património? Documentá-lo será mais fácil do que preservá-lo?Sim, porque as pressões do sector finan-ceiros são muito grandes. Depois não é fácil em locais tão centrais. O terreno

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custa muito dinheiro. É difícil manter estruturas que, dificilmente, podem ser recuperáveis no sentido da sua maximiza-ção. Ou seja, uma estrutura com três ou quatro andares, uma fortaleza que seja, é mais fácil maximizá-la do que uma escola portuguesa que tem só um piso.

Mas no plano da memória e dos afec-tos, não será complicado deitar abaixo um edifício com este simbolismo e esta carga emocional?É verdade, só que há outras coisas com muito afecto. Eu nunca estudei nesta es-cola, tenho-lhe afecto, mas eu estudei no liceu. Quando foi destruído tive pena, se era um edifício mau?, não era, era uma belíssima escola, ora bem mas isto so-mos nós que falamos com o coração. As pessoas têm que ter aquele balanço entre coração e razão, entre humanidade e ci-ência. Convencer um promotor a promo-ver isto é muito complicado. O próprio governo, e isto vem já da administração portuguesa que não tem culpas, conse-guir classificar tudo não é fácil porque há este equilibrio. Eu digo, apesar de tudo Macau em termos de património, muito se preservou. Não estou a dizer que não se deva fazer mais e muito mais, não é isso! O que existe é bom, é uma história de sucesso se compararmos do Japão ao Bangladesh. Posso-o dizer, claramente, que eu conheço os casos. Macau é, quer em termos de qualidade como em termos de quantidade, uma história de sucesso. Isso eu garanto.

Apesar da Praia Grande, Fai Chi Kei, Mong Ha... os arquitectos não ganha-ram com esta destruição também? Não houve uma negociação entre um ganho financeiro e uma voz que não se ouve?Alguns ganharam sim, mas o arquitec-to é sempre um actor secundário... Mas acho que não é por aí. O património quando é destruído é substituído por qualquer coisa. Pode ser melhor, igual ou pior. Quando a solução é igual ou su-perior, podemos eventualmente ganhar qualquer coisa.

Mas não houve gente a ganhar dinheiro com isso?Há casos de património em que as pes-soas ganharam dinheiro porque maximi-zaram a construção. Há outros casos em que o património foi preservado. Noutros foi viabilizado seja como departamento público seja como instituição privada. Naguns casos, mesmo sacrificando patri-mónio, mesmo se a população ganha um hospital, ganha um equipamento válido.

Aqui em Macau não foi o caso. Não se construiu equipamento social, foi pura especulação...Nalguns casos! Mas não se pode reduzir isso à especulação. Por exemplo, o que foi feito na baía da Praia Grande, projecto de Manuel Vicente, julgo que foi uma forma intelgente de preservr o contorno da baía. Fui dos poucos que sendo preservacionis-ta defendi isso porque toda a gente dizia que era a destruição da memória...

Como é que avalia o Cotai, que novi-dade é que os novos casinos trouxeram a Macau?O que é os casineiros trouxeram de no-vidade?! Em termos de discurso da cida-de, nada, zero. O que podem ter trazido, tecnologias, são muito bons em gestão de obras. Macau precisa disso. Em termos de arquitectura como disciplina cultural, ur-bana, identitária não trouxeram nada, e o resultado até é pobre. O governo deveria exigir deles participação de inteligência lo-cal neste processo. E as construtoras locais também deviam ter uma parte. Os resulta-dos são tão fantásticos. Os casineiros estão tão felizes com esta performance que acho que é chegada a altura de exigir porque é assim que se formam as gerações futuras.

Acha que o Cotai é um caso perdido?Não, não acho, ainda bem que existe o Cotai. Ainda bem que aquela strip se de-senvolveu...

“É TÃO DIFÍCIL UM PLANO DIRECTOR?! NÃO É! HÁ UMA CERTA INCAPACIDADE”

CASINOS, COTAI, URBANISMO E O “GOVERNO SOL”

