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ERÊS E HERANÇAS

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Contos

Organizador:Márcio Barbosa

São Paulo - 2012

Quilombhoje

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Organização Geral: Quilombhoje

Coordenação: Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa

Colaboração: Benedita Aparecida Lopes, Cosme Nascimento, Cristina Barbosa, Edson Robson Alves dos Santos, Márcia Luanda, Maria das Dores Fernandes, Marinete Floriano Silva, Nei e Thyko de Souza

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Erês e heranças: contos/ Organizador: Márcio Barbosa. -- São Paulo : Quilombhoje, 2012.

Vários autores. ISBN 978-85-87138-26-2

1. Contos brasileiros – Coletâneas I. Barbosa, Márcio. CDD- 869.9308

Índices para catálogo sistemático:1. Contos: Coletâneas: Literatura brasileira869.9308

Quilombhoje LiteraturaSite: www.quilombhoje.com.brE-mail: [email protected]

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“Você sabeQue o sentimento não trai

Um bom sentimento não trai”

Trecho da música O Erê, do grupo Cidade Negra

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Sumário

09. DéboraGarcia OAnjo19. DircePrado AInfânciadeDaiane

27. FátimaTrinchão ABênção,meuPai

37. JoséLuanga Identidade

41. MárcioBarbosa Espelho

47. MíghianDanae Família

57. ThykodeSouza NasceumaLenda

61. Autores

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Débora Garcia

O ANJO

Inácio era fascinado pelo fogo. Na infância, adorava soltar bombinhas e trazia sempre

consigo uma caixinha de fósforos, pois isso o fazia se sentir mais seguro. Levou muitas bron-cas de sua mãe por essa mania estranha. Ela achava perigoso, Inácio poderia se machucar, mas não adiantava. Cada caixinha jogada fora era imediatamente substituída por uma nova e colocada no bolso, ao alcance das mãos, para o caso de uma necessidade.

Na adolescência, as caixinhas foram tro-cadas por isqueiros, que foram muito úteis. Sempre que precisava se aproximar de alguma garota fumante, a gentileza de acender o cigarro dela rendia bons resultados, ele sempre se dava

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bem! Nessa época Inácio já era considerado o fogueteiro oficial da turma nos dias de festa do bairro. Nas noites frias de julho, acendia fogueira em um terreno baldio que ficava pró-ximo à sua casa e reunia a galera, lá passavam a noite jogando conversa fora. Durante essas conversas, por instantes, vidrava os olhos no fogo, sentia um encantamento inexplicável. Para se aquecer, erguia sobre as chamas as mãos, que ficavam tão próximas ao fogo que seus amigos temiam que ele se queimasse, fe-lizmente isso nunca aconteceu. Era assim noite adentro e Inácio só voltava para casa com o apagar da última brasa.

Essa relação de fascínio e respeito com o fogo levou Inácio para um caminho inevitável... se tornou bombeiro.

Certa vez, Inácio estava de plantão no quartel e conversava com os demais soldados no pátio próximo aos dormitórios. Em seu quarto, a televisão em alto volume anunciava a programação de final de ano. Ao ouvir que seria exibido o filme infantil O Auto de Natal, afastou-se deles e correu apressado em direção à televisão. Parou à porta e lá permaneceu.

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o anjo

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Seus colegas nada entenderam, correram atrás de Inácio para ver o que era anunciado, talvez uma tragédia; mas quando viram aquele anúncio de filme infantil, começaram a rir e a zombar dele...

— Hum! Que bonitinho! Ele quer ver as vaquinhas no presépio... ha ha ha!

Contudo, naquele instante Inácio já não estava mais ali. Ao ver aquele anúncio do filme voltou ao passado, há exatos vinte anos, quando viveu uma situação que mudaria sua vida para sempre.

Tinha então dez anos e cursava a quinta série do ensino fundamental. A professora de artes acabara de exibir o filme O Auto de Na-tal, que conta a história do menino Jesus. Era o segundo semestre e a turma de Inácio teria por tarefa montar, ensaiar e apresentar uma peça sobre O Auto de Natal durante a festa de encerramento do ano letivo.

