abem - música na educação básica

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Associao Brasileira de Educao Musical - ABEM ISSN 2175 3172

MSICA

na educao bsica

Ano 1

n. 1

v. 1

outubro de 2009

MSICA na educao bsicaASSOCIAO BRASILEIRA DE EDUCAO MUSICAL ABEM

DIRETORIA NACIONAL Presidente: Vice-Presidente: Profa. Presidente de Honra: Secretrio: Segunda secretria: Tesoureira: Segunda Tesoureira:

Prof. Dr. Srgio Luiz Ferreira de Figueiredo Dra. Cristina Grossi Profa. Dra. Jusamara Souza Prof. Dr. Jos Nunes Fernandes Profa. Dra. Cristina Rolim Wolffenbttel Profa. Dra. Regina Cajazeira Profa. Ms. Flvia Maria Chiara Candusso de Santana

UDESC/SC UnB/DF UFRGS/RS UNIRIO/RJ UERGS/RS UFAL/AL UFBA/BA

CONSELHO EDITORIAL Presidente: Profa. Dra. Maria Ceclia de Arajo Torres Editora: Profa. Dra. Cludia Ribeiro Bellochio Membros do Conselho Editorial: Profa. Dra. Maura Penna Profa. Dra. Cssia Virgnia Coelho de Souza Profa. Dra. Lilia Neves Editora Convidada: Profa. Dra. Luciane Wilke Freitas Garbosa

IPA/RS UFSM/RS

UEPB/PB UFMT/MT UFU/MG UFSM/RS

Msica na educao bsica. Associao Brasileira de Educao Musical. - v.1, n.1 (anual 2009 - ____). - Porto Alegre, 2009 Incio out. 2009. 1. Educao musical 2. Educao 3. Msica ISSN 2175 3172 CDU: 37.015:78Ficha catalogrfica elaborada por Luiz Marchiotti Fernandes CRB 10/1160 Biblioteca Setorial do Centro de Cincias Rurais/UFSM

Projeto grfico: Airton Cattani Diagramao: Marca Visual Editora e Projetos Culturais Reviso: Trema Assessoria Editorial Ilustrao da capa: Aula de msica Fotolitos, impresso e acabamento: Mediao Indstria Grfica Ltda Tiragem: 600 exemplares Periodicidade: Anual

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SumrioApresentao Editorial 5 7 11 24

A barca virou :o jogo musical das crianasTeca Alencar de Brito

Sozinha eu no dano, no canto, no tocoCeclia Cavalieri Frana

Cai, cai balo Entre a formao e as prticas musicais em sala de aula: discutindo algumas questes com professoras no especialistas em msicaCludia Ribeiro Bellochio Srgio Luiz Ferreira de Figueiredo

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Maneiras de ouvir msica: uma questo para a educao musical com jovensJusamara Souza Maria Ceclia de Arajo Torres

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Prticas para o ensino da msica nas escolas de educao bsicaLuis Ricardo Silva Queiroz Vanildo Mousinho Marinho

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Fazendo rap na escolaVania Malagutti Fialho Juciane Araldi

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Coro juvenil nas escolas: sonho ou possibilidade?Patricia Costa

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Autores Orientaes aos colaboradores

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ContentsA barca virou: the musical game of the childrenTeca Alencar de Brito

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Alone I cannot dance, I cannot sing, I cannot playCeclia Cavalieri Frana

Cai, cai balo betwwen the preparation and musical practice in the classroom: discussing some issues with generalist teachersCludia Ribeiro Bellochio Srgio Luiz Ferreira de Figueiredo

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Ways of listening music: a question in music education with youthsJusamara Souza Maria Ceclia de Arajo Torres

46

Pedagogical practices for music teaching in the brazilian basic educationLuis Ricardo Silva Queiroz Vanildo Mousinho Marinho

60

Rap at schoolVania Malagutti Fialho Juciane Araldi

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Youth choir in school: dream or possibility?Patricia Costa

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ApresentaoA Associao Brasileira de Educao Musical concretiza mais uma de suas metas, a publicao da revista Msica na Educao Bsica, consolidando uma ao proposta pela gesto 2007-2009. A publicao tem como objetivo principal produzir material que possa ser referncia para o professor que atua na educao bsica nos diversos nveis: educao infantil, ensino fundamental e ensino mdio. Msica na Educao Bsica oportuna na medida em que temos neste momento uma nova legislao que inclui a msica como contedo obrigatrio na escola brasileira (Lei 11.769/2008). Assim, a Abem se manifesta concretamente com relao aos materiais que podero ser teis para o desenvolvimento de uma educao musical nacional, plural em sua essncia, diversificada em sua aplicao e motivadora para a construo de metodologias adequadas aos diversos contextos brasileiros. Para a concretizao desta publicao contamos com a colaborao da professora Dra. Luciane Wilke Freitas Garbosa, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), que aceitou a tarefa de atuar como editora do primeiro nmero da revista. A edio conta com a participao de educadores musicais convidados que oferecem textos que tratam da educao musical para diferentes nveis escolares. Com esta publicao a Abem se manifesta mais uma vez em favor da educao musical, contribuindo efetivamente para que o ensino de msica se torne acessvel na escola brasileira com qualidade e relevncia. Assim vamos tornando a Abem cada vez mais forte! Srgio Luiz Ferreira de Figueiredo Presidente da Abem Gesto 2007-2009

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EditorialNeste ano de 2009, em que a Associao Brasileira de Educao Musical completa 18 anos, temos o prazer de lanar a revista Msica na Educao Bsica, cujo propsito oferecer um material bibliogrfico acessvel para aqueles que atuam na educao bsica, incluindo professores especialistas em msica e pedagogos. A publicao tambm dirigida para estudantes, futuros professores, que encontraro reflexes e sugestes de trabalhos prticos que iro ampliar sua formao e possibilidades de ao em educao musical, atingindo um pblico leitor da mxima relevncia para a rea. A ideia de produzirmos uma nova revista, que atendesse a demanda da escola de educao bsica, um projeto que vem sendo elaborado h alguns anos e que agora, em 2009, se concretiza. Durante o XVII Encontro Nacional da Abem, em 2008, foi possvel discutir e delinear esta nova publicao. Assim, pautada pelo compromisso poltico da Associao Brasileira de Educao Musical com a educao bsica brasileira e pelo desejo de fomentar dilogos que reflitam as prticas plurais da educao musical, Msica na Educao Bsica chega ao seu primeiro nmero. Lanada em um momento privilegiado da histria da educao musical brasileira, em que temos a aprovao da Lei 11.769, que torna o ensino de msica componente curricular obrigatrio nas escolas de educao bsica, a revista Msica na Educao Bsica vem atender a novas demandas da rea que comeam a surgir. A Abem, enquanto associao, consolida-se como espao de produo e circulao de conhecimentos atravs de suas publicaes, com revistas peridicas e anais de eventos regionais e nacionais.

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Para que esse primeiro nmero existisse foram convidados professores e pesquisadores que tm atuado na formao de professores para a educao bsica, scios da Abem, e que representam vrios estados do Brasil. Podemos afirmar que esses trabalhos apontam para formas de pensar a educao musical na educao bsica a partir de vrios lugares, tempos, espaos, experincias docentes e nveis de escolarizao. Assim, abrindo esta edio, Teca Alencar de Brito, professora da Universidade de So Paulo e idealizadora da Teca Oficina de Msica, com o artigo A barca virou: o jogo musical das crianas, apresenta, atravs da brincadeira musical portuguesa A barca virou, caminhos para prticas criativas e reflexivas na rea, dirigidas a crianas de trs a seis anos. O texto construdo a partir do pensamento musical da criana e do seu fazer, com sugestes de atividades envolvendo improvisao, criao, construo de instrumentos e registro grfico. Fantasia, imaginao, criatividade, explorao, descoberta, so alguns dos elementos apontados ao longo do artigo para o trabalho dos educadores musicais, os quais precisam escutar, dispostos a abrir caminhos, a caminhar juntos, a brincar e a chamar a felicidade, enfim. Ceclia Cavalieri Frana, da Universidade Federal de Minas Gerais, com o artigo Sozinha eu no dano, no canto, no toco, reflete acerca da superao de um modelo fragmentrio de educao musical, apresentando fundamentos para uma abordagem rizomtica da rea, envolvendo materiais sonoros, carter expressivo e forma, catalisados pela integrao das modalidades de composio, apreciao e performance. As reflexes trazidas pela autora partem de elementos bsicos da aprendizagem, a ludicidade, o prazer, a fantasia e a imaginao, sem deixar de vincul-los realidade dos alunos. Por meio de atividades que partem da prpria msica, envolvendo a explorao expressiva e criativa de seus elementos constituintes, a autora aponta caminhos para uma realizao consistente e dinmica de uma aula de msica, tendo como base o modelo C(L)A(S)P de Keith Swanwick. O texto Cai, cai balo... Entre a formao e as prticas musicais em sala de aula: discutindo algumas questes com professoras no especialistas em msica, de Cludia Ribeiro Bellochio, da Universidade Federal de Santa Maria, e Srgio Luiz Ferreira de Figueiredo, da Universidade do Estado de Santa Catarina, oferece reflexes voltadas formao e docncia em msica realizada por professores pedagogos, no especialistas em msica mas especialistas no desenvolvimento de crianas. Os autores discutem acerca da carncia em termos de formao musical ofertada em cursos de Pedagogia, bem como do potencial de trabalho desses profissionais. Ao final, os autores apresentam possibilidades para a aula de msica, nos espaos da educao infantil e anos iniciais, a partir