Mas, em termos de arquitectura e de urbanismo, o que é a que a cidade ga-nhou com o Cotai?Em termos de arquitectura não trouxe nada de novo, em termos de leitura ur-bana, nada. Há uma arquitectura pon-tual, não é uma arquitectura social, não é a que eu gosto de fazer. Eu gosto de uma arquitectura que tenha a ver com a vida das pessoas, que possa produzir alegria. Aquilo é de entretenimento, um parque temático para entreteni-mento mais ou menos pecaminoso, não interessa, mas não me chateia que seja aí. Em termos de inovação não vi nada. Acho que, apesar de tudo, é mais bem feito que a strip de Las Vegas e cons-titui quase que uma zona de transição entre a Taipa e Coloane. Mas não vejo mal nenhum nisso. No futuro, haverá mais acessos não só pelo centro, mas pelas vias laterais, para Coloane. Co-loane já vai surgir com um conjunto

de habitação económica, pública e de luxo naquela fronteira. Eu defendo, para Coloane, uma ilha com zonas ver-des e pulmões da cidade, uma reserva ecológica, quase. Ainda bem que o Co-tai ficou aí. Antes aí do que no casco da cidade que tem mais de 450 anos de história urbana. O Cotai foi pensado como uma cidade satélite de duzentos mil habitantes, as estruturas desporti-vas foram para aí...

Em Coloane, já estão comer metade da montanha para habitação social...Pois, para mim é um erro. Onde era montanha, aquela pedreira devia ser um hospital. Basta ver os exemplos do hospital Conde São Januário, do Baptis-ta em Hong Kong que ocupam sempre topos de colina, sempre presevervados de barulho... Um hospital aí ficaria no enfiamento do Cotai strip, servia bem Coloane e a Taipa, em que não há pon-

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A creditação profissional é outro dos assuntos que continua em banho ma-ria.Infelizmente, é um dos assuntos que não foi resolvido e julgo que é muito mau porque não regulamenta o acesso à pro-fissão. Qualquer licenciatura, com habi-litções literárias e o pagamento às Obras Públicas já permite o exercício. Isto é mau porque não garante qualidade, não protege o próprio arquitecto e, natural-mente, facilita certos esquemas que se devem evitar. Para além do mais, man-tém-se a imagem da república das bana-nas porque, em Macau, só os advogados é que têm verdadeiramente uma Ordem que regulamenta a sua actividade. Tudo o mais não existe. Nem os médicos, nem os arquitectos e engenheiros.

Mas, salvo erro, a Lei Básica bloqueia a constituição de associações de inte-resse público com cariz corporativo como está a propor.Não é verdade. Então porque é que a Associação de Advogados é uma asso-

tes. Tinha mais lógica do que ter ali ha-bitação social ao lado de uma habitação de luxo.

E voltamos aos planos urbanísticos...Eu falo sempre de plano director de estratégia. É tão difícil fazer?! Não é assim tão difícil porque o território é muito pequeno. Fazer um zonamen-to, indicar as funções não é assim tão difícil. Já está em consulta pública o plano dos novos aterros da zona inter--ilhas mas a cidade não funciona iso-ladamente. Aquelas coisas discutem-se mas e as relações com a cidade velha, com o casco histórico, com a penínsu-la! Aqueles aterros que ficam do lado de Macau têm de ter uma funcionali-dade e valências com a península que não é a mesma coisa que a Taipa. Não se pode viver isoladamente. Tem de se pensar em fazer a consulta mas tem de se pensar Macau num todos. E, portan-to, é tão difícil?! Não é. Eu julgo que há uma certa incapacidade, acredito na boa vontade do governo em tentar acertar. Este governo assumiu-se como o governo social, o “sunshine governe-ment”, o governo do sol que quando nasce nasce para todos. Acredito que o propósito é esse. O anterior era mais em torno do carisma do primeiro Che-fe do Executivo numa fase de transição. Neste momento, as infra-estruturas es-tão consolidadas, este é um governo para o povo, acredito piamente nisso. Agora parece-me que há uma incapa-cidade de determinados departamentos e de dirigentes a nível de direcção de pôr em prática com elevação, com co-ragem, certos planos.

E o que fazer, então?Eu, já fiz esta proposta várias vezes. Há legislação que a Assembleia, ou as direcções de serviços, não conseguem produzir para propor à Assembleia. Porque é que não encomendam a fir-mas de advogados? Todo o mundo faz isto. Porque é que não se dá a firmas locais, ou de Portugal, ou da China, em joint-venture?! A nível do direito ou de outro nível de estudos. Se não houver em Macau procura-se lá fora. Certos níveis departamentais quando deve-riam estar a licenciar projectos, querem ferozmente fazer projectos. Atrasam o que deviam fazer e depois nem por isso fazem bem. Por outro lado, acho que há um excesso de consulta públi-ca. Nos últimos tempos, é verdade que a consulta pública está a ser cada vez mais genuína, não é só para inglês ver. É mesmo porque há falta de ideias, e no governo há um grande medo em ser criticado. É um processo de democra-tização e ainda bem que o é, auscultar as bases. Mas, chega-se a um momento em que as bases não percebem de ma-térias específicas. É preciso haver um grupo de consultores, seja local e de fora, ou em consonância, ratear, tirar conclusões e remeter a um nível supe-rior para decidir. E a decisão não pode agradar a todos!

