el ura lxo versus - abem

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revista da numero 5 abem setembro de 2000 el ura lXO versus Ricardo Goldemberg Resumo - 0 trabalho apresenta aspectos pedag6gicos da habilidade de ler e cantar uma melodia esc rita a primeira vista, sem 0 auxflio de urn instrumento musical. Descreve os prim6rdios dos sistemas de solmiza¢o e a sua evoluyao. atentando para as e dicotomia entre dois sistemas modemos. conhecidos por"d6 fixo· e "dO mOver. Os dois sistemas sao comparados, e sugere-se que 0 sistema m6vel de solmizayao e mais apropriado. quando sa tern como objetivo uma educayao musical ampla e acesslvel a todos, ao passo que 0 sistema fixe sa apresenta como uma ferramenta de trabalho mais consistente, em nlveis avanc;:ados de formac;:ao musical. Urn dos objetivos priorita- rios de uma educagao musical ampla, dentro de uma perspec- tiva tradicional, e 0 ensino da leitura musical na sua forma can- tada. A habilidade de ler e can- tar melodias a partir da sua for- ma escrita e de imensa impor- tancia, na formagao do musicis- ta, e reveladora de urn alto grau de compreensao auditiva. Trata- se de uma atividade psicologi- camente complexa, visto que e necessario, primeiro, conceber e formar uma impressao mental do som e, depois, emiti-Io de ma- neira correta. o estudo sistematico da leitura cantada e sua decorren- te problematica pedagogica tern acompanhado a historia da mu- sica ocidental. Metodos diferen- tes tern side propostos desde Guido D' Arezzo, monge benedi- tino do seculo XI, mas muita con- troversia sobrevive ainda em nossos dias. Apesar das diferen- tes metodologias, urn ponto co- mum e a utilizagao de recursos mnemonicos, em que cada slm- bolo musical e associado a uma determinada altura ou grau da escala. 0 objetivo e facilitar 0 processo de memorizagao, e a sua importancia ja era reconhe- cida pelos gregos antigos. Com 0 desenvolvimento do canto gregoriano e a decor- rente utilizagao de urn sistema de notagao musical baseado em neumas, a tradigao musical do Ocidente deixou de ser oral. Foi com 0 objetivo de facilitar a lei- tura musical da epoca que 0 monge D' Arezzo propos a utili- za9ao de uma maneira propria de designar os graus da esca- la. Dessa forma, criou um siste- ma de solmizagao que, com al- gumas modifica90es, sobrevive 7

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Page 1: el ura lXO versus - ABEM

revista da numero 5

abem setembro de 2000

•el ura

•lXO versus

Ricardo Goldemberg

Resumo - 0 trabalho apresenta aspectos pedag6gicos da habilidade de ler e cantaruma melodia escrita aprimeira vista, sem 0 auxflio de urn instrumento musical. Descreveos prim6rdios dos sistemas de solmiza¢o e a sua evoluyao. atentando para as difere~edicotomia entre dois sistemas modemos. conhecidos por"d6 fixo· e "dO mOver. Os doissistemas sao comparados, e sugere-se que 0 sistema m6vel de solmizayao e maisapropriado. quando sa tern como objetivo uma educayao musical ampla e acesslvel atodos, ao passo que 0 sistema fixe sa apresenta como uma ferramenta de trabalho maisconsistente, em nlveis avanc;:ados de formac;:ao musical.

Urn dos objetivos priorita­rios de uma educagao musicalampla, dentro de uma perspec­tiva tradicional, e 0 ensino daleitura musical na sua forma can­tada. A habilidade de ler e can­tar melodias a partir da sua for­ma escrita e de imensa impor­tancia, na formagao do musicis­ta, e reveladora de urn alto graude compreensao auditiva. Trata­se de uma atividade psicologi­camente complexa, visto que enecessario, primeiro, conceber eformar uma impressao mental dosom e, depois, emiti-Io de ma­neira correta.

o estudo sistematico daleitura cantada e sua decorren­te problematica pedagogica ternacompanhado a historia da mu­sica ocidental. Metodos diferen­tes tern side propostos desdeGuido D'Arezzo, monge benedi­tino do seculo XI, mas muita con­troversia sobrevive ainda emnossos dias. Apesar das diferen­tes metodologias, urn ponto co­mum e a utilizagao de recursosmnemonicos, em que cada slm­bolo musical e associado a umadeterminada altura ou grau daescala. 0 objetivo e facilitar 0

processo de memorizagao, e a

sua importancia ja era reconhe­cida pelos gregos antigos.

