h - suplemento do hoje macau #56

16
ARTES, LETRAS E IDEIAS h PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2713. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE A LIÇÃO DE MARGARIDA GONÇALO LOBO PINHEIRO

Upload: jornal-hoje-macau

Post on 15-Mar-2016

233 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Suplemento h - Parte integrante da edição de 12 de Outubro de 2012

TRANSCRIPT

Page 1: h - Suplemento do Hoje Macau #56

ART

ES, L

ETRA

S E

IDEI

AS

hPARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2713. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

A LIÇÃO DE MARGARIDAGONÇ

ALO

LOBO

PIN

HEIR

O

Page 2: h - Suplemento do Hoje Macau #56

I D E I A S F O R T E S

O CINEASTA Ivo M. Ferreira foi recente-mente convidado por GUIMARÃES 2012 – Capital Europeia da Cultura, para reali-zar um filme para o programa  – Castelo em Três Actos, projecto inscrito no ciclo ‘Escalas e Territórios’ do programa Arte e Arquitetura de Guimarães 2012. O convi-te é da responsabilidade do curador Paulo Cunha e Silva.O tema do Castelo, no âmbito de Guima-rães 2012, é uma poderosa metáfora para agarrar algumas das grandes questões con-temporâneas.O Castelo é passado e futuro, raiz e utopia, origem e destino, fortaleza e palácio, uni-dade e diversidade. No imaginário nacio-nal português, o Castelo de Guimarães cor-responde ao mito da origem, pelo menos da origem da nacionalidade. Questionar todas estas flutuações dos conceitos neste momento Histórico, é não só oportuno, como indispensável – e pertinente quando Guimarães é Capital Europeia da Cultura.

CHINA+PORTUGAL+MACAU “Palácio de Cristal”  (nome provisório) es-boça um desenho contemporâneo sobre as relações culturais entre China e Portugal, colocando Macau na génese desta relação.O filme passa-se nos dias de hoje, 2012, com um Portugal (e Europa) em crise, e uma China próspera. O filme vive no en-tanto de ressonâncias com o tempo passa-do – século XII – mas projeta-se, sobretu-do, no futuro – quimera.“O meu trabalho é o de tentar que os meus filmes reflitam sobre os assuntos que me in-teressam, que me inquietam. É assim que a minha carreira internacional tem crescido: procurando uma cinematografia própria e universal.”Os protagonistas da curta-metragem são Margarida Vila-Nova e Siun Chong.O filme é o único filme produzido em Ma-cau para GUIMARÃES2012 e tem o apoio do Instituto Cultural (Departamento de Promoção das Industrias Criativas) e conta também o apoio da Fundação Oriente e o apoio da TDM e da CUT. O filme é uma produção do território da recentemente formada produtora de filmes de autor Porto Interior Filmes em parceria com a Macau Closer.A Porto Interior Filmes está neste momen-to também a produzir um documentário sobre o pintor Mio Pang Fei realizado por Pedro Cardeira. “Palácio de Cristal” co-meça a rodagem na próxima semana na

O CASTELO E A METÁFORA

IVO M. FERREIRA COMEÇA RODAGEM DE “PALÁCIO DE CRISTAL”h2

12 1

0 20

12

Page 3: h - Suplemento do Hoje Macau #56

I D E I A S F O R T E S

China e tem estreia marcada para dia 1 de Dezembro em Guimarães e segue para a carreira de festivais de cinema.

A VIDA DE IVO Ivo M. Ferreira nasceu em Lisboa, Portugal, em 1975, é residente no território de Ma-cau desde 1994. Filho de actores, cresce no seio teatral, onde começa a carreira como actor com alguns dos mais importantes en-cenadores e coreógrafos portugueses.O gosto pelo cinema instala-se desde mui-to novo e rapidamente transita para a Rea-lização em Cinema.A vida pessoal e profissional de Ivo M. Ferreira desde sempre se confundiu com Macau e com a China. Foi em Macau que se tornou adulto,  que fez o seu primeiro filme e  que criou os seus filhos. A sua obra esteve sempre ligada à ideia de diálogo en-tre Ocidente e Oriente:  do “Homem da Bicicleta” (1996) um dos mais significa-tivos documentários sobre a memória de Macau, passando por “Em Volta” (2002) longa-metragem de ficção que culmina na cerimónia do Handover, “Vai com o vento” (2007) documentário sobre a emigração chinesa para o Sul da Europa, passando por  “O Estrangeiro” (2010) filme centrado nas memórias do autor sobre o território.

Ao longo de uma carreira celebrada em muitos dos mais importantes festivais Inter-nacionais de Cinema do Mundo (Roterdão, Locarno, Cork, Florença – Dei Poppoli, Chile; Brasil; Estados Unidos da América; Paris -Essone, Indie Lisboa entre muitos outros), Ivo M. Ferreira nunca deixou a re-lação embrionária com Macau. É por isso que quando desafiado, por Guimarães Ca-pital Europeia da Cultura 2012,  para pro-duzir um filme em torno da ideia de “Cas-telo”, como pedra basilar para a construção do discurso identitário, escolheu Macau e o Sul da China como ponto de partida para esta viagem. Está neste momento a prepa-rar  “Cartas de Guerra”, uma longa-metra-gem de ficção adaptada da obra homónima de António Lobo Antunes. Este filme está já financiado e conta com co-produções da europa (França, Alemanha, Suécia) selecio-nado recentemente, entre 250 projectos do mundo inteiro, para participar em Julho de 2012 no PARIS PROJECTS, o maior fó-rum de co-produções francófono), Brasil e de Angola, onde será filmado. Este filme será uma das grandes produções europeias de 2013. Ivo Ferreira trabalha com simpli-cidade, empenho e liberdade, num cinema muito próprio e universal.

Macau 21012.  Dois repórteres da Televisão de Macau, uma jornalista portuguesa e um operador de câmara macaense, são convidados a fazer, juntamente com outros jornalistas Eu-ropeus, uma reportagem sobre o Guangdong Maritime Silk Road Museum. Este museu futurista tem,  como peça central da sua colecção, um junco que naufragou no Sec. XII e que foi retirado do fundo  do mar numa grandiosa operação. Este junco, Nanhai 1, foi transportado para o museu e colocado no interior de uma piscina gigante do PALACIO DE CRISTAL, salão nobre do museu.No sec. XII, o  junco rumava a Ocidente, pela rota da seda, carregado de porcelanas. No mesmo momento em que miste-riosamente naufraga o Nanhai 1, desaparece também a galé de

Dom Fuas Roupinho - Almirante de Dom Afonso Henriques, primeiro Rei de Portugal. Por coincidência e ressonância.Estes naufrágios contemporâneos vão conduzir-nos por uma viagem mítica e perigosa onde se elevam as questões identitá-rias, as relações entre os dois países na forma romântica e po-lítica que se desenha a situação actual dos dois territórios: um Portugal em naufrágio, uma China e Macau em ascensão. Será nesta  aventurada viagem que os dois personagens, afundados pelas suas Histórias, acabarão por se encontrar.Ao enfocar a história do Junco Nanhai 1  e a rota da seda, ao fazer um paralelismo com a embarcação de Fuas Roupinho, o filme aborda toda uma temática sobre a relação entre as duas culturas, mesmo antes do seu encontro.

SINOPSE

“Palácio de Cristal”  esboça um desenho contemporâneo sobre as relações culturais entre China e Portugal, colocando Macau na génese desta relação.

h3

12 1

0 20

12

Page 4: h - Suplemento do Hoje Macau #56

I D E I A S F O R T E S

- O seu percurso artístico começou mui-to cedo, por volta dos seis anos. Pode-se dizer que não teve escolha, ou chegou a pensar fazer outra coisa qualquer?MV - Cheguei a pensar ser caixa de su-permercado, educadora de infância... sempre sonhei com uma vida muito ro-tineira, normal, simples. Procurei sempre esse equilíbrio, ou essa ilusão de equilí-brio, durante a minha vida, durante o meu percurso.

- Mas a escolha de ser actriz foi sua ?MV - Não sei se fui eu que escolhi ou se foram as circunstâncias da vida, o am-biente em que cresci. Sou filha de pro-dutores, naturalmente o grupo de amigos são músicos, artistas plásticos, fotógra-fos, realizadores, produtores, actores...Tenho uma grande admiração e respeito pelo teatro e pelo cinema, mas não sei se não tivesse crescido nestas circunstâncias se teria tomado as mesmas opções.