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da cano Cai, cai balo, mobilizando atividades que envolvem as dimenses de executar, ouvir e compor. O texto Maneiras de ouvir msica: uma questo para a educao musical com jovens, de Jusamara Souza, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e Maria Ceclia de Arajo Torres, do Centro Universitrio Metodista/IPA, focaliza a atividade de audio como parte integrante da educao musical, constituindo-se em elemento primordial de diferentes modelos pedaggicos. As autoras discorrem sobre os conceitos de ouvir e de escuta musical e sobre a relevncia da atividade para a sociedade contempornea. Alm disso, so abordados os diferentes tipos de ouvir musical dos jovens e os meios utilizados para sua audio e compartilhamento. As autoras apontam para a msica veiculada pelos meios eletrnicos, com os ciberespaos marcados pela presena dos jovens, pontuando sobre aspectos didticos e metodolgicos da atividade em sala de aula. Ao longo do texto, so apresentas propostas prticas para a educao musical a partir das diferentes formas do ouvir musical dos e com os jovens. Luis Ricardo Silva Queiroz e Vanildo Mousinho Marinho, da Universidade Federal da Paraba, no trabalho Prticas para o ensino da msica nas escolas de educao bsica, apresentam reflexes sobre a realidade das escolas de educao bsica, a presena da msica nessas escolas, alm de algumas perspectivas prticas para o trabalho na rea. As propostas e reflexes trazidas pelos autores so aliceradas em pesquisas e experincias de formao continuada, propiciando uma aproximao com esse universo. O texto apresenta um panorama amplo de possibilidades para a prtica do professor em sala de aula, abrangendo aes que mesclam aspectos diversos do fenmeno sonoro a mltiplas formas de percepo, criao e interpretao musical. No penltimo texto que compe esta publicao, Fazendo rap na escola, as autoras Vania Malagutti Fialho e Juciane Araldi, da Universidade Estadual de Maring, apresentam o rap como proposta de prtica musical escolar e de interao da escola com as manifestaes musicais juvenis. A partir dos princpios que fundamentam o movimento hip hop, as autoras propem encaminhamentos para a composio de um rap, com a criao de letras e bases por meio de sons vocais, corporais e eletroeletrnicos. A linguagem utilizada pelas autoras por vezes se desloca dos professores para os adolescentes, conferindo leveza, mobilidade e dialogicidade na estruturao do trabalho. Finalizamos esta primeira publicao da revista Msica na Educao Bsica com um texto voltado prtica coral escolar, tendo em vista a importncia que o canto adquire no espao da escola: Coro juvenil nas escolas: sonho ou pos-

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sibilidade? Assinado por Patrcia Costa, vinculada aos Colgios So Vicente de Paulo e Cruzeiro, e Fundao Pr-Saber, o artigo busca incentivar professores de msica e regentes corais a refletirem sobre o coro juvenil como possvel instrumento de musicalizao nas escolas de ensino mdio. O texto construdo a partir de experincias da autora frente a coros escolares, sendo abordados temas como relaes do trabalho coral com a proposta da escola, ensaios, componentes do grupo, avaliao vocal, espao fsico, divulgao da atividade, dentre outros. A autora detalha elementos intrnsecos atividade coral, apresentando estratgias para a formao e manuteno de grupos, cuidados com o repertrio, bem como recursos facilitadores para os ensaios iniciais. Fazer Msica na Educao Bsica, no sentido mais concreto da expresso, foi um novo desafio. No entanto, a partir do trabalho coletivo, que vem marcando a histria da Abem enquanto associao nacional, percebemos a riqueza e o potencial desse novo espao de reflexes, destinado a professores, estudantes e pesquisadores. Com a colaborao de professores, precisamente a pluralidade de espaos, prticas e msicas que desejamos traduzir nestas pginas. Luciane Wilke Freitas Garbosa Editora Convidada Srgio Luiz Ferreira de Figueiredo Presidente da ABEM

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A barca virou : o jogo musical das crianasTeca Alencar de BritoUniversidade de So Paulo (USP) [email protected]

Resumo. Considerando caractersticas prprias s relaes das crianas com o fazer musical, bem como o carter ldico que o norteia, o artigo apresentar atividades que envolvem improvisao, criao, construo de instrumentos musicais e registro grfico, a partir de uma brincadeira musical portuguesa. A barca virou, uma roda com nomes, o fio condutor do trabalho, que objetiva apontar caminhos e possibilidades para o desenvolvimento de prticas musicais criativas e reflexivas no contexto da educao musical com crianas entre trs e seis anos. Palavras-chave: crianas; jogo musical; educao musical.

Abstract. Considering characteristic about the relations of the children with the musical experiences, as well as, the playful character that guides it, the article will present activities that, from a Portuguese musical game, involve improvisation, creation, construction of musical instruments and graphical register. Taking as conducting wire A barca virou, a Portuguese musical game, the text goals to aim ways and possibilities with respect to the development of creative and reflexive musical practices, on the music education of children between three and six years. Keywords: children; music game; music education.

BRITO, Teca Alencar de. A barca virou: o jogo musical das crianas. Msica na educao bsica. Porto Alegre, v. 1, n. 1, outubro de 2009. ISSN 2175 3172

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MSICA na educao bsicaIntroduoA barca virouTradicional portuguesa

A barca virou, Deix-la virar A menina Lucia No sabe remar

Esse brinquedo musical portugus como tantos que circulam pelo mundo integra as crianas em torno da msica enquanto fortalece vnculos que devem nortear as relaes humanas em todos os espaos de convivncia, incluindo os da educao. Brincando as crianas apreendem aspectos musicais de ordens diversas, relativos percepo de alturas, de ritmos, de estruturas formais, carter etc. Convidando a cantar, a sugerir e realizar movimentos, gestos e aes, A barca virou une corpo e mente; sujeito e coletivo; repetir e inventar Girando, ou no lugar, cada criana dever executar a ao acenada, contrariando, assim, a afirmativa da cano. Iniciei o trabalho com essa brincadeira com o intuito de, com ela, tecer tramas entre o fazer musical das crianas dos trs aos seis anos e o seu acontecimento nos territrios da educao. Fazer musical entendido nas dimenses de escuta e produo, na integrao que resulta em pensamento musical; como jogo que dispara sensaes e percepes, criando linhas de fuga (Deleuze; Guattari, 1996) que dimensionam expressivamente o viver; jogo em contnuo e dinmico movimento, vivamente presente no curso da infncia, quando vida e arte ainda se confundem e a inteireza que caracteriza o ser humano transparece intensamente.

Sobre as crianas e a msicaCrianas so seres brincantes, musicais, receptivos energia que emana das foras sonoras. Conectando a escuta (do entorno, de sonoridades e obras musicais diversas) e os gestos produtores de sons vocais, corporais ou com materiais diversos , o fazer musical infantil integra uma gama de possibilidaBRITO, Teca Alencar de. A barca virou: o jogo musical das crianas. Msica na educao bsica. Porto Alegre, v. 1, n. 1, outubro de 2009. ISSN 2175 3172

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des: cantar, tocar, movimentar-se, desenhar e registrar sons, improvisar etc. Se caractersticas que marcam cada etapa do desenvolvimento tendem a padronizar as condutas musicais, necessrio considerar a presena dos rudos, ou seja, das interferncias que singularizam cada percurso. A trajetria de cada ser humano nica, e esse fato deve ser reconhecido e valorizado no contexto da educao. No decorrer da primeira infncia, as crianas sonorizam sensaes, percepes, pensamentos regidos (ainda) pela unidade, pelo todo, pelo sonoro. A experimentao se sobrepe tcnica dirigida e fazer msica uma questo de vontade, de desejo, de conquista (Brito, 2007, p. 83). Aos trs ou quatro anos de idade, o jogo musical valoriza aspectos de ordem qualitativa, referentes potncia das sonoridades, explorao dos materiais e dos sons resultantes. Tocando piano ou xilofone livremente, para ilustrar, importa pesquisar gestos que intuem e tambm imitam, variando intensidades, alturas, densidades etc. A improvisao , nessa fase, o modo musical por excelncia. Em um movimento contnuo e dinmico, no entanto, as crianas se encaminham ao aprender que envolve repetir, estabilizar, fixar, conscientizando o fato de que uma melodia, exemplificando, atm-se a uma ordem determinada, lembrando aqui um dos muitos aspectos. Muitas mudanas acontecem entre os trs e os seis anos de idade: as habilidades motoras finas se aperfeioam, a linguagem se aprimora, a sociabilidade se desenvolve e tem incio a aprendizagem da leitura e da escrita, dentre outros pontos (Unicef, 2005). Mas no custa lembrar que cada processo nico e varia segundo caractersticas individuais, gnero, condies de vida, organizao familiar, cuidados proporcionados e sistemas educacionais. A apreenso intuitiva, fundada na observao, na repetio e na imitao, na vivncia, enfim, tem importncia significativa nos primeiros anos de vida, o que no implica, obviamente, ausncia de reflexo. As crianas fazem-pensando, assim como pensam-fazendo, vivendo na inteireza o modo humano de ser, de se expressar, de construir e compartilhar conhecimentos. importante que os territrios da educao agenciem o acontecimento do jogo musical infantil. Escutando, respeitando e caminhando junto com as crianas, facilitaremos o encaminhamento das experincias para planos mais complexos e sempre plenos de sentido.

BRITO, Teca Alencar de. A barca virou: o jogo musical das crianas. Msica na educao bsica. Porto Alegre, v. 1, n. 1, outubro de 2009. ISSN 2175 3172

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MSICA na educao bsicaDe volta Barca um lugar-comum discorrer sobre a importante presena da msica da cultura infantil tradicional na etapa dos trs aos seis anos (e tambm antes, depois e sempre, no custa lembrar!). As rodas com nomes que destacam cada criana enquanto a integram em um grupo tm grande valor. E apesar de contarmos com um bom nmero delas (Bambu, Tango tango, A canoa virou), optei por uma opo portuguesa, ampliando, assim, o repertrio e o universo cultural das crianas. A barca virou cria pontes que adentram em outros mundos. Aproxima-nos de Portugal e de questes que podem emergir: o encontro com parte de nossas origens; a questo do idioma; os pontos comuns (ou distintos) com a brasileira A canoa virou; o ritmo e, enfim, com diferenas e semelhanas que nos unem como seres humanos.Para conhecer mais: ALMEIDA, M. B. de; PUCCI, M. D. Outras terras, outros sons. So Paulo: Callis, 2002. BEINEKE, V.; FREITAS, S. P. R. de. Lenga la lenga: jogos de mos e copos. So Paulo: Ciranda Cultural, 2006. JIMNEZ, O. L. Ronda que ronda la ronda. Bogot: Panamericana Editorial, 1999. MARTINS, M. de L. Canes tradicionais infantis. Lisboa: Livros Horizonte, 1991. MELO, V. de. Folclore infantil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1985. CDs: Abra a roda tin do l l e h, Bela Alice Lydia Hortlio. Canto do povo daqui (1997); Cantos de vrios cantos (1999); Msica pra todo lado (2003) e Um bolomusical (2006) Teca Oficina de Msica. O trem maluco e outras cantigas de roda Hlio Ziskind. MCD. Pandalel Laboratrio de Brincadeiras UFMG. Selo Palavra Cantada.

