h - suplemento do hoje macau #40

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ARTES, LETRAS E IDEIAS h PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2602. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE CAMARATE O HOMEM QUE MATOU SÁ CARNEIRO

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Suplemento h - Parte integrante da edição de 4 de Maio de 2012

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hPARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2602. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

CAMARATEO HOMEM QUE MATOU SÁ CARNEIRO

I D E I A S F O R T E S

Como é que nasceu o teu interesse por arte? Tinha cinco ou seis anos quando comecei fantasiar ser artista. O meu primeiro recreio foi o atelier do meu avô, que era designer industrial. Foi aí que comecei a desenhar. Mais tarde já adulto voltei a esse local, e, para surpresa minha o espaço era minúscu-lo. Foi estranho perceber que o que tinha retido na memória era um sótão espaçoso e aventuroso, onde secretamente o traba-lho artístico já começava a ganhar forma no meu cérebro.

De que forma é que a educação escolar te influenciou? Não aprendi muito na escola. O momento mais marcante foi quando me juntei ao grupo At.Re, um atelier de jovens artistas orientado pelo Pedro Morais. Ali tive muito mais liber-dade para experimentar media e várias técni-cas. O que a escola tinha para me oferecer era mais tradicional e sistemático.

Como nasceu o teu interesse pela China? Nasceu antes de descobrir que estava inte-ressado na pintura chinesa. Comecei a escre-ver poesia quando tinha 15 anos. Nesse mes-mo ano escolhi fazer um trabalho para o meu exame final da disciplina de História sobre a História da China. Aos 16 anos andava a ler Haikus japoneses. Quando aos 21 anos me juntei ao grupo At.Re comecei a interessar--me por Taoismo e Budismo. Foi nessa altura que comecei a misturar as minhas influências dos finais dos anos 60 e dos anos 70, como Bruce Nauman, Vito Acconci and James Tur-rell com determinados aspectos da pintura tradicional chinesa. No final de 1993 já tinha viajado pelas principais capitais europeias e visitado Nova Iorque. Devido ao meu óbvio interesse pela Ásia ganhei uma bolsa de estu-do de dois anos para vir até à Ásia. Em 1995 achei que a aventura ainda não estava termi-nada e resolvi ficar.

Porque é que foste para Macau? A minha primeira exposição individual foi uma exposição de pintura a óleo. Embora

fosse feita a óleo tinha paisagens com efeitos da pintura chinesa, por isso o caminho para o reino da estética oriental foi natural para mim. Em Macau existe uma delegação da Fundação Oriente, de Portugal, que me con-cedeu a bolsa, por conseguinte pareceu-me um local adequado para continuar a minha investigação. Acho interessante o facto de em Lisboa trabalhar em pintura e instalação e depois de ter chegado a Macau me ter vi-rado mais para o video e a fotografia. A ideia dos opostos que se complementam, o yin e o yang das condições essenciais para o meu trabalho artístico, acabam por reflectir o con-flito entre essas mesmas condições.

A tua carreira começou em Macau? Não, começou em Portugal. As minhas pri-meiras exposições foram na Europa. As coisas que fazia nessa altura, na fase inicial da minha carreira nos anos noventa, são obviamente diferentes daquilo que faço agora.

A cultura chinesa, a estética oriental como disseste há pouco, desperta o interesse de muitos estrangeiros. Porque é precisaste de começar pela arte contemporânea para entender a arte chinesa? Ambas têm a suas particularidades. Se a pin-tura tradicional chinesa me influenciou ante-riormente, já não o sinto da mesma maneira, por outro lado nunca me senti influenciado por nenhum artista contemporâneo chinês.

O grupo de East Village de Pequim come-çou a ganhar importância mais ou menos na altura em que decidi ficar na Ásia. Desde então comecei a recolher o maior número possível de informações sobre o que estava a acontecer no panorama da arte contempo-rânea chinesa. O meu interesse continuou a crescer e, há cinco anos atrás, comecei a escrever sobre arte contemporânea chinesa para um jornal de Macau. Esses textos fo-ram depois reunidos em livro. A publicação com o título de “Arte Nova China” contou com a revisão e a colaboração dos artistas que nela figuram no início de 2011 e o livro foi editado no final desse mesmo ano. Será sempre um livro dum artista sobre outros ar-tistas e não tem outras pretensões para além disso. É o primeiro livro em língua portu-guesa sobre arte contemporânea chinesa.

Macau é um local especial. Quando che-gaste, nos anos 90, ainda era uma cidade portuguesa. É um local que situa no Orien-te, mas que pertence ao Ocidente. Assis-tiste à transferência de soberania de Macau em 1999. De que forma é que isso te in-fluenciou, a ti, e à tua arte? Uma pergunta interessante, que nunca nin-guém me tinha feito. Já me pediram muitas vezes para dar a minha opinião sobre as di-ferenças políticas e sociais antes e depois da transferência de soberania, mas nunca me ti-nham perguntado sobre a influência que isso

Sun Guosheng conversa com José Drummond

SUN GUOSHENG É UM DOS ESCRITORES DO MOMENTO MAIS RECONHECIDO E APRECIADO

A ESCREVER SOBRE ARTE E TAMBÉM EDITOR DA (HARPER’S) BAZAAR ART QUE É TALVEZ A REVISTA MAIS

CONSAGRADA DOS ÚLTIMOS ANOS NA CHINA. JOSÉ DRUMMOND É UM ARTISTA PORTUGUÊS,

RESIDENTE DE MACAU, ACTUALMENTE COM UMA EXPOSIÇÃO EM PEQUIM, INTITULADA “SPELLBOUND”

O HORROR POR DETRÁS DA BELEZA

teve no meu trabalho. No final de 1997 teve início um adiamento consciente da minha prática artística, que está associado a momen-tos dramáticos das minhas ideias sobre arte nessa altura. Esse período é coincidente com os anos pré e pós transferência. Quando re-comecei era uma pessoa diferente. Em 2004 comecei a pesquisar aspectos da identidade e de personalidade múltipla, dirigindo e in-terpretando numa abordagem mais pessoal e diversificada. Em 2004 fiz um espectáculo a solo chamado “The Intruder”, que levou três anos a ser feito. Nesse projecto usava foto-grafias de grupo do governo, onde acrescen-tava uma personagem. “The Intruder”, que era representado por mim próprio, era uma figura camaleónica que encarnava subtilmen-te o modus operandi da personagem do filme de Woody Allen, “Zelig”, cujo protagonista se transforma na pessoa de quem está mais próximo. Este projecto com várias sequências era uma proposta de jogo para o espectador que tinha de descobrir quem era “o impostor” nas fotos de grupo. “The Intruder” era uma divagação que dava espaço a qualquer pessoa comum de desejar fazer parte de algo impor-tante

Nos teus trabalhos anteriores usaste muitos figurinos e máscaras tradicionais chinesas. Quiseste que a tua arte ganhasse aceitação através do uso desses símbolos tradicionais chineses? Acho o termo aceitação um pouco forte de-mais. Não estou muito agarrado à ideia de na-ções e vejo-me como um produto da globa-lização. O que me interessa são os sentimen-tos íntimos e os padrões de comportamento associados ao ego e à necessidade de criar máscaras. Quanto ao projecto onde existe o uso premeditado de uma máscara da Ópera de Pequim, devo dizer que não nos devemos concentrar apenas nos símbolos chineses desse trabalho. A máscara de “The Painter” vive tanto da elaboração da persona grega, como da sedução de um alter-ego. Este se-gundo ego desejado pode ser tanto o pintor que deixou de pintar, o homem ocidental que

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personifica um actor chinês, ou pode apontar para uma pesquisa da desordem dissociativa de identidade, dupla personalidade, avatares e doppelgangers. É importante entender que ali existe uma proposta absoluta de dor, assim como o limpar da máscara se torna no acto de pintar enquanto se revela a verdadeira apa-rência. Durante uma hora o que o espectador vê é um grande plano fixo de um homem a limpar a máscara, num ritmo extremamente lento.

Nesta exposição ‘’Spellbound’’, os teus tra-balhos parecem ser totalmente diferentes dos anteriores. Não há símbolos, identida-des e regiões. Como é que isto acontece? Identidade, personalidade múltipla, visibili-dade, invisibilidade, continuidade e descon-tinuidade são conceitos que tenho vindo a explorar, criando metáforas sobre sonhos e realidades, enganos e ilusões. Em 2010 há uma mudança na minha prática com a video--instalação “The Pretender”. Embora seja so-bre a mesma dualidade e confrontação, esse trabalho inaugura algo de novo, com uma forma mais assumidamente narrativa. Tam-bém vai de encontro à minha necessidade de dirigir outros actores, em vez de me deixar estagnar num processo cru de auto-represen-tação. É significante porque representa uma paragem nos projectos de auto-retratos. Foi filmado em Pequim e está relacionado com fantasias, esperanças e desencantos escondi-dos, que são sentimentos universais. Criei um perfil sem foto e com uma descrição minimal num website que promove encontros ro-mânticos entre mulheres chinesas e homens ocidentais. Ao fim de um mês tinha recebido 40 cartas românticas com fotos anexas. Usei onze das cartas como base para a criação de onze personagens fictícias, com onze mu-lheres tristes. Tentei retratar a realidade num mundo de fantasia e pretendi recriar exac-tamente o oposto das fotos que recebi, em que as mulheres estão contentes e tudo pa-rece demasiado estranho e falso para ser real. Filmei em movimentos circulares, a fazer lembrar as bailarinas das caixas de música. O resultado do projecto dá-nos uma sensação interessante de vertigem, enquanto também denuncia como é estranho este mundo em que estamos constantemente a necessitar da aprovação dos outros. Remete para a nossa necessidade permanente de questionar a exis-tência. É tanto sobre a necessidade de aceita-ção, como sobre o desconforto em que o ser humano vive. Mostra-nos que todos querem ser felizes , mas a realidade é enganadora.

Donde veio o nome ‘’Spellbound’’? Esta série de trabalhos ilustra a minha obses-são com o horror por detrás da beleza. Sob a beleza existe uma violência requintada. Dei por mim a perceber que vivemos numa era que teme a beleza. Onde a beleza é ao mes-mo tempo um valor difícil de alcançar e uma punição, ela própria. Vivemos num mundo onde a beleza imaginada e inatingível é pu-blicitada. É um paradoxo. Ao mesmo tempo, tememos tudo. Tememos a beleza porque pode ser aterradora. Se o medo pode ser a nossa maior fraqueza, a beleza pode ser a nossa maior conquista. O problema reside, como sempre, naquilo que somos capazes de ver. Gerhard Richter disse: “ Nem sempre consigo alcançar a imagem que tenho na ca-beça... na verdade, quase nunca”. Na maioria das vezes não conseguimos ver o que está por detrás, porque estamos constantemente envolvidos por valores invasivos opressores. “Spellbound” é, neste sentido, um território onde se reconhece algo ou alguém que espe-

ra ser notado, num mundo cheio de coisas que o ocultam.

Como artista, porque escolheste a fotogra-fia? Porque só usaste preto e branco, luz e sombra para explorar o tema e as imagens desta série ‘‘Spellbound’’? Nesta obsessão pela beleza o que mais me importa é exactamente a desconstrução do que é real e do que não é real. É também uma das condições para ser capaz de criar fantasia e ilusões. Em “Spellbound” existe um exame sobre as premissas básicas do que pode ser capturado pela lente da câmara, que são a luz e sombra. Estas luzes e sombras são depois manipuladas. A fotografia é actualmente o meio de comunicação mais comum. Vivemos num mundo de smartphones e de platafor-mas sociais na internet, onde os utilizadores descarregam cerca de 300 milhões de fotos por dia. Uma grande percentagem destes 300 milhões de fotos, é enviada no exacto mo-mento em que foram tiradas e acabam num aglomerado desordenado sem relação visual, e sem contexto. Isto é onde estamos agora, e esta foi uma razões porque quis voltar atrás e investigar técnicas perdidas.

Como é que alcançaste o efeito de ilusão nos teus trabalhos? Gosto de pensar que a fotografia é sempre uma acção encenada e tento evitar a ideia de pensar e usar a fotografia como um documen-to do momento. Susan Sontag disse que “a fotografia é um inventário da mortalidade”, para mim, de certa forma, a fotografia, qual-quer fotografia, é a afirmação da existência passada, como um fantasma. A percepção que temos da vida deixa de existir quando esta se converte num simulacro estático de si própria. Ao mesmo tempo as manipulações que usei sustentam esta ideia de um momen-to ilusório, fora de uma vida de desilusão. A nostalgia e a melancolia são efeitos narrativos perfeitos construídos pela presença de gran-de contraste nas peças a preto e branco.

O conjunto ’’Spellbound’’ tem obviamente uma estética oriental; fizeste isso delibera-damente? Não sei. Estes elementos orientais talvez te-nham surgido da influência subtil do meio am-biente, mas não podemos deixar de notar que também existem uma série de referências que podem vir do ocidente. Também podemos ver representações pré-eróticas, a ideia do fotógra-fo como um voyeur e do artista como um ma-nipulador. Para mim é evidente que podemos encontrar outras afinidades com a moda e com o cinema. Outra das considerações que pode-mos fazer a propósito das inúmeras referências de ambos os mundos é a de que qualquer arte é um tipo de apropriação. Os artistas arranjam frequentemente maneira de pedir isto ou aquilo emprestado. Os artistas estão constantemente a ilustrar, visionar, reformular, experimentar, adaptar e a repetir aquilo que testemunham. Contanto que usem o seu próprio filtro para depois criarem algo de pessoal. Os artistas são o derradeiro processador imaginativo, capazes de acumular informação para depois a alterar e re-formular a partir de dentro. Estamos constante-mente a replicar e a reelaborar essa energia até encontrarmos algo que sintamos como nosso. O que nos distingue é a capacidade de procu-rarmos algo de íntimo que mostramos aos ou-tros, mas que foi feito para nós próprios e que nos pode definir como pessoas e como artistas.

Os teus trabalhos têm sofrido muitas alte-rações ao longo dos anos. O que é que se manteve sempre, que nunca mudou?

O Marcel Duchamp disse ‘”que se forçou a contradizer-se de modo a evitar confor-mar-se com o seu próprio gosto”. Ele rei-vindica a contradição como uma fonte. Eu vejo a contradição como um sinónimo de oposição. Se a forma do meu trabalho tem a necessidade constante de novos desafios é porque isso parece servir melhor o meu processo intelectual. Procuro a oposição da visibilidade e da invisibilidade, procu-ro a manifestação de antagonismo usando ambos os símbolos de continuidade e des-

continuidade como mundos reflexivos e realidades espelhadas. O que cada um de nós vê nunca é igual, a nossa memória e o nosso espaço são sempre diferentes ao lon-go do tempo. Criamos ilusões através da percepção da realidade. As ilusões dão-nos a capacidade de sonhar, e é esta capacidade de sonhar que nós dá força para encarar a realidade e seguir em frente com as nossas vidas, completando o círculo. Temos a ca-pacidade de sonhar e de fingir a realidade. É esse o feitiço na nossa vida.

Sob a beleza existe uma violência requintada. Dei por mim a perceber que vivemos numa era que teme a beleza. Onde a beleza é ao mesmo tempo um valor difícil de alcançar e uma punição

Nesta obsessão pela beleza o que mais me importa é exactamente a desconstrução do que é real e do que não é real. É também uma das condições para ser capaz de criar fantasia e ilusões.