- Começar aos seis anos foi quase de-terminante?MV - Aos seis anos não temos maturida-de nem sentido de responsabilidade so-bre o que estamos a fazer, mas o facto de ter começado a fazer umas “brincadeiras” nessa altura, a primeira experiência foi um telefilme francês chamado “Dêde”, acabou por ser importante porque a se-guir vieram outras coisas.

- E quando é que chegou à conclusão de que era mesmo isto que queria fazer?MV - Para além do facto de sonhar com uma vida quase “burguesa”, com o 13º mês, ir ao supermercado e fazer o jantar quando cheguei aos 17 anos e estava a terminar o liceu, e já depois de ter feito várias coisas como os “ Jornalistas”, ou “A Falha”, do João Mário Grilo fui chamada para fazer “A Fúria de Viver”. Foi o meu primeiro grande papel em televisão.

- A vida mudou depois disso?MV - Sim, aluguei uma casa, fui viver so-zinha e passei a viver da minha profissão. Nessa altura fiz a minha escolha, cons-ciente, assumida, responsável.

- Desde sempre que fez Teatro, Cinema e Televisão. Onde é que se sente mais confortável?MV - É engraçado, ainda hoje estava a pensar nisso por causa do início das

MARGARIDA VILA-NOVA, ACTRIZ, 29 ANOS. A VIVER EN-TRE MACAU E PORTUGAL, MAS COM A RAEM COMO BASE, A ACTRIZ PORTUGUESA É A PROTAGONISTA DO NOVO PROJECTO DO REALIZADOR IVO M. FERREIRA COM QUEM VIVE HÁ VÁRIOS ANOS. FALOU-NOS DAS SUAS VIDAS PARALELAS, DO SONHO ABANDONADO DUMA VIDA ROTINEIRA E DO DESEJO DE DEIXAR UMA MARCA EM MACAU

“Não quero ser refém da minha profissão”MARGARIDA VILA-NOVA

filmagens. Sempre quis muito fazer ci-nema. Sempre me fascinou estarmos a trabalhar durante um dia para fazer um minuto, ou um minuto e meio de filme. São feitos dez planos para contar a histó-ria num minuto. Toda a envolvência que tem uma cena, o ambiente da rodagem, a concentração que existe no plateau...é um trabalho de equipa quase comovente.

- As relações humanas tornam-se mais intensas.MV – Sim, no teatro e no cinema as rela-ções são muito emocionantes, as pessoas ficam muito unidas. Mas à parte desse lado romântico a mim fascinava-me o facto de estarmos a trabalhar para uma hora e meia de filme e que cada dia de trabalho era passado por uma equipa in-teira em conjunto a trabalhar para fazer um minuto de filme naquele dia.

- O fascínio pelo cinema continua in-tenso?MV - Pois, era o que estava a pensar, se ainda tinha esse fascínio pelo cinema... e senti que o que me apetecia agora fazer era... teatro! (risos)

- Mas como actriz onde é que se sente mais confortável?MV - Em lado nenhum! (risos)

- Talvez confortável não seja a melhor palavra...MV - Acho que o mais interessante é ter grandes desafios. É muito difícil termos permanentemente desafios que corres-pondam às expectativas que temos da nossa profissão. Nem sempre temos um grande texto, nem sempre temos a opor-tunidade de trabalhar com um grande realizador ou com um grande encenador.

- Mas fazer teatro é completamente di-ferente de fazer cinema.MV – No teatro há uma questão...no te-atro não podemos repetir a cena. Acho que há um lado assassino no teatro...(ri-sos), subir para cima de um palco é quase um acto suicida. Quem já fez teatro pelo menos uma vez na vida nunca se esquece. Ninguém se esquece daqueles dois minu-tos antes de entrar em cena...mesmo que não suba ao palco nos próximos anos o teatro tem sempre uma presença muito forte na minha vida. Agora do que sinto mais falta não sei...

- Há quanto tempo não faz teatro?MV - O último projecto teatral que fiz foi antes de vir para Macau. Foi um monólo-

José C. Mendes

h412

10

2012

GONÇ

ALO

LOBO

PIN

HEIR

O

Page 5: h - Suplemento do Hoje Macau #56

I D E I A S F O R T E S

go no “Bando” há quase um ano e meio. Neste momento já tenho disponibilidade emocional para fazer qualquer coisa, seja teatro seja cinema. Há alturas na vida em que temos outras prioridades, pessoais familiares. Esta profissão é não só desgas-tante como esgotante. Consome-nos e esgota-nos até na nossa liberdade.

- Quando aborda uma personagem, seja no teatro ou no cinema, como é que esse processo se desenvolve. Tem algum método próprio para construir as personagens? MV - Tento sempre primeiro perceber o que é que o realizador, ou o encenador espera. Mais do que a imagem que crio quando leio um texto pela primeira vez, ou daquilo que gostaria de fazer, procuro perceber o que é que o realizador ou o encenador espera dele.

– Gosta de ser dirigida ?MV – Gosto mesmo e preciso mesmo de um director na minha vida... (risos) e o desafio é muito maior e muito mais in-teressante quando conseguimos ir de en-contro a uma imagem que o encenador ou o realizador espera do personagem. Mais do que aquilo que eu acho ou aquilo que eu penso.

- Os personagens estão em primeiro lu-gar?MV - Sim, tenho sempre a tendência de pôr os personagens à minha frente, de os considerar mais importantes do que eu,

mais inteligentes do que eu. A minha in-tenção é sempre servir os personagens, e não servir-me deles. E como cresci num ambiente de artistas habituei-me sempre a ver. Aprendi muito a ver, a observar. É muito importante ver um filme, ler um li-vro, ver uma exposição...

- São fontes de inspiração ?MV- Claro. As ideias para criar persona-gens vêm de muitos lados...não preciso de ir ver uma actriz a fazer de jornalista para fazer este papel. Preciso é de ima-gens e de histórias que me inspirem e que me despertem. Esta profissão é uma pro-fissão de alerta! Procuro nestas alturas es-tar alerta e disponível, mais do que passar muitas horas a olhar para o texto.

– Sinto que a profissão de actor exige um estado de alerta permanente. No dia a dia, mesmo quando não se está a cons-truir nenhum personagem. Saber ouvir,

saber ver... estar sempre atento ao que se passa à nossa volta. Concorda?MV – Sim, sim. E tenho sempre muita dificuldade em explicar os personagens quando me perguntam “Como é que ela é?” Se me perguntar como é esta jornalis-ta do filme do Ivo Ferreira, não sei des-crevê-la dessa forma. Acho que é muito limitadora, muito redutora.

– Já houve algum personagem que a afectasse mais? Daqueles que se agar-ram à pele?MV – As pessoas às vezes dizem “Levas o personagem para casa...” Eu não levo o personagem para lado nenhum! Quando acabo de trabalhar, acabo. Gosto muito de sair de um espectáculo, ou de um dia de rodagem, cansada...

– Há dias muito desgastantes...MV – Sim às vezes chegamos a estados de concentração emocional que saímos

derreados dum dia de trabalho. Isso sim, já me aconteceu várias vezes ao longo da vida. Houve personagens e espectáculos que me deixavam abalada, porque exi-giam um esforço emocional enorme. E podia chegar a casa e estar mais frágil, ou mais agressiva, ou mais doce...mas levar os personagens para casa não. Há é per-sonagens que deixam mais saudades do que outros.

– Houve algum ponto que tenha marca-do o teu percurso profissional? O filme do João Botelho “Corrupção” ?MV – O “Corrupção” é um filme muito dúbio porque as expectativas que eu ti-nha em relação ao resultado do filme... nós plantamos para comer, não é? Temos a ilusão de que vai haver uma relação causa efeito. E posso dizer de que dos personagens que já fiz, esse personagem foi o mais complexo e o mais completo. Foi um trabalho rigorosíssimo e muito duro. Tive seis meses para me preparar para o filme...

– Tanto tempo? MV – Sim, porque por razões diversas o filme foi sendo adiado e fui ganhando tempo. Olhando para os trabalhos que já fiz este foi um dos mais sérios. E no entanto o filme foi tão mal amado, que vendo as coisa à distância sinto que foi um trabalho desprezado.