Navegando em outros mares: redes de realizaes musicaisNossa barca pode aportar em muitas praias, favorecendo a emergncia de atividades musicais diversas. Ciente de que o oceano muito grande, apontarei algumas, lembrando: a) a importncia de criar e recriar suas prprias tramas, movido(a) pelas necessidades e interesses das crianas em questo. Como nos ensinou o compositor alemo Hans-Joachim Koellreutter (1915-2005), o(a) educador(a) deve estar sempre atento(a) para apreender do aluno o que ensinar. b) que A barca virou nesse contexto meio e fim, texto e pretexto. Nesse sentido, as propostas que seguem sinalizam trajetrias e possibilidades, conectando atividades que podero ser realizadas em outras e distintas situaes.BRITO, Teca Alencar de. A barca virou: o jogo musical das crianas. Msica na educao bsica. Porto Alegre, v. 1, n. 1, outubro de 2009. ISSN 2175 3172

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H-J Koellreutter chegou ao Brasil em 1937, fugindo do nazismo. Personalidade importante no cenrio musical e cultural brasileiro, apontou a necessidade de revisar posturas e procedimentos em educao musical. Considerando que a improvisao poderia ser uma ferramenta pedaggica, Koellreutter tambm props um projeto pedaggico visando formao integral do ser humano, para alm dos aspectos musicais. Para conhecer mais: BRITO, T. A. de. Koellreutter educador: o humano como objetivo da educao musical. So Paulo: Peirpolis, 2001. ______. Criar e comunicar um novo mundo: as ideias de msica de H-J Koellreutter. Dissertao (Mestrado em Comunicao e Semitica)Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, So Paulo, 2004. KATER, C. E. (Org). Cadernos de Estudo: educao musical n. 6. So Paulo: Atravez; Belo Horizonte: EMUFMG/ FEA/FAPEMIG, 1997. ______. Msica Viva e H.J.Koellreutter: movimentos em direo modernidade. So Paulo: Musa Editora: Atravez, 2001.

Navegaremos um pouco por possveis mares musicais, sugerindo desdobramentos que incluem a improvisao.

importante lembrar que a improvisao, nos territrios da educao musical, transforma qualitativamente os modos de lidar com o sonoro e musical, ampliando as capacidades de perceber, de escutar, de realizar e de refletir sobre tal fazer. Importa destacar, igualmente, que a ideia da improvisao deve ser ampliada quando pensamos em sua insero na educao musical infantil. Segundo Rogrio Costa (2003, p. 27), a improvisao um fazer musical com caractersticas especficas, onde muitas linhas de fora convergem, englobando fatores de ordem social, cultural, pessoal e prprios ao grupo, exigindo um estado de prontido, um estar inteiro, com corpo e mente, no ato do acontecimento. A improvisao como modo de realizao musical se aproxima do pensamento musical infantil que prioriza o permanente movimento, em lugar da estabilidade do produto musical. No curso da experincia, com a dinmica transformao da conscincia e tambm por fora dos modelos que apreende e aprende nas aulas de msica, as crianas internalizam as caractersticas de estabilidade do fato musical e, no raro, deixam de improvisar e de criar, enfim. essencial, tambm por isso, que o relacionamento com a msica inclua e estimule a criao, em todas as instncias! Para saber mais: BRITO, T. A. de. Msica na educao infantil: propostas para a formao integral da criana. So Paulo: Peirpolis, 2003. COSTA, R. L. M. O msico enquanto meio e os territrios da livre improvisao. Tese (Doutorado em Comunicao e Semitica)Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, So Paulo, 2003. GAINZA, V. H. de. La improvisacin musical. Buenos Aires: Ricordi Americana,1983.

BRITO, Teca Alencar de. A barca virou: o jogo musical das crianas. Msica na educao bsica. Porto Alegre, v. 1, n. 1, outubro de 2009. ISSN 2175 3172

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MSICA na educao bsicaSugestes de atividadesI Sonorizar, com sons vocais ou corporais, as aes ou movimentos propostos (girar, pular, marchar etc.) 1) Depois de brincarem bastante, inicie essa nova etapa pedindo s crianas que apresentem sons vocais e corporais que sabem fazer e tambm que inventem outros. Pesquisem e experimentem juntos, estimulando a percepo e a escuta, a observao e a criatividade, ampliando, assim, o repertrio de sons corporais (sem mencionar A barca virou). Palmas de vrios tipos, batidas de sons com os ps, estalos, rudos vocais etc., podem disparar muitas outras descobertas!

2) Proponha que cada criana escolha seu gesto sonoro, de preferncia diferente das outras. A partir da, passem ao jogo do improvisar estabelecendo critrios e combinados (regncia, entradas e sadas, solos e tuttis, variaes de intensidade etc.). As crianas tambm podem reger, especialmente as mais velhas. possvel realizar variaes diversas, importando, obviamente, que estejam adequadas a cada grupo. Nesse sentido, considere a idade das crianas, com ateno s diferenas que as singularizam e se revelam no repertrio de sons conquistados, na concentrao para improvisar, na forma resultante, dentre outros aspectos.BRITO, Teca Alencar de. A barca virou: o jogo musical das crianas. Msica na educao bsica. Porto Alegre, v. 1, n. 1, outubro de 2009. ISSN 2175 3172

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Se possvel, grave o trabalho para escutar e comentar com as crianas, o que sempre significativo. Muitas questes podero emergir e a anlise conjunta tambm enriquecer o conhecimento musical das crianas. 3) Aps o mergulho no territrio dos sons corporais, retorne brincadeira, substituindo os movimentos por sons. Sugestes: a) a criana chamada traduz sonoramente (com sons vocais ou corporais) a ao citada (correr, pular etc.), sendo imitada por todos, na sequncia. Ajude-as, se necessrio. b) o grupo escolhe previamente as aes e as sonoridades correspondentes. Ao ouvir seu nome e uma ao (girar, como exemplo), a criana dever realizar o som combinado. Nesse caso, convm limitar o nmero de opes listadas, para no dificultar. c) divida o grupo em duas turmas: uma sonorizar as distintas aes (cada criana ficando responsvel por uma ou duas) e a outra realizar os movimentos (respeitando o combinado inicial, de responder quando ouvir seu nome). Desse modo, se cantarem Menina Renata no sabe pular, a Renata pular enquanto outra(s) criana(s) sonorizar(o). Se o grupo for grande, alguns podero se encarregar de cantar a primeira frase da cano, acompanhando com percusso corporal ou com instrumentos de percusso. A frase seguinte (A menina Alice no sabe rodar) ficar a cargo do educador(a) ou mesmo das crianas, caso j possam se organizar para tal. Alm de boas oportunidades para o desenvolvimento de atividades com sons vocais e corporais (com as crianas menores, de trs anos e tambm com as maiores), dentre outras possibilidades, as sugestes apresentadas (como tantas outras ideias que podem emergir no curso do processo) permitem que o(a) educador(a) observe e avalie aspectos de ordens diversas, envolvidos no trabalho: a concentrao para escutar e fazer; a disposio para criar e/ou para repetir algo; a experincia e os conhecimentos musicais que as crianas j trazem consigo, o senso rtmico e meldico etc. Conhecendo melhor as crianas com quem trabalhamos, enriqueceremos e aprofundaremos as relaes com cada uma, bem como com o grupo, facilitando o acontecimento de experincias musicais efetivas e significativas.BRITO, Teca Alencar de. A barca virou: o jogo musical das crianas. Msica na educao bsica. Porto Alegre, v. 1, n. 1, outubro de 2009. ISSN 2175 3172

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Mais importante, volto a frisar, criar os prprios jogos, as prprias tramas, junto com as crianas, inclusive. Ser deveras verdadeiro e significativo!Para saber mais sobre msica corporal: www.barbatuques.com.br CDs do grupo Barbatuques: Corpo do som, 2002, MCD. O seguinte esse, 2005, MCD. DVD: Corpo do som ao vivo, 2007, MCD.

II Sonorizar as diferentes aes propostas na brincadeira com instrumentos musicais. Caso no contem com eles, aproveitem para fazer alguns: Com caixas de papelo duro ou com latas de diferentes tamanhos possvel produzir os tambores mais simples! Basta encontrar as baquetas (que um par de palitos chineses com rolhas presas na ponta resolve) e sair tocando! Utilizando bexigas (ou bales) para cobrir a borda da lata, os tambores contaro com uma membrana. Nesse caso, escolha as mais resistentes, verificando a compatibilidade (bexigas muito pequenas no cobrem a boca de uma lata

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de Nescau, por exemplo), cortem a parte afunilada e estiquem-na bastante na borda, prendendo com fita crepe ou durex colorido. Latas, potes plsticos de iogurte, ou de Yakult etc., podem se transformar em maracas ou chocalhos (com pedrinhas, areia, gros em seu interior). Papeles ondulados transformam-se em reco-recos, podendo ser colados em tubos de papelo (de papel gordura, por exemplo) enquanto que algumas garrafas PET onduladas so espcies de reco-recos que j vm prontos! Basta providenciar uma baqueta! Se as crianas puderem decorar seus instrumentos, tanto melhor, lembrando que o importante que a produo esteja o mais perto possvel da capacidade de confeco de cada uma delas. Os adultos devem ajudar no que for preciso, sem fazer por elas, no entanto. Por isso, convm confeccionar coisas simples! Elsticos de prender dinheiro colocados em volta de uma caixa de papelo firme (aberta, de preferncia) transformam-na em um instrumento de cordas. Ser possvel constatar, com as crianas, que quanto mais esticado o elstico, mais agudo o som produzido (e vice-versa).

BRITO, Teca Alencar de. A barca virou: o jogo musical das crianas. Msica na educao bsica. Porto Alegre, v. 1, n. 1, outubro de 2009. ISSN 2175 3172

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Com um tubo de condute (usado para conduzir e proteger fios de eletricidade) possvel fazer uma trompa. s enrolar o tubo (cerca de um metro) no formato do instrumento, prender com fita crepe e colocar algo na ponta para funcionar como uma campana (um cone de papelo, de plstico ou feito de cartolina, um funil etc.). Expirando e inspirando no bocal descubram diferentes sonoridades.

III Contando com a imaginao, A barca virou pode levar a outros mares! Dediquem-se a imaginar os motivos que levaram o barco a virar: algum que no soube remar, a mudana do tempo, uma onda enorme que surgiu de repente etc. E mais: quem estaria na barca e por qu; era dia ou noite etc. Deixe que as crianas imaginem, fantasiem, criem hipteses de ordens diversas (das mais realistas s mais fantsticas!)BRITO, Teca Alencar de. A barca virou: o jogo musical das crianas. Msica na educao bsica. Porto Alegre, v. 1, n. 1, outubro de 2009. ISSN 2175 3172

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Confeccionar instrumentos e objetos sonoros com as crianas tambm um modo de conscientizar questes referentes aos parmetros do som: por que produzem diferentes alturas, por que um chocalho com pedrinhas tem um timbre diferente de um com arroz, para que serve uma caixa de ressonncia, dentre outros pontos. Alm disso, as crianas refazem, sua maneira, a trajetria do ser humano no que tange criao de meios para se expressar musicalmente, aspecto que considero da maior importncia. Para saber mais: AKOSCHKY, J. Cotidifonos. Buenos Aires: Ricordi Americana, 1996. BRITO, T. A. de. Msica na educao infantil: propostas para a formao integral da criana. So Paulo: Peirpolis, 2003. DREW, H. O meu primeiro livro de msica. Trad. Lucinda Maria dos Santos Silva. Porto: Livraria Civilizao Editora, [s.d.].

