escapade - perse - publique-se - publicar seu livro agora ... · mas não vou ficar te dando mais...
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Escapade
Escapade
1
Memphis, Tennessee
Andrei Trentini
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Memphis I
... “e isto nem tem nenhuma relação com dons divinatórios Sr. Donovan. Pela
maneira como se veste e pelo seu sotaque posso deduzir que seja do norte. O
Sr. é um Yankee”.
“Bem Aisha, você acertou. Mas não vou ficar te dando mais dicas, afinal, quem
vai me dizer algo sobre mim, sobre minha vida passada, presente e futura é
você”.
“Não sou eu, Sr. Donovan, é o Tarot. Ele é sábio e as cartas não mentem”.
“Certo, mas para que eu possa confiar mais nele e em nossa relação, procurarei
ficar quieto, mais ouvir que falar. E deixo a você e ao Tarot a tarefa de dizer
quem eu sou e o que me espera, podemos combinar assim? Ah, e por favor
chame-me de Travis”.
“Muito bem, Travis. O Tarot é iluminado, logo verá. Não é preciso que diga
nada, vamos colocar uma primeira mão de cartas e você mesmo me dirá se
está satisfeito com o que aparece. Apenas ao longo do percurso posso
eventualmente perguntar se uma ou outra carta ou situação faz sentido para
você. Não que o Tarot erre, mas preciso saber se nós estamos no caminho
certo, se você sabe do que se trata, porque muitas vezes nós confundimos o
que já é passado com o que ainda não nos cruzou o caminho. Desta forma
posso redirecionar minha interpretação. Mas no final verá que tudo se encaixa”.
Travis ouvia com certa reserva. Não que desconfiasse do Tarot, pois era, ele
mesmo, um pouco místico e supersticioso. Mas ainda não tinha certeza dos
dons divinatórios de Aisha, apesar de ter sido muito bem recomendada por
gente que conhecia o ramo, amigos seus em Chicago.
“Está certo então. Podemos começar”? Disse Travis.
“Sim Travis. Para começarmos vou colocar uma mão de nove cartas. Vamos ver
o que nos mostra. Peço que mentalize o que quer como resposta e, enquanto
mentaliza a questão, embaralhe o Tarot e corte”.
Travis fez como requisitado e Aisha começou a deitar as cartas. Assim que
estavam na mesa, ela enumerou o que tinha saído:
1. A Lua
2. O Diabo
3. O Cavaleiro de Espadas
Escapade
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4. O Quatro de Paus
5. O Cavaleiro de Ouros
6. O Quatro de Espadas
7. A Justiça
8. O Nove de Paus
9. O Cavaleiro de Copas.
“Aí estão as cartas Travis. Em primeiro lugar tenho que dizer que não se lê o
Tarot carta por carta. Fazer assim é como tocar piano com um dedo só. Os
significados de cada carta são influenciados pelas cartas próximas e tudo só faz
sentido quando interpretado em conjunto. Mesmo assim, terei que mencionar o
que significa cada carta.
Em primeiro lugar me chama a atenção que tenham saído três Cavaleiros em
uma mão só. Um cavaleiro sozinho não significa necessariamente uma pessoa,
mas três... acho difícil que não sejam. Nesta caso, cada um segue as
características de seu naipe. O naipe de Espadas traz à mente características
como poder, austeridade, autoridade, lei, até mesmo luta, violência,
agressividade, destruição. O naipe de Ouros nos fala mais sobre a posse de
alguma coisa de valor, seja dinheiro, conhecimento, trabalho, seja o que for. O
naipe de Copas nos remete inevitavelmente ao afeto, amor, prazer, amizade e
concórdia, às vezes até mesmo fantasia e imaginação.
Muito bem. O primeiro Cavaleiro é o de Espadas e vem precedido da Lua e do
Diabo, cartas negativas neste contexto. Elas reforçam o valor negativo e
destrutivo do naipe de Espadas e são reforçadas por ele. A Lua significa
inimigos ocultos, perigo, calúnia, enfim, tudo o que vem através de uma luz
refletida, indireta e noturna, que não é a clara luz do sol. O Diabo significa
violência, destruição, fatalidade, forças malignas.