– Fica triste com isso?MV – Não me deixa triste... não surge

Tenho sempre a tendência de pôr os personagens à minha frente, de os considerar mais importantes do que eu, mais inteligentes do que eu. A minha intenção é sempre servir os personagens, e não servir-me deles. E como cresci num ambiente de artistas habituei-me sempre a ver. Aprendi muito a ver, a observar.

h5

12 1

0 20

12

Page 6: h - Suplemento do Hoje Macau #56

I D E I A S F O R T E S

em mim uma coisa ressabiada, ou revol-tada, porque tento tanto a certeza do trabalho que fiz... e não podemos estar nesta profissão só à espera do resultado que tem sobre os outros.

– Mas como vê o seu percurso no ci-nema?MV – Tenho alguma pena de não ter fei-to um percurso mais... mais... constante ou maior.

– Ainda tem muito tempo...aliás está a

entrar na idade dos grandes papéis, dos grandes personagens...MV – Sim, sim, dizem que é agora que a vida começa! (risos). Seja como for o “Corrupção” marcou-me como um traba-lho que gostei imenso de fazer, mas em termos práticos não teve grandes refle-xos, não teve um efeito prático. A não ser a minha relação com o João Botelho com quem já tinha trabalhado e com quem continuei a trabalhar.

– Não houve portanto nenhum traba-lho que tenha sido um ponto de vira-gem na tua carreira?MV – Não. Posso estar muito enganada e a ser injusta, mas eu nunca estive na

moda. Tive momentos com mais prota-gonismo em várias alturas, mas sinto-me sempre uma outsider.

– No teatro ou no cinema?MV – Tanto no teatro como no cinema. Trabalho muito com António Pires no te-atro e fiz todos os últimos filmes do João Botelho, mas não faço parte de um “gue-to”. Sempre me senti um bocado outsider.

– E sente-se confortável com essa sensação?

MV – Hoje em dia o meu bem-estar passa muito pelo meu equilíbrio pesso-al. Felizmente estou muito bem casada e tenho dois filhos maravilhosos. Não me sinto descompensada nem frustrada. Te-nho outras coisas que me inspiram e que me preenchem. O que não quer dizer que não gostasse de fazer mais coisas...

– Falando agora de Macau. Como veio aqui parar e o que a faz ficar por cá?MV – (risos) Eu e o Ivo Ferreira sempre quisemos ter uma vida independente das novelas, dos subsídios. Os actores têm uma vida muito precária. E gostamos os dois muito de viajar. E pensámos que tí-nhamos de chegar a uma idade da nossa

vida em que devíamos tomar as nossas próprias decisões.

– Macau foi uma decisão a dois?MV – Sim. E pensámos em muitas coisas. Mas uma das conclusões a que chegámos foi de que não podíamos ficar reféns das nossas profissões, não podíamos ficar à mercê das nossas profissões.

– E foi aí que apareceu a Mercearia Por-tuguesa, em Macau?MV – Sim, depois de pensarmos em muitas coisas. Depois de uma das via-gens pelo Oriente, passámos por Ma-cau. Foi aqui que o Ivo montou a sua primeira produtora, viveu aqui, e re-gressou sempre a Macau e à China para filmar. É aqui que ele encontra uma at-mosfera e um ambienta com que mais se identifica. E onde quer desenvolver o seu cinema.

– E a Margarida?MV – Naturalmente que eu tinha curio-sidade de começar a explorar este territó-

rio. Estávamos em 2010. Eu gostei imen-so de Macau e decidimos desenvolver aqui a nossa segunda vida. A nossa vida paralela e fazer aqui o projecto que nos permitisse tomar as nossas decisões.

– Como é que surge a ideia da Mercea-ria Portuguesa?MV – Macau tem uma presença portu-guesa com 500 anos. Continua a ter uma comunidade portuguesa muito grande. E em termos turísticos e culturais está na rota de muitos turistas ocidentais. Hong Kong, Taiwan, Singapura, Japão e China. Por isso fazia todo o sentido haver uma loja especializada em produtos tradicio-nais portugueses que representasse a nos-sa história e a nossa cultura e marcas que fazem parte do melhor que o nosso país produz.

– E assim foi criada a alternativa para não ficarem reféns da profissão.MV – Exacto. Tínhamos muitos compro-missos em Portugal.

– Ainda tinha o contrato de exclusivida-de com a TVI ?MV – Sim, entretanto já terminou. Tam-bém estava escalada para uma novela e tinha dois espectáculos de teatro para fa-zer. O Ivo tinha recebido o subsídio para “As Cartas da Guerra”, que deve arrancar para o ano. Tivemos portanto um ano

Não considero a minha passagem por Macau nada leviana e gostava de deixar um trabalho feito aqui. Não sei como vai ser o dia de amanhã, se estou cá ou não. Não faço planos a longo prazo, mas a curto ou médio prazo gostava de deixar um trabalho feito em Macau.

para nos reorganizarmos e avançar com o projecto de vir para Macau.

– E como se sente enquanto actriz em Macau?MV – Como actriz estou sempre um pouco limitada por causa da língua mas o Ivo pode desenvolver aqui como realiza-dor um projecto muito mais ambicioso e audacioso do que o que poderia fazer em Portugal. E está perto duma atmosfera na qual ele se sente bem e gosta de filmar. Se eu posso fazer parte desse projecto, tanto melhor. Juntamos o útil ao agradável.

– O lado familiar também beneficia.MV – Sim é bom ver os filhos crescer aqui e poder apanhar um avião e ver o mundo...

– Portanto está cá para ficar?MV – Não sei se estou cá para ficar. Quando estava a sair de Portugal sempre disse que estava a viver duas vidas para-lelas. Em Portugal e em Macau. Este ano já fui três vezes a Portugal. Mas a base é

sem dúvida aqui. E não estamos cá por acaso. Estamos em Macau porque a re-gião reúne determinadas características.

– Mas vai voltar a Portugal brevemente para trabalhar? MV – Sim, para trabalhar em projectos de que gosto. Mas dadas as circunstân-cias actuais do país, não sei se isso vai acontecer muitas vezes. Para já irei tra-balhar no ano que vem com o encenador António Pires na peça “O Público” de Lorca, que vai ser feito no Teatro S. Luiz.

– Mas estar aqui não é mais limitativo em termos profissionais?MV – Eu percebo que o facto de estar em Macau pode trazer alguns constrangi-mentos em termos profissionais em Por-tugal, mas hoje em dia tenho muito mais disponibilidade para trabalhar do que há uns tempos atrás. Tinha muitos projectos e o próprio contrato de exclusividade com a TVI não me dava a liberdade de poder fazer isto ou aquilo...

– Não há mais contratos assinados?MV – Não, a opção de estar aqui tam-bém passa por poder fazermos a nossa vida independentemente dos contratos de televisão. Não quer dizer que não queira fazer televisão. Há sempre projec-tos interessantes para fazer. Depende do projecto e das oportunidades.

h612

10

2012

Page 7: h - Suplemento do Hoje Macau #56

I D E I A S F O R T E S

– E projectos em Macau?MV – Enquanto estivemos a montar a Mercearia Portuguesa não houve tempo para mais nada. A Mercearia vai fazer um ano e agora já posso pensar noutras coisas. Dizem-me muitas vezes. “Estás ao lado de Hong Kong”, é verdade, existe um mer-cado enorme com muitas co-produções...mas também tive um filho entretanto. Só agora é que acho tenho disponibilidade e disposição para fazer as coisas.

– Portanto a partir de agora podemos esperar ver mais a Margarida Vila-Nova enquanto actriz em Macau?MV – Não considero a minha passagem por Macau nada leviana e gostava de dei-xar um trabalho feito aqui. Não sei como vai ser o dia de amanhã, se estou cá ou não. Quando se perdem algumas pessoas na vida percebemos melhor a efemeridade da própria vida. Ganhamos outro peso e outra dimensão da vida. Não faço planos a longo prazo, mas a curto ou médio prazo gostava de deixar um trabalho feito em Macau. Um trabalho que faça sentido e que gostava de desenvolver com o Ivo Ferreira.

– E como é que vês a actividade artísti-ca no território?MV – Acho que existe uma nova movi-da a crescer e a acontecer em Macau. Há dois anos atrás não sentia a mesma coisa. Agora há sempre qualquer coisa a aconte-cer. Claro que são projectos mais pontu-ais, muitas coisas vêem de fora e não são trabalhos desenvolvidos em Macau. Mas acho sobretudo que Macau tem condições para construir uma nova movida cultural.

– Porque tem dinheiro...MV – Porque tem dinheiro, porque tem uma classe média alta intelectual e com vontade de ver espectáculos, exposições, teatro, cinema e com poder de compra. Ainda que as coisas não aconteçam à velo-cidade que gostaríamos, acho que há uma nova movida a começar. Vê-se muita gen-te nova ligada ao cinema, ao teatro, muita gente que também chegou de Portugal. Pessoas de som, de imagem, de produção com vontade de começar a fazer coisas.