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Em 1975, formei em Portugal, os CODECO com José Esteves, Vasco Montez, Carlos Mi-randa e Jorge Gago (já falecido). Esta orga-nização pretendia, defender, em Portugal, se necessário por via de guerrilha, os valores do Mundo Ocidental.Através de Paulo Cardoso sou apresentado, em 1975, no Hotel Sheraton, em Lisboa, a um agente da CIA, antena (recolha de infor-mações), chamado Philip Snell. Falei então durante algum tempo com Philip Snell. O Paulo Cardoso estava então a viver no Hotel Sheraton. Passados poucos dias, Philip Snell, diz-me para ir levantar, gratuitamente, um bilhete de avião, de Lisboa para Londres,  a uma agência de viagens na Av. de Ceuta, que trabalhava para a embaixada dos EUA. Fui então a uma reunião em Londres, onde en-contrei um amigo antigo, Gary Van Dyk, da África do Sul, que colaborava com a CIA. Fui então entrevistado pelo chefe da estação da CIA para a Europa, que se chamava John Lo-gan. Gary Van Dyk, defendeu nessa reunião, a minha entrada para a CIA, dizendo que me conhecia bem de Angola, e que eu trabalha-va com eficiência. Comecei então a trabalhar para a CIA, tendo também para esse efeito pesado o facto de ter anteriormente cola-borado com a NISS - National Intelligence Security Service ( Agência Sul Africana de Informações). Gary Van Dyk era o antena, em Londres, do DONS - Department Ope-rational of National Security ( Sul Africana ).Regressando a Lisboa, trabalhei para a Embai-xada dos EUA, em Lisboa entre 1975 e 1988, a tempo inteiro. Entre 1976 e 1977, durante cerca de uma ano e meio vivi numa suite no Hotel Sheraton, o que pode ser comprovado, tudo pago pela Embaixada dos EUA. Con-duzia então um carro com matrícula diplo-mática, um Ford, que estacionava na garagem do Hotel. Nesta suite viveu também a minha mulher, Elsa, já grávida da minha filha Eliana. O meu trabalho incluía recolha de informa-ções /contra informações, informações sobre tráfico de armas, de operações de combate ao tráfico de droga, informações sobre terroris-mo, recrutamento de informadores, etc. Estas actividades incluem contactos com serviços secretos de outros países, como a Stassi, a Mossad, e a “Boss” (Sul Africana), depois NISS - National Information Sectret Service, depois DONS e actualmete SASS.Era pago em Portugal, recebendo cerca de USD 5.000 por mês. Nestas actividades fa-cilita o facto de eu falar seis línguas. Actuei utilizando vários nomes diferente, com pas-saportes fornecidos pela Embaixada dos EUA em Lisboa. Facilitava também o facto de eu falar um dialecto angolano, o kimbundo.A Embaixada dos EUA tinha também uma casa de recuo na Quinta da Marinha, que me estava entregue, e onde ficavam frequente-mente agentes e militares americanos, que passavam por Portugal. Era a vivenda “Alpen-drada”.A partir de  1975,  como referi, passei a tra-balhar directamente para a CIA. Contudo, a partir de 1978, passei a trabalhar como agente encoberto, No chamado “Office of Special Operations”, a que se chamava servi-ços clandestinos, e que visavam observar um alvo, incluindo perseguir, conhecer e eliminar o alvo, em qualquer país do mundo, excepto nos EUA. Por pertencermos a este Office, éra-mos obrigados a assinar uma cláusula que se chamava “plausible denial”  que significa que

EU, FERNANDO FARINHA SIMÕES, decidi finalmente, em 2011, contar toda a verdade sobre Camarate. No passado nunca contei toda a operação de Camarate, pois es-tando a correr o processo judicial, poderia ser preso e condenado. Também porque durante 25 anos não podia falar, por estar obrigado ao sigilo por parte da CIA, mas esta situação mudou agora, ao que acresce o facto da CIA me ter abandonado completamente desde 1989. Finalmente decidi falar por obrigação de consciência.Fiz o meu primeiro depoimento sobre Cama-rate, na Comissão de Inquérito Parlamentar, em 1995. Mais tarde prestei alguns depoi-mentos em que fui acrescentando factos e informações. Cheguei a prestar declarações para um programa da SIC, organizado por Emílio Rangel, que não chegou contudo a ir para o ar. Em todas essas declarações pú-blicas contei factos sobre o atentado de Ca-marate, que nunca foram desmentidos, ape-sar dos nomes que citei e da gravidade dos factos que referi. Em todos esses relatos, eu desmenti a tese oficial do acidente, defendi-da pela Polícia Judiciária e pela Procuradoria Geral da República. Numa tive dúvidas de que as Comissões de Inquérito Parlamentares estavam no caminho certo, pois Camarate foi um atentado. Devo também dizer que tendo eu falado de factos sobre camarate tão graves e do envolvimento de certas pessoas nesses factos, sempre me surpreendeu que essas pes-soas tenham preferido o silêncio. Estão neste caso o Tenente Coronel Lencastre Bernardo ou o Major Canto e Castro. Se se sentissem ofendidos pelas minhas declarações, teria sido lógico que tivessem reagido. Quanto a mim, este seu silêncio só pode significar que, tendo noção do que fizeram, consideraram que quanto menos se falar no assunto, me-lhor.Nessas declarações que fiz, desde 1995, fui relatando, sucessivamente, apenas parte dos factos ocorridos, sem nunca ter feito a narra-ção completa dos acontecimentos. Estávamos ainda relativamente próximos dos aconteci-mentos e não quis portanto revelar todos os pormenores, nem todas as pessoas envolvidas nesta operação. Contudo, após terem passa-do mais de 30 anos sobre os factos, entendi que todos os portugueses tinham o direito de conhecer o que verdadeiramente sucedeu em Camarate. Não quero contudo deixar de referir que hoje estou profundamente arre-pendido  de ter participado nesta operação, não apenas pelas pessoas que aí morreram, e cuja qualidade humana só mais tarde tive ocasião de conhecer, como do prejuízo que constituiu, para o futuro do país, o desapa-recimento dessas pessoas. Naquela altura contudo, camarate era apenas mais uma ope-ração em que participava, pelo que não medi as consequências. Peço por isso desculpa aos familiares das vítimas, e aos Portugueses em geral, pelas consequências da operação em que participei.Gostaria assim de voltar atrás no tempo, para explicar como acabei por me envolver nesta operação. Em 1974 conheci, na África do Sul, a agente dupla alemã, Uta Gerveck, que trabalhava para a BND (Bundesnachris-tendienst) - Serviços de Inteligência Alemães

CAMARATEO testemunho

de quem matou Sá Carneiro

e Amaro da Costa

Ocidentais, e ao mesmo tempo para a Stas-si. A cobertura legal de Uta Gerveck é feita através do conselho mundial das Igrejas (uma espécie de ONG), e é através dessa fachada que viaja praticamente pelo Mundo todo, trabalhando ao mesmo tempo para a BND e para a Stassi. Fez um livro em alemão que me dedicou, e que ainda tenho, sobre a luta de liberdade do PAIGC na Guiné Bissau. O meu trabalho com a Stassi veio contudo a verificar-se posteriormente, quando estava já a trabalhar para a CIA. A minha infiltração na Stassi dá-se por convite da Uta Gerveck, em l976, com a concordância da CIA, pois isso interessava-lhes muito.Uta Gerveck apresenta-me, em 1978, em Berlim Leste, a Marcus Wolf, então Director da Stassi. Fui para esse efeito então clandes-tinamente a Berlim Leste, com um passapor-te espanhol, que me foi fornecido por Uta Gerveck. 0 meu trabalho de infiltração na Stassi consistiu na elaboração de relatórios

pormenorizados acerta das “toupeiras” infil-tradas na Alemanha Ocidental pela Stassi. Que actuavam nomeadamente junto de Hel-mut Khol, Helmut Schmidt e de Hans Jurgen Wischewski. Hans Jurgen Wischewski era o responsável pelas relações e contactos en-tre a Alemanha Ocidental e de Leste, sendo Presidente da Associação Alemã de Coope-ração e Desenvolvimento (ajuda ao terceiro Mundo), e também ia às reuniões do Grupo Bilderberg. Viabilizou também muitas opera-ções clandestinas, nos anos 70 e 80. de ajuda a grupos de libertação, a partir da Alemanha Ocidental. Estive também na Academia da Stassi, várias vezes, em Postdan - Eiche.Relativamente ao relato dos factos, gostaria de começar por referir que tenho contactos, desde 1970, em Angola, com um agente da CIA, que é o jornalista e apresentador de te-levisão Paulo Cardoso (já falecido). Conheci Paulo Cardoso em Angola com quem traba-lhei na TVA - Televisão de Angola na altura.

A operação de Camarate custou, a preços de 1980, entre 750 mil e 1 milhão de dólares

Fernando Farinha SimõeS

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se fossemos apanhados nestas operações com documentos de identificação falsos, a situação seria por nossa conta e risco, e a CIA nada te-ria a ver com a situação. Nessa circunstância tínhamos o discurso preparado para explicar o que estávamos a fazer, incluindo estarmos pre-parados para aguentar a tortura. Trabalhei para o “Office of Special Operations ” até 1989, ano em que saí da CIA.Para fazer face a estes trabalhos e operações, as minhas contas dos cartões de crédito do VISA, American Express e Dinners Club, ti-nham, cada uma, um plafond de 10.000 USD, que podiam ser movimentados em caso de necessidade. Estes cartões eram emitidos no Brasil, em bancos estrangeiros sedeados no Brasil, como o Citibank, o Bank of Boston ou o Bank of America. Entre 1975 e 1989, por-tanto durante cerca de 14 anos, gastei com estes cartões cerca de 10 milhões de USD, em operações em diversos países, nomeada-mente pagando a informadores, políticos, militares, homens de negócios, e também traficantes de armas e de drogas, em ligação com a DEA (Drug Enforcement Agency), Existiram outros valores movimentados à parte, a partir de um saco   azul, “em cash”, valores esses postos à disposição pelo chefe da estação da CIA, no local onde as opera-ções eram realizadas. Este saco azul servia para pagar despesas como viagens, compras necessárias, etc.Posso referir que a operação de Camarate, que a seguir irei transcrever custou, a pre-ços de 1980, entre 750.000 e 1 milhão de USD. Só o Sr, José António dos Santos Es-teves recebeu 200000 USD. Estas despesas relacionadas com a operação de Camarate, incluiram os pagamentos a diversas pessoas e participantes, como o Sr. Lee Rodrigues, como seguidamente irei descrever.Entre 1975 e 1988, participei em vários cursos e seminários em Langley, Virginia e Quantico, pago pela CIA, sobre informação, desinformação, contra-informação. terroris-mo, contra-terrorismo, infiltrações encober-tas, etc, etc. Trabalhei em serviços de infiltração pela CIA e pela DEA (Drug Enforcement Agency), em diferentes países, como Portugal, El Salvador, Bolívia, Colômbia,Venezuela, Peru, Guate-mala, Nicarágua, Panamá, Chile, Líbano, Sí-ria, Egipto, Argélia, Marrocos, Filipinas.A minha colaboração com a DEA, iniciou-se em 1981, através de Richard Lee Armitage.Em 1980, Richard Armitage viria também a estar comigo e com o Henry Kissinger em Paris, Richard Lee Armitage era membro do CFR (Counceil for Foreign Affairs and Rela-tions) e da Organização e Cooperação para a Segurança da Europa (OSCE), criada pela CIA, Richard Armitage era também membro, na altura, do Grupo Carlyle, do qual o CEO era Frank Carlucci. O Grupo Carlyle dedica--se à construção civil, imobiliário e é uma dos maiores grupos de tráfico de armas no Mun-do,  junto com o Grupo Haliburton, chefiado por Richard “Dick” Cheney. O Grupo Carly-le pertence a vários investidores privados dos EUA, por regra do Partido Republicano. Este grupo promove nomeadamente vendas de ar-mas, petróleo e cimento para países como o Iraque, Afeganistão e agora para os países da primavera árabe.

A lavagem do dinheiro do tráfico de armas e da droga, era feito, na altura, pelo Banco BCCI, ligado à CIA e à NSA - National Secu-rity Agency. O BCCI foi fundado em 1972 e fechado no princípio dos anos 90, devido aos diversos escândalos em que esteve envolvido.Oliver North pertencia ao Conselho Na-cional de Segurança, às ordens de William Walker, ex-embaixador dos EUA em El Sal-vador. Oliver North seguiu e segue sempre as ordens da CIA, dependente de  William Ca-sey. Oliver North está hoje retirado da CIA , e é CEO de vários grupos privados america-nos, tal como Frank Carlucci.Da DEA conheci Celerino Castilho, Mike Levine. Anabelle Grimm e Brad Ayers, ten-do trabalhado para a DEA entre 1975 até 1989. Da CIA trabalhei também com Tosh Plumbey, Ralph Megehee - tenente coronel da NSA, actualmente reformado. Da CIA trabalhei ainda com Bo Gritz e Tatum. Estes dois agentes tinham a sua base de operações em El Salvador, (onde eu também estive durante os anos 80, durante o tráfico Irão - Contras), desenvolvendo nomeadamente ac-tividades com tráfico de armas. Uma das suas operações consistiu no transporte de armas dos EUA para El-Salvador, que eram depois transportadas para o Irão e a Nicarágua. Os aviões, normalmente panamianos e colom-bianos regressavam depois para os EUA com droga, nomeadamente cocaína, proveniente de países como a Colômbia, Bolívia e El Sal-vador, que serviam para financiar a compra de armas. Esta actividade desenvolveu-se es-sencialmente desde os finais dos anos 70 até 1988.A cocaína vinha nomeadamente da Ilha Nor-mans Cay, nas Bahamas, de que era proprie-tário Carlos Lheder Rivas. Carlos Rivas era um dos chefes do Carte de Medellin, traba-lhando para este cartel e para ele próprio. Carlos Rivas era, neste contexto um perso-nagem importante, sendo o braço direito de Roberto Vesco, que trabalhava para a CIA e para a NSA. Roberto Vesco era proprietário de Bancos nas Bahamas, nomeadamente o Colombus Trust. Carlos Rivas fazia toda a logística de Roberto Vesco e forneciam ar-mas a troco de cocaína, nomeadamente ao movimento de guerrilha Colombiano M19. Roberto Vesco está hoje refugiado em Cuba.O dinheiro das operações de armas e de dro-ga são lavadas no Banco BCCI e noutros ban-cos, com o nome de código “Amadeus”. Há no entanto contas activas nas Bahamas e em Norman’s Cay, nas Ilhas Jersey, que gerem contas bancárias, nomeadamente para o tráfi-co de armas para os “Contras” da Nicarágua, e para o Irão.Como acima referi, muito desse dinheiro foi para bancos americanos e franceses, o que em parte explicará porquê é que Manuel Norie-ga foi condenado a 60 anos de prisão, tendo primeiro estado preso nos EUA, depois em França, e actualmente no Panamá. Foi preso porque era conveniente que estivesse calado, não referindo nomeadamente que partilhava com a CIA, o dinheiro proveniente da venda de armas e da venda de drogas. Noriega mo-vimentava contas bancárias em mais de 120 bancos, com conhecimento da CIA. Noriega fazia também parte da operação Black Eagle, dedicada ao tráfico de armas e de droga, que

em 1982 se transformou numa empresa cha-mada Enterprise, com a colaboração de Oli-ver North e de Donald Gregg da CIA. Em face do grau de informações e de conheci-mento que tinha, é fácil de perceber porquê se verificou o derrube e a prisão de Noriega. Devo dizer que estou pessoalmente admirado que não o tenham até agora “suicidado”, pois deve ter muitos documentos ainda guarda-dos. Noriega tinha a intenção de contar tudo o que sabia sobre este tráfico, nomeadamente sobre os serviços prestados à CIA e a Bush Pai, tendo por isso sido preso. Washington e a CIA são assim veículos importantes do trá-fico de armas e de droga, utilizando nomea-damente os pontos de apoio de South Flórida e do Panamá.No início dos anos 80 conheci um traficante