Posso dizer que temos um personagem próximo a você, Travis, que não é dos
mais doces, não é mesmo? Está me parecendo que você tem um inimigo
daqueles! Uma pessoa poderosa, envolvida em questões ilícitas e perigosas.
Parece-me ser um homem adulto que tem grande potencial de te causar dano.
O que estou dizendo faz sentido para você”?
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“Sim Aisha, faz. Mas prossiga”.
“Muito bem. Disse próximo a você mas não tão próximo, pois estaria mais
inclinada a acreditar que você está aqui representado nesta mão de cartas pelo
Cavaleiro de Ouros, no centro da mesa. Por estar exatamente no centro, creio
que seja você. O Cavaleiro de Espadas não te toca, está separado de você por
um Quatro de Paus. Este quatro de Paus significa refúgio, segurança, abrigo,
paz. Se uma carta como essa te separa do perigo, posso dizer que você está
protegido do perigo oferecido pelo Cavaleiro de Espadas. Mais, por estar
representado por um Cavaleiro de Ouros aqui, Travis, você deve ter alguma
coisa que este seu inimigo quer. Não consigo ver se é dinheiro ou o que, mas
você possui algo que ele quer, não é”?
“Prossiga, por favor, Aisha”.
Travis não queria entregar nenhum ponto de graça, queria ver se Aisha
realmente tinha o dom de enxergar o que outros não enxergam. Mas mesmo
assim já estava quase convencido. Estava impressionado com o que ela tinha
conseguido dizer a ele em tão pouco tempo, sem ele mencionar palavra sobre
sua situação.
“Bem, vejo que ainda não confia em mim, Travis. Não tem problema, vou
provar a você que o Tarot enxerga além do real e nos dá dicas sobre o que não
podemos enxergar.
Logo em seguida ao Cavaleiro de Ouros, que é você mesmo, há um Quatro de
Espadas, que significa vigilância, recuo, solidão, exílio. Ora, que coisa! Você
está cercado por dois Quatros, que no caso desta mão significam ambos um
refúgio ou isolamento. Eu arriscaria dizer que você está se escondendo de seu
inimigo. Me parece estar a salvo por enquanto. Os Quatros em ambos os lados
o protegem. Mas são cartas fracas se comparadas às três primeiras cartas, até
onde o protegerão? Vamos continuar. A próxima carta é a Justiça. Ela significa
equidade, acerto, probidade, triunfo do lado que tem razão. Quero supor que
você seja um homem correto, Travis, e que seu inimigo é um crápula, desta
forma, podemos contar uma certa vantagem para o seu lado. A carta da Justiça
também pode estar nos dizendo que há um processo judicial correndo agora no
que diz respeito a este assunto. Isto lhe diz algo”?
“Sim, Aisha, mas vamos adiante”?
Aqui Travis não se conteve, ela estava acertando em cheio.
Escapade
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“Muito bem, para terminar temos um Nove de Paus e um Cavaleiro de Copas. O
Nove de Paus em si significa grande força de oposição, defesa muito eficiente.
De novo, sozinha não me diria nada, mas está ao lado de um Cavaleiro de
Copas. Será que temos um forte aliado nesta jogada Travis”?
Travis deixou escapar um leve sorriso inevitável. Aisha estava acertando em
cheio mesmo. Ela continuou:
“Mas tem uma coisa aqui que não combina Travis”...
“O que é, Aisha”?
“Eu esperaria o Cavaleiro de Paus aqui, não o de Copas. O Cavaleiro de Paus
seria um complemento ao naipe de Paus da carta anterior, além do que seria
um amigo ou profissional que te dá esta proteção por amizade ou trabalho. O
naipe de Copas aqui me sai um pouco misterioso, sabe? Será que este seu
protetor pode ter motivos pessoais para te proteger”?
“Não que eu saiba Aisha, aí você me pegou também, ele é profissional demais
até”.