“MANTÉM-SE A IMAGEM DA REPÚBLICA DAS BANANAS”

CREDITAÇÃO PROFISSIONAL

ciação de interesse público reguladora. Não concordo que assim seja.

Penso que a AAM é, justamente, a ex-cepção que a Lei Básica permite...Mas não concordo. Veja que em Hong Kong, a HKIA [Hong Kong Institute of Architects] funciona como uma ordem de arquitectos e em termos de rigor, de respnsabilidade civil, de deontologia é muito mais abrangente e, muito mais afinado, do que a Ordem dos Arqui-tectos, em Portugal. E, portanto, desde o tempo do engenheiro Ao Man Long que existe uma comissão onde vários arquitectos da privada, chineses e por-tugueses, fazem parte. A proposta de lei está pronta e tem mais de sete anos. É de 2004! Quando o novo Secretário tomou posse prometeu que a proposta estava nas prioridades das prioridades. Isto já foi há algum tempo. Implica a transformação da Associação de Ar-quitectos numa associação com pode-res, em colaboração com o governo da RAEM, para, com as instituições de

ensino, preparar exames tendo em vis-ta a acreditação profissional para que o arquitecto e o engenheiro possam exer-cer com os conhecimentos da legisla-ção de Macau e com responsabilidade civil, e também protegido através de uma organização de classe, tal como os advogados. Porque é que a Associação de Advogados, pode? Mas que seja fei-ta através de prerrogativa do governo, como em Hong Kong. Seja como for, é preciso que esta situação se esclare-ça e não me venha dizer que não pode porque os advogados, e ainda bem, é que são selectivos quanto aos seus membros. Protege-os, mas também os obriga a uma responsabilização e a uma deontologia. Uma mera associação de arquitectos e engenheiros não pode funcionar senão ao nível da recomen-dação. Sem exigência não há qualifica-ção e qualquer gato-sapato pode fazer tudo. Isto não é democracia. Democra-cia é nascermos todos livre e iguais mas qualificados e responsabilizados, cada uma para as suas funções.

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O NOSSO Eça de Queirós (1845-1900), no que à China diz respeito, costumava ser rigoroso em tudo o que escrevia. Entusiasmado com a “chinoise-rie” em voga na Europa da segunda me-tade do Século XIX, Eça estudou com gosto e procurou entender as coisas do Império do Meio e desse estudo nos dá largo e pontual testemunho ao longo da sua obra. Em Os Maias, surpreenden-temente, surgem quatro referências à China, a última das quais, no cap. XVIII, é lapidar, exemplar e eterna: “Os anos vão passando, e com os anos, a não ser a China, tudo na Terra passa”. Mas é em “O Mandarim”, na descrição das aven-turas do nosso Teodoro por Pequim e pela Manchúria que Eça de Queirós leva mais longe a sua acertada aproximação ao mundo chinês. No cap. IV, Eça faz uma deliciosa descrição de um almoço do Teodoro em Pequim, na casa do ge-neral Camilloff, adido militar na embai-xada russa e esposo da jovem, delicada e loiríssima Vladimira que, nas ausên-cias do general, aconchegava Teodoro à moda russa “nos seus seios pequeninos e direitos” e lhe concedia exaltantes e requintados prazeres, comuns a todos os amantes, de todos os tempos e pa-ragens. Pois esse repasto com o plácido mas empreendedor general Camilloff, segundo Eça, foi “regado largamente de excelente vinho de Chão-Chigne”. O autor de O Mandarim refere-se, sem dúvida, ao vinho de Shaoxing ou Chao-ching, famoso em toda a China há mui-tos séculos. Estive em Shaoxing em 1980, regressei em 2009. Três décadas depois reencon-trei com prazer os cálices perfumados de vinho amarelo, visitei o museu do Vinho, bebi do licor da terra que ine-bria excelentemente deuses e simples mortais.O centro histórico de Shaoxing não mudou, não muda há muitos séculos, continua vestido de brocado. A colina de Fushan está tão verde como outrora, sombreando o perpassar dos anos. Ou-tra vez as casas baixas pintadas de bran-co, os telhados de barro cinzento, os canais a circundar e a entrar por dentro do burgo medieval, as pontes em arco, os pequenos barcos, o lago Leste, o tú-mulo do mítico Yu, o Grande, as fábri-