do cartel de Cali, de nome Ramon Milian Ro-driguez, que depois mais tarde perante uma comissão do Senado Americano, onde falou do tráfico de armas e de droga, do branquea-mento de dinheiro, bem como das cumplici-dades de Oliver North neste tráfico às ordens de Bush Pai e do Donald Gregg.Muito do dinheiro gerado nessas vendas foi para bancos americanos e franceses. Este di-nheiro servia também para compras de pro-priedades imobiliárias. Por estar ligado a es-tas operações, Noriega foi preso pelos EUA.Foi numa operação de droga que realizei na Colômbia e nas Bahamas, em 1984, onde se deu a prisão de Carlos Lheder Rivas, do Cartel de Medallin, em que eu não concordei com os agentes da DEA da estação de Maia-mi, pois eles queriam ficar com 10 milhões de dólares e com o avião “lear-jet” provenien-tes do tráfico de droga. Não concordando, participei desses agentes ao chefe da estação da DEA de Miami. Este chefe mandou-lhes então levantar um inquérito, tendo sido pre-sos pela própria DEA. A partir daí a minha vida tornou-se num verdadeiro inferno, no-meadamente com a realização de armadilhas

e detenções, tendo acabado por sair da CIA em 1989, a conselho de Frank Carlucci. O principal culpado da minha saída da CIA foi e da DEA foi John C. Lawn, director da esta-ção da DEA e amigo de Noriega e de outros traficantes. John Lawn encobriu, ou tentou encobrir, todos os agentes da DEA que de-nunciei aquando da prisão de Carlos Rivas. Após a minha saída da CIA, Frank Carlucci continuou contudo a ajudar-me com dinhei-ro, com conselhos e com apoio logístico, sempre que eu precisei até 1994.Regressando contudo à minha actividade em Portugal, anteriormente a Camarate e ao ser-viço da CIA, devo referir que conheci Frank Carlucci, em 1975, através de duas pessoas: um jornalista português da RTP, já falecido, chamado Paulo Cardoso de Oliveira, que co-

nhecera em Angola, e que era agente da CIA, e Gary Van Dyk, agente da BOSS (Sul Afri-cana) que conheci também em Angola. Man-tive contactos directos frequentes com Frank Carlucci, sobretudo entre l975 e 1982, de quem recebi instruções para vários trabalhos e operações. Os meus contactos com Frank Carlucci mantêm-se até hoje, com quem falo ainda ocasionalmente pelo telefone. A últi-ma vez que estive com ele foi em Madrid, em 2008, na escala de uma viagem que Frank Carlucci realizou à Turquia.Em Lisboa, também lidei e recebi ordens de William Hasselberg - antena da CIA em Lis-boa, que além de recolher informacões em Lisboa, actua como elo de ligação entre por-tugueses e americanos. Tive inclusivamente uma vida social com William Hasselberg, que inclui uma vida nocturna em Lisboa, em dife-rentes bares, restaurantes, e locais públicos. William Hasselberg gostava bastante da vida nocturna, onde tinha muito gosto em apare-cer com as suas diversas “conquistas” femini-nas. Trabalhei também com outros agentes da CIA, nomeadamente Philip Agee. Neste âmbito, trabalhei em operações de tráfico

Em meados de 1980, Frank Carlucci refere-me, por alto e pela primeira vez, que eu iria ser encarregue de fazer um “trabalho” de importância máxima e prioritária em Portugal, com a ajuda dele, da CIA,

e da Embaixada dos EUA em Portugal.

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de armas, e em infiltrações em organizações com o objectivo de obter informações polí-ticas e militares, “Billie” Hasselberg fala bem português, e era grande amigo de Artur Al-barran, Hasselberg e Albarran conheceram--se numa festa da embaixada da Colômbia ou Venezuela, tendo Albarran casado nessa altu-ra, nos anos 80, com a filha do embaixador, que foi a sua primeira mulher.Das reuniões que tive com a embaixada  ame-ricana em Lisboa, a partir de 1978, conheci vários agentes da CIA. O Chefe da estação da CIA em Portugal, John Logan, oferece-me um livro seu autografado. Conheci também o segundo chefe da CIA, Sr. Philip Snell, Sr. James Lowell, e o Sr. Arredondo. Da parte militar da CIA conheci o coronel Wilkin-son, a partir de quem conheci o coronel Oliver North e o coronel Peter Bleckley. O coronel Oliver North, militar mas também agente da CIA e o coronel Peter Bleckley, são os principais estrategas nos contactos internacionais, com vista ao tráfico e venda de armas, nomeadamente com países como Irão, Iraque, Nicarágua, e o El Salvador. Na sequência do conhecimento que fiz com Oli-ver North , tendo várias reuniões com ele e com agentes da CIA, por causa do tráfico e negócio de armas. Estas reuniões têm lugar em vários países, como os EUA, o México, a Nicarágua, a Venezuela, o Panamá. Neste último país  contacto com dois dos principais adjuntos de Noriega, José Bladon, chefe dos serviços secretos do Panamá, que me disse que práticamente todos os embaixadores  do Panamá em todo o Mundo estavam ao servi-ço de Noriega.Blandon pediu-me na altura se eu arranjava um Rolls Royce Silver Spirits, para o embai-xador do Panamá em Lisboa, o que acabei por conseguir.Em meados de 1980, Frank Carlucci refere--me, por alto, e pela primeira vez, que eu iria ser encarregue de fazer um “trabalho” de im-portância máxima e prioritária em Portugal, com a ajuda dele, da CIA, e da Embaixada dos EUA em Portugal, sendo-me dado, para esse efeito, todo o apoio necessário.Tenho depois reuniões em Lisboa, com o agente da CIA, Frank Sturgies, que conhe-ço pela primeira vez. Frank Sturgies é uma pessoa de aspecto sinistro e com grande frie-za, e é organizador das forças anti-castristas, sediadas em Miami, e é elo de ligação com os “contra” da Nicarágua. Frank Sturgies re-fere-me então, que está em marcha um plano para afastar, definitivamente, (entenda-se eli-minar) uma pessoa importante, ligada ao Go-verno Português de então, sem dizer contudo ainda nomes.Algum tempo depois, possívelmente em Se-tembro ou Outubro de 1980, jogo ténis com Frank Cariucci quase toda a tarde, na antiga residência do embaixador dos EUA, na Lapa. Janto depois com ele, onde Frank Carlucci refere novamente que existem problemas em Portugal para a venda e transporte de armas, e que Francisco Sá Carneiro não era uma pes-soa querida dos EUA. Depois já na sobreme-sa, juntam-se a nós o General Diogo Neto, o Coronel Vinhas, o Coronel Robocho Vaz e Paulo Cardoso, onde se refere novamente a necessidade de se afastarem alguns obstá-culos existentes ao negócio de armas. Todos estes elementos referem a Frank Caducci que eu sou a pessoa indicada para a preparação e implementação desta operação.Em Outubro de 1980, num juntar no Hotel Sharaton onde participo eu, Frank Sturgies (CIA), Vilfred Navarro (CIA), o General Diogo Neto e o Coronel Vinhas (já faleci-dos), onde se refere que há entraves ao tráfico

de armas que têm de ser removidos. Depois há um outro jatar também no Hotel Shera-ton, onde participam, entre outros, eu e o Coronel Oliver North, onde este diz clara-mente que “é preciso limar algumas arestas” e “se houver necessidade de se tirar alguém do caminho, tira-se”, dando portanto a entender que haverá que eliminar pessoas que criam problemas aos negócios de venda de armas. Oliver North diz-me também que está a ter problemas com a sua própria organização, e que teme que o possam querer afastar e “dei-xar cair”, o que acabou por acontecer.Há também portugueses que estavam a bene-ficiar com o tráfico de armas, como o Major Canto e Castro, o General Pezarat Correia, Franco Charais e o empresário Zoio. Sabe-se também já nessa altura que Adelino Amaro da Costa estava a tentar acabar com o tráfico de armas, a investigar o fundo de desenvolvi-mento do Ultramar, e a tentar acabar acabar com lobbies instalados. Afastar essas duas pessoas pela via política era impossível, pois a AD tinha ganho as eleições. Restava por-tanto a via de um atentado.Passados alguns dias, recebo um telefonema do Major Canto e Castro (pertencente ao

Conselho da Revolução), que eu já conhecia de Angola, pedindo para eu me encontrar com ele no Hotel Altis. Nessa reunião está também Frank Sturgies, e fala-se pela primei-ra vez em “atentado”, sem se referirem ainda quem é o alvo. referem que contam comigo para esta operação. O Major Canto e Castro diz que é preciso recrutar alguém capaz de realizar esta operação.Tenho depois uma segunda reunião no Hotel Altis com Frank Sturgies e Philip Snell, onde Frank Sturgies me encarrega de preparar e ar-ranjar alguns operacionais para uma possível operação dentro de pouco tempo, possivel-mente dentro de 2 ou 3 meses. Perguntam--me se já recrutou a pessoa certa para realizar este atentado, e se eu conheço algum perito na fabricação de bombas e em armas de fogo. Respondo que em Espanha arranjaria alguém da ETA para vir cá fazer o atentado, se tal fosse necessário. Quem paga a operação e a preparação do atentado é a Cia e o Major Canto e Castro. Canto e Castro colabora na altura com os serviços Secretos Franceses, para onde entrou através do sogro na épo-ca. O sogro era de Nacionalidade Belga, que trabalhava para a SDEC, os serviços de inte-ligência franceses, em 1979 e 1980. Canto e Castro casou com uma das suas filhas, quan-do estava em Luanda, em Angola, ao serviço da Força Aérea Portuguesa. Em Luanda, Can-to e Castro vivia perto de mim.

Tendo que organizar esta operação, falo en-tão com José Esteves  e mais tarde com Lee Rodrigues ( que na altura ainda não conhe-cia). O elo de ligação de Lee Rodrigues em Lisboa era Evo Fernandes, que estava ligado à resistência moçambicana, a Renamo. Falo nessa altura também com duas pessoas liga-das à ETA militar, para caso do atentado ser realizado através de armas de fogo.Depois, noutro jantar em casa de Frank Car-lucci, na Lapa, na Mansarda, no último an-dar, onde jantámos os dois sozinhos, Frank Carlucci diz abertamente e pela primeira vez, o que eu tinha de fazer, qual era a operação em curso e que esta visava Adelino Amaro da Costa, que estava a dificultar  o transporte e venda de armas a partir de Portugal ou que passavam em Portugal, e que havia luz verde dada por Henry Kissinger e Oliver North. Cumprimento ambos, referindo que sou “o homem deles em Lisboa”.Três semanas antes do atentado, Canto e Castro e Frank Surgies, referem pela primeira vez, que o alvo do atentado é Adelino Ama-ro da Costa. O Major Canto e Castro afirma que irá viajar para Londres. Frank Sturgies pede-me que obtenha um cartão de acesso ao aeroporto para um tal Lee Rodrigues, que é referido como sendo a pessoa que levará e colocará a bomba no avião.Recebo depois um telefonema de Canto e Castro, referindo que está em Londres e para eu ir ter lá com ele. Refere-me que o meu bi-lhete está numa agência de viagens situada na

Av. da República , junto à pastelaria Ceuta. Chegado a Londres fico no Hotel Grosvenor, ao pé de Victoria Station. Canto e Castro vai buscar-me e leva-me a uma casa perto do Hotel, onde me mostra pela primeira vez, o material, incluindo explosivos, que servirão para confeccionar a “bomba” nesta operação. Essa casa em Londres, era ao mesmo tempo residência e consultório de um dentista india-no, amigo de Canto e Castro, Canto e Cas-tro refere-me que esse material será levado para Portugal pela sua companheira Juanita Valderrama. O Major Canto e Castro pede--me então que vá ao Hotel Altis recolher o material. Vou então ao Hotel acompanhado de José esteves, e recebemos uma mala e uma carta da senhora Juanita, José Esteves prepa-ra então uma bomba destinada a um avião, com esses materiais, com a ajuda de Carlos Miranda.O Major Canto e Castro volta depois de Londres, encontra-se comigo, e digo-lhe que a bomba está montada. Lee Rodrigues é-me apresentado pelo Major Canto e Castro. Al-guns dias depois Lee Rodrigues telefona-me e encontramo-nos para jantar no restaurante Galeto, junto ao Saldanha, juntamente com Canto e Castro, onde aparece também Evo Fernandes, que era o contacto de Lee Ro-drigues em Lisboa. Fora Evo Fernandes que apresentara Lee Rodrigues a Canto e Castro. Lee Rodrigues era moçambicano e tinha li-gações à Renamo. Nesse jantar alinham-se pormenores sobre o atentado. Canto e Cas-tro refere contudo nesse jantar que o aten-tado será realizado em Angola. Perante esta afirmação, pergunto se ele está a falar a sério ou a brincar, e se me acha com “cara de pa-

lhaço”- fazendo tenção de me levantar. Refiro que, através de Frank Carlucci, já estava a par de tudo. Lee Rodrigues pede calma, referindo depois Canto e Castro que desconhecia que eu já estava a par de tudo, mas que sendo as-sim nada mais havia a esconder.Possivelmente em Novembro, é-me solici-tado por Philip Snell que participe numa reunião em Cascais, num iate junto à antiga marina (na altura não existia a actual marina). Vou e levo comigo José Esteves. Essa reunião tem lugar entre as 20 e as 23 horas, nela par-ticipando Philips Snell, Oliver North, Frank Sturgies, Sydral e Lee Rodrigues e mais cerca de 2 ou 3 estrangeiros, que julgo serem ame-ricanos. Nesta reunião é referido que há que preparar com cuidado a operação que será para breve, e falam-se de pormenores a ter em atenção. É  referido também os cuidados que devem   ser realizados depois da opera-ção, e o que fazer se algo correr mal. A língua utilizada na reunião é o Inglês. José Esteves recebeu então USD 200.000 pelo seu futuro trabalho. Eu não recebi nada pois já era pago normalmente pela CIA. Eu nessa altura rece-bia da CIA o equivalente a cinco mil dólares, dispondo também de dois cartões de crédito Diner’s Club e Visa Gold, ambos com plafon-ds de 10.000 Doláres.Lee Rodrigues pede-me então que arranje um cartão para José Esteves entrar no aeroporto. Para este efeito, obtenho um cartão forjado, na mouraria, em Lisboa, numa tipografia que hoje já não existe. Lee rodrigues diz-me tam-

bém que irá obter uma farda de piloto numa loja ao pé do Coliseu, na Rua das Portas de Santo Antão. A meu pedido, João Pedro Dias, que era carteirista, arranja também um cartão para Lee Rodrigues. Este cartão foi ob-tido por João Pedro Dias, roubando o cartão de Miguel Wahnon, que era funcionário da TAP. Apenas foi necessário mudar-se a foto-grafia desse cartão, colocando a fotografia de Lee Rodrigues.José Esteves prepara então, em sua casa no Cacém,  um engenho para o atentado. Con-ta com a colaboração de outro operacio-nal   chamado Carlos Miranda, especialista em explosivos, que é recrutado por mim, e que eu já conhecia de Angola, quando Car-los Miranda era comandante da FNLA e de-pois CODECO em Portugal. José Esteves foi também um dos principais comandantes da FNLA, indo muitas vezes a Kinshasa.Depois do artefacto estar pronto, vou nova-mente a Paris. No Hotel Ritz, à tarde, tenho um encontro com Oliver North, o cor. Wi-lkison e Philip Snell, onde se refere que o alvo a abater era Adelino Amaro da Costa, Ministro da Defesa.Volto a Portugal, cerca de 5 ou 6 dias antes do atentado. É marcado por Oliver North um jantar no hotel Sheraton. Nesse jantar aparece e participa um indivíduo que não conhecia e que me é apresentado por Oli-ver North , chamado Penaguião. Penaguião afirma ser segurança pessoal de Sá Carneiro. Oliver North refere que Penaguião faz parte da segurança pessoal de Sá Carneiro e que é o homem que conseguirá meter Sá Carneiro no avião. Penaguião afirma, de forma fria e di-recta que Sá Carneiro também iria no avião,

Amaro da Costa estava a tentar acabar com o tráfico de armas, a investigar o fundo de desenvolvimento do Ul-tramar, e a tentar acabar acabar com lobbies instalados.