Nesta hora Travis perdeu completamente seu controle. Já estava convencido
mesmo das habilidades de Aisha. Até aqui tudo fazia perfeito sentido.
“Bem, é o máximo que posso te dizer com este Cavaleiro de Copas nesta
posição. Podemos continuar colocando outra mão, usando esta carta como
significador, ou outra coisa que queira saber, para inquirirmos mais a fundo do
que se trata”.
“Poxa, não Aisha, não posso hoje. Já estou atrasado e vou causar um tumulto
por ter estado ausente por tanto tempo. Volto outro dia e continuamos. Estou
muito satisfeito, você é muito capaz, me impressionou, de verdade. Quanto te
devo”?
“São cinquenta dólares, querido. Ok, vou te deixar ir desta vez, mas algo me
diz que está em grande perigo, pelas cartas que vimos. Não vá me deixar
preocupada hein? Volte assim que possível, acho que posso te ajudar com
essas coisas. De qualquer forma, creio que possa confiar no Cavaleiro de
Copas, se você já sabe quem é. O Tarot diz que ele é bem intencionado”.
Andrei Trentini
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Memphis II
“O que é isto Travis? Onde esteve”?
Kevin perguntava em tom de voz incisivo. Procurava não se alterar, mas seu
jeito dominador e rigoroso transparecia como sempre.
“Eu saí por um tempo curto, fui aqui pertinho mesmo. Tinha uma indicação de
uma taróloga ótima. Uma cigana legítima, herdeira de muitas gerações de
experiência na arte divinatória. Sou um pouco supersticioso, sabe, Kevin?
Acredito nessas coisas, quis saber o que o futuro nos reserva. Saí sem avisar
porque você tinha sumido e eu tinha hora marcada”.
“Nada disso importa, Travis. Seja o que quiser que tenha a fazer, temos ordens
claras. Você não sai sozinho, não sai sem mim, entendeu? Está sob minha
custódia e proteção 24 horas por dia. Não vou admitir que isso se repita ou
terei que tomar medidas drásticas”.
Kevin era um sujeito durão e deixou muito claro que estava falando sério. Já
Travis, por outro lado, não era assim inflexível. Não tinha por costume desafiar
o poder. Muito pelo contrário, era dócil e de fácil lida. Não havia feito por mal,
apenas não havia encontrado Kevin na hora que tinha que sair. Viu-se forçado
a sair sem avisar. Mas desculpou-se com Kevin e afirmou que não voltaria a
acontecer.
“Vou ter que te contar outra coisa que acho que não vai gostar” continuou
Travis. “Enquanto você estava me procurando, logo agora, eu já tinha voltado e
seu celular tocou. Você deve ter esquecido na pressa. Sei que não devo
atender, mas fiquei preocupado que eles lá em Chicago achassem estranho,
achassem que tinha acontecido alguma coisa, atendi. Disse que você estava
tomando banho e ligaria assim que acabasse. Não faz nem cinco minutos”.
Kevin teve outro surto de irritação. Esbravejou desta vez.
“Travis, você não pode fazer isso. Nós dois não sabemos quem está ligando, se
fosse um dos nossos inimigos, poderia rastrear a chamada e nos colocaria a
ambos em maus lençóis. Ficou combinado com Chicago que só eu atenderia o
celular. Como sou o policial responsável pela escolta, reconheço a voz das duas
únicas pessoas autorizadas para ligar para este celular, mas se fosse um dos
inimigos e você atende o celular, o inimigo poderia reconhecer sua voz e pôr
tudo a perder. Além de confirmarem que você está vivo, a chamada poderia
confirmar sua localização para o inimigo. Ele poderia arrancar de você dados
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preciosos, os bandidos têm métodos escusos de obter informações que você
desconhece. Para todos os efeitos você sumiu ou está morto, ninguém pode
estabelecer contato direto com você. Em suma, só eu atendo, temos
identificação de voz, senhas e códigos para falar”.