Fale sobre o ambiente sonoro de uma praia, ouvindo as impresses das crianas caso j tenham estado em uma, ou no. Pesquisem materiais para sonorizar a situao definida pelo grupo (com sons do corpo, objetos do entorno, instrumentos musicais do acervo ou aqueles construdos por vocs), explorando gestos e modos de produo sonoras (bater, raspar, sacudir, alisar, pinar etc.), muito importantes nessa etapa do desenvolvimento. Procure gravar e escutem juntos o resultado, comentando os aspectos percebidos, os pontos positivos ou negativos, as sonoridades produzidas etc. Pea ento s crianas para desenharem a histria musical, criando uma espcie de audiopartitura registrando o acontecimento sonoro, com a forma, os elementos contrastantes, as diferentes intensidades etc. As menores, no capturadas ainda pelo desenho figurativo, tendero a utilizar o espao do papel de modo global, registrando suas impresses por meio de gestos grandes, variando a intensidade, a cor, os climas sonoros. As maiores talvez se dediquem a desenhar a situao: o mar, o barco, o sol ou a chuva, no importa. Nesse caso, possvel propor as duas coisas: desenhar a situao sonorizada e as sonoridades percebidas pelo ouvir (pontilhismos, linhas em movimento, traos fortes ou suaves, rarefeitos ou densos etc.).

Ancorando essencial que o trabalho com a msica, nos planos da educao, se atualize em planos de convivncia e comunicao marcados por um efetivo compartilhar. Tive uma boa ideia!, como exemplo, uma frase que ouo muitas vezes, repetida pelas crianas com quem trabalho. Saberem que podem opinar, contribuir e construir juntas um percurso importante e, de fato, faz toda a diferena.

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Juntos, podemos estimular reflexes acerca das sensaes, das percepes, das vivncias, motivando tambm a elaborao de conceitos. Em espaos nos quais se sentem participantes ativas, para alm da mera repetio, as crianas reorganizam as experincias integrando fazer e pensar, repetir, criar e recriar. Assim tambm constroem conhecimentos. Importa que a msica, nos territrios da educao, seja trabalhada em sua condio de jogo que permite trocas: consigo prprio, com o outro, com o ambiente. A conexo entre a escuta e o gesto com o corpo em sua totalidade, na superao do dualismo corpo-mente singulariza a reinveno da msica por cada ser humano, em uma espcie de jogo que se transforma permanentemente, conduzindo as experincias para nveis mais complexos e elaborados; reorganizando, assim, a ideia de msica em si mesma. Como educadores(as) precisamos escutar, dispostos a abrir caminhos, a caminhar juntos, a brincar e a chamar a felicidade, enfim.

RefernciasBRITO, T. A. de. Por uma educao musical do Pensamento: novas estratgias de comunicao. Tese de doutorado. Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Semitica, PUC/SP, 2007. DELEUZE, G..; GUATTARI, F. Mil plats: capitalismo e esquizofrenia: vol. 4. Traduo de Suely Rolnik. So Paulo: Ed. 34, 1997. (Coleo TRANS). UNICEF (Fundo das Naes Unidas para a Infncia). Crianas de at 6 anos: o direito sobrevivncia e ao desenvolvimento: situao da infncia brasileira 2006. Braslia, 2005.

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Sozinha eu no dano, no canto, no tocoCeclia Cavalieri FranaUniversidade Federal de Minas Gerais (UFMG) [email protected]

Resumo. O texto discute preceitos da prtica da educao musical escolar e aponta caminhos para superao do modelo fragmentrio de ensino. Prope como fundamentos a abordagem integrada dos contedos tomando como base a cumulatividade dos conceitos fundantes da disciplina materiais sonoros, carter expressivo e forma, catalisada pela integrao das modalidades de composio, apreciao e performance. Os fundamentos so ilustrados por atividades que promovem a explorao expressiva e criativa dos elementos musicais e demonstram a possibilidade de uma realizao consistente e dinmica da matriz curricular. Palavras-chave: educao musical escolar; planejamento pedaggico; currculo de msica.

Abstract. This essay discusses principles of the practice of school music education and points ways for overcoming the fragmentary model of musical teaching. It proposes as principles an integrated approach to the main strands of the discipline: sound materials, expressive character and form through the combination of composing, audience-listening and performing activities. The principles are illuminated by practical activities that aim at promoting a creative and expressive exploration of musical elements and show how it is possible to achieve a consistent and dynamics realization of the curriculum. Keywords: school music; music pedagogy; music curriculum.

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MSICA na educao bsicaSenhoras e senhores, com vocsSegunda-feira, sete horas da manh, 25 crianas de primeira srie. Uma matriz curricular gigantesca, pginas de planejamentos, agenda de avaliaes e datas festivas afixada na parede. A coordenadora mora ao lado e voc no tem para onde fugir. Respire fundo e acredite: o melhor amigo do professor de msica o CD player. Nada mais eficaz e definitivo do que a prpria msica, com seu poder de impactar, arrebatar, emocionar, arrepiar, acordar os sentidos, fazer o corpo pular feito pipoca e o pensamento flutuar como pluma. Basta uma cano para um universo musical se abrir.

Quem j foi ao circo? Ou j viu algum na TV? O que aconteceu no espetculo? De que voc mais gostou? Do mgico? Dos animais? Dos malabaristas? Equilibristas? E como era o palhao? Engraado, alegre, brincalho, desengonado, com um sapato enorme e uma cala com suspensrios Bem, eu vou anunciar os palhaos e vocs vo entrar em cena, engraados e trapalhes. Agora, vou precisar de uns msicos para a orquestra do circo. Vocs vo escolher instrumentos nesta cesta e inventar sons animados para enfeitar o nmero dos palhaos. Muito bem. Acontece que nem todo mundo est animado. No circo, h uma bailarina que no quer danar. Ela tmida e no gosta de danar sozinha. Ento vamos precisar de um grupo de bailarinas e um grupo de msicos para tocar sons delicados para elas. Agora vamos organizar os quatro grupos: os palhaos e seus msicos animados, as bailarinas e seus msicos delicados. Eu vou apontando para os grupos e vocs vo entrando ou saindo de cena. Preparados? Senhoras e senhores, com vocs, o palhao e a bailarina! Quadro 1. Trecho de transcrio de aula.

Nos bastidoresEsse esboo de atividade envolve preceitos clssicos da educao musical no que tange ao desenvolvimento integral e psicolgico da criana: o prazer e a ludicidade; a imaginao e a fantasia; o vnculo com o seu cotidiano; o movimento e a expresso corporal. Do ponto de vista musical propriamente dito, inclui a improvisao instrumental e/ou vocal, permite a explorao de contrastes expressivos, cria variaes de textura e articula a forma musical a partir da alternncia das entradas dos grupos. Nada se falou sobre notas musicais, nem sobre semnimas, pentagramas ou sncopes. Mas o aprendizado musical ter sido to verdadeiro quanto duradouro. Para as crianas, essa atividade pura diverso. Para o professor, tambm, pois no pode haver maior satisfao do que se lambuzar de msica com as crianas! por isso que estou nessa rea

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e quero acreditar que voc, colega, tambm. Em outros textos, compartilhei ideias que considero os fundamentos da minha prtica educacional (Frana, 2006, 2007). Reapresento-os aqui, repaginados, pois no sei pensar em educao musical de outra maneira. Aula de msica no aula de sons. Aula de msica aula de msica, com msica e por meio da msica. Muitos programas de ensino adotam como princpio organizador os conhecidos parmetros do som (especialmente altura e durao). Neles, os contedos das sries consecutivas so demarcados pelos nveis de leitura e solfejo praticados: semnima, depois o padro de duas colcheias, o de quatro semicolcheias, e assim por diante. Ou ainda, no caso do ensino de instrumento: duas notas, trs notas, cinco notas A princpio, do ponto de vista lgico no h nada de errado com tal organizao. Mas no posso dizer o mesmo com relao sua validade musical e psicolgica. Minha preocupao que essa concepo de ensino legitime uma prtica musical baseada na execuo e no reconhecimento de padres rtmicos, meldicos e harmnicos. A questo no quantas notas ou ritmos se saibam, mas o que se faz com eles e o que deles se compreende. Saber ler ritmos e melodias no significa apropriar-se deles musicalmente. Esse modelo, que considero inadequado, s ser superado a partir do entendimento de que duraes e alturas, para se tornarem msica, precisam ser imbudos de significado, realizados em um andamento fluente, com fraseado, aggica, carter e estilo. Padres de altura e ritmo so materiais a partir dos quais constroem-se os gestos expressivos; esses se sucedem, determinando a estrutura da pea (Swanwick, 1999; Swanwick; Taylor, 1982). Materiais sonoros, carter expressivo e forma1 constituem os conceitos fundantes da nossa disciplina e, portanto, os pilares de uma abordagem de ensino musicalmente consistente. Insisto: trabalhar com parmetros do som no significa trabalhar com msica em seu sentido pleno. Em msica, nenhum parmetro ocorre isolado. Um padro rtmico contm, simultaneamente, informaes sobre altura, timbre, textura, intensidade e outros. Juntos, esses aspectos implicam estilo, carter, contexto e estruturao. Os diversos contedos da nossa disciplina so interligados, e no lineares. Em uma aula podemos percorrer um extenso territrio musical onde os contedos se interliguem rizomaticamente. Nas minhas visitas e pesquisas em escolas regulares e especializadas tenho observado que, muitas vezes, estmulos poderosos como canes, brinquedos cantados ou histrias so subaproveitados devido quele modelo de ensino1

Estes aspectos aparecem nessa sequncia a partir do Modelo Espiral de Swanwick e Tillman (1986).

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fragmentrio. Cito alguns exemplos: a cano Da mar, de Luiz Tatit e Ricardo Breim, sendo utilizada exclusivamente para um ditado meldico; O pulsar, de Caetano Veloso e Augusto de Campos, para reconhecimento de grave-mdioagudo; um movimento vivo de Schumann para percepo de escalas. Msicas como essas so prolas capazes de converter at as almas mais incrdulas! Mas o fantasma da concepo de ensino de msica como o treinamento de padres e elementos isolados ronda at as melhores escolas. Passar uma hora fazendo a classe reagir corporalmente a subidas e descidas, cantar, tocar, reconhecer subidas e descidas, ler cartazes com grficos de subidas e descidas, fazer jogos, bingos e domins de subidas e descidas e encerrar a aula com ditados de subidas e descidas pode ser uma boa experincia de subidas e descidas, mas no de msica! E o que ainda mais dramtico: elas so realizadas sempre da mesma maneira, com o mesmo andamento, mesma dinmica, mesmo ataque etc. Se esse menu de atividades inclusse minimamente algumas decises musicais, como um crescendo aqui, um rallentando ali, uma escolha de andamento e carter, j seria um ganho. Algumas fichinhas com indicaes de dinmica e andamento podem operar milagres, elevando o trabalho desde o nvel dos materiais ao dos gestos expressivos (Figura 1).