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“pois dessa forma matavam dois coelhos de uma cajadada! “ Afirma que a sua eliminação era necessária, uma vez que Sá Carneiro era anti-americano, e apoiava incondicionalmen-te Adelino Amaro da Costa na denúncia do tráfico de armas, e na descoberta do chamado saco azul do Fundo de Defesa do Ultramar, pelo que tudo estava, desde o início, prepara-do para incluir as duas pessoas: Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa. Fico muito receo-so, pois só nesse momento fiquei a conhecer a inclusão de Sá Carneiro no atentado. Per-gunto a Penaguião como é que ele pode ter a certeza de que Sá Carneiro irá no avião, ao que Penaguião responde de que eu não me preocupasse pois que ele, com mais alguém, se encarregaria de colocar Sá Carneiro na-quele avião naquele dia e naquela hora, pois ele coordenava a segurança e a sua palavra era sempre escutada. No final do jantar, jun-tam-se a nós três o General Diogo Neto e o Coronel Vinhas.Fico estarrecido com esta nova informação sobre Sá Carneiro, e decido ir, nessa mesma noite, à residência do embaixador dos EUA, na Lapa, onde estava Frank Carlucci, a quem conto o que ouvi. Frank Carlucci responde que não me preocupasse, pois este plano já estava determinado há muito tempo. Disse--me que o homem dos EUA era Mário Soa-res, e que Sá Carneiro, devido à sua maneira de ser, teimoso e anti-americano, não servia os interesses estratégicos dos EUA. Mário Soares seria o futuro apoio da política ame-

ricana em Portugal, junto com outros lideres do PSD e do PS. Aceito então esta situação, uma vez que Frank Carlucci já me havia dito antes que tudo estava assegurado, inclusiva-mente se algo corresse mal, como a minha saída de Portugal, a cobertura total para mim e para mais alguém que eu indicasse, e que pudesse vir a estar em perigo. Isto é a usual “realpolitik” dos Estados Unidos, e suspeito que sempre será.Três dias antes do atentado há uma nova reu-nião, na Rua das Pretas no Palácio Roquete, onde participam Canto e Castro, Farinha Si-mões, Lee Rodrigues, José Esteves e Carlos Miranda. Carlos Miranda colaborou na mon-tagem do engenho explosivo com José Este-ves, tendo ido várias vezes a casa de José es-teves. Nessa reunião são acertados os últimos pormenores do atentado. Nessa reunião, Lee Rodrigues diz que ele está preparado para a operação e Canto e Castro diz que o  atenta-do será a 3 ou 4 de Dezembro. Nessa reunião é dito que o alvo é Adelino Amaro da Costa. No dia seguinte encontramo-nos com Canto e Castro no Hotel Sheraton, e vamos jantar ao restaurante “O Polícia”.No dia 4 de Dezembro, telefono de um tele-fone no Areeiro, para o Sr. William Hassel-berg, na Embaixada dos EUA, para confirmar que o atentado é para realizar, tendo-me este referido que sim. Desse modo, à tarde, José Esteves traz uma mala a minha casa, e vamos os dois para o aeroporto. Conduzo José este-ves ao aeroporto, num BMW do José Esteves.Já no aeroporto, José Esteves e eu entramos no aeroporto, por uma porta lateral, junto a um posto da Guarda Fiscal, utilizando o car-tão forjado, anteriormente referido. Depois

José Esteves desloca-se e entrega a mala, com o engenho, a Lee Rodrigues, que aparece com uma farda de piloto e é também visto por mim. Depois de cerca de 15 minutos, sai já sem a mala, e sai comigo do aeroporto. Separamo-nos, mas mais tarde José esteves encontra-se novamente comigo no cabelei-reiro Bacta, no centro comercial Alvalade.Depois José Esteves aparece em minha casa com a companheira da época, de nome Gina, e com um saco de roupa para lá ficar por pre-caução. Ouvi-mos depois o noticiário das 20 horas na televisão, e José Esteves fica muito surpreendido, pois não sabia que Sá Carnei-ro também ia no avião. Afirma que fomos enganados. Telefona então para Lencastre Bernardo, que tinha grandes ligações à PJ e à PJ Militar, e uma ligação ao General Eanes, Lencastre Bernardo tem também ligações a Canto e Castro, Pezarat Correia, Charais, ao empresário Zoio e a José António Avelar, que era ex-braço direito de Canto e Castro. José Esteves telefona-lhe, e pede para se en-contrar com ele. Este aceita, pelo que, pelas 23 horas, José Esteves, eu, e a minha mulher Elza, dirigimo-nos para a Rua Gomes Freire, na PJ, para falar com ele. José Esteves sobe para falar com Lencastre Bernardo que lhe tinha dito que não se preocupasse, pois nada lhe sucederia. Passámos contudo por casa de José Esteves pois este temia que aí houvesse já um conjunto de polícias à sua procura, de-vido a considerarem que ele estava associado à queda do avião em Camarate. José Esteves

ficou assim aliviado por verificar que não existia aparato policial à porta de sua casa. Vem contudo dormir para minha casa.Alguns dias depois falei novamente com Frank Carlucci. A quem manifestei o meu desconhecimento e ter ficado chocado por ter sabido, depois de o avião ter caído, que acompanhantes e familiares do Primeiro Ministro e do Ministro da Defesa também tinham ido no Avião. Frank Carlucci respon-deu-me que compreendia a minha posição, mas que também ele desconhecia que iriam outras pessoas no avião, mas que agora já nada se podia fazer.Em 1981, encontro-me com Victor Pereira, na altura agente da Polícia Judiciáia, no res-taurante Galeto, em Lisboa. Conto a Victor Pereira que alguns dos atentados estão atri-buídos às Brigadas  Revolucionárias, relacio-nados com a colocação de bombas, foram porém efectuadas pelo José   Esteves, como foram os casos dos atentados à bomba na Embaixada de Angola, de Cuba ( esta última com conhecimento de Ramiro Moreira), na casa de Torres Couto, na casa do prof. Diogo Freitas do Amaral, na casa do Eng. Lopes Car-doso, e na casa de Vasco Montez, a pedido deste, junto ao Jumbo em Cascais, para obter sensacionalismo à época, tendo José Esteves espalhado panfletos iguais aos da FP25. Não falei então com Victor Pereira de Ca-marate. Tomei conhecimento no entanto que Victor Pereira, no dia 4 de Dezembro de 1980, tendo ido nessa noite ao aeroporto da Portela, como agente da PJ, encontrou a mala que era transportada pelo eng. Adelino Amaro da Costa. Nessa mala estavam docu-mentos referentes ao tráfico de armas  e de

pessoas envolvidas com o Fundo de defesa do Ultramar. Salvo erro, Victor Pereira entregou essa mala ao inspector da PJ Pedro Amaral, que por sua vez a entregou na PJ. Disse-me então Victor Pereira que essa mala, de maior importância no caso de Camarate, pelas in-formações que continha, e que podiam expli-car os motivos e as pessoas por detrás  deste atentado, nunca mais voltou a aparecer. Esta informação foi-me transmitida por Victor Pe-reira, quando esteve preso comigo na prisão de Sintra, em 1986. Não referi então a Victor Pereira que, como descrevo a seguir, eu tinha já tido contacto com essa mala, em finais de 1982, pelo facto de trabalhar com os serviços secretos na Embaixada dos EUA.Também em 1981, uns meses depois do aten-tado, eu e o José Esteves fomos ter com o Major Lencastre Bernardo, na Polícia Judiciá-ria, na Rua Gomes Freire. Com efeito, tanto o José Esteves como eu, andávamos com medo do que nos podia suceder por causa do nos-so envolvimento no atentado de Camarate, e queríamos saber o que se passava com a nos-sa protecção por causa de Camarate. Eu não participo na reunião, fico à porta. Contudo, José Esteves diz-me depois que nessa conver-

sa Lencastre Bernardo lhe referiu que, numa anterior conversa com Francisco Pinto Bal-semão, este lhe havia dito ter tido conheci-mento prévio do atentado de Camarate, pois em Outubro de 1980, Kissinger o informou de que essa operação ia ocorrer. Disse-lhe também que ele próprio tinha tido conheci-mento prévio do atentado de Camarate. Dis-se-lhe ainda que podíamos estar sossegados quanto a Camarate, pois não ia haver proble-mas connosco, pois a investigação deste caso ia morrer sem consequências.A este respeito gostaria de acrescentar que numa reunião que tive, a sós, em 1986, com Lencastre Bernardo, num restaurante ao pé do edifício da PJ na Rua Gomes Freire, ele garantiu-me que Pinto Balsemão estava a par do que se ia passar em 4 de Dezembro. No restaurante Fouchet’s, em Paris, Kissinger ti-nha-me dito, “por alto”, que o futuro Primeiro Ministro de Portugal seria Pinto Balsemão. É importante referir que tanto Henry Kissin-ger como Pinto Balsemão eram já, em 1980, membros destacados do grupo Bilderberg, sendo certo que estas duas pessoas levavam convidados às reuniões anuais desta organi-zação.Deste modo, aquando da conversa com Len-castre Bernardo, em 1986, relacionei o que ele me disse sobre Pinto Balsemão, com o que tinha ouvido em Paris, em 1980. Tive tam-bém esta informação, mais tarde, em 1993,

numa conversa que tive com William Hassel-berg, em Lisboa, quando este me confirmou de que Pinto Balsemão estava a par de tudo.Em finais de 1982, pelas informações que vou obtendo na Embaixada dos EUA, em Lisboa, verifico que se fala de nomes con-cretos de personalidades americanas com tendo estado envolvidas em tráfico de armas que passava por Portugal. Pergunto então a William Hasselberg como sabem destes no-mes. Ao fim de muitas insistências minhas, William Hasselberg acaba por me dizer que a PJ entregou, na embaixada dos EUA, uma mala com os documentos transportados por Adelino Amaro da Costa, em 4 de Dezembro de 1980, e que ficou junto aos destroços do avião, embora não me tenha dito quem foi a pessoa da PJ que entregou esses documen-tos. Peço então a William Hasselberg que me deixe consultar essa mala, uma vez que faço também parte da equipa da CIA em Por-tugal. Ele aceita, e pude assim consultar os documentos aí existentes, que consistiam em cerca de 200 páginas. Pude assim consultar este Dossier durante cerca de uma semana, tendo-o lido várias vezes, e resumido, à mão, as principais partes, uma vez que não tinha como fotografá-lo ou copiá-lo.Vejo então, que apesar do desastre do avião, e da pasta de Avelino Amaro da Costa ter ficado queimada, e ter sido substituída por outra, os documentos estavam intactos. Estes documentos continham uma lista de compra de armas, que incluía nomeadamente  RPG-7, RPG-27, G3, lança-granadas, munições, granadas, minas, rádios, explosivos de plás-tico, fardas, kalashiskovs AK-47 e obuses. Referia-se também nesses documentos que para se iludir as pistas, as vendas ilegais de armas eram feitas através de empresas de fa-chada, com os caixotes a referir que a carga se tratava de equipamentos técnicos, e peças sobresselentes para maquinas agrícolas e para a construção civil. Esta forma de transportar armas foi-me confirmada várias vezes por Oliver North, no decorrer da década de 80, até 1988, e quando estive em Ilopango, no El Salvador, também na década de 80, verifiquei que era verdade.Nestes documentos lembro-me de ver que algumas armas vinham da empresa portu-guesa Braço de Prata, bem como referências de vendas de armas de Portugal e de países de Leste, como a Polónia e a Bulgária, com destino para a Nicarágua, Irão, El Salvador, Colômbia, Panamá, bem como para alguns países Africanos que estavam em guerra, como Angola, ANC da África do Sul, Ni-géria, Mali, Zimbabwe, Quénia, Somália, Líbia, etc. Está também claramente referido nesses documentos que a venda de armas é feita através da empresa criada em Portugal chamada “Supermarket” (que operava através da empresa mãe “Black - Eagle”).Nos referidos documentos vi também que as vendas de armas eram legais através de empresas portuguesas, mas também havia vendas de armas ilegais feitas por empresas de fachada, com a lavagem de dinheiro em bancos suíços e “off-shores” em nome dos de-tentores das contas, tanto pessoas civis como militares.As vendas ilegais de armas ocorriam por vá-rias razões, nomeadamente: Em primeiro lu-gar muitos dos países de destino, tinham ofi-cialmente sanções e embargos de armas. Em segundo lugar, os EUA não queriam oficial-mente apoiar ou vender armas a certos países, nomeadamente aos contra da Nicarágua, ou ao Irão e ao Iraque, a quem vendiam armas ao mesmo tempo, e sem conhecimento de ambos. Em terceiro lugar a venda de armas

Afastar essas duas pessoas pela via política era impossível, pois a AD tinha ganho as eleições. Restava portanto a via de um atentado.