Tudo isto estava acontecendo porque Travis havia sido testemunha ocular de
um crime em Chicago. Os mandantes do crime eram políticos poderosos na
cidade, o depoimento de Travis seria crucial, mas teria que aguardar o
andamento do processo em segurança, senão seria alvo certo para queima de
arquivo. Até que fosse a hora de depor, teria que ficar foragido e sob proteção.
Ainda nem tinham noção de o quanto o inimigo sabia sobre as informações que
Travis guardava, mas certamente quando viesse a saber mandaria matá-lo.
Como os políticos envolvidos na trama, em especial um deles, eram muito
poderosos, poderiam manipular até mesmo a polícia e o julgamento. Era mais
prudente manter Travis seguro, como última cartada, em local desconhecido.
Eles haviam até mudado sua identidade para poderem transitar incógnitos.
Tinham identidades falsas.
“Você falou seu nome verdadeiro para a tal vidente”? Perguntou Kevin.
“Taróloga Kevin, taróloga. Sim, falei. Ela é de confiança”.
Kevin ficou mais enraivecido ainda:
“Ninguém é de confiança, Travis, ninguém, ouviu bem? Parece que não se dá
conta da gravidade da situação”!
“Ok, Kevin, desculpe-me de novo, não vou repetir. Prometo. Mas quanto a ela
não é preciso preocupar-se. É uma pessoa comprometida com sua atividade.
Está acostumada a receber gente em perigo, ela ama seu trabalho, jamais
deduraria ninguém, mesmo porque ela acredita no que faz e teme que as
forças supremas a puniriam por trair um cliente seu. Se fosse uma impostora
teríamos muito a temer, mas primeiro que eu não disse nada a ela sobre o
assunto, ela não sabe do que se trata. Segundo que ela acredita no poder do
Tarot e acredita que as forças que o destino lhe deram para ajudar as pessoas
não admitem traição. É como um pacto de sigilo com as forças guias do bem.
Ela não pode falar”.
“Bem, não me interessa, que não se repita ou teremos que mudar todo o
esquema, de forma que ficará muito mais desconfortável para você mesmo”.
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“Mensagem captada, general”. Disse Travis batendo continência em tom irônico
mas com um sorriso nos lábios. Ele preferiu deixar que o Capitão Kevin Reed
ligasse para os contatos em Chicago, sem confessar que havia conversado um
pouco mais longamente com um deles e perguntado um pouco mais sobre seu
protetor. Tinha ficado curioso a respeito da carta final da tirada de Aisha, e quis
saber mais sobre Kevin. Ao conversar mais demoradamente com o Major Bart
Cooper, tinha conduzido o assunto, com muito jeito e sem ser muito direto,
para a atuação pregressa de Kevin e sua experiência anterior. O Major Cooper
tinha lhe dito que Kevin havia sido designado para esta missão em razão,
obviamente, de sua enorme competência e experiência em proteção de
potenciais vítimas. Sim, ele era muito competente, porém tinha um pequeno
defeito. Nas duas últimas missões de Kevin, as pessoas protegidas eram
mulheres e Kevin havia criado vínculos amorosos com ambas. Desta vez, por
garantia, haviam designado a ele para uma missão em que protegesse um
homem. Travis teve que segurar o riso quando escutou isso. Estava explicado o
porquê do Cavaleiro de Copas. E o Cavaleiro de Espadas era seu potencial
assassino em Chicago. Sim, Aisha era muito boa. Sem saber de nada havia
decifrado tudo.
Memphis III
“Então vamos, Travis, ok, você me vence pelo cansaço. Podemos sair um pouco
sim. Concordo, estamos muito confinados aqui e isto está nos fazendo mal. Faz
dois dias que não sai, desde que foi à taróloga. Podemos passear um pouco
pela cidade e à noite jantamos em algum lugar”.
“Que bom que concordou, Kevin. Você pode estar mais acostumado a situações
como esta, você está literalmente de tocaia, mas eu não estou acostumado ao
confinamento. Estou ficando louco já. Preciso ver o dia, preciso tomar ar”.