– Achas portanto que Macau tem po-tencial cultural ?MV - Sim, e também têm acontecido outras coisas. Produções de Hong Kong. Ainda há dois dias andavam à procura de uma actriz portuguesa para uma coisa de Hong Kong. Portanto há coisas de Hong Kong a acontecer em Macau.

– E ter o marido como companheiro de trabalho? Não é complicado?MV – Já é a segunda vez que trabalhamos juntos. Desta vez está a ser mais tranqui-lo. A primeira vez foi explosiva... (risos). Mas acho que há uma cumplicidade mui-to engraçada que fomos construindo ao longo dos anos, e é muito engraçado ver isso no trabalho.

- Que projectos para o futuro?MV - Está tudo em aberto.

h7

12 1

0 20

12

Page 8: h - Suplemento do Hoje Macau #56

h812

10

2012 C H I N A C R Ó N I C A

五台山CARÍCIAS DE TEMPLOS E MOSTEIROSWUTAISHAN, PROVÍNCIA DE SHANXI

Page 9: h - Suplemento do Hoje Macau #56

h9

12 1

0 20

12C H I N A C R Ó N I C A

António GrAçA de Abreu

SÓ EM 2001 concretizei um desejo então com mais de vinte anos, subir até aos tem-plos e mosteiros de Wutaishan, na provín-cia de Shanxi, suspensos numa das quatro montanhas sagradas do budismo chinês. As outras três são Emeishan, na província de Sichuan, Jiuhuashan na província de Anhui e a ilha de Putuoshan na província de Zhe-jiang, não muito longe de Xangai. Wutaishan, Património Mundial da Hu-manidade pela Unesco desde 2009, cor-responde a uma sucessão dos montes, uma vasta cordilheira com cinco grandes picos situados entre as províncias de Shanxi e Hebei, o mais alto dos quais chega aos 3.150 metros, a maior elevação de todo norte da China.五台Wutai significa exactamente “cinco terraços” porque nos cumes da serrania existem cinco pequenos planaltos ou ter-raços onde foram levantados os mais im-portantes templos da montanha. A região é verdejante e fresca no Verão, seca e fria no resto do ano.Foi este o lugar quase inóspito, desabitado, de excelente e avassaladora beleza escolhi-do pelos budistas chineses para, há deza-nove séculos atrás, começarem a construir no Império do Meio os seus primeiros luga-res de recolhimento e oração.O budismo vindo da Índia foi introduzido na China na dinastia Han, durante o rei-nado do imperador Ming Di (28-75) que, num sonho, viu um corpo dourado que ir-radiava luz, o próprio Buda. Os clássicos budistas começaram a ser traduzidos para língua chinesa e incorporaram alguma da terminologia utilizada nos textos confucia-nos e, sobretudo, empregue nos cânones taoístas. Registou-se uma gradual acultu-ração do budismo à cultura chinesa, com uma lenta infusão do pensamento taoísta nos ensinamentos budistas. Este “abas-tardamento” da doutrina original de Buda haveria de dar origem a diferentes escolas, quer no Império do Meio quer no Japão onde o budismo, via China e Coreia, só seria introduzido a partir do sec. VI. Entre estas escolas destaca-se a criatividade do

budismo禅chan ou zen (em sânscrito dhyana que significa meditação).Mas o que é o chan ou zen, amplamente pra-ticado pelos monges de Wutaishan?1 Re-conheço a minha avassaladora ignorância para responder a tal pergunta mas, na boa via budista, talvez seja possível pressentir que será a busca da sabedoria e da ilumina-ção, através da meditação. Cada indivíduo traz um buda dentro de si e deverá chegar a estados mais desenvolvidos do conhe-cimento e da depuração da mente através da meditação, pelo isolamento, pela con-templação da natureza. É isso que pode acontecer nestas montanha Wutai, lugar de excelência para meditar e nos deixarmos embalar nos braços de Buda, na variante chan. Recordemos uma história exemplar:

“Um dia um mestre chan estava tranquilamente sentado de pernas cruzadas. Aproximou-se dele um monge que lhe perguntou:- Em que pensas, nessa imobilidade absoluta?- Penso no que está para além do pensamento.- Como consegues pensar no que está para além do pensamento?- Não pensando”.

Os primeiros templos de Wutaishan come-çaram a ser construídos por volta do ano 70 da nossa era. No século V, um monge in-diano de nome Manjusri, “mão esquerda de Buda” e Buda da sabedoria, depois de longa viagem, fixou-se em Wutaishan e aqui al-cançou a iluminação. Depois de Manjus-ri, o lugar cresceu em importância como centro do enraizamento e divulgação do budismo na China. Anualmente, no quarto dia do quarto mês -- no nosso calendário no início de Maio --, em todos os templos da montanha têm lugar cerimónias religio-sas em honra de Manjusri, que terá morrido nesse dia.No ano 845, o imperador Wuzhong deci-diu tomar medidas drásticas contra o bu-dismo. A prática da doutrina de Buda cres-cera desmesuradamente e a sua influência económica e social começara a pôr em pe-rigo o próprio poder imperial. Foram então encerrados inúmeros templos e mosteiros, foi ordenado o regresso à vida civil de 260 mil monges, centenas de milhares de hec-tares de terra foram confiscados pela corte.

Os templos de Wutaishan foram tremen-damente afectados por esta perseguição e a montanha budista que chegou a contar com trezentos templos e dez mil monges, perdeu muito do seu fulgor. Hoje, ano 2012 restam ainda quarenta e sete templos.Durante as dinastias Ming e Qing (de 1368 a 1911), Wutaishan conheceu uma presen-ça contínua de monges vindos do Tibete e da Mongólia e o budismo actualmente pra-ticado nestes templos manifesta forte influ-ência do lamaísmo tibetano. Os imperado-res Kangxi (r. de 1662 a 1722) e Qianlong (r. de 1736 a 1796) tinham o bom hábito de viajar pelo império para melhor conhe-cerem as imensas terras que governavam. Ambos estiveram em Wutaishan, já no sé-culo XVIII, para render homenagem a Buda o que acrescentou mais fama à já muita fama dos lugares.Quem buscar tranquilidade e paz numa China superpovoada, afogueada, extenuada pela luta quotidiana por uma vida melhor, encontrará em Wutaishan, nos pequenos hotéis que bordejam as estradas que quase entram por dentro dos templos budistas, nos isolados trilhos de montanha, lugares de meditação e evanescente sossego. E terá ao lado o maior conjunto de templos bu-distas de toda a China, para falar com com Buda, limpar a mente e depurar o coração.No templo de Pusading, montanha Wutai, escrevi:

A natureza protectora e mãe acaricia o fundo do vale,desenha rendas de bruma nos picos da montanha.A névoa branca flutua sob um céu azul e rosa,os montes verdes, húmidos de prazer, abrem os braços ao clarão do entardecer.A alma olha o céu,cerra os olhos.Depois descansanum terraço entre nuvens.

1 Depois de algum estudo e de muita meditação, o autor deste texto continua pouco capaz de entender as subtilezas, chamemos-lhe assim, do chan 禅 ou zen. Mas estou em boa companhia. O poeta Casimiro de Brito escreve: “Graças ao zen, o véu desprendeu-se do espelho: deixei de me ver, aprendi a ver. Mas ainda não vi nada.”, em Arte da Respiração, Lisboa, D. Quixote, 1988, pag. 118.

