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número 14março de 2006

revista da abem

abem

Associação Brasileira de Educação Musical

revistada

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número 14março de 2006

revista daabem

Associação Brasileira de Educação Musical

abem

Revista da ABEM, n. 14, março 2006.Porto Alegre: Associação Brasileira deEducação Musical, 2000

SemestralISSN 151826301. Música: periódicos

Diretorias e Conselho Editorial da ABEM Biênio 2005-2007

DIRETORIA NACIONALPresidente: Prof. Dr. Sérgio Luiz Ferreira de Figueiredo – UDESC, SC

[email protected]: Profa. Dra. Cristina Grossi – UnB, DF

[email protected] de Honra: Profa. Dra. Jusamara Souza – UFRGS, RS

[email protected]ário: Prof. Dr. José Nunes Fernandes – UNIRIO, RJ

[email protected]: Profa. Dra. Regina Cajazeira – UFAL, AL

[email protected]

DIRETORIA REGIONALNorte: Profa. Ms. Sônia Blanco – UEPA, PA

[email protected]: Prof. Dr. Luis Ricardo Queiroz – UFPB, PB

[email protected]: Profa. Dra. Ilza Zenker Joly – UFSCAR, SP

[email protected]: Profa. Dra. Rosane Araújo, UFPR, PR

[email protected]: Profa. Dra. Cássia Virgínia Coelho de Souza (UFMT)

[email protected]

CONSELHO EDITORIALPresidente: Profa. Dra. Cláudia Bellochio – UFSM, RS

[email protected]: Profa. Dra. Cecília Torres – UERGS, RS

[email protected] do Conselho Editorial:

Profa. Dra. Isabel Montandon – UnB, [email protected]

Profa. Dra. Lia Braga – UFPA, [email protected]

Profa. Dra. Maura Penna – UEPB, [email protected]

Projeto gráfico e diagramação: MarcaVisualRevisão: Trema Assessoria Editorial

Fotolitos e impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda.Tiragem: 500 exemplaresPeriodicidade: Semestral

É permitida a reprodução dos artigos desde que citada a fonte.Os conceitos emitidos são de responsabilidade de quem os assina.

Indexação: LATINDEX - Sistema Regional de Información enLínea para Revistas Científicas de América Latina, el Caribe,España y Portugal; Edubase (Faculdade de Educação/UNICAMP - Campinas/SP - Brasil)

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SumárioEditorial ..................................................................................................................................................... 5

Cecília Torres

Perspectivas socioculturais na pesquisa em educação musical:experiência, interpretação e prática ...................................................................................................... 7

Joan Russell

Projeto Cariúnas – uma proposta de educação musicalnuma abordagem holística da educação............................................................................................. 17

Tânia Mara Lopes Cançado

Educação musical e diversidade: pontes de articulação ................................................................... 25Alda de Jesus Oliveira

Desafios para a educação musical: ultrapassar oposições e promover o diálogo .......................... 35Maura Penna

Por uma unidade e diversidade da pedagogia da performance ........................................................ 45Fausto Borém

Multifrenia na educação musical: diversidade de abordagens pedagógicase possibilidades para as profissões da música .................................................................................... 55

Abel Moraes

Inovação, anjos e tecnologias nos projetos e práticas da educação musical .................................. 65Luiz Alberto Bavaresco de Naveda

Educação musical apoiada pelas novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC):pesquisas, práticas e formação de docentes ....................................................................................... 75

Susana Ester Krüger

Educação musical: novas ou outras abordagens – novos ou outros protagonistas .......................... 91Magali Kleber

Conhecimento pedagógico-musical, tecnologias e novas abordagens na educação musical ....... 99Cássia Virgínia Coelho de Souza

Aprendizagem musical em família nas imagens de um filme ..........................................................109Celson Henrique Sousa Gomes

Aula de música na escola: integração entre especialistas e professorasna perspectiva de docentes e gestores ............................................................................................... 115

Maria Teresa de BeaumontJanete Aparecida BaesseMarcela Elessandra Patussi

A dimensão multicultural da nova filosofia da educação musical ...................................................125Luís Fernando Lazzarin

Autores ...................................................................................................................................................133

Normas para publicação .......................................................................................................................136

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ContentsEditorial ..................................................................................................................................................... 5

Cecília Torres

Sociocultural perspectives in music education research:experience, interpretation and practice ................................................................................................ 7

Joan Russell

Project Cariúnas: a purpose of music education in a holistic approach of education ................... 17Tânia Mara Lopes Cançado

Music education and diversity: articulation bridges ........................................................................... 25Alda de Jesus Oliveira

Challenges for music education: trespassing oppositions and promoting dialogue ....................... 35Maura Penna

For unity and diversity in the performance pedagogy ........................................................................ 45Fausto Borém

Multifrenia in music education: diversity of pedagogical approachesand possibilities for the music professions .......................................................................................... 55

Abel Moraes

Innovation, angels and technologies in projects and practices of music education ...................... 65Luiz Alberto Bavaresco de Naveda

Music education supported by the new Information and Communication Technologies (ICT):research, practices and docents’ formation ........................................................................................ 75

Susana Ester Krüger

Music education: new or different approaches – new or different protagonists ............................. 91Magali Kleber

Pedagogical-musical knowledge, technologies and new approaches in music education ........... 99Cássia Virgínia Coelho de Souza

Musical learning in family through a movies’ images .......................................................................109Celson Henrique Sousa Gomes

Music class in school: integration between specialists and teachersin the perspective of docents and managers ..................................................................................... 115

Maria Teresa de BeaumontJanete Aparecida BaesseMarcela Elessandra Patussi

The multicultural dimension of the new philosophy of music education ........................................125Luís Fernando Lazzarin

Authors ...................................................................................................................................................133

Notes for contributors ............................................................................................................................136

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Editorial

TORRES, Cecília. Editorial. Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 13, 5, mar. 2006.

É com imensa alegria que apresentamos o número 14 da Revista da ABEM – etambém o primeiro da nova gestão do biênio 2005-2007. Este número traz os textos de

uma parte dos convidados dos Forúns do XIV Encontro Anual da ABEM, realizado emBelo Horizonte, em outubro de 2005, e coordenado pelo professor Marcelo Sampaio da

UEMG. Na abertura, temos o artigo da convidada internacional, Joan Russel, quefocaliza as Perspectivas socioculturais na pesquisa em educação musical:

experiência, interpretação e prática.

Os textos de Tânia Mara Lopes Cançado, Maura Penna e Alda de Jesus Oliveirafazem parte do Fórum 1, cujo tema foi “Educação musical e diversidade”. Discutem

aspectos relacionados à diversidade cultural e à educação musical englobando açõespedagógicas e projetos socioculturais. Compondo o Fórum 2, que teve como tema

“Espaços e ações profissionais na educação musical”, trazemos o artigo de FaustoBorém, intitulado Por uma unidade e diversidade da Pedagogia da Performance, que,juntamente, com o texto Multifrenia na educação musical: diversidade de abordagens

pedagógicas e possibilidades para as profissões da música, de Abel Moraes,promovem uma reflexão sobre temas como pedagogia da performance musical e

multifrenia entrelaçados à construção do campo da educação musical.

Já no Fórum 3, intitulado “Educação musical e novas abordagens”, contamoscom os trabalhos apresentados por Luiz Alberto Bavaresco de Naveda, Susana Ester

Krüger, Magali Kleber e Cássia Virgínia Coelho de Souza, os quais mesclam eapresentam discussões acerca das tecnologias, com um enfoque nos projetos sociais,

no conhecimento pedagógico musical e nas novas Tecnologias de Informação eComunicação (TIC). Esta é certamente uma rede de temáticas que abrange uma

diversidade de abordagens e práticas na área da educação musical.

A seguir, apresentamos o artigo Aprendizagem musical em família nas imagensde um filme, de Celson Henrique Sousa Gomes, que tem como foco aspectos

relacionados ao ensino e à aprendizagem musical no contexto familiar e o projetoeducativo dos pais, numa perspectiva sociológica.

O texto seguinte discute questões da aula de música na escola, bem como otrabalho conjunto, com a integração entre professoras e gestores. As autoras Maria

Teresa de Beaumont, Janete Aparecida Baesse e Marcela Elessandra Patussidestacam algumas considerações das duas pesquisas desenvolvidas por elas e

apontam questões como a presença da aula de música como “vitrine” para os pais.

Finalizando, trazemos o texto de Luís Fernando Lazzarin, cujo título é Adimensão multicultural da nova filosofia da educação musical, que “analisa a

abordagem multicultural da experiência com música” e seu modelo multidimensional.O autor propõe uma reflexão envolvendo conceitos como música e diferença no campo

da educação musical.

Esperamos que os artigos apresentados neste número 14, que entrelaçam umadiversidade de temáticas, abordagens, contextos, concepções e pontos de vista possamcolaborar com os colegas da área da educação musical. Boa leitura!

Cecília Torres

Editora

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Grupo de Pesquisa
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Perspectivas socioculturais napesquisa em educação musical:

experiência, interpretação eprática

Joan Russell1

Universidade McGill, Montreal, Canadá[email protected]

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1 Tradução e adaptação para o português de Beatriz Ilari.

Resumo. O que significa ser musicalmente educado? O que significa ser músico? O que é amusicalidade, como a “adquirimos”, e como sabemos que já a possuímos? Quem decide? Essas eoutras questões são subjacentes às nossas práticas enquanto educadores musicais. Formadas apartir de nossas experiências socioculturais, elas desafiam nossas premissas acerca da música eda educação musical. Podemos aprender muito a partir do estudo de nossas próprias práticas e daspráticas dos outros, já que elas são socialmente construídas e fundamentadas. Ao fazermos isso,transformamos o “familiar estranho” em “estranho familiar”. Este artigo é uma síntese de algunsresultados de minhas pesquisas etnográficas em três comunidades diferentes. Aqui, faço um relatosobre a importância da comunidade para o desenvolvimento da expertise no canto nas Ilhas Fiji, dostemas relativos à cultura nas atividades musicais inventadas no Ártico canadense e da fusão deestilos e tradições em um workshop educacional realizado em Cuba. Esses resultados são contrastadoscom minha experiência educacional no Canadá; discuto de que maneira eles informam o meupensamento enquanto musicista, formadora de professores e pesquisadora.

Palavras-chave: pedagogia musical, formação de professores, etnografia na educação musical

Abstract. What does it mean to be educated, musically? What does it mean to be a musician? Whatis musicianship, how do we ‘get’ it, and how do we know when we ‘have got’ it? Who decides?These and other questions underlie our practice as music educators. They challenge our assumptionsabout music and music education, which are formed from our familiar sociocultural experiences.Much can be learned from studying our own practices, and the practices of others, as sociallyconstructed and culturally embedded. In doing so, we make the “familiar strange” and the “strangefamiliar.” This paper is a synthesis of some of the findings of my ethnographic inquiries in threecommunities. I report on the importance of community to the development of singing expertise in the FijiIslands, the cultural themes in invented musical activities in the Canadian Arctic, and the fusion ofstyles and traditions in a pedagogy workshop in Cuba. I hold up these findings against my Canadianteaching experience and I explain how they inform my thinking as a musician, a teacher-educator anda researcher.

Keywords: music pedagogy, music teacher education, ethnography in music education

Parte I: tornando-se musicista

Tenho seis anos de idade, e estou brincan-do, sentada no chão de minha casa. Minha mãe eminha tia estão cantando, alternando as vozesentre a melodia e a harmonia, ou “as primeiras e

segundas”, como elas costumam dizer. Elas gos-tam de cantar juntas; já vêm cantando assim desdeque eram pequenas, tendo começado no palco emais tarde na rádio.

RUSSELL, Joan. Perspectivas socioculturais na pesquisa em educação musical: experiência, interpretação e prática. Revista daABEM, Porto Alegre, V. 14, 7-16, mar. 2006.

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Meus avós vieram nos visitar. Meu avô enri-quece os acordes com sua voz de baixo, e minhaavó canta a melodia. Eles estão cantando Agora é aHora, uma canção tradicional dos maori,2 que soabem, e, por isso, me faz querer cantar junto. Minhavoz de criança encontra um lugar na harmonia e eulogo ingresso no coral da família. Nenhum de nóspassou por algum tipo de educação musical formal,mas nós somos uma família de músicos. Daqui aalguns anos, meu irmão mais novo acrescentará suavoz ao coro, e, logo mais, a próxima geração faráparte desta tradição de cantar “em família”.

Da família de minha mãe veio a tradição decantar harmonicamente.3 Da família do meu pai veioa tradição de tocar melodias escocesas na rabecaacompanhadas ao piano. Minha avó e meu avô to-cam tambores com muita vivacidade, embora mui-tas vezes apareça uma certa melancolia, típica demuitas melodias escocesas. Entretanto, na maiorparte do tempo, eles fazem música para dançar.

Essas experiências da infância criaram mi-nha identidade musical. A harmonia tonal é minhalíngua musical, e minha imersão nas práticas musi-cais de minha família a base de meu desenvolvi-mento como musicista e educadora musical. O pra-zer de fazer música em conjunto continua nutrindo aminha participação fazendo música com outras pes-soas da comunidade, algo que parece ser infinito.

Minha imersão precoce permitiu-me desviarfacilmente nas tradições e objetivos das instituiçõesculturais que freqüentei. Aprendi a tocar trompa –graças a um sistema de educação pública que em-prestou o instrumento – sem pagar nada. Mais tar-de, tornei-me professora de música em uma escolaregular, e depois professora de educação musicalna universidade; sempre a mais apaixonada das parti-cipantes de atividades musicais feitas em conjunto.

Comecei com um amor pela música e acabeiadotando algumas premissas do que significa fazerparte de uma comunidade musical. Minha experiên-cia me levou a crer que o que era “normal” era, defato, específico à cultura de minha família. Inicieiminha carreira de educadora há 30 anos, supondoque era normal todo mundo cantar, e que a música éuma linguagem universal culturalmente neutra.

Sempre pensei que todo mundo deveria ter ahabilidade (e a disposição) para cantar (e cantar afi-nado), para poder acrescentar vozes ad libitum a umaharmonização. Pensei que todos saberiam o que eu

sei a respeito da música, de práticas musicais vari-adas e repertórios, e que todos dariam valor às mes-mas coisas que eu. Minhas experiências enquantoparticipante, observadora e professora em ambien-tes culturais completamente diversos ampliaramminha forma de pensar e – assim espero – me torna-ram uma professora mais flexível e melhor informa-da, mais aberta às diversidades ofertadas pelo mun-do das idéias, tradições e práticas. Através de expe-riências musicais globais, tenho sido privilegiada compequenos flashes das diferentes maneiras de olhare estar no mundo. Cada experiência me ensina algode útil a respeito do educador musical. Cada experi-ência reafirma a idéia de que minhas pressuposi-ções são culturalmente situadas.

Neste artigo, falo a partir de três perspectivasinter-relacionadas: a da musicista, da educadora eda pesquisadora. Na primeira parte, descrevo breve-mente a minha formação enquanto musicista. Nasegunda parte, evoco três experiências que têm con-tribuído para o meu entendimento da importância dacomunidade e da cultura como fontes de “alimenta-ção” e sustentação da habilidade e da compreensãomusicais. Ainda nessa parte, faço uma breve intro-dução a uma perspectiva sociocultural que tem sidomuito útil na interpretação, inclusive educacional, decada uma das três experiências. Na terceira parte,reflito sobre o modo como minha trajetória musicaltem influenciado a minha forma de pensar e a minhaprática enquanto educadora musical.

Parte II: a “viagem”Ilhas Fiji: lições do Pacífico meridional

As Ilhas Fiji compreendem um conjunto deaproximadamente 300 ilhas no oceano Pacífico me-ridional, exatamente onde o Equador encontra a li-nha internacional de mudança de data. Visitei as ilhaspor duas vezes, na condição de uma turista com uminteresse especial no fazer musical. Em ambas asvezes, cantei com coros de igrejas; ansiosa parasaber mais a respeito das tradições musicais de umpaís que tem a reputação de uma nação cantora.

Evocando a experiência: participação eobservação

Estamos numa pequena aldeia numa manhãde domingo quente e empoeirada. Dois homens es-tão batendo com tacos num pedaço de madeira es-cavada, convidando a todos para o culto na Igreja

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2 Maori é o nome de um dos povos da Nova Zelândia (N. de T.).3 Cantar harmonicamente é um termo derivado do inglês e que significa cantar a várias vozes, em polifonia (N. de T.).

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Metodista. A pé e de ônibus, homens e mulheres,crianças e adolescentes chegam das adjacências.Todos estão vestidos com suas melhores roupas:os homens e os meninos usam camisas brancas eum sulu4 azul marinho ou branco, e as mulheres eas meninas usam longas túnicas sobre seus sulus.Muitas pessoas estão descalças. Dentro da igreja,os bancos logo enchem. Alguém me acompanha atéo assento de honra, localizado em frente ao altar.Sou a única pessoa presente que não é de Fiji. Flo-res coloridas decoram a mesa do altar e uma cruzde maneira está pendurada na parede, sobre doistacos de guerra. O culto começa e alguém me al-cança um hinário. À minha frente há um coral misto.Seus números musicais parecem estar fora de propor-ção em relação ao tamanho dessa aldeia rural. Paracomeçar o culto, eles cantam um hino a quatro vozes.Seus olhos estão fechados e, aparentemente, não hánenhum líder. Eles fazem os fraseados em conjunto,e variam a dinâmica de maneira suave.

Durante o canto dos hinos, fico rodeada desons. Toda a congregação ao meu redor está can-tando em harmonia. A riqueza de suas vozes e aressonância do som me dá arrepios. Mãos genero-sas encontram cada hino no hinário que está emminhas mãos, para que eu possa acompanhar o cultoque prossegue. As palavras estão na língua fijiana,mas como estudei as regras básicas de pronuncia,posso cantar foneticamente. Posso ler a notação nohinário, e algumas canções são conhecidas.Estamos cantando um hino na linguagem harmôni-ca de Bach. Estou de volta ao coração de minhafamília, e me uno às contraltos, registro mais con-fortável para a minha voz. Ainda que temporariamen-te, sinto que faço parte de uma comunidade – umacomunidade de pessoas que – assim como minhafamília – cantam.

As crianças estão empoleiradas como pás-saros coloridos em um barco. Elas cantam cançõesinfantis. Elas conhecem as palavras e foram instru-ídas, pelo chefe da aldeia, a cantar para nós. Kalawa,o chefe, nos diz: “Se o chefe diz que você tem quecantar, você tem que cantar.” Em Fiji, cantar pareceser uma obrigação social.

As crianças da escola estão cantando paraos visitantes. O diretor dá um comando e o canto setorna imediatamente mais forte. Evidentemente, oentusiasmo delas ficou aquém das expectativas. Eo canto precisa de entusiasmo.

Na quinta-feira à noite, caminho pela aldeia

escura em direção do grupo de prática coral emVatualalai. Ao passar pelas janelas semi-abertas dascasas, ouço famílias rezando e cantando hinosharmonicamente. Famílias iguais à minha cantamjuntas. A unidade familiar é o recurso do canto.

Durante a prática coral, pergunto a um senhoro porquê dos fijianos serem tão bons cantores. Eleme responde: “Nós nascemos para cantar.” A cren-ça de que somos cantores é importante.

Interpretando a experiência: somos seressociais

O teórico Etienne Wenger (1998) explica quesomos seres sociais, e que esse é um aspecto cen-tral da aprendizagem. Ele propõe uma teoria socialde aprendizagem que responde à questão: “Comoos fijianos aprendem repertórios e tornam-se canto-res competentes?” A teoria de Wenger (1998) expli-ca que o objetivo da aprendizagem é vivenciar o mun-do e engajar-se com ele de uma forma significativa.Aprendemos na comunidade com os outros quandoestamos engajados em atividades significativas quesão valorizadas pelas pessoas que nos são impor-tantes. Ele denomina esses ambientes de aprendi-zagem de comunidades de prática. A teoria de Wenger(1998) sustenta meu argumento de que em Fiji ashabilidades musicais são desenvolvidas em “comu-nidades de prática musical”. Essas comunidades deprática musical – esses ambientes de aprendizagem– se sobrepõem e são interdependentes. Através dasevidências, concluo que para fazer parte da comuni-dade de Fiji ou para construir uma identidade fijianaé necessário envolver o canto, já que cantar é umamaneira de expressar o que significa ser fijiano.

Nunavut – lições do Ártico canadense

O programa de formação de professores deNunavut é ofertado às comunidades residentes noÁrtico, preparando professores inuit5 para ensinarcrianças da comunidade. Ministrei cursos de músi-ca a três dessas comunidades. Aqui, o currículo édominado por valores eurocêntricos e urbanos dosbrancos. Enquanto preparava para viajar ao norte,questionei-me: “De quem são os valores imbuídosem meu ensino, e por que isso é importante?”

Evocando a experiência: participação eobservação6

Aqui em cima, “a terra” domina a vida. Há as-pectos da paisagem que são de uma beleza intocada:montanhas cobertas de neve, ilhotas pincelando a

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4 Um sulu é uma vestimenta típica de Fiji usada por homens e mulheres, e que se assemelha a uma saia ocidental (N. de T.).5 Inuit é o nome dado aos povos residentes no Ártico canadense (N. de T.).6 Notas de Sanikiluaq, um conjunto de ilhas na baía de Hudson. junho de 2003.

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baía congelada, bem como diversos tons de mar-rom, preto, cinza e branco. O ar é seco, como nodeserto. No inverno a terra é branca. No verão a ter-ra é marrom; um vazio com muita ventania. Noto aausência de árvores. As 24 horas de luz solar mefazem perder a noção de tempo. Acho difícil saberquando estou cansada e quando devo dormir porquea manhã e a noite parecem ser idênticas.

As sete mulheres matriculadas no curso deformação de professores possuem algum tipo deparentesco, por sangue, casamento ou adoção. Elasriem com facilidade e participam, entusiasmadas,das danças e jogos musicais interativos. Annesie,uma aluna do curso, inventou um jogo chamado de“caça ao urso polar”. O jogo une tradições inuit eqallunaat,7 para criar o que chamo de história musical.

Caça ao urso polar

Annesie divide a classe em dois grupos: oscaçadores e os ursos polares. Os ursos engatinhampelo chão. Os caçadores – cantando as palavras dacanção infantil inglesa London Bridge is Falling Downem inuktituk – dramatizam as diferentes etapas dacaça ao urso polar. Elas improvisam o ato de levan-tar cedo, vestir-se, empacotar os materiais, dirigir oski-doo (que é como uma motocicleta sobre esquis),procurar pelo urso polar e finalmente avistá-lo, car-regar a arma, mirar e atirar. Mas como a mira é ruim,o caçador não acerta. O urso, então, se levanta ecorre atrás dos caçadores que fogem por entre ascarteiras e cadeiras da sala, e finalmente escapamdo animal feroz saindo da sala. Em seguida, retornamà sala, miram no urso (que não reage), atiram e omatam. Os ursos caem no chão e os caçadores di-vertem-se numa dança tradicional de comemoraçãodo sucesso da caça. Em seguida, as estudantesinvertem os papéis, e o jogo recomeça.

As alunas participaram do jogo com um entu-siasmo enorme, e deram boas risadas. Pude sentiro elevado grau de excitação quando o urso correuatrás dos caçadores.

As jogadoras estavam completamente enga-jadas, o que deu ao jogo o dinamismo e a tensãoque faz parte de suas próprias experiências de caça.

O jogo de Annesie foi muito semelhante aoutros jogos inventados por alunos inuits, já que osmitos que permeiam a realidade da vida inuit estive-ram sempre presentes, o que garantiu o sucessodos mesmos. A caça ao urso polar está de acordocom os mitos que encontramos nos entalhos, tape-

çarias, gravuras, poemas e lendas dos inuits. Osconteúdos e os objetivos dos jogos são perfeitamen-te coerentes com estas outras formas de expressãocultural. Não tenho a menor dúvida de que em mi-nhas aulas na McGill meus alunos não iriam execu-tar a caça ao urso polar por conta de seu valor de-preciativo. Matar um animal selvagem se tornou po-liticamente incorreto na sociedade urbana qallunaat.

Uma pequena vinheta reforça essa visãocontrastante do mundo. Nós Vamos Caçar é o títulode uma canção infantil tradicional anglo-européia. Acanção é mais ou menos assim:

Nós vamos caçar

Nós vamos caçar

Pegaremos uma raposa e a colocaremos numa caixa

E, depois, vamos soltá-la.

Num belo dia, uma aluna inuit me disse: “Nósnunca cantaríamos ‘e, depois, vamos soltá-la’! Nóscantaríamos: ‘e, depois, vamos comê-la’”. Na pers-pectiva da inuit Maina, deixar a raposa escapar seriaalgo inimaginável. Com esse comentário, Maina cris-talizou uma diferença fundamental entre nossas cul-turas. Compreendi que os valores e as tradições deuma cultura fazem parte das canções e jogos infan-tis, e que ao usarmos essas canções e jogos quan-do ensinamos, estamos, de fato, transmitindo osvalores, mitos e tradições de um determinado grupocultural, de uma geração à outra.

Interpretando a experiência: mito, história ecurrículo

Hugh Brody (2000) nos conta que os mitos dacultura européia denotam uma história que contémverdades acerca da condição humana. Entretanto,segundo ele, na cultura indígena, os mitos são rela-tos de eventos e processos reais. Bringhurst (1999,p. 47) diz que o poder do mito é que ele está basea-do em uma história recorrente que pode ser evocadapor uma única imagem ou palavra, e que pode sercontada por uma “seqüência interligada de imagens,palavras ou gestos”. Uma mitologia genuína é um“tipo de ciência em forma narrativa” (Bringhurst, 1999,p. 288), diz ele.

As histórias são “importantes agentes de so-cialização”; trata-se de uma das muitas maneirasatravés das quais as crianças aprendem os valorese padrões dos mais velhos (Applebee, 1978, p. 53).As histórias ricas em imagens engajam o imagináriocoletivo. As histórias ricas em imagens expressam

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7 Qallunaat: palavra em língua inuktituk que se refere às tradições que não têm origem inuit.

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a história do coletivo através da metáfora. As históri-as ricas em imagens revelam verdades que constitu-em a base dos modos de vida da sociedade. Ficaevidente, portanto, a importância do mito no currícu-lo. A versão da história em que a raposa é solta docativeiro é uma versão que as crianças em Montrealapreciariam, mas que causaria perplexidade nas cri-anças inuit.

Se olharmos para as canções e jogos – comoa caça ao urso polar e Nós Vamos Caçar – comohistórias musicais, podemos ver que elas carregammitos e valores da coletividade (Ng’Andu; Herbst,2004). As histórias musicais também servem comoagentes de socialização, introduzindo as crianças amodos de pensar, crenças e valores de um determi-nado grupo cultural. A importância de estar extrema-mente atento ao conteúdo, produção e objetivo dashistórias musicais no desenvolvimento de um currí-culo musical culturalmente significativo é, portanto,evidente.

Canções e jogos musicais são culturalmenteespecíficos em seus objetivos, valores, contextos deuso e produção. Ao carregar as histórias, mitos etradições da cultura que as produz, os educadoresrefletem os valores culturais e as formas de estar nomundo (Applebee, 1978; Ladson-Billings, 1994) eensinam um modo de vida a seus alunos (Gaiwayene;Thomas, 2002).

Cuba: lições do Caribe

Viajei duas vezes para Cuba, a convite doMinisterio de Cultura, para ministrar cursos em pe-dagogia do movimento, usando uma abordagem ba-seada nas idéias de Dalcroze. Trabalhei com educa-dores musicais cubanos que ensinavam teoria eperformance nos conservatórios de Havana e SantaClara.

Evocando a experiência: participação eobservação

Hoje nós estamos cantando nossa canção dedespedida – no último dia do workshop – e eu ensi-no os educadores musicais cubanos falantes deespanhol a cantar uma canção em hebraico. ShalomChaverim é uma espécie de benção judaica – ou umcumprimento – cantado em tom menor. As palavrassão simples:

Shalom chaverim, shalom chaverim; shalom, shalom

L’hit’rao, l’hit’raot; shalom, shalom.8

Como muitas canções tradicionais, Shalom

Chaverim é muito simples. Aliado ao tratamento rít-mico-melódico o significado das palavras evoca asensação de calma e bem-estar. Assim que come-çamos a cantar em cânone a quatro vozes, a can-ção parece não ter fim, pois há uma mistura riquíssimade texturas, cores e intensidade, ao mesmo tempoem que mantém uma certa calma.

Entramos lentamente na sala, explorando oespaço, com nossos pés marcando o pulso e nos-sas vozes cantando uma melodia a várias vozes.Nossos corpos “flutuam” no espaço, no tempo damúsica. Nossos movimentos são graciosos, tran-qüilos, refletindo um tempo calmo e uma espécie depaz através da canção. Conduzo os alunos para forada sala de ensaio e em direção ao corredor. Prosse-guimos lenta e calmamente, passando por todas assalas de ensaio, inclusive pela sala em que os alu-nos de ballet estão se exercitando. Ainda caminhan-do lentamente sem parar de cantar, retornamos àsala inicial. Nosso canto parece ter um caráter hip-nótico.

Espontaneamente, os alunos começam abater um ritmo sincopado com as mãos, superpondosuas palmas vívidas sobre a canção silenciosa,acrescentando uma nova dimensão à textura musi-cal. Eles me olham, como se estivessem procuran-do por uma reação: “Será que a professora não vaiaprovar? Será que insistirá em fazer as coisas a seumodo – do modo ‘correto’, do modo como aprendeu,do modo como a canção é normalmente cantadanos lugares sagrados?” Prossigo cantando e baten-do palmas, sempre sorrindo. Não tenho a menor idéiaonde iremos parar ou o que acontecerá a seguir.Nesse momento não sou mais a professora, massim uma simples “seguidora” de uma comunidadede músicos, e permaneço no aguardo de novos des-dobramentos. Um aluno pega um tambor e acres-centa um padrão de “3 contra 2”, algo típico da práti-ca musical cubana. Um outro aluno corre até o pia-no e improvisa um acompanhamento harmônico,acrescentando mais um padrão rítmico; uma novacamada e voz à textura. Estamos agora completa-mente imersos na polifonia.

O caráter da canção é completamente trans-formado. A canção é agora completamente rítmicae possui uma textura mais vívida, embora mantenhasua “base” calma e lenta, bem como seu texto aben-çoado. Todos continuam a caminhar lenta e gracio-samente, e passam a cantar as linhas melódicaslongas e flutuantes em seu estilo legato – da manei-ra apropriada. Isso prossegue por mais dez minu-tos. Não há indícios de que alguém queira parar. Sou

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8 “Bom dia amigos, que a paz esteja convosco”.

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pega em meio ao evento inefável e aparentementeinexorável, que está definitivamente fora das minhasmãos. Fico relutante em terminá-lo.

Também fico confusa com o meu próprio jei-to estabanado. Minhas experiências musicais na in-fância me ensinaram muitas coisas a respeito damúsica e eu consigo bater os pés para acompanharo pulso da música; mas não consigo bater o ritmosincopado enquanto canto a canção, e minhaperformance é muito humilde. O que é difícil paramim parece ser uma brincadeira de criança para to-dos na sala, inclusive para os alunos adolescentes.Finalmente a energia parece acabar. A sessão termi-na e o relógio começa novamente a medir o tempo.

Os professores do conservatório com os quaistrabalhei não tinham nenhum tipo de treino pedagó-gico especializado. No entanto todos eram excelen-tes músicos, vívidos, entusiastas e participativos.Eles também tinham um senso acurado de polifoniarítmica, e aprenderam rapidamente todas as tarefasque lhes passei. Eles tinham muita confiança emsuas habilidades musicais e improvisavam todos osmovimentos sem muita autoconsciência, isto é, semhesitar em participar de tarefas que exigiam coisascomo se alastrar pelo “espaço pessoal”’ do outro,dar as mãos, olhar nos olhos e improvisar escultu-ras corporais em grupo. Os professores cubanos comos quais trabalhei usaram uma canção silenciosacomo base para o desenvolvimento de um “eventomusical”’ colaborativo tipicamente cubano, usandovárias vozes.

Interpretando a experiência: negociando astensões entre preservação e desenvolvimento

As reflexões de Bebey (1969/1975) sobre amúsica africana foram muito úteis para que eu pu-desse interpretar minhas experiências cubanas.A população multicultural de Cuba inclui pessoasde origem européia-espanhola e africana, e, comoé bem sabido, a música cubana reflete essas tra-dições culturais. Francis Bebey é um pesquisa-dor especialista em música africana, que fala muitoa respeito das tensões entre a preservação e odesenvolvimento. Segundo ele, a tensão ocorrequando culturas diferentes competem por espaçoe influência. Ele diz: “Enquanto a preservação re-fere-se ao colocar coisas em uma caixa, o desen-volvimento é sinônimo de investimento […]”(Bebey, 1969/1975, p. 140), e fala das pressõessobre a expressão musical tradicional que é usur-pada pelo mundo externo. Bebey se refere a qual-quer grupo cujas tradições estão sujeitas a mu-danças, quando estas se deparam com influênci-as externas.

Como as tradições sustentam suas formasdiferenciadas? Como as comunidades respondem,de maneira positiva, às influências de outras cultu-ras? Como elas acomodam e assimilam novas idéi-as e práticas musicais? Bebey explica que a músi-ca africana autêntica é vital e geralmente coletiva(até mesmo comunal), e exerce papéis sociais,terapêuticos e até mesmo mágicos na sociedade. Amúsica africana é quase sempre acompanhada demovimento; é raramente individual e geralmente pos-sui muitas camadas sonoras e vozes. Estes elemen-tos da música africana descrevem o ato de fusãoespontânea que vivenciei em meu workshop em Cuba.

Parte III: Da experiência e interpretação àprática

Essas viagens foram estimulantes e recom-pensadoras, tanto no nível musical quanto no nívelpessoal. Mas como elas têm afetado minhas práti-cas como professora e meus pensamentos sobre aeducação? A questão que me coloco agora é: “Oque acontece neste lugar, nas vidas e nas experiên-cias dos alunos, que irá influenciar minhas aborda-gens pedagógicas, minha escolha de materiaiscurriculares e minhas estratégias de avaliação?”Portanto, “seria este um grupo de alunos cultural-mente homogêneo ou heterogêneo?” “Quais bensculturais, sociais e pessoais – ver Bourdieu (1993) –eles trazem para esta situação em que estaremosjuntos?” “Como, na condição de aprendizes, elespercebem suas próprias habilidades musicais e po-tenciais?” “Quais comportamentos, conhecimentos,habilidades e disposições posso esperar deles?”

Fiji: nós somos inerentemente musicais

Minha experiência em Fiji me ensinou muitascoisas. A experiência afirmou a idéia de JohnBlacking (1995) de que a música é apenas um traçocaracterístico humano, mas que também é neces-sária para a sobrevivência humana. A experiênciatambém reforçou minha crença – advinda da infância– de que a maioria das pessoas possui habilidadesmusicais que, com apoio social (estruturas e expec-tativas) e cultural (crenças e valores) apropriados,podem ser cultivadas de alguma maneira. Vejo aspráticas musicais dos fijianos como evidências deque a habilidade de cantar pode ser desenvolvida emum grau elevado, e que a habilidade de cantar empolifonia não é exclusividade de alguns indivíduostalentosos, mas um tipo de expertise que se desen-volve em algumas condições particulares. A experi-ência em Fiji me ensinou muito a respeito da impor-tância de pertencer a uma “comunidade de prática

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musical”, um ambiente de aprendizagem para crian-ças e adultos que aprendem juntos. Em tal comuni-dade, o grupo tem um repertório comum de canções,e o canto é uma prática altamente valorizada portodos, que se ligam através de uma experiênciamusical. Sugiro sempre aos meus alunos-professo-res que há muito valor em criar uma subcultura mu-sical na escola, isto é, uma comunidade musicaldentro de uma estrutura institucional ainda maior.Com base em minha experiência em Fiji, recomen-do adotar a seguinte estratégia de oito itens:

1) não introduzir instrumentos musicais en-quanto o corpo não tiver aprendido a cantar;

2) tornar o canto uma prática regular nos ritu-ais escolares;

3) desenvolver um repertório de “nossas can-ções”;

4) encorajar o canto em momentos inespera-dos;

5) colocar crianças e adultos para cantaremjuntos;

6) cantar a várias vozes (em polifonia);

7) oferecer muitos workshops musicais inten-sivos para professores generalistas;

8) encorajar professores generalistas, pais eprofessores especialistas a trabalharem jun-tos em projetos musicais.

Nunavut: visões de mundo alternativas

A experiência em Nunavut me ensinou que asatividades musicais não são culturalmente neutrase que especialmente as letras das canções são es-pecíficas da cultura e refletem visões de mundo par-ticulares. Uma canção em que uma raposa deve sercomida ao invés de solta expressa uma visão domundo natural através do olhar inuit. O comentáriode Mina desencadeou um insight que me fez com-preender uma das diferenças fundamentais entrenossas culturas, e como estas fazem parte do currí-culo que conheço e uso. A experiência me revelou,em um instante, que os valores e tradições que es-tão imbuídos nas palavras das músicas que eu co-nheço, bem como nas histórias, me dizem muito arespeito da maneira como a minha sociedade (e nãonecessariamente a sociedade inuit) reflete os valo-res e tradições da minha cultura. Isso me leva a re-fletir sobre as questões éticas e políticas quepermeiam as decisões a respeito de currículos, eem como estas questões estão à frente no discursode descolonização da educação em muitas partes

do mundo (Addo, 2001; Addo; Miya; Potgieter, 2003;Battiste, 2004; Dzansi, 2002; Flolu, 1998, 2000;McConaghy, 2002; Ng’Andu; Herbst, 2004;Kanonhsionni; Hill; Stairs, 2002; Orr et al., 2002;Ross, 2004, Tuhiwai-Smith, 1999).

Quando as crianças cantam e realizam jogosmusicais, elas internalizam os valores e tradiçõesque esses jogos e canções representam. Caso ocorrauma divisão entre aquilo que as crianças vivenciamna escola e aquilo que vivenciam na comunidade,pode haver uma dissonância, que faz com que mui-tas crianças achem difícil fazer a ligação entre aqui-lo que aprendem na escola e as coisas que lhes sãosignificativas. Elas podem, inclusive, não se engajarou até mesmo deixar de ver qualquer relevância naexperiência musical escolar. De fato, Dzanzi (2002)concluiu que as crianças de Gana que vivenciamapenas os conceitos musicais ocidentais de orien-tação estética eurocêntricos nas aulas de músicada escola regular (um legado do período da coloni-zação) descrevem a música como a matéria maisinútil de todo o currículo escolar. É desnecessáriodizer que esse é o tipo de crítica que nenhum de nóseducadores musicais gostaríamos de ouvir da bocade nossos alunos. Várias pesquisas sugerem queos alunos geralmente acham a escola mais signifi-cativa quando não são alienados de seus valoresculturais (Cummins, 1986; Foster, 2002; Heath, 1983;Ogbu, 2002; Russell, 2006). Tornar as experiênciasmusicais significativas é um grande desafio que ten-tamos vencer, cada um de uma forma particular e deacordo com a maneira que percebemos nossas cir-cunstâncias e aquelas de nossos alunos.

Numa resenha de um livro sobre formaçãomusical (Russell, 2004), explico que traduzir pala-vras como “cantar” e “canção”, do inuktituk para oinglês é difícil porque estes termos são conceituais.Trata-se de conceitos construídos culturalmente, quepossuem significados que são específicos à cultura.Por exemplo, o que nós chamamos de canto gutu-ral, em inuktituk se diz kattajait. Não temos um ter-mo correspondente na língua inglesa, e acabamostraduzindo kattajait como algo conhecido. E assimsucessivamente. Definições são importantes paraestabelecermos um diálogo intercultural. “Música” e“formação musical” também são termos contestá-veis, pois seus significados variam de acordo comque os usa. Usei os termos “canção”, “canto”, “mú-sica” e “histórias musicais” para fazer referência aqualquer prática ou atividade que envolva o uso rítmi-co da voz ou do corpo.

A criação de um currículo é uma atividadepolítica que é estabelecida pelas vozes dominantesdas comunidades culturais; uma forma de garantir

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que os valores estejam refletidos no currículo (Apple,1999). Uma análise dos temas – caçar, pescar, acam-par – das atividades criadas por meus alunos inuitrevela suas relações com o mundo natural. De acor-do com os jogos inventados, os animais são caça-dos e comidos. A atividade geralmente acontece emconjunto; a caça é elemento de excitação, e seusucesso é ocasião para comemorar, já que significasobrevivência. Na educação musical, podemos en-contrar valores nos repertórios, textos, estruturas epedagogias que utilizamos. De quem são estes va-lores e quem decide? Retratos sentimentais da vidaanimal, como nas histórias criadas por Walt Disney,são inapropriados para crianças indígenas e aborí-gines, como as crianças inuit.

situá-los culturalmente e explicar a função e o valordas mesmas àqueles que as criaram.

Cuba: desafiando o conhecido

Todo e qualquer grupo cultural tem tradiçõesque são valorizadas. Cada tradição tem uma lingua-gem musical que é familiar àqueles imersos nela.Os alunos trazem muitos saberes que nós desco-nhecemos para nossas salas de aula; muitos im-possíveis de emergir sem a nossa intervenção. Oque aconteceria se nós insistíssemos para que pelomenos parte da experiência musical que oferecemosaos nossos alunos incluísse dança ou movimento?Que influência sofreria o nosso repertório clássicoocidental se nós permitíssemos – ou insistíssemos– que nossos alunos explorassem novas maneirasde executar peças conhecidas? O que aconteceriase fizéssemos uma superposição de ritmospercussivos cubanos numa sonata de Beethoven?Em que tipos novos de performance isso resultaria?O que diria Beethoven? Precisamos estar abertosàs histórias de nossos alunos, atentos àquilo queBourdieu (1993) chama de “bem cultural”, para criarum “espaço”’ destinado à diferença, proporcionandoaos alunos as ferramentas e a permissão para usartais conhecimentos para explorar, trazer “de volta” evalidar o que eles sabem. Se fizermos isso para osnossos alunos, teremos também a possibilidade deexpandir nossas formas de pensar, de sair das “cai-xas pequenas e apertadas” em que muitas vezesnos encontramos, sobretudo se trabalharmos demaneira consistente dentro dos limites institucionais.Com sorte, nossos horizontes musicais e os de nos-sos alunos se expandirão.