cas e destilarias de vinho, ou melhor, de bebidas espirituosas obtidas a partir de fermentação do arroz e outros cerais. E meninas de Yue -- o nome do antigo rei-no de que Shaoxing foi capital há vinte e três séculos atrás --, mulheres pétalas de seda, perfumando a brisa. Abrem na Primavera ou todo o ano.Três décadas depois revisitei também a casa onde nasceu Lu Xun (1881-1936), talvez o maior escritor chinês do século XX. Aqui viveu na sua infância e juven-tude, aqui se desenvolve o enredo de alguns dos seus mais conhecidos con-tos, como a amarga, irónica e dolorida “Verdadeira História de Ah Q” ou o “Diário de um Louco”, de resto já com várias não muito brilhantes traduções portuguesas, hoje apenas acessíveis em bibliotecas ou alfarrabistas. Lu Xun assistiu ao fim da monarquia em 1911, viajou e estudou medicina no Japão, viveu numa China retalhada e dividida, num tempo de convulsões e permanentes guerras, entre restos de gente nostálgica do Império, republi-canos e senhores de guerra, em anos de conflitos sangrentos entre naciona-listas e comunistas, com centenas de milhares de mortos. Por isso escreveu “Na China, a paz é o intervalo entre as guerras.” Membro da Liga dos Es-critores de Esquerda, próximo das ideias socialistas de então, mas sem-pre independente e livre, Lu Xun nos seus escritos sugestiona e fere o leitor, abrindo novos caminhos na moderna literatura chinesa.A sua casa, na bonita cidade velha, diante de um dos muitos canais que a atravessam, é um excelente museu. Shaoxing honra a memória de um dos seus mais ilustres filhos que em acu-tilantes ensaios, contos e poemas nos ajuda a entender a China de sempre e o homem, não apenas chinês mas uni-versal, semelhante a todos nós, sob o sol, a névoa ou a intempérie de todas as latitudes. Lu Xun, um fumador inveterado, viveu os seus últimos anos em Xangai onde fa-leceu de tuberculose em 1936. Tinha 55 anos, exactamente a mesma idade com que em Paris fechou os olhos para sem-pre o nosso Eça de Queirós.No meu regresso a Shaoxing, vinho amarelo num cálice, Eça de Queirós vestindo uma cabaia chinesa, Lu Xun numa nuvem.

Província de Zhejiang EM SHAOXING, COM EÇA DE QUEIRÓS,LU XUN E UMAS TAÇAS DE VINHO

António GrAçA de Abreu

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EM SHAOXING, COM EÇA DE QUEIRÓS,LU XUN E UMAS TAÇAS DE VINHO

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P R I M E I R O B A L C Ã O

luz de inverno Boi Luxo

Há pouco revi este filme e ele revela algo que eu tenho buscado no cinema, algo que eu tenho tentado encontrar no cinema contemporâneo europeu e que não consigo encontrar, um sentido profundo da cerimónia, um sentido profundo de uma benigna e honrada severidade, afastada das boas intenções de postal (que não deixam de ser boas intenções mas que não deveriam ser impingidas). Neste filme também existe, como sublinha, esta raiva, uma raiva que, no entanto, encontra um palco suave mas ao mesmo tempo extremamente preciso e equilibrado. Há outros autores assim e João César Monteiro deve ser acusado da mesma disposição sem que tenhamos receio de sermos violentos. Se há algo que estes filmes em nós excitam é a coragem. Fazê-lo através de uma natureza morta é uma proposta sublime, a sua aparente imobilidade a melhor plataforma possível para que se promova uma reacção à estagnação. Talvez a aparente desordem que as naturezas mortas exibem, a falta de dignidade que a ausência de ordem confere a esta abandono, se constitua como a sua qualidade mais intrínseca. No final, os vários pontos da desordem unem-se quase imperceptivelmente e aparece diante dos nossos olhos, deslumbrante, uma imagem coesa e de um poder inesperado.Este filme começa por provocar um sufoco que mete medo e penso que se há sentimento que o cinema português não tem provocado, com excepção do medo sarcástico de Oliveira, é o do medo. Lança-nos numa escuridão que é o medo infantil do escuro e o medo de não estar acompanhado, uma obsessão pela procura da companhia. Tanto tem sido dito sobre este filme (e sobre Ossos, 1997 e No Quarto da Vanda, 2000) que só mesmo a profunda admiração que causa impede que nos remetamos ao silêncio.