Com 0 desenvolvimentodo canto gregoriano e a decor­rente utilizagao de urn sistemade notagao musical baseado emneumas, a tradigao musical doOcidente deixou de ser oral. Foicom 0 objetivo de facilitar a lei­tura musical da epoca que 0

monge D'Arezzo propos a utili­za9ao de uma maneira propriade designar os graus da esca­la. Dessa forma, criou um siste­ma de solmizagao que, com al­gumas modifica90es, sobrevive

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Page 2: el ura lXO versus - ABEM

. numero 5 revista dasetembro de 2000 abem

tum,-IIre -•I- bi -

"Quem querque possa, pe/a pra-tica, distinguir com c/areza as notas ini- I_ mu - Ii tu - 0 rum- -ciais de cada uma destas seis Iinhas, de •forma tal que possa come9ar com qua/-quer linha esco/hida ao acaso, estara emposi9ao de cantar faci/mente estas seis

•notas todas as vezes que encontra-Ias. " Sol - ve pol - lu - n,

( D'Arezzo, in Williams, 1903)

ate os nossos dias. Tomandocomo base 0 hexacorde, um gru- -po de seis notas diatonicas com U, 'que la •- ant - .XIS,.

um unico intervalo de semitom, •

e observando a sua ocorrencianas notas iniciais de cada ver- -&

so de umconhecido hino a Sao rll - so - nil - re fi - bris.•

Joao Batista, D'Arezzo proposa utiliza<;ao das sflabas corres-pondentes ("ut, re, mi, fa, sol,

0 ....Aii - ell ges - to - runt

la") para compor 0 seu sistema. •

SlIne - te

• •

-Jo - hun - nes.

Fig. 1 - Hino a Sao Joao Batista

sol la

sol Ja

sol la

mi fa

mi· fa

mi faul re

ut re

4-ut . re

Fig.2 - Hexacordes em C, G e F

durum

moUe

naturale

o sistema completo utili­zava tres hexacordes, todoscom a mesma estrutura interva­lar (tom, tom, tom, semitom, tom,tom), mas com notas iniciais di­ferentes, ,Nota de infcio, nessecaso, deve ser estendida comouma altura musical no sentidoabsoluto, em que as notas es­tao associadas a frequenciassonoras fixas. Geralmente, essaqualidade e expressa pela utili­za<;ao das letras A, B, C, D, E, Fe G. Na epoca em questao, oshexacordes utilizados eram 0

"naturale", que se iniciava em C,o "durum", come<;ando em G, eo "moHe", com infcio em F, esteultimo prevendo a existencia deB bemo!.

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revista da

abem

numero 5setembro de 2000

No caso de uma melodiaestender-se alsm da extensaonormal do hexacorde, utilizava-

se um processo de transi<;:ao co-nhecido por muta<;:ao. Nessecaso, uma determinada nota fun­ciona como pivo; isto S, chega­se a ela como pertencente a umdeterminado hexacorde e parte­se da nota pivo como pertencen­te ao infcio de um outro hexa­corde. Observemos os seguin­tes exemplos:

ut

ut

-#ut

re

re

re

mi fa

mi

mi

sol = ut

fa sol

fa sol

Fig.3 -Muta9ao

re ml fa sol

,

la=re mi re

la=ml fa sol

Dessa forma, 0 sistemaatendia nao s6 as demandas dosistema modal da spoca(heptacordal), como se estendiapor toda a tessitura vocal.

durum naturale molle dur..un naturale molle dttrurn

.laE

.

D la sol

C sol fa•

B lllJ.

Bb fala •

A ffil. re

G sol re ut

F fa utla •

E ffiJ.

D la sol re.

C sol fa ut•

B IDJ.

Bb fala •

A IDl. re

G sol re ut

F fa utla •E mJ.

D sol re

C fa utB

•m:L

• re i....I

G ut

Fig.4 - Sistema de Hexacordes

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numero 5 revista dasetembro de 2000 abem

o intervalo de semitom era sem­pre chamado de "mi-fa"; tratava­se de um importante ponto de re­ferencia metodol6gico na aplica­gao desse sistema de hexacor­des, qualquer que fosse a esca­la modal.

"Guido era um professor praticoe mestre de coro com a intengao de en­contrar um sistema acessivel de leituracantada. Os modos dizem respeito aomodo de ser em musica, hexacordes asua execugao. Os modos, com a posi­gao variavel do semitom, nao possuemum marco fixo; ele queria um mecanis­mo unico que pudesse ser aplicado emqualquer que Fosse 0 modo, e 0 encon­trou no hexacorde." (Scholes, 1943,

p.423)

As seis sflabas propostaspor Guido nao foram as unicasconhecidas na sua epoca, masforam elas que se tornaram am­plamente difundidas pela Euro­pa, por aproximadamente cincoseculos. No final deste perfodo,outros hexacordes passaram aser utilizados, mas, finalmente,

o sistema na sua forma originalentrou em declfnio, devido a gra­dativa ineficacia com relagao asnovas complexidades surgidasno processo musical.