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ilegal é mais rentável e foge aos impostos. Em quanto lugar a venda de armas ilegal permite o branqueamento de capitais, que depois po-diam ser aproveitados para outros fins.Entre os nomes que vi referidos nestes docu-mentos figuravam:- José Avelino Avelar- Coronel Vinhas- General Diogo Neto- Major Canto e Castro- Empresário Zoio- General Pezarat Correia- General Franco Charais- General Costa Gomes- Major Lencastre Bernardo- Coronel Robocho Vaz- Francisco Pinto BalsemãoFrancisco Balsemão e Lencastre Bernardo eram referidos como elementos de ligação ao grupo Bildeberg e a Henry Kissinger, Francisco Balsemão pertence também à loja maçónica “Pilgrim”, que é anglo-saxónica, e dependente do grupo Bildeberg. Lencastre Bernardo tinha também assinalada a sua liga-ção a alguns serviços de inteligência, visto ele ser, nos anos 80, o coordenador na PJ e na Polícia Judiciária Militar.Entre as empresas Portuguesas que realiza-vam as vendas de armas atrás referidas, entre os anos 1974 e 1980, estavam re-feridas neste Dossier:- Fundição de Oeiras (morteiros, obuses e granadas)- Cometna (engenhos explosivos e bombas)- OGMA (Oficinas Gerais Mi-litares de Fardamento e OGFE (Oficinas de Fardamento do Exercito)- Browning Viana S.A.- A. Paukner Lda, que existe des-de 1966- Explosivos da trafaria- SPEL (Explosivos)- INDEP (armamento ligeiro e monições)- Montagrex Lda, que actuava desde 1977, com Canto e Cas-tro e António José Avelar. Só foi contudo oficialmene constituida em 1984, deixando, nessa altura, Canto e Castro de fora, para não o comprometer com a operação de Camarate. A Montagrex Lda operava no Campo Poqueno, e era liderada por António Avelar que era o braço direito de Canto e Castro e também sócio dessa em-presa. O escritório dessa empresa no Campo Pequeno é um autentico “bunker”, com por-tas blindadas, sensores, alarmes, códigos nas portas, etc.Canto e Castro e António Avelar são tam-bém sócios da empresa inglesa BAE - Syste-ms, sediada no Reino Unido. Esta empresa vede sistemas de defesa, artilharia, mísseis, munições, armas submarinas, minas e so-bretudo sistemas de defesa anti-mísseis para barcos. Todos estes negócios eram feitos, na sua maior parte, por ajuste directo, através de brokers - intermediários, que recebiam as suas comissões, pagas por oficiais do Exérci-to, Marinha, Aeronáutica, etc.Nestes documentos era referido que, como consequência desta vendas de armas, gerava--se um fluxo considerável de dinheiro, a par-tir destas exportações, legais e ilegais. Estes documentos referiam também a quem eram vendidas estas armas, sobretudo a países em guerra, ou ligados ao terrorismo internacio-nal. Era também referido que todas estas ven-das de armas eram feitas com a conivência da autoridade da época, nomeadamente  milita-

res como o General Costa Gomes, o General Rosa Coutinho (venda de armas a Angola) e o próprio Major Otelo Saraiva de Carvalho ( venda de armas a Moçambique). Vi várias vezes o nome de Rosa Coutinho nestes docu-mentos, que nas vendas de armas para Angola utilizava como intermediário o general refor-mado angolano, José Pedro Castro, bastante ligado ao MPLA, que hoje dispõe de uma fortuna avaliada em mais de 500 milhões de USD, e que dividia o seu tempo entre Ango-la, Portugal e Paris. O seu filho, Bruno Castro é director adjunto do Banco BIC em Angola.No referido dossier estavam também referi-dos outros militares envolvidos neste negó-cio de armas, nomeadamente o Capitão Di-nis de Almeida, o Coronel Corvacho, o Vera Gomes e Carlos Fabião.Todas estas pessoas obtinham lucros fabulo-sos com estes negócios, muitas vezes mesmo antes do 25 de Abril de 1974 e até 1980. Era referido que estas pessoas, nomeadamente militares, que ajudavam nesta venda de ar-mas, beneficiavam através de comissões que recebiam. Estavam referidos neste Dossier os nomes de “off-shores”, que eram usadas para pagar comissões às pessoas atrás referidas e a outros estrangeiros, por Oliver North ou por outros enviados da CIA. Estas “off-shores” de-

tinham contas bancárias, sempre numeradas.Esta referência batia certo com o que Oliver North sempre me contou, de que o negócio das armas se proporciona através de “off-sho-res” e bancos controlados para a lavagem de dinheiro.Vale a pena a este respeito referir que no ne-gócio das armas, empresas do sector das obras públicas aparecem frequentemente associadas, como a Haliburton, a Carlyle, ou a Blackwa-ter, (empresa de armas, construção e mercená-rios), entre outras. Esta relação está referida, há anos, em vários relatórios, nomeadamente nos relatórios do Bribe Payer Index (índice in-ternacional dos pagadores de subornos), que é uma agência americana. A indicação deste tipo de práticas foi desenvolvida mais tarde, pela Transparency International e pelo Comité Norte Americanos de Coordenação e Promo-ção do Comercio do Senado Americano, que referem que há muitos anos , mais de 50% do negócio e comercio de armas em Portugal, é feito através de subornos. Os americanos sem-pre usaram Portugal para o tráfico de armas, fazendo também funcionar a Base das Lajes, nos Açores, para este efeito, nomeadamente depois de 1973, aquando da guerra do Yom Kippur, entre Israel e os países árabes. Este

tráfico de armas deu origem a várias contra-partidas financeiras, nomeadamente através da FLAD, que foi usada pela CIA para este efeito. A FLAD recebeu diversos fundos específicos para a requalificação de recursos humanos.Não vi contudo neste Dossier observações referindo que estas vendas de armas eram condenáveis ou que tinham efeitos negati-vos. Havia contudo uma pequena nota, em que algumas folhas de que se devia tomar cui-dado com tudo o que aí estava escrito, e que portanto se devia actuar. Havia também na primeira página um carimbo que dizia “confi-dentical and restricted”.Estas vendas de armas continuaram contudo depois de 1980. Tanto quanto eu sei, estas vendas de armas continuaram a ser realizadas até 2004, embora com um abrandamento im-portante a partir de 1984, a partir do escân-dalo das fardas vendidas à Polónia.No referido Dossier estavam também referi-das personalidades americanas envolvidas no negócio de armas, nomeadamente Bush (Pai), dick Cheney, Frank Carlucci, Donald Gregg, vários militares, bem como a empresas como a Blackwater. são ainda referidas empresas ligadas aos EUA, como a Carlyle, Halibur-ton, Black Eagle Enterprise, etc, que estavam a usar Portugal para os seus fins, tanto pela

passagem de armas através de portos portu-gueses, como pelo fornecimento de armas a partir de empresas portuguesas. Tirei apon-tamentos desses documentos, que ainda hoje tenho em meu poder.A empresa atrás referida, denominada Super-market, foi criada em Portugal em 1978, e ope-rava através da empresa mão, de nome Black--Eagle, dirigida por William Casey, (membro do CFR(Council for Foreign Affairs and Rela-tions), ex-embaixador dos EUA nas Honduras e também com ligações à CIA). A empresa Su-permarket organizava a compra de armas de fa-brico soviético, através de Portugal, bem como a compra de armas e munições portuguesas, referidas anteriormente, com toda a cumpli-cidade de Oliver North. Estas armas iam para entrepostos nas Honduras, antes de serem en-viadas para os seus destinos finais. Oliver North pagou muitas facturas destas compras em Por-tugal, através de uma empresa chamada Gretsh World, que servia de fachada à Supermarket. Mais tarde, cerca de 1985, quando se começou muito a falar de camarate, Oliver North cance-lou a operação “Supermarket, e fechou todas as contas bancárias.Devo ainda referir que William Hasselberg e outros americanos da embaixada dos EUA, em

Lisboa, comentaram comigo, várias vezes o que estava escrito neste Dossier. Relativamente a Hasselberg isso era lógico, pois foi ele que me deu o Dossier a ler. Posteriormente comentei também o que estava escrito neste Dossier com Frank Carlucci, que obviamente já tinha conhe-cimento da informação nele contida.Tanto William Hasselberg, como membro da CIA, como outros elementos da CIA atrás referidos e outros, comentaram várias vezes comigo o envolvimento da CIA na operação de Camarate e neste negócio de armas. Lem-bro-me nomeadamente que quando alguém da CIA, me apresentava a outro elemento da Cia, dizia frequentemente “this is the portu-guese guy, the one from Camarate, the case in Portugal with the plane!”.As vendas de armas, a partir e através de Portu-gal, foram realizadas ao longo desses anos, pois era do interesse político dos EUA. A CIA orga-nizou e implementou estas vendas de armas em Portugal, à semelhança do que sucedeu noutros países, pois era crucial para os EUA que certas armas chegassem aos países referidos, de forma não oficial, tendo para isso utilizados militares e empresários Portugueses, que acabaram tam-bém por beneficiar dessas vendas.Como anteriormente referi, William Casei e Oliver North estavam, nas décadas  de 70 e

80 conluiados com o presidente Manuel Noriega, no escândalo Irão - contras (Irangate). Foi sem-pre Oliver North que se ocupou da questão dos reféns america-nos  no Irão, bem como da situa-ção da América Central. Recebeu pessoalmente por isso uma carta de agradecimentos de George Bush Pai, Vice Presidente à época de Ronald Reagan.Devo dizer a este respeito que John Bush, filho de Bush Pai, en-tão com 35 anos, a viver na Fló-rida, pertencia em 1979 e 1980 ao “Condado de Dade”, que era e é uma organização republicana, situada em South Florida, des-tinada a angariar fundos para as campanhas eleitorais republica-nas. John Bush era um dos orga-nizadores de apoios financeiros para os “contra” da Nicarágua.Conheci também Monzer Al Kasser um grande traficante de

armas que tinha uma casa em Puerto Banus em Marbella, e que me foi apresentado, em Paris, por Oliver North, em 1979.Era um dos grandes vendedores de armas para os “Contra” na Nicarágua, trabalhando simul-taneamente para os serviços secretos sírios, búlgaros e polacos. Na sua casa em Marbella, referiu-me também que, por vezes, o tráfico de armas era feito através de África, para que no Iraque não se apercebessem da sua proveniên-cia, pois também vendiam ao mesmo tempo ao Irão e a Portugal. Este tráfico de armas, que estava em curso, desde há vários anos, em 1980, e o começo do caso Camarate.Através de Al Kasser conheci, em Marbella, no final de 1981, outro famoso traficante de armas, numa festa em casa de Monzer, que se chamava Adrian Kashogi. Kashogi, como pude testemu-nhar em sua casa, tinha relações com políticos e empresários europeus, árabes e africanos, por regra ligados ao tráfico de armas e drogas.Sou preso em 1986, acusado de tráfico de dro-gas. Esta prisão foi uma armadilha montada pela DEA, por elementos que nessa organiza-ção não gostavam de mim, por eu ter levado à detenção de alguns deles, como referi ante-riormente. Fui então levado para a prisão de Sintra. Estou na prisão com o Victor Pereira,,

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que aí também estava preso. Sei, em 1986, que estavam a preparar para me eliminar na prisão, pelo que peço à minha mulher Elza, para ir fa-lar, logo que possível com Frank Carlucci. Em consequência disso recebo na prisão a visita de um agente da CIA, chamado Carlston, jun-tamente com outro americano. estes, depois de terem corrompido a direcção da prisão, incluindo o director, sub-director e chefe da guarda, bem como um elemento que se refor-mou muito recentemente, da Direcção Geral dos Serviços Prisionais, chamada Maria José de Matos, conseguem a minha fuga da prisão. Contribuiu ainda para esta minha fuga, me-diante o recebimento de uma verba elevada, paga pelos referidos agentes americanos esta directora-adjunta da Direcção Geral dos Ser-viços Prisionais. Estes agentes americanos  ob-têm depois um helicóptero, que me transporta para a Lousã, onde fico cerca de 20 dias. Vou depois para Madrid, com a ajuda dos america-nos, e depois daí ara o Brasil. As despesas com a minha fuga da prisão custaram 25.000 euros, o que na época era uma quantia elevada.Só mais tarde no Brasil, depois de 1986, é que referi a José Esteves que sabia que Sá Carneiro ia no avião, contando-lhe a história toda. José Esteves, responde então, que nesse caso, tínhamos corrido um grande risco. Eu tranquilizei-o, referindo que sempre o apoiei e protegi neste atentado. Dei-lhe apoio no Brasil no que pude. Assegurei-lhe também

o transporte para o Brasil, obtendo-lhe um passaporte no Governo Civil de Lisboa, en-treguei-lhe 750 contos que me foram dados para esse efeito pela embaixada   dos EUA, em Lisboa, e arranjei-lhe o bilhete de avião de Madrid para o Rio de Janeiro . Na viagem de Lisboa para Madrid, José Esteves foi leva-do por Victor Moura, um amigo comum. No Rio de Janeiro ajudei-o a montar uma loja, numa roulote. Como trabalhava ainda para a embaixada  dos EUA, em Lisboa, estas despe-sas foram suportadas pela Embaixada. Ficou no Brasil cerca de  dois anos. Eu, contudo an-dava constantemente em viagem.José Esteves recebe depois um telefonema de Francisco Pessoa de Portugal, onde Fran-cisco Pessoa o aconselha a voltar a Portugal, e a pedir protecção, a troco de ir depor na Comissão de Inquérito Parlamentar sobre Camarate. Esse telefonema foi gravado, mas José Esteves nunca chegou a obter uma pro-tecção formal.Telefono a Frank Carlucci, em 1987, pedin-do-lhe para falar com ele pessoalmente. Ele aceita, pelo que viajo do Brasil, via Miami, para Washington. Pergunto-lhe então, em face do que se tinha falado de Camarate, qual seria a minha situação, se corria perigo por causa de Camarate, e se continuarei, ou não a trabalhar para a CIA. Frank Carlucci respon-

de-me que sim, que continuarei a trabalhar para a CIA, tendo efectivamente continuado a ser pago pela CIA até 1989. Frank Carlucci confirma nessa reunião que puderam contar com a colaboração de Penaguião na operação de Camarate, e que ele, Frank Carlucci, este-ve a par dessa participação.Em 1994, foi-me novamente montada uma armadilha em Portugal, por agentes da DEA que não gostavam de mim, por causa da refe-rida prisão de agentes seus, denunciados por mim. Nesta armadilha participam também três agentes da DCITE - Portuguesa, os hoje inspectores Tomé, Sintra e Teófilo Santiago. Depois desta detenção, recebo a visita na pri-são de Caxias de dois procuradores do Minis-tério Público, um deles, se não estou em erro, chamado Femando Ventura, enviados por Cunha Rodrigues, então Procurador Geral da República. Estes procuradores referem-me que me podem ajudar no processo de droga de que sou acusado, desde que eu me mante-nha calado sobre o caso Camarate.Por ser verdade. e por entender que chegou o momento de contar todo o meu envolvimento na operação de Camarate, em 4 de Dezembro de 1980, decidi realizar a presente Declara-ção, por livre vontade. Não podendo já alterar a minha participação nesta operação, que na altura estava longe de poder imaginar as trági-cas consequências que teria para os familiares das vítimas e para o país, pude agora, ao me-

nos, contar toda a verdade, para que fique para a História, e para que nomeadamente os por-tugueses possam dela ter pleno conhecimento.Não quero, por ultimo, deixar de agradecer à minha mãe, à minha mulher Elza Simões, que ao longo destes mais de 35 anos, tanto nos bons como nos maus momentos, sempre esteve a meu lado, suportando de forma ex-traordinária, todas as dificuldades, ausências, e faltas de dedicação à familia que a minha profissão implicava. Só uma grande mulher e um grande amor a mim tornaram possível este comportamento. Quero também agrade-cer à minha filha Eliana, que sempre soube aceitar as consequências que para si represen-tavam a minha vida profissional, nunca tendo deixado de ser carinhosa comigo. Finalmente quero agradecer à minha mãe que, ao longo de toda a minha vida me acarinhou e enco-rajou, apesar de nem sempre concordar com as minhas opções de vida. A natureza da sua ajuda e apoio, tiveram para mim uma impor-tância excepcional, sem, as quais não teria conseguido prosseguir, em muitos momentos da minha vida. Posso assim afirmar que tive sempre o apoio de uma família excepcional, que foi para mim decisiva nos bons e maus momentos da minha vida.

Lisboa, 26 de Março de 2012

Já no aeroporto, José Esteves e eu entramos no aeroporto, por uma porta lateral, junto a um posto da Guarda Fiscal, utilizando o cartão forjado, anteriormente referido. Depois José Esteves desloca-se e entrega a mala, com o engenho, a Lee Rodrigues, que aparece com uma farda de piloto e é também visto por mim. Depois de cerca de 15 minutos, sai já sem a mala, e sai comigo do aeroporto.