Comentários finais

Na condição de alguém treinada pelo modeloconservatorial de tradição européia, fui ensinada queo objetivo mais importante da aprendizagem é “acer-tar”. Muitas vezes os examinadores faziam apenascomentários relacionados às notas que errei, levan-do à crença de que tocar corretamente é a únicaevidência de habilidade musical. Ainda criança deuma família musical eu sabia, instintivamente, queera possível fazer música sem ter nenhum tipo detreino formal; cometer ou corrigir erros eram concei-tos completamente desconhecidos para mim. Hoje,na condição de uma educadora musical que já pas-sou por muitas jornadas e viagens de descoberta,estou menos preocupada com o “acertar” e mais in-clinada a deixar a energia fluir quando os alunos ga-nham uma sensação de controle sobre suas própri-as experiências musicais. São experiências especi-almente pungentes para muitos dos licenciandos emeducação que freqüentam a minha sala de aula,

Estudos acerca dos rituais cantados e deoutras práticas musicais que constituem o currículona área de música revelam que estes têm uma rela-ção recíproca com os valores e práticas de suascomunidades (Addo, 2001; Blacking, 1995; Campbell,1996, 2002; Dzansi, 2002; Mans, 2000; Russell,1999, 2001, 2002, 2003, 2004, 2005, 2006). Estáclaro que o currículo é um trabalho político e que umcurrículo que pretende valorizar o multiculturalismoprecisa de muito mais do que canções cantadas emoutras línguas. Como educadores, precisamos com-preender as atividades musicais como expressõesculturais, bem como discutir a maneira de detectaros valores culturais representados pelas canções eações. Embora possamos encontrar histórias musi-cais de outras culturas através de discussões, audi-ções e execuções, nós nem sempre compreende-mos o significado, o objetivo e o valor implícito des-sas tradições musicais para as culturas que as pro-duziram. Licenciandos em música, professores uni-versitários da área de educação musical ou que dãoaulas em classes multiculturais devem estudar oconteúdo das canções infantis e jogos musicais,

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muitos dos quais crentes de que não são “musicais”e que relutam a cursar disciplinas de música por-que, conforme dizem, não sabem cantar ou são in-capazes de ler uma partitura. Eles têm medo de “nãoacertar” e parecerem ridículos. Nesse espaço de “flu-xo” que forneço a meus alunos, confiança, possibili-dade de risco, coesão social e senso de comunida-de são mais passíveis de se desenvolverem. Issoocorre porque os alunos têm espaço para explorar,cometer “erros” e desenvolver suas identidades mu-sicais. Esse objetivo educacional é obviamente tãoimportante quanto o “acertar”.

Também estou comprometida a ajudar meusalunos a enxergarem que o que nós fazemos em

música não é “normal”, mas sim o resultado de umaou de muitas práticas, herdadas em grande parte detradições eurocêntricas. Quando trabalho com alu-nos de pós-graduação, acho essencial ajudá-los aver a importância de serem conscientes do local emque se situam no que tange às suas interpretaçõesde eventos observados e vivenciados. Perspectivassocioculturais em educação musical, como as dis-cutidas aqui, sugerem que significado, identidade evalores são criados em comunidades, juntamentecom aqueles que compartilham (ou desejam com-partilhar) valores e práticas comuns. E isso me pa-rece ser útil; um pensamento que pode (e deve) sem-pre nos guiar ao elaborarmos e implementarmosquaisquer pedagogias ou conteúdos curriculares.

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Recebido em 19/03/2006

Aprovado em 29/03/2006

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Introdução

Pelas várias acepções do termo “diversidade”,o tema deste fórum facilmente nos levaria a discur-sar sobre a educação musical e suas variedadesmetodológicas, o que nos remeteria a atualizadasreflexões. Entretanto, escolhemos falar sobre o ca-minho da educação em face da “diversidade huma-

Resumo. A proposta deste artigo é apresentar, para reflexão, a experiência do Projeto Cariúnas,um programa sócio-cultural desenvolvido com crianças e adolescentes da periferia norte de BeloHorizonte, que trabalha a educação musical numa abordagem holística da educação. O artigotambém apresenta para discussão uma outra característica do Projeto Cariúnas – a“interdisciplinaridade”. Na introdução, o artigo trata dos conceitos básicos da educação holística.Numa segunda parte, relata a experiência do Cariúnas, descrevendo seus princípios de açãopedagógica; as etapas do processo pedagógico; e suas formas de avaliação. Na parte final, o artigoapresenta algumas situações reais apresentadas em forma de “casos”, que ilustram a experiênciapedagógica do Projeto Cariúnas, e sugerem algumas reflexões.

Palavras-chave: Cariúnas, holístico, criança

Abstract. The purpose of this article is to present the experience of “Cariunas Project”, and promotereflexion about it. “Cariunas” is a social-cultural project developed with children and adolescentsfrom a very poor neighborhood of Belo Horizonte City (Minas Gerais State - Brazil), which is basedon music education under a holistic approach. The article also brings to discution another caractheristicof “Cariunas” – “The integration of cultural activities”: music, and dance. In the introduction, the articlepresents the basic concepts of Holistic Education. On the second part, It presents the “Cariunas”experience itself, describing its basics on the pedagogic action, the steps of the pedagogic process,and its evaluation manners. At the end, the article brings some real situations written as “cases”,ilustrating the pedagogical experience of “Cariunas Project”.

Keywords: Cariúnas, holistic, child

Projeto Cariúnas – umaproposta de educação musicalnuma abordagem holística da

educação

Tânia Mara Lopes CançadoUniversidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

[email protected]

na”, e de como essa educação trabalharia o indiví-duo através da música, levando-se em conta as dife-renças físicas, psicológicas, sociais e culturais ine-rentes ao ser humano. Pretendemos apontar a con-cepção holística da educação como a mais adequa-da para se tratar dessa diversidade humana.

CANÇADO, Tânia Mara Lopes. Projeto Cariúnas – uma proposta de educação musical numa abordagem holística da educação.Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 14, 17-24, mar. 2006.

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Para demonstrar a aplicação de uma aborda-gem de educação holística no atendimento de crian-ças e adolescentes e de seus potenciais resulta-dos, relataremos aqui uma experiência de projeto deensino de música que tem aplicado esta abordagem– o Projeto Cariúnas – que trabalha com a propostade educação integral, e tem, na “interdisciplinaridade”,o seu objeto de referência.

Em seu livro Educação Integral – uma Educa-ção Holística para o Século XXI, Rafael Yus (2002,p. 15) registra que “tudo que está relacionado com oholismo vem do termo grego holon, que faz refe-rência a um universo feito de conjuntos integra-dos que não pode ser reduzido a simples somasde suas partes”.

O filósofo e educador grego Sócrates já di-zia que só há duas formas de educar o ser huma-no: educar o corpo através do movimento e edu-car o espírito através da música. Desse pensa-mento advém uma das mais sublimes mensagensque conhecemos do povo grego, que já demons-trava sua capacidade para descobrir a relação do“eu” com o universo.

Sem pretensões de querer analisar ou sinteti-zar a filosofia educacional de uma cultura tão distan-te da nossa, sugiro que a educação grega nos legouum modelo ideal de educação integral, que enfatizaa busca pelo desenvolvimento global do indivíduo.

Entretanto, essa filosofia desenvolvida na An-tiguidade se perde com o tempo. Segundo J. Miller(1996), desde a Revolução Industrial, a humanidadeestimulou a compartimentalização e a padronização,cujo resultado foi o surgimento da fragmentação davida nas diversas esferas da vida humana, refletindoem mudanças nas áreas econômica, social, pesso-al, e principalmente nas áreas da cultura e da edu-cação. Frente a essa fragmentação, também a es-cola sente o seu reflexo nas suas ações e conteú-dos, que passam a ser compartimentados, hierarqui-zados e fragmentados (Yus, 2002, p. 13).

Com os avanços da pedagogia e da psicolo-gia, várias correntes pedagógicas surgiram no intui-to de sanar essa deficiência do ensino. Na músicanão foi diferente. A partir do final do século XIX e nodecorrer do século XX, os denominados métodosativos – metodologias que partem da vivência parachegar ao conhecimento teórico – resgataram a filo-sofia de integração, da não fragmentação da experi-ência musical e da democratização do ensino. Es-ses métodos vêm reforçar a participação efetiva doaluno e a “necessidade de estruturar o ensino emtermos da natureza da criança, e em função de suasnecessidades” (Penna, 1990, p. 61).

Dalcroze, Willems, Orff, e tantos outros edu-cadores, ao privilegiar na educação musical o serintegral, e o sentir e o pensar como premissas doconhecimento, resgatam em suas metodologias afilosofia da educação integral. Sekeff (2002, p. 120)resume essa abordagem nas seguintes palavras:

Pontuar música na educação é defender a necessidadede sua prática em nossas escolas, é auxiliar o educandoa concretizar sentimentos em formas expressivas: éauxiliá-lo a interpretar sua posição no mundo; épossibilitar-lhe a compreensão de suas vivências, éconferir sentido e significado à sua condição deindivíduo e cidadão. Como toda comunicação envolveconflito, poder, ideologia, negociação, o educandoprecisa aprender a lidar com esses valores comcompetência e autonomia; e aí, mais uma vez, emergea possibilidade da música como agente mediador,auxiliando-o na construção de um diálogo com arealidade. Mesmo porque sua interface vai além doestabelecido rotineiramente.

Apesar do termo “holístico”, que pode ser en-tendido como “integral” ou “global”, ser tão antigo, atradição de seu uso tem raízes em filósofos e pedago-gos do século XVIII, como, por exemplo, Pestalozzi,passando posteriormente por outros reconhecidosmestres da educação do século XX, como MariaMontessori, Rudolf Steiner, e em especial o cana-dense J. P. Miller (1996), que utilizou pela primeiravez o termo Educação Holística. Para eles, a educa-ção holística implica uma educação integral, na qualse trabalha não só o desenvolvimento do intelectode cada criança, mas também os aspectos físicos,emocionais, sociais, estéticos, intuitivos e espiritu-ais, inatos a todo ser humano.

A educação holística

A visão holística enfatiza uma série de valo-res; descrevemos aqui alguns dos seus aspectosrelevantes para ao nosso objeto de reflexão:

• o ser humano é visto de uma maneira glo-bal, ou seja, como portador de corpo, mentee espírito; a educação integral visa a desen-volver todas as suas potencialidades;

• o holismo acredita na inteligência múltipla:o processo de aprendizado de um indivíduoenvolve suas habilidades mentais, físicas, suaimaginação e seus interesses ou motivações;

• é no corpo que se originam as sensações eemoções do ser humano e é através do movi-mento que as energias são liberadas; assim,numa educação holística, é dada ênfase à lin-guagem corporal;

• a educação holística acredita no aprendiza-do a partir da experiência, da descoberta, do

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interesse, da curiosidade, para então encon-trar sentido nessa experiência;

• a educação holística reconhece que todoconhecimento tem um significado e que eleprecisa e deve ser transmitido. Em todo apren-dizado existe uma ponte, um ponto de inter-seção, que confirma que tudo nessa vida écompartilhado. Isso leva à valorização dainterdisciplinaridade;

• o holismo propõe a busca do equilíbrio emtudo, pois à medida que se busca esse equi-líbrio nas tendências ou nos processos da vida,busca-se também a conciliação. Isso pressu-põe a busca do equilíbrio entre razão e intui-ção, pensamento analítico e pensamentosincrético, ciência e arte, etc.;

• enfatizando a imaginação, a criatividade, acooperação e o sentido de comunidade, oholismo acredita que todos os seres huma-nos têm potencialidades ilimitadas e capaci-dade de exercê-las;

• o holismo valoriza as dimensões espirituaisdo ser humano, sem enfatizar nenhuma filo-sofia ou crença religiosa. Ele leva o indivíduoa valorizar a vida, a desenvolver um estado deharmonia e equilíbrio pessoal e se responsa-bilizar pela construção da paz no mundo.

À primeira vista, o holismo poderia ser vistocomo uma filosofia educacional utópica, uma vez quesugere que os indivíduos podem estar integrados àsua comunidade e ao universo como um todo, deforma a atuar no mundo de maneira perfeitamenteequilibrada. Mas, se atentarmos para a natureza,perceberemos que todos os sistemas interagemconstantemente entre si, sejam eles micro oumacroorganismos. Como afirma o físico Fritjof Capra(2002, p. 51):

Todo organismo vivo responde às influências ambientaiscom mudanças estruturais, e essas mudanças, porsua vez, alteram o seu comportamento futuro. Emoutras palavras, o sistema que se liga ao ambienteatravés de um vínculo estrutural é um sistema queaprende. A ocorrência de mudanças estruturaiscontínuas provocadas pelo contato com o ambiente éuma das características fundamentais de todos osseres vivos.

Nesse sentido, por acreditar na responsabili-dade do educador para com a interação com oseducandos, idealizei o Projeto Cariúnas como umaabordagem democrática de educação musical inte-grada a outras artes, dirigida a um contexto socialdesfavorecido, com objetivo de oferecer não apenasexperiências estéticas, mas experiências significa-

tivas compartilhadas socialmente, envolvendo a men-te, o corpo, as emoções e o espírito dos envolvidos.

E, finalmente, por acreditar que as experiên-cias vividas nesse projeto e os resultados colhidosaté hoje podem exemplificar o sucesso de uma pro-posta não convencional, diversa, de ensino musicaltransformador, que me proponho a relatar e refletir,essa experiência.

Genesis

Primeiramente, acredito que a reflexão aquiproposta nos remeterá a muitas situações que per-meiam nosso caminho como educadores, situaçõesque nos surpreendem, por apresentarem resultadosinesperados para nós. Um exemplo disso ocorrequando nosso campo de ação educacional está cir-cunscrito a um contexto distinto da nossa realidade,por exemplo, um contexto formado por comunida-des de crianças e adolescentes carentes, origina-dos de favelas da periferia, e de níveis sócio-cultu-rais diversificados. Além dessa diversidade, a faltade perspectiva de vida e descrença no futuro é outracaracterística que constatei pessoalmente junto amuitos jovens dessas comunidades.

Ao longo de minha experiência, percebi tam-bém que a realidade vivida por esses jovens, por ve-zes, difícil de compreender. Os sentimentos de medo,raiva, orgulho, ciúme e rancor estão fortemente pre-sentes, gerando todo tipo de conflitos internos e ex-ternos, refletindo-se em reações de agressividade,indisciplina, desconfiança e tantos outros comporta-mentos negativos, relacionados à baixa estima.

Foi junto a crianças e jovens com padrões decomportamento como os citados acima que implan-tamos, em 1988, na periferia de Belo Horizonte, comoum programa de extensão da Escola de Música daUniversidade Federal de Minas Gerais, um projetode educação musical que denominamos Criança eMúsica, cuja experiência tem sido uma das maissignificativas da minha vida. Através dessa convivên-cia, compreendi o real valor da música, não só comoum instrumento sensibilizador, mas também trans-formador. Compreendi também que, a minha funçãocomo musicista e pedagoga, bem como a de todosque se agregaram ao projeto, teria que transcendero papel de mera professora.

Os princípios de ação pedagógica

A experiência no projeto Criança e Músicagerou perguntas que, durante muito tempo, não pu-demos responder. Entretanto, a partir da observaçãoda ocorrência sistemática de determinadas atitudese comportamentos dos jovens, bem como da obser-

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vação dos resultados artísticos musicais alcança-dos, nasceram três princípios pedagógicos distin-tos. Esses princípios formaram, então, a base fi-losófica e pedagógica para a criação e desenvol-vimento do Projeto Cariúnas, que foi implantadono ano 2000.

O primeiro desses princípios defende a edu-cação integral como a fórmula ideal para ajudar jo-vens carentes a recuperar ou desenvolver sua habili-dade de sonhar, desejar e construir seu próprio futu-ro. Esse princípio envolve uma educação abrangente,na qual são trabalhados simultaneamente o corpo, amente e o espírito, sendo a afetividade uma das prin-cipais ferramentas desse processo. O segundo prin-cípio defende o treinamento intensivo da percepçãoem suas mais variadas formas – visual, auditiva ecinestésica, bem como o desenvolvimento das habi-lidades de comunicação, criatividade, dentre outrastantas potencialidades, considerando-se que taishabilidades são determinantes, primárias e básicaspara qualquer processo de aprendizado. Finalmen-te, o terceiro princípio defende a integração da dan-ça no processo dessa educação integral, por ser alinguagem corporal uma expressão autêntica e pri-mária do ser humano.

Hoje, podemos dizer que esses três princípi-os, gerados pela experiência de quase 20 anos devivência educacional e convivência com essas co-munidades, traduzem ênfases da educação holística.Acreditamos que essa distinção confere ao ProjetoCariúnas um caráter inovador, considerando que essafilosofia se originou como resposta a uma determi-nada circunstância social. Nesse contexto, o Cariú-nas oferece para todos os alunos cursos de músicavocal e instrumental; dança clássica e moderna;percepção musical; criação na dança e na músicavocal e/ou instrumental; e ainda a conjugação de di-versas formas de expressão (dança, música e teatrointegrados), que culmina com a elaboração e apre-sentação de musicais.

Etapas do processo pedagógico do Cariúnas

O Projeto Cariúnas tem sido realizado emduas etapas distintas. A integração das atividades jáse apresenta na primeira etapa do projeto, que temduração de dois anos, e trabalha com os alunosiniciantes. É nessa fase que as crianças começama se autodescobrir, pois são oferecidos a elas osvários meios para que possam desenvolver as suaspotencialidades, tanto humanas quanto artísticas.

Na atividade que denominamos “aula integra-da”, os educandos participam de vivências simultâ-neas nas áreas da musicalização, do canto coral,

do teatro e da dança. Numa combinação de “doismovimentos complementares, o da atividade e o dacriatividade”, essa vivência leva cada criança à des-coberta e à experimentação, cujo resultado são ostrabalhos individuais e performances coletivas, tam-bém de caráter interdisciplinar (Sekeff, 2002, p. 123).

Nessa fase inicial, as atividades são desen-volvidas por três professores, que se alternam nocomando das atividades. Reuniões semanais sãorealizadas, para reflexão, análise e registro das ativi-dades e preparação de roteiro para a continuidadeda disciplina. O conteúdo musical trabalhado nessafase não obedece a uma grade curricular, nem a umlimite de tempo para sua realização. Dessa forma,leva-se em conta um respeito às fases de desenvol-vimento integral das crianças. Além da atividade ci-tada acima, vivências privilegiando o trabalho de ou-vido também são oferecidas aos alunos, através daexperimentação e iniciação ao teclado, violão e àflauta doce.

Na segunda etapa do processo, que tem aduração média de três anos, a integração das áreasse torna cada vez mais expressiva. Ela está presen-te tanto nas atividades instrumentais e nas aulas dedança ou coral quanto nos trabalhos coletivos decriação e percepção musical. Na atividade de per-cepção, por exemplo, todos os alunos trabalham aprática de seu instrumento principal, integrada àsinformações teórico-musicais que incluem uma vari-edade de conteúdos e práticas, tais como audição,apreciação, criação, escrita, leitura, performance,improvisação, etc. É também nessa etapa do pro-grama que os alunos escolhem livremente o instru-mento de sua predileção. Como reforço à atividadedo ensino específico do instrumento – coletivo ouindividual – o programa oferece a sua prática juntoaos diversos grupos instrumentais.

Paralelamente à essa prática coletiva, que tra-balha com arranjos escritos pelos professores deacordo com a formação instrumental e com o nívelde cada aluno, as atividades de criação musical con-tinuam permeando o currículo. Pouco enfatizada nocurrículo da escola regular, a criação é consideradaessencial no contexto Cariúnas, por acreditar queela é uma habilidade necessária aos jovens no mun-do atual. Apesar do conceito de criatividade ser ain-da difuso, pois abrange uma ampla gama de habili-dades diferentes, concordamos com Yus (2002, p.75) quando diz que, “ser criativo significa ser capazde produzir algo que antes não existia, o que de cer-to modo coincide com a idéia que temos de inova-dor. Mas nem toda atividade inovadora é criativa.”Portanto, acreditamos que somente a prática per-manente da ação criativa, somada ao conhecimen-

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to, ajudará o indivíduo no seu amplo desenvolvi-mento do pensamento e das suas potencialidadescriativas.

Nessa segunda fase, a ênfase dada à lingua-gem corporal continua presente através das aulasde dança, que passam a ser cada vez mais siste-máticas. Como atividade inerente ao projeto, a dan-ça moderna, ou clássica, ou folclórica e/ou popular,é oferecida durante todo o projeto a todos os alunos.Como resultado desse processo, a dança, assimcomo a música, passa a ser, para alguns alunos,uma meta profissional.

Como uma grande engrenagem, a atividadecoral mobiliza todo o movimento pedagógico do pro-jeto. Ele é o responsável pela produção dos musi-cais, que agregam todas as facetas de ensino doprojeto, tanto no que se refere à escolha de repertó-rios que possam ser integrados à dança, quanto aonível dos arranjos que terão a participação dosinstrumentistas.

Durante os seis anos de sua existência, oProjeto Cariúnas já produziu cinco musicais, e doisCDs, gravados e produzidos por seus alunos e pro-fessores: Sementes do Amanhã (2002), e Lua dePapel (2005).

Processo de avaliação

Em todo o seu alcance social, pedagógico,cultural, psicológico e espiritual, seja em atividadescoletivas ou individuais, o objetivo do Projeto Cariúnasé proporcionar aos alunos os meios e mecanismospara o aprendizado. Nesse contexto, a avaliação temo compromisso de proporcionar “a retroalimentaçãonecessária para incentivar a competência, por meiodo autoconhecimento” (Yus, 2002, p. 46). Portanto,incentivar os alunos à prática da auto-avaliação, émeta contínua no processo da educação no Cariúnas.

Por outro lado, numa outra perspectiva, a ava-liação objetiva observar a evolução da criança e doadolescente como um todo, não somente dos co-nhecimentos e habilidades adquiridas. Para que sepossa observar essa gama de valores, é preciso de-terminar outras dimensões de avaliação, como, porexemplo, o desenvolvimento de atitudes e valores, aintuição, a criatividade, a cooperação, a participa-ção, a postura, a liderança e tantos outros aspectosnem sempre levados em consideração na escola deensino formal. Por isso, o processo de avaliação noCariúnas requer a utilização de instrumentos de ava-liação não convencionais, sendo a avaliação em for-ma de teste padronizado apenas um dos instrumen-tos utilizados. Um desses instrumentos não conven-cionais, por exemplo, é a avaliação que solicitamos

ao(s) professor(es) da escola pública que o alunofreqüenta, cujos resultados são adicionados à suaficha, para a auto-avaliação no final do semestre.

Multiplicadores: uma alternativa para omercado de trabalho

Os alunos que vivenciam uma experiência deeducação integral alcançam a excelência por cami-nhos bem diversos... Esses estudantes raramentedeixam a escola antes de uma graduação personali-zada. Eles entram, então, na força do trabalho, mos-trando aos administradores que eles têm a “matéria-prima” para serem estudantes vencedores. (Yus,2002, p. 47).

Foi observando que essa “matéria prima” jáestava ali presente no Cariúnas, e desejosa de cres-cer e multiplicar, que surgiu a necessidade de ofere-cer a ela os meios para a sua expansão.

A princípio, o Projeto Cariúnas se propôs aatender os alunos somente até os 16 anos de idade.Porém, na busca pela construção holística dessejovem adolescente, que inclui seu crescimento pes-soal e, potencialmente, sua formação e na opçãoprofissional, o atendimento até os 18 anos de idadepassou a ser necessário. A difícil decisão de atendê-los após os 16 anos trouxe, por outro lado, uma pers-pectiva de futuro para aqueles jovens. A proposta dese abrir espaço para que eles desempenhassem umpapel, num primeiro momento, como observadoresdas atividades propostas aos iniciantes do Cariúnas,fez com que novos horizontes fossem vislumbradospor todos os envolvidos naquele processo. Assimnasceram os multiplicadores do projeto e, com eles,as práticas pedagógicas – nas áreas da musica-lização e da dança – que os ajudariam na formaçãodo que denominamos de “agentes culturais”.

A inserção desses multiplicadores no merca-do de trabalho, como monitores, atuando em cre-ches, centros comunitários e outras associações deatendimento extra-escolar da região, ocorreu natu-ralmente, por duas razões bem definidas. Primeira-mente pela ausência e necessidade do profissionalde artes, em especial de música, nesses espaços,e, em segundo lugar, porque esses mesmos espa-ços têm, aos poucos, buscado melhorar a qualidadede seu trabalho pedagógico. Essa nova postura deinstituições públicas, ONGs e outros estabelecimen-tos que atendem crianças e adolescentes de riscosocial, é fruto da conscientização da importância dacultura, e de se trabalhar com nossos jovens, naatualidade, em horário integral. Não podendo a es-cola pública responder por isso ainda, essas insti-tuições alternativas tentam assumir esse papel,mesmo que precariamente, com essa complemen-

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tação do desejado horário escolar integral.

Frente a esse leque de instituições preocupa-das com o atendimento ao público de baixa renda ede risco social, acreditamos que as instituições semfins lucrativos, ou “terceiro setor”, constituído pelasorganizações não governamentais (ONGs), apresen-tam hoje possibilidades cada vez mais favoráveis emais eficientes na lida com as propostas sociais eeducacionais.

De Masi (2003), em seu livro O Futuro do Tra-balho – Fadiga e Ócio na Sociedade Pós-Industrial,classifica as organizações em quatro tipologias.Nessa classificação, ele coloca as ONGs como umtipo ideal de organização, por estar caracterizadapela baixa pressão para a racionalização e pela pou-ca concorrência. Assim, o autor descreve:

Seu objetivo (instituições do terceiro setor) éa solidariedade e o testemunho; o seu método é acontribuição voluntária; o seu papel elementar é oempenho pessoal, que nasce da paixão. O tempo,nesse caso, é vivido como oportunidade para umamelhor utilização. A metáfora mais adequada pararepresentar esse tipo de organização é a colméia.(De Masi, 2003, p. 247).

Projeto Cariúnas – contando algumasexperiências

Nesta seção, contarei alguns “casos” ocorri-dos no Projeto Cariúnas, que bem ilustram nossaexperiência pedagógica. Esses depoimentos, rela-tados por professores e coordenadores, sugeremalguns questionamentos, que traduzo para reflexão,nas seguintes questões:

• Seria a interdisciplinaridade uma grande sa-ída para a educação musical neste século?

• Conseqüentemente, um modelo ideal deeducador musical deveria passar pela vivênciada interdisciplinaridade?

• A visão holística de educação atenderia a essadiversidade apresentada pelo ser humano?

Caso 1 – experimentação e descoberta

Imaginem uma pequena comunidade/escolada periferia... ali existe um projeto sócio-cultural paracrianças e adolescentes... impregnado de muitamúsica, dança, e solidariedade... Em uma de suassalas, um adolescente dedilha pela primeira vez, paraseu professor, uma pequena canção na flauta trans-versal. De repente, a mesma melodia é ouvida numteclado eletrônico em uma sala ao lado. A reprodu-ção sonora vem do Pedrinho, um garoto de 10 anos

que até então andava apático e desligado da vidadiária daquele projeto, do qual ele já participava hádois anos. Como aluno da primeira etapa do projeto,eram-lhe propostas, durante os cinco dias da sema-na, atividades de musicalização, dança, canto corale criação musical, uma variedade de opções ofereci-das pelo programa, como estratégia para a explora-ção de suas habilidades, cuja participação até en-tão, era inexpressiva. Foi, portanto, a partir dessaexperimentação, e a descoberta de sua potenciali-dade perceptiva, que novos horizontes se abrirampara o Pedrinho.

Graças à diversidade de atividades propostaspelo projeto, ao ambiente favorável para a prática daexperimentação – variedade de elementos concre-tos à disposição do aluno –, bem como ao respeitopelo ritmo de aprendizado de Pedrinho, ele é hojeum aluno ativo, participativo, criativo e mais integra-do. Com o desenvolvimento e aprimoramento de ou-tras habilidades, e com o seu alto grau de percep-ção, ele vem conquistando mais equilíbrio, maturi-dade e maior compreensão de seu próprio “eu”. Hoje,Pedrinho participa de todas as atividades do pro-grama, faz dança moderna, domina a flauta doce,e escolheu o saxofone como o seu instrumentoprincipal.

Caso 2 – buscando o equilíbrio

Visitando a sala do coral, vamos encontrar oJoão Carlos, de 11 anos de idade, juntamente comseus outros companheiros, aprendendo um novo re-pertório vocal. Irrequieto, agitado, desconcentrado,e dono de uma liderança altamente negativa, inco-moda aos colegas e à própria dinâmica da atividade.Ao ser chamado a atenção, com dificuldade, faz opossível para se concentrar e aquietar porque, nofundo, ele gosta de estar ali. Terminado o ensaio,João Carlos corre para trocar de roupa e colocar suasapatilha, pois sua próxima atividade é a aula dedança. Inicialmente, também agitado, desconcen-trado e irrequieto, ele começa a praticar a série deexercícios e técnicas da dança que, aos poucos, ovão acalmando, e lentamente, vai encontrando o equi-líbrio entre seu corpo e sua mente. Com o decorrerdo tempo, por intermédio do corpo, outras poten-cialidades de João Carlos foram sendo desenvolvi-das. A dança integrada ao ensino da música e o ins-trumento foram, aos poucos, aliviando suas dificul-dades, principalmente a de concentração, que gera-va a desorganização de tantos outros sentimentos.

Hoje, João Carlos continua no projeto comoaluno da última etapa do programa, participando dasatividades de música e dança em todo o seu contex-to. Estuda saxofone, participa do grupo de sopros, e

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é o primeiro bailarino do grupo de dança do projeto.Apesar de seus 16 anos, ele agora é também monitorde dança, responsável pelas aulas de dança de ruapara os alunos iniciantes. Como aluno bolsista deuma academia de dança parceira do projeto, ele foiclassificado com a nota máxima nas provas aplica-das por membros da Royal Academy of Dance paraa conquista de certificado de bailarino, e foi premia-do, recentemente, como bailarino revelação em umconcurso de grande expressão na capital mineira.

Caso 3 – transferindo conhecimentos

A chegada dos primeiros instrumentos de so-pros adquiridos pela direção do projeto foi uma datamuito especial para todos os envolvidos naquele pro-grama sócio-cultural. Até então, a experiência dosalunos na área instrumental se restringia às aulascoletivas de flauta doce, teclado e violão, e às aulasde flauta transversal ministradas em forma deworkshops, pois contávamos, para essa atividade,com apenas um instrumento. Urgia a aquisição deinstrumentos para sanar a ansiedade dos alunos pornovos desafios. Após muitas dificuldades para a cap-tação dos recursos necessários, a compra foi efetu-ada. Eram então apenas dois saxofones, quatro cla-rinetes, dois trompetes e duas flautas.

O que ocorreu a partir do momento de apre-sentação, experimentação, e reconhecimento dosinstrumentos, foi uma verdadeira catarse artístico-musical. Insights ocorriam a todo momento, pois,entrando em contato com os instrumentos, os alu-nos descobriam que eram capazes de tocar, comfacilidade, cada novo instrumento. Também percebi-am que tocar de ouvido, ou criar uma melodia noinstrumento, era tão simples quanto cantar ou brin-car com o teclado, violão ou a flauta doce. Frases efragmentos de melodias que antes eram restritas àsaulas de coral, de musicalização, do canto populare das aulas de dança, passaram a ser ouvidas emdiferentes timbres, como resultado de todo esse pro-cesso.

Nessa catarse musical, os alunos só não per-ceberam que o fenômeno holístico do sinergismo –movimento de integração e interação entre as partes– era o processo que estava ocorrendo dentro decada um deles. Esse processo permite ao educan-do perceber rapidamente as relações entre um apren-dizado e transferir esse conhecimento para uma ou-tra área (Yus, 2002). Ao tirar, com facilidade, um somno clarinete ou no saxofone, eles estavam usandoos mesmos movimentos do diafragma, trabalhadostanto no coral quanto na dança. Ao dedilhar essesinstrumentos, eles usavam, pela similaridade digi-tal, os mesmos mecanismos da flauta doce. Ao to-

car uma pequena frase musical de ouvido, eles colo-caram em prática a habilidade da percepção melódi-ca e harmônica que vinham treinando e desenvolven-do desde a primeira fase do programa.

Quando um conhecimento adquirido tem umreal significado, ele é facilmente transferido, casosejam dadas ao aluno as chances e meios para essadescoberta.

Caso 4 – buscando novos valores

Uma certa manhã no Projeto Cariúnas, nohorário do lanche, uma aluna de 10 anos procurouseu professor para contar, entristecida, que seu di-nheiro (80 centavos) havia desaparecido. Explicou,com lágrimas nos olhos, que essas moedas erampara sua passagem de volta para casa. De acordocom a aluna, as moedinhas haviam passado toda amanhã no mesmo lugar onde as havia deixado. Apósvárias buscas, ficou evidenciado que as moedas nãotinham sumido, mas, sim, que alguém as havia “to-mado” da coleguinha. Diante desse impasse, o pro-fessor decidiu reunir todos os alunos na sala de aula.Assentados no chão em formato de roda, o profes-sor apresentou calmamente os seus argumentos.Refletiu junto com os alunos sobre a importância doCariúnas, como essa experiência os fazia formar umagrande família e que, por isso, todos eram irmãos decoração. Todos estavam ali aprendendo a viver emconjunto e que, por isso, precisavam sempre traba-lhar o amor, o respeito, a honestidade, e a solidarie-dade entre todos. Somente após essa reflexão o pro-fessor contou que as moedinhas da colega haviamsumido, e reforçou a questão de valores, os quaissão sempre muito relativos. Provavelmente, 80 cen-tavos não valem muito para uns, porém, eles eramde grande importância para outros; acima de tudo,por menor que seja o valor, não se justificaria umfurto. Sem questionar por nenhum momento a ques-tão do “culpado” pelo ocorrido, o professor pediu quetodos se auto-avaliassem, e que o responsável de-volvesse as moedinhas ao lugar de onde as tinhamretirado. Agradecendo a todos pela atenção, o pro-fessor os dispensou, e pediu que voltassem às suastarefas. Pouco tempo depois, as moedinhas, soman-do exatamente os 80 centavos, foram encontradasna pia do banheiro.

Somente uma educação responsável podelevar uma criança ao aprendizado da auto-avaliação.Somente o desenvolvimento da habilidade da res-ponsabilidade pode ajudá-la a valorizar a vida, a de-senvolver nela própria um estado de harmonia e equi-líbrio pessoal, e a mostrar sua responsabilidade naconstrução da paz no mundo.

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Referências

CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável. São Paulo: Cultrix. 2002.DE MASI, Domenico. O futuro do trabalho: fadiga e ócio na sociedade pós-industrial. Trad. Yadyr A. Figueiredo. 8. ed. Rio de Janeiro:José Olympio, 2003.MILLER, J. P. The holistic curriculum. Toronto: OISE Press, 1996.PENNA, Maura L. Reavaliações e buscas em musicalização. São Paulo: Loyola, 1990.SEKEFF, Lourdes, M. Da música: seus usos e recursos. São Paulo: Unesp, 2002.YUS, Ramos, R. Educação integral: uma educação holística para o século XXI. Trad. Daysy Vaz de Moraes. Porto Alegre: Artmed,2002.

Recebido em 01/03/2006

Aprovado em 12/03/2006

Caso 5 – resultados de uma educaçãoholística

Continuando a caminhada pela pequena casa/escola, encontramos em outra sala duas adolescen-tes em conversação. O encontro é muito especial,pois tem como finalidade a troca de experiências,quando uma das jovens repassa à outra aquilo quesabe sobre seu instrumento. Mariana fala sobre seuclarinete, e Clara descreve e manuseia sua flautatransversal. A explicação de como segurar o instru-mento, a forma de mostrar onde fica uma posição,ou de como fazer para produzir um determinado som,é repassada de uma companheira para a outra deforma natural, despojada e sem restrições. Ali mes-mo ocorrem as improvisações, uma prática naturalpara as duas jovens. O diferencial é que cada umadelas brinca com o instrumento da companheira.Mariana e Clara, alunas da última fase do projeto, jáse preparam para o vestibular de música. Essa pre-paração vem através de atividades integradas quevão desde as aulas específicas do instrumento, depercepção, apreciação, criação e práticas tradicio-nais da música de câmera até as atividades básicasdo projeto – coral e dança – das quais elas partici-pam desde o início de suas experiências no progra-ma. Também faz parte desse quadro de ofertas aprática de ensino da musicalização integrada à dan-ça para crianças, da qual começaram a participarapós os 16 anos, e que tem como objetivo a suaformação como agentes culturais.

Hoje, após cinco anos de vivência no Cariúnasfrente às suas múltiplas formas de integração de áre-as, Mariana e Clara representam o reflexo dessaeducação integral e global que receberam no proje-to. Além de dominarem um instrumento principal, tra-balham com a flauta doce e o teclado como um se-gundo instrumento. Também dominam, em nível bá-sico, outros instrumentos de sopro e percussão. São

capazes de criar pequenas melodias, com letra earranjo, e uma coreografia para um canto novo. Ambassão multiplicadoras do projeto, atuando comomonitoras em creches e escolas públicas da região,nas atividades de musicalização e instrumento parainiciantes.

Atualmente, Mariana é aluna de licenciaturaem música, com habilitação em clarinete em umauniversidade, e Clara se prepara para prestar o vesti-bular de flauta transversal. A mais recente experiên-cia das duas jovens, juntamente com outras duasmonitoras do próprio projeto, foi a participação comoprofessoras de musicalização, em recente festivalde inverno de uma pequena cidade do interior deMinas Gerais.

Considerações finais

Apesar do universo ainda reduzido da experi-ência realizada no Projeto Cariúnas, o processo deeducação musical por ele proposto, baseado numavisão holística da educação, tende a demonstrar suaviabilidade. Acreditamos que sua proposta de ensi-no e seus resultados podem contribuir para enrique-cer as atuais discussões sobre: 1) projetos sociaise seus objetivos no atendimento à criança e ao ado-lescente; 2) o ensino de música nas escolas regula-res, numa possível abordagem interdisciplinar comoutras formas de arte; e 3) na formação de educado-res musicais nos cursos de licenciaturas.

Discutir sobre uma educação integral e suapossível implementação, na qual o aluno é o centrode referência, é pensar em mudanças. E implementarmudanças exige uma transformação do pensamen-to, da visão e da interpretação da realidade de todosos envolvidos. Talvez, com essas reflexões, esteja-mos contribuindo realmente para uma mudança deparadigmas para a educação musical.

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Educação musical ediversidade:1 pontes de

articulação

Alda de Jesus OliveiraUniversidade Federal da Bahia (UFBA)

[email protected]

Resumo. O texto apresenta alguns argumentos para reflexão e debate a partir do texto-base parao Fórum I, de autoria de Tânia Cançado. Este aborda a experiência do Projeto Cariúnas, um programasociocultural desenvolvido com crianças e adolescentes de Belo Horizonte, numa abordagem holísticada educação musical. Sendo a escola uma instituição em processo permanente de construçãosocial, discutimos alguns aspectos do texto-base e apresentamos a abordagem Pontes, como umadas possibilidades para uma articulação entre o professor, os elementos da diversidade socioculturale os diferentes níveis de experiências musicais e de desenvolvimento dos participantes.

Palavras-chave: música, diversidade, pontes

Abstract. This text presents some arguments based on the text from Tânia Cançado for the ForumI. This text speaks about the Project Cariúnas, a sociocultural program developed for children andadolescents from Belo Horizonte, using a music education holistic approach. Since the school is aninstitution in a permanent process of social construction, we discuss some aspects of the basic textand present the Pontes approach, which may be viewed as a possible orientation for an articulationbetween the teacher, the elements of the sociocultural diversity, the different levels of musicalexperiences and development of the participants.

Keywords: music, diversity, bridges

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1 Durante a 33ª Conferência Geral da Unesco, entre os dias 20 e 21 de outubro de 2005, está sendo votada a ConvençãoInternacional sobre a Proteção e Promoção da Diversidade Cultural e da Expressão Artística. Em pauta nas principais discussõesmundiais sobre cultura desde 2003, a convenção tem como principal objetivo garantir a liberdade e as condições para que os paísespossam formular suas políticas nacionais em defesa da diversidade cultural em seus territórios, assim como garantir um tratamentoespecial para a circulação internacional dos bens e serviços culturais. “A idéia é que os países tenham a autonomia para criar suasregulações e que os produtos e serviços culturais sejam tratados de forma diferenciada, a partir de suas especificidades simbólicase subjetivas, e não como qualquer outra mercadoria”, afirmou o ministro Gilberto Gil em entrevista coletiva em 17/10/2005 (CulturaOn-Line, 17 out. 2005).

Discussão inicial

É necessário lutar por uma educação huma-nista. Louvamos as conquistas do Projeto Cariúnas.Gigantesca é a nossa tarefa educativa, pois depen-de de muitas variáveis e intempéries político-admi-nistrativas, acima de tudo, de qualificação de pesso-

al. Como a nossa função aqui é debater e apontarpossíveis soluções, inicio com a dúvida: será quepodemos ou devemos pretender que a educaçãomusical se responsabilize por solucionar quase to-dos os problemas educacionais? Não resta dúvida

OLIVEIRA, Alda de Jesus. Educação musical e diversidade: pontes de articulação. Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 14, 25-33, mar.2006.

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que a música é capaz de operar grandes mudançase muitas conquistas. Mas será possível termos umaformação do educador musical que possibilite umaabrangência ampla o suficiente para que possa darconta de todas as necessidades que temos para aformação de crianças e jovens? Já tivemos por maisde 20 anos a educação artística, com a defesa dotrabalho polivalente do professor de artes. A socie-dade e os profissionais parecem não ter tido o retor-no que se esperava dessa proposta, pois houve umamudança na própria legislação, através da nova Leide Diretrizes e Bases (Lei Darcy Ribeiro), com-plementada através das orientações dos PCNs. Osprofissionais e as instituições da área estão aospoucos desenvolvendo novas abordagens onde o focopossa estar no ensino específico de música, consi-derando as várias músicas e os seus diferentes con-textos, o que já é uma grande responsabilidade.