PEDRO COSTAJUVENTUDE EM MARCHA, 2006

Uma admiração que recai essencialmente nas suas propriedades musicais e pictóricas, para lá das narrativas e sociais, e na sua recusa do comércio das emoções (numa expressão do autor).“A natureza morta com abóbora e frutas de No Quarto da Vanda obriga-nos a deixar de pensar no que mau se passa ali”. Também nos obriga a decidir de uma vez por todas que uma das questões mais constantes que se tem posto a propósito do cinema, a do seu valor enquanto documentário ou enquanto ficção, não passa de uma futilidade. Que estes filmes sirvam para acabar de vez com essa discussão inútil e má.Juventude em Marcha começa com uma espécie de recitativo e está todo ele invadido por um profundo sentido operático. Ventura, logo no início, entoa uma pequena canção. Será este um filme musical ? Um filme musical cheio de um silêncio novo e muito perturbador.Estes três filmes traçam um processo de mudança de um bairro de lata nos arredores de Lisboa para um complexo de edifícios novos (que fazem lembrar o silêncio urbano de Antonioni). As pessoas realojadas deixam de estar expostas ao ruído constante a que o tipo de construção e a proximidade das casas do Bairro das Fontaínhas - protagonista dos outros dois filmes - obrigava. A esta redução sonora vem juntar-se um esfriamento das cores que faz lembrar muito marcadamente, neste caso, a segunda parte do filme de Apichatpong Weerasethakul Sang Sattawat (Syndromes and a Century), estreado no mesmo ano que este filme de Pedro Costa, 2006. Ossos, filmado com película, tem uma tal doçura de cores que se torna obsceno filmar tal destituição com cores tão quentes. Costa confessa que a sua primeira atracção pelo bairro pobre onde se passam estes filmes foi “plástica e sensual” e esse encanto nota-se muito nas duas primeiras instalações

deste tríptico. Às vezes é muito ténue a fronteira que o divide de uma esteticização da pobreza.No Quarto da Vanda e em Juventude em Marcha, ao invés do primeiro, uma pequena câmara digital e uma equipa de filmagem muito reduzida permitiu uma aproximação aos actores essencial à descrição da sua intimidade mas retirou alguma temperatura aos quadros de Costa. Em Juventude em Marcha esse esfriamento é, contudo, parte central e deliberada do seu aspecto.Ventura, o herói do filme, viaja entre os dois lugares, entre o bairro de lata, muito pobre mas vibrante de cores e de recordações, e o complexo novíssimo e frio que acolhe os realojados. O Quarto da Vanda é agora neste lugar novo e é aí que se encenam os diálogos entre Vanda, já não dependente da heroína mas agora dependente da metadona, e Ventura. Tudo neste filme final é mais próximo da morte e do conforto, desde as viagens de Ventura à gordura de Vanda.Mas neste filme o seu cinema atinge um nível cerimonial superior, que lhe vem da continuação do seu ritmo de expor, lento e repetitivo e muito rigoroso, mas também do facto de ser o último.O que é aqui contado, antes prosaico, ou, no início do filme prosaico, ganha uma elevação a uma estação operática. Notamo-lo em outros filmes portugueses, e não só no caso exemplar de Manoel de Oliveira, Paulo Rocha e (menos) César Monteiro. Tal como na obra do primeiro destes realizadores essa elevação operática vem despojada de excesso mas, ao contrário, carregada de uma precisão milimétrica e atenção ao detalhe e de um despojamento que elimina tudo o que poderia estar a mais.Juventude em Marcha é talvez o menos pictórico, mas possivelmente o mais musical dos três filmes, a sua música áspera temperada com a afabilidade de algumas das relações