“Sim, entendo, mas é bom que já vá aceitando que de agora em diante sua
vida terá longos períodos de confinamento. É melhor passarmos em uma
livraria e comprarmos uns livros para você. Você gosta de ler”?
“Não sou de ler muito, mas é um bom momento para começar, não é mesmo”?
“Engraçado... você é um pouco introvertido, meio quieto, sempre me pareceu
mais caseiro. Isto me levaria a crer que gostasse de ler”.
Escapade
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“Acertou quanto à primeira parte, errou quanto à segunda. Sou mesmo mais
quieto, mas prefiro ver filmes. Também me interesso por fotografia e filmagem.
Aliás, foi esse o motivo de eu estar filmando na janela aquele dia em Chicago.”
“Ah, sim, faz sentido. Você já estava na janela ou foi atraído pelo evento”?
“Eu já estava lá. Estava ajustando a câmera e fazendo tomadas com foco na
rua, tentando ajustar a câmera para a pouca luminosidade que havia. Pouca
mas suficiente. Moro no terceiro andar, nem é tão distante da rua. Quando o
episódio começou, já estava tudo preparado, por isso consegui captar a cena
desde o início tão bem. Uma pessoa saiu do prédio em frente, parecia que
aguardava alguém. Logo a seguir surgiu um carro e dele saíram dois indivíduos.
Trajavam uniformes policiais e vieram pegar um pacote que o primeiro homem
lhes forneceu. Nem houve tempo suficiente para entregarem o que tinham que
entregar nem conversar, segundos depois surgiu um outro carro de onde
saíram quatro indivíduos muito mal-encarados, portando metralhadoras,
mataram os três primeiros, pegaram o pacote e foram-se. Eu registrei tudo isso
com muita precisão, foi possível filmar os rostos de todos com bastante
precisão e nitidez. Está gravado mas eu também reconheceria estes indivíduos
se os visse”.
“Pois é Travis, estes quatro indivíduos mal-encarados que você filmou estavam
à paisana mas eram três policiais e um capanga de um político. Tinham ido
roubar de um outro político provas importantes que a polícia tinha conseguido,
que era o morador do prédio que foi morto. Estamos lidando com um grupo de
políticos que conseguiu financiar sua campanha com dinheiro sujo de jogo,
prostituição e tráfico de drogas. Você sabe de tudo isso, não”?
“Não com muitos detalhes”.
“Nem eu conheço os detalhes a fundo, mas acho que na situação em que
estamos não há problema que eu te conte o pouco que sei. Há um político
muito influente na câmara de deputados de Chicago chamado Joshua Stewart.
Esta criatura é suja até a medula óssea. Mas nunca se teve nada concreto que
o incriminasse, mesmo porque ele corrompeu até mesmo grande parte da
polícia de Chicago em seu território. Esta parte da polícia ajuda a abafar as
provas e escândalos. Até que um político do partido contrário, Damian Mason,
conseguiu reunir provas concretas contra Joshua Stewart e estava entregando
a uma parte da polícia não controlada por ele, que conta com um grupo de
advogados muito competentes. Já se estava iniciando um processo judicial
contra Joshua Stewart e o pacote continha provas fundamentais. A informação,
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porém, vazou, dentro da polícia mesmo, e três policiais, junto com um
mandatário de Joshua Stewart foram arrebatar as provas incriminatórias das
mãos do emissário que Damian Mason havia encarregado de entregar as
provas. Isto indica que temos uma iminência parda dentro da polícia, um
traidor, alguém que não suspeitamos, mas que faz transitar as informações.
Agora a situação é outra. Nosso grande trunfo contra Joshua Stewart é você,
seu filme e seu depoimento. Porém, até que possamos utilizar isso no tribunal,
o processo precisa correr um pouco e você precisa ser mantido em segurança.