CARÍCIAS DE TEMPLOS E MOSTEIROSWUTAISHAN, PROVÍNCIA DE SHANXI

Page 10: h - Suplemento do Hoje Macau #56

h1012

10

2012

luz de inverno Boi Luxo

SEDMIKRÁSKY (DAISIES), 1966, VERA CHYTILOVA

É sempre tentador, ao falar do cinema que na Europa de Leste se fez durante os anos 60, enveredar por uma introdução, admi-rativa, pela corrente de excentricidade e li-berdade que lhe serve de base, citar nomes e exclamar elogios, hoje inevitavelmente um pouco paternalistas. É difícil não ten-tar partilhar o poder efusivo que deles se desprende. Apetece falar da Nova Vaga checa mas falar das Novas Vagas, sejam elas francesa, japonesa ou checa, além de possivelmente pedante, é démodé e, sobre-tudo, repetitivo e cansativo. Tudo isso se poderá ver nos livros ou na internet.Igualmente (prossegue o paternalismo), é difícil não lembrar que uma das expres-sões mais estúpidas dos regimes autocrá-ticos é a censura e o manto de opressi-va tristeza que aqueles lançam sobre os povos que oprimem. Este também foi um filme proibido imediatamente após a sua primeira apresentação. Mas hoje, para lá da tristeza, da opressão e do absurdo, o que neste filme sobrevive (no sentido do que tem para nos oferecer, no sentido da sua actualidade junto de nós) é a liberdade e a beleza das duas mulheres deste filme feito por uma mulher. Isto não devia ser um filme de 70 minutos mas uma série de

15 horas, uma série sobre a passagem do tempo e a inutilidade das palavras - além de uma série sobre a natureza cómica e ridícula do amor. Fica também a capaci-dade de invenção visual, uma montagem sinistra, histriónica e promíscua que lança este objecto em áreas de outras artes.As duas mulheres decidem ser más e des-trutivas. Que o façam depois de mostra-das imagens da Guerra, provavelmente a Segunda, e sendo provenientes de um país onde quase houve (mais tarde) liber-dade, justifica perfeitamente a sua fúria. A um mundo estragado segue-se o desejo de uma autoestragação, uma autodestrui-ção, e esta é a história do filme.Aparecem, a dada altura, símbolos óbvios da censura e da repressão, cadeados, por-tas fechadas e (muitas) tesouras. As ima-gens de clausura reflectem uma tendência que noto em outros filmes checoslovacos da altura, e em filmes checos posteriores: o seu rosto carrega uma permanente ironia e uma distância pequena mas quase violenta, uma opacidade de palco, muito teatral e opressiva. A engrenagem que une o filme ao espectador não trabalha com facilidade, nas suas rodas e roldanas está presente, de modo muito rude, um (deliberado?) ruído.

O genérico mostra-nos, precisamente, engrenagens que fazem recordar as que Jan Svankmajer anima de um modo tam-bém igualmente atraente mas rigoroso e tantas vezes assustador. Este filme tam-bém é um pouco um boneco de corda. Nele encontramos, como em Svankma-jer, o mesmo staccato do ruído das madei-ras, o mesmo amor pelos objectos e pela mecânica e pelos mecanismos metálicos. Staccato, que é um termo que conhece-mos através da música, um termo italia-no, quer precisamente dizer “separado de”... ou “desligado de...”, uma sucessão de notas de duração curta. Esta qualidade é omnipresente nas animações de Svank-majer e marca também neste filme um ritmo duro, militar, irritante, repetitivo, arrogante, muito rápido, adolescente e mimado – também terrível.Este filme esconde outras delícias. Uma delas actua, hoje em dia, com bastante ac-tualidade e muito pouca correcção políti-ca - a do abandono ao excesso de comida, a do abandono ao esbanjamento, terrível, deliciosamente imoral. É o motivo mais recorrente, ligado ao das refeições com os homens velhos, anti-margaridas, mas, na sua expressão mais tonitruante, em re-

feições selvaticamente saboreadas pelas duas irmãs. É, mais do que uma desistência chocante da propriedade e do decoro, uma grande bouffe, quase insuportavelmente feminina e amusant, a espaços anti-fálicas (as cenas dos cortes, mais uma vez a tesoura, de sal-sichas, bananas ou pepinos de conserva) e sistematicamente violentas. O modo como estas duas mulheres tratam a co-mida e a bebida, ecoa, de maneira pouco subtil mas muito indecentemente atraen-te, o modo como a estupidez empurra os homens para a guerra, o obscurantismo e a interdição.Por vezes as bouffes combinam-se com refeições com homens velhos, adúlteros secundários, contrastes perfeitos à fres-cura e à mocidade das duas margaridas do filme. Que as duas frescas jovens te-nham sucumbido à tentação de se deixa-rem “estragar”, à semelhança do mundo bombardeado que se lhes oferece como espectáculo, e que deixem exibir a sua in-compreensão deste, só seria disfórico se elas não tivessem embarcado numa dança macabre de engolimento, num carnival apocalíptico. Os momentos líricos junto ao rio só vêm sublinhar aquela voragem.

P R I M E I R O B A L C Ã O

Page 11: h - Suplemento do Hoje Macau #56

T E R C E I R O O U V I D O h11

12 1

0 20

12

“If something is boring after two minutes, try it for four. If still boring, then eight. Then sixteen. Then thirty-two. Eventually one discovers that it is not boring at all.” John Cage

Em Outubro de 2007, o jornal The New York Times (NYT) trazia um artigo sobre a “música chinesa avant-garde underground”, dando conta de que o “submundo” estava em expansão e a fazer “barulho” (ainda o “noise”). No texto, assinado por Ben Sisario, usava-se a loja de música Sugar Jar (a única, em Pequim, a vender os discos que brotavam do “under-ground”), na altura escondida num dos recan-tos do complexo de galerias / atracção turística “798”, como a metáfora para o movimento mu-sical mais “avant-garde” chinês: “Um nicho mi-núsculo na sociedade, ensombrado pelo maior e largamente mais lucrativo mundo das artes visuais contemporâneas”.

Mas, há cinco anos, escrevia o NYT, o tra-balho dos músicos chineses começava a atrair a atenção internacional (Brian Eno e Elliott Sharp faziam parte do rol de nomes que, recen-temente, tinham visitado Pequim para abenço-ar a cena local). Sharp, figura omnipresente da vanguarda nova-iorquina, afirmava derreti-do ao NYT: “O pulsar da cena de Pequim é excitante e faz-me lembrar Nova Iorque em 1979. Há o mesmo sentimento de descoberta e transgressão”. Digamos que o homem sabe do que fala.

Enquanto a cena nova-iorquina derivou (ou degenerou, dependendo da perspecti-va) em inúmeros outros movimentos que, de um modo ou de outro, deram continuidade à transposição dos limites que vinham do tempo da “descoberta e transgressão”, em Pequim, a situação (ainda) não se alterou muito.

Na maioria dos casos, os músicos continu-aram a viver na sombra das artes visuais e plás-ticas, mesmo que a espectacularidade com que estas impressionaram tudo e todos pareça estar em declínio. Apesar de comunicarem na mais universal das linguagens (a música), o resto do mundo continua a ignorá-los hoje como igno-rava há 5 ou 10 anos. É verdade que a socie-dade chinesa tem vindo a revelar, progressiva-mente, uma maior abertura para as domésticas expressões artísticas, mas, em paralelo, o re-gime comunista tem reforçado o controlo e o exercício de influência na definição dos valores estéticos e morais “aceitáveis”, o que, invaria-velmente, redunda na almejada uniformização e na eliminação de qualquer traço saliente de individualismo.

Sintomático, no artigo do NYT de Outu-bro de 2007, Kenneth Fields, professor de mú-sica electrónica no Conservatório de Música de Pequim, lamentava a falta de criatividade e de pensamento livre entre os estudantes da sua universidade e de outras. Na China, dizia, a música mais vibrante vem do “underground”, onde a mão que domina todos os media, apa-

próximo oriente Hugo Pinto

rentemente, não chega, e onde se reflecte a anarquia. “No topo não há inovação”, resumia Fields, “mas lá em baixo, no fundo, há imensas liberdades informais”.

Sem ironias, dir-se-ia que, na China, os artistas vanguardistas estão condenados a ser livres, isto é, votados ao ostracismo e à indi-ferença que, quais “males que vêm por bem”, lhes granjeiam o (desas)sossego que os move. Paz podre do opróbrio? Talvez.

Como no mito de Sísifo, onde um ho-mem carrega uma pedra enorme até ao

cimo de uma montanha para, aí chegado, deixar que a pedra caia e role pela encosta abaixo, e todo o processo se inicie de novo, assim andarão estes artistas marginais (das margens) chineses, lidando em pleno com o quotidiano absurdo. Dizia Albert Camus: “É preciso imaginar Sísifo feliz”. Ou, como diz John Cage na epígrafe deste texto: “If something is boring after two minutes, try it for four. If still boring, then eight. Then sixteen. Then thirty-two. Eventually one discovers that it is not boring at all.”

COME ON, FEEL THE NOISE (II)

Page 12: h - Suplemento do Hoje Macau #56

h1212

10

2012

perspectivas Jorge rodrigues simão

C I D A D E S I N V I S Í V E I S

“Everything comes from everything; everything is made of everything; everything turns into everything, for all that exists in the elements it’s made of these elements.”