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GUILIN (leia-se Kuilin ou Kueilin) é talvez a mais turística de todas as cidades chinesas, um lugar de eleição nas viagens à China, um des-lumbramento diante da recortada e sumptuosa paisagem de rios, lagos e estranhas montanhas. Rotulada pela propaganda chinesa “como a mais bonita cidade do mundo”, o burgo enco-lhe-se diante de tão superlativos elogios. Por-que a magnificência real do lugar não terá a ver com Guilin propriamente dita, mas com as visões fantásticas da descida de barco pelo rio Li, ou Lijiang.Em paisagens de mil feitiços e magia, não será de esquecer o quotidiano difícil das gentes, a dura e extremada labuta diária, o pasmo, as do-enças e a morte. Num passado não muito dis-tante, a malária e a lepra eram uma constante na região.Em Guilin também, sentir, viver a China com tudo o que mostra de postiço, doloroso e tran-sitório, com tudo o que tem de genuíno, deli-cado e perene.Guilin fica no sul da China, na província de Guangxi -- ou região autónoma, na nomencla-tura actual --, e faz fronteira com as províncias de Guizhou, Guangdong (onde se situa Ma-cau), Hunan e com o Vietnam. A cidade é an-tiga e considera-se que começou a ganhar im-portância no reinado de Qin Shihuang (entre 221 a.C. e 209 a.C.), o primeiro imperador e unificador do império quando, por sua ordem, a trinta quilómetros de Guilin foi escavado o canal Lingqu que unia, e ainda hoje une, atra-vés de uma ligação entre alguns dos afluentes e mais umas tantas esclusas, o rio das Pérolas ao rio Yangtsé, possibilitando-se assim o transpor-te fluvial entre o sul e o centro do Império.Hoje, Guilin conta com 800.000 habitantes, tem alguma indústria mas vive sobretudo do turismo. São milhares e milhares de turistas, sobretudo o turismo interno chinês e não o estrangeiro, que diariamente chegam à cidade para depois fazerem os 83 quilómetros de bar-co na descida pelo Lijiang até à originalíssima cidadezinha de Yangshuo, já perto do rio Xi-jiang, o braço oeste do rio das Pérolas.De resto, Guilin não fica longe de Macau, aí a uns quinhentos quilómetros de distância, o que numa China que tem o tamanho da Europa, não é muito. São dezoito horas de autocarro até Zhuhai, logo ali do outro lado das Portas do Cerco, são seis horas de jet-foil na viagem

rápida até Cantão mas, se viermos de comboio desde Pequim, bem lá mais para norte, será ne-cessário contar com trinta horas de viagem. De Xangai a esta cidade são trinta e cinco horas de comboio.Cheguei pela primeira vez a Guilin na Prima-vera de 1978. Depois não fiz o balanço dos regressos, mas foram uma mão cheia deles, es-paçados ao longo dos anos, o último dos quais em 2009. A cidade cresceu, claro, e foi alindada. Quando Bill Clinton veio à China em 1998, levaram-no a Guilin e o então presidente nor-te-americano ficou alojado num hotel junto ao lago Shanhu, quase no centro do burgo. Clin-ton criticou a imundície que viu no lago e em redor do hotel e, por brincadeira, terá dito que em Guilin dormiu rodeado por um enorme cai-xote do lixo. Os chineses tomaram medidas, limparam, arranjaram o lago e arredores, trans-formaram os espaços num parque, construíram dois pagodes iguais com nove andares, o do Sol e o da Lua, um pintado a dourado, o outro a prateado, e até fizeram uma réplica pequena da Golden Gate, a ponte sobre a baía de S. Fran-cisco, que agora atravessa um canal por detrás do lago.Ignoro qual o menu dos banquetes com que Bill Clinton e a esposa Hillary foram presente-ados em Guilin. A verdade é que aqui, tal como acontece na vizinha província de Guangdong, come-se tudo o que mexe, está parado e parece comestível.As especialidades locais podem começar por uma sopa de cobra perfumada com caril e ervas

aromáticas, depois um estufado de gato selva-gem (ou proveniente das casas e dos telhados da cidade) com gengibre, continuando o ban-quete com perna de pangolim (um animal pro-tegido, em vias de extinção) frita no wok com pimentão picante. E mais uns tantos petiscos como caldeirada de enguias, peixe do rio em molho de soja e ananás, pombos de escabeche com açafrão e canela e, delícia das delícias, um cozido de pedaços de cão com cenoura e re-bentos de bambu.Deixemos para trás a cidade de Guilin, mais a cozinha típica da região, e vamos até à gruta da Flauta de Cana rasgada pela água pura do tem-po. É semelhante às nossas grutas calcárias de Alvados e Mira Daire, um pouco maior e, como os chineses adoram excessos da mais variada espécie, resolveram iluminar tudo por dentro, num exagero barroco que transforma as grutas num pitoresco e fantasmagórico festival de luz e cor. Vale a pena ver.Depois é tempo de descer o rio Lijiang até a vila de Yangshuo. O rio corre devagar, aben-çoado pelo esvoaçar da brisa e pelo chilrear dos pássaros, a viagem fluvial faz-se, sossegada e límpida, entre bambuais, arrozais dourados e montes de pedra cobertos pelo veludo verde dos séculos, entre bosques de acácias e osman-tos, à sombra da penedia gigante que sobe até ao céu. Yangshuo é o fim da descida do rio. Normal-mente os turistas costumam regressar a Guilin de autocarro e daí avançam para outros lugares. Mas aconselho a estadia em Yangshuo, duran-te dois ou três dias. Novidade nestes últimos anos, a vilazinha transformou-se num local de fixação provisória, quiçá definitiva, de uns tantos desvairados estrangeiros, que, zangados com o mundo onde nasceram e cresceram, em busca de um mini-paraíso terreno, compraram ou alugaram casa em Yangshuo e por aqui vi-vem em paz. Serão cerca de duas centenas a frequentar os cafés e restaurantes chineses de tipo ocidental (comem-se óptimas pizzas neste lugar!). Trata-se sobretudo de norte-america-nos, mas também há europeus que cirandam pelo esplendor da paisagem circundante numa vila deslumbrante debruçada sobre um rio transparente, anichada entre montes de pedra que parecem saídos de um conto de fadas.À noite, um espectáculo de cantos e danças com as minorias nacionais da região de Guilin, os zhuang, dong, miao e yao, com meninas de jade dançando como pétalas de seda suspensas no ar.Depois adormecer na pequena Pousada das Flores, em Yangshuo. Lá fora, um tecto de nu-vens brancas acaricia a terra, mui ao de leve.

O rio corre devagar, abençoado pelo esvoaçar da brisa e pelo chilrear dos pássaros, a viagem fluvial faz-se, sossegada e límpida, entre bambuais, arrozais dourados e montesde pedra cobertos pelo veludo verde dos séculos, entre bosques de acácias e osmantos, à sombra da penedia gigante que sobe até ao céu

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O rio corre devagar, abençoado pelo esvoaçar da brisa e pelo chilrear dos pássaros, a viagem fluvial faz-se, sossegada e límpida, entre bambuais, arrozais dourados e montesde pedra cobertos pelo veludo verde dos séculos, entre bosques de acácias e osmantos, à sombra da penedia gigante que sobe até ao céu

GUILIN, RIO LI, AS GENTES E A PAISAGEM

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O BAR LAN OUTRA VEZ

Pedro Lystmanna revolta do emir

É possível, e aconselhável, abordar o Lan a partir da entrada do Hotel Cro-wn Towers. Este exercício poupa-nos à náusea que os corredores do City of Dreams possam causar, passerelle inútil de uma populaça aparentemente indi-ferente a uma galeria de lojas que em nada se distingue de incontáveis ou-tras que existem em Macau.Para quem o não conhece este bar apresenta duas boas surpresas. Uma é o seu desenho e inscrição no lobby do hotel, de modo algum infeliz. Ou-tra é a extensão e a qualidade da sua lista de vinhos de mesa, muito inter-nacional, e a decência da oferta de champagnes, não muito longa mas suficiente aos apetites de um consu-midor moderado – uma página, uns 30 champagnes.Esta coloração internacionalizan-te tem paralelo no traço deste pe-queno bar, um pouco sisudo mas de modo nenhum aborrecido. Situado no fundo do lobby do hotel, deste aproveita alguns dos motivos deco-rativos, que até ele se prolongam. Talvez merecesse, porventura, uma identidade mais própria por força do cuidado que foi posto na sua idealização, mas este lugar tem su-ficiente carácter para que também o possamos apreciar como parte do vasto lobby, longo e exacto, sem fa-lhas de concepção, oferecendo uma distracção coscuvilheira que pode ser agradável à passagem do tempo. Este (lobby) terá em exposição, mui-to em breve, canteiros de bambus que nele se inscreverão, não tenho dúvidas, de modo muito competen-te. Este será certamente uma fonte de longos deleites, ponto alto e co-lorido da saison bebente Primavera / Verão deste ano.Não deixo de confessar que este é um sítio que me inspira alguma simpatia, pela sua inocência e pela indefinição que nele se apercebe.A estas disposições junta-se uma outra distracção leve, umas pianistas indus-triosas mas fraquinhas que arranham motivos conhecidos com uma fal-ta de rigor comovente. A evitar por frequentadores que se não inclinem a uma certa dose de benevolência para com as simpáticas percutoras. Como acontece tantas vezes em Macau, a frequência dos seus bares de hotel deve vir acompanhada de uma pre-disposição para a condescendência.

Quem quiser estender este conselho a outras áreas da vida local poderá fazê-lo sem incorrer no espanto deste vosso dedicadíssimo servo.Esta inclinação permite ultrapassar com à-vontade a decisão de incapa-citar o bebente de se sentar ao bal-cão ou a escolha das azeitonas que guarnecem o martini (pedido, num momento de distracção, sem insistir na casquinha de limão), enormes e re-cheadas de pedaços de queijo que se espalham pelo copo (de pé demasiado alto) com um ar ameaçador e veneno-so. Há uma altura em que começo a ver (ou a imaginar?) estas infiltrações a espalharem-se com a languidez mortífera de uma infecção benvinda.Este é o palco apropriado para cum-prir um exercício que em Macau se tornou quase obrigatório, deixar es-correr uma desinteressada compla-cência à falta de ousadia e à ausência do terror. Esta opacidade leva-me a pedir de novo a lista de vinhos: por-tugueses, franceses, italianos, neo--zelandeses, libaneses, australianos, americanos, chilenos, argentinos, 6 páginas de brancos e 17 páginas de tintos. Há Pimm’s, é primavera, e não vejo razões para que a abundância nos indisponha.Não me entendam mal. Este bar é óp-timo e eu gosto dele. As empregadas mostram brio e nele há um charme do vazio, uma total ausência de his-tória e uma total ausência de mistério ou promessa de futuro. É só isto aqui que se vê, por meio da tarde invadido de um sol baço facilmente impedido por uma cortinária alta, prontamente corrida pelas empregadas, solícitas e com algum saber destas coisas de tentar agradar. Mesmo que pareçam faltar-lhe partes (ao bar), como se um pintor se tivesse esquecido de preen-cher secções de um quadro, como se nele houvesse partes por acabar. Mes-mo que o Lan seja assim eu gosto da altura das paredes, das janelas e da cortinália e das pianistas que esque-cem algumas notas ou as julgam des-necessárias. Umas notas a menos não acrescentam desfavor ao Lan, apenas o complementam. Espero ansiosamente (não há aqui a menor ironia) que se cumpra, em Abril, a promessa do es-plendor das gramíneas. Conselho irrecusável: um Pimm’s Cup ou um branco libanês pelas cinco da tarde de um dia de sol.

T E R C E I R O O U V I D O

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Quiet nights of quiet stars, quiet chords from my guitarFloating on the silence that surrounds usQuiet thoughts ‘n’ quiet dreams, quiet walks by quiet streamsClimbing hills where lovers go to watch the world below together

Quiet Nights of Quiet Stars (Corcovado)Tom Jobim

Na próxima terça-feira, dia 8, a Live Music Association (Edifício Man Kei, na Avenida do Coronel Mesquita), oferece o palco para uma “Flau Night”. São três os nomes ligados à edi-tora japonesa que, pela primeira vez, actuam em Macau: Cokiyu, Aus e Cuushe.Desde que surgiu, em 2006, a Flau tem contri-buído exemplarmente para o estabelecimento do Japão como ponto central da produção ac-tual de folk-electrónica, uma das ramificações da “indietronica” (mais uma “categoria” do que um “estilo”, de acordo com o excelente All Music Guide, caracterizada pela fusão de sonoridades devedoras ao rock e à pop, com desvios electrónicos), que tem raízes ainda nos anos 1990 (cortesia dos ingleses Stereolab), e que se espalhou no tempo e no espaço.Devedora dos computadores, a folk-electró-nica de que a Flau tem sido embaixadora me-receu o epíteto de “bedroom pop”, um mimo que, na verdade, é certeiro na descrição de

uma música de sensibilidade delicodoce e que se adivinha de produção solitária.Apesar de ter base em Tóquio, a Flau alinha nas suas fileiras projectos de todo o mundo. O duplo disco “Echod”, lançado no mesmo mês de Dezembro de 2006 em que a Flau foi fundada, além de anunciar a editora, serviu também para apresentar ao público japonês artistas de outras paragens que são inspiração para a Flau. Assim se explica a inclusão de no-mes dos Estados Unidos, Europa, Reino Uni-do e América do Sul, The Boats, Lori Scacco, Montag ou Florencia Ruiz, entre outros.Limitado a uma edição de 100 cópias, “Echod” foi uma espécie de disco fantasma que desapa-receu quase que instantaneamente. O disco Flau que ostenta o número um de um catálogo que já conta com 21 títulos é, no en-tanto, “Mirror Flake”, de Cokiyu, um dos no-mes que vão estar em Macau.Depois de artistas como Piana ou Tujiko Nori-ko, Cokiyu é mais um nome feminino a ponti-ficar na cena japonesa. Munida de um piano de brincar, toques de guitarra suaves e arranjos electrónicos, Cokiyu Yukiko aventura-se por canções sobre as quais plana com a sua voz delicada. Entre o intimis-mo de um quarto adolescente e o ambiental de espaços largos e oníricos, a música de Cokiyu, já com dois álbuns, deixa uma impressão du-radoura. As mesmas expressões e ideias assomam para descrever a música de outro dos nomes que

estará em Macau na próxima terça-feira, Aus.Projecto solitário de Yasuhiko Fukuzono, curador da Flau, Aus tem, desde 2004, nove discos editados e dezenas de participações em compilações e remisturas. Já trabalhou com nomes com Ulrich Schnauss ou Joshua Eustis, dos Telefon Tel Aviv.Na sua música, os “field recordings”, sons am-bientais do quotidiano, dão textura à electró-nica, muitas vezes minimal e abstracta ao pon-to de se tornar hipnótica.O outro nome que nos visita no próximo dia 8 é Cuushe, mais um nome feminino que, além do género, partilha outras afinidades com Cokiyu. Cuushe vem de Quioto e na bagagem, certa-mente, haverá alguns dos temas que farão par-te do seu segundo trabalho, “Girl You Know That I Am Here But The Dream”, com edição agendada para Junho de 2012, e que inclui re-misturas feitas por nomes como Teen Daze ou Julia Holter.O disco de estreia de Cuushe, “Red Rocket Telepathy”, de 2009, nas palavras da editora Flau, navegava pelas águas da “dream pop”, mas mais próximo dos “sonhos desfeitos” do que de uns quaisquer “sonhos cor de rosa”. “Nostalgia” é a palavra-chave apresentada pela editora para abordar as paisagens sono-ras electrónicas que tanto evocam Cokiyu como Björk.Que mais virá e que memória ficará é tarefa para conferir uma noite destas, em Macau.

próximo oriente Hugo Pinto

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12 C I D A D E S I N V I S Í V E I S

metrópolis Tiago Quadros*

NO QUARTO DE ROSEMARY

QUANDO SOBRE UMA FOLHA DE PAPEL BRANCO MARCAMOS UM

PONTO, PODEREMOS DIZER, EMBORA CONVENCIONALMENTE, QUE ESTE PONTO ORGANIZA TAL FOLHA, TAL SUPERFÍCIE, TAL ESPAÇO, A DUAS DIMENSÕES, SABIDO COMO É QUE A SUA POSIÇÃO PODE SER DEFINIDA POR DOIS VALORES (X, Y) EM RELAÇÃO A UM DETERMINADO SISTEMA DE COORDENADAS.