Esta parte você conhece bem. Joshua Stewart também possui advogados muito
competentes e influentes, que estão fazendo o possível e o impossível, no limite
da sujeira, para retardar ou obstaculizar a justiça. O processo será lento e as
duas facções opostas estão brigando judicialmente com todos os recursos que
possuem, uma embargando os recursos da outra. Tudo isso também envolve a
polícia, que está dividida em dois lados, não declarados, é claro. Some-se a isso
o fato de que não temos certeza, dentro da polícia, sobre quem está do lado de
quem, por isso sua existência e seu paradeiro só são conhecidos de duas
pessoas da máxima segurança. Há ainda a esperança de que recuperemos as
provas que perdemos, mas por ora não temos outra alternativa senão mantê-lo
em segurança”.
Na cabeça de Travis as cartas da Lua, do Diabo e do Cavaleiro de Espadas
estavam claros com este relato. Ele já sabia. O refúgio representado pelos dois
quatros que o circundavam era Memphis e a proteção e o Cavaleiro de Copas
eram Kevin. E ele era o Cavaleiro de Ouros porque possuía uma informação que
interessava a alguém.
“Bem, vamos então? Eu já estou pronto, que tal você se aprontar”?
Travis acatou a ideia e foi tomar seu banho. Para Kevin, a experiência de dar
proteção a um homem era realmente nova. As duas outras testemunhas que
havia protegido antes tinham sido mulheres. Nesses casos, dormiam em
quartos separados e ele nunca participava da intimidade da pessoa protegida.
Ou pelo menos não deveria, mas fato era que nos dois casos acabou por
envolver-se com as duas.
Neste caso tudo era diferente. Estava ali vendo seu custodiado desnudar-se
para tomar banho e não havia tensão sexual ou interesse. Ao observar Travis
tomar seu banho e vestir-se, porém, deu-se conta de algo que não tinha
percebido antes. Apesar de introspectivo, tímido e até meio nerd, Travis não
parecia ser um homem desprovido de encantos. Um rapaz de por volta de 35
Escapade
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anos, bem no estilo irish-american, estatura mediana, bem proporcionado,
cabelos castanhos e corpo bem feito – já beirando o malhado – ele devia
frequentar alguma academia. Seu rosto também tinha feições agradáveis. Por
que motivo então seria este rapaz solitário, com jeito de abandonado? Isto
deveria ser conteúdo dele mesmo, talvez fosse um pouco depressivo, era o que
transparecia. Isto era, porém, uma questão que só poderia ser esclarecida por
uma mulher. Por isso mesmo Kevin teve curiosidade de saber por que motivo
Travis era divorciado, só não sabia como abordar o assunto. Seu jeito durão
acabava criando uma barreira na aproximação com as pessoas.
“Vou colocar um jeans, uma camiseta e um tênis e já vamos Kevin”.
“Ok, estou aqui aguardando”.
Depois de pronto, Travis pegou sua câmera e disse que poderiam ir. Como
Travis era fotógrafo e estava ansioso por passeios externos, haviam combinado
que seu primeiro passeio seria pelo Mud Island River Park, um parque bem
moderno às margens do rio Mississipi. Depois teriam chance de visitar o Museu
do Rio Mississipi na Ilha Mud.
O dia estava claro e Travis aproveitava para bater várias fotos. Enquanto fazia
isso, conversava com Kevin. Primeiro comentou sobre seu hobby de fotografias
e filmes, como tinha desenvolvido esse gosto, acrescentou que já tinha alguns
livros temáticos de fotos publicados e que estava organizando um site com
vários vídeos artísticos.
“Mas isto não é um pouco, digamos, diferente demais do que escolheu como
profissão, Travis? Não vejo onde a medicina veterinária tenha relação com a
fotografia”.
“Pois é, hoje em dia para mim são campos diferentes, mas eu comecei tirando
fotos de animais, este foi o início do meu interesse por fotografia”.
“Entendo. Sua ex-mulher também era veterinária, se me permite a
intromissão”?
“Não, Kyra era advogada”.
“Bem, são profissões bem diferentes e que exigem dedicação diferente. Quero
dizer, ambas demandam muito tempo da vida de cada profissional, mas de
forma diferente”.
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“Tem razão. Aí você chegou no ponto, Kevin. A um dado momento já não
tínhamos mais nada em comum. Ela sempre ocupada com seus clientes e casos
complicados, eu absorto em meus animais e minhas fotos”.