Leonard da Vinci Codex Atlanticus

O PARLAMENTO Europeu (PE) definiu as linhas gerais da futura estratégia euro-peia para a Região Atlântica por meio da resolução de 9 Março de 2011, aprovada com 589 votos a favor, 26 votos contra e 54 abstenções, e que propõe a sua exe-cução a partir de 2014, em coordenação com o próximo quadro financeiro plu-rianual. Esta estratégia regional atlântica tem por objectivo estudar e encontrar so-luções nas áreas da segurança, transporte marítimos, pesca, meio ambiente, turismo e investigação. Terá de estar ligada a um plano de acção definido a nível europeu que inclua uma lista de projectos estrutu-rais.

O PE pôs ênfase no forte vínculo com a “Estratégia Europa 2020”, que tem por fim a melhoria do uso dos fundos marinhos da União Europeia (UE), racio-nalizando os recursos de forma mais efi-ciente, tendo em vista reduzir os custos. O PE propõe ainda, que a estratégia para a Região Atlântica esteja relacionada com a política regional e marítima integrada da UE e que se alargue a todas as regiões situadas no litoral atlântico, incluídas as regiões ultraperiféricas de Macaronésia, ou seja os arquipélagos da Madeira, Ca-nárias, Açores e Cabo Verde.

A Espanha, Portugal, França, Reino Unido e Irlanda são os cinco Estados--membros da UE que possuem costa atlântica. No contexto da criação de um desenvolvimento equilibrado e susten-tável do território europeu, trata-se de conseguir instrumentos e políticas que permitirão atingir o mencionado objec-tivo, respondendo aos grandes desafios que os territórios atlânticos têm de fazer face, nomeadamente em questões como as da acessibilidade, segurança marítima, mudança climática e energia, entre mui-tos outros.

A Comissão Europeia (CE) publi-cou, em 21 de Novembro de 2011, o documento “Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões”, intitulado, “De-senvolver uma estratégia marítima para a Região Atlântica” (Comunicação). A “Comunicação” da CE pretende estimular o crescimento e o emprego na zona do Oceano Atlântico, formulada no quadro da política marítima integrada da UE.

O Oceano Atlântico, que delimita a fronteira ocidental da UE, é o segun-do maior oceano do mundo. A “Comuni-cação” é a resposta ao pedido feito pelo

A ECONOMIA AZUL NA EUROPAConselho da UE e do PE, cujo seu conte-údo é coerente, equilibrado e compatível com a “Estratégia Europa 2020” e as suas iniciativas fundamentais promovem a co-esão territorial e consideram a dimensão internacional. Ainda que, a abordagem proposta se centralize, em grande parte, na forma de ajudar as comunidades que vivem e trabalham na costa atlântica a fa-zer face às novas realidades económicas, reconhece também, que a UE partilha a responsabilidade pela gestão dos oceanos a nível mundial.

A estratégia, em termos gerais, abrange o litoral, as águas territoriais e ju-risdicionais dos cinco Estados-membros da UE com costa atlântica, bem como as águas internacionais que atingem as Amé-ricas, a Ocidente, a África e o Oceano Ín-dico, a Oriente, o Oceano Antárctico, a Sul, e o Oceano Árctico, a Norte. Além das acções que, a nível nacional e local envolvem os cinco Estados-membros, é desejável que os restantes Estados-mem-bros que utilizam este espaço e os par-ceiros internacionais que com ele fazem fronteira assumam igualmente compro-missos neste domínio.

É necessário também tomar em con-sideração as implicações de uma eventual adesão da Islândia à UE. Todas as acções propostas serão financiadas no âmbito de programas existentes e não terão um im-pacto adicional no orçamento da UE. A “Comunicação” indica os desafios e opor-tunidades na região e faz um balanço das iniciativas existentes que podem apoiar o crescimento e a criação de postos de tra-balho. A CE propõe que a estratégia se aplicará através de um plano de acção a realizar em 2013, e pede às partes inte-ressadas que ajudem a planear projectos concretos que possam enquadrar-se no financiamento da UE.

O Comité Económico e Social Euro-peu propõe a constituição até ao final do ano, de um “Foro Atlântico” que acolha de forma adequada a participação de todos os actores implicados no desenvolvimen-to estratégico do Atlântico, como são os Estados-membros, instituições europeias, autoridades regionais e organizações da sociedade civil.

Os ministros da UE, entre 7 e 8, re-alizaram uma reunião ministerial de ca-rácter informal da “Política Marítima In-tegrada”, em Chipre, que detém desde 1 de Julho a presidência rotativa semestral do Conselho da UE, oito anos após a sua adesão realizada, em 1 de Maio de 2004 e quatro anos passados após a sua entrada na “Zona Euro”, em 1 de Janeiro de 2008. A pequena ilha mediterrânica com qua-se 800 mil habitantes continua dividida desde 1974, pertencendo 1/3 do seu ter-ritório, a Norte, à Turquia que o ocupou,

constituindo a República Turca de Chipre do Norte, não reconhecida a nível inter-nacional. A parte greco-cipriota, a Sul, sucedeu à Dinamarca na presidência se-mestral do Conselho da UE, com o mes-mo peso das últimas presidências, ou seja, uma agenda densa e pautada pela crise económica.

A reunião de ministros que se reali-zou na segunda cidade mais populosa da República de Chipre, discutiu as possibi-lidades de crescimento económico que oferecem os sectores que se enquadram no âmbito da política marítima, tendo sido adoptada a denominada “Declaração de Limassol”, para o desenvolvimento de uma política no sector que permita animar o crescimento e o emprego. A declaração tem por base a iniciativa sobre as possi-bilidades de crescimento na denominada “economia azul” adoptada pela CE, que aposta numa exploração sustentável dos oceanos e mares e estuda a forma pela qual a política marítima pode contribuir para a saída da crise económica, em par-ticular nas possibilidades que oferece o turismo costeiro, as energias renováveis a partir das correntes marítimas, a aqui-cultura, a biotecnologia e a extracção de minerais nos fundos marinhos.

A CE prevê que o turismo costeiro e marítimo, o sector com maior peso em termos de valor acrescentado e empre-go dentro da política marítima, crescerá entre 2 e 3 por cento até 2020. A presi-dência cipriota fez da política marítima, uma prioridade durante o seu mandato e a organização da reunião de ministros em Chipre, inscreveu-se nesse quadro. A política marítima integrada, foi criada em 2007, tendo por finalidade facilitar a coo-peração de todos os operadores europeus nos diferentes sectores e Estados-mem-bros da UE. A CE e os Estados-membros apostam no apoio à investigação e co-nhecimento do meio marinho, forma-ção marítima, cooperação rentável em matéria de vigilância marítima, melhoria da ordenação do espaço marítimo e na aplicação da A Directiva n.º 2008/56/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Junho, designada por “Directiva--Quadro da Estratégia Marinha”, para que seja possível o crescimento e a criação de emprego na “economia azul”.

A “Directiva-Quadro da Estratégia Marinha” estabelece um quadro de acção comunitária no domínio da política para o meio marinho e tem como objectivo promover o uso sustentável dos mares e a conservação dos ecossistemas marinhos, incluindo o leito do mar, estuários e áre-as costeiras, dando especial atenção aos locais com elevado valor em biodiversi-dade. A sua aplicação prevê o desenvolvi-mento de estratégias marinhas aplicáveis

às águas marinhas sob soberania ou juris-dição nacional, as quais integram a região marinha do Atlântico Nordeste e as sub--regiões da Costa Ibérica e da Macaroné-sia, com vista à obtenção ou manutenção de um bom estado ambiental no meio marinho, através da prevenção da sua deterioração, da valorização equilibrada dos recursos e sua utilização sustentável, da recuperação de áreas degradadas, bem como da prevenção e progressiva redução da poluição marítima.

As estratégias marinhas a aplicar às águas marinhas serão desenvolvidas de acordo com um plano de acção compos-to por uma fase de preparação e uma fase de programa de medidas. O programa de medidas destinadas à consecução ou à manutenção de um bom estado ambien-tal deverá ser elaborado até 2015, estan-do o início da sua execução previsto para 2016. A CE publicou no passado mês um relatório sobre as possibilidades de de-senvolvimento das economias vinculadas ao mar e estimou em cerca de 5,5 milhões o número de postos de trabalho, criados pelos sectores ligados ao meio marinho. O número de postos de trabalho pode ascender a mais de 7 milhões até 2020, se for aplicada uma estratégia apropria-da. O turismo de cruzeiros poderá criar mais de 100 mil postos de trabalho na UE. Para tanto, é necessário eliminar barreiras à inovação e à investigação nos sectores marítimo e marinho. A assina-tura da “Declaração de Limassol”, fez a CE iniciar os trabalhos no sentido de apresentar propostas concretas nas áreas fixadas e identificadas nos próximos me-ses, centrando-se em medidas que impul-sionem a criação de postos de trabalho. É de considerar de extrema importância e potencial a energia renovável marítima e a aquicultura.