Inumeras adaptagoes fo­ram propostas, e algumas des­sas se incorporaram de formaefetiva. A transigao do perfodomodal para 0 tonal tornou impe­rativa uma modificagao que uti­lizasse a oitava completa. Umasetima sflaba - "si" - foi adicio­nada, transformando 0 sistemaem heptacordal. Subsequente­mente, a sflaba "ut" foi substitu­fda por "d6" (com excegao daFranga), de entoayao mais facil.

o princfpio mais importan­te do sistema de Guido e dosseus sucessores e 0 da mobili­dade, ou seja, da relatividadedas sflabas, com respeito as fre­quencias sonoras fixas. Fala-seem sistema "m6ve!" ou "relativo",

quando 0 modo de designar asnotas musicais expressa de for­ma prioritaria as fungoes mel6­dicas da escala.

Em contrapartida aos sistemasm6veis de solmizagao, musicosfranceses criaram, no infcio doseculo XVII, 0 sistema fixe deleitura cantada, na qual utiliza­vam as mesmas sflabas propos­tas por Guido D'Arezzo para sereferir a frequElncias sonoras fi­xas, ou seja: d6 (ut) = C, re = D,mi = E, fa = F, sol = G, 113. = Ae si= B. A forma pela qual os musi­cos treinados nesse sistema setornam proficientes em leituramusical e, sobretudo, a intensarepetigao dos sons de cada in­tervalo, independentemente dassflabas utilizadas. Por exemplo,"d6-la" e utilizado tanto para C­A como para C-A sustenido (#),C-A bemol (b), C#-A, C#-A#, C#­Ab, Cb-A, Cb-A# e Cb-Ab, repre­sentando, portanto, varios tiposde intervalos diferentes.

oM.Omen6Aum6M.

~..._~.._._§.~'~'I -~.~.itT:'~*~oJ ..,. If'''''

6 mendo-Ia

6~m 6.t\um 6dupl.-Aum 6M.

Fig.5 - DO-LA no sistema fixo de leitura cantada

Hillbrand (1924, p.2) con­trapoe os dois sistemas, quan­do afirma que, com respeito aosistema m6vel, "a maior partedos professores de voz insistemque e a posigao do intervalo naescala e nao a qualidade do in­tervalo que conta", ao passoque, no sistema fixo, "cada umdos intervalos tem uma qualida­de inerente pr6pria e eesta qua­lidade que importa e nao a suaposic;ao na escala".

Da mesma forma, WilliApel (1962) diferencia 0 sistemam6vel (d6 m6vel) do sistema fixe(d6 fixe) da seguinte forma:

"06 m6vel - em geral, qualquersistema de solmizagao planejado de talforma que as sflabas possam ser utili­zadas em transposigao para qualquer to­nalidade, em contraposigao ao d6 fixo,no qual as 'silabas correspondem a fre­qUfmcias invariaveis para cada nota."(Apel, 1962, p. 547)

Em nossos dias, 0 siste­ma de solmizac;ao m6vel de mai­or impacto, descendente da pro­posta original de GuidoD'Arezzo, ederivado do sistemade tonica sol-fa, que foi desen­volvido por John Curwen na se­gunda metade do seculo XIX. 0sistema notacional original, noqual nao se utilizava 0 pentagra­ma, era pouco realfstico e foiposteriormente abandonado.Entretanto, a adoc;ao de sflabas

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revista da

abemnumero 5

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do

adicionais para indicar as alte­ragoes cromaticas mostrou-seum recurso eficaz para 0 trata­mento das tendencias mel6dicase, dessa forma, foi adotado porZoltan Kodaly em seu conheci­do metodo de educagao musical.Alteragoes cromaticas ascen­dentes receberam uma sonori­dade mais "brilhante", ao passeque alteragoes cromaticas des­cendentes receberam uma so­noridade mais "escura", confor­me explicitado a seguir:

Fig.6 - Sflabas do Sistema de Solmiza98.0 M6vel

J. S. Bach

i'G 'i

do movel: do sol ml

do fi,o: sol re 51

re do mi re do ti re sol

I.. sol 51 In sol f. In re

do sol re sui rni re do re sol

sol re la re 51 la solla re

do re6vel: do sol do ro sol re ml ro do re SQI. sol fa ml re do ml re do ti re do

dolb"': sol ro sol 10 re 1ft sl la sol In re ro do sl I. sol sl I. sol fa la sol

Grieg

Com relagao ao sistemafixe de leitura cantada, a formaoriginal proposta pelos musicosfranceses tem side sempreutilizada, praticamente semmudangas de natureza estru­tural.