O texto em debate de Tânia Cançado escla-rece que a proposta de trabalho do Projeto Cariúnasé “uma abordagem democrática de educação musi-cal integrada a outras artes, dirigida a indivíduos deum contexto social desfavorecido, com objetivo deoferecer, não apenas experiências estéticas, masexperiências significativas compartilhadas social-mente, envolvendo a mente, o corpo, as emoções eo espírito dos envolvidos”. Em termos educacionais,essa visão ampla e interdisciplinar pode ser bastan-te adequada a uma proposta de ONGs, pois os pro-blemas muitas vezes pedem as mais diversas solu-ções. Os exemplos do trabalho com música nes-ses espaços são realmente inspiradores para oscursos superiores de licenciatura em música. Po-rém vejo dificuldades em tomá-los como soluçõesou modelos para a ampliação dos currículos de edu-cação musical, ou mesmo para criar focos de espe-cialização nesses mesmos cursos. Os profissionaisprecisam se sentir confortáveis nas suas funçõesdocentes em música e ter uma identidade ou perfilde atuação clara da profissão de educação musicalpara que a sociedade brasileira possa, em retorno,defender a sua necessidade e permanência peranteo sistema educacional. A área de música já é bas-tante diversa e requer muitas habilidades, experiên-cias e saberes acumulados. Mas concordo que osprocedimentos de despertar a motivação, de jo-gos de relacionamento pessoal entre alunos e pro-fessores e de abertura e sensibilidade para usarelementos de outras linguagens artísticas quan-do necessário precisam fazer parte da formaçãodocente, sem dúvida alguma.

Como Maura Penna menciona no seu texto,estamos mais uma vez entre a contextualização e oessencialismo. Até quando vamos estar nos cerce-ando como profissionais da música, fragilizando anossa formação e os nossos valores, nos expondo àsociedade como professores, ao tentar sempre fa-zer opções entre isso ou aquilo? Precisamos estarpreparados e fundamentados para fazer opções, bus-car e implementar soluções diante da diversidadesociocultural que se apresenta. Seria isso e aquilo,isso, aquilo e outro, e não somente isso ou aquilo. Avalidade da proposta do Projeto Cariúnas e sua efi-cácia são inquestionáveis, principalmente por ser umprojeto desenvolvido por pessoas que amam o quefazem e acreditam positivamente no desenvolvimen-to dos participantes. Porém temos de discutir aqui,neste fórum, a relação entre algumas colocações ea área de educação musical.

Apesar das carências e omissões que carac-terizam os nossos PCNs no que se refere ao ensinode arte no Brasil (fundamental e médio), a propostaque consta desses documentos pode ser vista comoinovadora por inserir a música no contexto de de-senvolvimento integral e cidadão dos participantes,e também porque pretende superar a “rigidez estéti-ca, marcadamente reprodutivista da escola tradicio-nal” (Brasil, 1997, p. 27). Lembramos também queem termos dos valores defendidos2 pela SociedadeInternacional de Educação Musical para a área deeducação musical, são apontadas recomendaçõesgerais que podemos considerar avançadas e própri-as para o desenvolvimento de programas e aborda-gens humanísticas e democráticas. Em tradução livredessa autora, apresentamos alguns itens abaixo:

• A educação musical inclui tanto a educaçãoem música como educação através da músi-ca (como meio e como fim).

• A educação musical deve ser um processocontínuo e deve abarcar todas as faixas etárias.

• Todos os aprendizes, em todos os níveis dedesenvolvimento/habilidade, devem ter aces-so a um programa de educação musical equi-librado, abrangente e progressivo, facilitado poreducadores musicais eficientes.

• Todos os aprendizes devem ter a oportuni-dade de crescer no conhecimento musical.Devem desenvolver habilidades e apreciaçãode forma que estas desafiem as suas men-

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2 Valores da Isme. Estas recomendações não se restringem às que estão aqui relatadas. São apontadas outras importantes paraestímulo e apoio à diversidade cultural do mundo.Venda de shows e produções

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tes, que estimulem as suas imaginações, tra-gam alegria e satisfação a suas vidas e exal-tem os seus espíritos.

• Todos os aprendizes devem receber umaeducação musical a mais refinada possível;todos devem ter oportunidades iguais de bus-car a música; a qualidade e a quantidade daeducação musical não deve depender da lo-calidade geográfica, status social, identidaderacial ou étnica, habitat urbano/suburbano/ru-ral ou bens.

• Todos os aprendizes devem ter a oportu-nidade de desenvolver as suas habilidadesmusicais ao máximo através de uma edu-cação que responda à suas necessidadesindividuais.

• Esforços são necessários para atender asnecessidades musicais de todos os alunos,incluindo aqueles com necessidades e talen-tos especiais.

• Todos os alunos devem ter oportunidadesamplas de participação ativa em música, comoouvintes, executantes, compositores eimprovisadores.

• Todos os aprendizes devem ter a oportuni-dade de estudar e participar da(s) música(s)de sua(s) cultura(s) e de outras culturas deoutras nações, e do mundo.

As abordagens que têm sido usadas ou de-senvolvidas por ONGs e/ou outras entidades priva-das tendem a usar a música como meio. Várias pro-postas no país e no mundo desenvolvem essa visãomais ampla de educação musical. Os nossos PCNs(fundamental) indicam a opção do sistema por umaeducação norteada na produção, na fruição, refle-xão, interação com materiais, instrumentos e proce-dimentos variados em Arte (Artes Visuais, Dança,Música e Teatro), além de construir uma relação deautoconfiança com a produção artística dos alunos,dos colegas, e articulando a percepção, imaginação,emoção, sensibilidade e reflexão (Brasil, 1997, p.53-54). Outras propostas educativas preferem seguira linha profissionalizante, visando a preparação dejovens para as tarefas que se abrem nos vários con-textos, a exemplo da Escola Profissionalizante deMúsicos Pracatum, em Salvador.

Em termos de abordagem, de inovação, po-demos reconhecer a relevância social e a compe-tência individual dos participantes do Cariúnas. Paranós é um exemplo de cidadania, de humanismo, deamor à arte e à criança. É um grande passo para o

sucesso do ensino e do projeto como um todo, poisos modelos dos profissionais que nele trabalhampodem ser imitados pelos jovens e pela sociedade.

Mas entre o sonho e a realidade existem pon-tos vazios. Esses vazios são as nossas estruturasescolares, administrativas e políticas. São tambémos salários dos professores, a falta de cursos decapacitação ou educação continuada para os pro-fessores, o absenteísmo docente, o abandono doaluno da escola pública e uma espécie deteatralização do ensino privado que está acontecen-do no sistema escolar brasileiro. Além disso tudo,há ainda a carência de empregos dentro do país.

Outro ponto a ser colocado é que nós educa-dores musicais precisamos considerar não somen-te como importantes, mas também dentro do siste-ma educacional, as principais ocupações relaciona-das com música, desde quando visamos educarmusicalmente.3

Recentemente estamos participando de umasignificativa proposta para o município de Salvadorna área de emprego e renda em música, visandofortalecer localmente a cadeia produtiva em música.

Além dos problemas socioculturais existen-tes na atualidade brasileira, Tânia Cançado focalizaessa problemática quando descreve as dificuldadespresentes na sua realidade e relata que as funçõesdos profissionais do projeto teriam que transcendero papel de meros professores. Essa realidade separece muito com a do contexto da Escola Pracatum,em Salvador, da qual fui membro da equipe criadorae diretora. Nesses projetos os desafios são muitograndes e exigem do professor de música compe-tências que nem sempre estão inseridas nos cursosuniversitários e que desafiam os seus saberes e va-lores musicais e humanos. Portanto, considero hojemuito importante que os currículos de licenciaturaem Música possam preparar os nossos futuros pro-fessores com uma base filosófica, pedagógica, mu-sical e multidisciplinar, articuladora e investigativa.

Precisam também desenvolver competênciaspara lidar com a diversidade social e artística que seapresenta nos vários contextos, com uma visão cla-ra do que a educação musical pretende desenvolver,enfatizando não somente os processos educativos,mas também mostrando resultados nos vários seto-res da cadeia produtiva, em especial na de formaçãomusical.

Quanto aos princípios que formam a base filo-sófica e pedagógica do Projeto Cariúnas, que foiimplantado no ano 2000, esses são muito positivos.A defesa de uma educação integral foi similarmente

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pretendida pelo educador Anísio Teixeira, na Bahia,através da criação da Escola Parque, na década de1950, e teve resultados muito bons para a popula-ção mais necessitada, enquanto teve todo o apoioadministrativo do poder público. Essa instituiçãomodelo inclui o ensino de todas as artes dentro deuma proposta de educação geral, e inclusive inseretambém alguns aspectos profissionalizantes e ali-mentares, além de biblioteca e auditório para apre-sentações artísticas e áreas especiais para lazer eespaço para cultivo de hortaliças. Mais recentemen-te aconteceu um outro exemplo semelhante com osbrizolões, no Rio de Janeiro.

Concordamos com a visão da autora de queuma das fórmulas ideais para ajudar jovens portado-res de necessidades especiais ou problemáticos érecuperar ou desenvolver sua habilidade de sonhar,desejar e construir seu próprio futuro. ProfessoraTânia defende para esses casos uma educação abran-gente, trabalhando simultaneamente o corpo, a mentee o espírito e a afetividade.

Porém temos algumas considerações referen-tes ao segundo e terceiro princípios. Nesses itens,o foco está no treinamento da percepção, bem comono desenvolvimento das habilidades de comunica-

ção e criatividade, dentre outras tantas potencia-lidades. Consideramos esses aspectos importantese necessários, porém a afirmativa parece conter umatendência muito generalizante.

A criança e o jovem têm a percepção muitoaguçada, e, por vezes, os processos metodológicosdesconhecem esse potencial ou habilidade auditivae perceptiva, ou mesmo desconsideram até mesmoas suas experiências anteriores em música. Comoexemplo, citamos os dados da pesquisa sobre per-cepção melódica de estudantes nos Estados Uni-dos, Argentina e Brasil (Madsen; Frega; Oliveira,2002), cujos resultados são consistentes com estu-dos anteriores. Esses mostram que embora haja di-ferenças entre as populações dos três países parti-cipantes, jovens adolescentes em cada país sãocapazes de lembrar e discriminar entre 144 melodi-as que são idênticas ou extremamente similaresentre si. Ou seja, o foco no treinamento auditivo eteórico em música pode ser mais moderado. É pre-ferível ampliar as atividades escolares para o fazermusical, para a apreciação de músicas de váriosgêneros, para a criação e improvisação ou outrascompetências fundamentais para o desenvolvimentocomo futuro apreciador, como músico amador oumesmo profissional.

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3 Alguns exemplos de atividades e ocupações relacionadas com a área de Música (Fonte: Alda e Jamary Oliveira, Pedro Kroger,Sergio Emmanoel Teixeira, Fernando Marinho e Zuraida Abud Bastião. Projeto para viabilização do Arranjo Produtivo Local em Música(APL Música). Salvador, Bahia: Secretaria de Emprego e Renda (Sempre) da Prefeitura Municipal de Salvador, 2005.Atividades e Ocupações de Suporte: Setor que engloba as atividades e ocupações especializadas relacionadas àárea: Editoração musical; Tipografia eletrônica em música; Manutenção de instrumentos musicais; Construção e fabricação deinstrumentos musicais Fabricação de cordas de instrumentos musicais, palhetas, etc.; Fabricação de estojos, capas de instrumentos,estantes, papel de música e artigos para presente com motivos musicais.Formação. Setor que engloba as ocupações e atividades relacionadas à educação, capacitação e qualificação: Professorde música em escolas especializadas: escolas profissionalizantes, conservatórios, universidades, faculdades; Professor demúsica que trabalha em casa ou estúdio particular; Professor que desenvolve trabalho em ONGS, etc.; Professor que trabalha comeducação musical inclusiva; Professor que trabalha com educação musical a distancia; Professor que trabalha com coral escolar ouconjunto musical em escolas; Professor que trabalha com cordas ou bandas em escolas; Professor que trabalha com ensino deteclados em grupo; Professor que trabalha com violão em grupo em escolas; Professor que trabalha com flauta doce em escolas outem conjunto em escolas; Professor de música em geral (apreciação musical, teoria da música, análise, percepção musical);Coordenador pedagógico escolar em música; Administrador escolar em música; Professor de orquestra e banda; Professor decanto; Professor de regência coral, orquestral, banda e grupos mistos; Professor ou Mestre que trabalha com música em grupos demúsica tradicional (vários gêneros como capoeira, maculelê, ternos, grupos de choro, percussão, etc.); Professor que se dedica adesenvolver projetos de festividades escolares (mais animador cultural).Criação: Setor que engloba as atividades e ocupações relacionadas com a geração de bens e produtos: Compositor;Instrumentista; Cantor; Regente; Desenvolvimento de softwares para música; Arranjador; Diretor musical; Diretor e compositormusical de filmes; Diretor de musicais; Diretor de música para teatro, vídeo, exposições, instalações, etc.; Música para publicidade;Design e construção de instrumentos musicais.Produção: Setor que engloba as atividades e ocupações relacionadas com a execução dos projetos de reproduçãoindustrial e com o espetáculo: Produtor de música para eventos diversos (festas, casamentos, formaturas, aniversários, etc.);Produtor musical para shows, concertos, recitais; Produtor musical de carreira solo; Técnico de som; Engenheiro de som; Produçãode eventos e materiais didáticos especializados para diversas faixas etárias e propostas; Gerenciador de equipamentos culturaise espaços alternativos; Montador; Arquivista.Difusão: Setor que engloba as atividades e ocupações relacionadas à publicidade, comercialização e mídias:Organização de materiais para divulgação de concertos, shows e recitais na mídia e outros locais, em nível nacional e internacional;Organização de turnês e programas completos de shows; Organização de difusão em TV, rádio e outros meios; Organizaçãointerna dos grupos musicais; Organização da carreira solo de músicos; Identificação, produção, manutenção e desenvolvimento domúsico dentro de propostas de produção e difusão; Administrador de espaços culturais; Loja de venda de instrumentos musicais;Loja de vendas de produtos outros relacionados com música; Criador e produtor de projetos de consumo de música; Venda deprodutos para tratamento acústico.

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Quanto ao terceiro princípio citado, este “de-fende a integração da dança no processo dessa edu-cação integral, por ser a linguagem corporal a ex-pressão mais autêntica e primária do ser humano”.Podemos reconhecer a necessidade de incorporar aexpressão corporal, o movimento corporal na educa-ção da criança e do jovem, mas não necessariamenteda dança em si mesma. Ela pode ajudar no proces-so de educação, sem dúvida alguma, mas a afirma-ção de que a dança é a expressão mais autêntica eprimária do ser humano pode ser uma ênfase de pre-ferência pessoal. A dança pode ser uma das expres-sões autênticas e primárias do ser humano, como aprodução sonora, a dramaticidade, a expressão vi-sual, etc., que também podem ser consideradasmuito importantes para a educação do ser humano.Porém, poderá o educador musical ser responsabili-zado por trabalhar com todos esses saberes? Pode-remos ser mais modestos curricularmente, limitan-do um pouco a amplitude dessas responsabilidadesdocentes, e visar mais profundidade e qualidade.

É realmente admirável que o projeto Cariúnaspossa oferecer para todos os alunos cursos de mú-sica vocal e instrumental; dança clássica e moder-na; percepção musical; criação na dança e na músi-ca vocal e/ou instrumental; e ainda a conjugação dediversas formas de expressão (dança, música e tea-tro), culminando com a elaboração e apresentaçãode musicais. Essa possibilidade de envolver os alu-nos com aspectos importantes de produção e cena,em trabalhos interdisciplinares, é muito importantepara a formação não só dos alunos como tambémdos professores envolvidos. É o trabalho prático ser-vindo de porta e caminho para a atuação no merca-do de trabalho. Nesse sentido consideramos a visãode Tânia Cançado e de todos os que estão ali traba-lhando muito dentro da visão que tenho defendido: ade utilizarmos todo poder mobilizador da cultura naeducação musical.

As ONGs têm feito investimentos na educa-ção musical e artística dos jovens. Por terem maisliberdade curricular, isso tem facilitado a inserçãodesses jovens no mercado de trabalho. Reconhece-mos a urgência de ênfase educativa na construçãode cidadania, na busca de soluções criativas paraos problemas das drogas e da violência urbana. Aprofessora Tânia afirma que foi difícil decidir atenderos alunos após os 16 anos, porém o lado positivo éque resultou no nascimento dos “multiplicadores doprojeto e, com eles, as práticas pedagógicas – nasáreas da musicalização e da dança – que os ajuda-riam na formação do que denominamos de ‘agentesculturais’”. E mais tarde a autora relata que duasparticipantes hoje já se tornaram também multipli-cadoras do projeto.

Pode-se notar que embora teoricamente nãohaja foco na relação com a cultura ou com o merca-do de trabalho, a profissionalização está a caminhono Cariúnas, através da inserção natural dosformandos nesse mercado em música. Por um ladoé positivo, pois ainda temos muita carência de pro-fissionais para as várias realidades do país, mas,por outro, a visão de multiplicadores ou agentes cul-turais pode também ser questionada quando se tra-ta do assunto de trabalho com música dentro da di-versidade cultural, um dos destaques da atualidade.São questões relacionadas à ocupação de postosde trabalho em música, relevantes para os cursosde música nos vários níveis de formação e que preci-sam ser debatidas.

Quanto ao uso do termo “integração” nosexemplos citados no texto, considero que este podeser melhor compreendido se for substituído pelo ter-mo “interdisciplinar” ou “multidisciplinar”, já que oprojeto trabalha com a cooperação entre várias dis-ciplinas. A autora menciona o trabalho de música ede dança, vistos de forma específica, trabalhadosem colaboração para ajudar o aluno. Observamos,no texto, que a integração é feita a partir do próprioaluno. A partir de uma visita ao projeto (durante oevento da Abem), vimos que o termo “integrado” éusado pelos professores para designar mais a formade cooperação entre eles, visando o desenvolvimen-to dos alunos e das propostas artísticas resultan-tes. Ou seja, eles estão integrados nas suas açõeseducativas, porém trabalham mais de formainterdisciplinar e multidisciplinar. Nessa visita pude-mos ver, na prática, o interesse e a motivação dosalunos e o clima de amizade e coleguismo entre osprofessores e administradores. Em termos educaci-onais considero a visão de integração do Cariúnasmais atual e adequada do que outras visõesmetodológicas que tentam forçar relações artificiaisentre disciplinas e áreas de conhecimento.

No texto da professora Tânia são atribuídasconquistas de maiores índices de participação econcentração à colocação de atividades de dançanas aulas de instrumento. Essa decisão pode estarestimulando o aprendizado dos alunos nos instru-mentos, pois ao dançar o instrumentista movimentatodo o seu corpo, fortalece o equilíbrio, os múscu-los, estimula a coordenação motora e a expressãomusical. Porém essa relação não é confirmada compesquisas. De acordo com os autores Davidson,Howe e Sloboda (1997, p. 192), que analisam pes-quisas sobre fatores ambientais no desenvolvimentode habilidades de performance musical durante a vida,de um número grande de fatores, “a atividade maisdiretamente efetiva para aquisição de habilidade é aprática deliberada”. Essas práticas, que deve apre-

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sentar características técnicas e expressivas, sãoexploradas pelo instrumentista, que aprende o ins-trumento e seu repertório, desde quando encontreum ambiente favorável. Baseados em pesquisas, osautores mencionados apontam cinco característicasque podem atestar a racionalidade de uma perfor-mance expressiva: sistematicidade, comunicabili-dade, estabilidade, automaticidade e flexibilidade(Davidson; Howe; Sloboda, 1997, p. 195).

Pela descrição das propostas e pela análiseda autora, é atribuído ao ambiente o sucesso daabordagem desenvolvida no projeto. Mas gostaria demencionar que pesquisas apontam também o poderdos modelos na formação de outras pessoas, espe-cialmente em crianças e jovens. Na minha interpre-tação, o projeto conta com modelos (pessoais emusicais) ativos e que proporcionam atividades sig-nificativas e interessantes. O aluno certamente tomaesses modelos como referências para o seu própriodesenvolvimento.

A análise da autora sobre os casos positivosdo projeto é direta e singular, refletindo uma misturadas visões contextualista e essencialista referidasno texto de Maura Penna. Perguntamos: e a diversi-dade cultural, musical, que se apresenta neste nos-so imenso Brasil? E no mundo? Podemos perceberque o uso do termo talvez não englobe a diversidadeda cultura musical do mundo, tanto erudita (músicaarte) quanto popular e tradicional de vários povos. Anosso ver, pode ser muito positivo que o Cariúnasinclua também uma abrangência de repertórios mu-sicais, pois assim estará usando o poder mobilizadorda cultura, visando atingir uma educação mais mu-sical, humanista e cidadã.

A seguir, introduzo a abordagem Pontes, quepode ser uma contribuição para formar profissionaisque visam articulações pedagógicas e musicais nadiversidade sociocultural.

Abordagem Pontes

A abordagem Pontes pode ser consideradaum guia para o ensino e para a ação em educaçãomusical. Pode ajudar os professores de música aarticular os diferentes aspectos que acompanham oprocesso de ensino-aprendizagem, especialmenteaqueles relacionados com os pontos de contato cul-turais, como as características pessoais do aluno,dos elementos e a essência do contexto sociocultural,dos conhecimentos e experiências musicais préviasdo aluno, e o novo conhecimento a ser aprendido. Oenfoque pontes implica encontros musicais signifi-cativos entre o aluno e a música. Pontes se relacio-na com: atitude positiva, observação, naturalidade,técnica, expressividade e sensibilidade.

Consideramos o professor de música um cri-ador de estruturas de ensino-aprendizagem: na prá-tica educacional, o docente aciona várias ponteseducacionais para que os alunos consigam apren-der e se desenvolver. Pontes educacionais sãoconstruídas entre o que o estudante sabe e o novoconhecimento a ser aprendido. O estudante é tam-bém um criador/participante nessas pontes.

O princípio em torno da abordagem Pontes éque cada situação didática pode ser similar a outra,mas nunca são totalmente iguais: elas são únicas.Para lidar com as situações educacionais a práticado desenho de muitas estruturas de ensino-aprendi-zagem e diferentes pontes se torna importante, paraque o professor desenvolva habilidades de se adap-tar a cada situação nova que possa surgir na suaprática e desenvolver aos poucos uma flexibilidade eadaptabilidade naturais.

Quando o professor trabalha com o ensino,em geral primeiro ele desenvolve alguns pensamen-tos sobre como aquele assunto pode ser levado aosestudantes. Depois ou concomitantemente ele pen-sa sobre algumas atividades que podem facilitar oprocesso, e um primeiro roteiro teórico de plano éfeito. A isso chamamos de estrutura de ensino-apren-dizagem. Não se configura como um plano de aula,desde quando a variável tempo não foi considerada,assim como outros detalhes que limitarão as idéiasconcebidas. Algumas vezes essas idéias podem serum grande módulo ou talvez um projeto que poderáenvolver várias aulas. Outras tomarão somente umaparte de uma aula para serem desenvolvidas. Maspara o ensino com música é muito importante que oprofessor tenha essa noção geral e inicial do plane-jamento, do foco e daquilo que ele espera como re-sultados para aquela situação e aqueles alunos.Importante é também saber negociar a construção ea administração desses resultados.

O planejamento e a ação educacional acon-tecem em vários graus e níveis de formalidades, tan-to nos ambientes escolares como nos não escola-res. Todas as atividades têm diferentes níveis de pla-nejamento, dimensões, intenções, tempos e contex-tos. Esses processos incluem ações mentais, racio-cínio, valores, reflexões, interpretações e percepçõescríticas de pessoas em relação com o mundo. Es-sencialmente, a variável que queremos ressaltar parao trabalho do educador musical é a relação entre oespontâneo e o consciente, entre o planejado e oimprovisado, mas são importantes todas as outrasrelações que possam aparecer como significativasdurante os encontros educacionais entre professore estudantes. Essas ações mentais envolvidas como planejamento são concebidas pelos indivíduos em

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relação às suas experiências em relação ao mundo,entre pessoas e meios de comunicação. São essesmeios “informais”? Muitas vezes os encontros infor-mais apresentam mais pontes e ações pegagógicasmais formais do que em contextos formais.

Em algumas manifestações culturais aconte-cem ações e estruturas de ensino-aprendizagem quese cristalizam através da prática, da modelagem,como, por exemplo, os rituais de “formatura” doscapoeiristas na Bahia, conforme uma descrição deFlávia Candusso, para o Memuba.4 Existem carac-terísticas formais e informais em todas as atividadesmusicais, embora existam diferentes graus das mes-mas em cada ação pedagógica. Nos parece que asatividades musicais formais ou informais nunca sãototalmente opostas: estas incluem sempre algumelemento em uma certa dimensão de uma ou de outra.

A abordagem Pontes pode ser consideradaadequada para lidar com a prática da educação mu-sical escolar e não escolar, pois já tem sido aplica-da e analisada em situações de sala de aula e empesquisa na pós-graduação em Salvador.5 Usamosesse termo metafórico para inspirar professores adesenvolver e construir caminhos de pensamentos,transições específicas de conhecimentos e explica-ções que podem facilitar e motivar o desenvolvimen-to do estudante, assim como ajudar no desenvolvi-mento e na gestão de projetos de produção musical.

O uso de Pontes pode ajudar a articular osdiferentes aspectos que envolvem o processo deensino-aprendizagem e gestão, especialmente aque-les relacionados às interfaces com a cultura, taiscomo as características pessoais dos sujeitos, oselementos e a essência do contexto sociocultural, onível de conhecimento dos estudantes, as suas ex-periências prévias, e o novo conhecimento a ser apren-dido. Para James Lewis (2001, p. 34), o componen-te humano está no primeiro nível de consideração eé a base para uma boa gestão de projetos. Os de-mais componentes são métodos, cultura, organiza-ção (segundo nível), planejamento e informação (ter-ceiro nível) e controle (quarto nível).

Os trabalhos de pesquisa de Zuraida AbudBastão e Amélia Dias Santa Rosa consideram ne-cessário o uso dessa articulação aqui colocada. Nosseus projetos de tese e dissertação elas envolvem

os jovens, e conseqüentemente a sociedade, com amúsica e outras linguagens artísticas. No trabalhode Amélia existe também o envolvimento dos alunoscom todos os aspectos da produção do espetáculo,que dão a eles uma dimensão da cadeia produtivaem música, preparação fundamental para o merca-do de trabalho.

Pontes podem ser usadas durante todas asfases do desenho criativo de planos, desde quandoa missão do professor de música é facilitar a educa-ção do estudante e desenvolver encontros entre amúsica e o sujeito. Mas a identificação concretadessas pontes pode ser mais facilmente vista du-rante as atividades “improvisadas” ou “informais” queo professor faz quando a aula está sendo dada. Oprofessor nesse momento faz ou induz a “costura”ou as conexões finais entre o que o estudante sabeou está motivado para aprender e o assunto sendoensinado. Estas são o que chamamos as pontesem ação. Mas em todas as diferentes fases do de-senho das estruturas de ensino-aprendizagem, oprofessor pode estar usando esse conceito de pon-tes em pensamento, e como teoria.

Estas são as principais características daabordagem Pontes:

POSITIVIDADE: positividade, abordagem po-sitiva, atitude, perseverança, poder de articu-lação e habilidade de manter a motivação doestudante, acreditando no seu potencial paraaprender e desenvolver-se;

OBSERVAÇÃO: observação; capacidade decuidadosamente observar o aluno, o contex-to, as situações cotidianas, os repertórios eas representações;

NATURALIDADE: naturalidade, simplicidadena relação com o estudante, com o currículoe com os conteúdos de vida, com as institui-ções, com o contexto e os participantes; ten-tar compreender o que o aluno expressa ouquer saber e aprender;

TÉCNICA: técnicas adequadas a cada situa-ção educacional, habilidade para desenhar,desenvolver e criar novas e adequadas estru-turas de ensino-aprendizagem de diferentesdimensões;

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4 Memuba: projeto complementar de pesquisa apoiado pelo CNPq: “Mestres de Música da Bahia”. www.memuba.ufba.br5 Zuraida Abud Bastião (doutoranda) usa o modelo Pontes para orientar e avaliar o planejamento e a prática dos estagiáriosdo curso de Licenciatura em Música da Universidade Federal da Bahia. Amélia Santa Rosa (mestranda) desenvolve umtrabalho de educação musical centrado na produção de musical. Lamento Sertanejo foi criado especialmente para apesquisa e foi apresentado com sucesso em teatro após três meses de ensaios regulares com alunos jovens de escolas darede, em Salvador. Orientação: Alda Oliveira.

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EXPRESSÃO: expressão, criatividade, espe-rança e confiança na habilidade e capacidadedo aluno para se desenvolver, expressar eaprender.

SENSIBILIDADE: sensibilidade às diferentesmúsicas, às linguagens artísticas em geral, ànatureza e ao meio ambiente, às necessida-des dos alunos e aos diferentes contextos.

O uso da abordagem Pontes tanto pode serfácil como difícil para a pessoa, vai depender demuitas variáveis, como, por exemplo, o estilo pesso-al para ensinar, as experiências prévias em músicae em educação, flexibilidade para aceitar o imprevis-to ou o ponto de vista de outras pessoas, da capaci-dade de dialogar, seus valores pessoais e culturais,além do grau de flexibilidade para aceitar esses ti-pos de interações do contexto onde acontecem osencontros educacionais.

As diferentes qualidades do professor de mú-sica nesses pontos em particular podem ajudar odesenvolvimento de atitudes positivas para o diálogoe a facilitação do ensino de muitos tipos de assun-tos curriculares e repertórios musicais, principalmenteaqueles oriundos de outros tipos de culturas e expe-riências.

Em geral a formação de professores pressu-põe que a escola é uma instituição uniforme e reduzo ensino à função de garantir a todos, com base namédia dos alunos, o acesso aos conhecimentos, eestes também são reduzidos a provas, resultados,produtos. A ênfase está mais na transmissão e naassimilação dos conteúdos. Não se pergunta quemsão os jovens, o que ouvem em casa e fora da esco-la, o que tocam e cantam, o que significam paraeles as atividades que vivenciam na escola, o quepreferem e rejeitam, ou seja, as diferenças individu-ais reais dos alunos são reduzidas também a dife-renças de aprendizagem ou de comportamento. Aescola às vezes esquece que o jovem se articula naprópria cultura através das experiências que vive.Embora o conceito de cultura não seja consenso,entende-se cultura como “conjunto de crenças, valo-res, visão de mundo, rede de significados: expres-sões simbólicas da inserção dos indivíduos emdeterminado nível da totalidade social, que termi-nam por definir a própria natureza humana”(Dayrell, 1996, p. 141).

Os participantes do processo de ensino-apren-dizagem aparentam uma homogeneidade, principal-mente quando estão em sala de aula, mas na verda-de apresentam e expressam uma diversidade cultu-ral, assim como múltiplas facetas e necessidades

que precisam ser ditas e trabalhadas. No novo mun-do dos DVDs, computadores, dos jogos eletrônicose da Internet, onde os jovens (e adultos) passam agrande parte do tempo, uma nova postura educativafaz-se necessária. A escola e o ensino são polissê-micos, têm múltiplos sentidos. Nos mesmos espa-ços – escolar e não escolar – alunos, professores,mestres da cultura oral vão construindo os significa-dos de formas diferentes, a depender da cultura, dosprojetos e dos valores dos vários grupos sociais quefreqüentam esses espaços e neles trabalham.

Em sintonia com recomendações da Unescopara os cursos superiores, sugerimos que a áreause o poder da música como discurso e o podermobilizador da cultura para ampliar as experiênciasdas pessoas nos vários espaços escolares e nãoescolares, e esteja atenta para buscar uma compre-ensão holística dos sujeitos, tornando o ensino demúsica mais musical e mais humano. Mesmo sen-do iguais como seres humanos, precisamos assu-mir as diferenças como constitutivas da nossa iden-tidade. E como área, mesmo trabalhando com obje-tivos, conteúdos ou repertórios comuns, precisamosassumir as diferenças que temos como área de co-nhecimento específico, assim como as diferençaspessoais, institucionais, musicais e artísticas queconstituem a nossa identidade de professores demúsica.

Conclusão

O texto em debate contribui para refletirmossobre: 1) projetos sociais e seus objetivos no atendi-mento à criança e ao adolescente; 2) o ensino demúsica nas escolas regulares, numa possível abor-dagem interdisciplinar com outras formas de arte; e3) sobre a formação de educadores musicais noscursos de licenciaturas. Considero os projetos soci-ais que enfatizam a música e as demais artes extre-mamente importantes para repensarmos as nossasmetodologias e propostas diante da grande diversi-dade sociocultural no mundo e especialmente noBrasil. Precisamos desenvolver posturas de edu-cação musical consistentes com uma convivên-cia produtiva em relação às diferenças e inversõessocioeconômicas. Mas é preciso cuidar da inser-ção de uma formação para essa tarefa, que não éfácil. Os três níveis de reflexões aqui abordadosestão intimamente relacionados. Precisamos es-tar conscientes que não podemos saber e fazerde tudo, mas que também não podemos nos darao luxo de sermos multiplicadores de apenas umaabordagem ou defensores de um método, simpli-ficando ou reduzindo as manifestações musicaisdos povos para defender a nossa competência eeficiência como profissionais.

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Referências

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Recebido em 02/03/2006

Aprovado em 15/03/2006

Para garantir um relacionamento proativo coma atualidade, as instituições formadoras e o profes-sor de música precisam estar conscientes dos seuslimites e talentos para enfrentar a grande diversida-de sociocultural, os problemas estruturais escola-res e não escolares, a rapidez de informação domundo digital eletrônico, das mídias e os graves pro-blemas sociais do mundo. Diante da situação dasuniversidades públicas, as dificuldades têm aumen-tado no sentido de prover programas de formação delicenciados em música que capacitem o aspirante aprofessor a atender tantos apelos e expectativas.Portanto, uma das saídas é procurar atualizar conti-nuamente os profissionais a fim de lidar com a dinâ-mica de mudança na cultura, que é inevitável. Outroponto importante é desenvolver a mentalidade e aformação metodológica do futuro professor, para queele possa saber pensar e agir nos vários contextossocioculturais. Em contato com a diversidade musi-cal, é aconselhável que o professor a princípio sus-penda os julgamentos de valor sobre o repertórioapreciado ou sobre outros valores e problemas ex-pressos pelos alunos, para evitar atitudes que de-monstrem preconceito musical, social ou religioso.

Concordamos em geral com a da proposta doCariúnas, mesmo relativizando alguns pontos colo-cados no texto. Maura Penna sabiamente afirma queo diálogo com a diversidade humana, cultural, artís-tica e musical pode proporcionar um grande enrique-cimento para a área de música, e por isso precisa-mos estimulá-la. Partindo de trabalhos anteriores(Oliveira 1991, 2000, 2001, 2003, 2005), apresenta-mos a sugestão da abordagem Pontes para facilitara articulação pedagógica e musical entre os várioscontextos e diferenças individuais.

Reafirmamos também os princípios da Unescoe da Isme. Precisamos defender e estimular con-cepções de uma formação profissional que defendaaqui no Brasil a validade de todas as nossas músi-cas assim como as músicas do mundo, e a respei-tar o valor dado a cada música em particular pelacomunidade que a pertence. Conseqüentemente,uma preparação metodológica para atuar significativa-mente com essa riqueza e diversidade das músicasdo mundo pode ser uma razão para planejamento eaprendizagem intercultural, para a compreensão in-ternacional, cooperação e paz.

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PENNA, Maura. Desafios para a educação musical: ultrapassar oposições e promover o diálogo. Revista da ABEM, Porto Alegre, V.13, 35-43, mar. 2006.

Para nossa participação como debatedoranesse Fórum sobre Educação Musical e Diversida-de, partimos da seguinte indagação: o que o relato eanálise da professora Tânia Cançado (2005), sobreo Projeto Cariúnas, colocam para a reflexão da área?

Desafios para a educaçãomusical: ultrapassar oposições e

promover o diálogo*

Maura PennaUniversidade Estadual da Paraíba (UEPB)

[email protected]

Resumo. A partir do texto da professora Tânia Cançado sobre a experiência do Projeto Cariúnas,apresentado ao Fórum de Debate Educação Musical e Diversidade, destacamos três questões paraa reflexão da área de educação musical: a) a função da educação musical na formação global doindivíduo; b) o reconhecimento da diversidade cultural; c) o papel da interdisciplinaridade. Analisamoscomo, no percurso do ensino de arte e de música, objetivos essencialistas e contextualistas têmsido confrontados, discutindo como os projetos educacionais extra-escolares, de caráter social,têm apontado a necessidade de ultrapassar essa oposição. Por outro lado, tais projetos colocam,para nossa área, o desafio de tratar a diversidade cultural, sem cair na “guetização” ou na idealizaçãode algum padrão musical como redentor, o que exige o diálogo entre diversas manifestações musicais.Discutimos, ainda, a necessidade de dialogar com outras áreas de conhecimento, numa perspectivainter-multi-trans-disciplinar, para o enriquecimento da pesquisa e da formação do professor.

Palavras-chave: educação musical, diversidade cultural, interdisciplinaridade

Abstract. Based on the paper by professor Tânia Cançado about Project Cariúnas experience,presented at the Forum on Music Education and Diversity, three questions are highlighted for reflectionin the field of music education: a) the function of music education in individual development; b) theacknowledgement of cultural diversity; c) the role of interdisciplinarity. An analysis is developedregarding the dispute between essencialist and contextualist objectives in the path of art and musicteaching, featuring how non-formal education projects have pointed at the need to overcome suchopposition. On the other hand, these projects pose the challenge of treating cultural diversity withoutdrawing guettos or music pattern ideals, requiring dialogue among diverse musical expressions. Theneed for dialogue with other fields of knowledge within an inter-multi-trans-disciplinar perspective isalso discussed in the interest of enriching research and teacher education.

Keywords: music education, cultural diversity, interdisciplinarity

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* Versão revista (e com alguns acréscimos) do texto apresentado ao Fórum de Debate Educação Musical e Diversidade, por ocasiãodo XIV Encontro Anual da Abem (Belo Horizonte, outubro de 2005). Agradecemos os comentários e sugestões de Regina MárciaSimão dos Santos e dos colegas do Grupo Integrado de Pesquisa em Ensino das Artes – Lívia Marques Carvalho, Rosemary Alvesde Melo e Vanildo Mousinho Marinho.

Sem dúvida, a experiência do Projeto Cariúnas ébastante rica e interessante; no entanto, semconhecê-la pessoalmente, preferimos perguntar quetemáticas seu texto levanta para as discussões denossa área de educação musical. E, a princípio,

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destacamos três questões a serem exploradas nes-te texto: a) a função da educação musical na forma-ção global do indivíduo; b) o reconhecimento da di-versidade cultural; e c) o papel da interdisciplina-ridade; pensando inclusive o que tudo isso colocapara a formação do professor de música.

A presença cada vez maior da música (e dasartes em geral) em projetos educativos extra-esco-lares, com caráter social – mantidos por organiza-ções não-governamentais (ONGs), por instituiçõespúblicas ou outros tipos de entidades – traz, paranossa área, o desafio de discutirmos tais questões.E trata-se de um desafio, na medida em que a áreade educação musical – assim como o ensino dasdemais linguagens artísticas – encontra-se em ummomento de reafirmação de sua especificidade, deseus conteúdos próprios, o que se expressa nasDiretrizes Curriculares Nacionais para os CursosSuperiores nas diversas linguagens artísticas, quepropõem licenciaturas e bacharelados em Música,Artes Visuais, Teatro e Dança.1 Como conseqüên-cia desse direcionamento, em diversas universida-des as graduações em Educação Artística estãodando lugar a licenciaturas específicas.2

Neste momento de resgate dos conteúdosespecíficos, então, os projetos sociais – como oProjeto Cariúnas – colocam em pauta a reflexão so-bre o papel da música na formação global, sobre adiversidade cultural e a interdisciplinaridade. Comoacolhermos essas questões sem gerar oposição como resgate da especificidade de nossa área? Comodiscutir e reconhecer a pertinência dessas questõessem necessariamente pender para um extremo –nossa especificidade – ou para o outro – uma fun-ção educativa global, vinculada à inter-relação comoutras linguagens artísticas ou mesmo com ou-tras áreas de conhecimento? Talvez este seja,justamente, um momento propício para superar-mos essa dicotomia, incorporando conscientemen-te essas questões junto ao reconhecimento denossa especificidade, e discutindo a possibilida-de – e mesmo a necessidade – da articulaçãodesses diversos aspectos e enfoques.

Resgatando o objetivo educacional deformação global

Antes de mais nada, convém explicitar odirecionamento adotado em nossa análise. Enquan-to em seu texto a professora Tânia Cançado (2005)discute a formação global com base numa aborda-gem holística da educação, que orienta a propostapedagógica do Projeto Cariúnas, optamos por enfocaraqui o percurso histórico do ensino das artes, bus-cando compreender como, em alguns momentos,essa formação tem sido tratada.

A ênfase na especificidade dos conhecimen-tos musicais na formação do educador musical, queculminou com as Diretrizes Curriculares Nacionaispara os Cursos Superiores em Música, consolidou-se progressivamente como reação ao esvaziamentode conteúdos que resultou da entrada nas escolasda Educação Artística, que a Lei 5692/71 estabele-ceu como componente obrigatório dos “currículosplenos dos estabelecimentos de 1o e 2o Graus” (Bra-sil, 1982, p. 11).