Se, porém, concebemos tal ponto levanta-do, afastado da mesma folha de papel, pode-remos dizer, embora também convencional-mente, que ele organiza o espaço a três di-mensões, dado que a sua posição pode igual-mente ser definida, agora por três valores (x, y, z), em relação a um determinado sistema de coordenadas. Mas existe uma terceira hi-pótese – a de o mesmo ponto se encontrar não parado, não estático, mas em movimento e, nesse caso, aos três valores ou dimensões (x, y, z) que o definem haverá que acrescentar uma quarta dimensão t (tempo), dispondo--se assim de um conjunto de dimensões que permite localizar o mesmo ponto em cada posição da sua trajectória e em relação a um determinado sistema de coordenadas.

As formas organizam assim o espaço, mas tal como a folha de papel que inicialmente referimos e onde marcámos um ponto é um espaço que constitui também forma, que é como que um negativo do mesmo ponto, po-deremos, generalizando igualmente, afirmar que aquilo a que chamamos espaço é também forma, negativo ou molde das formas que os nossos olhos apreendem, dado que num sentido visual, que é aquele que para o caso importa considerar, o espaço é aquilo que os nossos olhos não conseguem apreender por processos naturais. Visualmente, portanto, poderemos considerar que as formas animam o espaço e dele vivem, mas não deverá nun-ca esquecer-se que, num conceito mais real, o mesmo espaço constitui igualmente forma, até porque aquilo a que chamamos espaço é constituído por matéria e não apenas as for-mas que nele existem e o ocupam, como os nossos olhos deixam supor.

Mas a apreensão visual do espaço pressu-põe um observador que a realize e a consi-deração da existência de tal observador vem enriquecer, pela criação de situações várias, o dimensionamento do espaço. A esse propó-sito recordo uma passagem de Terna É a Noite, do grande Scott Fitzgerald:

 “Abriu a porta do seu quarto e dirigiu-se directamente à secretária, onde recordava ter deixado o relógio. Estava ali. Enquanto o co-locava no pulso, olhou a carta diária para a sua mãe e terminou mentalmente a sua última frase. Foi então que se apercebeu gradual-

mente, sem se virar, de que não estava sozi-nha no quarto.

Num quarto habitado há sempre objectos refrangentes em que mal se repara: Madeira envernizada, metais mais ou menos polidos, prata e marfim, além desses milhares de re-flectores de luz e sombra, tão apagados que dificilmente os vemos como tais: topos das molduras, gumes de lapis ou de cinzeiros, de objectos de porcelana ou cristal. Toda esta refracção – que apela para reflexos igualmen-te subtis da visão, assim como para fragmen-tárias associações subconscientes que parece-mos reter, como um vidreiro guarda fragmen-tos de vidro que mais tarde lhe poderão ser úteis – pode justificar aquilo que mais tarde Rosemary descreveu, misticamente, como a “compreensão” de haver mais alguém no seu quarto, antes de o ter propriamente visto. Mas quando compreendeu tal, voltou-se ra-pidamente, numa espécie de passo de ballet, e viu um negro morto deitado na sua cama.”1

 Chegado a este ponto arrisco as seguintes aproximações:

Primeira: na percepção (e consciência) do espaço arquitectónico, dos pequenos aos grandes espaços, todos os sentidos são con-vocados.

Melhor: diria que a percepção dos factos e eventos arquitectónicos é feita com o corpo todo, e não apenas com a vista. A visão pode ser o sentido predominante ou hegemónico; mas seguramente não é o único nem por ve-zes o dominante na construção da ideia (ima-gem) que se forma e se guarda de um edifício. Assim, sou forçado a admitir que a pura visu-alidade da Arquitectura é coisa que não exis-te. Pelo contrário, a percepção dos eventos arquitectónicos é a coisa mais impura, mais contaminada deste mundo: além de todos os sentidos, nela participa todo o “lixo” deposi-tado nos arsenais da memória, e que é afinal o luxo das nossas vidas únicas e irrepetíveis.

Segunda: tal como o tempo não se perce-be à margem dos acontecimentos, também o espaço não se percebe à margem dos objec-tos. E é tão simplesmente isto que Rosemary, da forma mais bela, nos diz – a separação en-tre espaço e objecto não tem sentido, como não tem sentido a separação entre tempo e evento.

*Arquitecto, Mestre em Cor na Arquitectura pela Faculdadede Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa

1- SCOTT FITZGERALD, F. (2007). Terna É a Noite, Lisboa:Relógio D’Água, p. 118.

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2012O B I T U Á R I O

O CINEASTA FERNANDO LOPES, autor de filmes como “Belarmino” e “Uma abelha na chuva”, que dizia “beber demais, fumar demais” e comover-se demais, mor-reu quarta-feira, aos 76 anos, no Hospital da Cruz Vermelha, em Lisboa.

Fernando Lopes, que entendia o cine-ma como forma “de tocar o espectador sob pena de não ser cinema, mas sim um outro formato qualquer”, admitia já “ter ido ao tapete” várias vezes, assumindo que também “há sempre uma certa beleza na derrota”.

Em 2008 recebeu o Prémio Carreira do Fantasporto, tendo expressado medo de fosse esse o termo do seu percurso, por lhe ser cada vez mais difícil filmar.

O realizador manifestava-se então muito crítico em relação ao futuro do ci-nema português, ao mesmo tempo que reconhecia não haver espaço para ele na produção existente, porque, como subli-nhou, “em cinema só querem fazer forma-tos”.

A falta de dinheiro, porém, não o im-pediu prosseguir. O seu último filme, “Em câmara lenta” (2011), estreou-se no iní-cio do ano, em todo o país.

PERFILNascido a 28 de dezembro de 1935, em Maçãs de Dona Maria, concelho de Al-vaiázere, no distrito de Leiria, Fernando Lopes integrou a equipa inicial de jovens profissionais que fundou a RTP – em cujo quadro técnico ingressou em 1957, ano do início das emissões - e foi diretor do Canal 2, que chegou mesmo a assumir o seu nome, “Canal Lopes”, sob a presidên-cia de João Soares Louro, entre o final da década de 1970 e o início da seguinte.

Na RTP, Fernando Lopes fundou ain-da o Departamento de Co-Produções In-ternacionais.

Fernando Lopes passou a infância em Ourém, aos cuidados de uma tia e, aos 10 anos, fixou-se em Lisboa, junto da mãe. Pouco tempo depois, começou a traba-lhar como paquete enquanto prosseguia os estudos no ensino técnico.

O despertar para a realização aconte-ceu através do movimento cineclubista, como assumiu mais tarde, tendo sido só-cio do Cineclube Imagem, dirigido por José Ernesto de Sousa.

Em 1959, tornou-se bolseiro do Fun-do de Cinema Nacional, indo estudar para a London School of Film Technic, no Reino Unido, onde obteve o diploma de realização de cinema, e estagiado na BBC, a televisão pública britânica.

“Belarmino” – uma média metragem sobre a vida do pugilista Belarmino Fra-goso - foi a primeira obra que o destacou, em particular na área documental, após a curta-metragem “As pedras e o tempo”.

“Belarmino” foi realizado realizou de-pois de regressar de Londres e a crítica considerou-o a obra-chave do movimento do novo cinema português, a par de “Dom

Fernando Lopes (1935-2012)

HUMANO,DEMASIADOHUMANO

Roberto” (1962), de Ernesto de Sousa, e “Verdes anos” (1963), de Paulo Rocha.

Em 1965, Fernando Lopes foi estagiar para Hollywood, onde permaneceu seis meses.

No regresso, realizou “Uma abelha na chuva” (1971), baseado no romance ho-mónimo de Carlos de Oliveira, que jun-tamente com “Belarmino” e “O Delfim” (2002), acabariam por tornar-se as obras mais conhecidas da filmografia do reali-zador hoje falecido.

Fernando Lopes leccionou no Curso de Cinema da Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa e dirigiu a revista Ci-néfilo, com António-Pedro Vasconcelos, editada no início da década de 1970.

“Em câmara lenta” (2011), “Os sorrisos do destino” (2009), “98 octanas” (2006), “Lá fora” (2004), “O fio do horizonte” (1993), a partir do romance de Alberto Seixas Santos, “Matar saudades” (1988), “Crónica dos bons malandros” (1984), e “Nós por cá todos bem” (1976), uma evo-cação da mãe, são alguns dos filmes que

estabeleceram a dimensão do cinema de Fernando Lopes.

“Cantigamente”, “As armas e o povo”, um filme colectivo, “The bowler hat”, “Interlude” e “The lonely ones” são ou-tros trabalhos do cineasta, assim como o documentário “O Meu Amigo Mike ao trabalho”, sobre o artista Michael Bibers-tein, dirigido em 2008.

A versão portuguesa da curta-metra-gem “Kali, o pequeno vampiro”, de Re-gina Pessoa, recém-apresentada no Indie Lisboa 2012, conta com a narração de Fernando Lopes.

“Lovebird”, de Bruno de Almeida, protagonizado pelo realizador, e “Prova-velmente Fernando Lopes”, de João Lo-pes, são dois filmes que contam com o carácter daquele que dirigiu “Belarmino”.

REACÇÕESO realizador António-Pedro Vasconce-los disse que Fernando Lopes foi “um ho-mem de consensos a quem o novo cine-ma português deve muito”. Da sua obra,

destacou o documentário “Belarmino”, de 1964, que considerou “o melhor filme feito em Portugal e em qualquer parte so-bre uma personagem”.

O jornalista Vicente Jorge Silva, tam-bém amigo do cineasta, destacou a “ousa-dia” da longa-metragem “Uma abelha na chuva” e do documentário “Belarmino”, que considera “um mergulho num terri-tório completamente estranho ao cinema português”.

O fundador do jornal Público, que também realizou “Porto Santo”, consi-dera no entanto “O Delfim”, adaptação do romance homónimo de José Cardoso Pires, “o mais completo filme de Fernan-do Lopes” e “a melhor adaptação de uma obra literária ao cinema em Portugal”.

O realizador Alberto Seixas Santos disse que Fernando Lopes foi “um dos maiores montadores e, como realizador, alguém que esteve sempre no cruzamen-to das várias decisões que se foram to-mando sobre o que era melhor para o cinema português”.

Para o actor Rogério Samora, que participou em quatro filmes de Fernando Lopes, este “era um homem de cinema, da luz, da montagem; o cinema corria--lhe nas veias; ele sabia o que queria fazer sem se importar com o que diziam”, afir-mou o actor.

Miguel Valverde, director do Festi-val IndieLisboa 2012, sublinhou que Fer-nando Lopes “pertenceu a um grupo de realizadores que, nos anos 1960, teve a coragem de mudar o cinema português”.

Miguel Gomes, realizador de “Tabu”, distinguido no último Festival de Berlim, destaca a generosidade de Fernando Lo-pes: “Nunca julgava as personagens nos filmes, mesmo que estas mostrassem as suas limitações ou procedessem mal, e acho que isso vem desse lado da perso-nalidade dele tão generosa com as outras pessoas”.

O fundador do Fantasporto, Mário Dor-minsky, considerou Fernando Lopes um dos responsáveis pela revolução do cinema na-cional na década de 1960 e um dos maiores nomes da Sétima Arte em Portugal.

Margarida Gil, presidente da Associa-ção Portuguesa de Realizadores (APR), disse que Fernando Lopes “era o mais humano dos cineastas”. A responsável afirmou que Fernando Lopes foi “compa-nheiro de todas as gerações, e sabia dos filmes dos outros como ninguém”.

“Tinha o mais generoso dos olhares e gostava das pessoas e dos filmes de um modo quente, sem deixar de ser diferen-te”, afirmou Margarida Gil. A presidente da APR lembrou “a argúcia e rigor” de Fernando Lopes e “uma intuição que lhe vinha da sua extraordinária inteligência, sensibilidade e capacidade de viver”. “Com ele desaparece uma memória de uma certa Lisboa, boémia e vadia, popu-lar e sofisticada, terna e profundamente livre, como ele”, rematou Gil.

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12 À S U P E R F Í C I E

António Lobo Antunesin Revista Visão

AGORA SOL na rua a fim de me me-lhorar a disposição, me reconciliar com a vida. Passa uma senhora de saco de compras: não estamos assim tão mal, ainda compramos coisas, que injusto tanta queixa, tanto lamento. Isto é inter-nacional, meu caro, internacional e nós, estúpidos, culpamos logo os governos. Quem nos dá este solzinho, quem é? E de graça. Eles a trabalharem para nós, a trabalharem, a trabalharem e a gente, mal agradecidos, protestamos.

Deixam de ser ministros e a sua vida um horror, suportado em estóico silêncio. Veja-se, por exemplo, o senhor Mexia, o senhor Dias Loureiro, o senhor Jorge Coelho, coitados. Não há um único que não esteja na franja da miséria. Um úni-co. Mais aqueles rapazes generosos, que, não sendo ministros, deram o litro pelo País e só por orgulho não estendem a mão à caridade. O senhor Rui Pedro So-ares, os senhores Penedos pai e filho, que isto da bondade as vezes é hereditário, dúzias deles. Tenham o sentido da rea-lidade, portugueses, sejam gratos, sejam honestos, reconheçam o que eles sofre-ram, o que sofrem. Uns sacrificados, uns Cristos, que pecado feio, a ingratidão. O senhor Vale e Azevedo, outro santo, bem o exprimiu em Londres. O senhor Carlos Cruz, outro santo, bem o explicou em li-vros. E nós, por pura maldade, teimamos em não entender. Claro que há povos ainda piores do que o nosso: os islande-ses, por exemplo, que se atrevem a meter os beneméritos em tribunal. Pelo menos nesse ponto, vá lá, sobra-nos um resto de humanidade, de respeito. Um pozinho de consideração por almas eleitas, que Deus acolherá decerto, com especial ter-nura, na amplidão imensa do Seu seio. Já o estou a ver

- Senta-te aqui ao meu lado ó Lourei-ro

- Senta-te aqui ao meu lado ó Duarte Lima

- Senta-te aqui ao meu lado ó Aze-vedo que é o mínimo que se pode fazer

“NAÇÃO VALENTE E IMORTAL”

por esses Padres Américos, pela nossa interminável lista de bem-aventurados, banqueiros, coitadinhos, gestores que o céu lhes dê saúde e boa sorte e demais penitentes de coração puro, espíritos de eleição, seguidores escrupulosos do Evangelho. E com a bandeirinha nacio-nal na lapela, os patriotas, e com a ar-raia miúda no coração. E melhoram-nos obrigando-nos a sacrifícios purificadores, aproximando-nos dos banquetes de bem--aventuranças da Eternidade.

As empresas fecham, os desempre-gados aumentam, os impostos crescem, penhoram casas, automóveis, o ar que respiramos e a maltosa incapaz de enxer-gar a capacidade purificadora destas me-didas. Reformas ridículas, ordenados mí-nimos irrisórios, subsídios de cacaracá? Talvez. Mas passaremos sem dificuldade o buraco da agulha enquanto os Lourei-ros todos abdicam, por amor ao próximo, de uma Eternidade feliz. A transcendên-cia deste acto dá-me vontade de ajoelhar à sua frente. Dá-me vontade? Ajoelho à sua frente indigno de lhes desapertar as correias dos sapatos.

Vale e Azevedo para os Jerónimos, já!Loureiro para o Panteão já!Jorge Coelho para o Mosteiro de Al-

cobaça, já!Sócrates para a Torre de Belém, já! A

Torre de Belém não, que é tão feia. Para a Batalha.

Fora com o Soldado Desconhecido, o Gama, o Herculano, as criaturas de pa-cotilha com que os livros de História nos enganaram.