retratadas, mesmo quando estas são apenas desejadas (Ventura e Vanda ou Ventura e Lento). Essa musicalidade nasce também através de outra técnica própria à música, aqui usada de forma extrema – a repetição. Não só esta nos arrasta para um estado hipnótico como eleva o filme a um estado cerimonial quase religioso, e nós sabemos que a repetição (a representação) é uma técnica essencial à elevação, à integração no mito ou à vivência da história. Mas esta repetição, que promove a elevação, cria também um efeito mudo de incompreensão, uma espécie de espiral que impede a progressão, um bloqueamento que é especular da vida monótona e repetitiva das classes mais destituídas. Este bloqueamento, que não notamos nas vidas anteriores ao realojamento, tem expressão máxima em Juventude em Marcha na sequência no interior da casa atribuída a Ventura em que as várias portas desta se vão fechando enquanto ele a visita. Alguns lembrar-se-ão que Ossos acaba deste modo, com um fechar de porta que nos impede de permanecer no filme e o olhar de uma jovem mulher – tal como acontece em outro filme que Pedro Costa refere no decorrer de um curso que deu no Japão para uma plateia de futuros cineastas e de que resultou um texto: Akasen Chitai, Street of Shame, de Mizoguchi (seu último filme).Costa referiu também com muita admiração, no mesmo curso, um filme de Chaplin, (seu último filme), em que a acção implica um constante abrir e fechar de portas - A Countess from Hong Kong – um filme que se passa dentro de uma cabine de um barco e que historicamente se associa ao aproximar do fim de Chaplin. Ventura está também a aproximar-se do fim e todo o filme é uma tentativa deste de se aproximar dos que lhe são mais queridos, os seres reais ou imaginários com que ele povoa esta solene e bela despedida.

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T E R C E I R O O U V I D O

próximo oriente Hugo Pinto

UMA ESPADA APONTADA AO FUTURONo último texto (“Requiem para um novo mundo”, “h” de

18 de Novembro), falou-se de Singapura como paradigma dos tempos modernos a propósito de uma viagem musical ao pas-sado imaginado pela memória. Sem sair dos limites da cidade--estado, avancemos, agora, para o futuro.

Tema omnipresente na história da música electrónica, tal-vez o campo mais dado à experimentação e à adivinhação dos ares de tempos vindouros, o “futuro” é mesmo a ideia que está na génese do género só tornado possível pelo advento e cons-tante aperfeiçoamento da tecnologia, esse instrumento de e do futuro. Daí se justifica, também, que uma boa parte da mú-sica electrónica seja refém dessa relação auto-referencial que mantém com o seu próprio código e linguagem.

Mas, mesmo confinada ao solipsismo pelos limites da tec-nologia enquanto instrumento operado pela técnica, mais do que pela criatividade, a música electrónica tem, na sua natu-reza minimal, binária e quase funcional, o poder de confundir e, mais importante, o poder de sugerir. Less is more, de facto.

Foi partindo destas premissas que Xhin (Lee Xhin) come-çou a produzir música no início da década de 2000. Com o tempo, além de produtor e DJ, Xhin começou a ser muitas vezes apresentado como “sound designer”, o que nos leva de volta à tal relação auto-referencial que a música electrónica alimenta com a sua própria natureza: experimentar com os li-mites do instrumento chamado tecnologia.

No caso do singapurense, essa vertente do “desenho do som” é, realmente, um traço distintivo óbvio. Xhin faz da sua música uma ode ao detalhe e à minúcia.

Em alguma fase do processo criativo deste produtor haverá um esqueleto, uma ossatura minimal que, no entanto, perde definição a partir do momento em que começam a ganhar for-ma as complexas estruturas que amontoam camadas em dinâ-micas vertiginosas, sem que, de modo algo desconcertante, o edifício alguma vez pareça periclitante.

Este “modus operandi” que se afasta das estruturas conven-cionais do Techno foi aprimorado para “Sword”, o terceiro longa-duração de Xhin, publicado neste mês de Novembro pela editora Stroboscopic Artefacts, de Berlim.

Ao longo de 50 minutos, Xhin convoca influências que re-montam ao “dark industrial” que se fazia no centro da Europa dos anos 1980 e ao Electro subaquático dos lendários Drexciya, mas também se pressentem nitidamente neste som tridimensio-nal os padrões rítmicos experimentais dos Autechre ou a urgên-cia maquinal de Aphex Twin. Que Xhin aguente estes espíritos nos mesmos confins é tarefa espinhosa que merece o reconheci-mento dos especialistas. O site Resident Advisor, por exemplo, destaca como denominador comum dos dez temas de “Sword” “a capacidade de chocar, maravilhar e impressionar, quer Xhin nos apresente uma canção de embalar, quer tente perfurar o nosso cérebro”. Mas não vos assusteis com a retórica.

Ainda que o desejo que Xhin demonstra em criar ruptu-ras com convenções e tradições afaste deste disco os (muitos) que procuram no Techno apenas música funcional que se con-forma às mais primárias expectativas, o caminho desbravado e a recompensa sensorial de quem se atreve a acompanhar a odisseia sónica mais do que justifica o sacrifício de uma even-tual obscuridade. No fundo, o futuro não passa de um infinito buraco negro.