Como discutimos em trabalho anterior (Penna,1999, p. 60-61), uma proposta polivalente – que con-cebia a abordagem integrada das diversas lingua-gens artísticas – marcou a implantação da Educa-ção Artística, sendo prevista nos termos normativostanto para a prática educativa, quanto para a forma-ção do professor.3 Por outro lado, sua introdução noscurrículos foi acompanhada por uma extensa propa-gação das propostas da arte-educação,4 que enfa-tizavam a liberdade criativa, a expressão pessoal eos estados psicológicos, valorizando o processo detrabalho em detrimento do produto. Inserida no campoda Educação Artística, a música também foi atingidapor esse processo de diluição dos conteúdos de lin-guagem, para o qual contribuíram tanto a propostapolivalente e as deficiências dos cursos de formaçãodo professor quanto a difusão de práticas pedagógi-cas baseadas na crença da criação espontânea.

A reação a esse quadro de esvaziamento, naprática escolar da Educação Artística, dos conteú-

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1 Após um longo processo de elaboração, discussão e tramitação no Conselho Nacional de Educação (CNE), as Diretrizes CurricularesNacionais para os Cursos Superiores em Música foram aprovadas através da Resolução nº 2, de 8 de março de 2004 (Brasil, 2004).2 É o caso, por exemplo, da Universidade Federal da Paraíba/UFPB, que criou recentemente a Licenciatura em Educação Musical, queestá recebendo sua primeira turma no ano letivo de 2006.3 O Parecer nº 540/77, do Conselho Federal de Educação (CFE), indicava que: “A Educação Artística não se dirigirá, pois, a umdeterminado terreno estético.” E adiante: “A partir da série escolhida pela escola, nunca acima da quinta série, […] é certo que asescolas deverão contar com professores de Educação Artística, preferencialmente polivalente [sic] no 1º grau.” (Brasil, 1982, p. 11,12). Quanto à formação do professor, ver Resolução 23/73 – CFE (Brasil, 1982, p. 39-42).4 Essa articulação deve-se, inclusive, ao momento histórico em que o movimento da arte-educação se difunde de modo mais amplono Brasil – na década de 1970, segundo Fusari e Ferraz (1992, p. 16). Mas vale salientar que, em nosso país, as origens dessemovimento – que se situam fora das instituições oficiais de ensino – são mais antigas, vinculando-se às Escolinhas de Arte do Brasil,criadas no final da década de 1940.

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dos próprios das diversas linguagens levou à ênfasenas suas especificidades e daí às novas diretrizescurriculares para as licenciaturas.5 Em outros ter-mos, levou a uma postura essencialista, em oposi-ção ao enfoque contextualista, que dominava as pro-postas da arte-educação.6

A concepção essencialista, que procurava fun-damentar o ensino de arte (ou de música) nos seusconhecimentos próprios, trouxe uma certa ênfase nodomínio técnico-profissionalizante da linguagem e dofazer artístico, por vezes beirando o academicismoou o padrão conservatorial de ensino. Ao mesmo tem-po, tal postura descartou os objetivos contextualistas,que, por sua vez, colocavam em primeiro plano aformação global do indivíduo, voltando-se para as-pectos psicológicos ou sociais (cf. Almeida, C. M.,2001, p. 13).

Em certa medida, essa mudança de posição– de um extremo a outro, do contextualismo aoessencialismo – atende à “teoria da curvatura da vara”,segundo a qual, para endireitar uma vara que estátorta, é necessário puxá-la para o outro lado, paraque, quando for solta, ela possa finalmente encon-trar o ponto central.7 Nesse sentido, refutar a postu-ra contextualista foi um momento necessário para oresgate das especificidades de cada linguagem ar-tística, em seus conhecimentos próprios.

No entanto, os projetos educativos extra-es-colares, com finalidade social, têm mostrado a vali-dade, no ensino das artes, das funções contex-tualistas – tais como o desenvolvimento da auto-es-tima, da autonomia, da capacidade de simbolizar,analisar, avaliar e fazer julgamentos, além de umpensamento mais flexível –, discutidas por Almeida,C. M. (2001), com base em exemplos de práticaspedagógicas escolares. Muitas vezes, tais projetosarticulam essas funções contextualistas, voltadaspara a formação global dos alunos, com o domíniodo fazer artístico, inclusive como alternativa deprofissionalização. Convém salientar que o domínioda linguagem e dos procedimentos técnicos envolvi-dos no fazer artístico são meios necessários à pró-pria expressão (pessoal e artística), pois, como bemsintetiza Forquin (1982, p. 34), “o desejo de expres-são comanda a aprendizagem dos meios da expres-são, os quais, por sua vez, alimentam e firmam esse

desejo”. Assim, esse domínio reafirma a confiançaem si mesmo, contribuindo para a construção daauto-estima (cf. Almeida,C. M.. 2001, p. 23-24).

Será, portanto, que as experiências dessesprojetos extra-escolares indicam a superação daoposição entre a postura essencialista e acontextualista? Talvez, em certos espaços. É o queacontece no Projeto Cariúnas, conforme nos mostraa professora Tânia Cançado (2005), ou ainda no Pro-jeto Villa Lobinhos e na Associação Meninos doMorumbi, onde, segundo Kleber (2005), trabalha-sea performance musical sem esquecer o fator huma-no, que sempre está em primeiro plano. Nessa mes-ma direção, Carvalho (2005a) analisa as atividadesem artes desenvolvidas em entidades do Nordeste:

Nas ONGs analisadas, emprega-se grande esforçopara que as crianças e adolescentes se vejam de umamaneira mais positiva. Como os elos de uma corrente,em que cada peça cria condições necessárias para aformação de um todo, os ingredientes como domíniotécnico e teórico à desenvolvimento da capacidadecognitiva à competência e habili-dade à produção bemacabada à visibilidade à valorização e reconhecimentoà percepção dos direitos à autopercepção positiva semesclam e se articulam com a história pessoal de cadaeducando/a, convergindo para propiciar a construçãoda auto-estima. A crença em si e o se querer bem estãorelacionados à visão de um futuro, à esperança e aodesejo de vir a ser. (Carvalho, 2005a, p. 93)

É preciso, contudo, lembrar que os projetoseducativos e sociais não são homogêneos ou unifor-mes, e há práticas bastante distintas: em algumasdelas a superação da oposição entre essencialismoe contextualismo pode ser alcançada, enquanto emoutras surgem novos problemas. Por exemplo, em-bora propagando objetivos pedagógicos, certos pro-jetos pontuais e sem atuação a longo prazo têm, naverdade, como prioritária a função política ou demarketing, com parcos resultados educativos. Porsua vez, alguns projetos contratam artistas, e ou-tros transferem, para esses espaços alternativos,práticas tradicionais do fazer musical, sem maiorespreocupações com os aspectos propriamente peda-gógicos envolvidos. Cabe, portanto, refletir melhorsobre essas questões.

Acreditamos que não é qualquer música ouqualquer ensino de música que é capaz de contri-buir efetivamente para a formação global do indiví-

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5 Também defendemos essa posição; ver, entre outros, Penna (1995).6 Lanier (1997, p. 44-45) apresenta a posição contextualista como aquela em que “a experiência com a arte é meramente um meiopara algum fim mais meritório, importante não por si mesma mas como veículo.” Por sua vez, uma posição essencialista defende “odesenvolvimento de um conceito central forte [para o ensino de arte], vinculado a referenciais artísticos”.7 A “teoria da curvatura da vara” foi enunciada por Lênin, citada e aplicada por Dermeval Saviani (1984, p. 41) em seu clássicotrabalho, Escola e Democracia, em que critica ferozmente o movimento da Escola Nova, para depois procurar o equilíbrio, incorporandoe ultrapassando suas concepções.

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duo, e consideramos problemática a transferênciapura e simples de práticas conservatoriais para osespaços extra-escolares alternativos dos projetossociais. Diante das necessidades prementes dos gru-pos atendidos por tais projetos, que enfrentam pre-cárias condições de vida, com alternativas de reali-zação pessoal, profissional ou social extremamenterestritas, parece fácil considerar qualquer abordagemcomo válida, qualquer contribuição como positiva.Mas isso pode acabar nos levando de volta à visãoredentora da arte e da música, presente nas corren-tes da arte-educação, e mais especificamente naproposta da “educação pela arte” (ou “através daarte”), de Herbert Read.

[Read] Propunha, por meio da educação pela arte, apreservação da totalidade orgânica do homem e desuas faculdades mentais, respeitadas as diversasfases do desenvolvimento humano. Com essa preser-vação seria possível manter a unidade de consciência,a única fonte de harmonia social e de felicidadeindividual […] (Osinski, 2001, p. 91, grifo meu).

Em sua função redentora, concebe-se a arte(e a música) como capaz de redimir a escola – res-gatando a sensibilidade diante da racionalização doensino tradicional, por exemplo – ou, mais ainda,como capaz de redimir a própria humanidade, aoproduzir “pessoas e sociedades melhores” (Readapud Osinski, 2001, p. 92).

Se, com base nessa visão redentora, consi-derarmos qualquer música, qualquer arte, assimcomo qualquer ensino das mesmas como capazesde contribuir para a formação global do indivíduo,corremos o risco de perder a visão crítica e de cairno etnocentrismo. E a partir daí podemos esquecera necessidade de comprometimento social em nos-sa prática educativa, a necessidade de compreen-der a diversidade do mundo social e cultural, de bus-car e construir alternativas pedagógicas e metodoló-gicas capazes de atender às especificidades de di-ferentes contextos e comunidades, com distintasvivências culturais. E se tais questões forem esque-cidas, perderemos a oportunidade de superar a opo-sição entre a postura essencialista e contextualista,integrando-as.

Como mostra Célia Maria de Castro Almeida(2001, p. 26-28), o ensino das artes baseado nareprodução de modelos – a chamada “prática mo-delar” – dificulta o desenvolvimento de habilida-des ligadas à formação global, como a autonomiaou “a capacidade de dizer mais e melhor sobre simesmo e sobre o mundo” (Almeida, C. M., 2001,p. 25). Segundo a autora:

Na prática modelar, o professor oferece o modelo nãocomo uma das possibilidades, mas como a únicapossível. São múltiplas as formas como esse modelose apresenta. Ele ocorre, por exemplo, quando aprofessora determina o que e como fazer […].

O ensino modelar também se observa em ati-vidades que enfatizam a técnica pela técnica. Nadacontra a aprendizagem de técnicas, pois o domíniodelas é fundamental para a execução de qualquertrabalho. O problema surge quando a técnica se trans-forma em um fim em si mesma, quando a expressãoe iniciativa dos alunos são relegadas a segundoplano e a atividade passa a ser mecânica, des-provida de sentido para os alunos. (Almeida, C.M., 2001, p. 26-27).

Como mencionamos acima, alguns projetoscontratam artistas, como é o caso dos projetos so-ciais envolvendo música, promovidos pela Prefeiturade Porto Alegre – as chamadas “oficinas de música”–, analisados por Cristiane Almeida (2005), em arti-go na revista Educação, da Universidade Federal deSanta Maria/UFSM (RS). Apesar de a seleção dosoficineiros ser “feita anualmente a partir de uma con-vocação aos músicos, divulgada na mídia”, sem exi-gência de formação acadêmica (Almeida, C., 2005,p. 107), a autora verifica, a partir de entrevistas comos mesmos, que as habilidades apontadas comonecessárias para um relacionamento positivo com aturma e um bom resultado do trabalho compõem operfil de um professor. “O bom senso, a humildadeem reconhecer sua incompletude, o aprender com oaluno, a paciência, a tolerância, a responsabilidade,a preocupação com o social e o respeito aos alunose à comunidade […]” são destacados (Almeida, C.,2005, p. 113).8 São características que ultrapassamo domínio da linguagem e do fazer musicais, envol-vendo também a capacidade de conduzir produtiva-mente o processo pedagógico, de compreender aespecificidade – social, cultural, humana – do gru-po, respeitá-la e interagir com ela, característicasessas essenciais, a nosso ver, para que um trabalhocom música possa cumprir seu papel na formaçãoglobal do indivíduo.

O diálogo diante da diversidade

Esta necessidade de o educador compreen-der, respeitar e interagir com a especificidade do gru-po implica uma postura de aceitação da diversidade– e queremos enfocar, particularmente, a diversida-de cultural. Lidar com a pluralidade evita, portanto, oetnocentrismo de tomar como referência a nossaprópria música (inclusive considerando-a “redento-

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8 Nessa mesma direção, ver a discussão de Carvalho (2005b) a respeito do perfil do professor de artes nas ONGs.

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ra”), desconsiderando as produções artísticas, cul-turais e musicais dos grupos com que se trabalha.

Temos discutido a questão da diversidadecultural no contexto escolar institucional, buscandoas contribuições do multiculturalismo para melhorcompreendê-la e discuti-la. Tais contribuições sãotambém pertinentes ao se pensar a educação musi-cal junto a diferentes grupos socialmente excluídos,em espaços educativos alternativos.9

Segundo Ana Canen (2002, p. 175), o multicul-turalismo é um “movimento teórico e político quebusca respostas para os desafios da pluralidadecultural”, procurando incorporar nos diversos cam-pos da vida social, inclusive a educação, a diversida-de e o combate aos preconceitos. A preocupaçãocom a multiculturalidade resulta dos desafios coloca-dos por sociedades cada vez menos homogêneas,crivadas pela pluralidade e palco de convivência dediversas etnias, valores e hábitos culturais, por ve-zes em conflitos. Em suas origens, o movimentomulticultural ligava-se basicamente às questões ét-nicas, mas pouco a pouco “vai cedendo espaço paraoutros aspectos da dominação cultural” (Gonçalves;Silva, 2000, p. 28).

Assim, a nosso ver, a postura multiculturalistadeve abarcar a diversidade de produções artísticas emusicais, vinculadas a diferentes grupos sociais,sejam esses grupos marcados por particularidadesde classe, de região ou de geração, por exemplo.Como conseqüência dessa postura, as referênciaspara as práticas pedagógicas em educação musicalnão podem se restringir à música erudita, tornando-se indispensável abarcar a diversidade de manifes-tações musicais, incluindo as populares e as damídia. O multiculturalismo implica, portanto, uma con-cepção ampla de música, capaz de abarcar as múl-tiplas e diferenciadas manifestações: uma concep-ção ampla de música é uma condição necessáriapara que a educação musical possa atender à pers-pectiva multicultural, ao mesmo tempo em que aconcepção da multiculturalidade contribui para aampliação da concepção de música que norteia nos-sa postura educacional. Desse modo, é possível ul-trapassar a oposição entre popular e erudito, e apre-ender todas as manifestações musicais como signi-ficativas, evitando deslegitimar a música do outroatravés da imposição de uma única visão.

Em suma, o que o multiculturalismo apontapara a educação musical – e, de modo mais amplo,

para o ensino de arte – é a necessidade de trabalharcom a diversidade de manifestações artísticas, con-siderando a todas como significativas, inclusive con-forme sua contextualização em determinado grupocultural. Nesse sentido, o princípio da “relativização”,clássica lição da antropologia, é extremamente per-tinente: tornar familiar o estranho, e estranhar o fa-miliar. Ou seja, buscar a aproximação com a culturado outro, para poder compreendê-la, e, por outro lado,encontrar o distanciamento necessário para umaanálise crítica de nossa própria cultura, para que sejapossível romper a visão naturalizada que torna o nossopróprio “mundo” uma referência única, a medida paratodas as coisas.10 Nesse sentido, indica André (2004,p. 45): “Na busca das significações do outro, o in-vestigador deve, pois, ultrapassar seus métodos evalores, admitindo outras lógicas de entender, con-ceber e recriar o mundo.”

Uma prática pedagógica embasada numa con-cepção de música suficientemente ampla para abar-car a multiplicidade leva ao diálogo como prática eprincípio para lidar com a diversidade, sendo capazde contribuir para a expansão (em alcance e quali-dade) da experiência artística e cultural de nossosalunos. O diálogo entre diferentes práticas culturais,artísticas e musicais é, portanto, essencial para ocrescimento de todos, para evitar não só a tentaçãodo etnocentrismo, mas também os riscos dofolclorismo ou da guetização.

A “guetização” – o processo de fechar emguetos –, é um dos riscos do multiculturalismo, queacontece quando, em nome de valorizar as especifi-cidades culturais de determinados grupos – especi-almente daqueles historicamente dominados – aca-ba-se por prendê-los no gueto de sua particularida-de, isolando-os. No campo da educação, a gueti-zação manifesta-se em propostas curriculares volta-das exclusivamente ao estudo dos padrões culturaisespecíficos do grupo, o que é uma postura bastantereducionista, se considerarmos a multiplicidade qua-se infinita de manifestações musicais. Em oposição aesse enfoque exclusivo das práticas musicais própri-as do grupo, Canen (2002, p. 185-187) propõe que aabertura à diversidade leve à procura de estratégiaspedagógicas “que permitam articulações, intercâmbi-os interculturais”, sendo a base desse trabalho o diá-logo, e “jamais o monólogo que aprisiona os sujeitosexclusivamente em seus modos de ver o mundo” – e,podemos acrescentar, que aprisiona os sujeitos nosseus próprios padrões estéticos e artísticos.

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9 Para a discussão que se segue, retomamos algumas idéias apresentadas em Penna (2005), artigo que pode ser consultado paraum maior aprofundamento da questão.10 A respeito, ver, entre outros, Goldenberg (1999, p. 58-59, 20-24) e André (2004, p. 45-48).

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Um outro risco do multiculturalismo na edu-cação, particularmente acentuado na área de arte, écair no “folclorismo”:

Trata-se da redução do multiculturalismo a uma pers-pectiva de valorização de costumes, festas, receitas eoutros aspectos folclóricos e “exóticos” de gruposculturais diversos. Perspectivas curriculares que redu-zem o multiculturalismo a momentos de “feiras deculturas”, celebração do Dia do Índio, Semana daConsciência Negra e outras formas mais pontuaispodem correr esse risco. (Canen, 2002, p. 182).

O folclorismo está ligado à fixação e congela-mento das práticas culturais, na medida em que tra-balha com a idéia do “típico”, negando o caráter vivoda cultura e caindo em estereótipos. Reconhecer evalorizar a especificidade de diferentes grupos nãoimplica, necessariamente, congelar suas práticas,desconsiderando o dinamismo da cultura e da arte.

Por sua vez, o diálogo como princípio baseia-se numa concepção dinâmica de cultura, que a en-tende como “viva”, em constante processo. As lin-guagens artísticas são historicamente construídas,e essa construção histórica é contínua e constante,de modo que não se encontra apenas em algummomento passado, mas se processa também nopresente, através das nossas escolhas em relaçãoàs produções artísticas.

O diálogo entre diversas manifestações musi-cais, como parte do trabalho pedagógico, pode pro-mover a troca de experiências e a ampliação do uni-verso cultural dos alunos. Nesse sentido, os proje-tos educativos extra-escolares têm mostrado umaenorme diversidade de possibilidades: em alguns,trabalha-se a música erudita; em outros, alguma dasdiversas expressões da música popular, como ochorinho, o rap ou as percussões de origem afro. Dequalquer forma, acreditamos ser essencial tanto odiálogo com as várias manifestações culturais dosgrupos envolvidos – como defesa contra a tentaçãode impor de fora uma música tida como redentora –quanto a troca com outras possibilidades de produ-ção musical – para evitar o risco de cair na guetização.

O diálogo rompendo a disciplinaridade naformação

O resgate dos conhecimentos próprios denossa área – refletido na proposta curricular das li-

cenciaturas específicas em música – é sem dúvidaum avanço, diante do quadro brasileiro de esvazia-mento de conteúdos correlato à implantação da Edu-cação Artística. No entanto, é preciso ter cuidadopara não cair em uma extrema disciplinarização, quecompartimentalize o saber. Pois, “se a especializa-ção potencializa o conhecimento do objeto, por ou-tro lado, ela acaba por isolar esse objeto, e isso decerta forma o mutila” (Gallo, 2004, p. 105). Comomostra Morin (2002, p. 105), uma disciplina – que éhistoricamente construída, num processo que se vin-cula à história da universidade e da própria socieda-de – “tende naturalmente à autonomia pela delimita-ção das fronteiras”. E segue este autor:

[…] a instituição disciplinar acarreta, ao mesmo tempo,um perigo de hiperespecialização do pesquisador e umrisco de “coisificação” do objeto estudado, do qual secorre o risco de esquecer que é […] construído. Oobjeto da disciplina será percebido, então, como umacoisa auto-suficiente; as ligações e solidariedadesdesse objeto com outros objetos estudados por outrasdisciplinas serão negligenciadas, assim como asligações e solidariedades com o universo do qual elefaz parte. A fronteira disciplinar, sua linguagem e seusconceitos próprios vão isolar a disciplina em relaçãoàs outras e em relação aos problemas que sesobrepõem às disciplinas. A mentalidade hiperdisciplinarvai tornar-se uma mentalidade de proprietário queproíbe qualquer incursão estranha em sua parcela desaber. (Morin, 2002, p. 106).

Ao discutir a educação musical diante da di-versidade, a menção ao princípio da relativização,da antropologia, indica a necessidade do diálogo entrea nossa área e outras. As experiências de educaçãomusical em projetos extra-escolares nos trazem osdesafios de incorporar os objetivos contextualistasvoltados para a formação global, de comprometimentosocial e de diálogo com diversas realidades cultu-rais. Dessa forma, essas novas experiências de en-sino de música colocam em questão a própria for-mação do professor.

Os conteúdos musicais, em sua especifici-dade, são sem dúvida fundamentais nessa forma-ção, que, entretanto, não pode se restringir ao domí-nio de tais conteúdos, necessitando se enriquecercom a interdisciplinaridade. Evitando o debate sobreos termos interdisciplinaridade, multidisciplinaridadee transdisciplinaridade – discutidos por Morin (2002,p. 115), que os considera “difíceis de definir, porquesão polissêmicos e imprecisos”11 – atemo-nos à idéia

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11 “Por exemplo: a interdisciplinaridade pode significar, pura e simplesmente, que diferentes disciplinas são colocadas em volta deuma mesma mesa, como diferentes nações se posicionam na ONU, sem fazerem nada além de afirmar, cada qual, seus própriosdireitos nacionais e suas próprias soberanias em relação às invasões do vizinho. Mas interdisciplinaridade pode significar tambémtroca e cooperação, o que faz com que a interdisciplinaridade possa vir a ser alguma coisa orgânica. A multidisciplinaridade constituiuma associação de disciplinas, por conta de um projeto ou de um objeto que lhes sejam comuns; as disciplinas ora são convocadascomo técnicos especializados para resolver tal ou qual problema; ora, ao contrário, estão em completa interação para conceber

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central de diálogo e cooperação. Nessa mesma di-reção,12 Gallo (2004, p. 115) propõe a “transver-salidade”, como “forma de trânsito por entre os sa-beres, estabelecendo cortes transversais que arti-culem vários campos, várias áreas”. Nossa área es-pecífica de educação musical precisa, pois, estarem diálogo com outras – não apenas com os de-mais campos artísticos, mas com a área de educa-ção/pedagogia, com as ciências sociais, com a filo-sofia, a história, a psicologia, ou outras tantas disci-plinas que, por sua vez, o diálogo com a realidade –ou o diálogo que busca uma maior compreensão darealidade – mostre ser necessárias.

A interdisciplinaridade, o diálogo entre cam-pos do saber, não pode estar restrito à pesquisa ouà pós-graduação; pode e deve, a nosso ver, integrare enriquecer a própria formação do educador musi-cal, na licenciatura. Com isso, não pretendemos di-luir os currículos das licenciaturas em música emgeneralidades, perdendo o domínio dos conteú-dos que nos são próprios. A idéia é “abrir” essescurrículos, estabelecendo pontes de diálogo e deinter-relação:

Os processos de formação docente hoje são aindaessencialmente disciplinares. […] Não se estimula otrânsito por entre os saberes, mas sim o respeito àshierarquias e às fronteiras.

Mas o mundo é cada vez mais daqueles que ousam eque rompem, daqueles que se colocam para além dequalquer fronteira. Também a formação docente precisaassumir, paulatinamente, um caráter não disciplinar ou,pelo menos, transdisciplinar, de forma que os futurosprofessores tenham oportunidade de navegar pelosdiferentes saberes, construindo seus currículos e res-pectivos processos de formação de forma aberta eplural. (Gallo, 2004, p. 116-117).

Nesse sentido, acreditamos ser possível acurto prazo, por exemplo, abrir os currículos paramúltiplas disciplinas optativas, de diversos camposdisciplinares, permitindo dessa forma que o futuroeducador musical busque, no seu trajeto de forma-ção, atender aos seus próprios anseios e questiona-mentos, ou às necessidades apontadas por sua ex-periência de vida ou profissional. Mesmo que muitosgraduandos se limitem a cumprir o mínimo de crédi-tos ou horas exigidos para a obtenção do diploma,cabe possibilitar e incentivar uma formação maisampla, com alternativas complementares diversifi-

cadas, para aqueles que assim o desejarem e secomprometerem.

Neste ponto, é importante deixar claro que nãoestamos defendendo simplesmente o acúmulo deconhecimentos e informações na formação do edu-cador musical. O mais importante é a capacidadede estabelecer relações – ou seja, mais uma vez, decolocar esses conhecimentos em diálogo e em coo-peração, não só entre si, mas também com o mun-do, com as experiências de vida de cada um.

A primeira finalidade do ensino foi formulada porMontaigne: mais vale uma cabeça bem-feita que [umacabeça] bem cheia.

O significado de “uma cabeça bem cheia” é óbvio: éuma cabeça onde o saber é acumulado, empilhado, enão dispõe de um princípio de seleção e organizaçãoque lhe dê sentido. “Uma cabeça bem-feita” significaque, em vez de acumular o saber, é mais importantedispor ao mesmo tempo de:

uma aptidão geral para colocar e tratar os problemas;

princípios organizadores que permitam ligar os saberese lhes dar sentido. (Morin, 2002, p. 21).

Outra possibilidade para enriquecer a forma-ção e a pesquisa em nossa área, através do diálogo,é a constituição e atuação de grupos de pesquisainterdisciplinares; ou ainda de projetos de extensão– envolvendo universidades e ONGs ou grupos co-munitários – onde a própria experiência prática pos-sa apontar os conhecimentos (de diversas áreas)necessários, os estudos ou pesquisas a serem de-senvolvidos para uma maior compreensão da reali-dade e para uma eficaz atuação na solução dos pro-blemas encontrados. Grupos de pesquisa e exten-são interdisciplinares poderiam voltar-se, inclusive,para a educação formal – a educação básica –quetambém precisa de propostas para trabalhar a diver-sidade cultural.

Pensar a interdisciplinaridade na formação doeducador musical coloca em foco uma importantepergunta: afinal, o que faz ser um educador musi-cal? A resposta pode não ser tão simples quantoparece. Critérios que se restrinjam à titulação, ouque privilegiem unicamente carreiras acadêmicas“coerentemente” fechadas na especialidade (ou seja,baseadas na disciplinarização) podem ser úteis paracertas finalidades, como para órgãos como CAPES

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esse objeto e esse projeto […]. No que concerne à transdisciplinaridade, trata-se frequentemente de esquemas cognitivos quepodem atravessar as disciplinas […]. De fato, são os complexos de inter-multi-trans-disciplinaridade que realizaram e desempenharamum fecundo papel na história das ciências; é preciso conservar as noções chave que estão implicadas nisso, ou seja, cooperação;melhor, objeto comum; e, melhor ainda, projeto comum.” (Morin, 2002, p. 115).12 Embora dentro de uma concepção “rizomática” dos saberes: […] “se tomarmos o mapa dos saberes como um imenso rizoma, umliame de fios e nós, sem começo e sem fim, teremos infinitas possibilidades de transitar entre eles, sem nenhum vestígio dehierarquia, e aí entra a ‘transversalidade’.” (Gallo, 2004, p. 115).

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ou CNPq, ou para certas conquistas nos camposacadêmico e científico – entendidos como “campos”histórica e socialmente constituídos, onde se encon-tram em disputa tipos de poder específicos, comoestudado por Bourdieu (1983, 1984).13 Tais critériosexclusivos (e por vezes burocráticos) não garantem,entretanto, o enriquecimento de nossa área, em ter-mos da ampliação de suas discussões, de sua ca-pacidade de – nos termos de Morin (2002, p. 17) –“considerar a situação humana no âmago da vida,na terra, no mundo, e de enfrentar os grandes desa-fios de nossa época”.

Neste ponto, convém abrir parêntese para lem-brar de Paulo Freire e sua grande contribuição paraa educação – e especificamente para a educaçãopopular e a alfabetização de jovens e adultos. Ele foiconsiderado “o educador brasileiro mais conhecidoe mais respeitado no mundo, em todos os tempos”.14

No entanto, não era pedagogo ou linguista, e simformado em Direito; nunca fez mestrado ou doutora-do, o que não o impediu de recebeu o título de Dou-tor Honoris Causa em 28 universidades, inclusiveestrangeiras (Centro Paulo Freire, [s.d.]).

Retomando a questão de nossa área, temosque admitir que não há uma resposta única ou defi-nitiva, pois são múltiplos os perfis dos educadoresmusicais, refletindo, inclusive, a variedade de espa-ços de atuação, cada qual com suas próprias de-mandas e desafios. E essa multiplicidade traz dife-rentes contribuições, pois o diálogo entre esta diver-sidade – de perfis, de enfoques, de contribuições,de experiências… – enriquece a nossa área. E issoé uma coisa que as experiências de educação mu-sical nos projetos extra-escolares de caráter socialnos trouxeram para pensar: a necessidade de lidarcom a diversidade humana, cultural, artística e mu-sical lá fora, dos grupos envolvidos nesses projetos,e também lidar com a diversidade interna de nossaárea – diversidade esta que, na verdade, nos consti-tui –, e ainda com a diversidade potencial que ainterdisciplinaridade pode trazer para enriquecernossas discussões, nossa formação e nossas pes-quisas. A homogeneidade e a padronização po-dem ser mais confortáveis e protetoras, mais fá-ceis de lidar; mas a diversidade é muito mais rica.Que sejamos capazes não apenas de acolhê-la,mas de estimulá-la.

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13 “O campo científico, enquanto sistema de relações objetivas entre posições adquiridas (em lutas anteriores), é o lugar, o espaçode jogo de uma luta concorrencial. O que está em jogo especificamente nessa luta é o monopólio da autoridade científica definida,de maneira inseparável, como capacidade técnica e poder social; ou, se quisermos, o monopólio da competência científica,compreendida enquanto capacidade de falar e de agir legitimamente (isto é, de maneira autorizada e com autoridade), que ésocialmente outorgada a um agente determinado.” (Bourdieu, 1983, p. 122-123, grifo do autor).14 Nas palavras de Paulo Renato Souza, ministro da Educação de Fernando Henrique Cardoso, por ocasião de sua morte (Jelin, [s.d.]).

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Recebido em 21/02/2006

Aprovado em 05/03/2006

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Grupo de Pesquisa
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Vivemos uma saturação e uma transitorieda-de da informação que é conseqüência de uma eraem que o acesso às tecnologias envolvidas na soci-alização do conhecimento tornou-se democrático,senão corriqueiro e, talvez, banalizado. Rotineiramen-te, nos deparamos com uma enxurrada de dadosque nos leva a uma encruzilhada comum no mundopós-moderno da informação: descartá-los ou tentarnadar nesse oceano que cerca nossas pequenas econfortáveis ilhas de conhecimento? Cabe aqui umparalelo com as duas opções que propõe Anderson(2002) sobre o conceito de multifrenia de Gergen(1991) e que foi trazido para discussão no contextomusical por Moraes (2005): sermos bons emmultifrenia, lidando com um universo de informaçõese valores muito maior do que nossa capacidade degerenciamento e compreensão, ou, por outro lado,desenvolver estratégias de seletividade para filtrar o

Por uma unidade e diversidadeda pedagogia da performance

Fausto BorémUniversidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

[email protected]

Resumo. Reflexões sobre dilemas pedagógicos da performance musical na universidade:generalidade versus especialidade, o excesso e alienação da informação no mundo pós-moderno,a desintegração entre a teoria e a prática musicais, o distanciamento entre os educadores musicaise os pedagogos da performance. Inclui relatos de experiência.

Palavras-chave: ensino de música na universidade, pedagogia da performance musical, multifrenia

Abstact. Reflections and reports on pedagogical dilemmas presently found in music performancewithin the college environment: generalization versus specialization, information excess and alienationin the post-modern world, the disintegration between music theory and practice, the distance betweenmusic educators and music performance pedagogues.

Keywords: college music teaching, music performance pedagogy, multifrenia

que chega até nós espontânea ou não espontanea-mente, dentro de um estilo de divulgação do “conhe-cimento” em larga escala que está tornando-se co-mum na era da comunicação virtual.

Vejo claramente o risco da multifrenia em nomeda atualização do conhecimento: os percalços depriorizar o não permanente, de dar espaço à ausên-cia de “crenças e valores” ou à “falta de uma marcadistinta”, que Coelho (2000) observou em estudan-tes da USP. No meio da “abertura” provocada pelodiscurso da pós-modernidade, pipocam vertentes quepropõem conectar valores nunca dantes relaciona-dos, mundos aparentemente não compatíveis. Aidéia, em princípio, me parece trazer um pouco de arfresco para o pensamento estagnado em guetos deespecialistas, muito comum nas escolas de músicabrasileiras. Mas há a corda bamba das grandes idéi-

BORÉM, Fausto. Por uma unidade e diversidade da pedagogia da performance. Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 13, 45-54, mar.2006.

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as que não se efetivam, que as tornam apenas tran-sitórias e superficiais. Essa transitoriedade do calei-doscópio de que fala Anderson (2002) se aplica bemà realidade acadêmica brasileira. A descontinuidadede processos “inovadores” de ensino ou o abandonode trabalhos de pesquisa tornam-se meros fragmen-tos dispersos ao longo do tempo, atraentes pela va-riedade e combinação de “cores caleidoscópicas”,mas de vida curta pela rasura de seu possívelaprofundamento ou pelo fraco potencial de desenvol-vimento de seu conteúdo.

Mas, ainda assim, acredito numa formaçãoque abrigue unidade e diversidade e permita a comu-nicação entre as diversas áreas do conhecimento.Por isso, faço coro com Arnold Schoenberg (1984)para criticar a postura do pedagogo da performancemusical que, nas limitações de seu mundo altamen-te especializado, enxerga muito pouco além do quefaz. Ele diz:

Me oponho ao especialista […] Para merecer o nomede músico, deve-se possuir não somente o conheci-mento específico em uma área, mas ter o conhecimentode todos os campos de sua arte. […] Um regente debanda sinfônica, chefe do departamento de música[…] vai tocar o “Quarteto Harpa” de Beethoven – assimchamado devido a uma longa passagem em pizzicatosarpejados. “Quem tocará a parte da harpa?”, elepergunta a um dos seus alunos […] Esses são oscrimes de um especialista. (Schoenberg, 1984, p. 387).

Em 1998, refletindo sobre o papel do profes-sor universitário de música no Brasil e seus proble-mas, me dei conta de que somos selecionados emconcursos públicos que avaliam muito pouco acercado trabalho que nos espera nesse meio, o qual podeser sumariado como atividades de ensino, pesqui-sa, extensão e administração (Borém, 1997c). Que-ro acreditar que os melhores profissionais de ensinouniversitário são aqueles que, em maior ou menorgrau, desempenham bem suas funções nessas qua-tro áreas. Mas a realidade da universidade brasileirareflete um quadro em que muitos não compreendema síntese indutiva do específico para o global a partirda diversidade ou, em outras palavras, não conse-guem se integrar a esse ambiente, cujo nome, UNI-VERSIDADE, inspira uma perspectiva de umaUNIdade na diVERSIDADE.

O ensino superior de música no Brasil refletebem as dificuldades de uma classe de profissionaisem que muitos ainda não estão preparados paraensinar música (ou para aprender a ensinar músicaao longo de suas carreiras), que é a razão pela qualsomos contratados pelos editais de concurso. Ensi-nar bem música implica estar atualizado e atuar mi-nimamente nessas quatro esferas. Como educado-res, devemos estar atentos às demandas sempre

mutantes dos alunos e da sociedade em que vivem.Como pesquisadores, deveríamos nos perguntar so-bre os melhores processos de aprendizagem. Comoartistas, juntos à comunidade externa, ultrapassa-mos os limites da universidade e reforçamos (ou cri-amos) modelos para o mundo real que espera osalunos da performance musical lá fora. Como admi-nistradores, devemos buscar as direções corretaspara efetivar as ações do ensino, pesquisa e exten-são e, por que não, lapidar exemplos de liderançaem um país carente de valores básicos de uma ad-ministração honesta, justa e eficiente. Então, o pro-fessor universitário de música deveria ser fluente emmultifrenia. Ou, colocando essa questão de umamaneira mais combativa, como então compactuarcom discursos de colegas que acreditam que o alu-no (mesmo em nível de pós-graduação, acreditem!)ou pesquisador da área de performance não preci-saria realizar pesquisa formal ou, pior, não deveriase dedicar minimamente ao salutar hábito de docu-mentar seus processos criativos e pedagógicos?

De fato, parece que ainda ignoramos esse queé um dos problemas mais graves no ensino e pes-quisa na área de performance musical, o qual setraduz na tradição, herdada dos conservatórios, dosprofessores de não documentarem suas reflexõessobre a experiência de fazer e ensinar música. Nomundo da performance musical, grandes instru-mentistas e cantores permanecem como uma me-mória inacessível às gerações posteriores que nãotiveram a oportunidade de ouvi-los enquanto eramativos como intérpretes e professores.

Para que o trabalho envolvido no processo deensinar um instrumento nos seus diversos níveis –leitura, obediência e desobediência à partitura, deci-sões técnico-interpretativas, gestual e interação como público – não se perca na efemeridade dos con-certos ou na frágil transmissão oral de conhecimen-tos das salas de aula, o professor de música deveriafazer um hábito constante da documentação da artede “fazer soar a música”. Nesse sentido, os profes-sores de instrumentos, canto e regência deveriamestabelecer uma rotina de documentação de suametodologia da performance em texto escrito ou emgravação sonora.

Acredito que dentro do processo de globali-zação, ou universalização – que marcou o final doséculo XX, o músico universitário (professores e alu-nos) deve pesquisar, fazer e ensinar a música nasua especialidade, sem ignorar as interfaces comas diversas áreas: performance, criação, análise,história, educação, música popular, etc. Assim, oprofessor da área de performance musical, por exem-plo, ao ensinar o Trio Brasileiro, de Lorenzo

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Fernandez, deveria integrar os contextos analítico (aforma cíclica, os procedimentos compositivos tradi-cionais e as citações do folclore) e histórico (o naci-onalismo musical no Brasil e a continuação da influ-ência européia) ao contexto técnico-interpretativo(escolha de dedilhados, articulações, fraseados, etc.).Acredito que a atuação multifrênica, em diversas fren-tes da música, a exemplo do que realizaramHindemith e Bartok, não implica uma superficialida-de do conhecimento.

Nesse meio multifrênico, é importante a convi-vência e familiaridade do músico com elementosopostos, intrínsecos à música e necessários à suaunidade: disciplina e desorganização, preparação eimprovisação, brincadeira e seriedade, rigidez e fle-xibilidade diante do inusitado. Esse sentimento deunidade artística, que pode ser vivenciado por todos(músicos e leigos) presentes nas platéias dos gran-des performers musicais, sem mesmo conhecer apartitura do que está sendo apresentado, pode serdesenvolvido a partir do conhecimento e domíniodesses elementos.

A aprendizagem musical acontece através de umengajamento multifacetado: solfejando, praticando,escutando os outros, apresentando-se, participandode ensaios e apresentações em público com umprograma que integre também a improvisação.(Swanwick, 1994, p. 7).

Na citação acima, Keith Swanwick (1994), umdos mais importantes educadores musicais contem-porâneos, nos coloca seu ponto de vista sobre oensino de instrumentos musicais e nos subsidia adiscussão de um outro problema. Podemos, a partirde sua idéia integradora no ensino da música, am-pliar um pouco mais esse raciocínio para umengajamento multifacetado ideal e chegar ao desa-fio de uma cooperação efetiva entre a música na te-oria e a música na prática, nas suas diversasinterfaces. Como o professor especializado emperformance poderia ministrar suas aulas integran-do esses dois lados da música? Performance e His-tória da Música, Performance e Análise Musical,Performance e Comportamento Motor, Performancee a própria Educação Musical são apenas algumasdas interfaces de que o professor pode lançar mãopara tornar a experiência do aprendizado musical maissignificativa e duradoura.

Samuel Baron (1976), no artigo The Performeras a College Music Teacher, observa que o desen-volvimento de currículos de música em algumas uni-versidades americanas já reflete uma integraçãomaior entre especialistas das áreas teórica e práti-ca. Na Escola de Música da State University of NewYork at Stoney Brook, por exemplo, disciplinas como

Performance-Practice of Baroque Music, Workshopin Composition and Performance e Performance andAnalysis já faziam parte do seu programa de pós-graduação naquela época. Aqui no Brasil, para ficarapenas em Minas Gerais, onde atuo como educa-dor, observo iniciativas pedagógicas integrandoperformance em contextos mais amplos, como psi-cologia da música (professor Abel Moraes, naUEMG), organização do tempo de estudo (professorAntônio Carlos Guimarães, na UEMG) e análisemusical aplicada (professor Maurício Freire e profes-sor André Cavazotti, na UFMG). Inspirando essasiniciativas, houve anteriormente, é claro, o importan-te passo de flexibilização dos currículos, que permi-tiu aos docentes explorarem suas potencialidadesespecíficas.

Em outro exemplo, na UFMG, estimulo os alu-nos a experimentarem com práticas de performancebarrocas nas aulas de instrumento ou de música decâmara, ainda que estes não disponham de “instru-mentos de época”. Mesmo os alunos mais resisten-tes a uma mudança do “som tradicional” (entendidoaqui como a sonoridade baseada na herança român-tica de interpretação do final do século XIX e primeirametade do século XX, que ainda remanesce no meiomusical brasileiro) geralmente acabam cedendo antea possibilidade de premiar o público com uma varie-dade de estilos de performance em que diferenciemo “som barroco” do “som romântico” ou do “som con-temporâneo”. Assim, a consciência da retórica dobarroco, técnicas de arco como o enflé, a necessi-dade gradativa de maior articulação entre as notasno registro grave, a liberdade relativa na realizaçãode ornamentos, a expressividade das notes inégalese a inclusão de pequenos trechos improvisatórios,elementos que começam a fazer parte da culturamusical de alunos que, por desconhecimento ou fal-ta de oportunidade, diziam-se não interessados poressas práticas de performance.