Que o Dia de Camões passe a cha-mar-se Dia de Armando Vara. Haja sentido das proporções, haja espíri-to de medida, haja respeito. Estátuas equestres para todos, veneração nacio-nal. Esta mania tacanha de perseguir o senhor Oliveira e Costa: libertem-no. Esta pouca vergonha contra os poucos que estão presos, os quase nenhuns que estão presos como provou o se-nhor Vale e Azevedo, como provou o senhor Carlos Cruz, hedionda per-seguição pessoal com fins inconfessá-veis. Admitam-no. E voltem a pôr o

senhor Dias Loureiro no Conselho de Estado, de onde o obrigaram, por mal-dade e inveja, a sair. Quero o senhor Mexia no Terreiro do Paço, no lugar D. José que, aliás, era um pateta. Que-ro outro mártir qualquer, tanto faz, no lugar do Marquês de Pombal, esse tira-no. Acabem com a pouca vergonha dos Sindicatos. Acabem com as manifesta-ções, as greves, os protestos, por favor deixem de pecar. Como pedia o dou-tor João das Regras, olhai, olhai bem, mas vêde. E tereis mais fominha e, em consequência, mais Paraíso. Agrade-çam este solzinho. Agradeçam a Linha Branca. Agradeçam a sopa e a peçazita de fruta do jantar. Abaixo o Bem-Estar.

Vocês falam em crise mas as actrizes das telenovelas continuam a aumentar o peito: onde é que está a crise, então? Não gostam de olhar aquelas generosas abun-dâncias que uns violadores de sepulturas, com a alcunha de cirurgiões plásticos, vos oferecem ao olhinho guloso? Não comem carne mas podem comer lábios da grossura de bifes do lombo e transfor-mar as caras das mulheres em tenebrosas máscaras de Carnaval.

Para isso já há dinheiro, não é? E vo-cês a queixarem-se sem vergonha, e vo-cês cartazes, cortejos, berros. Proíbam--se os lamentos injustos. Não se vendem livros? Mentira. O senhor Rodrigo dos Santos vende e, enquanto vender, o nível da nossa cultura ultrapassa, sem dificul-dade, a Academia Francesa. Que quere-mos? Temos peitos, lábios, literatura e os ministros e os ex-ministros a tomarem conta disto.

Sinceramente, sejamos justos, a que mais se pode aspirar? O resto são coisas insignificantes: desemprego, preços a dispararem, não haver com que pagar ao médico e à farmácia, ninharias. Como é que ainda sobram criaturas com a desfa-çatez de protestarem? Da mesma forma que os processos importantes em tribu-nal a indignação há-de, fatalmente, de prescrever. E, magrinhos, magrinhos mas com peitos de litro e beijando-nos uns aos outros com os bifes das bocas sere-mos, como é nossa obrigação, felizes.

 

O resto são coisas insignificantes: desemprego, preços a dispararem, não haver com que pagar ao médico e à farmácia, ninharias. Como é que ainda sobram criaturas com a desfaçatez de protestarem?

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2012À S U P E R F Í C I E

Victor oliVeira Mateus

AO VER-LHE a aliança, pela primeira vez, Teresa sentiu um misto de estupefac-ção e asco. Aquele pedaço de prata relu-zente, assim exibido no anelar esquerdo, trouxe-lhe à memória as reuniões colum-bófilas da sua infância: as aves fechadas em minúsculas gaiolas, o arrulhar mo-notonamente idêntico, a domesticação a desenhar-se numa liberdade para di-vertimento alheio. Como poderia, pois, alguém alegrar-se com uma entrega chei-rando à oca rotina das aparências?, pen-sou Teresa, à entrada do café, enquanto se amparava à arca dos gelados. O que a chocava não era – como é óbvio - o sím-bolo do pacto, mas o ar de conquista, de alvo conseguido com que Diogo exibia o troféu.

(Sabes?, diria ela, nessa tarde, a Gonçalo, seu amigo de infância que sempre a entendia ou a isso se esforçava: era como se se estivesse frente à vida como uma corrida de obstáculos e aquele idiota andasse a apregoar que tinha superado mais um… )

Cumprimentaram-se. Sorriram. To-maram o pequeno-almoço ao balcão como era hábito: ele sempre de sorriso estudadamente inocente em riste, de olhar perverso que prometia o que de antemão sabia que jamais iria dar e com as mesmas palavras de uma venenosa fragilidade a armadilharem-lhe os ins-tantes. Teresa não podia deixar de fixar a aliança, e ele, provocatoriamente, fingiu sacudir com essa mesma mão umas miga-lhas que nem sequer tinham caído no ca-saco. Despediram-se como de costume. Nessa tarde, a pretexto de uma questão

qualquer, Diogo arranjara um modo de lhe ligar para o telemóvel. Enviara-lhe igualmente dois incipientes emails com notícias sobre uma cantora de que ambos gostavam.

No dia seguinte não se encontraram, de manhã, no café. Estudadamente, ou não, ele não aparecera à hora do cos-tume para o pequeno-almoço. Mas, em contrapartida, Diogo sentar-se-ia à sua mesa, na esplanada, naquele mesmo dia, ao fim de tarde. Sorridente. Acabado de sair da capa de uma revista de moda mas-culina. O anelar esquerdo a tamborilar, a despropósito, no tampo da mesa. Ela não conseguia disfarçar o seu nervosismo e – porque não confessá-lo? – o seu de-sejo, mas ele, com ar de quem acena mas não dá, convidou-a para nessa noite irem ao cinema, para, minutos depois, exibir a pose de quem se recordava de algo e logo dizer que não, afinal não podiam ir, ele tinha-se esquecido de uma coisa: ti-nha um encontro com uma amiga e já se estava a esquecer. Teresa não perguntou nada, apenas se ia acusando de não con-seguir sair daquele redil a que se prendia cada vez mais.

( Não é possível que tudo aquilo seja uma re-presentação!, confidenciou ela a Gonçalo, por te-lefone nessa mesma noite. Olha lá, perguntou-lhe este, por sua vez: tu não estarás a ficar um pouco paranóica? Se calhar até estou, pois não pode ha-

ver ninguém assim tão perverso, tão monstruoso )O resto dessa semana passou-se exac-

tamente da mesma maneira: os encontros da manhã, os fins de tarde na esplanada, os melífluos telefonemas, os emails am-bíguos. Dir-se-ia que aquele fim de Julho iria trazer a Teresa uma qualquer oferta promissora, uma qualquer regeneração que lhe adensasse a vida e a dotasse de sentido e alegria. E, com este estado de espírito, entrou ela na primeira semana de Agosto. Nos primeiros dias do mês es-tranhou que Diogo não aparecesse mais, nem para os pequenos-almoços nem ao fim do dia na esplanada. Estranhou de tal modo que não se conteve e, ao fim de uns tempos, perguntou a um dos em-pregados. Mas então a menina não sabe?! Fitou-a atónito o empregado. Não sei o quê? O Diogo casou-se no domingo pas-sado e deixou de morar aqui na rua. Te-resa não soube que cor adquiriu, porque ouviu a voz do empregado como vinda de muito longe: está a sentir-se bem? Es-tou, estou sim, obrigado! Mas o Diogo não lhe disse, vocês eram tão amigos, estavam sempre aqui?, perguntou o em-pregado, de olhos esbugalhados. Ah, vai ver que ele me disse – recuperou Teresa -, mas eu sou tão distraída que devo ter fei-to qualquer confusão. Pois!, tartamudeou o empregado, já que era suposto ter de dizer alguma coisa.

( Não é possível, sussurrou ela a Gonçalo, que, enroscado num sofá não sabia o que responder. Ao fim de uns minutos ele ousou dizer: talvez se tenha esquecido de se despedir ou pensasse que o assunto não te interessava. Ela fulminou-o com o olhar: por favor, Gonçalo, agora não, solidariedade mascu-lina a estas horas não, e muito menos vinda de ti.)

Teresa nunca mais falou em tal coisa. Se nele pensava, ou não, nunca o vire-mos a saber, pois não deixou nada escrito acerca de tal assunto. Nos primeiros dias de Setembro, meteu-se no seu carro e ru-mou à casa de Tavira, onde iria passar o resto das férias.

Dois meses depois, por um puro aca-so, Gonçalo encontraria Diogo numa das discotecas mais in de Lisboa. Cum-primentaram-se. Sabes quem morreu?, perguntou-lhe Gonçalo. O outro olhou--o como se a pergunta não fizesse sentido naquele momento. Mas Gonçalo insistiu: a Teresa! A Teresa, qual Teresa?, sorriu o outro com o ar falsamente ingénuo do costume. Eh, pá, a Teresa, aquela que morava no prédio em frente ao teu vocês davam-se teve um desastre de automó-vel lá em baixo, no Algarve teve morte imediata. Mas eu não sei de quem estás a falar!, exclamou Diogo, através da músi-ca, postando um ar doce, quase angelical. Eh, pá, não me digas que não te lembras da Teresa, vocês deram-se durante anos?! Não, não estou a ver quem é enfim, é a vida! Olha a ti é que gostei de te voltar a ver, estás com bom aspecto. Ciao, a gen-te vai-se encontrando por aí! E regres-sou para junto de um grupo esfuziante, deixando em Gonçalo a confirmação de uma suspeita que nem sequer fora sua.

A CONFIRMAÇÃO

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gente sagrada José simões morais

O L H O S A O A L T O

ANIVERSÁRIO DE TAM KONG Símbolo da imortalidade e da realização espiritual, logo um imortal (xian), Tam Kong, deus conhecido em mandarim por Tan Gong, está ligado à meteorologia e é, por isso, essencial aos pescadores para os ajudar na decisão de quando se devem fazer ao mar. Representado por um rapaz de doze anos que gostava de ajudar o próximo, tinha grande poder para curar as doenças, sobretudo em crianças. Segundo uma lenda, Tam Kong era Zhao Bing que, ainda criança, em 1278 se tornou o imperador Gong (1278-1279), o último da dinastia Song do Sul. Este morreu durante uma batalha naval em Yamen, no distrito de Jiangmen, na (porta do rio) do Oeste, local próximo de Macau, quando a corte nómada Song a fugir dos invasores mongóis foi apanhada. Outra história fala de Tam Kong como protegido pelos Oito Imortais. Educado pelo avô, já que desde muito cedo ficou órfão de pai, ajudava a sua mãe guardando os animais no pasto. Ainda rapaz, um dia chamado pela montanha aí se isolou adquirindo a doutrina do Tao e aos 12 anos as suas opiniões eram conselhos para quem se fazia ao mar, tendo sempre uma mão amiga para ajudar, sobretudo os idosos e crianças. Era igualmente sapiente na cura de muitas doenças. Talvez por isso segura na mão uma pequena sineta.É venerado em Macau e Hong Kong e controla a meteorologia, bastando segundo nos diz Leonel Barros “lançar ao ar uma mão cheia de pevides para que a chuva abundasse em época seca, ou erguer as duas mãos em direção ao céu para que as mais bravas tempestades dessem lugar à bonança”.

Todos os anos a Associação de Beneficência Son I organiza uma grande festa para comemorar o aniversário de Tam Kong, havendo espetáculos de Ópera Yue, entre 27 de Abril a 1 de Maio, um grande cortejo, que se realiza no próprio dia com a estátua do deus a dar uma volta à vila e um grande jantar à noite para a antiga população de Coloane.Rico na parte folclórica, este grande cortejo, ao contrário de outros, não se inicia em frente ao templo de Tam Kong, situado na Rua 5 de Outubro e que este ano faz 150 anos, mas começa junto à praça principal da vila. Iniciando-se ao fim da manhã, o cortejo percorre as ruas da vila, recriando momentos da História escondida de Macau, mesmo os anteriores à chegada dos portugueses. Traz, também como tradição, carros que servem de andor onde vão crianças representando os reis do Céu e da Terra e outras andando num baloiço em roda, criando a direcção do movimento que dá o sopro à festa tauista, vendo-se chegar em cores a alegria dos seres celestiais.Se numa ilha em Hong Kong, no programa das festividades a Tam Kong consta o trepar a uma árvore cheia de pães para tentar apanhar o máximo, em Coloane, com as ofertas de animais sacrificados ao deus e depois da carne ser por ele aceite, esta é servida, dando proteção a quem a come. A história conta que esta era distribuída no meio de um pão aos familiares e amigos e, apesar de começarem a aparecer cada vez mais pessoas, diminuindo a quantidade, a carne chegou sempre para tocar a todos os presentes. Estas sandes, que abrem o coração, são conhecidas por hói sâm páu.

No dia 8 do quarto mês lunar, 28 de Abril de 2012, realiza-se na vila de Coloane uma grande festa em honra do deus Tam Kong, organizada todos os anos pela Associação de Beneficência Son I.

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2012L E T R A S S Í N I C A S

ANIVERSÁRIO DE TAM KONG

HUAI NAN ZI 淮南子 O LIVRO DOS MESTRES DE HUAINAN

Huai Nan Zi (淮南子), O Livro dos Mes-tres de Huainan foi composto por um con-junto de sábios taoistas na corte de Huai-nan (actual Província de Anhui), no século II a.C., no decorrer da Dinastia Han do Oeste (206 a.C. a 9 d.C.).Conhecidos como “Os Oito Imortais”, estes sábios destilaram e refinaram o corpo de ensi-namentos taoistas já existente (ou seja, o Tao Te Qing e o Chuang Tzu) num só volume, sob o patrocínio e coordenação do lendário Príncipe Liu An de Huainan. A versão por-tuguesa que aqui se apresenta segue uma se-lecção de extractos fundamentais, efectuada a partir do texto canónico completo pelo Professor Thomas Cleary e por si traduzida em Taoist Classics, Volume I, Shambhala: Boston, 2003. Estes extractos encontram-se organizados em quatro grupos: “Da Socieda-de e do Estado”; “Da Guerra”; “Da Paz” e “Da Sabedoria”.O texto original chinês pode ser consulta-do na íntegra em www.ctext.org, na secção intitulada “Miscellaneous Schools”.

Quando a Via prevalece, o povo é sem política.

DO ESTADO E DA SOCIEDADE – 3

Quando as pessoas são influenciadas pelos seus líderes, seguem aquilo que os líderes fazem, não aquilo que dizem.

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Quando se criam leis e se estabelece um sistema de recompensas e, ainda assim, tal não altera a moralidade do povo, é porque tal não pode funcionar sem sinceridade.

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O governo espiritual é o mais excelente. O segundo melhor consiste em tornar impossível a prática do mal. [O terceiro melhor] consiste em recompensar os meritórios e punir os que perturbam [a ordem].

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Assim como uma balança é justa, na medida em que pesa as coisas imparcialmente, e um fio de prumo é correcto, na medida em que determina linhas direitas imparcialmente, um líder que aplica a lei sem preferências pessoais pode comandar.

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Aquilo que condiciona e castiga é lei. Quando as pessoas são punidas e, todavia, o ressen-timento não as aflige, a tal se chama a Via. Quando a Via prevalece, o povo é sem política.

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Outrora, aqueles que atribuíam recompensas correctamente conseguiam encorajar o povo a pouco custo. Aqueles que puniam correc-tamente preveniam a traição com castigos

mínimos. Aqueles que eram adequadamente pródigos mantinham frugalidade nas despesas sendo, ainda assim, caridosos. Aqueles que sabiam tirar tinham muito ganho sem que ninguém se ressentisse.

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As punições e castigos não bastam para mudar hábitos; as execuções e massacres não bastam para prevenir a traição. Só a influência espi-ritual é valiosa.

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Duras leis e castigos pesados não são obra de reis que governam.

Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho