h - suplemento do hoje macau #39

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ARTES, LETRAS E IDEIAS h PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2577. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE SARGENT BALES LONELY HEARTS CLUB BAND

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Suplemento h - Parte integrante da edição de 23 de Fevereiro de 2012

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ART

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hPARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2577. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

SARGENT BALES LONELY HEARTS CLUB BAND

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I D E I A S F O R T E S

 

APESAR de Washington repetir con-tinuamente que a matança em Kan-

dahar, há uma semana, foi resultado de um «surto» de alguém «aparentemente descompensado» ou «provavelmente desequilibrado», o povo afegão acredi-ta nas provas reunidas pelos seus parla-mentares, segundo as quais entre 15 e 20 soldados dos EUA participaram dos crimes. O presidente do Afeganistão Hamid Karzai também concordou: a versão dos EUA «não é convincente».E dentro do establishment militar afegão predominará a opinião exposta publica-mente pelo comandante do estado-maior do exército afegão, Sher Mohammad Ka-rimi, que condenou os soldados dos EUA. O tenente-general Karimi, que visitou a cena do crime, disse que acontecera um massacre premeditado e consumado por vários soldados norte-americanos.Com tudo isso, torna-se altamente pro-blemática a assinatura de um tratado estratégico entre Washington e Kabul, prevista para acontecer antes da reunião da cimeira da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em Chi-cago, em Maio. Washington espera que Karzai assine antes de Maio; e Karzai sabe que o seu futuro político depende do seu desempenho.

O BEDELHO DE BERNARD-HENRI LÉVYNum comentário surpreendente, publi-cado na semana passada, o influente fi-losofo Bernard-Henri Lévy já disse, em tom de ameaça, que a comunidade in-ternacional jamais deveria ter-se torna-do «cegamente dependente do governo corrupto de Hamid Karzai».[1]Fazendo eco às ideias de vários coman-dantes norte-americanos, Henri Lévy criticou furiosamente a retirada, pla-neada para 2014, como «admissão de fracasso e impotência». Mas disse tam-bém que prolongar a presença militar para além de 2014 também seria difícil, «considerando-se o custo humano». Assim sendo, a única via possível seria «ficar e sair» - quer dizer: retirar as tro-pas de combate, «mas deixar lá as bases militares e os instrutores.»Lévy tem a solução: «Admitir que o Afe-ganistão não pode ser reduzido (...) a um confronto desesperado entre assassinos Talibã e os membros corruptos do go-verno Karzai (...). Em Cabul (...) estão também os herdeiros de [o falecido co-mandante da Aliança do Norte, Ahmad Shah] Massoud. E antes talvez de reti-

Force (ISAF)] demonstre ao Conselho de Segurança da ONU que cumpriu a missão que lhe foi atribuída, antes, evi-dentemente, de falar sobre retirada dos soldados de EUA e OTAN sem prestar qualquer satisfação à ONU sobre o resul-tado de sua missão no Afeganistão.Lavrov destacou que há uma contradi-ção fundamental na posição dos EUA: por um lado, Washington assume que, sim, a ISAF teria cumprido a missão que recebeu da ONU e diz que retirará os soldados; por outro lado, Washington continua a discutir com Cabul, «muito empenhadamente, o estabelecimento de quatro ou cinco bases militares no mes-mo espaço de onde ‹retira› os soldados, para o período pós-2014.»O MNE russo referiu o quadro geral: «Não se entende por que razão isso deva ser encaminhado deste modo, porque, se precisa de presença militar, é sinal de que o mandado do Conselho de Segurança ainda não foi satisfatoriamente cumpri-do. Se não quer cumprir o mandado do Conselho de Segurança, ou se supõe que o mandato já foi cumprido... para que se-riam necessárias as bases militares? Não me parece que haja aí qualquer lógica. Acho também que o território afegão não deve ser usado para implantar es-paços militarizados, que evidentemente preocuparão outros povos.”«Não vejo que lógica haveria em supor que, em 2014, o mandado do Conselho de Segurança possa ser dado por cumpri-do... se ainda for necessário haver lá mui-tos soldados, dentro das bases militares.

ouvira claramente o que tinha de ouvir. Mas, depois de Panjwayi, já nada pode continuar reduzido a uma batalha de ob-jectivos, só entre Obama e Karzai.

OS PASSOS DO URSOEm entrevista exclusiva de 30 minutos, a um canal da televisão afegã, , o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergey Lavrov, repetiu, nem duas nem três, mas quatro vezes, que a Rússia espera um Afe-ganistão «neutro» - palavra em código para dizer «sem presença militar estrangeira».A política russa anda por dois caminhos. Um, Moscovo espera trabalhar bem pró-ximo de Karzai. «Diferentes de outros [quer dizer «Washington»], nós não or-denamos ao governo [de Cabul] como construir o processo de reconciliação na-cional. Sabemos que, além de pashtuns, há uzbeques, tadjiques, hazaras. Todos devem encontrar o seu caminho até o sistema político, para que se sintam in-

PORQUE NÃO QUER A AMÉRICA SAIR DO AFEGANISTÃO?

M K BhadraKuMarAsia Times Online

rarmos a escada, talvez seja aconselhável aproximar-mo-nos dele, numa última ten-tativa, numa derradeira operação.»

OBAMA: VER, VENCER E FICAR Karzai mais uma vez volta a ser tratado como se o seu sucessor potencial já es-tivesse pronto e paramentado, à espera, na sala ao lado. O ponto é que, ao longo de uma sequência macabra de eventos ao longo das últimas seis, oito semanas

- soldados dos EUA que urinam sobre cadáveres de Talibãs, queimam livros do Corão e massacram civis -, a meta sempre presente é conseguir que Karzai assine um pacto estratégico, que garanta uma presença militar norte-americana de lon-go prazo no Afeganistão.Na terça-feira passada, o presidente Ba-rack Obama disse, em conferência de imprensa ao lado do primeiro-ministro britânico David Cameron, que Karzai

cluídos, não isolados, no processo. Esse é o princípio geral; como aplicá-lo na prática, não cabe aos russos dizer às au-toridades afegãs».Por outro lado, Lavrov questionou a ideia de que o governo Obama ou a OTAN possam decidir unilateralmente sobre questão de «transição» ou de «fim da missão de combate» e exigiu que a Força Internacional de Assistência à Segurança [orig. International Security Assistance

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Não se entende que finalidade teriam as tais bases militares e, além disso, os EUA estão em contacto com países da Ásia Central, pedindo que autorizem presen-ça militar de longo prazo. Nós [a Rússia] queremos entender o motivo disto tudo, por que seriam as tais bases seriam. Não acreditamos que esse grande número de bases militares contribua para a estabili-dade da região.»Para Lavrov, o terrorismo não foi derro-tado, no Afeganistão; os terroristas estão a ser «empurrados» para regiões mais a norte «na direcção de países vizinhos da Federação Russa na Ásia Central; e não se pode dizer que contribuam para aumen-tar a estabilidade nessa região». Moscovo acrescenta o Afeganistão à li-tania de questões em relação às quais adoptará uma abordagem «musculada» – além do sistema de mísseis de defesa que os EUA planejam, da Síria e do Irão. Na semana passada, Moscovo anunciou que poderia oferecer à OTAN uma base militar em Ulyanovsk, no Volga, para ser usada como armazém temporário de trânsito ferroviário de mantimentos para os exércitos da OTAN-EUA.

DEMPSEY, O COMANDANTE A oferta dos russos coloca o Pentágono e a OTAN num dilema. Do ponto de vista logístico, seria assegurar uma linha vital de mantimentos; mas do ponto de vista geopolítico, Washington ainda tentou considerar a única alternativa que lhe restava. A alternativa era voltar a discu-tir com o Paquistão, tentando conseguir a reabertura de duas estradas cujo trân-sito está fechado. Isso, exactamente, é o que o Comandante do Estado-maior dos EUA, Martin Dempsey acaba de fazer.Dempsey disse, em entrevista ao «Char-lie Rose Show» dia 16/3,[3] que Wa-shington está em contacto «directamen-te» e «privadamente» com Rawalpindi e que «estou pessoalmente optimista, que podemos recomeçar as relações, de modo a atender as necessidades dos dois lados.» Mencionou o general Ashfaq Kayani, comandante do exército paquis-tanês, com o qual teria tido «conversas absolutamente francas e sinceras». Kaya-ni disse que «fará o que puder».Dempsey chegou a jogar «a carta da Índia», dizendo que o principal desa-fio para os EUA seria conseguir que os militares paquistaneses cedessem na certeza, enraizada entre eles, de que a Índia é uma «grande ameaça existen-cial contra o Paquistão». (O general nada disse sobre o que Washington planeia fazer para espantar os medos paquistaneses.)Bem visivelmente, vários modelos so-brepõem-se. A Rússia planeia desafiar a estratégia de Washington para o Afega-nistão, no momento da avaliação/reno-vação, do mandado que as ISAF-EUA obtiveram do Conselho de Segurança. Os EUA, por sua vez, esperam ansiosa-mente algum resultado positivo das elei-ções parlamentares em Islamabad, que leve o Paquistão a reassumir a parceria de sempre com os EUA. E, enquanto isso,

um terceiro vector gira no ar: a fúria dos afegãos contra o massacre de Panjwayi.O melhor que pode acontecer é que os afegãos engulam a versão «Sargento Ba-les». Bales permanece preso, confinado em solitária, em Fort Leavenworth, no Kansas. Por curiosa ironia, exactamen-te ali, naquele forte, os dois generais, Dempsey e Kayani, foram colegas de classe, na Escola de Estudos Militares

Avançados - onde estudaram Teatros de Operações.

[1] 13/3/2012, Huffington Post, Bernard--Henri Lévy, «In Afghanistan, Between Plague and Cholera, There›s Dr. Ab-dullah», em http://www.huffingtonpost.com/bernardhenri-levy/afghanistan-ab-dullah-abdullah_b_1341268.html[2] 8/3/2012, http://tolonews.com/en/mis-

cellaneous-videos/5670-exclusive-interview--with-russias-foreign-minister-sergi-lavrov[3] 16/3/2012, em http://www.charlierose.com/view/interview/12239 (em inglês).

O embaixador M K Bhadrakumar foi um diploma-ta de carreira no MNE indiano. Representou o seu país na URSS, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alema-nha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão, Kuwait e Turquia.

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Márcio SaMpaio de caStroCarta Capital online

“SIGAM o dinheiro”, já dizia o len-dário Garganta Funda aos repór-

teres Bob Woodward e Carl Bernstein durante as investigações do escândalo Watergate, que levaria à renúncia do presidente norte-americano Richard Nixon. Seguindo esta lógica, passados um ano da Resolução 1973 do Conselho de Segurança da ONU, que permitiu o início de mais uma “guerra humanitária”, e cinco meses da queda e do assassinato de Muamar Kaddafi na Líbia, é possível fazer um balanço e dizer que os eventos que conduziram a esse desfecho podem ser classificados como qualquer coisa menos “humanitários”.Um olhar mais detalhado sobre as ac-ções de Kaddafi no continente africano nos anos que antecederam as acções da OTAN permite iluminar diversas ques-tões inexploradas pelo complexo me-diático ocidental, que frequentemente actua como um braço propagandístico travestido de jornalismo.Até às vésperas da insurreição, o ditador líbio liderava a União Africana, que por diversas vezes barrou a iniciati-va dos Estados Unidos de insta-larem no continente a sede do seu AFRICOM - Comando Militar da África. Por outro lado, o fortale-cimento do Ban-co Africano de Desenvol-vimento, c o m re-

c u r -s o s adv ind os p r i n c i p a l -mente do petró-leo extraído sob regras determinadas pela Líbia National Oil Corporatoin (empresa es-tatal), vinha a representar um paulatino afastamento do bloco do controlo financeiro draconia-no exercido por instituições como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional.O exemplo mais emblemático foi a cria-ção do RASCOM (Organização Afri-cana de Comunicação Regional por Sa-télite, na sigla em inglês). Cansados de pagar uma taxa anual de 500 milhões de dólares para alugar satélites europeus, o que resultava nas taxas de televisão mais caras do mundo, os africanos resolveram adquirir seu próprio satélite por 400 mi-lhões de dólares. Após 14 anos de idas e vindas, com promessas e pré-condições estabelecidas pelas instituições financei-

LÍBIAum ano depois

ras presididas por norte-americanos e eu-ropeus, em 2007, o governo líbio entrou com ¾ do valor para aquisição do equi-pamento, enquanto instituições de fo-mento africanas cobriram a fatia restante.Estima-se que nas duas últimas décadas o país do Magreb tenha investido noutros países do continente, principalmente na região subsaariana, cerca de 150 mil milhoes de dólares. Recursos emprega-dos em investimentos que foram desde a criação de fábricas e hotéis até à compra de armas para a manutenção de regimes aliados.Mas a ousadia maior do excêntrico Ka-ddafi foi a ideia de criar o gold dinar, uma moeda única africana a ser usada, entre outras coisas, para todas as transacções com o petróleo líbio, que deveriam passar inevitavelmente pelo seu Banco Central, em substituição do dólar e do euro. Para viabilizar esta reviravolta, as reservas em ouro no país chegavam na véspera da in-surreição a 144 toneladas, uma das maio-res do mundo. Não é difícil imaginar que este projecto tenha deixado muita gente acima do Trópico de Câncer insatisfeita.As portas do inferno naturalmente abri-ram-se para o ditador líbio e a rebelião armada, que levou à Resolução do CS da ONU, emitida com o objectivo de “evitar um banho de sangue”, no dizer de alguns

líderes ocidentais, foi vista com bons olhos por muitos que até podiam

tolerar o seu passado terrorista, mas não um futuro repleto de

acções provocativas à estru-tura económica vigente.

Até à votação do Con-selho, em Março

de 2011, os rela-tos quanto ao

número de m o r t o s

pela re-pres-

s ã o g o v e r -

n a m e n t a l variavam, num

mesmo período, de 200 a impressio-

nantes 6 mil mortos.Este número mais alto, de

acordo com os números da ONG Federação Internacional

das Ligas dos Direitos Humanos, divulgado em relatório amplamente re-

produzido pelas agências internacionais de notícias do costume. O dado curioso é que os dados foram veiculados dias an-tes da votação no Conselho, o que certa-mente contribuiu para aumentar as pres-sões para que houvesse uma intervenção estrangeira na Líbia.O facto é que, objectivamente, após o início dos bombardeios da OTAN, que deveria limitar-se somente a criar uma zona de exclusão aérea, impedindo os aviões da Força Aérea Líbia de atacar ma-nifestações pacíficas, o número de mor-

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tos chegaria a 50 mil cinco meses após o início da intervenção, segundo dados do próprio Conselho Nacional de Tran-sição Líbio, aliado da organização militar ocidental. Com o encerramento oficial das hostilidades, este número é estimado entre 120 mil e 200 mil mortos. O banho de sangue parece não ter sido evitado.A contribuição dos aviões da coligação e dos mísseis Tomahawk para o aumento no número de mortos no conflito parece que começa finalmente a ser investigada.Um relatório da Comissão Internacional de Investigação Líbia, apresentado ao 19º Conselho de Direitos Humanos em Ge-nebra, Suíça, no último dia 9, questiona as acções da OTAN no país norte-africano em pelo menos 20 das diversas surtidas aéreas efectuadas pelos jactos da Organi-zação. A representação diplomática russa, num gesto muito mais político do que hu-manitário, também enviou esta semana ao secretário-geral da ONU, Ban-Ki-moon, um pedido para que os “bombardeios mas-sivos” efectuados ao longo da campanha de “libertação” e a consequente morte de civis sejam investigados.

Longe dos salões europeus, as ruas das principais cidades líbias são ocupadas agora por gangues armadas, onde tiro-teios, sequestros e torturas se tornaram lugar comum. As vítimas preferenciais desses grupos são simpatizantes do anti-go regime e africanos subsaarianos. Uma busca na internet com expressões como “massacre of black lybians” dá acesso a vídeos para os quais é preciso ter estôma-go, dado o grau de selvajaria ali exibidos.Até a ONG Médicos Sem Fronteiras anunciou no último mês de Janeiro que deixaria de actuar na Líbia em função dos recorrentes casos de maus tratos contra prisioneiros praticados pelos numerosos grupos rebeldes, que assumiram o con-trolo de forma praticamente indepen-dente entre si de diversas regiões do país. Registe-se que essas ocorrências são to-das pós-queda do ditador e curiosamente não têm causado sequer suspiros de in-dignação em nome dos direitos humanos.No cenário externo, com o desapareci-mento de Kaddafi, a África subsaariana converteu-se rapidamente no foco de uma corrida que em nada lembra a dis-

creta movimentação chinesa na última década por ali. O presidente de Ugan-da, Yoweri Museveni, recebeu no final de 2011 no seu território um contingente de marines norte-americanos para lá des-pachado em nome da cooperação e do combate ao terrorismo internacional. Nas palavras da vetusta publicação mili-tar Star and Stripes, os soldados estão ali “para dar treino especializado às forças designadas para a missão da União Afri-cana na Somália” no combate ao grupo filiado a Al-Qaida denominado al-Shaba-ab. Eles também estariam por lá para au-xiliar o governo local a combater o pros-crito “senhor da guerra” Joseph Kony, que se tornou um hit na internet com o vídeo Kony 2012. A peça traz denúncias de acções perpetradas pelo grupo do lí-der sanguinário há mais de uma década.O que muita gente não sabe é que Yoweri Museveni foi um fiel aliado do ditador lí-bio, com quem planeava a construção de um oleoduto, que ligaria o país ao Qué-nia e depois ao mar, para escoar a sua produção de petróleo.Descoberta há pouco mais de seis anos, a

jazida ugandense é estimada inicialmente em 2 mil milhões de barris e, apesar de cedida em grande parte para a explora-ção ao grupo britânico Tullow Oil PLC, tinha em Kaddafi um parceiro importante para o desenvolvimento e financiamento de toda uma infraestrutura.O mesmo padrão de ajuda humanitária e cooperação militar tem-se espalhado rapidamente pelo Corno de África, onde igualmente reservas de petróleo e gás têm mostrado um potencial nada despre-zível para exploração.Voltando à Líbia, o país que apresenta-va, até o início de 2011, o maior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) da África, um PIB per capita superior ao brasileiro e uma taxa de crescimento de 10,64%, segundo dados do FMI, encon-tra-se agora às voltas com uma infraestru-tura bastante danificada, principalmente pelos bombardeios humanitários, uma sociedade em estágio de pré-anomia e um Estado subserviente de empréstimos internacionais para a sua reconstrução. A pergunta que fica é: para quem foi a guer-ra um bom negócio?

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O SOL, A LUAE A VIA DO FIO DE SEDA

Fernanda DiasU m a l e i t u r a d o

YI JING

LIVROS DO MEIO

O mais clássico dos clássicos chineses.O livro que estabelece o correr dos dias e a distribuição das energias.

PARA LER, USAR E ABUSAR

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AntoAnetA Beckerin Sibila

Sibila: Desde a chegada da internet, os média do Estado chinês deixaram de ser a inquestio-nável porta-voz da população. Uma constelação de vozes compete por espaço e atenção, e, na maioria, segundo Wang Xiaofeng, o mais famo-so blogger deste país, não passa de “válvula de escape” para satisfazer a crescente necessidade de um intercâmbio de opiniões, suprimido há muito tempo pelos meios tradicionais e censores do Partido Comunista.A rede também tem algumas vozes muito diferen-tes, como a de Han Han, blogger e editor de uma revista literária, e Murong Xuecong, cujos artigos sobre subornos na China atraíram mais leitores do que muitas publicações importantes. Entretanto, é de Wang, de 44 anos, a voz que se destaca entre os bloggers chineses. A sua foto apareceu na capa da revista norte-americana Time quando essa publi-cação escolheu a comunidade mundial da internet como “personagem do ano”, em 2006. Wang pa-rece levar uma vida dupla: além de ser um dosblo-ggers mais lidos do país, é redator e editor-chefe da  Lifeweek, respeitada revista chinesa, avalizada pelo Estado.

Sibila: Como se sente tendo esta espécie de dupla identidade? Por que escreve num blog?Wang Xiaofeng: Sinto-me mais livre como blo-gger do que ao escrever numa revista importan-te. Os meus leitores também são numerosos (no blog). As restrições nos meios tradicionais são tão grandes que às vezes vejo os meus artigos publicados na revista e não os reconheço. Man-ter um blog na China é diferente de fazê-lo no Ocidente, onde é simplesmente um espaço a mais para se expressar. Na China, o ciberespaço é o único meio no qual alguém pode ser direto e honesto.

Sibila: Está feliz na China? No passado tínha-mos um país descontente porque o Ocidente o demonizava. Agora, parece que também temos um país descontente pelo nível em que está a situação interna.WX: Parafraseando a novela  História de Duas Cidades, do escritor britânico Charles Dickens, diria que “é o melhor dos tempos e o pior dos tempos” para a China. Os estrangeiros não en-tendem este país. Acreditam que estão a tratar com um país rico e poderoso, mas vejo um país onde as coisas chegaram quase ao limite, e no qual só há lugar para uma grande crise e um novo começo. Não conheço um só chinês que seja ver-dadeiramente feliz. Alegria por um dia ou dois? Sim, mas não felicidade. Mesmo os ricos neste país são infelizes, pois não têm segurança para o seu dinheiro, nem leite seguro nem estradas

WANG XIAOFENG: PARA A CHINA MUDAR SERÁ PRECISO UM OUTRO GORBACHOV

seguras para os seus filhos. Os chineses levam vidas miseráveis. São os melhores cidadãos do mundo: nunca se rebelam.

Sibila: A internet e a blogosfera converter-se--ão em catalisadores para a mudança política na China, como previram muitos no Ocidente?WX: Não. A cultura chinesa preza-se por ser muito forte e ter assimilado ao longo dos anos muitas coisas do exterior, mas adaptando-as às suas próprias necessidades. Portanto, é resis-tente à mudança. Por exemplo, vejamos a blo-gosfera. Na China, tem dois propósitos: que as pessoas se expressem e que discutam entre si. Sempre que há um tema de debate, há duas par-tes que combatem. Como isto pode levar a uma mudança? Os chineses podem aceitar algo que é preto ou branco, mas nunca entendem que pos-sa haver uma terceira possibilidade. Digo que há um Qin Shihuang (primeiro imperador da China e famoso tirano) em cada chinês: “Tenho de dominar, tenho de impor o meu ponto de vista e não há lugar para tolerância”, pensam.

Sibila: Como imagina a China em 2030?WX: Não me animo a pensar no futuro da

China. É quase demasiadamente tenebroso. Contudo, para o nosso próprio bem, espero que haja uma dura aterragem da economia, que sacuda a nossa sociedade até à medula. Precisamos de um impacto, ou nunca vamos mudar. A sociedade chinesa é agrícola, atada à terra, obcecada com a cultura da alimenta-ção, e tem imensa capacidade de sobreviver e recuperar-se. Se houver uma mudança, o mais provável será que ocorra por meio de uma crise econômica. Para que a China mude politicamente, será preciso outro [Mikhail] Gorbachov [impulsionador do processo de reformas conhecido como perestroika na an-tiga União Soviética].

Sibila: Quem é o pior inimigo da China?WX: Visto daqui, há apenas dois tipos de países no mundo: a China e os seus inimigos. Se não há rivais no exterior, então o inimigo será a pró-pria China. A população é facilmente enganada. Na realidade, o nosso pior inimigo é a falta de espiritualidade. Não cremos em nada. Se a Re-volução Cultural destruiu a superfície de nossa cultura, as reformas e a abertura acabaram com as suas raízes.

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EM YANGZHOU,扬州

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C H I N A C R Ó N I C A

António GrAçA de Abreu

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YANGZHOU É uma das cidades mais famosas da China Clássica. Correspondia já a um impor-tante centro urbano na dinastia Han (206 a.C- 220) e manteve, ao longo dos séculos, o estatu-to de grande entreposto de comércio e cultura. Situada na província de Jiangsu, logo à entrada da ligação do rio Yangtsé com o Grande Canal -- que começou a ser escavado na dinastia Sui a partir do ano de 589 --, Yangzhou transformou--se num importante nó de ligação fluvial entre o sul, o norte e o interior da China, possibilitando--se através do Canal o transporte de cereais, pe-dra, carvão, gentes e militares. Na dinastia Tang (618-907) era uma cidade cosmopolita, aberta ao mundo, habitada também por dezenas de mar-cadores persas e transformou-se depois num im-portante centro de comércio do sal. Ainda hoje existe uma mesquita muçulmana quase no centro da cidade cuja origem está associada aos emi-grantes persas.Marco Polo, que passou por Yangzhou por volta de 1290, fala de uma cidade que vivia do comér-cio e da manufactura de todo o tipo de arreios e selas para cavalos, do fabrico de armas, sobre-tudo lanças afiadas e espadas de lâminas finas e cortantes. Em Yangzhou, continuam-se hoje a fabricar as melhores tesouras e cutelarias de toda a China.O nosso Fernão Mendes Pinto no capítulo 91 da Peregrinação refere, no ano de 1541, a navegação na enseada de Nanquim, ao avançar “por aquele rio acima”, nas águas do Yangtsé. Creio, pelos dados que dá das suas sucessivas jornadas, que o nosso aventureiro deverá ter chegado a Yan-gzhou, a que chama Sampitai. Aí, com os seus companheiros de desventuradas viagens, foram “todos pela rua a pedir esmola.” Então:

Encontrou Mendes PintoNo interior da China(E em que apuros ele ia)A velha portuguesa chamada Inês de LeiriaQue de repente rezava:Padre nosso que estais no Céu…A velha mais não sabia,Mas bastava.1

Inês era filha do falecido boticário Tomé Pires (1465-?), natural de Leiria2 que o rei D. Manuel em 1516 enviara desde Cochim como embaixa-dor ao Império do Meio. Inês acolheu os portu-gueses e contou-lhes a história de seu pai: “o qual deste reino fora como embaixador a el-rei da China e que por um alevantamento que um nos-so capitão fizera em Cantão, houveram os chins que ele era espia e não embaixador e o prende-ram. (…) E que a seu pai lhe coubera em sorte ser

seu degredo para aquela terra onde se casara com sua mãe e a fizera cristã.”3 Mentira ou verdade de Fernão Mendes, é quase certa a existência de portugueses pelas terras de Yangzhou, em meados do sec. XVI.Hoje, 2012, é pena a cidade situada a apenas oi-tenta quilómetros de Nanquim, continuar a ser tão pouco visitada por turistas estrangeiros. Es-tive em Yangzhou em 1980, regressei em 2009. O centro antigo sofreu alterações de pormenor, sobretudo restauros de velhos edifícios, templos e pagodes, e o refazer de alguns quarteirões con-servando-se e alindando-se a talha arquitectóni-ca da dinastia Ming. Passear pela velha cidade é recuar uns séculos que quase se nos colam à pele.Yangzhou é também famosa, há pelo menos qui-nhentos anos, pelos seus contadores de histó-rias. No século XVIII em todas as ruas principais existiam umas plataformas em madeira para onde subiam esta espécie de animadores culturais da época e durante horas, perante uma interessada e participativa assistência, contavam infindáveis histórias com origem nos clássicos quatrocentis-tas e quinhentistas Sanguo Yanyi, o “Romance dos Três Reinos”, Shui Hu Zhuan, “À Beira de Água” ou Xi Youji, a “Viagem ao Ocidente”. No Verão de 2009, ao anoitecer, saí do meu ho-telzinho e caminhei ao encontro da velha Yan-gzhou. No deambular solitário, já não descobri contadores de histórias mas lá estavam magotes e magotes de chineses rodeando pequenos pavi-lhões elevados num jardim que descia para um dos braços do Grande Canal. Aí, actores ama-dores em palcos improvisados representavam uns tantos excertos de óperas conhecidas, adaptados exactamente a partir dos enredos dos romances clássicos que referi.Confesso que não sou especial admirador destas óperas e operetas locais, declamadas, cantadas em dialectos da região, de que não entendo pa-lavra. Mas a cor, os trajes, a caracterização dos actores, a alegria e o prazer com que cantam e representam, a contagiante participação da assis-tência que de vez em quando manda umas bocas “foleiras” às personagens mais detestáveis da his-tória, enfim, a sensação de estar com esta gente dentro de uma China em estado quase puro, re-conforta um instável coração lusitano. E fiz-me fotografar, para a vã posteridade, com os actores amadores de rua da cidade de Yangzhou, gente simpática a perguntar-me de onde eu vinha, e eu a tentar explicar, nem sempre com sucesso, que o meu país era Putaoya, Portugal ali ao lado de Xi-banya, Espanha, na Europa. Entendendo ou não, aqueles actores pareciam satisfeitos por terem entre os espectadores dos seus originais entre-mezes uma obtusa pessoa saída das profundezas de um qualquer inferno ou paraíso estrangeiro situado lá para as bandas do Extremo Ocidente. Uma das visitas obrigatórias em Yangzhou é o Es-

belto Lago Oeste. Pretende ser uma cópia muito mais pequena do Lago Oeste de Hangzhou mas, salvo o exagero, não se pode comparar a dimen-são do manuelino da igreja da Conceição Velha com o manuelino do mosteiro dos Jerónimos. O lago, circundado por construções recentes do sec. XVIII, vale a visita mas são tantos os chineses a passear de barquinho nas acanhadas águas, ou dependurados para a fotografia em pontes e pavi-lhões, ou esparramados por jardins e alamedas que apetece uma saída célere para outras paragens. Nas duas estadas em Yangzhou visitei o templo budista de Daming, não muito longe do lago mas bem mais sossegado. O templo foi construído no século V no alto de uma colina, com uma vis-ta soberba sobre a cidade e é visita obrigatória para milhares de budistas japoneses que visitam a China. Isto explica-se porque o budismo viajou desde este lugar para o Japão, pela primeira vez no ano de 753, na pessoa do monge chinês鑑真 Jian Zhen (688-763), na altura o superior do templo e mosteiro de Daming, natural de Yan-gzhou. Jian Zhen foi uma figura fundamental na divulgação do budismo na corte de Nara, faleceu no Japão e é hoje uma figura conhecida por quase todos os japoneses.Yangzhou foi também o lugar -- tal como a não muito distante cidade de Suzhou --, escolhido por muitos mandarins chineses para, nos últimos anos de vida, após a reforma das lides públicas, mandarem construir uma casa e jardim que os le-varia ao reencontro com a natureza e com os sim-ples prazeres de um sossegado quotiano. Logo ao lado do templo de Daming, descendo um pouco, fica a antiga residência de欧阳修Ouyang Xiu (1007-1072), um dos maiores poetas da dinastia Song que chegou a governar a cidade. No fim da vida, cansado do mando e do desconcerto do mundo, retirou-se para aqui. No pavilhão de Pin-gsheng, rodeou-se de livros, antiguidades, trouxe um pote de vinho, um alaúde e um tabuleiro de weiqi, o xadrez chinês. Considerou que, com ele, Ouyang Xiu, possuía seis maravilhas para a har-monia plena até ao final da vida.Em Yangzhou, dei uma volta aos sábios entendi-mentos do poeta e escrevi:

Dez mil livros,uma mulher chinesa,um jardim para ouvir o chilrear dos pássaros,uma pipa de vinho,paz no coração,Comigo, são seis maravilhas.Encantamento até ao fim dos dias.

1 - Afonso Lopes Vieira, Onde a Terra se Acaba e o Mar Começa, Lisboa, Vega, 1998, pag. 38.2 - Sobre Tomé Pires, ver por exemplo, Rui Loureiro, Nas Partes da Ásia, Lisboa, CCC Macau, 2009, pags. 75 a 95.3 - Fernão Mendes Pinto, Peregrinação, Lisboa, Ed. Afrodite, 1975, pag. 317.

EM YANGZHOU, com Fernão Mendes Pinto e o poeta Ouyang Xiu

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luz de inverno Boi Luxo

A PROPÓSITO DE 3 OU 4 FILMES DE 2011

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“Ó Nini, chega aqui. Pisei merda”, Rita Blancoem Sangue do Meu Sangue.

Isto pode não passar de um despropósito mas há hoje em dia um cinema de quali-dade, especialmente europeu, que anda a causar uma certa irritação. De algum cine-ma americano actual acho que nem vale a pena falar. A tentação de ir ao cinema, em Macau, tomou uma tonalidade tenebrosa. A causa deste afastamento é de explicação fácil: dois filmes, um de Clint Eastwood e um de George Clooney, de uma banali-dade atroz, o pseudo-panteísmo saloio de Malick a atingir o cúmulo do piroso (meu deus, o que virá a seguir?), bem explica-dinho para as crianças perceberem a his-tória, e um filme de Scorcese menor e in-fantilóide sobre o estafadíssimo tema das homenagens aos primórdios do cinema. Sobre os filmes mais recentes de Woody Allen e Spielberg exercito o meu direito ao preconceito e mantenho-me afastado. Tudo certinho, sem novidade, lamechas, com bastante engenho mas muito pouca arte.O ano de 2011 deu-nos material para pen-sar. A propósito de um filme belga, Bul-lhead, de Michel Roskam, de A Separation, de Asghar Farhadi e de Sangue do meu San-gue, de João Canijo, todos eles bons, bem feitos, com histórias credíveis e bem arti-culadas e parece que animados de muito boas intenções.

1. Em todos eles há muitas pessoas. Há muitas figuras, mais ou menos ligadas à trama central ou protagonistas de enredos secundários. Esta proliferação de gente (que não é necessariamente excessiva nem nociva, note-se) faz um pouco pensar na televisão e em telenovelas.

2. Todos eles se passam na actualidade. Esta escolha tende a revesti-los de dois aspectos: por um lado, esta proximidade cronológica investe-os de autenticidade; por outro lado este “realismo” dá-lhes um

aspecto fugaz, jornalístico no sentido da sua actualidade. Destes três filmes talvez aquele que se prende com um aspecto mais abrangente seja o filme iraniano, político na exibição das inibições que o regime impõe. O que no filme português se passa é de uma inconsequência que a qualidade do seu cinema não consegue elevar a um nível muito acima do bom produto para televisão. No filme belga há uma densida-de na violência e na claustrofobia que o coloca muito próximo de um medo actual mas muito afastado do espanto.

3. São filmes com um número elevado de cenas de interior, mais precisamente in-teriores de habitações. Esta circunstância cria um efeito íntimo diverso, já que nos três se retratam famílias de estações socio--culturais diferentes, uma família humilde numa casa pequena no filme de Canijo; famílias rurais de classe média-alta no de Roskam e uma família de classe média educada no de Farhadi. Sobre todos eles paira, aborrecida, uma enervante e seden-tária domesticidade.

4. São, e esta consideração prende-se de certo modo com a anterior, filmes de fa-mília. Filmes em que a densidade do inter-relacionamento obriga a ver demasiadas rostos e expressões de sentimento, dificil-mente se conseguindo distanciar do senti-mentalismo.

5. O sedentarismo. Ninguém vai a lado nenhum. Apenas em A Separation se esboça uma fuga cuja impossibilidade não vem, apenas, do desenvolvimento que a situa-ção familiar toma mas também do aspec-to opressivo do regime. No filme belga o sedentarismo é acentuadíssimo através do retrato do provincianismo da vida rural. Ninguém foge de galochas. No de Cani-jo acontece o mesmo, e a cidade pobre é a cidade dos que não pensam sequer em dela sair. Num outro filme de Asghar Fa-rhadi, muito parecido com este, quase

desconhecido mas muito equivalente, A Propósito D’Elly, esboça-se também a pos-sibilidade de uma “fuga” feminina.

6. Claustrofobia. Relacionada com o pon-to 5. Causada pelas situações em que as personagens destes filmes se vêm envol-vidas. No filme lisboeta, o mais alegre dos três, e aquele em que há uma promessa benévola que não existe nos outros, esta fobia tem origem na clausura que a imo-bilidade numa estação social baixa pode causar; no filme belga na violência das relações entre figuras de um meio peque-no e provinciano e no filme iraniano, que começa com uma tentativa de fuga para o estrangeiro, no estrangulamento que a fa-mília central do filme sofre a propósito de um momento de falta de frieza num con-texto social e político de enorme tensão.

7. Há um tom “realista”. Uma intenção re-alista na escolha das histórias, na escolha das figuras retratadas e no seu comporta-mento. Não se vislumbra a menor vontade em mostrar um comportamento que seja inverosímil ou extraordinário. Há também um “realismo” no modo de mostrar, um “realismo pop” com actores conhecidos, no caso do filme de João Canijo, tudo limpi-nho mas esquecível.

8. Uma estética que vem em parte da te-levisão, com muitos planos de rostos, com muitos planos médios de pessoas e muitos planos com diálogos. O ecrã pouco mais acolhe que caras e estes são filmes para ac-tores e filmes desenhados para que se dê uma interacção constante entre aqueles e o espectador, sem momentos contem-plativos ou de reflexão. Como acontece no cinema americano, também estes são claros e bem explicadinhos para que os es-pectadores possam perceber bem a trama.

9. A violência está ainda na moda (já há bastante tempo). Se esta é mais visível em Bullhead, não deixa também de haver um

brutalismo, pouco convincente, nas vidas de Sangue do meu Sangue. Em A Separation a violência é a da vigilância constante. O es-pectáculo da violência, nestes filmes, é uma facilidade banal. Não há aqui a violência ju-venil, cinematográfica e nómada de Godard ou a violência existencial de Tarkovski.

Acho que, afinal, quem pisou merda fui eu.

Terminem-se estas linhas com uma confis-são. Estes comentários surgem no segui-mento da visionação de um filme italiano, chamado Io Sono Amore, de Luca Guadagni-no, que eu pensava ser de 2011 mas que, afinal, é de 2009. Trata-se no entanto, de um filme melhor que os três em cima cita-dos, mais atento ao detalhe e ao silêncio, muito mais atento a tudo aquilo que está para lá da mera apresentação do diálogo e dos acontecimentos que fazem avançar a história. Um filme que é um retrato duplo: um retrato que vemos no ecrã e um retra-to que nos é sugerido e que poderá existir para lá dele. Io Sono Amore obriga-nos, ao contrário dos outros três filmes, a fazer esse esforço e a viver com o incómodo da igno-rância. Mas é também um filme de família, com muitas pessoas (um filme que poderia ser também em 3 dimensões, um engenho muito próprio à exibição da intimidade, quer parecer-me), com uma história con-temporânea onde a descrição dos interio-res, subtilmente frios como o inverno mi-lanês, não deixa de existir a par da exibição da claustrofobia própria aos costumes rigo-rosos de uma família poderosa e tradicional de classe alta (veja-se o genérico com aten-ção). No fundo este é um filme de tempera-turas e luminosidades, de chiaroscuros subtis, enquanto os outros três são exercícios que estão muito para lá da banalidade mas um pouco aquém do entendimento que este filme italiano demonstra. Aqueles são fil-mes com uma paleta muito mais reduzida, mesmo que suficientemente rica para que sobre eles se possa estender uma admiração simpática. Pouco mais.

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T E R C E I R O O U V I D O

ASPIDISTRAFLY – NO TEMPO DAS FÁBULAS Há nomes felizes. Aspidistrafly, por exemplo, um jogo de palavras retiradas do título de um dos livros de George Orwell, o romance “Keep the Aspidistra Flying”, publicado pela primeira vez em 1936. O autor britânico haveria de notabi-lizar-se por outras obras e por imaginar mundos futuros perdidos para sempre em distopias irre-versíveis. Mas, talvez o escritor de “1984” tivesse gostado de saber que, em 2002, um jovem casal singapurense inventou uma palavra de inspiração orwelliana, não para descrever um novo estádio da degenerescência humana ao serviço de um to-talitarismo de uma qualquer espécie, mas sim, na verdade, para celebrar precisamente um género supremo de humanidade, a música, que não so-çobrou ao “triunfo dos porcos”.April Lee e Ricks Ang são os nomes por detrás de Apidistrafly. Contam três discos de origi-nais desde 2004, um conjunto que começou com o EP “The Ghost of Things”, a que se se-guiu o primeiro longa duração, “I Hold a Wish For You”, em 2008, e, finalmente, o mais re-cente “A Little Fable”, disco que viu a luz do dia no final do ano passado. Todos os discos de Aspidistrafly têm o selo da editora singa-purense Kitchen, fundada pela dupla de músi-cos. Pelo meio, os Aspidistrafly participaram, com originais e remisturas, numa mão cheia de compilações, e colaboraram em discos de artistas como os japoneses Akira Kosemura e Haruka Nakamura.

A fusão de “ambient”, “folk”, harmonias e vo-calizações bucólicas e sussurradas, tudo en-trelaçado numa envolvente e quente nebulosa sustentada a “drones”, detritos electrónicos e sons quotidianos, deu notoriedade aos Aspi-distrafly a partir do primeiro disco “a sério”, “I Hold a Wish For You”, levando-os a incursões para lá dos limites de Singapura. Uma primei-ra digressão, em 2009, rodou os Aspidistrafly por sete cidades asiáticas, incluindo Bangue-coque, Tóquio e Macau.“I Hold a Wish For You” é a extensão natural do primeiro EP, um trabalho de fôlego pro-fundo já com os Aspidistrafly em modo “sen-surround” e a tirarem partido dos truques de produção que dão espessura e matéria a uma sonoridade que preserva, todavia, a volatilida-de etérea dos corpos celestes. É nestas dimen-sões que os Aspidistrafly se vão aproximando dos formatos tradicionais da canção, mas sem nunca descaracterizarem a música que perma-nece em estado gasoso, desprendendo vapores ambientais, fantasmas translúcidos, de pessoas e de lugares, de imagens, instantes fixos, ou-tros em movimento perpétuo.O percurso rumo à purificação do som e ao aprofundamento da intenção de construir canções tendo por base a frágil filigrana “am-bient folk” é prosseguido em “A Little Fable”, um disco marcado pelo carácter orgânico das composições que agora são enriquecidas com

novas texturas e a ajuda de colaboradores como Seigen Tokuzawa, Haruka Nakamura, Junya Yanagidaira (ironomi), Akira Kosemura, Janis Crunch, entre outros.“A Little Fable” abre com um violoncelo em surdina a dar o mote para o resto do disco que oscila entre as experiências com a métrica das canções e o “ambient”, que continua a ser o território de excelência dos Aspidistrafly.“Sea of Glass”, por exemplo, poderia ser fa-cilmente confundida com um trabalho de Marsen Jules e não ficava nada mal num dos volumes de Pop Ambient, com os seus “pro-longados arpeggio de ruidosos ‘loops’ de gui-tarras que flutuam, reverberando quase como uma percussão narcótica sobre tumultuosos oceanos”, lê-se na apresentação do disco feita pela editora.Depois de passagens por mares agitados, de-pois de pequenas fábulas que nos transportam para lugares distintamente surreais, a cortina cai ao som de “Twinkling Fall”, uma adaptação de “Twinkle, Twinkle, Little Star”, a popular canção de embalar. “Twinkle, twinkle, little star, how I wonder what you are. Up above the world so high, like a diamond in the sky.” Hora de sonhar.

“A Little Fable”Kitchen.Label, 2011Aspidistrafly

próximo oriente Hugo Pinto

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Mario Perniola*

NO DECLÍNIO DO BINÔMIO CIÊNCIA-IDEOLOGIA,

AQUILO QUE ACABA NÃO É SOMENTE A POSSIBILIDADE DE UMA DEMOCRATIZAÇÃO DO SABER E DO PODER, MAS ALGO MAIS GLOBAL E FUNDAMENTAL: A SOCIALIZAÇÃO DO SABER E DO PODER.A situação actual parece caracterizada por uma multiplicação de saberes e de poderes locais, não no sentido de sua limitação ou fraqueza, mas no senti-do de que eles não mais consideram a sociedade na sua globalidade. Àquilo que Habermas chama o “desengate do sistema cultural”, ou seja, a redução do saber a mero objecto do prazer e do interesse privado, corresponde um análogo desengate do poder pela for-mulação ideologicamente comprome-tedora de uma vontade política.

A gestão dos saberes e dos poderes locais é assumida por  managers  cul-turais e por  bosses políticos, que reduzem a cultura a uma dimensão meramente mafiosa. Nesse contexto, ciência e ideologia parecem encontrar uma nova vitalidade, no sentido de que a sua encenação através dos mass--media  é sem comparação mais es-trondosa e espectacular do que aquela que lhes garantiam os canais tradicio-nais da escola e da opinião pública pensante; porém, essa amplificação exclui ao mesmo tempo todo o seu sa-ber e poder. Realiza-se, assim, não só a superação da ciência e da ideologia, mas o seu esvaziamento e a sua depre-ciação: realizam-se a equiparação do saber científico a produtos culturais privados de todo método e de toda disciplina e a utilização bossística das ideologias.

Management cultural  e  bossismo político não podem, de fato, percorrer o espaço pós-científico e pós-ideoló-gico que o fim da modernidade abre. Eles vivem na gestão do património cultural da modernidade, desmem-brado e enervado, porque separado da relação com a sociedade.  Mana-gement  cultural e  bossismo  político fazem crónica da crise sociocultural. Diante do rigor da ciência, diante da coerência da ideologia, o niilismo ma-

Estado da ArteMANAGERS CULTURAIS E BOSSES POLÍTICOS

nagerial-bossístico, que faz um uso completamente arbitrário e oportu-nista da contradição e das incompati-bilidades, pode também dar a impres-são da liberdade: mas essa liberdade é apenas a dissolução do saber por toda efectividade e motivação, a dissolu-ção do poder por toda legitimidade e eficácia.

Para sair dessa crise, é necessário mais do que a gestão niilista da mo-dernidade. Por isso, é correcto falar da relação entre “saber e poder” no singular, em vez da relação entre “sa-beres e poderes”, como seria a partir do ponto de vista foucaultiano mais lógico. No entanto, isso não signi-fica, de fato, que a adopção de uma perspectiva total e hierárquica do sa-ber e do poder, destinando a cada um o seu lugar, controle toda mudança e exerça uma vigilância capilar sobre todas as actividades e sobre todos os indivíduos: semelhante utopia, posi-tiva ou negativa, segundo os pontos de vista, não é mais nem mesmo pen-sável, já que a sociedade contempo-rânea é radicalmente outra, diferente, refractária a uma posição carcerária-

-disciplinar, que, assim como o  Pa-nopticon benthamiano, pretenda to-talmente assumir.

Essa óptica não é menos absurda do que aquela  managerial-bossísti-ca que considera a história uma festa de carnaval tanto melhor quanto mais alto for o preço da entrada. Um pen-samento da totalidade é, hoje, o mais fraco que se possa imaginar, porque a sociedade não é reduzível a um todo.

A ligação entre saber e poder não renasce, portanto, de um voluntaris-mo tecnocrático-totalitário que sobre as cinzas das tradicionais mediações científico-ideológicas aspira a um controle universal. Todas as premis-sas de um profundo co-pertença de conhecimento e sociedade, na rea-lidade, já foram dadas. Nunca como hoje o social foi tão potencialmente cultural, nem a cultura tão potencial-mente social: o significado essencial dos mass-media está justamente nes-se duplo processo de socialização do imaginário e de culturalização da so-ciedade. Mas exactamente a diferença dessa ligação directa entre saber e po-der, em relação às formas tradicionais

em que ela se manifestou na história do Ocidente, solicita a intervenção de pensadores e de operadores que possam e que saibam explicitá-la, evi-denciá-la, activando o aspecto cons-trutivo; eles agem como obstetras de uma situação que requer, antes de tudo, ser conhecida e praticada, não abandonada às palhaçadas do niilis-mo managerial-bossístico.

Essa situação é caracterizada pela globalidade, pelo fato de que qual-quer acontecimento local se insere e se conecta com outros, não median-te uma série de passagens ordenadas hierarquicamente, mas mediante uma relação que diz respeito ao conjunto das relações. Ela implica e exige uma dimensão estruturada, mas não rígi-da, como a existência de uma  rede que permita não apenas o movimento através dela, mas também a sua mes-ma extensão e ramificação indefinida.

É na coincidência de uma ordem sem fundamento e de uma liberdade sem sujeito que pode ser resolvido o conflito tradicional entre ordem e liber-dade. O esforço mais importante nessa direcção permanece ainda aquele de Heidegger: consiste em considerar, por um lado, o Gefüge (‘estrutura, equipe’; em francês, ajointement) como uma di-mensão mais ampla do sistema, e, por outro, o Offene (‘o aberto’) como uma dimensão mais ampla da libertação. Se continuarmos pensando a ordem como sistema disciplinar e a liberdade como emancipação do sujeito, não consegui-remos sair do horizonte do saber cientí-fico e do poder ideológico.

* Mario Perniola nasceu em Asti, província italiana pertencente à região de Piemonte, em 1941. Formou-se em Filosofia na Universi-dade de Turim sob a orientação de Luigi Pa-reyson. Esteve ligado entre os anos de 1966 e 1969 ao grupo da Internacional Situacio-nista (I. S.), no qual pôde ter uma estreita relação de amizade e de debate teórico com Guy Debord. O filósofo possui vasta produ-ção na área de Estética, Teoria da Arte e Arte Contemporânea. Dirigiu as revistas Agara-gar (1971-3), Clinamen (1988-92), Esteti-ca News  (1988-95) eÁgalma - Rivista di Studi Culturali e di Estetica (desde 2000). A sua obra está traduzida em várias línguas, como inglês, alemão, francês, espanhol, dina-marquês, chinês, japonês e português.

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C I D A D E S I N V I S Í V E I S

metrópolis Tiago Quadros*

WANG SHU, 2012

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POUCO CONHECIDO FORA DO SEU PAÍS, WANG SHU MOSTRA COM A

SUA OBRA QUE O QUE SE CONSTRÓI NA CHINA “É MAIS DO QUE A PRODUÇÃO EM MASSA DA BANALIDADE”, DIZ UM DOS MEMBROS DO JÚRI.O prémio Pritzker 2012 foi atribuído a uma obra que “abre novos horizontes ao mesmo tempo que ressoa com o lugar e a memória” – foi com estas palavras que o júri daquele que é considerado o Nobel da arquitectura justificou a escolha, este ano, do arquitecto chinês Wang Shu.

Arquitecto e Professor, Wang Shu nasceu em 1963, em Urumqi, cidade situada na região de Xinjiang, a província mais ocidental da Chi-na. Em 1985 Wang Shu conclui a licenciatura em arquitectura, e em 1988 realiza o mestrado, ambos na Nan Nanjing Institute of Technology. Wang Shu e a sua mulher, Lu Wenyu, fundam, em 1997, o Amateur Architecture Studio, em Hangzhou, na China. O nome do atelier faz re-ferência às abordagens construtivas baseadas na espontaneidade, nos conhecimentos artesanais e nas tradições culturais. Wang Shu trabalhou vários anos em estaleiros de obra, procurando aprender métodos construtivos tradicionais. O atelier utiliza métodos construtivos tradicionais com vista a adaptar e transformar determinados materiais para projectos contemporâneos. É esta combinação única entre métodos constru-tivos tradicionais, técnicas experimentais e pro-cessos de pesquisa intensivos que define a base conceptual e de linguagem do atelier Amateur Architecture Studio. O atelier de Wang Shu e Lu Wenyu defende uma leitura crítica das de-molições que têm sido executadas em gran-des áreas urbanas da China. A este propósito, em 2006, na Bienal de Arquitetura de Veneza, Wang Shu e Lu Wenyu apresentaram “Tiled Garden”, uma instalação realizada a partir de 66.000 azulejos reciclados, recuperados de de-molições. Ao invés de olhar para o Ocidente em busca de processos criativos alternativos, como muitos dos contemporâneos de Wang Shu, o trabalho do atelier Amateur Architectu-re Studio procura encontrar-se no contexto da história e cultura chinesas.

Jovem, com apenas 48 anos, e com obra construída unicamente na China, o prémio Pritzker deste ano fala-nos de uma outra visão sobre o mundo, de uma qualidade sustentada numa recusa da ostentação e sobrecarga expres-siva, contemplando, sobretudo, aspectos mais subtis e reflexivos, como por exemplo, a cor da luz, a matéria e as suas qualidades tácteis. As fachadas constituem-se em planos corridos de um único material – pedra, madeira ou cortinas de vidro de grandes peças. Através da utilização de materiais opacos reduz-se a relação entre in-terior e exterior. Nesse sentido, trata-se de um prémio que “tem claramente a ver com o mo-mento chinês”, e que é, ao mesmo tempo, “uma crítica a esse momento”. Isto porque, quando

se olha para a obra de Wang Shu, percebe-se claramente que “no contexto chinês ela é muito diferente da espectacularidade e do kitsch” de muito do que se tem construído naquele país, “é muito mais arcaica, com a ambição de ser perene”.

O júri do Pritzker - presidido por lorde Pa-lumbo e que integrava, entre outros, o arquitec-to chileno Alejandro Aravena, o chinês Yung Ho Chang, a britânica Zaha Hadid, Pritzker de 2004, e o australiano Glenn Murcutt, Prit-zker 2002 - assume isso mesmo: “O facto de ter sido escolhido um arquitecto chinês supõe um importante passo no reconhecimento do papel que a China vai desempenhar no desenvolvi-mento dos ideais arquitectónicos. Além disso, o êxito do urbanismo chinês nas próximas dé-cadas será importante não só para a China mas para o mundo inteiro.”

Aravena di-lo claramente: “Há questões sig-nificativas ligadas ao recente processo de ur-banização na China – se deve ser ancorado na tradição ou se deve olhar para o futuro. Como em qualquer grande arquitectura, o trabalho de Wang Shu consegue transcender esse deba-te produzindo arquitectura que é intemporal, profundamente enraizada no seu contexto e no entanto universal.” E Yung Ho Chang re-força a mesma ideia ao afirmar que a obra de Wang “mostra que a arquitectura na China é mais do que a produção em massa da banalida-de que responde ao mercado e de reproduções do exótico.” Para se conhecer a arquitectura de Wang Shu é necessário ir à China e, sobretudo, à região de Hangzhou, onde está a maioria dos trabalhos - entre os mais conhecidos contam--se o Museu Histórico de Ningbo, um edifício em pedra, com pequenas aberturas rasgadas de forma incerta, o Campus Xiangshan da China Academy of Art, mas também as delicadas casas sobre a água conhecidas como Five Scattered Houses, em Ningbo. 

Wang Shu refere: “para mim a arquitetura é espontânea pela simples razão de que a ar-quitetura é uma questão da vida quotidiana. Quando eu digo que eu construo uma ‘casa’ em vez de um ‘edifício’, estou a pensar em algo que está mais próximo da vida, da vida quotidiana. Quando eu decidi escolher o nome ‘Amateur Architecture’ para o meu atelier, foi com o ob-jectivo de enfatizar os aspectos espontâneos e experimentais do meu trabalho, ao invés de ser ‘oficial e monumental’.” Wang Shu é actualmen-te Professor e Director da Escola de Arquitec-tura da China Academy of Art, em Hangzhou. Em 2011 tornou-se no primeiro chinês a ser Professor Convidado na Escola Superior de Design de Harvard, em Cambridge, no Massa-chusetts. Wang Shu recebe o Prémio Pritzker de Arquitectura 2012 em cerimónia a decorrer no próximo dia 25 de Maio em Pequim.

*Arquitecto, Mestre em Cor na Arquitectura pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa

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gente sagrada José simões morais

C I D A D E S I N V I S Í V E I S

PAK TAI, O DEUS DO NORTEPak Tai (北帝), conhecido em man-

darim por Bei Di, o General Perfeito, é um dos deuses da Água e por isso, protector contra os incêndios. Esta di-vindade tauista acorre solícita sempre que o fogo deflagra e ameaça os bens, ou a vida das pessoas e por isso, é par-ticularmente invocado em alturas de aflição para que as chamas rapidamente se extingam.

Dos primórdios da mitologia chi-nesa, este deus descalço e com cabelo negro comprido venceu uma legião de demónios que pretendia destruir a Ter-ra. Pak Tai era um príncipe que, por não querer ocupar o lugar de rei, foi para a montanha praticar o Tao. Com o pro-pósito de matar todos os demónios, corajosamente comandou 12 legiões celestes numa luta contra um Rei-De-mónio que pretendia devastar a Terra. A lenda chinesa a ele associada conta que teve de lutar contra uma enorme

tartaruga e uma serpente, acabando no final por as derrotar, derrubando o demoníaco soberano. Devido a esta vi-tória, Pak Tai recebeu o título de Supre-mo Imperador do Céu Negro.

De notar que na dinastia Han, as cinco direções estavam associadas a cinco imperadores e o do Norte, o Imperador Preto, Zhen wu, o perfeito guerreiro, tendo a virtude da água e simbolizando o Inverno, era represen-tado por uma serpente enlaçando uma tartaruga. Por isso, a imagem de Pak Tai tem por baixo dos seus pés uma serpente no lado direito e uma tarta-ruga no esquerdo, assim como segura na mão direita uma bandeira vermelha com caracteres dourados. A arma que usa para vencer o fogo é uma espécie de longa forquilha, que esta divindade empunhava, e com a qual costuma ser representada.

Este deus-imperador é também um

dos quatro reis-guardiões do budismo e durante a dinastia Yuan (1271-1368) foi-lhe prestado um especial culto, já que dominava o Norte, de onde esta dinastia era proveniente. Mas só na dinastia Ming ganha um lugar de des-taque quando, após o imperador Zhu Di ter transferido a capital da China, de Nanjing de novo para Beijing e confor-me promessa que fizera ao pedir ajuda a Beidi (Pak Tai em cantonense), man-da construir templos em honra do deus imperador do Norte em cada uma das prefeituras.

Pak Tai é também considerado como a combinação de sete deuses do Norte e por isso controla essa zona, sendo reconhecido como deus da Água.

Já em Macau, muitos são os feitos milagrosos que aconteceram na Taipa e ficaram atribuídos a Pak Tai. Para além de curar doentes, auxiliou a população quando a ilha estava para ser saqueada

por piratas. Colocando um exército no local onde estes iriam desembarcar, o que muito amedrontou os invasores que fugiram, logo esses soldados desa-pareceram.

Conta-nos também que, num dos muitos incêndios que houve na Taipa, o fogo após devorar uma povoação es-tava a aproximar-se de uma outra contí-gua. A população desesperada mandou alguém ir buscar a bandeira vermelha que se encontrava na mão direita de Pak Tai e agitando-a, o forte vento que soprava do quadrante Norte virou para Sul, o que evitou que o fogo atingisse outras povoações.

Em 2012, a 24 de Março, no ter-ceiro dia da terceira Lua, comemora--se no Largo de Camões, na Taipa, o aniversário de Pak Tai. O templo de Lin Kai, na península de Macau é também dedicado ao deus do Norte e da Água.

北帝

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L E T R A S S Í N I C A S

HUAI NAN ZI 淮南子 O LIVRO DOS MESTRES DE HUAINAN

Huai Nan Zi (淮南子), O Livro dos Mes-tres de Huainan foi composto por um con-junto de sábios taoistas na corte de Huainan (actual Província de Anhui), no século II a.C., no decorrer da Dinastia Han do Oeste (206 a.C. a 9 d.C.).Conhecidos como “Os Oito Imortais”, es-tes sábios destilaram e refinaram o corpo de ensinamentos taoistas já existente (ou seja, o Tao Te Qing e o Chuang Tzu) num só volume, sob o patrocínio e coordenação do lendário Príncipe Liu An de Huainan. A ver-são portuguesa que aqui se apresenta segue uma selecção de extractos fundamentais, efectuada a partir do texto canónico com-pleto pelo Professor Thomas Cleary e por si traduzida em Taoist Classics, Volume I, Shambhala: Boston, 2003. Estes extractos encontram-se organizados em quatro gru-pos: “Da Sociedade e do Estado”; “Da Guer-ra”; “Da Paz” e “Da Sabedoria”.O texto original chinês pode ser consultado na íntegra em www.ctext.org, na secção in-titulada “Miscellaneous Schools”.

Quando aceitam o embaraço e desgraça de lidarem com dirigentes políticos, os sábios não consideram altas as montanhas, nem largos os rios.

DO ESTADO E DA SOCIEDADE – 2

Aqueles que podem tornar-se líderes devem ser capazes de encontrar ven-cedores. Aqueles que podem ganhar aos seus oponentes devem ser fortes. Aqueles que podem ser fortes são ca-pazes de usar o poder de outras pesso-as Para se ser capaz de usar o poder de outras pessoas, é necessário conquis-tar os seus corações. Para ser capaz de conquistar os corações das pessoas é necessário ser mestre de si mesmo. Para conseguir ser mestre de si mes-mo, é necessário ser flexível.

* * *

O antigo sistema de líderes não se des-tinava a servir os seus desejos. Quan-

do acontecia que os sábios vivessem numa baixa posição tal não significava que tencionassem facilitar as coisas para si mesmos.A liderança foi estabelecida porque os fortes oprimiam os fracos, os muitos aplicavam violência sobre os poucos, os ardilosos enganavam os simples, os ousados atacavam os tímidos e as pessoas guardavam o conhecimento para si mesmas e não ensinavam e acu-mulavam riqueza sem a partilharem. Por isso, a instituição da liderança foi estabelecida, para fazer todos iguais e unificar a todos.

* * *

Quando aceitam o embaraço e des-graça de lidarem com dirigentes polí-ticos, os sábios não consideram altas

as montanhas, nem largos os rios. Mas tal não se deve ao desejo de pagamen-tos ou estatuto. Deve-se apenas ao de-sejo de servir os interesses do mundo e livrar-se do que causa dano às pessoas.As tradições acerca dos reis sábios de outrora, registadas em antigos docu-mentos, dizem que Shennong [NT: rei mítico de há cerca de 5000 mil anos, conhecido pelo epíteto de “Di-vino Agricultor”] tinha um ar exausto, Yao parecia emaciado, Shun tinha a pele negra de fumo e Yu era conheci-do pelos seus calos [NT – reis sábios da mesma época lendária]. Olhando para estes antigos líderes iluminados, podemos ver o quanto porfiaram e la-butaram pelo povo.

Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

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Poeta da dinastia Tang. Entre o taoísmo e o zen, Han Shan fala da vacuidade e do silêncio, do interior dos homens e do encontro com a Natureza.Feito monge, ria-se do mundo, da pressa, das ambições humanas e, sobretudo, ria-se de si próprio.Contemporâneo e imperdível.