A aquicultura é o sector de produ-ção de alimentos que cresce mais rapida-mente a nível mundial. A produção aquí-cola, desde 1984 tem aumentado numa média anual de cerca de 10 por cento, re-lativamente aos cerca de 3 por cento de carne bovina e de 1,6 por cento da pesca. A aquicultura apareceu como um meio de fornecimento de alimentos e uma das principais contribuições para a se-gurança alimentar. A aquicultura produz mais de uma quarta parte da pesca total mundial. A criação de peixe é milenária e actualmente a aquicultura produz uma vasta variedade de plantas e animais. A aquicultura de água doce (peixe de esca-mas sobretudo), em 1997, compreendeu mais de 45 por cento da produção aquí-cola mundial. As plantas e os moluscos marinhos totalizaram entre 20 e 25 por cento, respectivamente. A aquicultura de água salgada proporciona menos de 5 por cento do total mundial, mas dado que esta produção é sobretudo de cama-rão, pelo seu valor, representa cerca de 15 por cento.

Page 13: h - Suplemento do Hoje Macau #56

h13

12 1

0 20

12C I D A D E S I N V I S Í V E I S

Nesta entrevista ao site equatoriano GkillCity, o linguista e filósofo norte-americano defende que Assange não teria hipóteses de ter um julgamento justo nos Estados Unidos. Chomsky acrescenta que do ponto de vista de quem ama a democracia, o fundador do Wikileaks merecia “uma medalha de honra” em vez de um julgamento. “A sombra que paira sobre todo este assunto é a expectativa de que a Suécia envie rapidamente Assange para os EUA, onde as hipóteses de ele receber um julgamento justo são virtualmente zero”.

José Maria León In Gkillcity

O governo norte-americano emitiu uma nota em que declara que este assunto Julian Assange é um problema de bri-tânicos, equatorianos e suecos. Você acha esse argumento honesto? Os EUA estão interessados no destino do cria-dor do Wikileaks?A declaração não pode ser levada a sério. A sombra que paira sobre todo este assun-to é a expectativa de que a Suécia envie rapidamente Assange para os EUA, onde as hipóteses de ele receber um julgamen-to justo são virtualmente zero. Tudo isso é evidente a partir do tratamento bru-tal e ilegal dado a Bradley Manning [o soldado norte-americano acusado de ter vazado as informações mais importantes que o Wikileaks publicou], e a histeria geral com que o governo e os media vêm tratando o caso. Além disso, do pon-to de vista de quem acredita no direito dos cidadãos a saber o que seus gover-nos planeiam e fazem - ou seja, de quem tem afeto pela democracia - Assange não deveria receber um julgamento, mas uma medalha de honra.

Numa entrevista com Amy Goodman para o Democracy Now!, você afirmou que a principal razão para os segredos mantidos pelos Estados é protegerem-

“QUEREM VENCER ASSANGE PELO CANSAÇO”

Noam Chomsky

-se da sua própria população. É a pri-meira vez na história em que o mundo vê as verdadeiras cores da diplomacia?Qualquer um que estuda documentos cujo prazo de sigilo expirou, percebe que o segredo é, em grande parte, um esfor-ço para proteger os políticos dos seus próprios cidadãos - e não o país dos seus inimigos. Sem dúvida o segredo é por ve-zes justificado, mas é raro - e no caso dos documentos expostos pelo Wikileaks, eu não vi um único exemplo disto. Esta não é - de maneira nenhuma - a primeira vez que as verdadeiras “cores da diplo-macia” foram expostas por documentos divulgados. Os Pentagon papers são um caso famoso. Mas a questão é que se trata de um tema recorrente. As informações contidas inclusive nos documentos des-classificados oficialmente são, em geral, muito impressionantes. Porém, muito ra-ramente estas informações tornam-se co-nhecidas pelo público - e até pela maior parte dos académicos.

Sobre o asilo oferecido pelo Equador para Assange, aponta-se uma ambigui-dade na atitude do governo de Rafael Correa. Por um lado, manteria confron-to retórico constante com os media (es-tando em disputa judicial com o diário El Universo e o jornalista Juan Carlos Calderón e Christian Zurita, autores do livro Big Brother). Por outro, defende Julian Assange. Você também vê uma contradição nisso?Pessoalmente, acho que só em circuns-tâncias extremas o poder do Estado deve-ria limitar a liberdade de imprensa - não importando, a esse respeito, quão vergo-nhoso e corrupto seja o comportamento dos media. Não há dúvida que houve vá-rios graves abusos - por exemplo, quando as leis de difamação inglesa foram usadas

por uma grande empresa mediática para destruir um pequeno jornal dissidente, que publicou uma crítica a uma de suas notícias sobre um escândalo internacio-nal. Ocorreu há alguns anos, e não des-pertou praticamente nenhuma critica. O caso do Equador tem de ser analisado pelos seus méritos, mas qualquer que seja a conclusão, não há qualquer influência em dar asilo ao Assange; assim como a supressão vergonhosa da liberdade de imprensa, no caso que mencionei, não deveria pesar, se a Grã-Bretanha con-cedesse o direito de asilo a alguém que teme perseguição estatal. Nem ninguém afirmaria o contrário, no caso de um po-deroso Estado ocidental.

Já que estamos falando de ambiguida-de, haveria um duplo padrão na aplica-ção das leis pelos britânicos, já que no caso de Pinochet o pedido de extradi-ção solicitado por Baltazar Garzón foi negado?O padrão reinante é subordinado aos interesses de poder. Raramente há uma exceção.

Qual é, na sua opinião, o futuro ime-diato no caso Assange? A polícia britâ-nica invadirá a embaixada equatoriana? Assange será capaz de deixar a Inglater-ra? Mais tarde, estará em perigo, mes-mo recebido pelo Equador?Não há praticamente nenhuma possibili-dade de Assange sair do Reino Unido, ou da embaixada. Duvido bastante que a In-glaterra invada o território, uma violação radical do direito internacional - mas esta hipótese não pode ser descartada. Vale a pena lembrar o ataque contra a embaixa-da do Vaticano, por forças norte-ameri-canas, depois da invasão no Panamá, em 1989. As grandes potências normalmente

consideram-se imunes à lei internacional; e as classes próximas ao poder costumam proteger essa postura. Ao meu ver, a Inglaterra tentará vencer Assange pelo cansaço, esperando que ele não consiga suportar o confinamento num pequeno quarto na embaixada.

Num aspecto mais amplo, Slavoj Zizek disse que não estamos a destruir o ca-pitalismo, mas apenas a testemunhar como o sistema se destrói a si mesmo. Seriam os movimentos do Occupy, a crise financeira na Europa e nos EUA, a ascensão da América Latina e outros países marginais ou o caso Wikileaks si-nais deste desmoronamento?Longe disso. A crise financeira na Euro-pa poderia ser resolvida, mas está a ser usada como uma alavanca para minar o contrato social europeu. É basicamente um caso de guerra de classes. A atuação do banco central dos EUA (o Federal Reserve) é melhor do que a do europeu, mas é muito limitada. Outras medidas poderiam aliviar a grave crise no EUA, principalmente o desemprego. Para a maior parte da população, o desempre-go é a principal preocupação, mas para as instituições financeiras, que dominam a economia e o sistema político, o in-teresse está em limitar o déficit, para permitir que prossiga o pagamento de juros. Em geral, há um enorme abismo entre a vontade pública e política. Este é apenas um caso. A ascensão da Amé-rica Latina é um fenómeno de grande significado histórico, mas está longe de estremecer o sistema capitalista. Embo-ra o Wikileaks e os movimentos Occu-py sejam irritantes para os que estão no poder - e um grande apoio para o bem público -, não são uma ameaça para os poderes dominantes.