Em uma bela cena do filme, um anjo se aproxima da manjedoura para proteger o nas-cimento do menino Jesus. Para Inácio, o anjo era tão lindo e perfeito, com suas asas brancas enormes contrastando com o breu da noite,

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que era inesquecível. O anjo tinha uma sere-nidade e um brilho tão envolventes que Inácio desejou ser como o anjo, mesmo que apenas um instante.

Após explicar a proposta da atividade, a professora frisou ser importante a participação de todos os alunos, pois aqueles que não par-ticipassem não receberiam nota. Então, a pro-fessora se virou para a lousa e começou a listar os personagens, ao lado de cada um indicou o nome do aluno que o representaria.

Inácio aguardava ansioso pela distribuição dos papéis, levantou a mão eufórico e se ofe-receu para ser o anjo. Ele foi o primeiro a se manifestar.

— Eu, professora! Quero ser o anjo!Naquele instante a professora parou de es-

crever, balançou a cabeça fingindo-se desenten-dida, permaneceu na frente da lousa ocultando o que estava escrevendo. Ao terminar a divisão de todos os papéis, voltou para sua mesa e prosseguiu com a aula.

— Então, crianças, vou entregar a vocês o roteiro da peça...

Nessa hora Inácio não se conteve:

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— Professora, a senhora errou! Eu quero ser o anjo e não o pastor. Falei primeiro!

A professora respondeu, titubeando:— Ah, é... anjo! Você?— Sim, eu quero fazer o anjo.— Mas você não pode, Inácio!— Não? Por quê?— Ora, você não viu no filme como é o

anjo? Você é diferente dele! O anjo é branco e você... você é negro!

Atentamente a turma observou o diálogo e diante do que disse a professora foram só gar-galhadas. A chacota ficou instaurada. Em meio ao barulho, um dos alunos gritou:

— Anjo queimado! Em seguida, toda a sala começou a gritar

em coro:— Anjo queimado! Anjo queimado! Anjo

queimado!...Inácio ficou enfurecido. Aproximou-se da

professora e a encarou olhando em seus olhos. Enquanto todos rolavam de rir, ele chutou a canela dela e saiu correndo da sala... pegou sua caixinha de fósforos e ateou fogo nos cestos de lixo que ficavam na entrada de cada sala de

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aula. No final de sua corrida incendiária, no imenso corredor daquele prédio antigo, Inácio derrapou e caiu ao chão impecavelmente lus-trado e escorregadio. Caído, olhou para trás e viu o corredor em chamas, imediatamente se imaginou em uma cena de filme, como aquelas em que o herói passa por todos os perigos, salva a humanidade e ganha uma recompensa... e o cenário ao fundo pegando fogo.

Inácio ofegante e eufórico, por um instante, se sentiu poderoso e vingado, respirou fundo e sustentou por minutos um grito forte, fazen-do com que todos os que corriam atordoados apagando o fogo o ouvissem:

— Eu sou o anjoooooooooooo!Todos pararam assustados e através da

fumaça olharam para Inácio, que parecia estar em transe, fora de si. Nesse momento, Inácio sentiu que seus braços se abriram feito asas, mas quando iria alçar voo alguém o deteve. Era a diretora da escola e, com um olhar fumegante, agarrou Inácio pelo braço e o arrastou para a Diretoria.

De cabeça baixa, atordoado, sentado no banco, Inácio ouvia o som abafado do salto da

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diretora batendo no chão, ela andava furiosa de um lado para outro da sala, exigia uma expli-cação ao mesmo tempo em que o repreendia.

De repente, a mãe de Inácio entrou na sala, imediatamente a diretora foi dizendo, plena de razão:

— Dona Izabel, o seu filho é indisciplinado!Ao ouvir isso Inácio pensou, indignado:“Que mentirosa! Poxa, tô sempre na minha,

faço a lição, mas... não sou obrigado a aguentar quieto ser zoado e ser feito de bobo na frente da sala inteira. A professora me tirou!”

Depois de ouvir as alegações da diretora, Dona Izabel, inquieta, perguntou:

— Mas o que aconteceu? Eu nunca recebi reclamações sobre o comportamento do meu filho!

A diretora:— Sim, é que procuramos resolver nossos

problemas internamente, mas desta vez Inácio ultrapassou os limites, e sem motivo!

Então, a diretora narrou o que havia acon-tecido, descreveu com detalhes, acentuando a gravidade dos fatos, persuadindo a mãe a cas-tigar o filho. Após o relato, a diretora aguardou