O mito da “musicalidade inata” tem impedidomuitos professores de instrumento e canto de bus-carem metodologias mais eficientes no ensino damúsica. Em função disso, muitos professores deinstrumento desenvolvem uma atitude passiva carac-terística, que é ilustrada por Swanwick (1994, p. 7)como: “[…] práticas pedagógicas inadequadas […]ter um arco em uma mão e o violino na outra, e terque tocar no andamento, com boa afinação e sono-ridade; tudo isso sem um mínimo prazer estético.”Essa acomodação do professor à pouca musicalidadeapresentada pelos alunos iniciantes acontece comfreqüência. A cada processo seletivo do vestibular,além de um ou dois talentos excepcionais, nos che-ga às mãos um número muito maior de alunos cuja

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musicalidade está embotada ou pouco desenvolvi-da. Muitas vezes, tendemos erroneamente a valori-zar a virtuosidade técnica desses alunos como sepudéssemos compensar sua falta de musicalidade.É comum, nesse estágio da aprendizagem, o dile-ma entre ajudar o aluno com formação precária aconsolidar uma base musical mais sólida ou avan-çar sem atrasos o repertório a ser cumprido em cadasemestre. Acredito que o nível artístico possa e devaser desenvolvido em obras de todos os níveis técni-co-musicais e está ligado diretamente ao grau deabertura dos canais sensoriais, através dos quaispercebemos e expressamos. Exercitar esse fluxointerativo seria, então, uma maneira de nos tornar-mos mais artísticos. Freqüentemente, sugiro que osalunos revejam como se deu o seu contato inicialcom a música e repensem as bases de seus pre-conceitos musicais. Demando que, fora das aulasde instrumento, aumentem sua cultura musical ou-vindo e lendo mais e que tragam esses estímulos ereferenciais sonoros para a prática diária do instru-mento.

Swanwick (1994, p. 7) também nos lembra que

[…] algumas das melhores aulas têm sido dadas porinstrumentistas que realmente entendem de sua arte,ensinando que tudo deve ser motivado por um respeitoà música como uma entidade simbólica, e por um respeitoao aluno enquanto um ser autônomo.

No ensino dos instrumentos musicais, cantoe regência, o professor deve perceber as diferençasno ritmo de aprendizagem e nos diferentes significa-dos da música para cada aluno e seus dilemas (comomúsica erudita versus música popular), não atrope-lando os desníveis pontuais em cada um dos parâme-tros que compõem a sua musicalidade e em cadaexpectativa e limites de seu desenvolvimento.

Uma questão fundamental no ensino das cor-das orquestrais, dos sopros e do canto, especial-mente, e que está ligada à manutenção do entusias-mo do aluno no estudo do instrumento, é o desen-volvimento de uma afinação não-temperada segura.Ao contrário do pianista ou do violonista, cujas no-tas são predeterminadas, o violinista, o violista, ovioloncelista e o contrabaixista não dispõem de tras-tes para demarcar cada nota no espelho de seu ins-trumento. Sentir-se “desafinado” é o motivo a partirdo qual muitos alunos abandonam a música. No casodo contrabaixo, instrumento que ensino há quasetrês décadas, as possibilidades de erro no transitarda mão esquerda sobre o espelho do instrumentoaumentam devido às suas grandes dimensões. Soma-se a esse problema o fato de que a afinação não-temperada torna-se mais difícil nos registros graves,o que responde em parte pelo preconceito que des-

creve os contrabaixistas como “naturalmente desafi-nados”.

Essa última questão, sobre a qual me dete-nho há mais de dez anos, propiciou a criação dogrupo de estudos Ecampus (Estudos em Comporta-mento e Aprendizagem Motora na Performance Mu-sical), que integra as áreas de música (performancemusical), educação física (comportamento motor) efísica (acústica). Aparentemente multifrênica a prin-cípio, as abordagens desenvolvidas pelo grupo exigi-ram o estudo de conceitos de áreas distantes domundo rotineiro do pedagogo da performance, tor-nando-se francamente interdisciplinar. Sem aintegração dessas três áreas, não poderíamos abor-dar e desenvolver um conhecimento que parece fun-damental e promissor na compreensão de proble-mas “universais” da performance apontados porApplebaum (1973, p. 15), como o controle e apren-dizagem da afinação e do vibrato em instrumentosnão-temperados, que estão ligados diretamente aproblemas de auto-estima, ansiedade e medo depalco (Havas, 1995). Os resultados de pesquisa doEcampus (Borém, 1997a; Borém, 1997b; Borém,2003; Borém; Lage; Vieira; Barreiros, 2005; Borém;Vieira; Lage, 2003; Lage; Borém; Moraes; Benda,2002; Lage; Borém; Vieira; 2004; Lage; Borém;Vieira; Barreiros, 2005) já nos permitem vislumbraruma abordagem no ensino das cordas orquestraisque poderá ajudar a pedagogia da performance aser conduzida com menos sofrimento e frustraçãopara alunos e professores e, quem sabe, contribuirpara derrubar crenças como: 1) o mito do talentoinato; 2) o mito da supremacia (ou exclusividade) dosentido da audição no ensino da música; 3) o mitoda aprendizagem séria ou complexa ou herméticacomo a mais eficiente; e 4) o mito de uma distância“mínima” e “saudável” entre a música erudita e amúsica popular.

Penso que um dos grandes desafios do edu-cador musical é conduzir a transformação do alunoem colega de profissão. Assunto tabu, a competi-ção entre pedagogos da performance e seus alunosparece ter como pressuposto o destaque no palcocomo medida de valoração da pessoa e como metado estudo individual. Muitos professores de instru-mentos, canto e regência parecem não compreen-der ou aceitar como natural a habilidade musical cres-cente dos alunos na sua busca por expertise e anatural evolução técnico-musical ao longo da histó-ria, em que os alunos de amanhã serão melhoresque os alunos de ontem (que somos nós, hoje!). Comopano de fundo e sustentando esta racionalizaçãoautoritária, há a forte segmentação dos papéis nomundo da performance musical, o que nos leva a

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refletir sobre a questão da autonomia do músico emmeio aos diferentes papéis na performance musical.No hierarquizado ambiente da orquestra sinfônica, omaestro, auxiliado pelo spalla e chefes de naipe,organiza a expressão de dezenas de pessoas compersonalidades distintas para chegar a uma unidadesonora. Na performance solística o(s) acompanha-dor(es) – quase sempre pianistas e maestros – ge-ralmente se acomoda(m) ao temperamento musicale singularidades do virtuoso. Na música de câmara,há o espaço ideal para o aluno exercitar a liderançamúltipla, interagindo de maneira mais democrática,buscando soluções ao nível da decisão e negocia-ção musical entre os membros do grupo. Não seobserva ainda nos currículos a presença de discipli-nas específicas (ou de conteúdos programáticosdentro das disciplinas de instrumentos, canto e re-gência) para orientar o aluno na diferenciação des-ses níveis e seu trânsito no meio deles. Essa ques-tão também não recebeu ainda a devida atenção porparte dos pesquisadores da educação musical, quepoderiam se beneficiar, mais uma vez, nas interfacescom a psicologia ou educação, áreas com uma tradi-ção científica mais consolidada.

Moraes (2005) observa que a educação musi-cal e a pedagogia da performance ainda são perce-bidas como “áreas distintas” ou “concorrentes”. Mearriscaria a dizer que a distância entre elas é realçadapela ignorância do continuum que liga os processosde aprendizagem do iniciante (aos quais têm se de-bruçado mais os ditos educadores musical) ao doexpert (para os quais os professores universitáriosde canto, instrumentos e regência geralmente diri-gem seu foco de trabalho). Edwards (1992, p. 7, tra-dução minha), no seu artigo Research: Going fromIncredible to Credible (Pesquisa: passando do incrí-

vel ao crível), fala desta dicotomia que resulta da fal-ta de uma proximidade maior entre os artistas e aeducação musical a respeito dos altos níveis de ex-celência da performance musical:

Tenho esta fantasia na qual alguém como Horowitz selevanta depois da Polonaise em Lá Bemol Maior [deChopin] e diz que deve sua técnica a um artigo recentede um educador musical sobre transferência dehabilidades psicomotoras.

Se a área de concentração em performancemusical tem sido preferida por cerca de metade dosalunos de pós-graduação (51,5% dos trabalhos de-fendidos em duas décadas, de 1981 a 2001), a es-colha pela ênfase em instrumentos, canto e regên-cia nos cursos de graduação é, em geral, mais evi-dente. Na Escola de Música da UFMG (1997), naRelação de Matrícula e Oferta em 1997/2, por exem-plo, o número de bacharelandos em performancemusical representou 81% do total de alunos matri-culados no segundo semestre de 1997.

Um levantamento sobre os trabalhos finais daspós-graduações em música stricto sensu no Brasilno período de 1981 (início do primeiro programa deMestrado em Música no país) até 17 de agosto de2001 (Borém, 2001) também reforça a idéia de que amaioria dos alunos que buscam esses cursos é daárea de performance musical (Ex. 1).

Esse levantamento revela que, nesse univer-so, entre aqueles que têm a performance musicalcomo foco de suas pesquisas, muito poucos têm seinteressado em fazer interface com a educação mu-sical (cerca de 12%, ou seja, apenas 33 dentre 276trabalhos). Revela também que dentre aqueles seinteressam pelos processos de aprendizagem mu-sical, observa-se, a partir dos títulos dos trabalhos

Períodos Tipologia

1981-1985

1986-1990

1991-1993

1994-1995

1996-1998

1999-2000

2001 (até 17 de

agosto) Total de Diss./Teses defendidas em Música = 585

20

(100%)

45

(100%)

101

(100%)

84

(100%)

187

(100%)

113

(100%)

35

(100%)

Diss./Teses defendidas em Performance Musical = 276

14

(70,0%)

20

(44,4%)

46

(45,5%)

35

(41,7%)

83

(44,4%)

55

(48,7%)

23

(65,7%)

Diss./Teses defendidas em Performance em interface com a Ed. Musical= 33

4

(8,9%)

5

(5,0%)

4

(4,8%)

11

(6,4%)

7

(6,2%)

2

(5,7%)

Ex. 1: Quadro de distribuição de dissertações e teses defendidas no Brasil na área de música, com percentuais relativos àperformance musical e sua interseção com a educação musical (Fontes: Ulhôa, 1996, p. 80-94; Ulhôa et al., 2001).

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defendidos, um grande interesse de integrar o ensi-no à realidade do performer brasileiro (por exemplo,O Uso da Música Contemporânea Brasileira na Inici-ação do Piano; A Obra Pianística de ErnestoNazareth: uma Aplicação Didática) ou suprir as defi-ciências de métodos específicos de ensino instru-mentais (Suplementação de um Método de Violinopara o Aluno Brasileiro; Abordagem Construtivistaao Ensino Básico da Clarineta; A Produção Sonoracomo Elemento Básico na Formação de um Princi-piante de Piano). Há ainda a intenção de divulgarmetodologias de ensino instrumentais originais (Pe-dagogia da Sonoridade: o Método de Heitor Alimondapara o Ensino do Piano), recuperar o papel de impor-tantes pedagogos da performance (Arnaldo Estrela:a Arte de uma Didática) ou sintetizar tendências doensino instrumental (O Ensino do Contrabaixo: umaVisão Atual). Isso reforça a distância entre as temá-ticas de pesquisa preferidas pela pedagogia daperformance e aquelas tradicionalmente preferidaspelos educadores musicais.

A maioria dos pedagogos da performancemusical parece ignorar os referenciais teóricos con-solidados pelos educadores musicais e tambémparece olhar com subestima o fato de a maior parte

das pesquisas destes serem dedicadas aos iniciantesna música. Por outro lado, a maior parte dos educa-dores musicais ainda não se debruçou sobre ques-tões que dizem respeito aos níveis musicais inter-mediários ou avançados, como esses apontadosacima. Uma notável exceção nessa lacuna que ain-da está para ser preenchida são os critérios de ava-liação dos níveis de performance, desenvolvidos porSwanwick (1994) a partir do Modelo Espiral de De-senvolvimento Musical, de Swanwick e Tilmann(1986), e que não se restringem apenas aos primei-ros estágios da aprendizagem de música. No Brasil,os critérios dessa metodologia (Ex. 2) têm sido con-sistentemente estudados, aplicados e observadospor França (2000a, 2000b, 2004) em instrumentistasem nível de graduação.

A esses critérios musicais poderíamos acres-centar outros critérios, como aqueles que caracteri-zam as questões técnicas inerentes à performancesob o prisma do comportamento motor e suassubáreas, controle motor e aprendizagem motora,como mostra o quadro de características de alunosiniciantes e alunos experts em habilidades motoras(Ex. 3), desenvolvido por Schmidt e Wrisberg (2001).

Ex. 2: Critérios para avaliação dos níveis de performance musical de Swanwick (1994), desenvolvidos a partir do ModeloEspiral de Desenvolvimento Musical, de Swanwick e Tilmann (1986).

Níveis de Performance Musical e Características

1

SENSORIAL – A performance é errática e inconsistente. O fluxo é instável e as variações do colorido sonoro e da intensidade não parecem ter significação expressiva nem estrutural.

2

MANIPULATIVO – Algum grau de controle é demonstrado por um andamento estável e pela consistência na repetição de padrões (motivos). O domínio do instrumento é a prioridade principal e não há ainda evidência de contorno expressivo ou organização estrutural.

3

PESSOAL – A expressividade é evidenciada pela escolha consciente do andamento e níveis de intensidade, mas a impressão geral é de uma performance impulsiva e não planejada, faltando organização estrutural.

4

VERNACULAR – A performance é fluente e convencionalmente expressiva. Padrões melódicos e rítmicos são repetidos de maneira semelhante e a interpretação é bem previsível.

5

ESPECULATIVO – A performance é expressiva e segura e contém alguns toques de imaginação. A dinâmica e o fraseado são deliberadamente controlados ou modificados com o objetivo de ressaltar as relações estruturais da obra.

6

IDIOMÁTICO – Percebe-se uma nítida noção de estilo e uma caracterização expressiva baseada em tradições musicais claramente identificáveis. Controle técnico, expressivo e estrutural são demonstrados de forma consistente.

7

SIMBÓLICO – A performance demonstra segurança técnica e é estilisticamente convincente. Há refinamento de detalhes expressivos e estruturais e um sentimento de comprometimento pessoal do intérprete com a música.

8

SISTEMÁTICO – O domínio técnico está totalmente a serviço da comunicação musical. Forma e expressão se fundem gerando um resultado – um verdadeiro depoimento musical – coerente e personalizado. Novos insights musicais são explorados de forma sistemática e imaginativa.

Iniciante

Expert

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Essas ferramentas de avaliação da performan-ce musical são valiosas não apenas para o pedagogoplanejar o desenvolvimento técnico-artístico do alu-no, mas também para permitir ao próprio aluno abusca de uma autonomia que o permita acompanhar-se em relação aos colegas e a ele mesmo ao longodo tempo.

Uma das contribuições que os teóricos dapedagogia crítica podem dar para desenvolver o per-fil do pedagogo da performance tradicional é abrir-lhes os olhos para os benefícios do ensino coletivo,ainda amplamente rejeitado no ensino superior, ape-sar de diversas experiências positivas anteriores ereferenciais, como aquelas do currículo do Conser-vatório de Paris. Se o ambiente das aulas individuaisnão permite muito espaço para o “discurso das dife-renças” ou uma convivência com “conhecimentosmarginais” (Ozmon, 2004), a quebra do pacto quecomumente se estabelece na relação um-para-um edo acordo tácito de não tornar públicas as falhas doprofessor (como se ensina) e do aluno (como seestuda) pode trazer uma gama de possibilidades quesó é possível onde há uma convivência de contrári-os. Trago, como exemplo, a experiência de Moraes(1995) a partir de observações recolhidas em aulasindividuais e coletivas de violoncelo em cursos deextensão (CMI – Curso de Musicalização Infantil eCFM – Curso de Formação Musical da UFMG), emque se integravam elementos como a modelação, anecessidade do adolescente de ser aceito no grupo(peer pressure) e a auto-estima.

Durante o período em que estudei no exterior,me impressionava com a fidelidade e assiduidadedo público nos concertos de alunos e professoresnos campi. Descobri que o comparecimento de boaparte daquele público fazia parte do conteúdoprogramático das disciplinas de instrumento e cantodo bacharelado. Era um mecanismo que ao mesmotempo contribuía para uma formação musical sólidados alunos e estimulava a formação de público paraos concertos. Na minha volta ao Brasil, propus umaemenda curricular em que todos os bacharelandos

em música cumpririam uma carga horária mínimana disciplina Freqüência a Concertos. Embora nãotenha se efetivado por motivos operacionais, o proje-to Viva Música, criado e gerenciado pela professoraGuida Borghoff, tem realizado esse objetivo, aproxi-mando não só o público externo da escola de músi-ca, mas principalmente contribuindo para aumentara cultura musical dos próprios alunos.

Outra área negligenciada pelos pedagogos daperformance musical, uma vez que são autoridadesno conhecimento funcional de seus instrumentos esua literatura, diz respeito à necessidade de produ-ção de materiais didático-pedagógicos a serem utili-zados em programas de graduação e pós-gradua-ção. Ainda hoje, os métodos de aprendizagem dosdiversos instrumentos musicais mais divulgados nãoexplicitam a lógica por trás de cada estudo técnico-musical e como este levará ao passo seguinte. As-sim, ainda predomina a prática instrumental repetitiva,exaustiva, aleatória e não consciente, onde os errosmuitas vezes não são antecipados ou controlados.

Na interseção entre as áreas de composiçãoe performance musical, a pedagogia da performanceainda mostra poucos resultados a partir da colabo-ração entre o performer e o compositor, na qual oprimeiro pode cooperar didaticamente com o segun-do, revelando-lhe especificidades ainda nãoencontráveis nos tratados de instrumentação eorquestração, a maioria dos quais se encontradesatualizada. Uma das vertentes do Projeto “Péro-las” e “Pepinos” do Contrabaixo, o qual coordenodesde 1994, priorizou, em uma de suas vertentes,essa faceta da pedagogia da performance, cujo ob-jetivo é ensinar a linguagem idiomática desse instru-mento para alunos e profissionais da composição.Os resultados incluem um significativo desenvolvi-mento do repertório musical brasileiro do instrumen-to (Ex. 4).

Finalmente, chamo a atenção para outra la-cuna na educação musical brasileira, qual seja acarência de equipamentos para o ensino de instru-

Ex.3: Quadro de características de iniciantes e experts em habilidades motoras de Schmidt e Wrisberg (2001)(Traduzido por Lage, Borém, Moraes e Benda, 2002).

Aprendizagem inicial Aprendizagem avançada Aparência rígida

Impreciso Inconsistente

Tímido Inflexível

Ineficiente Lento, interrompido

Muitos erros não percebidos

Automático, relaxado Preciso

Consistente Confiante Adaptável Eficiente Fluente

Reconhecimento de erros

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Ex. 4: Compositores colaboradores do Projeto “Pérolas” e “Pepinos” do Contrabaixo.

Nome do autor Nome da obra Instituição Ano Andersen Viana Sonata para Contrabaixo e Piano Orq. Sinfônica de MG 1996 André Dolabella Prelúdio para Contrabaixo Solo Op.14 N.4 UFMG 2000 Antônio Celso Ribeiro Conductus – Dramatis Personae UFMG 1994 Antônio Celso Ribeiro Dança e Contradições d´um Matuto

Embriagado UFMG 1996

Antônio Celso Ribeiro Harmonia et Discordia UFMG 1993 Calimério Soares (sem título, em andamento) UFU 2006 Dimitri Cervo (sem título, em andamento) UFRGS 2006 Eduardo Bértola Cantos a Ho UFMG 1994 Eduardo Bértola Lucípherez UFMG 1994 Ernst Mahle Quarteto de Contrabaixos Esc. Mús. Piracicaba 1994 Ernst Mahle Jangada de Iemanjá Esc. Mús. Piracicaba 1995 Fausto Borém Uma Didática da Invenção UFMG 2000 Fausto Borém Variações sobre Wave de Tom Jobim UFMG 2005 Hermínio de Almeida/Pixinguinha

Agradecendo UFMG 1997

Hermínio de Almeida/Tom Jobim

Tributo a Tom Jobim UFMG 1995

Lewis Nielson Danger Man University of Georgia, EUA

2000

Liduino Pitombeira (sem título, em andamento) Louisiana State University, EUA

2006

Luiz Otávio Campos Quinteto de Cordas UFMG 2000 Luiz Otávio Campos Suíte para Contrabaixo e Piano UFMG / UFRGS 2005 Rafael Nassif Duo para Contrabaixo e Piano UFMG 2005 Rafael Martini Suíte para Contrabaixo e Piano UFMG 2005 Roberto Macedo Ribeiro

Impromptu (parte de piano da obra homônima e desaparecida de Leopoldo Miguez)

UFRJ 2005

Rogério Vasconcelos Rota do Vento UFMG 1997

Ex. 5: Contrabaixo piccolo (comprimento de corda = 76 cm) construído dentro do projetoPrograma Artista Visitante da UFMG: Oficina de Luteria para a Construção de Contrabaixos para Crianças.

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mentos musicais ergonomicamente apropriados àscrianças. Buscando alternativas para um problemahistórico no Brasil – cuja tradição de importar os ins-trumentos da família do violino ainda predomina, erecorrendo à luteria – uma área da música aindapouco explorada como foco de pesquisa, foi desen-volvida a Oficina de Luteria para a Construção deContrabaixos para Crianças, em 2004, dentro doPrograma Artista Visitante da UFMG. Nesse proje-to, os cerca de 40 alunos matriculados no curso,monitorados pelo luthier Gianfranco Fiorini, constru-íram um instrumento piccolo, cujo comprimento decorda tem 76 cm (Ex. 5), ao invés da medida tradici-onal de 102 cm, o que deverá facilitar o seu ensinoprecoce e mudar sua imagem de “instrumento deadultos”.

Conclusão

A multifrenia, fenômeno que atormenta os psi-cólogos pós-modernos, talvez não tenha aindaaportado no tranqüilo arquipélago dos educadoresda performance musical. Se por um lado ainda nãocorremos o risco de um afogamento por viver em meioa um oceano de abordagens que se cruzam, se ques-tionam, se complementam, por outro permanecemosisolados, cada qual na sua ilhota, fechados na práti-ca solitária de um instrumento musical.

Embora as dicotomias da pedagogia daperformance de fato gerem posições antagônicas e,mesmo, valores contrários, as considero, em princí-pio, não excludentes, mas sim partes de um pro-cesso dialético ideal (ainda que vislumbrado em um

horizonte distante) com possibilidades de fazer emer-gir um novo perfil do profissional do ensino de música.

Esse processo inclui a unidade e a diversida-de, o conhecido e o que está por vir, o diferente e osemelhante, o novo fundamentado no que já existe,a teoria ancorando a prática, a prática demandandoexplicações teóricas. Assim é o mundo do conheci-mento humano e apenas por isso pode progredir auniversidade, sua grande depositária. A necessida-de de educadores musicais especializados e versá-teis ao mesmo tempo, curiosos pelo que está alémda cerca de seus quintais pedagógicos, não constados editais de concurso para magistério, e por issoas universidades deveriam explicitar essa demanda.

Efetivamente, tornamo-nos educadores musi-cais melhores dentro da universidade quando con-seguimos integrar uma rede de ações que ampliama seara do educador musical: enquanto artistas,servir de modelos e formar o profissional de amanhã;fazer pesquisa para melhorar o ensino; intensificaras relações públicas da universidade com a socie-dade; prestar serviços à comunidade; orientar dis-centes e funcionários; gerenciar pessoal, equipamen-tos e orçamentos; receber visitantes; organizar con-gressos; selecionar novos colegas; publicar; prestarcontas… pode-se notar que estamos no centro dopalco de uma comunidade multifrênica! Talvez, naUNIVERSIDADE, a busca contínua de uma UNIdadena diVERSIDADE seja uma saída para os dilemasque a música propicia ao professor, ao pesquisador,ao artista e ao administrador acadêmico.

Referências

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BORÉM, Fausto; VIEIRA, Maurílio Nunes; LAGE, Guilherme Menezes (2003). O papel das buscas sensoriais exteroceptiva (audição,visão e tato) e interoceptiva (cinestesia) no controle da afinação não temperada do contrabaixo acústico: observações iniciais. In:ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM MÚSICA, 14., 2003, Porto Alegre. Anais…,Porto Alegre: Anppom, 2003. 1 CD-ROM.COELHO, Teixeira. Guerras culturais. São Paulo: Iluminuras, 2000.EDWARDS, Roger H. Research; going from incredible to credible. The Quarterly Journal of MusicTeaching and Learning, v. 3, n. 1,p. 5-13, 1992.ESCOLA DE MÚSICA DA UFMG. Relação de matrícula e oferta em 1997/2. Belo Horizonte, 1997.FRANÇA, Cecília Cavalieri. Performance instrumental e educação musical: a relação entre a compreensão musical e a técnica. PerMusi, Belo Horizonte: Escola de Música da UFMG, v. 1, p. 52-62, 2000a.______. Possibilidade de aplicação do Modelo Espiral de Desenvolvimento Musical como critério de avaliação no vestibular da Escolade Música da UFMG. Opus, Belo Horizonte: UFMG, v. 7, out. 2000b. <http://www.anppom.iar.unicamp.br>. Acesso em: 2 maio 2006.______. Dizer o indizível?: considerações sobre a avaliação da performance instrumental de vestibulandos e graduandos emmúsica. Per Musi, n. 10, p. 31-48, jul./dez. 2004.GERGEN, K. J. The saturated self: dilemmas of identity in contemporary life. New York: Basic Books, 1991.HAVAS, K. Stage fright: its causes and cures with special references to violin playing. 10th ed. London: Bosworth, 1995.LAGE, G. M.; BORÉM, F.; VIEIRA, M. N. A informação visual, tátil e auditiva no controle da afinação em instrumentos musicais não-temperados. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE COMPORTAMENTO MOTOR, 2., 2004, Belo Horizonte. Anais…, Belo Horizonte: UFMG,2004. 1 CD-ROM.LAGE, G. M.; BORÉM, F.; VIEIRA, M. N; BARREIROS, J. P. Visual and tactile information in the double bass intonation control. 2005(submetido ao periódico Motor Control).LAGE, Guilherme, BORÉM, Fausto, MORAES, L. C., BENDA, R. N. Aprendizagem motora na performance musical: reflexões sobreconceitos e aplicabilidade. Per Musi, Belo Horizonte, v. 5-6, p. 32-58, 2002.MORAES, Abel Raimundo. (2005) Multifrenia na educação musical: confronto de abordagens pedagógicas e possibilidades para asprofissões da música. In: Anais do 14º Encontro Anual da Associação Brasileira de Educação Musical. Ed. Jusamara Souza. BeloHorizonte: UEMG (CD ROM)MORAES, Abel Raimundo. Violoncelo em grupo: aspectos no ensino para adolescentes e pré-adolescentes. Monografia(Especialização em Educação Musical)–Escola de Música, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1995.OZMON, Howard. A. Fundamentos filosóficos da educação. Porto Alegre: Artemed, 2004.SCHMIDT, R. A.; WRISBERG, C. A. Aprendizagem e performance motora: uma abordagem da aprendizagem baseada no problema.Trad. Ricardo Petersen. 2. ed. São Paulo: Artmed, 2001.SCHOENBERG, Arnold. Style and idea. Ed. Leonard Stein. Trad. Leo Back. Berkeley: University of California Press, 1984.SWANWICK, Keith. Ensino instrumental enquanto ensino de música. Trad. Fausto Borém. Rev. Maria Betânia Parizzi. Cadernos deEstudo-Educação Musical, n. 4/5, p. 7-14, nov. 1994.SWANWICK, Keith; TILLMAN, June. The sequence of musical development: a study of children’s composition. British Journal ofMusic Education, v. 3, p. 305-339, 1986.ULHÔA, Martha T. de. Dissertações de mestrado defendidas nos cursos de pós-graduação stricto sensu em música e artes/músicaaté dezembro de 1996. Opus, Rio de Janeiro, v. 4, p. 80-94, 1996.ULHÔA, Martha T. de et al. Dissertações e teses defendidas nos cursos de pós-graduação stricto sensu em música e artes/música, educação e comunicação e semiótica sobre música. 2001. Disponível em: <http://www.anppom.iar.unicamp.br>. Acessoem: 2 maio 2006.

Recebido em 24/02/2006

Aprovado em 10/03/2006

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MORAES, Abel. Multifrenia na educação musical: diversidade de abordagens pedagógicas e possibilidades para as profissões damúsica. Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 13, 55-64, mar. 2006.

Introdução

Em textos do X Encontro Nacional da Abem,realizado em Uberlândia (MG) em 2001, cujo temafoi bastante próximo do tema proposto para o XIVEncontro1 em Belo Horizonte (2005), pude localizarexemplos de propostas para a educação musicalna atualidade brasileira que apresentam tendênciascontrastantes em termos de inovação e abertura para

Multifrenia na educação musical:diversidade de abordagens

pedagógicas e possibilidades paraas profissões da música

Abel MoraesUniversidade do Estado de Minas Gerais (UEMG)

[email protected]

Resumo. Este texto relata tendências culturais da pós-modernidade e algumas conseqüências nosâmbitos social, psicológico, cultural e acadêmico, relacionando-os com o mercado de trabalho e aformação profissional em música. A multifrenia, um novo termo que descreve uma perda de identidade,aliada à ampliação de novas possibilidades, é relacionada à atual situação da educação musical noBrasil. A pedagogia crítica, como uma das novas abordagens emergentes de educação musical, équestionada a partir de um ponto de vista estético de educação musical, e analisada quanto a seusobjetivos, possibilidades e limites. Objetiva-se, com este texto, uma reflexão sobre a construção docampo da educação musical e sobre os novos rumos da formação profissional em música.

Palavras-chave: pós-modernidade, educação musical, identidades

Abstract. This paper discusses post-modernity cultural trends and some consequences in thesocial, psychological, cultural and academic fields. It relates work market with music professionaldevelopment. Multifrenia, a new term which describes a lost of identity related to a greater deal ofnew possibilities, is applied to the current situation of music education in Brazil. Critical pedagogy, asone of the emerging new approaches of musical education, is questioned from a aesthetic poit ofview of music education, and analyzed in accordance to their objectives, possibilities and boundaries.The purpose of this paper is to reflect on the construction of the Music Education field, and the newdirections of music professional development.

Keywords: post-modernity, music education, identities

outros campos de conhecimentos, e, por outro lado,outras que ainda se orientam por referencias tradici-onais e estéticos de educação musical. Trata-se, noprimeiro caso, da educação musical alinhada comos ideais sociológicos da pedagogia crítica, defendi-da por Freire (2001) e Souza (2001), e, por outrolado, uma educação musical tradicional (não em

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1 X Encontro Nacional da Abem em Uberlândia, 2001: “Educação Musical hoje: múltiplos espaços, novas demandas profissionais”;XIV Encontro da Abem em Belo Horizonte, 2005: “Educação Musical e Diversidade: espaços e ações profissionais”.

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sentido pejorativo), direcionada para referenciais es-téticos e psicológicos, identificada predominantemen-te com o pensamento de Hentschke (2001), e maisconhecida da maioria dos professores de música.Ciente de que seria necessário um espaço muitomaior do que este para tecer consideraçõesaprofundadas sobre cada uma delas, tratei a ques-tão de forma objetiva, para que ela possa se configu-rar não como um centro específico de debates sobreestas duas pedagogias, mas como um exemplo dediscussão sobre tendências contrastantes e suasimplicações para uma busca de identidade da edu-cação musical brasileira, e para o futuro da forma-ção profissional na área de música.

Neste texto, procurei discutir a validade e aspossibilidades de aplicação da pedagogia crítica, apartir de um ponto de vista estético de educaçãomusical – meu ponto de vista. O meu questionamentofoi construído somente a partir dos conteúdos e rela-tos disponíveis nas publicações mencionadas nestetexto, sobre os princípios da pedagogia crítica, e nãonuma experiência didática ou testemunhal minha emrelação a essa abordagem.

Pós-modernidade e multifrenia

Vivemos, segundo alguns sociólogos e filóso-fos, na pós-modernidade, ou na “terceira onda”(Toffler, 2001), e, para os defensores dessa tese, omovimento teria começado a partir da década de 1960nos países industrialmente avançados, quando ocor-reram profundas mudanças culturais e sociais emrelação a crenças, valores e comportamentos. Al-guns intelectuais europeus, como Michel Foucault,Jacques Derrida, Jean Baudrillard, Jacques Lacan eJean-François Lyotard passaram a disseminar idéi-as e teorias que sustentariam mais tarde a tese dapós-modernidade. E não foi sem razão que as novasidéias encontraram resistência por parte de outrosintelectuais, uma vez que o pós-modernismo vê umacrise geral na cultura, celebra uma perspectivaiconoclasta que rompe com os pressupostos de uni-versalidade (científicos, filosóficos, religiosos, etc.)chamados por eles de metanarrativas, rejeitandocertezas objetivas e buscando acabar com a dis-cussão e o debate (Ozmon, 2004).

Nesse cenário, “[…] as formas de arte e osmodos de pensamento que foram vistos como umacultura superior são agora rebaixados ao nível daprodução em massa de mercadorias e aspectoscomuns do cotidiano” (Ozmon, 2004, p. 338). Em1983, Michel Foucault expressou sua opinião emrelação à música do século XX e sua forma de re-cepção pública com as seguintes palavras:

Não se pode falar de uma única relação da culturacontemporânea com a música em geral, mas de umatolerância, mais ou menos benevolente, com relação aum grande número de músicas. A cada uma é concedidoo “direito” à existência e esse direito é sentido comouma igualdade de valor. (Foucault apud Bauman,1998, p. 131).

Esse novo contexto cultural possibilitou tam-bém o desenvolvimento de novos pensamentos paraa educação, ou uma pedagogia pós-moderna. Den-tre elas, a pedagogia crítica. Ozmon (2004) esclare-ce que os defensores dessa nova pedagogia, comoAronowitz, Giroux e McLaren, oferecem uma abor-dagem radical para a educação e para a democra-cia, propondo “substituir narrativas magistrais ultra-passadas encontradas nas artes, na ciência moder-na e no positivismo filosófico” (Ozmon, 2004, p. 339),todas consideradas como formas de dominação per-sistentes. Defendem um currículo que inclua conhe-cimentos “marginais” e um “discurso de diferenças”,organizados ao redor de fatores como identidade degênero, raça, etnia e classe. Uma educação que eleveessas vozes marginais a posições equivalentes oumesmo superiores aos cânones tradicionais, que nãosão ignorados, mas são questionados, para desmas-carar noções de diferença e manutenção do poder(Ozmon, 2004, p. 339). Nesse sentido, o objetivodessa pedagogia seria desenvolver no estudante umdiscurso social que o ajude a rejeitar a exploração eo sofrimento humano desnecessário, e a aceitar onovo e o diferente.

Na psicologia, novos conceitos foram criadospara caracterizar os novos comportamentos emer-gentes da pós-modernidade, onde as pessoas setornaram reféns dos estímulos e da diversidade. Den-tre eles, psicólogos pós-modernos criaram o termo“multifrenia”, que é descrita como sendo

[…] a consciência de todos nós, que estamos “satura-dos” com mensagens que fluem para nossa mente apartir de experiências diárias de uma civilização móvel,multicultural e rica em meios de comunicação, e cujosenso de identidade pode ser tão transitório quanto asimagens de um caleidoscópio. (Anderson, 2002, p. 46).

A multifrenia, descrita por Gergen como con-dição psicológica da pós-modernidade, pode ser umproblema, mas também uma solução, pois

[…] essa, na verdade, é a mente dos controversos eatormentados, dilacerada em todas as direções porcompromissos conflitantes; apesar disso, é tambémpotencialmente a chave para uma forma de ser maisespaçosa e flexível, uma vida interior e exterior maisrica. (Gergen apud Anderson, 2002, p. 48).

Nessa visão, Anderson (2002, p. 54) nos ad-verte que, para conviver com os conflitos da pós-modernidade, temos duas alternativas básicas: “A

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primeira é tornar a nossa própria vida, e talvez a so-ciedade como um todo, menos multifrênica. A se-gunda é tornar-se bom em multifrenia.” Estendendoo conceito de multifrenia para a sociedade e paranossos campos de atuação, veremos que realmentesofremos com uma diversidade de estímulos e deuma carência de unidade, ou de identidade.

Segundo Coelho (2000, p. 164), em recentespesquisas realizadas com estudantes da USP, es-tes se ressentiam da ausência de “[…] um conjuntode crenças e valores – de significados – capaz deatribuir a este coletivo uma marca distinta” (Coelho,2000, p. 164). O autor acredita que, antes de voltar-se para o conhecimento e para a sociedade, a uni-versidade deveria voltar-se para si mesma. “Por nãofazer de si mesma seu primeiro assunto, a universi-dade não constrói e não permite que construa umacultura universitária. Sem uma cultura universitária,não existe uma identidade universitária.” (Coelho,2000, p. 163).

Multifrenia e educação musical

Nos anais do X Encontro da Abem, Santos(2001) relata conflitos na representação do educa-dor musical, identificados pela autora em diálogo comdocentes de educação musical, na década de 1980(1987), em uma grande cidade brasileira. Segundoos entrevistados, “ser educador musical supõe iden-tidades diversas e mesmo conflitantes, tomadas poruns e outros” (Santos, 2001, p. 43). Havia, entre al-guns professores de música, certas distorções quan-to à idéia de musicalização como uma forma maisamena e descomprometida de ensino da música,atividade lúdica que oferecia prazer imediato,descontração, promovendo desenvolvimentopsicomotor e fixação de outros conhecimentos quenão os próprios musicais (Santos, 1990, p. 31). Poroutro lado, o ensino “real” de música era visto comoaquele relacionado somente às práticas musicais decoral e instrumentos, práticas que permaneciam“imunes” aos princípios da arte-educação. Para aautora, a idéia do ensino de música como forma deexpressão, dividindo espaços com outras formas dearte, permitiu um esvaziamento de conteúdos musi-cais ensinados nas escolas. Assim, o ensino damúsica como forma de conhecimento não encon-trou lugar para desenvolvimento nas escolas.

Nos dias de hoje, quase 20 anos depois, aeducação musical, como disciplina autônoma e obri-gatória: 1) continua fora da educação regular; 2) con-tinua a ser vista pelos educadores como veículo parase desenvolver outros conteúdos; 3) continua a servista pelos músicos como área autônoma e distintada pedagogia dos instrumentos; 4) e tem seu cam-

po de conhecimento ampliado, mas também dividi-do por inúmeras abordagens interdisciplinares. Nomeu entender, as duas últimas condições são asmais graves, pois denunciam uma falta de enten-dimento entre músicos educadores, educadoresmusicais e pesquisadores de ambas e de outras“facções”.

Nesse cenário, seguindo o conceito descritopor Anderson (2002), uma proposta seria tornar aeducação musical no Brasil menos multifrênica e boaem multifrenia, dando conta da diversidade e desen-volvendo sua identidade, uma vez que esta tem sidouma das principais palavras de ordem nos últimostempos, não só porque ela possibilitará o desenvol-vimento de projetos interdisciplinares mais consis-tentes, mas, principalmente, porque permitirá o es-tabelecimento de diretrizes mais claras para a for-mação dos profissionais da área.

Mercado de trabalho e formação profissionalem música

Numa tendência crescente de contrataçõestemporárias (Harvey, 2005), abriram-se, nos últimosanos, uma grande variedade de espaços profissio-nais nos quais a música pôde ser inserida econtextualizada segundo objetivos particulares des-ses espaços, ampliando as ofertas de trabalho rela-cionadas aos profissionais da música e da educa-ção musical. Este fato tem sido possível porque amúsica tem desempenhado, desde tempos imemo-riais, inúmeras funções na sociedade, e são essasfunções que têm permitido uma infinidade de “apli-cações” da música em diversos contextos, criandocada vez mais demandas para os profissionais daárea, à medida que a própria sociedade se transfor-ma e se diversifica. Mesmo que incompleta, a rela-ção de funções da música na sociedade, segundoMerian (apud Swanwick, 2003, p. 47), nos ofereceum panorama bastante amplo de possibilidades:

• Expressão emocional

• Prazer estético

• Diversão

• Comunicação

• Representação simbólica

• Resposta física

• Reforço da conformidade e normas sociais

• Validação de instituições sociais e rituaisreligiosos

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• Contribuição para a continuidade e estabili-dade da cultura

• Preservação da integração social

Podemos citar a crescente demanda de pro-fessores de música e de “oficineiros” para projetossociais em comunidades carentes, com o objetivode democratização da cultura, crescimento pesso-al, redução da violência, etc. É consenso geral queos cursos de formação profissional deveriam levarem conta esta e outras crescentes demandas, nãosó questionando a importância e a validade dos pro-jetos sociais enquanto ensino de música, mas tam-bém repensando currículos e oferecendo reflexãoaliada a novas possibilidades didático-pedagógicaspara lidar com as novas demandas do mercado detrabalho.

Por outro lado, Ribeiro (2003, p. 113) nos falaque “já se pensou que um curso seria tanto maismoderno quanto mais ouvisse o mercado de traba-lho”. Nos dias de hoje, ninguém mais se atreveria aprever as profissões que serão competitivas nummercado futuro. O autor defende que a universidadenão pode dar nem segurança e nem certezas emrelação ao futuro, pois, “[…] nosso mundo está emmudanças tão rápidas que é inútil a universidade pre-tender adotar seu ritmo, imitá-lo, em suma replicá-lo. É inútil até mesmo preparar, no sentido tradicio-nal, para o mercado de trabalho.” (Ribeiro, 2003, p.114). Para o autor, a universidade deveria desenvol-ver nos alunos um espírito inquieto, sabendo “[…]que a cultura, a ciência, o saber não se congelam,não se totalizam, mas formam sempre contas in-completas, desenhos ásperos, figuras mal acaba-das” (Ribeiro, 2003., p. 51).