Page 14: h - Suplemento do Hoje Macau #56

h1412

10

2012

gente sagrada José simões morais

O L H O S A O A L T O

O REI MACACO, DEUS DA CONTENDA VITORIOSA孙悟空 SUN WUKONG, o macaco que repre-sentava a natureza humana e a sua pro-pensão para o mal, sem respeito pela lei e ordem, nem medo algum pela autoridade, foi libertado da prisão em que Buda o tinha colocado, pois Guan Yin por ele interce-deu para acompanhar Tang Seng na sua peregrinação para Oeste. E foi este mon-ge que lhe deu o nome de Sun Wukong (Consciência do Vácuo). Assim conta o livro Xi you ji (Peregrinação ao Oeste) escrito no século XVI por Wu Cheng’en, que re-cria a história da viagem feita à Índia en-tre 629 e 645 pelo monge Xuan Zang, na procura de textos budistas para os trazer para a China. Este relato de uma viagem simbólica, com ligações ao mitológico e lendário, sobre a introdução do Budismo na China, é feito com a linguagem comum da rua e cheia de peripécias que lhe dão grande colorido. Viagem em que o monge Tang Seng foi acompanhado por Sun Wukong e Zhu Bajie, um espírito de porco, representante dos aspectos mais rudes do espírito huma-no. Mas até ao macaco acompanhar o monge, é uma longa história.Nascido de um ovo fertilizado na pedra pelo vento no cimo de uma montanha, do lado oriental do Oceano, ainda jovem de-notava já uma propensão para o mágico. Certa vez encontrou-se com um imortal que, para além de lhe dar o nome de Des-cobridor de Segredos, ensinou-o a voar e a mudar de forma sempre que o desejasse. Entusiasmado com os seus poderes, logo reuniu todos os macacos num reino, e aí viveu como rei. Do rei Dragão dos Mares Orientais recebeu o Pilar de Ferro, uma arma mágica que lhe permitia mudar de tamanho.Numa festa em sua homenagem, o maca-co embebedou-se e adormecido foi cap-turado pelos ajudantes do rei do Inferno. Facilmente se libertou e roubando o Livro dos Julgamentos, dele apagou o nome de todos os macacos. Convocado ao céu pe-los distúrbios causados, o macaco dali saiu como Supervisor dos Estábulos Celestes. Mas, ao descobrir o verdadeiro motivo da sua nomeação, começou a destruir o Céu e depois retirou-se para o monte Huaguo. O exército celeste organizou um cerco à montanha mas foi repelido, proclamando--se o macaco Governador do Céu e Gran-de Santo. Só foi possível chegar a um en-tendimento e concordar em se submeter às leis divinas, quando o nomearam Su-perintendente-Chefe do Celestial Pomar dos Pêssegos.Com o poder de descobrir os segredos,

soube que não iria ser convidado para a festa dos Pêssegos e vingou-se. Além de comer os pêssegos do pomar que confe-riam a imortalidade, ainda ajavardou toda a comida e bebeu todo o vinho destinado à festa. Não satisfeito, foi a casa de Lao Zhun (Lao Zi, o poderoso feiticeiro) e roubou-lhe as pílulas da imortalidade, fi-cando assim duplamente imortal. Após mais estes distúrbios retirou-se para o monte Huaguo.Os deuses, extremamente zangados, fizeram-lhe um cerco que demorou mui-to tempo pois o macaco utilizou todos os seus poderes mágicos para evitar ser capturado. Por fim derrotado, foi levado à presença do Imperador de Jade que o condenou à morte. Protegido pela dupla imortalidade da pílula e dos pêssegos, a sentença não pode ser realizada e nem os 49 dias no forno alquímico o derrete-ram. Levantou a tampa e saiu, ameaçando destruir o Céu. O Imperador de Jade, sem outra alternativa, chamou Buda. Este per-guntou-lhe porque é que ele cria governar o Céu. O macaco respondeu que era po-deroso para o governar, pois era imortal, invulnerável, capaz de tomar 72 formas diferentes e podia voar e saltar 108 mil li. Então Buda pediu para o macaco provar tal afirmação e se fosse verdade teria direi-to a governar o Céu.Num salto voou através do céu até às mais longínquas regiões da Terra, onde ficou a repousar no sopé de uma grande monta-nha. Aí urinou para demarcar o seu territó-rio e depois regressou ao ponto de partida. Buda riu-se quando o macaco lhe disse ter atravessado o Universo. Apontando para a palma da sua mão mostrou-lhe que a mon-tanha onde ele tinha chegado era a base dos seus dedos da mão. Então Buda criou uma montanha mágica e encerrou-o lá, só saindo 500 anos depois quando Guan Yin o indicou para acompanhar Tang Seng. Após jurar protegê-lo de todos os perigos, Tang Seng colocou-lhe um capacete na cabeça, que se contraía causando-lhe uma imensa dor cada vez que pela maldade o macaco se desviava do bom caminho. Após passarem 81 perigos e já no final da viagem, o macaco pediu ao monge que lhe retirasse o capacete pois era um esclarecido. Tang Seng respondeu que se tal fosse de verdade, o capacete tinha de-saparecido. Então o macaco levou a mão à cabeça e nada encontrou. O comité ce-leste presidido pelo Futuro Buda nomeou o macaco deus da Contenda Vitoriosa e, por isso, aparece a sua imagem em alguns templos de Macau, entre eles o I Lem Miu, na rua da Figueira.

Buda riu-se quando o macaco lhe disse ter atravessado o Universo. Apontando para a palma da sua mão mostrou-lhe que a montanha onde ele tinha chegado era a base dos seus dedos da mão.

Page 15: h - Suplemento do Hoje Macau #56

h15

12 1

0 20

12L E T R A S S Í N I C A S

HUAI NAN ZI 淮南子 O LIVRO DOS MESTRES DE HUAINAN

Huai Nan Zi (淮南子), O Livro dos Mes-tres de Huainan foi composto por um con-junto de sábios taoistas na corte de Huai-nan (actual Província de Anhui), no século II a.C., no decorrer da Dinastia Han do Oeste (206 a.C. a 9 d.C.).Conhecidos como “Os Oito Imortais”, estes sábios destilaram e refinaram o cor-po de ensinamentos taoistas já existente (ou seja, o Tao Te Qing e o Chuang Tzu) num só volume, sob o patrocínio e coor-denação do lendário Príncipe Liu An de Huainan. A versão portuguesa que aqui se apresenta segue uma selecção de extractos fundamentais, efectuada a partir do texto canónico completo pelo Professor Thomas Cleary e por si traduzida em Taoist Clas-sics, Volume I, Shambhala: Boston, 2003. Estes extractos encontram-se organizados em quatro grupos: “Da Sociedade e do Es-tado”; “Da Guerra”; “Da Paz” e “Da Sabe-doria”.O texto original chinês pode ser consulta-do na íntegra em www.ctext.org, na secção intitulada “Miscellaneous Schools”.

Os costumes de uma sociedade decadente usam o ardil e o engano para encobrir o inútil.

DO ESTADO E DA SOCIEDADE – 19

Esta é a forma de governar um país: os líderes não são duros; os oficiais não são incomodativos; os intelectuais não são hipócritas; os artistas não são decadentes.

* * *

Numa sociedade incoerente, os ac-tivistas promovem-se uns aos outros através do elogio mútuo, enquanto que os homens de cultura se honram uns aos outros hipocritamente.

* * *

Os escritores enganosos são delibera-damente prolixos e confusos de modo a parecerem sábios; competindo como sofistas, as suas reflexões intermináveis

são inconclusivas, sem benefício para a ordem social.

* * *

Os costumes de uma sociedade de-cadente usam o ardil e o engano para encobrir o inútil.

* * *

Nunca ninguém ouviu dizer de alguém que evitasse quebrar a lei e arriscar castigo quando simultaneamente com frio e fome.

* * *

Quando as pessoas têm mais do que o suficiente, são deferentes; quando têm menos do que suficiente, pelejam. Quando são deferentes, nascem a corte-

sia e a justiça; quando pelejam, emergem a violência e a desordem.

* * *

Não se vende lenha junto a uma flo-resta, nem se vendem peixes à beira de um lago, pois existe uma supera-bundância. Assim, quando há muito o desejo diminui; quando as necessi-dades são mínimas, a peleja termina.

* * *

quando a sociedade é ordeira, o povo comum é probo e não pode ser sedu-zido pelo lucro. Quando a sociedade é desordeira, a elite é criminosa e não pode ser detida pela lei.

Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

Page 16: h - Suplemento do Hoje Macau #56

O SOL, A LUA E A VIA DO FIO DE SEDA

FERNANDA DIASU m a l e i t u r a d o

YI JING

A nova tradução do livro que há milénios ilumina a civilização chinesa