“Sword”XhinStroboscopic Artefacts, 2011

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2011 T E R C E I R O O U V I D O

Não podia ter sido melhor a escolha da Hong Kong University (HKU), por ocasião das comemo-rações do seu centenário, de convidar o pianista rus-so Evgeny Kissin a dar um recital em Hong Kong, no passado dia 23 de Novembro, na Sala de Concertos do Centro Cultural de Hong Kong, cujas receitas re-vertem na totalidade para o Culture & Humanities Fund da HKU.

Perante um auditório de 2000 lugares, quase com-pletamente esgotado, Evgeny Kissin, que acabou de completar 40 anos de idade no passado mês de Outu-bro, interpretou magistralmente – com uma técnica transcendente e uma dinâmica e colorido capaz de transformar o teclado numa orquestra - um programa inteiramente dedicado a Liszt, um tributo ao compo-sitor no bicentenário do seu nascimento, composto pelo Estudo de Execução Transcendente Nº 9 “Ri-cordanza”; Sonata em Si menor; Funerailles de Har-monies Poétiques et Religieuses; Vallée d’Obermann de Années de Pèrelinage, Première Anée, Suisse; e Gondoliera, Canzone e Tarantella de Années de Pèrelinage, Deuxième Anée, Italia - Venezia e Na-poli. Após este programa de arrasar - note-se que a monumental Sonata em Si menor é uma das obras mais extensas e difíceis do repertório de piano, assim como os Estudos de Execução Transcendente, como o próprio nome indica! - o pianista brindou ainda o público com dois emblemáticos encores também do compositor húngaro: Liebestraum (Sonho de Amor) e Soirées de Vienne: Valse Caprice Nº 6 (Liszt/ Schu-bert). Ao fim de quase duas horas e meia de concerto, o pianista estava no foyer da sala de concertos a dar autógrafos às mais de 200 pessoas que formavam fila, uma por uma, sempre sorridente e jovial, certamente durante mais de uma hora.

Dois dias antes do recital, Kissin, distinguido an-

teriormente com um diploma honorário da HKU, proferiu, a convite do Departamento de Música da Faculdade de Humanidades da HKU, uma rara pa-lestra pública para falar sobre a sua vida e partilhar as suas opiniões sobre a música. Este muito aguardado evento proporcionou ao público um conhecimento mais profundo da psique deste prodígio que se es-treou publicamente aos 10 anos de idade com uma orquestra profissional, tocando o Concerto para Pia-no K 466 de Mozart e que deu o seu primeiro recital a solo um ano mais tarde, em Moscovo. Conhecido pela sua mente profundamente filosófica e pela sua dedicação extrema às humanidades, Kissin recorda--nos a importância do melhoramento da humanidade e do enriquecimento da cultura, ideais que estão na base do estabelecimento do Fundo para a Cultura e Humanidades da HKU, destinado a nutrir os talen-tos criativos e artísticos na região.

Evgeny Igorevich Kissin nasceu em Moscovo em Outubro de 1971 e começou a tocar e a improvisar ao piano aos 2 anos de idade. Ingressou na Escola de Música Gnessin de Moscovo aos 6 anos, uma escola especial para alunos dotados, onde foi aluno de

Anna Palovna Kantor, que tem sido a sua única pedagoga. Chamou a atenção do mundo quando in-terpretou, aos 12 anos, os dois Concertos para Pia-no de Chopin na Grande Sala do Conservatório de Moscovo com a Filarmónica Estatal de Moscovo, sob a direcção de Dmitri Kitaenko. Desde a sua primeira actuação fora da Rússia em 1985, na Europa de Leste, a que se seguiu uma tournée no Japão em 1986 e a sua primeira colaboração com Herbert von Karajan e a Filarmónica de Berlim em Dezembro de 1988, Kissin tem tocado com as principais orquestras e maestros, como Abbado, Ashkenazy, Barenboim, Dhonanyi, Giulini, Maazel, Nuti e Ozawa, e actuado nas salas mais prestigiadas do mundo. Foi nomeado o mais jovem Instrumentista do Ano em 1994 pela Musical