Figura 1 Escolhas expressivas sobre leitura de subidas e descidas (adaptado de Frana 2008 p 98) Frana, 2008, p. 98).

Mas podemos ir alm, agregando atividade ingredientes ldicos e performticos. A Figura 2 demonstra um direcionamento nesse sentido. A proposta convoca a imaginao e oferece oportunidade para a explorao de possibilidades expressivas e vivncia de textura por meio da performance a duas vozes. O fato de se escolher um nome para o arranjo e apresent-lo aos colegas agrega atividade um sentido de realizao, de autoria e responsabilidade. Qual o sentido de tornar as crianas experts em subidas e descidas se no para que se apropriem musicalmente desses elementos, criando e tocando suas prprias peas, sorvendo, no vastssimo repertrio, a vitalidade ou, que seja, a melancolia de subidas e descidas? Obras de Schumann, Tatit ou CaetaFRANA, Ceclia Cavalieri. Sozinha eu no dano, no canto, no toco. Msica na educao bsica. Porto Alegre, v. 1, n. 1, outubro de 2009. ISSN 2175 3172

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Figura 2. Explorao expressiva sobre padres de subidas e descidas a duas vozes (Frana, 2008, p. 55).

no no so exemplos de subidas e descidas; muito antes pelo contrrio: nelas, esses elementos ocorrem de maneiras to distintas e singulares que praticamente se dissolvem em funo do alcance expressivo ou estrutural da elaborao dada a elas pelo artista. Os elementos so como letras, slabas e palavras, que se emprestam aos poemas, s crnicas, aos romances. So matria-prima indispensvel que ganham vida quando deixam de ser eles mesmos. Ento, ao invs de dizer vamos agora dar um exemplo de bl, bl, bl, digamos: olha s o que Schumann, Tatit e Caetano fizeram com esses elementos. Um mesmo padro se transforma e assume significados completamente diferentes se apresentado pela voz ou pelas cordas, em andamento presto ou adagio, crescendo ou pianissimo, com som vocal spero ou aveludado. Como segundo fundamento, mas igualmente importante, figura a integrao das modalidades de composio, apreciao e performance. Esse preceito se faz presente na literatura h dcadas (Hindemith, 1952; Reimer, 1970; Schoenberg, 1950, entre outros) e aparece sistematizado a partir do modelo C(L)A(S)P, de Swanwick (1979). Por que isso to importante? Porque, enquanto compe, o indivduo desenvolve seu pensamento abstrato, cria mundos imaginrios, estruturando os sons conforme sua inteno expressiva e suas decises criativas. Porque, ao ouvir msica, ele levado a sintonizar-se com aquelas combinaes sonoras, imitando-as internamente. Porque, quando realiza uma performance musical vocal ou instrumental, coloca em ao um conjunto de habilidades sensoriais, fsicas e intelectuais.FRANA, Ceclia Cavalieri. Sozinha eu no dano, no canto, no toco. Msica na educao bsica. Porto Alegre, v. 1, n. 1, outubro de 2009. ISSN 2175 3172

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Figura 3. Integrando performance, criao, leitura, escrita, cultura e apreciao musical (Frana, 2008, p. 55). do

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Integrar essas modalidades na educao musical significa equilibrar tendncias imitativas e imaginativas, contribuindo para o desenvolvimento integral do aluno. Vamos aplicar esse fundamento ao nosso exemplo. Aps a criao coletiva do arranjo sobre o Po de Acar, os alunos podem explorar livremente a grafia, criando uma miniaudiopartitura a duas vozes (Voo livre, Figura 3). Em seguida, so convidados a ouvir um trecho da pea Snowforms,2 de Murray Schafer (o mesmo autor de O ouvido pensante, 1991). A pea toda composta em melismas e glissandi e cantada por vozes femininas. Antes de colocar a gravao, separo as crianas em dois grupos e cantamos o trecho apresentado a partir da audiopartitura. Ouvi-la em seguida nas vozes das cantoras uma deliciosa satisfao de reconhecimento. Alm de compreender o que esto ouvindo, as crianas percebem que a escrita grfica escrita musical de verdade, e que elas tambm so artistas. De verdade. Na proposta da Figura 3 os dois fundamentos so associados: uma abordagem cumulativa dos conceitos fundantes materiais sonoros, carter expressivo e forma, catalisada pela integrao das modalidades de composio, apreciao e performance.

De volta cenaVoltemos cano O palhao e a bailarina,3 na qual poderemos rever os fundamentos em ao. A cano promove a vivncia e o aprendizado de inmeros elementos musicais e estticos e permite trabalhar a forma musical a partir de contrastes bastante evidentes. Contrastes so poderosamente capazes de envolver o ouvinte, pois as novidades mantm os esquemas cognitivos acordados. Mudanas conferem msica um dinamismo que tambm inerente natureza da criana. Os personagens escolhidos representam fortes esteretipos do imaginrio e da cultura infantil, o que contribui para o engajamento imediato das mesmas. Tal escolha implicou outras tantas decises musicais. Vejamos o que ocorre na seo A (Figura 4). Se perguntarmos s crianas como essa parte da msica, elas diro que animada, alegre, divertida, saltitante e assim por diante. a cara do palhao. Naturalmente, esses esteretipos so culturalmente condicionados. Eu diria que uma cara possvel de um palhao, projetada no nosso imaginrio pelo conjunto das escolhas musicais. Na introduo, aps a narradora anunciar os persona2

A belssima partitura da pea e o respectivo CD podem ser adquiridos atravs do site da Arcana Editions: http://www.patria.org/arcana/. A gravao e a partitura dessa cano esto disponibilizadas no site http://www.ceciliacavalierifranca.com.br.FRANA, Ceclia Cavalieri. Sozinha eu no dano, no canto, no toco. Msica na educao bsica. Porto Alegre, v. 1, n. 1, outubro de 2009. ISSN 2175 3172

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Figura 4. O palhao e a bailarina seo A (Frana, 2003, p. 42-43).

Figura 5 O palhao e a bailarina seo B (Frana, 2003 p 43) 5. (Frana 2003, p. 43).

gens, um arpejo ascendente4 cria a expectativa da entrada da seo A. O andamento rpido e os sons do acompanhamento so curtos, em staccato e bem articulados, ingredientes que conferem o carter rtmico, saltitante e divertido seo. Tambm utiliza cromatismos no contratempo, re4

A tonalidade Sol Maior; o arpejo inicial a dominante, R, com stima e nona.

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forados pelo trombone, o que contribui para tornar o carter ainda mais irreverente, hesitante, giocoso. A estrutura dessa seo tem frases regulares, com estrutura simtrica e previsvel de pergunta e resposta (antecedente e consequente). Essas caractersticas a tornam coesa e marcante. Ao final da primeira frase, o arpejo da introduo reaparece, oitava acima (compassos 9 e 10). O final da segunda frase desacelera com o arpejo de Sol (com stima), preparando a seo seguinte (Figura 5), em D Maior. Na seo B, transformam-se os materiais, transforma-se o carter expressivo. Entra em cena a bailarina, doce, delicada, dengosa e tmida. O carter meldico, melanclico. O andamento recua, os sons curtos e articulados cedem lugar a sons ligados, mais longos, em frases maiores entrando em anacruse. O acompanhamento contm sncopes que deslocam o baixo dos arpejos, como se eles no quisessem mesmo danar. As vozes se dividem e a bailarina entoa seu solo, delicadamente enfeitado pela marimba. A melodia vai caminhando para o agudo, seguindo a intensidade do sentimento at repousar na tnica, que se transforma em preparao para a prxima mudana de clima. Esse contraste entre as duas sees articula claramente a forma (Figura 6).

Figura 6 Contraste de aspectos musicais entre as sees A e B da cano O palhao e a bailarina. bailarina

Em seguida, volta a seo A, mas agora como A, devido ausncia da letra. O trombone se encarrega da melodia e no poupa flego para encarnar o palhao. Ento, a bailarina reaparece, fazendo bis da seo B. Repeties, mesmo que idnticas, nunca so iguais. A experincia musical ocorre no tempo e construda na memria. Na primeira entrada da seo B tudo novidade e o contraste surpreende. J na repetio, a experincia totalmente diferente: sabemos o que esperar! como ouvir uma piada pela segunda vez. Se, por um lado, perde-se o sabor da novidade, por outro, ganha-se o sentido de recuperaFRANA, Ceclia Cavalieri. Sozinha eu no dano, no canto, no toco. Msica na educao bsica. Porto Alegre, v. 1, n. 1, outubro de 2009. ISSN 2175 3172

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o da experincia afetiva vivenciada. O retorno seo do palhao (A) recebe cara de final com o roundabout (a repetio da frase alegria ) e a cadncia com emprstimos modais (uma sequncia especfica de acordes). Vrios elementos podem ser registrados graficamente pelas crianas: o ritmo real e outros modos rtmicos, a estrutura das frases, o contorno das melodias. Em sntese: a forma da cano determinada pelo inequvoco contraste de carter expressivo, por sua vez determinado pelas escolhas no mbito dos materiais. Para dar continuidade atividade, diversos desdobramentos so possveis. Pode-se retomar a improvisao inicial e elabor-la, abusando-se dos contrastes para se intensificar o resultado expressivo. Alternativamente, pode-se produzir uma passagem bem gradativa de um clima expressivo a outro: do mais delicado ao mais agitado, e de volta ao primeiro (ou o inverso). Nessa proposta, controles motor e psicolgico so levados ao extremo. Partindo para a apreciao, abre-se um leque de possibilidades: que tal revisitar bailarinas de Tchaikovsky com O lago dos cisnes ou A bela adormecida? E o Palhao de Kabalevsky (op. 39), o que ? E o Palhao de Egberto, ento? Outras escolhas, outros significados.