Neste sentido, Ribeiro (2003) sugere uma po-sição mais autônoma para a universidade e, conse-qüentemente, para as políticas de formação profissi-onal em seu âmbito. Levando-se em conta que auniversidade não deve clonar ou replicar o que outroambiente produziria melhor, não deveríamos trazerpara dentro dela uma série de práticas e situaçõessimuladas que somente o próprio mercado poderiaoferecer de melhor maneira do que ela mesma. “Naverdade, a tese aqui defendida é que a academianão pode sacrificar sua especificidade, que é onderesidem suas qualidades; e, se ela é um espaço deliberdade, criação e cultura, isto não deve ser perdi-do com ela reproduzindo o que se faz melhor foradela.” (Ribeiro, 2003, p.51).

De forma semelhante, posições como a deRibeiro (2003) nos levam a pensar numa preserva-ção da autonomia da universidade como produtora

de pensamento e de pensadores para a educaçãomusical considerando o mercado de trabalho, masnão o tomando como única ou principal referência.Nesse sentido, conciliar as novas demandas domercado, ou as funções da música na sociedade,sem perder uma autonomia de pensamento e atua-ção para a educação musical, poderia ser um pontode partida para se repensar novos rumos para a for-mação profissional em música.

Questionar pontos essenciais como os obje-tivos centrais da educação musical, e os objetivosperiféricos, poderia direcionar uma formação profis-sional consistente para novas e antigas demandasda sociedade e seus múltiplos espaços, como assalas de concertos, os grupos populares, as esco-las regulares, os projetos sociais e muitos outrosespaços conhecidos e ainda por conhecer.

É neste cenário atual de diversidade e buscade identidade que encontramos os ideais sociológi-cos da pedagogia crítica sendo contextualizados parauma proposta de educação musical no Brasil hoje.

Pedagogia crítica e educação musical

Como proposta de educação musical alinha-da com a pedagogia crítica, Freire (2001, p. 14) su-gere se partir da realidade cotidiana dos alunos, masnão se restringir a ela, para que eles tenham acessoa “um ensino de música embasado na contrastaçãocrítica de conteúdos musicais, o que pressupõe ainclusão de músicas praticadas em diferentes espa-ços sociais” Dessa forma, essa abordagem estariaapta a lidar democraticamente com a cultura, aten-dendo a diversos espaços sociais […] e consideran-do “as músicas” que são feitas nesses espaços comoconteúdos possíveis para a educação musical. Aautora também questiona a que ponto nossos currí-culos têm deixado de absorver as tendências atuaisvoltadas para a globalização e para a diversidade,abrangendo manifestações musicais da contempora-neidade, de outras épocas, culturas, lugares e es-paços sociais. Desse modo, defende o resgate deum ensino comprometido politicamente, “abandonan-do conteúdos pretensamente neutros, que apenasocultam os conflitos sociais e refletem uma pers-pectiva unívoca” (Freire, 2001, p. 14, 15). O argu-mento de democratização da cultura (musical) econscientização crítica do fenômeno de aculturação,via globalização, parece ser o argumento central daproposta pedagógica da autora.

Souza (2001) levanta a possibilidade da edu-cação musical no Brasil hoje estar sinalizando umaruptura teórico-metodológica com a emergência denovos e instigantes temas como gênero, etnias, ge-

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ração adolescente, religião, imaginário, subjetivida-de, etc. Ela chama atenção para que esses novostemas não sejam tratados apenas como uma curio-sidade, desvinculados da experiência imediata. Se-gundo a autora,

é importante, no entanto, que os instigantes “novosobjetos” não sejam reduzidos a “micro-objetos”, frag-mentos deslocados mas, ao contrário, se transformemem poderosas forças críticas a anunciar a criação deuma pedagogia radicalmente não racista, não sexista enão exclusivista. (Souza, 2001, p. 88).

A autora propõe uma renovação pedagógicabaseada em referenciais teóricos de pesquisa quelevem em conta esses novos temas e “objetos” hojeemergentes. Uma metodologia adequada para

[…] captar as distorções, as realidades sociais eescolares, desde as desigualdades sociais, as relaçõesde poder, até as sutilezas da relação docente e dasdificuldades dos alunos. Mas, sobretudo, que pudessecaptar os aspectos sociais e culturais da própria práticamusical. (Souza, 2001, p. 89).

Para tanto, a autora propõe que as pesquisasem educação musical devem privilegiar demandaspráticas, em ambientes escolares e não escolares.Questões como: quem faz música, qual música,como e por que a fazem seriam pontos centrais deinvestigação, para focalizar a dimensão do sentidodo fazer musical nos processos de apropriação etransmissão de conhecimentos.

Especificamente em Música, Cotidiano e Edu-cação, Souza (2000) reúne referenciais teóricos desua autoria e relatos de vários professores de músi-ca sobre práticas e atividades musicais utilizandoelementos diversos do cotidiano dos alunos. Comessa proposta, a “cotidianidade serve como catego-ria de orientação didática para os professores, comajuda da qual eles podem transformar a sua aula,tornado-a mais próxima da realidade, orientada nasnecessidades e nos interesses específicos dos alu-nos” (Souza, 2000, p. 27, 28).

A autora não considera o cotidiano dos alu-nos como um objetivo, mas como ponto de partidapara as práticas educacionais, e propõe um currícu-lo construído “de baixo para cima”, obtendo da aulade música uma oportunidade de ação significativa.Segunda ela,

ao tematizar o cotidiano, a educação estará incluindo aformação da consciência crítica, os valores em seusobjetivos, pois no cotidiano encontram-se escondidasestruturas de comportamento – provavelmente servindoaos interesses de outrem e modelando, dominando edirecionando a existência – que devem ser clarificados.Só assim será permitido ao indivíduo fazer escolhasautênticas. (Souza, 2000, p. 39).

Segundo a autora, a inclusão de linguagenspolissêmicas através dos meios eletrônicos de co-municação pode ser utilizada como forma de criarexperiências de aprendizado significativas. ParaSouza (2000, p. 166), no entanto, “[…] é preciso terclareza de que a inclusão de novas tecnologias naaula de música sozinha não traz uma aproximaçãocom a realidade músico-cultural”.

Portanto, Freire (2001) e Souza (2000, 2001)apresentam uma clara identificação com uma abor-dagem sociológica de educação musical, em espe-cial a pedagogia crítica, com uma intenção de “aber-tura” do ensino musical para várias “músicas” pre-sentes em momentos da vida dos alunos, conscien-tizando-os criticamente sobre a diversidade culturalem que vivemos e sobre as estruturas ocultas de po-der presentes na cultura e no cotidiano.

Assim como as autoras citadas, Hentschke(2001) reconhece a importância de se formar profes-sores críticos para a educação musical, bem comooutros “olhares” advindos de novos referenciais comoa antropologia, a pedagogia e a sociologia. Esta au-tora recomenda não somente a reformulação de cur-rículos, mas o desenvolvimento de uma nova con-cepção de formação de professores, pois “convive-mos nos dias de hoje com múltiplas educaçõesmusicais que não são excludentes” (Hentschke,2001, p. 68). As três autoras estão de acordo quan-to: 1) a exaustão de modelos antigos e inadequadosde ensino musical e formação de professores; 2) anecessidade de se estruturar epistemologicamentea área da educação musical; 3) e a necessidade dese estabelecer relações com outras disciplinas ouáreas do conhecimento.

No entanto, parece haver pontos de discor-dância entre a abordagem sociológica e a estéticade educação musical quanto a objetivos, metodo-logias e mesmo prioridades, pois Hentschke (2001,p. 74) enfatiza claramente que:

Todas as perspectivas deveriam estar a serviço doensino e da aprendizagem da música, capacitando osprofissionais para lidarem com a complexidade dosfenômenos educativo-musicais e com suas especi-ficidades conforme os diferentes espaços de atuação.

Nessa abordagem, o objetivo do professor deveser o de colocar a experiência musical como o cen-tro do processo de ensino e como ponto de referên-cia para possíveis conexões com “outros” conheci-mentos “sobre” a música. Portanto,

olhar um eficiente professor de música trabalhando(em vez de um “treinador” ou “instrutor”) é observaresse forte senso de intenção musical relacionado compropósitos educacionais: as técnicas são usadas para

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fins musicais, o conhecimento de fatos informa acompreensão musical. A história da música e asociologia da música são vistas como acessíveissomente por meio de portas e janelas em encontrosmusicais específicos. (Swanwick, 2003, p. 58).

A pedagogia crítica sob a ótica da educaçãoestética musical

Exceto para Freire (2001), não está clara aintenção da pedagogia crítica de colocar a músicacomo objetivo principal do processo de ensino e apren-dizagem. Isso pode ser verificado, por exemplo, quan-do Souza (2000) propõe a construção de uma teoriapara a educação musical baseada nos princípios dasociologia da vida cotidiana, que teria como interesse

restaurar as tramas de vidas que estavam encobertas;recuperar a pluralidade de possíveis vivências einterpretações; desfiar a teia de relações cotidianas esuas diferentes dimensões de experiências fugindodos dualismos e polaridade e questionando dicotomias.(Souza, 2000, p. 28).

Nesse sentido, não está claro como a apren-dizagem musical se processaria relacionada a es-ses objetivos, ou como eles seriam alcançados atra-vés da aula de música, sem situar esta última comoem um segundo plano. De uma forma ou de outra, amúsica parece não se sustentar como foco e comoobjetivo final do processo de aprendizado, sugerindoa possibilidade de estar sendo usada como um meio,não como um fim.

Dessa forma, a música estaria servindo a umaabordagem de “educação sociológica musical”. Oque não seria indesejável num contexto de educa-ção (geral) para cidadania, para a democracia e paraa consciência crítica. Mas, num contexto específicocomo educação musical, essa proposta parece nãoestar diretamente a serviço do ensino e da aprendi-zagem da música.

No meu entender, quando Souza (2001, p. 89)propõe uma renovação pedagógica baseada emreferenciais teóricos de pesquisa que levem em con-ta temas como gênero, etnias, geração adolescen-te, religião, imaginário, etc. para “captar as distorções,as realidades sociais e escolares, desde as desi-gualdades sociais, […] mas, sobretudo, […] os as-pectos sociais e culturais da própria prática musi-cal”, ela propõe elementos para a construção maisde uma sociologia da educação musical do que di-retamente uma nova pedagogia da música. Ninguémduvidaria que uma sociologia da educação musicalbrasileira seria um referencial de primeira grandeza paraa construção do campo teórico da educação musical.Nesse sentido, mesmo assim, seria essa uma teoriarelacionada à educação musical; imprescindível, masauxiliar; componente do campo, não ele mesmo.

Nessa direção, Penna (1990) nos adverte so-bre a necessidade de se partir das próprias práticaseducativas, específicas da educação musical, parase construir uma identidade. Somente o educadormusical pode compreender as particularidades ecomplexidades do ato do ensino da música. Qual-quer tentativa de desenvolver um conhecimento teó-rico sobre a educação musical deve partir desse prin-cípio. Seus intercâmbios com outras ciências, ape-sar de trazerem contribuições essenciais para com-preender as práticas educativas em música, nãopodem servir como ponto de partida ou de referênciapara esse intento. Pois há o risco de que, “[…] aoampliar suas fronteiras, a Educação Musical torne-se campo de aplicação de outras ciências, abrindomão de seu próprio objeto de estudo e de suas sin-gularidades como domínio específico” (Del Ben, 2001,p. 68). Daí, o risco de, ingenuamente e com as me-lhores intenções, nós criarmos uma “educação psi-cológica musical”, ou “filosófica musical”, ou “socio-lógica musical”.

Analisando os trabalhos publicados em Sou-za (2000), pude constatar uma grande variedade depropostas interdisciplinares, bastante válidas para osobjetivos musicais da educação musical. Destacoos trabalhos de Torres, Del Ben, Bozzetto e Gomes,como direcionados para a aprendizagem de conteú-dos musicais; desenvolvidas com grande criatividadee abertura para novas interfaces com a música, semdescentralizá-la como conteúdo principal.

O trabalho de Ramos (2000), a meu ver, con-figura-se como um exemplo referencial de propostade aplicação da pedagogia crítica numa aula demúsica. A autora propiciou aos alunos o desenvolvi-mento de uma rede significativa de relações entredesenhos e criação/apreciação sonora, colocandotemas do cotidiano das crianças, como os Tazos(com personagens conhecidos de desenhos anima-dos) e o futebol, como elementos estimuladores dasatividades. Ao final, assim nos relata a autora:

Como professora assumi o papel de instigadora daconsciência crítica, tentando clarificar os processossociais que interferem nas estruturas e comportamentosmusicais, como, por exemplo, a questão do consumo.[…] as questões ideológicas que se escondem atrásda “Tazomania”, como o consumo compulsivo de batatasfritas (fast-food), os prejuízos para a saúde, a ingestão,em excesso, dos salgadinhos industrializados aos quaisa venda de Tazos é acoplada […]. (Ramos, 2000, p. 74).

Pelo relato da autora, a experiência centrali-zou-se nas atividades práticas e criativas de dese-nhar e de sonorizar, e, ao final do projeto, como umaconclusão, uma reflexão crítica sobre aspectosconsumistas relacionados aos elementos iniciais,estimuladores das experiências. Acredito que uma

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contextualização correta do referencial teórico cita-do pela autora, aliada a uma consistente experiên-cia como educadora musical, colaborou para que elapudesse desenvolver o projeto. Segundo Mc Laren(apud Ramos, 2000, p. 73-74), esse referencial, essapedagogia “deve ser menos informativa e maisperformativa, menos orientada para textos e escri-tos e mais baseadas em experiências vividas pelospróprios estudantes”.

Portanto, baseados nos trabalhos publicadospor Souza (2000) podemos constatar que os princí-pios da pedagogia crítica podem ser compatíveis comos objetivos musicais da educação musical, desdeque a música não seja descentralizada no processode ensino e aprendizagem; não seja transformadasimplesmente em meio de se atingir outros objeti-vos, mas mantida como objetivo principal. As inter-faces com outros conhecimentos e reflexões sãopossíveis, desejáveis, enriquecedoras, mas com-plementares.

Coerente com aquilo que a educação musicaltem de mais essencial – tornar o individuo sensível àmúsica, não importando tanto os procedimentos uti-lizados, devemos possibilitar aos alunos o desenvol-vimento de um senso crítico dirigido primordialmen-te para o objeto musical, capacitando-os a abordar amúsica como forma de conhecimento, única, insubs-tituível em relação a qualquer outra prática ou formade arte, ou de reflexão. Nesse sentido, Swanwick(2003, p. 58) afirma que “o método específico deensino não é tão importante quanto nossa percep-ção do que a música é ou o que ela faz. Ao lado dequalquer sistema ou forma de trabalho, está sempreuma questão final – isso é, realmente, musical?”

Apesar dos relatos publicados em Souza(2000), especialmente os de Ramos (2000), seremexemplos referenciais de aplicação da pedagogiacrítica na educação musical, eles podem ser vistostambém como uma grande exceção, desenvolvidospor mérito particular dos autores e do orientador, poruma correta contextualização do referencial teóricoe, principalmente, por uma experiência prévia e con-sistente como educadores musicais. Em se tratan-do de educadores menos experientes, como os re-cém-licenciados, a possibilidade dos referenciais teó-ricos da pedagogia crítica tomarem o espaço centralda educação musical é bastante grande.

Acredito na importância de se oferecer umasociologia da educação musical, como componente

curricular obrigatório dos cursos de licenciatura emmúsica, que inclua a abordagem crítica como pro-posta educativa, aliada a uma formação musical epedagógico-musical consistentes, possibilitando aofuturo licenciado desenvolver propostas interdisci-plinares coerentes com os objetivos centrais da edu-cação musical.

Swanwick (2003), defensor de uma aborda-gem estética não absolutista para a educação musi-cal, ressalta a importância de se incluir fundamenta-ções teóricas nos cursos de formação de professo-res para relacionar significativamente o aprendizadomusical aos diversos contextos sociais e culturaisdos alunos.2

Os contextos social e cultural das ações musicais sãointegrantes do significado musical e não podem serignorados ou minimizados na educação musical. Teoriasestéticas, com suas afirmações de que o significado eo valor musical transcendem tempo e lugar, contexto,propósitos humanos e utilidade, falham ao se respon-sabilizar pelo âmbito mais amplo de significadosinerentes nas ações musicais individuais e coletivas.[…] A teoria e a prática da educação musical devemresponsabilizar-se por essa contextualização da mú-sica e fazer musical. Os educadores musicais devemter, por, conseguinte, uma fundamentação teórica queuna as ações de produzir música com os vários con-textos dessas ações, para que o significado musicalapropriadamente inclua todas as funções humanizadorase concretas da música. (Swanwick, 2003, p. 46).

Entretanto, o autor nos adverte que “[…] em-bora a realização musical efetivamente desperte emum contexto social, ela é também ‘um modo único ediferente pelo qual as pessoas podem tanto se darconta como transcender sua existência social’”(Finnegan apud Swanwick, 2003, p. 42). Portanto, ocontexto social pode ser um ponto de partida na sig-nificação musical, mas não se restringe a ele. Porconseguinte,

temos que abandonar a idéia de que a música assumeuma relação direta com alguma espécie de realidadesocial independente, como se fosse um espelho.Naturalmente, existem fortes conexões entre a músicade grupos particulares e seus estilos de vida e posiçõessociais. Mas isto não quer dizer que a músicasimplesmente incorpora esses mundos sociais.(Swanwick, 2003, p. 42).

O autor cita uma pesquisa realizada na Gréciasobre preferências musicais, cujas conclusões iden-tificaram valores musicais de grupos diversos, rejei-tando a dicotomia de cultura de massa versus arteculta, além de conceder múltiplos “gostos culturais”e “gostos públicos”. Qualquer indivíduo pode aderir a

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2 Texto escrito para um grupo de educadores musicais norte-americanos chamado MayDay, do qual o autor fez parte, nummovimento realizado na década de 1990, para promover um diálogo e promover mudanças entre os rumos da educação musicalnaquele país.

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qualquer número de grupos simultaneamente e podemudar essa preferência com o passar do tempo.Segundo o autor,

Por essas razões, qualquer tentativa de explorar asfunções da música não pode surgir de estudos culturaisou semióticos, mas deve estar fundamentada naparticularidade da experiência musical em si mesma,em “eventos” musicais de uma espécie ou de outra.Embora possam existir idéias relevantes e importantesem sociologia, etnomusicologia e outras literaturas, ainterface entre mentes e música é o foco do envolvi-mento musical, e sobretudo da educação musical.(Swanwick, 2003, p. 45).

Por conseguinte,

[…] o discurso musical, embora inclua um elemento dereflexão cultural, também torna possível a refraçãocultural, ver e sentir de novas maneiras. Não“recebemos” cultura, meramente. Somos intérpretesculturais. A concepção de educação musical como umaforma de estudos culturais ou reforço social tende aresultar num currículo muito diferente daquele queidentifica a música como forma de discurso. (Swanwick,2003, p. 45, 46).

Nesse sentido, a proposta da pedagogia críti-ca de oferecer um ensino de música embasado nacontrastação crítica de conteúdos musicais, comoafirma Freire (2001), é totalmente válida do ponto devista musical, por oferecer uma maior riqueza depossibilidades para a aula de música. Entretanto, aproposta deve incluir um critério, ou juízo de valormusical, que não seja necessariamente vinculadoaos grupos sociais ou étnicos que produziram amúsica em questão, mesmo que esses grupos se-jam excluídos ou injustiçados. Apesar de todos osméritos democráticos e humanizadores dessa pro-posta multicultural de educação musical, que incluie acolhe manifestações musicais de diversas cultu-ras, esse critério de valor deve ser desenvolvido apartir da riqueza sonora, das relações estruturais domaterial musical apresentado e das possibilidadespedagógico-musicais oferecidas a partir dessas re-lações. Seja ele de origem folclórica, popular, étnicaou erudita, esse repertório ou material musical deveser oferecido, principalmente, àqueles que não o en-contram disponível na sua cotidianidade. Uma vez que,

um imenso número de pessoas se encontra, portanto,numa situação sociocultural tal que dispõe de parcosinstrumentos para exercer a crítica da realidade musicalem que vive, dificilmente tendo condições de rompercom os padrões que lhe são destinados pela indústriacultural. (Penna, 1990, p. 25).

Portanto, Souza (2000) e Freire (2001) estãocorretas ao afirmar que a abordagem do cotidianopara a educação musical deve ser um ponto de par-tida, não um objetivo, pois a possibilidade de negaro acesso à uma produção musical de boa qualida-de, geralmente não disponível na mídia e no cotidia-

no, seria um procedimento contrário à idéia dessapedagogia de desenvolver a consciência crítica naeducação musical.

De forma semelhante, quando Souza (2001,p. 88) afirma que “é importante […] que os instigantes‘novos objetos’ […] se transformem em poderosasforças críticas a anunciar a criação de uma pedagogiaradicalmente não racista, não sexista e não exclusi-vista”, ela revela a necessidade dessa pedagogia nãoexcluir tampouco as práticas musicais tradicionaise formas musicais seculares como a música erudi-ta, seja ela brasileira ou européia, normalmente vin-culada às elites dominantes por ser “música culta”.

Sabemos que o gênero erudito, dentre outros,além de não estar disponível na cotidianidade damaioria das pessoas, necessita de maiores instru-mentos de apropriação para que seja usufruído sig-nificativamente pelos alunos. Cabe aos educadoresmusicais, “[…] um papel democratizante nesse pro-cesso, promovendo o domínio dos instrumentos depercepção e apropriação das formas musicais ela-boradas e complexas da música erudita” (Penna,1990, p. 26).

Por outro lado, além de Penna (1990, p. 23)nos falar da importância de democratizar a músicaerudita, ela também nos adverte, pois

escondemos da consciência o fato de que esta músicaem nome da qual agimos é um padrão, uma forma (entreoutras) de expressão musical tornada modelo e tornadavalor através de um processo histórico-social, e que,quando musicalizamos em nome dela ou para ela,estamos transmitindo e impondo um padrão cultural.

Portanto, para não impor necessariamente, emnome da qualidade, um único padrão cultural, comoé o caso da música erudita, justificam-se plenamen-te os objetivos da pedagogia crítica de buscar umademocratização da cultura (musical).

Para oferecer toda uma variedade e riquezade repertório musical aos nossos alunos, e para pos-sibilitar-lhes que desenvolvam uma conscientizaçãocrítica para lidar com os fenômenos de aculturação,via globalização, como descritos por Freire (2001),precisamos de critérios de valor – musicais e cultu-rais. Identificar e professar os próprios valores, as-sim como conviver e acolher os dos outros, é umadas formas de construir a democracia e a própriaidentidade. Sem valores, não poderia existir a pró-pria crítica, mas apenas conteúdos acumulados,comparações inócuas, conclusões estéreis de pos-sibilidades e de significados.

Talvez nas artes e na música, mais do queem outras áreas, estejamos reféns de alguns relati-

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vismos absolutos professados pela pós-modernidade.Podemos nos lembrar da resposta de Pierre Boulezàs declarações de Michel Foucault,3 em 1983, aoreferir-se à música do século XX e sua forma de re-cepção pelo público:

“tudo é bom, nada é ruim; não há quaisquer valores,mas todos são felizes”… esse discurso, tão liberali-zante quanto pode querer ser, reforça, ao contrário,os guetos, consola a consciência das pessoas porestar num gueto, especialmente se de quando emquando elas excursionam nos guetos das outras.(Pierre Boulez apud Bauman, 1998, p. 131).

Conclusão

Procurei questionar os objetivos da pedago-gia crítica aplicada na educação musical a partir deuma concepção estética exatamente para exempli-ficar as diferenças de pontos de vista presentes numarealidade histórica e complexa em que vivemos eatuamos como educadores musicais; e, da mesmaforma, ressaltar a necessidade de se definir frontei-ras, eliminar trincheiras e contribuir para a constru-ção da identidade e do fortalecimento do campo ge-ral da educação musical no Brasil.

O conceito de multifrenia aplicado ironicamen-te na educação musical no Brasil hoje nos mostraexatamente que as duas tendências pedagógicasaparentemente antagônicas de conservação e deabertura são também bastante promissoras. Portan-to, preservar a autonomia da educação musical eabri-la para novas possibilidades pode ser uma apostaotimista para a sobrevivência e expansão dos profis-sionais da música num futuro imprevisível.

A sociedade apresenta graves problemas ea pedagogia crítica se propõe a denunciá-los eatenuá-los através do ensino musical. A educa-ção musical estética almeja oferecer uma experi-ência mais elevada e significativa da realidade paraos indivíduos dessa mesma sociedade. Nessesentido, as duas abordagens almejam a própriasociedade e não são excludentes, podendo seencontrar num ponto em comum.

De opiniões contrastantes podemos encon-trar pontos em comum e equilíbrios dinâmicos. Tal-vez, mesmo que temporariamente, poderíamos re-correr àquela definição poética de arte de FerreiraGular, que transcrevo na íntegra:

A obra de arte está dentro e fora de nós, ela é nossodentro ali fora. É isto que faz dela um objeto especial –um ser novo que o homem acrescenta ao mundomaterial, para torná-lo mais humano. A arte não seriauma tentativa de explicação do mundo, mas deassimilação de seu enigma. Se a ciência e a filosofiapretendem explicação do mundo, esse não é o objetivoda música, da poesia ou da pintura. A arte, abrindo mãodas explicações, nos induz ao convívio com o mundoinexplicado, transformando sua estranheza em fascínio.(Gular apud Morais, 1998, p. 41).

Baseado nela, encontro meus princípiospessoais para uma educação musical estética esocial no Brasil hoje. Seu objetivo deverá ser o dopossibilitar:

- que a música ecoe vigorosamente dentrode nós;

- que ela torne o mundo mais humano;

- que ela permita a assimilação do enigma davida e da realidade;

- que ela permita conviver com o inexplicado;

- que ela nos transforme a estranheza do mun-do em fascínio.

No meu entender, se a música for usada ape-nas para mostrar as contradições e estranhezas domundo, sem transformá-las em fascínio e beleza,teremos perdido o propósito principal da educaçãomusical. O objetivo da inclusão obrigatória do ensi-no musical nas escolas regulares dependerá do quenós mesmos, educadores musicais, acreditarmoscomo possibilidades da música para a educação epara a formação dos seres humanos.

Portanto, precisamos trabalhar para que aeducação musical, como disciplina autônoma e obri-gatória, 1) seja incluída na educação regular, 2) sejavista como insubstituível em relação a qualquer ou-tra forma de arte, prática ou forma de conhecimento,3) passe a ser vista pelos músicos e professores deinstrumento como área abrangente e referencial paraa pedagogia dos instrumentos, 4) e tenha seu cam-po de conhecimento ampliado e sistematizado emrelação a outras abordagens interdisciplinares. Po-deremos, dessa forma, promovermos a formação demúsicos mais (auto)educadores e educadores maismúsicos, afinal tudo é educação musical.

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3 Rever o início do texto.

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Recebido em 01/03/2006

Aprovado em 12/03/2006

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Introdução

Tomar o campo do saber pedagógico-musicalcomo absolutamente aberto, sem fronteiras, mas comhorizontes, permitindo trânsitos inusitados e inespe-rados, articulações entre os diversos espaços esco-lares e não escolares, talvez seja o desafio que te-mos que enfrentar. (Souza, 2001, p. 165).

É bem provável que cada nova possibilidadeproposta tenha sido imaginada por outros, e que al-

Inovação, anjos e tecnologiasnos projetos e práticas da

educação musical

Luiz Alberto Bavaresco de NavedaUniversidade do Estado de Minas Gerais (UEMG)

[email protected]

Resumo. O objetivo deste artigo é explorar áreas com capacidades inerentes de inovação emeducação musical, partindo de uma investigação através de dimensões pedagógico-musicais nãofocalizadas na recente produção cientifica na Abem. Algumas dimensões e temáticas da pedagogiamusical presentes em artigos nos últimos cinco encontros anuais da Abem foram classificadas enormalizadas, enquanto suas dinâmicas internas e externas foram analisadas na busca de tendênciase hiatos temáticos. Foi observado que as dimensões músico-históricas, estético-musicais, músico-psicológicas, etnomusicológicas, teórico-musicais, acústico-pedagógica e a temática mídia ecomputação apresentavam pouca focalização. Na segunda parte do estudo, paradoxos entre astendências atuais observadas são discutidos na tentativa de apontar para projetos e ações conjuntas,principalmente em perspectivas tecnológicas da educação musical.

Palavras-chave: educação musical, tecnologias, mídias

Abstract. The subject of this paper is exploring musical education fields with intrinsic capacities ofinnovation, beginning the investigation through music-pedagogical dimensions not focused in recentscientific publications of Abem. Some dimensions and thematics of music pedagogy found in last fiveannual conferences were classified and normalized, trying to found tendencies and thematic gaps.It was observed that dimensions like music-historical, esthetic-musical, music-psychological,ethnomusicological, theoric-musical, acoustic and media/computation were less focused. In thesecond part of the paper, some paradoxes between the observed tendencies are discussed tryingto visualize joint projects and actions, mainly at technological perspectives of musical education.

Keywords: music education, technologies, media

gumas de nossas novas abordagens são e serãoimaginadas novamente, com a mesma sensaçãoempolgante de uma sincera descoberta individual. Ocotidiano está repleto desses encontros casuaisentre problemas e soluções, e é possível que paracada situação exista uma inventividade particular,desenvolvida pela reflexão de cada educador-inven-tor sobre sua realidade única. A partir dessa posi-ção, tentaremos não apontar o que sejam propria-

NAVEDA, Luiz Alberto Bavaresco de. Inovação, anjos e tecnologias nos projetos e práticas da educação musical. Revista da ABEM,Porto Alegre, V. 14, 65-74, mar. 2006.

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mente “novas abordagens”, mas sim vestígios de ondeas ações inovadoras não estariam sendo tão fluen-tes e o cotidiano pedagógico-musical não estariaaportando reflexão e criatividade.

Realidades e projeções

Qual o cotidiano de nossas abordagens? Emque campos da educação musical se garimpam, diaa dia, as nossas reflexões? Quais os campos dasrealidades, práticas, pensamentos e possibilidadesmusicais em que nossa prospecção ainda não atua?Ainda que a realidade do educador-pesquisador noBrasil e o conhecimento musical não estejam so-mente nos institutos científicos, e que mesmo o pen-samento científico distribuído em artigos, relatos epublicações não seja totalmente representado nasinstituições (Kraemer, 2000), a construção do corpode conhecimento em 14 anos da Abem pode ofere-cer algumas pistas sobre nossas abordagens comoeducadores, pesquisadores e formadores de educa-dores no Brasil. Por outro lado, as característicasdessa produção podem também revelar contradiçõesentre o contexto das salas de aula e os focos privile-giados pelos pesquisadores.

A partir de resumos e textos de anais dos úl-timos cinco encontros anuais da Abem (2001 a 2005),o conjunto de focalizações dos trabalhos foi breve-mente analisado, utilizando dimensões do conheci-mento-pedagógico musical propostas por Kraemer(2000) e Souza (2001, p. 87) e suas implicações“músico-históricas, estético-musicais, músico-psico-lógicas, sócio-musicais, etnomusicológicas, teórico-musicais e acústicas”. Outros dados foram coletadosa partir de características de públicos-alvo/sujeito dostrabalhos (infantil, juvenil/técnico, adulto/profissiona-lizante/ensino superior), além de dimensões oportu-nas para a análise, como presença de temáticas demúsica popular, performance/corpo, mídia e compu-tação, projetos institucionais1 e outras temáticas.2 Acontagem de focos temáticos foi normalizada pelototal de publicações em cada encontro, ocorrendosituações onde artigos apresentavam claramentemais de uma focalização. Essas observações nãorepresentam um levantamento aprofundado do con-teúdo desses textos, mas um rascunho aproximadodas concentrações temáticas.

O gráfico a seguir mostra o resultado dessaanálise sobre as abordagens encontradas, agrupadaspela evolução do foco temático em cada encontro anual:

Várias dinâmicas e situações curiosas emer-gem desse panorama. A manutenção do engajamentocom temáticas mais “puras” da educação musical,como a temática pedagógico-musical e o conheci-mento teórico-musical, parecem indicar que existeuma unidade e um núcleo de investigação objetivoque busca constantemente conhecimento na peda-gogia e didática da música, e que seu cotidiano apre-senta transformações capazes de nutrir constante-mente a pesquisa com novos problemas. É claro queisso não significa que essas áreas já estariam muitovisadas, ou que representariam uma prática antiqua-da; pelo contrário, sem esse núcleo renovador quediscute as transformações nos alunos, métodos detransmissão, apropriação e conteúdos musicais, nãohaveria possibilidade de se desenvolver em outrasabordagens, buscar novos métodos, estabelecer

______________________________________________________________________________________________________________

1 A temática projetos institucionais se refere às publicações que descrevem ou se centralizam em projetos desenvolvidos eminstituições como ONGs, escolas, setor público, entre outros.2 O termo outras temáticas se refere a temáticas não classificáveis ou desenvolvidas em campos muito contrastantes aos comumenteapresentados, por exemplo: pedagogia Braille, educação musical e deficientes mentais, evasão escolar, entre outros.

Evolução das temáticas nos últimos cinco Encontros Anuais da ABEM

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10%

20%

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Focos temáticos (* KRAEMER, 2000; SOUZA, 2001)

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X (2001) XI (2002) XII (2003) XII (2004 XIV (2005)

Porcentagem total de focos temáticos nos últimos cinco encontros nacionais da ABEM

39,8%

2,5% 4,5% 4,8%12,0%

1,3%5,7%

1,4%5,5% 5,2% 6,1%

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Gráfico 1: Porcentagens de trabalhos por temáticas nosúltimos cinco encontros anuais da Abem.

Gráfico 2: Gráfico apresentando um “resumo” dasdimensões e presença de temáticas nos últimos cinco

encontros anuais.

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contato com outras disciplinas. Sem a presença dopesquisador na sala de aula e na música, a pedago-gia ruiria no primeiro contato interdisciplinar. Dessaforma, aparentemente, permanecemos em sala deaula ainda que com o olhar fora dela.

A sedução das janelas abertas da sala demúsica por onde fitavam os olhares sociológicos des-ses professores (e dos alunos) parece arrebatar umarelevante e crescente produção no campo das temá-ticas sócio-musicais. A insatisfação com os mode-los pedagógicos aplicados nas mais diversas esfe-ras, e as transformações dos ambientes socioeco-nômicos, cultural, paisagem sonora e tecnologiasmidiáticas (Pelaez, 2005; Souza, 2000), parecemvoltar o interesse desses pesquisadores para ascondições sociais, econômicas, de gênero, idade,estímulos externos à sala de aula, mídia, entre ou-tros fatores. É interessante observar que uma boaparte desses trabalhos se desenvolve observando ocotidiano de práticas informais de formação musi-cal, como autodidatismo, grupos musicais, movimen-tos culturais e comunitários, que já apresentam ummodelo de aprendizado quase subsistente, se con-fundem com sua própria cultura musical, sem a pre-sença de educação musical formal no processo deformação musical. Outro fator interessante é a es-cassez de trabalhos sobre evasão escolar, que podeser explicado pela problemática metodológica napesquisa com grupos de sujeitos dispersados.

Aliada ao crescimento da análise sociológicaaos trabalhos de pesquisa, verificamos a ascensãodo interesse pelo público adolescente (ou que com-põe os cursos técnicos, profissionalizantes ou pre-paratórios de música), com destaque para os traba-lhos relacionados com a formação de professoresde música, principalmente nos recentes cursos delicenciatura em música. O interesse sobre essespúblicos e o conteúdo desses artigos parece demons-trar movimentos consistentes na preparação de umabase profissionalizada de professores de música,impulsionada tanto por exigências crescentes deformação de professores atuantes no ensino médioquanto pelo crescimento do mercado educacional,em detrimento ao mercado direcionado aos cursosde bacharelado. Temos que considerar seriamenteas ótimas possibilidades se formando nesse corpode inteligência e novos educadores sob uma pers-pectiva bem menos incômoda que as décadas de1970 e 1980, onde a exclusão da música como dis-ciplina autônoma nos currículos desestruturou astentativas de políticas públicas regionais ou nacio-nais em educação musical. Nossa base de educa-dores para um projeto amplo e público de educaçãomusical estaria se cristalizando?

Menos visíveis, a ascensão de abordagens daperformance musical (na maioria das vezes ligada amétodos e práticas da expressão corporal) é um dadoque parece condizer com movimentos expressivosna formação superior em música. Em especial a áreade pedagogia da performance musical, apoiadametodologicamente pela psicologia da percepção,cognição, fisiologia aplicada, tem tomado um lugarde destaque, quebrando uma quase vulgar dicotomiaentre professor de música e performer. A crítica so-bre pedagogias que enfatizam o desenvolvimentotécnico-instrumental ou a superação de limites téc-nicos e a notação musical, em detrimento do desen-volvimento musical do indivíduo (França, 2000, 2003;Moraes, 2000), aparenta enriquecer o foco daperformance e da formação do músico em estra-tégias que fundamentam a pedagogia instrumen-tal sob um ponto de vista cognitivo, mais musical,mais completo.

O crescimento de temáticas diferenciadas nãofacilmente classificáveis, exposto no termo “outrastemáticas”, mostra uma capacidade intrigante dapesquisa em educação musical em vasculhar cam-pos e áreas diversificadas, o que – em complemen-taridade à centralização de temáticas pedagógicas– renova o espaço de idéias pedagógicas comquestionamentos diversos. Linhas de ação sobre amusicologia Braille, educação especial e deficien-tes mentais, evasão escolar, portadores de necessi-dades especiais são exemplos ainda pontuais detemáticas aparentes nas possíveis abordagenssubmersas da atuação pedagógico-musical.

A presença de projetos institucionais descri-tos em artigos presentes nos encontros anuais (mes-mo que tendendo à redução) pode ser um indicativode que a discussão acumulada pela pesquisa emeducação musical no Brasil se sedimenta constan-temente em projetos metodologicamente consisten-

Evolução do público alvo/sujeito presente nos artigos analisados

0%10%20%30%40%50%60%70%

X (2001) XI (2002) XII (2003) XII (2004 XIV (2005)

Encontros anuais da ABEM (2001-2005)

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Infantil Juvenil/Técnico Adulto/Profissional/Superior

Gráfico 3: Evolução da focalização com relação ao público-alvo/sujeito do artigo em cada um dos cinco encontros

observados.

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tes e produzem substratos suficientemente signifi-cativos para a figuração em publicações científicas.Pesquisadores que têm atuado com freqüência emações institucionais podem estar também manten-do um diálogo virtuoso entre pesquisa e realização.Esse trânsito entre idéia e realização institucional,projetos coletivos e atuação científica nas institui-ções funciona como uma fonte constante de estu-dos de caso, testes metodológicos, e significa umestado de arte das concepções pedagógicas funcio-nando nas instituições como ações ou propostas.Pode também anunciar uma preparação para pers-pectivas já imantadas no “consciente coletivo” doseducadores musicais: a necessidade de um projetopúblico e abrangente para a educação musical noensino fundamental. Ainda sobre a noção de projetoinstitucional, gostaria de incitar uma reflexão sobrea educação para ações de empreendedorismo naslicenciaturas, uma vez que muitos de nossos alunosfreqüentemente se engajam no mercado como pro-fissionais liberais ou em projetos empresariais.

A falta de trabalhos relacionados com aborda-gens músico-históricas, estético-musicais e músi-co-psicológicas parece ser contraditória, uma vez queesses cruzamentos interdisciplinares fazem parte debases importantes da prática pedagógica: a reflexãosobre a percepção do objeto musical e a psicologiados sujeitos perceptivos, interativos interpessoais eextrapessoais na prática musical. Muitos dessescampos estão contemplados como metodologias,reflexões e ações em vários trabalhos, principalmenteabordagens sócio-musicais e de performance, masa falta de abordagens específicas pode escondercapacidades ainda não exploradas na produção ci-entífica sistematizada.

Finalmente, a pequena produção de trabalhosenvolvendo dimensões acústico-pedagógicas,3 “mídiae computação” e “etnomusicologia” se configuramcomo um dos processos mais destacados nessequadro produção científica dos encontros da Abem.Se observarmos os objetos de pesquisa cativos aessas disciplinas, a primeira impressão é que a di-mensão etnomusicológica estaria contraposta àstemáticas de mídia/computação e acústica. Entre-tanto, ao observarmos fatores como repertório, práti-cas pedagógicas, estruturas sociais e de transmis-são de conhecimento, verificamos que essas disci-plinas se voltam freqüentemente para repertórios não-canônicos, instrumentos musicais incomuns, espa-ços de aprendizagem informal ou alternativos, alémde públicos segmentados em grupos sociais mino-

ritários. O distanciamento que tomamos dessas abor-dagens musicais em uma postura ainda não esteti-camente pluralista parece transparecer uma formade distanciamento, ainda que esporadicamente man-tenhamos um contato superficial:

Para alguns setores das escolas de música, o reconhe-cimento de repertórios não-canônicos gera ansiedadee a sensação de que o pluralismo equivale à ausênciade critérios, ao silenciamento da crítica e à derrocadada hierarquia de valores. Não se trata de apontar ossetores avançados e setores “conservadores” nasescolas, muito menos de denunciar as resistênciasque estes últimos opõem à transformações.(Travassos, 2001, p. 80).

Costumamos associar a novidade no texto musical aotermo “música contemporânea”, esquecendo por vezesas inuìmeras obras do repertório tradicional e decompositores menos divulgados de todos os períodos,dos quais não temos conhecimento. Esta atitude éperfeitamente normal; apesar de uma certa curiosidadevir ocasionalmente à tona, continuamos afastadosdestas obras e destes compositores. (Chueke, 2003,p. 1332).