“Ainda mais que suas duas atividades deveriam levar para um comportamento
muito mais introspectivo e menos comunicativo, suponho”.
“Acertou de novo Kevin. Não é à toa que é policial do ramo de investigações.
Realmente, nossos mundos foram se separando, até que ficaram no limite do
insuportável. Não tínhamos mais nada em comum, não conversávamos. Ela
pediu o divórcio e eu aceitei. Estava ruim para mim também”.
“Quanto tempo faz isso”?
“Quatro anos”.
“Não se sente solitário”?
“Às vezes, mas tenho meus hobbies e alguns amigos que me resgatam da
solidão”.
“E por falar em hobbies, de onde vem o interesse por Tarot”?
“Sou um pouco supersticioso, Kevin. Uma vez fui a uma cigana, a convite de
um amigo meu, e esta cigana deu interpretações muito acertadas a respeito da
minha vida e do meu futuro. A partir daí comecei a acreditar em Tarot. É claro
que depende da pessoa que lê. Sempre dou preferência a ciganos, pois eles
parecem ter um dom maior de interpretar o Tarot. Ou seria a tradição e
habilidade passada de geração em geração? Não sei dizer. Fato é que muitas
acertam em cheio, mas eu sempre gosto de testar a pessoa uma primeira vez”.
“E ficou satisfeito esta semana com o que ouviu esta semana da profissional
que consultou”?
Kevin parecia rir-se por dentro de tal inocência pueril de Travis. Quando soltou
a palavra “profissional”, com um certo ar de desdém, deixou transparecer sua
descrença.
Acabaram ficando tanto tempo no parque e no museu que ao final já era hora
de pensarem em comer. Decidiram que deixariam a livraria para outro dia.
Acharam uma lanchonete no caminho de volta para o motel onde estavam
hospedados, comeram e voltaram para dormir.
Escapade
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Memphis IV
O cemitério de Elmwood era impressionante. Um pouco afastado do centro da
cidade, era um passeio que valia a pena. Kevin tinha achado tudo muito bonito,
as estátuas e lápides muito imponentes e belas em meio a um jardim
esplendoroso, mas agora já começava a se cansar. Tinham estado lá por umas
três horas já, Travis queria tirar fotografias do lugar durante o dia e depois
bater exposições dos mesmos lugares à luz do luar, para mostrar o contraste e
fazer um ensaio temático que tivesse um quê de fantasmagórico, ao mesmo
tempo que artístico.
Obviamente tinha sido Travis quem tinha pedido para sair, pois já estavam
presos de novo no motel por dias. Não aguentava mais o confinamento, até a
comida era sempre pedida por delivery. Kevin havia concedido, assim também
passariam por uma livraria, como haviam combinado. Havia uma grande livraria
na Avenida A. W. Willis, perto de outra atração turística da cidade, o Main
Street Trolley. Antes do passeio, Travis tinha comprado dois livros.
Kevin estava mais tranquilo, afinal, não havia por que pensarem que algum de
seus inimigos em Chicago soubesse de alguma coisa. Não saberiam que havia
mais provas contra eles e muito menos que a testemunha estaria refugiada em
Memphis.
Anoitecia. Ao passarem por uma rua iluminada e atraente do centro da cidade,
a caminho de seu motel, Travis e Kevin viram um restaurante muito
interessante e decidiram comer ali. Pela primeira vez em duas semanas iriam
comer comida decente. Entraram e fizeram seus pedidos. Desta vez o assunto
seria Kevin.
“Você também é divorciado, não é Kevin”?
“Sim, sou”.
“Imagino que deva ser difícil dedicar-se a um casamento sendo policial”.
“É, amigão, você pegou no ponto. Tive uma vida difícil, sempre trabalhei muito,
não tinha como estar muito presente. Até que Susan se cansou e foi embora.
Ainda bem que não tínhamos filhos, seria um problema”.
“Faz tempo que se separaram”?
“Pouco mais de cinco anos”.