Os fundamentos e a matriz curricularO fato de ser a msica um territrio to amplo onde cada elemento se interliga a tantos outros, tantos caminhos so possveis e tantas conexes desejveis pode ser perturbador. Isso nos reporta a ponderaes sobre a matriz curricular.5 A funo de uma matriz explicitar conhecimentos e procedimentos fundamentais da disciplina, ou seja, mapear quais contedos e competncias cognitivas estaro sendo trabalhados. Tecnicamente falando, a matriz expressa em frases objetivas, formadas por verbos que indicam operaes mentais especficas (identificar, compreender, associar, ordenar, analisar, explicar, interpretar, analisar, sintetizar e outros) vinculadas a elementos pontuais do contedo. A matriz proposta para o ensino fundamental/I (2a a 5a sries do currculo de nove anos) concentra-se em competncias bsicas, como distinguir entre sons graves e agudos, e competncias operacionais, como associar padres ascendentes e descendentes representao grfica. A matriz dura, rida, um fssil esttico, ao passo que a prtica pedaggica dinmica, integrada, cheia de vida. Devemos entend-la como um mapa bidimensional que indica caminhos e direes dentro do dinmico territrio da educao musical. como um mapa hidrogrfico que grava os traados da bacia amaznica, mas nunca o cheiro, aA verso atualizada de uma matriz curricular experimental para o ensino fundamental/I pode ser encontrada no site http://www.ceciliacavalierifranca.com.br.5

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umidade, o colorido, a vitalidade, os sons, os segredos e a magia da floresta. Nos meus pesadelos a matriz interpretada de uma maneira completamente anacrnica, como se as frases que a compem fossem atividades isoladas. Cuidado: aprecie-a com moderao. Mantenha-a apenas como uma referncia ou memria de que toda atividade verdadeiramente musical abre possibilidades como uma rosa dos ventos em 3D, apontando conexes recprocas entre os conceitos fundantes conforme as oportunidades apaream (Figura 7).

Figura 7 Conexes recprocas entre temas e tpicos da matriz na proposta da cano.

Em O palhao e a bailarina, praticamente todos os temas da matriz curricular foram visitados. Transitamos em tpicos relativos s duraes (curto e longo, modos rtmicos, tempo, padres rtmicos e compassos), alturas (grave e agudo, direo e padres meldicos), timbre (instrumentais, vocais e alternativos), intensidade, articulao, carter expressivo, estilo, melodia e acompanhamento, textura, forma, relao texto-msica e notao grfica. Tudo isso ocorreu de maneira no linear e no fragmentria, pois todos os elementos permitem conexes recprocas. Por exemplo: Que instrumento [timbre] faz os sons curtos [durao] do acompanhamento [textura, estruturao] na parte [forma] do palhao? Na seo [forma] mais lenta [andamento], o que acontece com a melodia [movimento sonoro e estruturao] do solo [textura] da bailarina [timbre]?FRANA, Ceclia Cavalieri. Sozinha eu no dano, no canto, no toco. Msica na educao bsica. Porto Alegre, v. 1, n. 1, outubro de 2009. ISSN 2175 3172

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Gradativamente, os contedos vo se tornando tecnicamente mais elaborados e as conexes se ampliam em vrias direes. Vamos pesquisar sons [materiais] para valorizar a mudana de carter [o prprio] entre as sees [forma]. Em grupos, vocs vo tentar montar o grfico [notao] rtmicomeldico [eles mesmos] da primeira frase [forma] da melodia [estruturao] do palhao. Depois vamos comparar todos os grficos e construir, juntos, a verso mais precisa (Figura 8).

Figura 8. Grfico rtmico-meldico da primeira frase da cano 8 Grfico cano.

E, para no cair na armadilha da rotina escrita-e-leitura-de-padres-semsentido-musical, providencie uma atividade de criao sobre o grfico: Agora, em grupos, vocs vo transformar esse grfico em outra msica. Podem mudar os timbres, a distncia entre as notas, a articulao (de staccato para legato). Pensem no andamento e na dinmica adequados para o carter que escolherem. Depois, vocs vo fazer outra frase, como se fosse uma resposta; ela pode ser parecida ou bem diferente da pergunta (diferente em que aspectos?). O que mais querem fazer? Uma introduo? Uma variao? Um final surpreendente? Escolham um nome para sua pea e ensaiem para a apresentao. Os padres rtmico-meldicos vo se vestir das mais variadas nuances expressivas conforme um amplo cardpio de opes. Ento, palhaos e bailarinas vo se transformar em astronautas, liblulas, nuvens, tardes, eclipses, Pedro e o lobo, as quatro estaes, a sagrao da primavera, ionization, cartas celestes. Dos pontos de vista musical, psicolgico, emocional, fisiolgico, intelectual e esttico essas experincias so muito mais robustas do que um nmero de atividades isoladas de curto/longo, rpido/lento, grave/agudo, legato/staccato etc., somadas. Basta uma cano para um universo musical se abrir, para que as crianas (e o professor) se lambuzem de msica e queiram bis.

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MSICA na educao bsicaRefernciasFRANA, C. C. Poemas musicais: ondas, meninas, estrelas e bichos. Belo Horizonte, 2003. ______. Do discurso utpico ao deliberativo: fundamentos, currculo e formao docente para o ensino de msica na escola regular. Revista da Abem, n. 15, p. 67-79, 2006. ______. Por dentro da matriz. Revista da Abem, n. 16, p. 83-94, 2007. ______. Para fazer msica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. HINDEMITH, P. A composers world: horizons and limitations. Cambridge, Mass: Cambridge University Press, 1952. REIMER, B. A philosophy of music education. 2nd. ed. New Jersey: Prentice Hall, 1970. SCHAFER, M. R. O ouvido pensante. So Paulo: Unesp, 1991. SCHOENBERG, Arnold. Style and idea. 2nd. ed. London: Stein, 1950. SWANWICK, K. A basis for music education. London: Routledge, 1979. ______. Teaching music musically. London: Routledge, 1999. SWANWICK, K; TAYLOR, D. Discovering music: curriculum in secondary schools. London: Batsford, 1982. SWANWICK, K; TILLMAN, J. The sequence of music development: a study of childrens composition. British Journal of Music Education, v. 3, n. 3, p. 305-339, 1986.

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MSICA na educao bsica

Cai, cai balo Entre a formao e as prticas musicais em sala de aula: discutindo algumas questes com professoras no especialistas em msicaCludia Ribeiro BellochioUniversidade Federal de Santa Maria (UFSM) [email protected]

Srgio Luiz Ferreira de FigueiredoUniversidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) [email protected]

Resumo. O texto destina-se a professoras de educao infantil e anos iniciais, no especialistas em msica. O objetivo pensar sobre sua formao e as possibilidades de realizao de atividades musicais com seus alunos. Partimos de questionamentos e trazemos algumas orientaes. Por fim, inserimos um exemplo musical e discorremos sobre formas de se abordar uma msica no contexto da sala de aula. Chamamos a ateno para a necessidade de a professora estar em constante processo de formao profissional, aprendendo e desafiando-se na aquisio de conhecimentos musicais e pedaggico-musicais. Palavras-chave: educao musical; professores da infncia; atividade musical.

Abstract. The text is directed to early-chidhood and primary teachers (generalist teachers), non specialists in music. The objective is to think on their preparation and possibilities of the development of musical activities with their students. We present some questions and orientations. We also inserted a musical example, discussing ways of working music in the classroom context. We emphasize the necessity of generalist teachers being in permanent professional preparation, learning and challenging themselves in the acquisition of musical and pedagogic musical knowledge. Keywords: music education; generalist teachers; musical activity.

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MSICA na educao bsicaCai, cai baloA msica uma prtica social que est presente em todas as sociedades e culturas. De uma forma ou de outra, todos os seres humanos lidam com msica em diferentes momentos de sua vida, em atividades cotidianas. Todos ns reconhecemos e respondemos msica de maneiras distintas, de acordo com o momento e as funes que a msica assume em nossa vida, nas atividades mais simples ou mais complexas. Se a msica faz parte da experincia humana em diversos momentos de vida e com diversas funes, tambm faz parte da escola. A rotina da escola, reconhecidamente, possui msicas cantadas, danadas, brincadas na hora do recreio, imitadas em coreografias, dentre outras. Mas as professoras1 de educao infantil (EI) e anos iniciais do ensino fundamental (AI) da educao bsica precisam considerar que no basta a msica estar presente, de alguma forma na escola, e no possuir valor formativo reconhecido e enfatizado nos planejamentos escolares. Com isso queremos dizer que a msica na escola pode adquirir um papel relevante se tratada como uma rea de conhecimento que requer estudo, diversidade, prtica e reflexo, de forma que esteja inserida nos planejamentos e no cotidiano escolar de maneira significativa, compondo com as demais reas um conjunto de saberes fundamentais para o desenvolvimento sociocognitivo e humano dos alunos. A presena da msica nas escolas um tema e uma prtica que tem gerado muitos debates, nos mais variados contextos que mobilizam discusses educacionais. O que se pergunta, frequentemente, sobre quem trabalha, ou quem pode trabalhar, com msica na escola. Poderamos dizer, simplesmente: um professor licenciado em msica. No entanto, outros profissionais da educao tais como as professoras de EI e AI tambm incluem msica em suas rotinas. Isso fato e no nos causam estranhamento as canes que so executadas em festas da escola. Muitos trabalhos de pesquisa (ver algumas indicaes ao final do texto) mostram que as professoras de educao infantil e anos iniciais, apesar de trabalharem com msica na escola, no tm recebido formao musical durante sua preparao profissional, seja no ensino superior ou no ensino mdio (magistrio). Assim, muitas dessas atividades musicais realizadas so desenvolvidas sem uma perspectiva longitudinal e uma fundamentao clara.1

Estaremos utilizando o termo professora(s), considerando que do sexo feminino grande parte do quadro profissional que trabalha com educao infantil (EI) e anos iniciais do ensino fundamental (AI).

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Pois bem, este texto dirigido2 s professoras que atuam na docncia da EI e AI e que, de alguma forma, se envolvem com a msica em seu cotidiano, principalmente inserindo-a em algum tipo de trabalho pedaggico realizado.

Um tema: msica na escola!

Cai, cai balo

Tera-feira, 20 de maio. Estou aproximando-me da escola, recreio e vejo as muitas crianas correrem e brincarem no ptio. De um lado, meninos fazem dana de rua, de outro, crianas pequenas inventam canes, de outro, meninas coreografam a msica no novo CD-DVD de Ivete Sangalo. Tem crianas ouvindo e manipulando msica em seus celulares. Tem outras fazendo street-dance. Quanta msica! Ah! Tem tambm crianas brigando e correndo sem parar. um dia normal e uma escola normal. O sino bate, hora de recomear. Dirijo-me superviso da escola e comunico que estou visitando estagirias. Ao percorrer o corredor em direo sala do 3o ano, o silncio comea a tomar conta da rotina ps-recreio. Entro em uma sala, para cumprimentar uma professora que minha amiga. Logo que ela me v, intervm: Ser que podes cantar uma msica para ns? Minha voz feia, no tenho dom! Fico me questionando: At quando cantar com os alunos ser uma atividade para quem tem dom? Ser que minha amiga professora esteve algum dia no recreio para ver e ouvir as msicas que a escola possui? Ser que algum dia ela cantou para si e ouviu-se? Ser que algum dia ela pensou em como poderia trabalhar uma simples cano, por exemplo, Cai, cai balo, com seus alunos?