America e foi o mais jovem recipiente de sempre do Prémio Triunfo em 1997, pela sua contribuição No-tável para a cultura da Rússia. Recebeu um Doutora-mento Honorário em Música pela Escola de Música de Manhattan em 2001 e o Prémio Shostakovich em Moscovo em 2003 e ainda o Prémio de Músi-ca Herbert von Karajan em 2005. As suas gravações receberam numerosos prémios, incluindo o Edison Klassiek, Diapason d’Or, Grand Prix of La Nouvelle Academic du Disque e o Prémio Grammy para Me-lhor Actuação Solista Instrumental (sem orquestra) em 2006, a que se seguiria outro Grammy, em 2010, pela sua gravação dos Concertos para Piano Nº 2 e 3 de Prokoviev com a Philhharmonia Orchestra, di-rigida por Vladimir Ashkenazy. O início da Tempo-rada 2011-2012 prevê compromissos nas principais cidades australianas e asiáticas, incluindo Sydney, Tóquio, Seul, e Taipé, a que se segue uma digressão pelas principais cidades europeias, entre as quais se inclui Lisboa, onde actuará no dia 12 de Fevereiro de 2012, no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian. A seguir embarca numa extensa digres-são pelos EUA e Canadá, assim como na América do Sul, durante o Verão de 2012.

A sua extraordinária musicalidade, a profundida-de e a qualidade poética das suas interpretações, para além do seu extraordinário virtuosismo, valeram-lhe a veneração e admiração merecida apenas por um dos mais dotados pianistas clássicos da sua geração e, possivelmente, de gerações passadas.

Grande aplauso pela organização deste inesque-cível concerto para a Hong Kong University, que, podendo ter convidado um artista chinês para estas importantes comemorações, soube, ao contrário do que é prática das instituições terciárias locais, honrar a vocação e espírito verdadeiramente internacional de Hong Kong. Aguardamos ansiosamente a estreia de Evgeny Kissin em Macau!

O PRÍNCIPERUSSODO PIANO

EVGENY KISSIN

Michel Reis

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A aprendizagem do mundano elimina as suas virtudes inerentes e faz mirrar sua natureza essencial.

A COMPREENSÃO DOS MISTÉRIOSWEN ZI 文子

O texto conhecido por Wen Tzu, ou Wen Zi, tem por subtítulo a expressão “A Compreensão dos Mistérios”. Este subtítulo honorí-fico teve origem na renascença taoista da Dinastia Tang, embora o texto fosse conhecido e estudado desde pelo menos quatro a três séculos antes da era comum. O Wen Tzu terá sido compilado por um discípulo de Lao Tzu, sendo muito do seu conteúdo atribuído ao próprio Lao Tzu. O historiador Su Ma Qian (145-90 a.C.) dá nota destes factos nos seus “Registos do Grande Historiador” com-postos durante a predominantemente confucionista Dinastia Han.A obra parece consistir de um destilar do corpus central da sabedo-ria Taoista constituído pelo Tao Te Qing, pelo Chuang Tzu e pelo Huainan-zi. Para esta versão portuguesa foi utilizada a primeira e, até à data, única tradução inglesa do texto, da autoria do Professor Thomas Cleary, publicada em Taoist Classics, Volume I, Shambala, Boston 2003. Foi ainda utilizada uma versão do texto chinês editada por Shiung Duen Sheng e publicada online.

CAPÍTULO 172, PARTE II

Ao chegarmos à Dinastia Chou, deparamo-nos com diluição da pureza e simplicidade perdida, afastamento da Via na elucubração de artificialismos e acção a partir de qualidades perigosas. Os rebentos do ardil e da manha surgiram; a erudição cínica é usada para fingir sabedoria, a falsa crítica usada para intimidar as massas, a elaboração da prosa e poesia usada para obter fama e honra. Todos querem empregar o seu conhecimento e capacidades para reconhecimento social e todos perdem a base da fonte mais alta; por isso, há na sociedade quem perca o seu viver natural. A deterioração tem sido um processo gradual, que tem estado em marcha desde há muito tempo.Assim, a aprendizagem do homem completo consiste no devolver sua natureza essencial ao não-ser e deixar flutuar sua mente no imensurável espaço. A aprendizagem do mundano elimina as suas virtudes inerentes e faz mirrar sua natureza essencial; ao mesmo tempo que por dentro se preocupam com sua saúde [ou salvação], usam de acções violentas e ardil excessivo na sua inquietação por nome e honra.Isto é algo que o homem completo não faz.Aquilo que elimina a virtude inerente é a falta de espontaneidade [ou auto-consciência]; aquilo que faz mirar a natureza essencial é o cortar com a sua criatividade viva. Os homens completos se asseguram do que é a vida e a morte e compreendem os padrões da glória e da ignomínia. Mesmo que o mundo inteiro os louve, tal não lhes dá encorajamento adicional; mesmo que o mundo inteiro os repudie, tal não os inibe. Pois atingiram a chave da derradeira Via.

Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

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