Paradoxalmente, essas dimensões não privi-legiadas convergem significantemente com temáticasatuais, relevantes e em destaque no mercado, ciên-cia, epistemologia e pedagogia. Ligados a essastemáticas encontramos a tecnologia, seus novosmateriais, as mídias eletrônicas, educação a distân-cia, turismo cultural, acervos, entre outros temas queconcorrem nas pautas das principais discussõessobre educação. Mais interessante ainda é observarque os grupos e disciplinas focalizados em uma gran-de parte dos trabalhos nas temáticas em ascensão,como as sócio-musicais e de performance, sofre-ram profundas transformações originadas em revolu-ções tecnológicas e/ou acústicas (Krüger et al., 2003;Pelaez, 2005; Tenório, 1998). Adolescentes, crian-ças, comunidades periféricas e em risco social, jo-vens de classe média alta, comunidades rurais,concertistas, platéias, métodos, procedimentos,análises musicológicas, bem como a cultura musi-cal em todas as suas esferas – todos se encontramimersos em revoluções acústicas, tecnológicas,ambientais, materiais, influenciando sobremaneira omodo de se relacionar com a música.

Um outro dado a ser mencionado é o númeroinexpressivo de trabalhos com temáticas relaciona-das com a “música popular” na pedagogia musical,descrito no gráfico a seguir. Muitos trabalhos dentroda temática sócio-musical, principalmente os relaci-onados com adolescência, aproximam-se dessatemática sem, no entanto, focalizar diretamente a

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3 Consideramos os trabalhos relacionados com disciplinas acústicas aqueles que envolvem a utilização de conhecimentos sobrefísica do som, por exemplo: didática da acústica musical, construção de instrumentos musicais, paisagem e meio ambiente sonoro.

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questão. Considerando a existência de experiênci-as de cursos superiores recentes, com característi-cas formalmente vinculadas à formação em músicapopular, parece inexplicável a falta de discussão so-bre os problemas metodológicos envolvidos, e mes-mo de toda a influência das características da músi-ca popular na formação musical.

A partir desses dados poderíamos propor umametáfora gráfica onde as temáticas se ampliam apartir de um centro de abordagens mais visadas parainterações mais descentralizadas, e, por isso mes-

mo, mais interdisciplinares. Esse centro ativo ab-sorve as novas abordagens impondo-lhe crítica, vali-dação, mérito e aplicação. A periferia interdisciplinaralimenta e acumula novas e amplas abordagens,sugerindo direções, questões e desafiando a con-sistência das questões centrais. Essas relaçõesgeram tecnologia, que, por definição, fazem alcan-çar nossos objetivos de coletividade na busca desoluções para nossos problemas. Essa rede pode-ria ilustrar algumas dinâmicas de nossa “inteligên-cia” como instituição, mesmo que não englobe todoo espectro de focalizações.

No decorrer do texto, limitaremos a discus-são sobre questões relacionadas ao significado detecnologias e materiais tecnológicos e aos camposque considero ainda não suficientemente visados naaproximação com a educação musical, não obstanteoutras observações apontadas pela análise dos da-dos provoquem uma série de outras discussões,principalmente quanto aos focos temáticos com pou-ca concentração.

Gostaria de ressaltar que a abrangência econseqüente superficialidade dessas análises nãopermitem que muitas exceções como publicaçõesisoladas, e mesmo posturas pontuais, revelem pro-

Gráfico 4: Evolução da presença de artigos focalizados emmúsica popular no decorrer dos últimos cinco encontros

anuais.

Gráfico 5: Proposta de uma metáfora gráfica onde temas mais visados, centrais e seguros da pedagógica musical seexpandem para outras abordagens, propositivas, duvidosas, interdisciplinares.

Escola Cotidiano

Práticas e idéias Pedagógicas

Projetos Institucionais

Professor

Formação Docente

Aluno

Pedagogia instrumental

Corpo

Práticas Informais

Objeto Sonoro

Outros sentidos? Interdisciplinaridade

Projetos públicos?

Mídia e educação a distância

Tradições?

Tecnologias?

Instrumentos alternativos

Performance

Espaços alternativos

Educação Especial?

Novas abordagens?

Performance interativa

Psicologia da performance

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postas inovadoras e mesmo subtemáticas muito re-levantes. Apesar de avançar nas discussões sobreas observações, reiteramos a necessidade deaprofundamentos metodológicos e estatísticos parauma apresentação menos duvidosa dos dados.

Anjos, materiais, tecnologias einterdisciplinaridade

Tecnologia não significa “computador” e a in-teligência não é necessariamente uma qualidadeexclusiva do ser humano. O conceito amplo detecnologia inclui toda a diversidade de modos comque resolvemos os problemas a que nos propomos,e podemos pensar que as instituições, as máquinase as “coisas” mais simples podem estar dentro deum conceito estendido de inteligência. Não comosujeitos em si, mas como agentes, mensageiros efacilitadores das nossas trocas e comunicações.

[…] A memória dorme na biblioteca, no museu, na telado meu computador e na linguagem, escrita ou falada;a lembrança desperta e resplandece na passagem dacorrente; a imaginação acende, apaga ou acaba nastelas da televisão… grita a estridente flauta de Pan,canta a clarineta, chora o violão, soluça o baixo,sensibilidade de cobre, de corda e madeira… não, nãosomos tão excepcionais: o que os velhos livroschamavam de faculdades, ei-las fora, espalhadas nouniverso inerte e fabricado.[…] Penas, tinteiros, mesas,livros, disquetes, consoles, memórias… produzem ogrupo que pensa, que se lembra, se exprime e, àsvezes, inventa. Certamente, não podemos chamar taisobjetos de sujeitos; […] Fomos sempre artificiais emrelação aos nove décimos da inteligência. Algumascoisas do mundo escrevem e pensam, de modo queconstruímos outras para que pensem por nós, conosco,entre nós, e pelas quais ou nas quais nós tambémpensamos. A revolução da inteligência artificial data,no mínimo, do neolítico.

Reduzir estas maravilhas a meros objetos parece-me tão injusto e estúpido quanto considerar osescravos e as mulheres sem alma, os criadosdespojados de necessidades e as crianças deliberdade, sem conceder-lhes nenhum direito aomundo […]. (Serres, 1995, p. 48).

Essas tecnologias se articulam na nossa vidadiária e estruturam grande parte da inovação comque lidamos todos os dias. A tablatura, a partitura, aalma do violino, o nylon das cordas do violão, a flautadoce de plástico, e estes incontáveis pedaços depapel, madeira e metal inteligentemente organiza-dos para nossas realizações, fazem parte e freqüente-mente suportam nossos impulsos históricos, emo-cionais, pessoais. O que seria a música tonal sem otemperamento, do Romantismo sem a “alma” do vio-lino e a potência do piano, da ecologia sonora deMurray Schafer sem os gravadores ou o decibelímetro(sem o “ouvido pensante”)?

Tecnologia – do grego techne (arte) e logos (palavraou discurso) – é a soma dos modos através dos

quais são alcançados objetivos práticos e estéticos.Uma nova tecnologia tanto permite que objetivostradicionais sejam perseguidos por novos meiosquanto possibi l i ta que sejam definidos novosobjetivos. (Moore, 1995, p. 135).

Esse espectro de materiais e técnicas quese relacionam com nossas atividades pedagógico-musicais são drasticamente influenciados justamentepelas disciplinas envolvidas com acústica, tecnologiade materiais, eletrônica, informática, computação.Isso não significa que agora tenhamos que dominara técnica de realização de cada uma dessas disci-plinas ou conhecer profundamente os campos derealização desses objetos. Por que não interagimose desenvolvemos projetos que se utilizem mais con-sistentemente dessa tecnologia? A programação desoftware, do circuito ou da mecânica são assuntostão suficientemente problemáticos quanto o projetopedagógico, a didática e o discurso musical. Assimcomo os neurônios, os computadores e os novosmodelos de inteligência, os projetos freqüentementeinovadores costumam se organizar como rede, in-centivando uma comunicação interdisciplinar e a re-alização de projetos em conjunto (Machado, 2000;Scripp; Subotnik, 2003). Ao deixar que essas áreasdefinam os critérios que nos são próprios, nos colo-camos em uma posição cômoda, mas perigosa, ondeos projetos tecnológico-musicais e suas decisõesessenciais permanecem nas mãos de tecnólogosou economistas:

[…] Devido ao fato da tecnologia modif icarconstantemente seu conjunto de possibilidades, elaproporciona uma ligação dinâmica e vital entre aimaginação humana e a realidade. Por este motivo éfreqüentemente dito que a tecnologia é importantedemais para ser deixada para os tecnólogos. Ditoem outras palavras, decisões importantes ligadas àtecnologia devem ser tornadas públicas. (Moore,1995, p. 135).

A reação (ou o que em certos momentos apa-renta ser uma “tecnofobia”) gerada por essa transi-ção agressiva na base de nossa própria inteligênciaé completamente compreensível. Do mesmo modocomo aconteceu com a escrita, imprensa, rádio e atelevisão, surge agora toda uma sorte de receios deoperacionalização desses materiais, de limitaçõestécnicas, estético/artísticas e criativas, riscos e cus-tos elevados (Krüger et al., 2003), sem contar a inti-midação das interfaces dos equipamentos e a opres-são dos “usuários experientes” (e suas aspiraçõestecnocratas). Esses receios são todos justos e frutode uma fase transitória de “aparição” desses “men-sageiros”, onde sua função pedagógica, estado dasinterfaces e complicadas engenharias ainda nos as-sustam e se fazem notar. Michel Serres (filósofo daacademia francesa engajado na questãotecnológica), em uma poética metáfora sobre a

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tecnologia, sugere que os computadores deveriamcumprir sua função de mensageiros, ligar as coisase desaparecer como mágica, “entre” nossos mun-dos e redes, assim como os pedagogos, assim comoos anjos:

Entre designa justamente o espaço por onde passamos anjos que entrelaçam as redes: rodovias e canaisde imagens ou de sons, trilhas de cabras e circuitos deinformática… ricos magos com pastores… cheiro demorte, a mirra perfuma o recém-nascido!

Seres de natureza dupla, os pedagogos, guias ouQuerubins, mostram a diferença do mundo e costuram,ao fazê-lo, a unidade do novo Universo.

Com eles alinhávamos o disparate: a ciência com amiséria…

– O teórico e o concreto, hardware com software…Então nossas mais avançadas técnicas repetem asfunções angélicas de guia?

– Estamos cada vez mais parecidos com Tobias,caminhando atrás de Rafael. (Serres, 1995, p. 165-166).

Em um estágio posterior, talvez tenhamosessas máquinas espalhadas invisivelmente pelo co-tidiano (da mesma forma como não nos apercebe-mos da presença da escrita, do rádio ou da televi-são), quando nos concentraremos nas mensagens,e na estruturação dos conteúdos. Talvez não tenha-mos notado que o mundo não-musical está realmentese tornando uma cidade de anjos: pessoas, informa-ções, objetos transitam quase invisíveis pelo céu,pelas vias e redes, rapidamente, levando mensa-gens, aparecendo e desaparecendo em vários lu-gares, de várias formas. O trabalho moderno estáse tornando imaterial, fugaz, simbólico, informa-cional… Mais musical?

Não. A música e os sistemas de ensino apren-dizagem dependem de muito mais coisas que da-dos, mensagens, ou mesmo informações. Depen-dem da resposta de cada individualidade, do saltoacomodativo imprevisível no seio da experiêncialúdica da assimilação, da transformação metafóricade sons em gestos e formas, das formas expressi-vas em relações estruturais, das formas experimen-tadas em experiências pessoais (Swanwick, 1994,1999). Onde a tecnologia provavelmente atua comdestreza é justamente onde enfadonhamente aindainsistimos em atuar como máquinas pedagógicas,previsíveis e limitados a informações. Nessas tare-fas onde o conhecimento está tecnicamenteestruturado, redundante, onde permeiam nomes,definições, transmissões de símbolos externos, vi-suais, sonoros, matemáticos, onde as habilidadesmotoras ou sensoriais são testadas, onde se aco-modam conceitos que todos partilhamos, âmbito daacomodação. Lugares onde encontramos os nomesde notas, controles e possibilidades facilitados so-

bre os sons, conceitos, treinamentos auditivos, téc-nicas instrumentais; domínios eminentemente im-pregnados de “literatura” (literature) e “habilidades”(skill), como no modelo C(L)A(S)P, proposto porSwanwick (1979). Lugares caracterizados, nessemesmo modelo, como campos entre as modalida-des do discurso musical. Nesses campos a tecno-logia informacional realiza um trabalho que longe denos substituir, “estende e amplifica as possibilida-des de se realizar um impacto musical direto; […] apossibilidade de esculpir as idéias diretamente”(Swanwick, 1994, p. 167, tradução minha). Aindasobre tecnologia informacional, ele acrescenta:

O progresso tecnológico deve livrar os professoresde uma quantidade de trabalho enfadonho – e esperoque estudantes também – deixando-nos livres parausar o tempo para outros objetivos, criando eventosem tempo real nos quais pessoas possam compartilharconviventemente no discurso musical. Música é umaarte social. (Swanwick, 1994, p. 167, tradução minha).

Não podemos pensar que a tecnologiainformacional possa se resumir ao aluno em frentede um computador. As práticas mais geniais nãoestão ligadas a esse esquema “fordista” de trans-missão ordenada, compartimentada e enfileirada deconhecimento, mas sim em uma criatividade peda-gógica que utilize as ferramentas computacionais coma mesma destreza que utilizamos os instrumentosmusicais, simplesmente como possibilidades mate-riais, conexionistas e intermediárias. Ainda sobre aquestão da presença de computadores na sala deaula, principalmente com relação a crianças, algunsautores alertam para problemas causados pelo con-tato com computadores, e principalmente a substi-tuição de práticas reais, desenvolvimentos essenci-almente analógicos, por experiências em ambientesvirtuais (Machado, 2000; Setzer, 1997; Tenório, 1998).Não precisamos cometer os mesmo erros que come-temos subestimando as capacidades da televisão.

As possibilidades hoje dispostas em platafor-mas amplamente acessíveis (tanto software quantohardware) já representam passos consistentes tan-to para o apoio em nossas atividades pedagógicasquanto para o estabelecimento de novas formas delidar com a música, e com o que não seja música.Camurri e Coglio (1998), por exemplo, apresentamuma proposta de arquitetura de agentes emocionaisque interagem com o ambiente reconfigurando o “con-texto emocional”. Essa proposta foi implementadano projeto Città dei Bambini (Cidade das Crianças),que apresenta um ambiente elaborado com jogosinterativos envolvendo música, movimento, dança eanimação, onde um robô capta os estímulos dos vi-sitantes e responde com música, luz e movimentos,estabelecendo reações como raiva, serenidade e fe-licidade.

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A computação musical é particularmente pro-fícua no sentido de estruturar suportes interdisci-plinares, e não somente entre as disciplinas comoeletrônica, mecânica, matemática e tantos outroscampos. As condições para realização de nossos“sonhos pedagógico-sinestésicos” estão disponíveisem plataformas como Eyesweb,4 Max/Msp/Jitter,5

Pd,6 entre tantas outras que transformam a condi-ção do “gesto musical” de abstração poética ou ele-mento teórico, ao evento real, sensorial, multimodal.Hoje, é perfeitamente possível, com uma complexi-dade operacional mínima, realizar trânsitos entremovimento/som, música/imagem, como cor em al-tura, altura em formas geométricas, movimento docorpo em parâmetros de síntese sonora… Em tem-po real.

Há algum tempo nos detemos em discussõessobre interdisciplinaridade, estimulando posturas

mais abertas, mas tenho dúvidas se nos arriscamosa dar passos significantes em direção a outras dis-ciplinas, principalmente outras artes. Quantos de nósexperimentamos significativamente práticas comodesenhar, pintar, mesmo outros instrumentos, co-res, matemática, geometria, origami? Um educadormusical sabe perfeitamente o que significam essestrânsitos gestuais entre estímulos no desenvolvimentomusical e artístico de um aluno – o programador sabeperfeitamente como fazer o computador desapare-cer entre esses trânsitos gestuais. Essas possibili-dades não são novas, e muitos de nossos colegas,professores de tecnologia, pesquisadores de depar-tamentos de composição, multimídia, comunicaçãoe engenharia já dominam plenamente tais condiçõestécnicas. Por que ainda não dominamos a arte dodiálogo entre departamentos?

Inovações em educação musical estão agora emer-gindo em programas de laboratórios em escolas ondeprofessores de música, especialistas em currículo epesquisadores trabalham juntos – e em colaboraçãocom consultores de escolas de música – para projetarestudos abrangentes e interdisciplinares pra o benefíciode todas as crianças. (Scripp; Subotnik, 2003, p. 474,tradução minha).

Essa noção de como viabilizamos projetosamplos, organizados em torno de estruturas gover-namentais, técnicas e materiais não têm sido mes-mo a rotina de educadores musicais. Os impactosda Lei 5692, de 1971, que introduziu o professor de

Figura 1: O robô cicerone no ateliê musical da Cidade dasCrianças (Camurri; Coglio, 1998). Uma aplicação onde não

aparecem computadores, programas ou mesmodeterminismos em ambientes virtuais fechados. Somente

interações.

Figura 2: Software Eyesweb (Infomus-Lab/Gênova)apresentando uma programação (produzida pelo LAB-M/UEMG) para relações entre a luminosidade do vídeo e aaltura musical em tempo real, baseado em uma metáforasinestésica citada pelo compositor H. Berlioz – “[…] os

sons graves da flauta dão a nuança suavizada de uma corescura.” (Cotte, 1997, p. 26).

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4 <http://www.eyesweb.org> (software livre).5 <http://www.cycling74.com>.6 <http://www.puredata.org> (software livre).

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Educação Artística polivalente e a série de equívo-cos nas tentativas de projetos amplos de educaçãomusical pública parecem não só ter desestruturadoa formação contínua de quadros para a educaçãomusical pública, mas influenciado na estagnação daindústria de instrumentos musicais acessíveis emateriais didático-musicais-sonoros.7 Mesmo nos-sa percepção e prática de quais estruturas seriamnecessárias e de como elas se articulam parecemnão ser discutidas. Em que bases materiais poderí-amos estruturar um projeto de formação musicalbásica em escolas sem coleções de instrumentos,materiais didáticos e professores? Mesmo não pen-sando em projetos tão amplos, a disponibilidade deinstrumentos musicais acessíveis para os níveis eco-nômicos do contexto brasileiro parece impedir tantoiniciativas de Estado quanto dos indivíduos. Nessesentido, é possível identificar dois hiatos recentesna reação a essas condições: 1) a falta de pesquisae desenvolvimento da produção de instrumentos combaixo custo e pedagogicamente eficientes, oumetodologias de construção destes instrumentos nascomunidades e na própria aula de música; e 2) aabstenção dos educadores musicais na discussãodos rumos e principalmente conteúdos da inclusãodigital no Brasil.

Sobre a inclusão digital em especial, o cres-cimento das ações de inclusão digital por todo o país,na forma de programas governamentais, ações deONGs, fundações ou instituições diversas estádisponibilizando uma rede de máquinas com capa-cidades multimídia ainda pouco aproveitadas ou dis-cutidas pela educação musical. Se reclamamos nos-sa posição como disciplina autônoma e imprescin-dível à expressão do indivíduo, em que bases críveisconstruímos uma opção para que isso aconteça?Essas máquinas têm em sua maioria capacidadessonoras, conexão com conteúdos on-line einteratividade suficiente para proporcionar estímulose práticas musicais bem mais estruturantes que osatuais meios de comunicação de massa (em espe-cial a televisão), mesmo que não substituam o papelde um instrumento musical em sala de aula, muitomenos de um professor. Não estou falando de umcomputador que faça somente essas atividades mais

notórias da computação musical como edição departituras ou edição de áudio,8 mas de um computa-dor que seja um modo de informações, centro detreinamento aural, plataforma de interação interdis-ciplinar… Algo como aquelas maravilhosas caixas earmários cheios de objetos e sons que nos salvamno cotidiano da prática pedagógica. A utilização decomputadores na educação musical é muito maisdiversa e inteligente que um aluno na frente de cadacomputador.

Práticas tecnológicas

Tradição e tecnologia não estão em posiçõesopostas, elas são complementares. Na mídia queessas tecnologias e materiais suportam transitamconteúdos que as posturas éticas, estéticas e merca-dológicas moldam, transformando as pessoas, ascomunidades e a cultura. Ao entender e se utilizardos suportes tecnológicos, dominamos os trânsitosde conteúdos, apropriamos-nos de uma maneira prá-tica das possibilidades amplas de nossa atuaçãopedagógica, da renovação das nossas convicções,tradições e inventividade. Quando tomaremos astecnologias e materiais sob o nosso olhar?

A tecnologia será importante, mas principalmente porqueirá nos forçar a fazer coisas novas, e não porque irápermitir que façamos melhor as coisas velhas.(Machado, 2000, p. 153).

Antes de traçar as análises sobre os focostemáticos da pesquisa organizada pela Abem, pre-tendia estabelecer uma reflexão menos centrada natecnologia informacional, como forma de aguçar odesejo pela inventividade nos diversos tipos detecnologias (não informacionais) com que lidamos.Entretanto, os resultados das análises e a preocu-pação com as possibilidades não aproveitadas pelaeducação musical direcionaram o escopo do textopor uma discussão que tentasse dissolver as fron-teiras entre prática pedagógico-musical e tecnologiainformacional. Espero que em breve possamos nãomais discutir “se” vamos utilizar tecnologia, ou “como”vamos utilizar os meios, e possamos planejar nos-sos projetos, permeá-los de valores, e realizá-los semdiscernir interfaces com nossas práticas.

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7 Uma outra temática que foi verificada, sem no entanto figurar nas contagens, foi um aparente crescimento na produção de materiaispedagógicos como métodos e livros didáticos, que parecem também se desenvolver por iniciativas independentes (produçõesmuitas vezes financiadas pelos próprios autores). A crítica sobre a estagnação da pesquisa em materiais está aqui limitada amateriais sonoros e instrumentos musicais.8 Sobre essas aplicações cito algumas publicações importantes no Brasil, como Krüger et al. (2003) e Fritch et al. (2003).

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Recebido em 26/02/2006

Aprovado em 12/03/2006

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Introdução

A educação musical tem sido desafiadaa passar por uma série de transformações. Asnovas Tecnologias de Informação e Comunica-ção – TIC – desafiam-nos a transformar nossosconceitos educacionais, nossas perspectivas di-

Educação musical apoiadapelas novas Tecnologias de

Informação e Comunicação (TIC):pesquisas, práticas e formação de

docentes

Susana Ester KrügerOrquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP)

[email protected]

Resumo. A partir algumas questões apresentadas por Naveda (2005), apresento brevementealgumas pesquisas e práticas sobre as novas TIC (Tecnologias de Informação e Comunicação) naeducação musical. Apresento inicialmente um levantamento das pesquisas brasileiras sobre o tema(1989-2003), o qual demonstrou que apenas 24% foram realizadas em/com cursos de pós-graduaçãoem música e/ou educação musical. Dessas destaco as pesquisas do software STR (Sistema deTreinamento Rítmico), do Editor Musical e do Portal EduMusical. Também abordo as modalidades deeducação a distância via Internet, descrevendo-as e exemplificando-as. Porém, um segundolevantamento demonstra que ainda há poucas universidades brasileiras que efetiva e continuamentedesenvolvem trabalhos nessas duas áreas, e reafirma a necessidade de maior capacitaçãotecnológica para os educadores musicais. Para tanto, apresento como referência algumaspossibilidades encontradas na educação. Finalizo com algumas questões e reflexões que, espero,sejam um incentivo para o aumento das pesquisas e práticas apoiadas pelas TIC na educaçãomusical.

Palavras-chave: TIC, EaD via Internet, software

Abstract. Based on some issues presented by Naveda (2005), I present some research andpractices on the new Information and Communication Technology (ICT) in Music Education. However,while collecting information about research in Brazil (1989-2003), it has been found that only 24% ofthem had been carried out in post-graduation courses in Music and/or Music Education. As anexample, I point out the software STR (Rhythmic Training System), the Musical Editor and the PortalEduMusical. Besides these, there are some examples of teaching experiences supported by DistanceLearning. Another data collection has shown that there are still very few universities in Brazil thatdevelop a continuous and effective work on both areas, which reassures the need of a bettertechnological qualification for Music educators so that some possibilities found for Education can beused as references. Finally, I pose some questions and thoughts that, hopefully, may motivate moreresearch and practice supported by ICT in Music Education.

Keywords: ICT, DL through Internet, software

dáticas, nos constrangem a rever e complemen-tar nossa formação, nos levam a refletir sobre asnovas possibilidades e exigências quanto àsinterações com nossos alunos e colegas.

KRÜGER, Susana Ester. Educação musical apoiada pelas novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC): pesquisas,práticas e formação de docentes. Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 14, 75-89, mar. 2006.

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Mas o que é tecnologia? A definição de Naveda(2005) pode ser ampliada e complementada, vistoque muitos autores utilizam o termo com referênciaaos instrumentos que foram, são ou serão criadospara auxiliar as pessoas a realizar uma determinadatarefa. Algumas definições foram geradas a partir dospróprios recursos; por isso, são vinculadas a perío-dos históricos. Sancho (1998a, p. 17) define tecno-logia como o “conjunto de conhecimentos que per-mite a nossa intervenção no mundo”, o “conjunto deferramentas físicas ou de instrumentos, psíquicasou simbólicas”, e as ferramentas “sociais ou organi-zadoras”; e tecnologias educacionais como as “fer-ramentas intelectuais, organizadoras e de instrumen-tos à disposição de ou criados pelos diferentes en-volvidos no planejamento, na prática e avaliaçãodo ensino”.

Na educação, não são utilizadas apenas asTIC mais recentes, como computadores e ferramen-tas para EaD (educação a distância) via Internet,ambientes para vídeo ou teleconferência, ambientesde realidade virtual, recursos de robótica, etc., mastambém aparelhos eletrônicos em geral – televisão,vídeo, rádio, aparelhos de som, etc. –, materiais im-pressos e audiovisuais (Sancho, 1998b, p. 23). En-tretanto, neste texto, serão focalizadas apenas asnovas TIC, especificamente os softwares educativo-musicais e as ferramentas de EaD via Internet.

Os estudos apontam que a tecnologia nãopermite somente agir sobre a natureza ou a situa-ção – no nosso caso, a educação musical –, mas é,principalmente, uma forma de pensar sobre ela.Sancho (1998b, p. 33-34) apresenta três teorias so-bre a natureza da tecnologia, que podem nos ajudara refletir sobre como a vemos e qual é o uso quefazemos dela. Dentre elas, destaco a teoria crítica,que considera a tecnologia ambivalente, porque “dis-tingue-se da neutralidade pelo papel que atribui aosvalores sociais no projeto e não somente no simplesuso dos sistemas técnicos” (Sancho, 1998b, p. 33-34). Ela possui valores inerentes e não é neutra, poisem seu desenvolvimento foram adotados (conscien-temente ou não) determinados parâmetros culturais,sociais e pedagógicos, por exemplo, e ao mesmotempo seu uso também pode ser modificado pelosusuários que, por sua vez, estão inseridos em umdeterminado contexto sócio-cultural e educacional.Ao mesmo tempo, muitos usuários não são sufici-entemente estimulados e/ou munidos de subsídioscríticos para deliberar e realizar julgamentos críticossobre as tecnologias que utilizam (Sancho, 1998b,p. 36). Portanto, não devem ser feitos simples “jul-gamentos de valor”, mas análises consistentes cal-cadas em parâmetros tecnológicos e educacionais

atualizados que demonstrem uma sólida fundamen-tação teórica (Krüger, 2000). Esse posicionamentotem sido adotado por muitos educadores etecnólogos, e nos estimula a refletir sobre seus con-teúdos, possíveis formas de trabalho, de avaliaçãodos processos de ensino e de aprendizado, entreoutros aspectos.

Cabe, portanto, analisarmos criticamente osrecursos que temos à disposição e que eventual-mente venhamos a criar, para que concepçõeseducativo-musicais já em desuso não sejam nova-mente instituídas e divulgadas com uma nova roupa-gem pelo simples fato de estarem disponíveis emuma nova mídia – ver Krüger (1997, 2000), Ficheman,Krüger e Lopes (2003), Squires e McDougall (1994),entre outros. Por exemplo, podemos considerar lite-ralmente a afirmação de Moore (1995 apud Naveda,2005), que coloca que “uma nova tecnologia tantopermite que objetivos tradicionais sejam persegui-dos por novos meios quanto possibilita que sejamdefinidos novos objetivos”. Almeida (2003) tambémsugere que podemos “usar uma tecnologia tanto natentativa de simular a educação presencial com ouso de uma nova mídia como para criar novas possi-bilidades de aprendizagem por meio da exploraçãodas características inerentes às tecnologias empre-gadas”. Ambos concordam que podemos aumentara eficácia da educação convencional com auxílio dasTIC; o que poderia ser feito em música, por exem-plo, ao estimularmos a realização de tarefas quenormalmente não teriam boa aceitação por parte dosalunos por meio de uma nova e estimulante mídia.Devemos, porém, atentar para que as TIC não sejammeras transposições de livros-texto ou exercícios.Essa é uma das maiores críticas às novas TIC naeducação e na informática educacional. Dessa for-ma não será utilizado todo o potencial de interaçãoentre os usuários (alunos e professores) e entre es-tes e o conhecimento. Em resumo, apesar do po-tencial de enriquecimento, diversificação e estímuloem atividades convencionais, os diferenciais técni-cos e educacionais intrínsecos das TIC podem pro-mover outras e novas abordagens pedagógicas, nãoprecisando ser abordadas apenas como uma novaroupagem para um determinado tema.

Nesse ponto, cabe lembrar da “tecnofobia”sentida por alguns educadores musicais (Naveda,2005), que se apresenta como receio de utilizar asTIC ou mesmo de participar em projetos de pesqui-sa nessa área. Cain (2004), todavia, instiga-nos arefletir sobre o quanto as novas TIC implicariam mu-danças na própria natureza e no foco das atividadesmusicais, como a composição, execução e aprecia-ção – por exemplo, segundo o Modelo (T)EC(L)A

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(Swanwick, 1979); ou quanto eventualmente reque-rem uma adequação ou ampliação de teorias de de-senvolvimento, como a Teoria Espiral de Desenvolvi-mento Musical de Swanwick (1988). Tais questõesprecisam ser amplamente pesquisadas, levando emconta os novos materiais e as fronteiras educativo-musicais abertas a partir delas. Para Cain (2004, p.220, tradução minha), “os entusiastas das TIC preci-sam entender que aqueles que são relutantes emutilizar a tecnologia musical talvez não sejamtecnófobos; eles podem ter preocupações genuínase fundamentadas, talvez relacionadas a alguns as-pectos menos musicais da tecnologia”. Naveda(2005) aponta alguns destes aspectos “menos mu-sicais”, como a literatura e a técnica, nos quais asTIC podem ser as auxiliares perfeitas para que asaulas sejam focadas nas atividades de envolvimentodireto com música – composição, execução e apre-ciação –, como proposto por Swanwick (1979).

A adoção de um posicionamento crítico sobreas TIC pode levar a alguns questionamentos. Porexemplo, como e quanto temos selecionado e utili-zado apropriadamente as TIC em nossas aulas demúsica, sendo inovadores não apenas por utilizar-mos as TIC, mas também na didática e na pedago-gia musical, a fim de que esses aspectos “menosmusicais” sejam realmente complementares? Temospesquisado esses temas? Se sim, qual tem sidonosso foco? Uma reflexão sobre essas questõestalvez possa ser realizada a partir da observação deum levantamento dos conhecimentos teórico-práti-cos construídos em pesquisas sobre o tema no Bra-sil. Ressalto que para este texto não foi efetuadauma análise aprofundada e rigorosa, que deverá serobjeto de estudo posterior.

Pesquisas brasileiras sobre as TIC e aeducação musical

A pesquisa sobre as temáticas da Abem rea-lizada por Naveda (2005) expõe que, nos cinco últi-mos encontros nacionais desta associação, apenas5,5% das pesquisas e relatos versaram sobre “mídiae computação”. Entretanto, essa área é emergente,e vários pesquisadores projetam e implementam TIC(principalmente protótipos de softwares) ou investi-gam sua utilização na educação musical em esco-las de música, no ensino básico e na formação deprofessores. Portanto, se essas pesquisas não sãoamplamente divulgadas na Abem, podemos cogitarque sejam feitas em outras áreas? Se sim, quaisáreas são elas?

No levantamento realizado – que abrangeupesquisas realizadas de 1989 a 2003 –, encontrei34 resultados no Banco de Teses da Capes.

Dezenove pesquisas foram defendidas em mestradosou doutorados na área de exatas (ciências da com-putação, engenharias e correlatas); 8 na área demúsica/educação musical, 4 na educação e 3 emoutras áreas (comunicação, comunicação social,engenharia biomédica) (Gráfico 1) (vide Anexo 1). Ouseja, apenas 24% estão diretamente vinculadas àsáreas de música ou educação musical.

Gráfico 1: Mestrados e doutorados sobre TIC e educaçãomusical.

As 19 pesquisas defendidas nas subáreas dasciências exatas (computação, informática, engenha-rias, etc.) concentram-se no projeto e na implemen-tação (criação de protótipos) de softwares, entreoutros temas:

a) sete softwares teórico-práticos individuaispara adultos: dois para uso presencial sobreensino de harmonia; cinco para Internet (doisde harmonia, um para ensino de flauta doce,um para percepção de intervalos e um editorde partituras);

b) sete softwares para uso por adultos, ematividades instrumentais individuais: dois paraensino e/ou execução pianístico, um parapercussão, um para violão, um para afinaçãode instrumentos em geral, um para captaçãode sons e transcrição em forma de notação eum para percepção musical e acompanha-mento automático;

c) um software para uso infantil (individual ecolaborativo) em atividades educativo-musicaispresenciais e a distância com foco em com-posição/arranjo musical;

d) duas pesquisas sobre informática em cur-so de licenciatura em música e curso técni-co; e

e) uma proposta de método de ensino de pro-gramação musical e um para o ensino demúsica e tecnologia.

Pesquisas envolvendo TICs e Educação Musical

24%

12%

3%3% 3%

55% Exat asMúsicaEducaçãoComunicaçãoEngenharia BiomédicaComunicação Social

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As pesquisas realizadas na área da música/educação musical são diversificadas, compreendendoreflexões sobre o estado da arte (três pesquisas), ouso da EaD na formação musical de professores (umapesquisa) e músicos (uma pesquisa), a criação (trêspesquisas), o uso e avaliação das TIC (duas pesqui-sas). De modo geral, na área de educação, os focossão semelhantes aos da educação musical. Nemsempre as pesquisas são voltadas as TIC; algumasvezes são estudados seus efeitos e influências nosprocessos educacionais ou o próprio material decor-rente de sua utilização – as TIC são um “pano defundo” para estudos mais abrangentes.

Por outro lado, várias monografias de cursosde especializações e trabalhos de iniciação científi-ca (TCCs) em andamento ou finalizados têm sidocoordenados por pesquisadores da educação musi-cal. Estes não constam dos bancos de dados dosórgãos oficiais (Capes e MEC), mas seus resulta-dos eventualmente são publicados nos encontros e/ou periódicos da Abem, da SBC (Sociedade Brasi-leira de Computação), do SBC&M (Simpósios Bra-sileiros de Computação e Música), da Abed (Asso-ciação Brasileira de Educação a Distância), entreoutros. Essa divulgação possibilita a discussão dasperspectivas educativo-musicais dos projetos, suaimplementação e uso, além de fomentar o interessena realização de novas pesquisas.

Embora a realização e defesa de pesquisassobre educação musical e TIC em outras áreas quenão a educação musical contribua para o avanço daspesquisas e seja altamente desejável devido ao ca-ráter interdisciplinar necessário a esse tipo de pes-quisa, existe uma necessidade primária a ser con-templada: o aumento da efetiva participação de edu-cadores musicais junto aos pesquisadores dainformática, principalmente no caso das pesquisasnas ciências exatas. Provavelmente por esse moti-vo, poucos trabalhos possuem embasamento teóri-co-prático atualizado, e a grande maioria é calcadanas perspectivas tradicionais de ensino musical, fo-calizando assim aspectos de técnica e literatura(Swanwick, 1979).

Nesses projetos interdisciplinares de produ-ção de software educativo-musical, é importante aparticipação de pesquisadores da educação musi-cal, das TIC, de design e de pessoas pertencentesao público-alvo do software – se não em todo o pro-jeto, ao menos em momentos específicos, como nafase de planejamento, quando é delimitado o foco dosoftware e buscada sua fundamentação pedagógi-ca, e nas avaliações formativas. É primordial que hajauma atualização constante dos pesquisadores, alémde compromisso e empenho sistemático nas dife-

rentes fases de produção. Por exemplo, nessas equi-pes interdisciplinares, os educadores musicais pre-cisam elaborar e detalhar minuciosamente o projetopedagógico (desde o tema até o repertório e as ativi-dades de avaliação, quando pertinentes), discutindoos detalhes com os pesquisadores da área tecno-lógica, que darão seu parecer quanto à viabilidadede implementação ou não de determinada função ouatividade. Na implementação, os pesquisadores daeducação musical precisam prover o material sono-ro e as orientações pedagógicas para que os pes-quisadores da área tecnológica possam programara atividade. Ao mesmo tempo, os educadores musi-cais precisam atentar para que a programação nãodesvirtue as premissas educativo-musicais estabe-lecidas. Por exemplo, um software para percepçãorítmica não deve ser uma simples transposição deexercícios rítmicos de livros “tradicionais”, mas in-cluir oportunidades de composição e arranjo (Krüger;Fritsch; Viccari, 2001), em novas formas de aborda-gem do conhecimento musical.

Tais premissas foram observadas em proje-tos interdisciplinares como o do STR (Sistema detreinamento rítmico), que envolveu o Instituto deInformática e o Programa de Pós-Graduação emMúsica da UFRGS (Figura 1); e do PortalEduMusical/Editor Musical, desenvolvido pelo Labo-

Figura 1: Software STR (UFRGS), telas dos módulosRepertório Rítmico e Recursos Rítmicos.

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ratório de Sistemas Integráveis da Escola Politécni-ca da USP e a Coordenadoria de Programas Educa-cionais da Fundação Osesp com apoio do CNPq(Figura 2).

O Portal EduMusical e o Editor Musical estãodisponíveis na Internet1 em versões preliminares que,apesar de serem utilizadas e aprovadas por muitosprofessores de música, ainda carecem de algumasfinalizações de programação e conteúdo. Essa situ-ação reflete a grande maioria dos projetos de softwareeducativo-musical: devido ao término de bolsas deestudos ou de projetos de pesquisa, não ocorre adisponibilização de um produto plenamente funcio-nal. Aulas já ministradas com protótipos dossoftwares STR e Editor Musical demonstraram que,mesmo tendo perspectivas educativo-musicaisatualizadas, é crucial que os aspectos técnicos es-tejam resolvidos tanto quanto os musicais. Confor-me o escopo de cada projeto, parece ser cada vezmais necessária a busca de parcerias interinstitu-cionais entre universidades, faculdades, empre-sas que desenvolvem tecnologias educacionais,fomento a médio e longo prazo de órgãos gover-namentais, etc. Dessa forma, os projetos podemser retomados e expandidos a fim de incorporarnovas tendências tecnológicas e educativo-musi-cais. Entre estas, estão os recursos para EaD,que têm sido um campo cada vez mais atraentepara designers de TIC, pesquisadores, professo-res e alunos.

A EaD via Internet: alguns exemplos emeducação e educação musical

A EaD é muito difundida por meio detecnologias atualmente consideradas convencionais,como televisão, impressos (correspondência) e rá-dio (Almeida, 2004). A EaD via computadores eInternet também é caracterizada pelo uso de “ambi-entes digitais de aprendizagem”. Almeida (2003) osdefine como

sistemas computacionais disponíveis na Internet,destinados ao suporte de atividades mediadas pelastecnologias de informação e comunicação. Permitemintegrar múltiplas mídias, linguagens e recursos,apresentar informações de maneira organizada,desenvolver interações entre pessoas e objetos deconhecimento, elaborar e socializar produções tendoem vista atingir determinados objetivos.

O uso desses recursos ainda é pouco comumna educação musical brasileira, devido aos custosdos equipamentos (computadores, softwares, pro-vedor de Internet, etc.), de necessidades como apoiotécnico freqüente e, principalmente, de capacitaçãodos docentes. Entretanto, como veremos adiante,várias pesquisas e práticas apontam para vantagensdesta sobre as tecnologias convencionais de EaD –como o envolvimento maior, mais freqüente e direto

Figura 3: Software Editor Musical, telas dos módulosComposição Individual e Editor de Desafios.

Figura 2: Tela da página principal do Portal EduMusical(LSI-Epusp/Osesp).

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1 Acesso em www.edumusical.org.br (download do Editor Musical a partir da janela do sótão do “prédio”). Maiores detalhes emKrüger et al. (1999), Ficheman et. al. (2004), Ficheman, Krüger e Lopes (2003), entre outros.

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entre os participantes, que podem comunicar-se pra-ticamente sem limites físicos/espaciais e temporais(Almeida et al., 2004; Behrens, 2000).

Um dos ambientes digitais de aprendizagemmais difundidos na EaD brasileira é o Teleduc, de-senvolvido pelo Nied/Unicamp. Algumas das ferra-mentas disponíveis para os alunos estão descritasna Figura 4.

A legislação brasileira3 apóia diversos forma-tos para a EaD em diferentes níveis de ensino – des-de o fundamental até a graduação, cursos seqüen-ciais, disciplinas e cursos integrais de pós-gradua-ção lato sensu, mediante autorização do MEC oudas instâncias estaduais correspondentes. Uma dasformas mais comuns e recomendadas de organiza-ção de disciplinas ou cursos com o apoio dos am-

Figura 4: Alguns recursos do Teleduc – software para cursos baseados em EaD (Nied/Unicamp).2

Página de abertura: à esquerda visualiza-se o menu e, à direita, o conteúdo do recurso selecionado. A primeira a aparecer é a Agenda, com informações, tarefas, atividades motivadoras ou outros elementos. São atualizados conforme o andamento do curso.

Estrutura do Ambiente: informa os recursos utilizados e seu funcionamento.