Quando falamos em msica na escola, ou melhor, msicas na escola, vrias questes surgem e se envolvem nos processos de ensinar e de aprender, nos objetivos e na estruturao dos planejamentos escolares. Vamos, conjuntamente, pensar em algumas indagaes e buscar algum tipo de orientao, que no queremos que sejam tomadas como nicas. Aqui apresentamos uma reflexo inicial que deve ser ampliada para que se construa um referencial claro sobre a presena da msica na escola e o papel da professora de EI e AI nesse processo. A questo que precede a todas :

Por que ensinar msica na escola importante? na rua do saboPodemos pensar que ensinar msica na escola importante primeiramente porque a msica uma prtica social, presente em todas as sociedades. Os seres humanos, ao longo de sua existncia, produzem msicas para seremO texto tambm pode ser utilizado por professores especialistas, com formao musical e ser uma leitura para gestores escolares, estudantes de cursos de licenciatura e outros interessados nessa temtica.2

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vivenciadas socialmente, constituindo-se assim uma manifestao humana que tem uma histria acumulada. Alm do entendimento da msica como prtica social, poderamos tambm pensar que agora temos que ensinar msica na escola porque existe uma lei federal, nmero 11.769, aprovada em 2008 (Brasil, 2008), que determina seu ensino na educao bsica. A lei acrescenta ao artigo 26 da Lei 9394/96 o seguinte: 6o A msica dever ser contedo obrigatrio, mas no exclusivo, do componente curricular de que trata o 2o deste artigo [Arte]. (Brasil, 2008, artigo 1o)

Com essa legislao, o ensino de msica dever estar presente na educao bsica, o que implica tambm sua presena na EI e AI. Como as professoras que atuam nesses nveis escolares so normalmente responsveis por todas as reas do currculo, elas tambm devero lidar com questes musicais na escola. O que se defende no a substituio do professor licenciado em msica para as atividades de ensino de msica na escola, em todos os nveis da educao bsica. Sublinha-se a necessidade de um trabalho mais qualificado da professora de EI e AI, quando realiza atividades musicais. Ainda, podemos pensar que ensinar msica na escola relevante por que os alunos gostam de realizar atividades nas quais a experincia com msica esteja presente. Isso vale para as atividades nas quais a msica o centro e para as atividades em que secundria, por exemplo, quando o professor usa da msica para aprender regras matemtica. Swanwick (1988, p. 89) confirma que a msica pode ser usada para propostas no musicais. Mas se o objetivo da educao , tambm,[] ampliar a viso de mundo, oportunizando e discutindo experincias que envolvem diferentes sistemas simblicos construdos pela civilizao, cada uma das artes precisa ser tratada de maneira consistente na escola e na educao em geral. (Figueiredo, 2009)

Assim, pensamos que ensinar msica na escola importante, alm de tudo o que foi posto, porque se trata de uma rea que nos coloca em relao com o mundo de sons e silncios, e proporciona o desenvolvimento de nossa relao artstica e esttica com o mundo. Ensinar msica na escola envolve a experincia musical de forma direta, ouvindo, apreciando, cantando, tocando, compondo, improvisando, dentre outras. Falar sobre msica com os alunos uma atividade que tambm envolve conhecimentos musicais, mas no os coBELLOCHIO, Cludia Ribeiro; FIGUEIREDO, Srgio Luiz Ferreira de. Cai, cai balo Entre a formao e as prticas musicais em sala de aula: discutindo algumas questes com professoras no especialistas em msica. Msica na educao bsica. Porto Alegre, v. 1, n. 1, outubro de 2009. ISSN 2175 3172

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loca em contato direto com a linguagem musical. Ensinar msica envolve fazer msica, produzir sonoramente e estar atento a essa produo sonora. Estar atento implica apreciar e entender o que se est fazendo, buscar alternativas para fazer melhor. importante, tambm, pensarmos que ensinar msica na escola uma prtica que no acontece de modo isolado dos demais conhecimentos escolares. Mas cuidemos: atividades conjuntas no significam que uma ou outra rea mais relevante, significa que todas as reas podem se articular, sem menosprezar um ou outro conhecimento.

Uma professora de educao infantil e dos anos iniciais da educao bsica pode ensinar msica na sala de aula?

no cai no, no cai no, no cai noAcreditamos que uma professora que atua na EI e AI pode e deve trabalhar com msica em suas atividades de docncia. Em primeiro lugar, precisamos romper com a ideia de que essa professora no especialista. Bom, pode ser at que no seja especialista em msica, como, de fato, a grande maioria no . Mas uma profissional habilitada especificamente para o trabalho com crianas de 0 a 10 anos, o que engloba a EI a AI. Essa professora tem um conhecimento extenso sobre desenvolvimento humano e sobre planejamento para essa fase do desenvolvimento escolar que fundamental e marcante na vida dos seres humanos (ver Bellochio, 2000). Em tempo: voc lembra de sua professora do 1o ano? O quanto ela marcou na sua vida? Lembra dela cantando? O que mais ela fazia de msica com voc?

Que formao e atuao com msica se espera de uma professora de educao infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental?Por certo, as professoras de EI e AI precisam de formao musical e pedaggico-musical que lhes possibilitem pensar e fazer msica. Formao musical implica estabelecer relaes diretas com msica, atravs de experincias musicais: cantar, tocar, percutir, dentre outras. Formao pedaggico-musical significa estabelecer relaes entre o conhecimento musical e as possibilidades e maneiras de ser ensinado e aprendido. preciso lembrar que professoras desses nveis escolares so modelos para seus alunos e, assim, possuem uma grande responsabilidade na realizao de seu trabalho docente.BELLOCHIO, Cludia Ribeiro; FIGUEIREDO, Srgio Luiz Ferreira de. Cai, cai balo Entre a formao e as prticas musicais em sala de aula: discutindo algumas questes com professoras no especialistas em msica. Msica na educao bsica. Porto Alegre, v. 1, n. 1, outubro de 2009. ISSN 2175 3172

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A formao um continuum e deve contribuir para a preparao profissional que vai ter a misso de desenvolver as primeiras experincias escolares das crianas. Para que a msica se constitua como atividade mobilizadora de conhecimentos que potencializem a aprendizagem de seus alunos, precisa ser realizada com competncia pelas professoras. Todo trabalho realizado em aula precisa ser planejado e refletido pelas professoras! Todo o trabalho significa, literalmente, todo o trabalho, e a o trabalho com msica tambm entra. A estas alturas voc deve estar se questionando:

O que pode ser ensinado?

Cai aqui na minha mo.

As atividades musicais que podem ser realizadas na escola podem ser muito diversas e a professora far escolhas constantemente. Portanto, no existe um nico modelo e nem uma s proposta que seja adequada universalmente. Precisamos lembrar sempre do contexto educacional e social, da experincia sonora e musical dos sujeitos escolares, alm de metodologias que possam mediar a realizao de experincias musicais que faam sentido e sejam significativas para a promoo do desenvolvimento musical. Lembremos que: em msica se ensina msica. As atividades musicais que diretamente se relacionam com o objeto sonoro msica acontecem atravs da experincia musical em atividades de audio, execuo e composio/improvisao musical. Essas dimenses so possveis e desejveis em um projeto educacional. fundamental que se compreenda a complementaridade dessas dimenses e que sejam vivenciadas de forma intensa e integrada. Vamos apresentar um exemplo que abrange diversos contedos da msica, como uma forma de expor, a partir de uma atividade musical, o que poderia ser feito na escola por professoras no especialistas em msica.

Uma experincia musical Cai, cai balo

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A partir da cano Cai, cai balo podemos experimentar diversos aspectos referentes experincia musical. Podemos comear cantando a msica Cai, cai balo. A professora pode cantar para que os alunos aprendam.3 Pode colocar um CD que tenha esta msica para que as crianas ouam. Mas importante que a msica tambm seja cantada sem o acompanhamento do CD, para que a professora possa perceber a forma com que seus alunos esto executando a cano. Existem muitas maneiras de executar cantando uma msica: voc pode cant-la de boca fechada, procurando ouvir cuidadosamente os movimentos da melodia enquanto canta; pode tambm cant-la com uma vogal apenas (por exemplo, cante toda a melodia com a vogal a, depois u, e assim por diante), procurando emitir sons homogneos do comeo ao fim do trecho musical. A cano tambm pode ser cantada com slabas: l, lu, p, so algumas possibilidades. Cuide para a que a expressividade desejada no se perca; afinal o que se est fazendo msica e ela existe no conjunto de seus elementos. Cantar de boca fechada, com vogais ou com slabas pode ajudar no processo de escuta e aprendizado dos elementos musicais do exemplo musical que est sendo realizado, porque o foco est na melodia, sem a preocupao com o texto, sua pronncia ou significado; mas tambm o texto pode auxiliar na realizao dos desenhos meldicos. Voc pode incorporar o texto gradualmente, cuidando da qualidade da articulao de cada fonema com o som correspondente da melodia. possvel, ainda, realizar a melodia com sons bastante ligados uns aos outros ou muito separados uns dos outros, trazendo interesse e novidade para trechos especficos da execuo. Como a msica Cai, cai balo tem diferentes ritmos, todos eles devem ser observados e executados com muita preciso e clareza, seno a msica pode perder o seu carter. O modelo oferecido pela professora deve ser claro, com um bom nvel de afinao e com intensidade adequada para ser ouvido pelos alunos. Por isso a necessidade de preparar-se e planejar como ser realizada a atividade. A repetio cantada necessria. E, em cada repetio proposta, a professora dever analisar o resultado sonoro, reforando aquilo que j foi assimilado e indicando os pontos da cano que ainda precisam de maior cuidado. A partir dos resultados de cada execuo musical, a professora tambm poder incluir elementos expressivos. A mesma melodia poder ser cantada com carter expressivo triste, alegre, choroso, dentre outros. Pode tambm ser cantada com diversas intensidades: forte, fraco, crescendo e decrescendo oAntes de cantar para os alunos importante que a professora tenha o domnio da cano, o que implica cuidados com sua realizao meldica, rtmica e expressiva.3