Alguns exemplos dorepert6rio tradicional saoindicativos da maneira como saoaplicados os dois sistemas:

do re6vel: sol 1m re do re ml

do fiE: 51 sol fa !Ill fa sol

do mlvel: sol ml sol I. ra ladO fIXo: 51 sol 5i do la do

sol mi re do re mi re nn51 sol fa ml f. sol li1 sol

wi ITll re dosi sol fa ID1

Fig.? - Exemplos do Repert6rio Tradicional; Sistema m6vel versus sistema fixo

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numero 5setembro de 2000

revista daabem

A polemica suscitada pelautilizayao do sistema movel desolmizayao versus 0 sistema fixetem side objeto de continua con­troversia entre educadores mu­sicais. Em diversas ocasi6es, osdois sistemas tem side objeto decomparayao e as respectivasvantagens (e desvantagens)apresentadas.

as defensores do sistemafixe argumentam que e neces-

,. . . ,sarlo memorlzar um numeromuito grande de sflabas no sis­tema moveI de solmizayao (17sflabas), que musicistas tendema se tomar desatentos apresen­ya de sustenidos e· bemois natonalidade, e que 0 sistemamovel e inapropriado para utili­zayao em musica atonal. Poroutro lado, os defensores do sis­tema movel argumentam que 0

sistema fixe requer a completaseparayao entre a analise fun­cional e a leitura cantada, que 0

ato de transpor e muito compli­cado nesse sistema, e que pas­sagens modulatorias podempassar desapercebidas pelosmusicistas. .

Um fator agravante nacontroversia e que existem me-

Referencias Bibliograficas

todos diferentes dentro dos re­ferenciais de cada um dos sis­temas descritos acima. Porexemplo, esse e 0 caso da utili­zayao de numerais, que e umsistema movel, ou 0 caso da uti­lizayao de letra (letter-names),que e um sistema fixo.

De uma forma bastantegenerica, os Estados Unidos ea Gra-Bretanha adotaram 0 sis­tema movel de solmizayao, en­quanta os palses da EuropaContinental adotaram 0 sistemafixo. No Brasil, apesar da exis­tencia de episodios isolados nosentido de promover a utilizayaode sistemas moveis, a tradiyaoeuropeia e dominante.

Apesar de essa polemicaa respeito da utilizagao dos doissistemas de leitura cantada es­tar longe de ser resolvida, umasoluyao conciliatoria e aquelaque parte do princlpio de que osobjetivos para a aplicayao decada um desses sistemas dife­reo Roe (1970, p.158), ao tratarda leitura musical em atividadescorais, afirma que 0 sistema fixeeuma ferramenta excelente parao aprendizado da leitura canta­da, mas que a sua aplicabilida-

de no sistema escolar e duvido­sa. a sistema movel de solmi­zaQao aparenta ser mais apro­priado, quando se tem comoobjetivo uma educayao musicalampla e acesslvel a todos. Poroutro lado, e posslvel que asbases do sistema fixe - ou seja,a memorizayao dos sons dosintervalos - ofereyam uma ferra­menta de trabalho indispensavelem nlveis mais avanyados deformayao musical.

A leitura cantada e umaarea do conhecimento musicalcarente de entendimento, por­que aquilo que ocorre na men­te, quando se desempenha ta­.refas musicais especlficas, ain­da nao foi c1aramente determi­nado. Independentemente dometodo de leitura musical utili­zado, 0 desafio de ler e cantarmelodias a partir da sua formaescrita e um processo complica­do; essa dificuldade e uma dasprincipais raz6es pelas quais 0

objetivo basico de uma educa­yao musical tradicional, que e 0

de produzir uma sociedade mu­sicalmente literata, tem se mos­trado praticamente imposslvelde ser alcanyado em diversassociedades.

APEL, Willi (Ed.). HaNard dictionary of music. Cambridge, Harvard University Press,1962.

BUCHANAN, Walter. Comparison of fixed and movable solfege in teaching sight singing from staff. (Tese de doutorado). Universidadede Michigan, 1946.

.

HILLBRAND, Earl K. Measuring ability in sight singing. Ann Arbor, Edward Brothers,1924.

MORE, Bruce. Sight singing and ear training at the university level. The Choral Journal, pp.9-21 , margo de 1995.

PHILIPS, Kenneth H. Sight singing: where have we been? where are we going?, The Choral Journal, pp. 11-17, fevereiro de 1984.

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SCHOLES, Percy A (Ed.). The Oxford companion to music. New York, Oxford University Press, 1943.

WILLIAMS, Charles FA. The story of notation. London, Walter Scott, 1903.

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