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som, fazendo mudanas repentinas de forte e fraco, e assim por diante. Outra possibilidade expressiva inclui a variao de velocidade; o mesmo trecho pode ser realizado lentamente ou muito rpido. importante que ao longo de processo de construo da experincia musical a professora possa ir gravando as produes dos alunos, para que eles se ouam, apreciem e avaliem o que esto realizando musicalmente. A partir desse exerccio de apreciao, possvel compreender, do ponto de vista dos alunos, como eles avaliam e comentam suas realizaes. Sem duvida, esse momento muito importante para compreender e avaliar o ensino em relao aprendizagem. Alm de cantar a melodia possvel a incluso de outros sons, como acompanhamento musical. O uso de sons corporais bater palmas e/ou ps, estalar dedos, percutir em partes do corpo pode ser muito estimulante do ponto de vista sonoro. Tambm poderiam ser usados instrumentos musicais convencionais ou objetos que produzam sons: uma caneta pode ser batida em uma mesa produzindo diversos tipos de sons de acordo com o local onde se bate, a fora que se aplica, e assim por diante; chacoalhar um chaveiro pode trazer sonoridades diversas, dentre tantas possibilidades. O uso de instrumentos ou de outras sonoridades depende de pesquisa sonora, de anlise dos resultados, de decises especficas sobre a utilizao deste ou daquele som durante a execuo da melodia. Nesse exerccio, de busca sonora, a criatividade estar presente impulsionando a riqueza da construo do conhecimento musical. A mesma cano pode tambm ser recriada, utilizando-se de outras possibilidades de realizao. Por exemplo, criar um Cai, cai balo como rap, ou como uma msica muito triste. Alm de cantar a cano Cai, cai balo, explorando-a de diferentes formas, importante que a professora possa levar para seus alunos diferentes gravaes realizadas com essa cano. Por exemplo: em CDs com verso instrumental, executada por coros, dentre outras. Nesses momentos de apreciao, so importantes os comentrios de alunos e professora sobre o que se est ouvindo. De forma resumida, nesses breves exerccios propostos a partir da msica Cai, cai balo, as dimenses da audio, execuo e criao/improvisao musical estavam presentes. O incio da atividade enfatizou a audio: todos ouviram da professora ou do CD a msica escolhida. Alm da audio, existia uma atividade de execuo, feita pela professora e pelos alunos na medida em que iam aprendendo e reproduzindo a msica. Ento essas duas dimenses audio e execuo estiveram presentes nesse processo. Quando as propostas de utilizao de outras sonoridades, incluindo sons corporaisBELLOCHIO, Cludia Ribeiro; FIGUEIREDO, Srgio Luiz Ferreira de. Cai, cai balo Entre a formao e as prticas musicais em sala de aula: discutindo algumas questes com professoras no especialistas em msica. Msica na educao bsica. Porto Alegre, v. 1, n. 1, outubro de 2009. ISSN 2175 3172

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e sons produzidos a partir da explorao de timbres diversos, a dimenso da criao/improvisao esteve presente nesse processo, possibilitando a vivncia com diversas sonoridades que poderiam ser somadas execuo da msica Cai, cai balo. E assim, as trs dimenses audio, execuo e criao/improvisao estiveram presentes nesse exerccio. Com essas propostas de realizao de experincias musicais, muito simples, a partir da msica Cai, cai balo procuramos demonstrar como cada dimenso da experincia musical pode estar presente no processo de ensinar e aprender msica. As trs dimenses se complementam e contribuem para que a experincia musical seja realizada de modo mais completo (Figueiredo, 2009).

Algumas consideraesEntendemos ser fundamental a formao musical e pedaggico-musical de professoras de EI e AI. Ao longo do texto, procuramos enfatizar como possvel que prticas musicais aconteam e possam ser realizadas no contexto inicial da educao bsica. preciso romper o crculo vicioso no qual a msica no est presente na escola porque no se compreende sua importncia na formao dos indivduos, e a msica no se torna importante na formao pela sua ausncia nos currculos escolares e prticas de professoras (Figueiredo, 2009). Na EI e AI so estabelecidos muitos valores que marcaro a vida de muitas pessoas. A msica deve estar includa nesse contexto escolar como um componente insubstituvel no processo educacional como um todo, contribuindo para uma formao mais integral e mais humana. Professores no especialistas e especialistas em msica podem e devem trabalhar, em conjunto, na tarefa de incluir a msica na escola. Para isso, precisam querer e querer implica em compreender a funo. Esse um grande desafio. E para enfrent-lo as professoras de EI e AI devem preparar-se continuamente, avaliando e repensando suas prticas. Devem, tambm, ouvir e fazer muita msica!

RefernciasBELLOCHIO, C. R. A educao musical nas sries iniciais do ensino fundamental: olhando e construindo junto s prticas cotidianas do professor. Tese (Doutorado em Educao)Faculdade de Educao, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2000. BRASIL. Presidncia da Repblica. Lei no 11.769, de 18 de agosto de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, Lei de Diretrizes e Bases da Educao, para dispor sobre a obrigatoriedade do ensino da msica na educao bsica. Braslia, 2008.

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FIGUEIREDO, S. L. F. A msica na escola: possibilidades, desafios e perspectivas. In: SEMINRIO DE BALNERIO CAMBORI: CRIATIVIDADE EM AO, 4., 2009, Balnerio Cambori. AnaisBalnerio Cambori: Fundao Cultural de Balnerio Cambori, 2009. 1 CD-ROM. SWANWICK, K. Music, mind and education. London: Routledge, 1988.

Algumas indicaes de leituraBEAUMONT, M. T. de; BAESSE, J. A.; PATUSSI, M. E. Aula de msica na escola: integrao entre especialistas e professoras na perspectiva de docentes e gestores. Revista da Abem, Porto Alegre, n. 14, p.115-123, 2006. BELLOCHIO, C. R. A formao musical de professores da infncia no ensino superior: alguns pressupostos e desafios. In: TRAVERSINI, C. et al (Org.) Trajetrias e processos de ensinar e aprender: prticas e didticas. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2008. v. 2. p. 217-230. ______. Escola Licenciatura em Msica Pedagogia: compartilhando espaos e saberes na formao inicial de professores. Revista da Abem, Porto Alegre, n. 7, p. 41- 48, 2002. ______. Educao Musical: olhando e construindo na formao e ao dos professores. Revista da Abem, Porto Alegre, n. 6, p. 41-47, 2001. BRITO, T. A. de. Msica na educao infantil: propostas para a formao integral da criana. So Paulo: Peirpolis, 2003. FIGUEIREDO, S. L. Educao musical nos anos iniciais da escola: identidade e polticas educacionais. Revista da Abem, Porto Alegre, n. 12, p. 21-29, 2005. ______. A preparao musical de professores generalistas no Brasil. Revista da Abem, Porto Alegre, n. 11, p. 55-62, 2004. HENTSCHKE, L., DEL BEN, L. Ensino de msica: propostas para pensar e agir em sala de aula. So Paulo: Moderna, 2003. JOLY, I. Z. L. Musicalizao infantil na formao do professor: uma experincia no curso de Pedagogia da UFSCar. Fundamentos da Educao Musical, Salvador, n. 4, p. 158-162, 1998. PENNA, M. Msica(s) e seu ensino. Porto Alegre: Sulina, 2007. SOUZA, C. V. C. Educao de adultos: a educao musical a distncia como possibilidade para a aproximao com a escola regular. Fundamentos da Educao Musical, Salvador, n. 4, p. 39-44, 1998. SOUZA, C. V. C. A msica na formao dos professores dos anos iniciais do ensino fundamental: uma visita literatura de educao musical. Linhas Crticas: Revista Semestral da Faculdade de Educao da UnB, Braslia, v. 8, n. 14, p. 59-70, 2002. SPANAVELLO, C. da S.; BELLOCHIO, C. R. Educao musical nos anos iniciais do ensino fundamental: analisando as prticas educativas de professores unidocentes. Revista da Abem, Porto Alegre, n. 12, p. 89-98, 2005.

BELLOCHIO, Cludia Ribeiro; FIGUEIREDO, Srgio Luiz Ferreira de. Cai, cai balo Entre a formao e as prticas musicais em sala de aula: discutindo algumas questes com professoras no especialistas em msica. Msica na educao bsica. Porto Alegre, v. 1, n. 1, outubro de 2009. ISSN 2175 3172

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Maneiras de ouvir msica: uma questo para a educao musical com jovensJusamara SouzaUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) [email protected]

Maria Ceclia de Arajo TorresCentro Universitrio Metodista (IPA) [email protected]

Resumo. A audio como parte integrante de uma educao musical tem sido foco de vrios modelos pedaggicos. Neste artigo pretendemos discutir alguns aspectos que esto implcitos nesse tema quando trabalhado com jovens na educao bsica: a) conceitos de ouvir e escuta musical; b) de sua relevncia para a sociedade contempornea; c) tipologia do ouvir musical a partir dos jovens; d) aspectos didticos e metodolgicos para a sala de aula. Propomos tambm uma srie de atividades didticas a partir das diferentes maneiras de ouvir msica. Palavras-chave: ouvir e escuta musical; educao musical; jovens.

Abstract. Hearing as part of musical education has been the focus of several pedagogical models. In this article, we intend to discuss some aspects implied in this subject when working with young people in basic education: a) concepts of listening and musical hearing; b) its relevance towards contemporary society; c) typology of musical hearing from young people; d) didactic and methodological aspects for classroom. We also propose a number of didactic activities from different ways of hearing music. Keywords: listening and musical hearing; music education; young people.

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SOUZA, Jusamara; TORRES, Maria Ceclia de Arajo. Maneiras de ouvir msica: uma questo para a educao musical com jovens. Msica na educao bsica. Porto Alegre, v. 1, n. 1, outubro de 2009. ISSN 2175 3172

MSICA na educao bsicaOuvir msica nas culturas jovens contemporneasA atividade de ouvir msica ocupa um lugar central na vida de jovens. Motivados e embalados pelas tecnologias a msica os acompanha por toda parte. O desenvolvimento de aparelhos portteis de ouvir msica e suas conexes a redes de computadores, aumentou consideravelmente no s o espectro de atividades musicais possveis como tambm ampliou os gneros, programas e dimenses que cada mdia pode oferecer. Assim, cada vez mais os jovens garimpam suas msicas preferidas dentre os programas de rdio, TV e sites disponveis para se ouvir msica. E com a programao cada vez mais fragmentada das mdias acabam desenvolvendo os mais diversos estilos de fruio musical. Neste artigo pretendemos discutir alguns aspectos que esto implcitos na audio musical quando trabalhada com jovens na educao bsica. Um deles seria a prpria definio de ouvir e escutar msica. Sabemos que no h um consenso entre os autores quanto distino desses termos. Para Granja (2006, p. 65) ouvir captar fisicamente a presena do som, enquanto que escutar estaria mais prximo da dimenso interpretativa da percepo. Segundo o autor, poderamos dizer que o ouvir refere-se ao conforto do previsvel, enquanto o escutar demanda uma predisposio para a acuidade sonora. No entanto, o autor admite que os verbos ouvir e escutar podem em algumas situaes te