Dinâmica do Curso: informa a metodologia e estrutura do curso, normalmente apontando objetivos e prazos.

Atividades: apresenta as atividades gerais do curso ou detalha uma determinada tarefa. Material de Apoio e Leituras: informações teóricas pertinentes, como referências bibliográficas, links para artigos na Internet, etc.

Mural: para postar informações relacionadas ao curso, como notícias, eventos, cursos, elementos complementares às discussões (indicações de listas), etc.

Fóruns de Discussão: permite a criação de fóruns para grupos. Pode-se participar enviando e visualizando mensagens do próprio grupo e de outros. O recurso prevê interações assíncronas.

Bate-Papo: permite discussões e trocas de mensagens síncronas em horários formalmente agendados (com professores) ou combinados entre alunos.

Correio: correio eletrônico interno, que também permite recebimento das mensagens em ferramentas externas.

Grupos: para a realização de tarefas específicas. Apenas podem ser visualizados os integrantes e seu perfil.

Perfil: todos podem descrever-se, o que possibilita o conhecimento e a integração social entre os participantes e a identificação de interesses comuns.

Diário de Bordo: para o registro de vivências individuais relacionadas ao curso, a serem compartilhadas ou não com os demais. Se puderem ser lidas, poderão ser comentadas.

Configurar: altera dados e configurações como senha, idioma e notificação de novidades no e-mail externo.

Portfólio: permite o armazenamento de arquivos desenvolvidos, utilizados, etc., com três níveis de acesso: restrito (apenas para o próprio aluno), compartilhamento com professores ou todos, o que permite comentários.

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2 Informações e download gratuito do Teleduc (instalação em servidor com ambiente Linux): <http://teleduc.nied.unicamp.br/teleduc>e <http://www.nied.unicamp. br>.3 Para legislação sobre EaD, ver no site do Ministério da Educação:<http://portal.mec.gov.br/sesu/index.php?option=content&task=view&id=261&Itemid=306>,<http://portal.mec.gov.br/sesu/index.php?option=content&task=category&sectionid=7&id=100&Itemid=298> e<http://portal.mec.gov.br/seed/arquivos/pdf/min_ead.pdf> (minuta de decreto).

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bientes digitais de aprendizagem tem sido atravésda integração entre aulas presenciais e a distância.Existem várias “modalidades” de organização, sen-do três as mais comuns:

a) disciplinas ou cursos presenciais com su-porte na tecnologia digital, cuja carga horáriapresencial é maior do que a carga à distância. Comoexemplo, cito os cursos promovidos pela Coorde-nadoria de Programas Educacionais da OrquestraSinfônica do Estado de São Paulo (CPE/Osesp) em2005, com carga horária presencial de 40 horas e de8 horas a distância. Além das aulas presenciais or-ganizadas em módulos, as atividades em sala deaula eram acompanhadas via Teleduc e houve umareunião de encerramento, para compartilhamento dosresultados (Figura 5).

b) disciplinas ou cursos semipresenciais comsuporte na tecnologia digital, onde os momentospresenciais e a distância são equivalentes ou hápouca diferença. Como exemplo, cito os cursos daOsesp de 2006, cuja carga presencial é de 36 horase aos encontros educacionais a distância estão re-servadas 30 horas.

c) disciplinas ou cursos a distância, caracte-rizados como a EaD propriamente dita, onde a car-ga horária a distância realizada em meiostecnológicos/digitais é muito maior que a presencial.Os alunos participantes se encontram apenas emdois ou três momentos durante toda a disciplina oucurso – a exemplo das disciplinas da PUC/SP (trêscréditos de mestrado/doutorado, ou seja, das 45horas totais, 36 foram a distância e nove presenciais),como a Novas Tecnologias em Educação: Forma-ção a Distância de Pesquisadores e Professores –Mestrado/Doutorado em Educação (PUCSP/2004)(Krüger, 2004). Suas três aulas presenciais foramreservadas para a verificação do andamento das ati-vidades – orientações e discussões estruturais eorganizacionais – mais que para conteúdo, e foramintercaladas com trabalhos e dinâmicas individuaise em grupo, a distância, em chats, correios eletrôni-cos, portfólios, fóruns, etc. Nesses três exemplos,foi utilizado o Teleduc nas interações de EaD.

A alternância de momentos presenciais e adistância tem se mostrado eficiente, uma vez que

Figura 5: Estrutura dos cursos de formação continuada emeducação musical – CPE/Osesp, 2005.

Módulo 1 Aulas presenciais

Acompanhamento da prática em sala de aula (via EaD)

Módulo 2 Aulas presenciais

Acompanhamento da prática em sala de aula (via EaD)

Acompanhamento da realização do trabalho final

Evento didático Alunos e professores na Sala São Paulo

Reunião de encerramento presencial

os participantes continuam as discussões e trocasiniciadas nas aulas presenciais durante os momen-tos virtuais, e vice-versa. Principalmente, eles nãose sentem mais sozinhos nas atividades que reali-zam em suas próprias escolas, mas possuem a dis-posição um rico espaço para intercâmbio e aprendi-zado contínuo, colaborativo, com apoio de colegas edocentes. Por outro lado, as vivências nesses cur-sos têm demonstrado que, quanto maior a cargahorária a distância, maior precisa ser a estruturaçãoe organização das atividades, para que os alunostenham um norte a seguir e possam programar seusestudos de acordo com seus interesses e necessi-dades. Dessa forma, será incentivada a autonomiados alunos, que realizarão atividades relativamentepersonalizadas de modo individual e em grupo. Es-sas premissas são também advogadas por pesqui-sadores considerados atuais referências em EaD,como Moore (1997).

Porém, eventualmente, ainda pode ser perce-bido um conceito equivocado sobre EaD o qual tem,indiretamente, dificultado o oferecimento de cursosnessa modalidade: uma suposta “falta” de seriedadee/ou compromisso (Cerqueira; Krüger, 2004, p. 6).Entretanto, Moran ([s.d.]), Salmon (2000), Almeidaet al. (2004), entre outros, sugerem que o compro-misso, o envolvimento, a seriedade e a integraçãosão praticamente equivalentes – ou até maiores –que nos processos educativos presenciais. Porexemplo, Almeida et al. (2004, p. 15), no relatório depesquisa sobre a disciplina de mestrado/doutora-do intitulada Formação de Professores em Ambi-entes Digitais (PUC/SP, 2003), afirmam que “acarga horária dos professores e monitoresdedicada às atividades desta disciplina foi bemmaior do que a dispensada para um cursopresencial”. Assim também Behrens (2000, p. 21,grifo meu) coloca que

com a comunicação via rede de informação o professore os alunos podem comunicar-se dentro do período deaulas ou fora dele. Essa possibilidade permite que odocente entre em contato com os alunos com maisfreqüência do que os horários de aulas regulares. Oaluno pode receber o retorno de seu trabalho ou deatividades realizadas sem ter que esperar por umencontro presencial na escola.

Por isso, muitas disciplinas ou cursos calca-dos na EaD via Internet são conduzidos por mais deum professor, subsidiados por vários monitores ouestagiários, em um número proporcional (variável deum para cada 10 ou 15 alunos) ao dos alunos. Ge-ralmente também é proposta uma forte organizaçãoem termos de conteúdo, dinâmicas de trabalho,cronogramas e avaliações; porém, essa organiza-ção é constantemente analisada e readequada em

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conjunto com os alunos participantes. É nesse sen-tido que Cerqueira (2005, f. 39-40) sugere que o pa-pel do professor seja definido a partir do contextoemergente:

um professor a posteriori e não a priori, ou seja, seupapel será definido de trás para frente, dadas asnecessidades que vão sendo “coladas” no processode ensino e aprendizagem a distância, e que podem,por sua vez, ser apenas “rascunhadas”, nunca“passadas a limpo” a priori. Ele deverá sempre estaraberto para o novo, para o porvir.

Além disso, Almeida (2003, p. 10) ressalta aorganização, a disponibilidade e a interação cons-tantes necessárias para o alcance dos objetivos pe-dagógicos da EaD:

Ensinar em ambientes digitais e interativos deaprendizagem significa: organizar situações deaprendizagem, planejar e propor atividades; disponi-bilizar materiais de apoio com o uso de múltiplas mídiase linguagens; ter um professor que atua como mediadore orientador do aluno, procurando identificar suasrepresentações de pensamento; fornecer informaçõesrelevantes, incentivar a busca de distintas fontes deinformações e a realização de experimentações;provocar a reflexão sobre processos e produtos; favo-recer a formalização de conceitos; propiciar a intera-prendizagem e a aprendizagem significativa do aluno.

Entretanto, ainda precisam ser revistos osprocessos de gerenciamento e o foco da maioria doscursos a distância, que atualmente ainda apresen-tam maior ênfase no conteúdo ao invés da interação,conforme Moran ([s.d.]). Este educador comenta que

A educação a distância está muito contaminada pormodelos instrucionais, behavioristas, de linha demontagem […] a grande maioria desses cursos são“treinamento”, informação e conteúdo modernizados.[…] [A EaD] será importante quando oferecer inúmeraspossibilidades de aprendizagem simultaneamente,quando houver atividades diversificadas e eletivas numcurso e quando superarmos a programação rígida deleitura e atividades fixas que a caracterizam até opresente momento. (Moran, [s.d.]).

Para superar essas dificuldades, os docen-tes têm adaptado as ferramentas para EaD como oTeleduc ao perfil e foco de cada curso e às necessi-dades e interesses de seus alunos. As avaliaçõesdo uso do Teleduc4 realizadas na CPE/Osesp em2005 investigaram, entre outros fatores, suas vanta-gens e desvantagens. Entre os aspectos positivos,encontramos o “contato com outros alunos e profes-sores sem a necessidade de sair de casa, bem comoo acesso às informações e materiais”, a “comunica-

ção com os demais participantes e atualizações dasinformações sobre o curso e outros posteriores;armazenamento de trabalhos elaborados, e fácil aces-so ao conteúdo dos participantes do curso; [e] tro-cas que enriquecem nossa prática”. Os participan-tes também ressaltaram o intercâmbio entre didáti-co-pedagógico: “possibilitou tirar dúvidas e trocar in-formações com os colegas”, “as dúvidas que vãosurgindo durante a aplicação do projeto podem serdiscutidas por todos, surgem então muitas idéias esugestões”.5 Esses depoimentos são condizentescom resultados de estudos realizados em outrasáreas (por exemplo, Cerqueira, 2005).

Por outro lado, as respostas sobre as des-vantagens apontaram para os problemas técnicos,principalmente quanto à conexão de Internet lentaou instável para acesso ao Teleduc, falta de conhe-cimento geral de informática e Internet ou deoperacionalização do software, e problemas no fun-cionamento de algumas ferramentas – principalmenteem relação às atividades síncronas. Estas são reali-zadas em tempo real, quando os participantes es-tão conectados ao mesmo tempo via Internet, on-line, participando de bate-papos (chats) e outras ati-vidades simultâneas. Já nas atividades assíncronas,com interações sucessivas, em horários diferentes,como fóruns, portfólios, diários de bordo, etc., nãoforam relatados tantos problemas técnicos por partedo software.

Os cursos da Osesp acima mencionados,apesar de não focarem o ensino do uso das novasTIC em educação musical, utilizaram a EaD no pro-cesso de formação continuada. Provavelmente en-contraremos outras iniciativas semelhantes em di-versas cidades brasileiras; porém, a demanda deprofessores de música atuantes no ensino básico ede música e na formação de educadores musicaisnas licenciaturas, mestrados e doutorados para ouso das TIC com certeza é maior que essa oferta.Na educação, entretanto, são realizados muitos cur-sos sobre o uso das TIC, muitos dos quais nas mo-dalidades de EaD anteriormente apresentadas. Emoutros países, também podem ser encontrados cur-sos sobre o tema em educação musical. No próxi-mo tópico, serão apresentados alguns exemplos nointuito de servirem como incentivo às reflexões so-bre suas possibilidades de formação para o uso dasTIC em educação musical em nosso país.

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4 As ferramentas mais utilizadas foram o Correio, o Chat, o Portfólio e o Fórum do Teleduc, com diferenças entre o uso e atribuiçãode significado nos quatro cursos desenvolvidos durante o ano de 2005.5 Depoimentos dos alunos do Curso II/2005 – Educação Musical: as Crianças e a Música Orquestral. Armazenados em <http://www.osespeducacionais.art.br>; em análise para inclusão em relatório da CPE/Oses relativo ao ano de 2005.

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Algumas propostas para a organização decursos ou disciplinas sobre o uso das novas TIC

Na literatura da informática educacional e daeducação musical podem ser encontradas algumassugestões para a organização de cursos – ou disci-plinas em cursos de graduação e pós-graduação –,sobre o uso das novas TIC.

Como exemplo na educação musical, pode-mos observar a proposta de Deal e Taylor (1997). Osautores desenvolveram um modelo de disciplina so-bre música e tecnologia para cursos de graduaçãoem música a partir dos requerimentos do Nasm(National Association of Schools of Music).6 Elessugerem que o curso ou disciplina seja implementadoapós reflexões sobre cinco aspectos pedagógicos elogísticos:

a) quais habilidades computacionais são es-senciais para todos os graduandos?

b) o treinamento computacional deve variar deárea para área (por ex., de composição paraeducação musical) ou um conjunto de habili-dades seria suficiente para todos?

c) todos os graduandos deveriam ser obriga-dos a fazer ao menos uma disciplina em téc-nicas computacionais [cursos de informática]ou, por outro lado, as experiênciascomputacionais deveriam ser incorporadas emalguns cursos de música?

d) os estudantes de música devem ser envia-dos a outro departamento no campus para otreino computacional?

e) num currículo de computação musical,como os professores podem lidar com as di-ferenças de habilidades computacionais en-contradas em estudantes que estão entrandono curso? (Deal; Taylor, 1997, p. 18).

Fritsch (1999) também sugere uma disci-plina de computação e música, formada por umconjunto de conteúdos que podem ser adaptadosas especificidades dos cursos de graduação emmúsica e em informática. Na área musical, o enfo-que “é de utilização dos recursos computacionaisdisponíveis para auxiliar o músico nas suas tare-fas musicais como edição de partituras, compo-sição, criação de novos sons e educação musi-cal” (Fritsch, 1999, p. 27).

As propostas acima focalizam o aprendizadode aspectos computacionais básicos e o uso de pro-gramas relacionados a tarefas específicas, que é ofoco mais comum também dos cursos de informáticaaplicada à educação – como demonstram os resul-tados da pesquisa de McDougall e Squires (1997).Os autores relacionam, em ordem decrescente, asênfases de vários cursos de formação de professo-res (Tabela 1), embora a estrutura de curso propostoaborde situações presenciais de uso das TIC:

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6 O Nasm coloca a tecnologia como uma das seis principais competências dos estudantes de música “tecnologia: por meio de estudoe experiência em laboratório, os estudantes devem ser familiarizados com as capacidades da tecnologia em relação a composição,execução, análise, ensino e pesquisa” (Deal; Taylor, 1997, p. 17, tradução minha, grifo dos autores).

Tabela 1: Ênfases comuns dos cursos de informáticaaplicada à educação (McDougall; Squires, 1997, p. 116-118

– exemplos educativo-musicais inseridos pela presenteautora).

Ênfase Descrição do Curso Foco 1 Habilidade em usar algum software específico

– Aprender a usar um software para um fim determinado, sendo este software educacional ou alguma ferramenta de uso geral (ex. software de edição de partitura).

Foco 2 Integração da tecnologia ao currículo escolar – Como usar um software de acordo com o currículo de uma determinada escola. Trabalho através de discussões e preparação de atividades e materiais pedagógicos.

Foco 3 Mudanças curriculares relacionadas à tecnologia – Discussões sobre mudanças “na natureza das disciplinas […] como o uso de teclados e equipamentos controlados por computador em Música”. Ex.: Uso de software para composição de música eletroacústica.

Foco 4 Mudanças nos papéis dos professores – Discussões sobre as abordagens pedagógicas e técnicas de uso dos software, sobre os papéis de alunos e professores, e sobre organização da sala de aula.

Foco 5 Teorias educacionais subjacentes – Pensamento crítico sobre questões educacionais, o processo de aprendizagem, diferenças individuais, desenvolvimento e organização de currículos. O nível desse tipo de curso é mais especialista que os demais.

Os autores consideram que um curso focali-zado em somente uma dessas perspectivas seriainsuficiente à formação dos educadores. Por essemotivo, propõem que sejam fundamentados noParadigma de Perspectivas de Interação, que con-templa as interações entre o programador, o profes-sor e o aluno (McDougall; Squires, 1997). O mesmofoi inicialmente desenvolvido para avaliação desoftware educacional (Squires; McDougall, 1994), edepois utilizado num estudo de caso longitudinal deuma proposta curricular na Austrália (McDougall;Squires, 1997).

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A interação entre o programador e o aluno ori-gina a discussão de temas relacionados à forma deuso do software pelo aluno, como estruturas e con-teúdo educacional. A interação entre o programadore o professor propicia a análise das atividades peda-gógicas e objetivos curriculares relacionados ao usode softwares. Por fim, a perspectiva de interaçãoentre professor e alunos estuda o ambiente de salade aula, o apoio do software ao processo de aprendi-zagem, novos papéis que têm sido atribuídos ao pro-fessor e ao aluno, e atividades relacionadas ao usodo software (McDougall; Squires, 1997, p. 118-120).Em outras palavras, um curso que apresente umaestrutura mais completa deveria ser formado por es-sas três perspectivas, distribuídas nos cinco focos(Tabela 3):

TIC por alunos e professores, e lamenta que issoainda não seja comum:

o aluno de cursos de formação inicial de professores,nas licenciaturas em áreas de conhecimento especí-ficas ou no curso de Pedagogia, na maioria das univer-sidades brasileiras, ainda conclui o seu curso degraduação sem ter experienciado e refletido sobre aspossibilidades da incorporação das TIC à práticapedagógica e, sobretudo, sem ter assumido o papel dealuno ou de professor virtual.

Portanto, a formação enquanto vivência dasnovas TIC tem sido vista como relevante na forma-ção dos novos educadores musicais nos cursos delicenciatura em música e também para a formaçãoem serviço. Caso contrário, a formação de nossosalunos será incompleta:

Os professores ou os teóricos da educação que sóparecem estar dispostos a utilizar e considerar astecnologias […] que conhecem, dominam e as que sesentem minimamente seguros, por considerá-las não(ou menos) perniciosas, não prestando atenção àsproduzidas e utilizadas na contemporaneidade, estão,no mínimo, dificultando aos seus alunos a compreensãoda cultura do seu tempo e o desenvolvimento do juízocrítico sobre elas (Sancho, 1998b, p. 41).

Esta situação pode nos reportar ao questiona-mento de Naveda (2005): “por que ainda não domi-namos a arte do diálogo entre departamentos?”. Elalevanta as possibilidades de projetos interdiscipli-nares de softwares e outras TIC educativo-musicais,envolvendo departamentos de uma mesma universi-dade ou afins. Porém, será que conhecemos as pos-sibilidades das instituições onde trabalhamos?

A fim de investigar quais universidades têmrealizado trabalhos envolvendo diferentes departa-mentos tanto sobre as TIC em educação musical,em termos de softwares e EaD, realizei uma buscanos sites do MEC/Sesu e da Capes que permitiu umcruzamento das informações: 1) sobre os cursos degraduação e pós-graduação stricto sensu em músi-ca; 2) os cursos de graduação e pós-graduação latosensu autorizados para realização a distância;7 e 3)os programas onde foram defendidas dissertações eteses sobre TIC e educação musical.

Encontrei 70 instituições que oferecem cur-sos de música, das quais seis também oferecemcursos de mestrado e 4 oferecem mestrado e douto-rado. Das 70, 27 são credenciadas para oferecer

Perspectivas de Interação Foco de Desenvolvimento Profissional Professor -

Programador Professor - Estudante

Estudante - Programador

1. Habilidade em usar algum software específico

2. Integração da tecnologia ao currículo escolar

3. Mudanças curriculares relacionadas à tecnologia

4. Mudanças nos papéis dos professores

5. Teorias educacionais subjacentes

Tabela 3: Focos de desenvolvimento profissionalrelacionados ao Paradigma de Perspectivas de Interação –

adaptado de McDougall e Squires (1997, p. 120).

Vincent e Merrion (1996) defendem que a for-mação dos docentes para o uso das TIC considereaspectos relacionados aos estudantes, à música,ao professor e à tecnologia, que podem ser conside-rados complementares à proposta acima. Segundoos mesmos autores, os educadores musicais de-vem estar “preparados para a emergente interaçãosofisticada entre o estudante e a música, o estudan-te e a tecnologia, e o estudante e o professor. É vitalque educadores musicais liderem o desenvolvimen-to musical e não simplesmente sigam as tendênci-as tecnológicas” (Vincent; Merrion, 1996, p. 40, tra-dução minha, grifo das autoras). Para que isso acon-teça, é necessário que a formação seja direta, con-tinuada e profunda. Almeida (2004, p. 7) ressalta aimportância da experiência direta no uso das novas

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7 Sites pesquisados:<http://www.educacaosuperior.inep.gov.br/funcional/busca_curso.stm>,<http://www.mec.gov.br>;<http://www.capes.gov.br>,<http://portal.mec.gov.br/sesu/index.php?option=content&task=view&id=588&Itemid=298> e<http://portal.mec.gov.br/sesu/index.php?option=content&task=view&id=590&Itemid=298>.

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cursos de graduação ou especializações lato sensu“em suas áreas de atuação” (possível para todos osdepartamentos/unidades) ou em áreas específicasa distância, e em dez destas já foram defendidasteses e dissertações sobre as TIC e educação mu-sical; as demais foram defendidas em nove outrasinstituições que não oferecem cursos de música. Nomomento, apenas uma está iniciando um curso delicenciatura em música à distância, fato que trazconsigo grande expectativa devido à novidade daimplementação dessa sistemática, nesse nível deensino, na educação musical (vide Anexo 2).

Mesmo que, no momento, eventualmente nãotenhamos perspectivas de realização de pesquisasenvolvendo outros departamentos em nossas insti-tuições ou com instituições parceiras, é importantetermos em mente as possibilidades existentes, enos abrirmos ao contato com pesquisadores da áreade tecnologia que se propõem a realizar e/ou orien-tar pesquisas com protótipos relacionados à nossaárea. Mas talvez mais importante ainda seja dimi-nuirmos o desconhecimento desses recursos, bemcomo a insuficiência (ou inexistência) na formação eatualização dos educadores musicais para o uso dasTIC em aulas de música.

Algumas questões e reflexões finais

Se, por um lado, a literatura aponta para anecessidade de formação inicial e continuada parauso das TIC, por outro, ainda é necessário superar-mos alguns obstáculos, talvez vendo essa formaçãocomo uma nova área de pesquisa subsidiada pelaspróprias práticas docentes.

Será então que não deveríamos nos “aventu-rar cientificamente”, fundamentando-nos na literatu-

ra sobre EaD e TIC em geral, e inserir maisfreqüentemente tais conteúdos em disciplinas oucursos, inclusive com o formato a distância, em ca-ráter semi-presencial, conforme as possibilidadeslegais e institucionais? Será que poderíamos ter umcontingente muito maior de educadores musicais noBrasil se utilizássemos as prerrogativas da EaD emcursos de graduação/licenciatura em música e emespecializações lato e stricto sensu?

Talvez, entre as diversas respostas possíveis,esteja o fato de que nós mesmos(as) temos quepassar pelo processo, discutindo com nossos paresas vantagens e desvantagens das TIC, buscando umnovo horizonte de pesquisas e práticas educativo-musicais. Ao mesmo tempo em que somos desafia-dos a buscar o conhecimento teórico-prático produ-zido por educadores de outras áreas, como os pro-fissionais que trabalham com softwares educacio-nais e educação a distância, sabemos que eventu-ais receios não serão apenas minimizados por meiode leituras ou conhecimento de práticas de tercei-ros: somente ao utilizarmos essas ferramentas erefletirmos sobre suas implicações na educaçãomusical é que poderemos criar nossos próprios sis-temas educativo-musicais apoiados pelas TIC.

É premente que nos apropriemos mais dasnovas tecnologias, atualizando-nos constantemen-te, utilizando-as e pesquisando sobre suas possibi-lidades e limites técnico-pedagógicos. A vivência,aliada às pesquisas e estudos da literatura, poderáfornecer a fundamentação e experiência necessáriapara trabalharmos mais música ainda, de modo maismusical – parafraseando Swanwick (2003) –, comapoio nas novas Tecnologias de Informação e Comu-nicação.

Referências

ALMEIDA, Maria Elizabeth Bianconcini de. Educação a distância na internet: abordagens e contribuições dos ambientes digitais deaprendizagem. Educação e Pesquisa: Revista da Faculdade de Educação da USP, São Paulo, v. 29, n. 2, jul./dez.2003. Arquivooriginal cedido pela docente via e-mail.______. O educador no ambiente virtual: concepções, práticas e desafios. 2004. (Palestra proferida no 1o Fórum de Educadores,promovido por Senac/SP, PUC/SP e Universidade Presbiteriana Mackenzie em maio de 2004). Disponível em: <http://www1.sp.senac.br/hotsites/downloads/maria_elizabeth.zip>. Acesso em: 4 jul. 2004.ALMEIDA, Maria Elizabeth B. de. et al. Relatório de pesquisa não publicado: mestrado a distância. São Paulo: Pontifícia UniversidadeCatólica de São Paulo, Programa de Mestrado/Doutorado em Educação/Currículo, 2004.BEHRENS, Marilda A. Projetos de aprendizagem colaborativa num paradigma emergente. In: MORAN, J. M; MASETTO, M. T.; BEHRENS,M. A. Novas tecnologias e mediação pedagógica. Campinas: Papirus, 2000. p. 67-132.CAIN, Tim. Theory, technology and the music curriculum. British Journal of Music Education, v. 2, n. 21, p. 215-221, 2004.CERQUEIRA, Valdenice M. M. de. Mediação pedagógica e chats educacionais: a tessitura entre colaborar, intermediar e co-mediar.Dissertação (Mestrado em Educação: Currículo)–Programa de Mestrado/Doutorado em Educação/Currículo, Pontifícia UniversidadeCatólica de São Paulo, São Paulo, 2005.CERQUEIRA, Valdenice M. M. de; KRÜGER, Susana E. Formação de professores em ambientes digitais: análise comparativa entrea fundamentação teórica e a prática dos formadores junto ao Grupo 7. (Trabalho realizado para a disciplina Novas Tecnologias EmEducação: Formação a Distância de Pesquisadores e Professores). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,Programa de Mestrado/Doutorado em Educação/Currículo, 2004.

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Recebido em 02/03/2006

Aprovado em 15/03/2006

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Anexos

Anexo 1: Teses e dissertações relacionadas às TIC e educação musical defendidas de 1989 a 20038

Autor Universidade/curso Defesa Exatas Lucilia Candida Mazoni Andrade Marcal Mendes. Tecnologia alternativa em educação musical: Uma experiência em Escola Pública de Ensino Técnico Industrial.

CEFET/Minas Gerais

Mestrado em Tecnologia

1999

Evelise Izumi Kawasaki. Modelo e metodologia para projetos de cursos hipermídia (protótipo em Harmonia Musical).

Instituto Tecnológico de Aeronáutica

Mestrado em Engenharia Eletrônica e Computação

1996

Dory Gonzaga Rodrigues. Harmonia WEB – Um Sistema Interativo de Aprendizagem em Harmonia Musical Baseado em Ensino à Distância Via Web.

Universidade Católica de Brasília

Mestrado Prof. em Gest. Conhec. e da Tec. da Informação

2003

Sandra Maria Dotto Stump. Didática dos diferentes usos do computador na transcrição e no aprendizado da teoria musical.

Doutorado em Eng. Elétrica

1990

Irene Karaguilla Ficheman. Aprendizagem colaborativa a distância apoiada por mios eletrônicos interativos: um estudo de caso em educação musical.

Universidade de São Paulo

Mestrado em Eng. Elétrica

2002

José Eduardo Ribeiro de Paiva. Sonorização em Multimidia: Técnicas Específicas para a Música Digital.

Doutorado em Multim.

2002

Cláudio Roberto Araújo. Uma Proposta de Ferramenta de Apoio à Educação Musical Via Web Usando Java e XML

Universidade Estadual de Campinas Mestrado em

Eng. Elétrica 2002

José Maximiano Arruda Ximenes de Lima: Webflauta: uma aplicação EaD para o ensino de flauta doce.

Univ. Est. do Ceará / CEFET/Ceará

Mestrado em Computação

2002

Adriano de Oliveira Caminha. MHITS – um sistema tutor inteligente em harmonia musical.

2000

Algeir Prazeres Sampaio. Acionador percussivo inteligente – RITMUSROB.

1999

Fernando Maia Assunção. SHART-Web: Um Sistema Tutor de Harmonia Tradicional na Web.

Universidade Federal da Paraíba / Campina Grande

Mestrado em Informática

2001

Giordano Ribeiro Eulálio Cabral. D’Accord Guitar: Um Sistema Para Execução Violonística.

Universidade Federal de Pernambuco

Mestrado em Ciências da Computação

2002

José Ruy Henderson Filho. Música e informática: usos da informática no ensino de elementos da gramática musical no Curso de Licenciatura Plena em Educação Artística – Música da Universidade do Estado do Pará.

Mestrado em Ciências da Computação

2002

Wilson Castello Branco Neto. Sistema de reconhecimento de som para a afinação de instrumentos.

Universidade Federal de Santa Catarina

Mestrado em Eng. Prod.

2000

Luiz Otavio Rendeiro Correa Braga. LADAM (Laboratório Digital para Aprendizagem Musical): uma estação de trabalho informatizada para ensino musical.

1995

Jose Honorio Glanzmann. EXPERT PIANO: um ambiente de auxilio a aprendizagem musical.

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Mestrado em Engenharia de Sistemas e Computação 1995

Eloi Fernando Fritsch. MEPSOM – Método de Ensino de Programação Sônica para Músicos.

Doutorado em Comp.

2002

Luciano Vargas Flores. Conceitos e tecnologias para educação musical baseada na Web.

2002

Rodolfo Daniel Wulfhorst. Uma Abordagem Multiagente para Sistemas Musicais Interativos.

Universidade Federal do Rio Grande do Sul Mestrado em

Comp. 2002

______________________________________________________________________________________________________________

8 Fonte: <http://www.capes.gov.br/capes/portal/conteudo/10/Banco_Teses.htm>. Acesso em 16 out. 2005. Não foram incluídaspesquisas sobre computação musical e correlatos.

Continua...

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Educação Carlos Gustavo Marcante Guerra. Transdisciplinariedade como (re)ligação entre ciência e cultura: da antiga china à informática educativa e musical.

Universidade Federal de Santa Catarina

Mestrado em Educação

1996

Gladis Falavigna. A informática e a disciplina de educação artística no 2o grau.

PUC/RS Mestrado em Educação

1989

Sebastião Gonçalves Feitosa. VÍDEO TOQUE. Uma proposta metodológica para formação continuada a distância em música.

Universidade de Brasília

Mestrado em Educação

1999

Elisabete Maria Garbin. www.identidadesmusicaisjuvenis.com.br. Um estudo dos chats sobre música da internet.

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Doutorado em Educação

2001

Música José Soares de Deus. A virtualidade enativa como manutenção da invenção a partir da utilização das tecnologias Midi e DSP na Educação Musical.

1999

Maria Bernadete Berno Bastos. O educador e o processo de musicalização através de teclados acústico e eletrônico.

1999

Monica Repsold. O computador e a educação musical: transformação ou conservadorismo.

Conserv. Brasileiro de Música

Mestrado em Música

1993

Marcos André Martins Aristides. MUSICON – Uma plataforma construtivista de ensino de música via internet.

Universidade do Rio de Janeiro

Mestrado em Música

2002

Marciel Aparecido Consani. Avaliação de softwares na educação musical: modalidade percepção.

Univ. Est. Paulista Júlio de Mesquita Fº

Mestrado em Música

2003

Cássia Virgínia Coelho de Souza. Programa de Educação Musical a Distância para professores das séries iniciais do ensino fundamental. Regina Cajazeira. Curso Batuta: EaD para Músicos da Filarmônica Minerva.

Universidade Fed. da Bahia

Doutorado em Música

2003

Susana Ester Krüger. Desenvolvimento, testagem e proposta de um roteiro para avaliação de software para educação musical.

Universidade Federal do RS

Mestrado em Música

2000

Outras áreas Daniel Marcondes Gohn. Auto-aprendizagem musical: alternativas tecnológicas.

Universidade de São Paulo

Mestrado em Ciências da Comunicação

2002

Maria Valeria Damas. Educação musical especial na intercomunicação com crianças autistas.

Universidade Metodista de São Paulo

Mestrado em Comunicação Social

1991

Silvia Regina Matos da Silva Boschi. Desenvolvimento de jogos musicais computadorizados para treino de movimentos de crianças com dificuldades motoras.

Universidade de Mogi das Cruzes

Mestrado em Engenharia Biomédica

2003

Anexo 1: Teses e dissertações relacionadas às TIC e educação musical defendidas de 1989 a 2003 (Continuação)

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Anexo 2: Resultados da pesquisa sobre instituições, cursos de música,educação a distância e produção em cursos de mestrado/doutorado9

Legenda: G: graduação (e/ou licenciatura), M: mestrado; D: doutorado; CS: cursos superiores (não especificados) eCA: cursos nas áreas de “competência acadêmica” da instituição (não especificados); Ped.: curso de Pedagogia.

______________________________________________________________________________________________________________

9 Segundo o Mec/SESU, “as IES Credenciadas e Autorizadas para oferta de Cursos de Graduação a Distância, estão tambémautomaticamente Credenciadas para a oferta de Cursos de Pós-Graduação Lato Sensu a Distância”. Portanto, no Anexo 2, asinstituições que oferecem cursos superiores a distância também podem oferecer os de pós-graduação lato sensu, mas o inversonão é permitido.10 O curso de graduação a distância é restrito, e não foram encontrados indicativos que atualmente seja possível ofertar o de pós-graduação lato sensu.11 Conforme informação obtida junto à Capes, os cursos de mestrado dessa instituição não são reconhecidos.

Música EaD Teses/dissertaçõ es sobre TIC e ed.

musical Instituição UF Cidade

Gra

duaç

ão

Mes

trado

Dou

tora

do

Gra

duaç

ão

PG

Lato

sens

u

Nº Unidade Univ. Fed. do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO RJ Rio de Janeiro G M D CS CA Univ. Fed. do Rio Grande do Sul – UFRGS RS Porto Alegre G M D CA 3

1 1

C. Computação Música Educação

Univ. Est. de Campinas – UNICAMP SP Campinas G M D 1 1

E. Elétrica Multimeios

Univ. Fed. da Bahia – UFBA BA Salvador G M D 2 Música Univ. Fed. do Rio de Janeiro – UFRJ RJ Rio de Janeiro G M CS CA 2

1 Eng. Sist. e Comp. Música

Univ. de Brasília – UnB DF Brasília G M CS CA 1 Educação Univ. Fed. de Minas Gerais – UFMG MG B. Horizonte G M CS CA Univ. Est. Paul. Júlio de Mesquita Filho – UNESP SP São Paulo G M 1 Música Univ. Fed. da Paraíba – UFPB PB João Pessoa G M 3 Inform. (Campina Gr.) Univ. Fed. de Goiás – UFG GO Goiânia G M Univ. Est. do Ceará – UECE [e CEFET/Ceará] CE Fortaleza G CS CA 1 C. Computação Univ. Fed. de Alagoas – UFAL AL Maceió G CS CA Licenciatura a Distância Univ. Católica de Salvador – UCSAL BA Salvador G CS CA Univ. Fed. do Espírito Santo – UFES ES Vitória G CS CA Univ. Fed. de Ouro Preto – UFOP MG Ouro Preto G CS CA Univ. Fed. de Mato Grosso do Sul – UFMS MS Campo Grande G CS CA Univ. Fed. de Mato Grosso – UFMT MT Cuiabá G CS CA Univ. do Est. do Pará (ou U. Est. do Pará) – UEPA PA Santarém G CA Univ. Fed. do Pará – UFPA PA Belém G CS CA Faculdade de Artes do Paraná – FAP PR Curitiba G CS CA Univ. Estadual de Maringá – UEM PR Maringá G CS CA Univ. Estadual de Ponta Grossa – UEPG PR Ponta Grossa G CS CA Univ. Fed. de Pelotas – UFPEL RS Pelotas G CS CA Univ. Fed. de Santa Maria – UFSM RS Santa Maria G CS CA Fund. Univ. do Est. de Santa Catarina – UDESC SC Florianópolis G Ped. ?10 Univ. do Contestado – UnC SC Rio Negrinho G CS CA Univ. de São Paulo – USP SP São Paulo e

Ribeirão Preto G CA 2

1 E. Elétrica (SP) C. Comunicação (SP)

Univ. Fed. de Pernambuco – UFPE PE Recife G 1 C. Computação Cons. Br. de Música – C. Univ. – CBM/CEU RJ Rio de Janeiro G M11 3 Música Univ. Fed. de Santa Catarina – UFSC SC Florianópolis 1

1 1

C. Computação Eng. Produção Educação

C. Fed. de Ed. Tecnol. de M. Gerais – CEFET/MG MG B. Horizonte 1 Tecnologia Univ. Católica de Brasília DF Brasília 1 G. Conh. e Tecn. Inf. Pont. Univ. Cat. do Rio Grande do Sul – PUC/RS RS Porto Alegre 1 Educação Univ. Metodista de São Paulo SP São Paulo 1 Comunicação Social Univ. de Mogi das Cruzes SP M. Cruzes 1 Eng. Biométrica Instituto Tecnológico de Aeronáutica SP São José dos

Campos 1 Eng. Eletr. e

Computação

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Grupo de Pesquisa
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Introdução

O professor Naveda (2005), ao citar Sou-za (2001) na epígrafe da introdução de seuinstigante artigo, levanta, a meu ver, um dos

Educação musical: novas ououtras abordagens – novos ou

outros protagonistas

Magali KleberUniversidade Estadual de Londrina (UEL)

[email protected]

Resumo. Este artigo se propõe a dialogar com as idéias expostas por Naveda (2005) acerca dassuas reflexões sobre a inovação em educação musical, partindo de sua análise sobre a produçãocientífica dos cinco últimos anos apresentados na Abem. Optei por destacar, para o debate, reflexõessobre a amplitude do conceito “saber pedagógico-musical” a partir dos argumentos de Souza(2001), Souza et al. (2000) e Kraemer (2000) entendido enquanto um objeto nuclear que contém asdiferentes dimensões e funções citadas pelos autores. Dessa forma, o “saber pedagógico-musical”,produzido na e pela relação entre pessoas e músicas, abre espaços, no cotidiano, para a produçãode novas formas de conhecimento musical, novas formas de apropriação e transmissão, enfimnovas abordagens. A partir dessas premissas, ressalto alguns aspectos da pesquisa que venhorealizando sobre ONGs e a prática de educação musical, destacando que, nesses espaços, oprocesso pedagógico-musical envolve multicontextos constituindo-se em um “fato social total”(Mauss, 2003). Ressalto, ainda, que as formas de aprender música pela e na ação de “musicar”(Small, 1995) incorporam os processos coletivos e intersubjetivos, conduzidos pela performancemusical. O objetivo é oportunizar um debate sobre possíveis abordagens de uma educação musicalque contemple a diversidade do mundo sociocultural implicando a identidade da área e formação doeducador musical preparado para atuar nesses múltiplos contextos.

Palavras-chave: processo pedagógico-musical, projetos sociais e ONGs, performance musical

Abstract. This paper aims at discussing professor Naveda’s (2005) ideas about his reflections oninnovation in music education from the last five year scientific researches presented at BrazilianAssociation of Music Education. For this debate, I propose reflections on the scope of the conceptof “musical pedagogical knowledge” from Souza (2001), Souza et al. (2000) and Kraemer’s (2000)discussion known as nuclear object that has different dimension and functions mentioned by theauthors were selected. Therefore, this knowledge in relations between people and music providesnew ways of musical knowledge, appropriation and transmission. Taking this into account, someaspects from the research I’ve been working in both non-governmental organizations and musiceducation practice are approached, emphasizing that the musical pedagogical process involvesmulti-contexts being a “total social fact” (Mauss, 2003). Moreover, the ways of learning music in andon action of “musicking” (Small, 1995) incorporate the collective, intersubjective and dialogic processesthat are guided by the musical performance encompassing ritual, games, popular entertainment andways of interaction that make the learning process meaningful. The goal is to have a debate aboutpossible approaches to music education and the scope of dimension and functions of musicalpedagogical knowledge implying the educators prepared to work in these multiple contexts.

Keywords: musical-pedagogical process, social projects and NGOs, musical performance

pontos nevrálgicos da discussão sobre os limi-tes epistemológicos da educação musical, hojeno Brasil. Pensar no

KLEBER, Magali. Educação musical: novas ou outras abordagens – novos ou outros protagonistas. Revista da ABEM, Porto Alegre,V. 14, 91-98, mar. 2006.

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[…] campo do saber pedagógico-musical comoabsolutamente aberto, sem fronteiras, mas com horizon-tes, permitindo trânsitos inusitados e inesperados,articulações entre os diversos espaços escolares enão escolares […]. (Souza, 2001, p. 165).1

Como propõe Souza, é realmente um desafioque temos que enfrentar e implica uma ousadia que,somente amparada por uma consistência teórico-metodológica instrumentalizando o olhar e a refle-xão, pode assegurar uma práxis que venha ampliaros contornos epistemológicos da área de educaçãomusical. Entretanto, esses contornos somente se-rão delineados a partir de uma perspectiva que reco-nheça que o saber pedagógico-musical emerge dasinterações e práticas sociais inerentes aos mais di-ferentes contextos da sociedade contemporânea.

Assim, proponho para o debate a discussãosobre o conceito do que seja o “conhecimento peda-gógico-musical”, destacando que a semântica des-se termo composto se reporta a pilares conceituaiscujo entendimento é determinante para o desenvolvi-mento da discussão que se pretende. Um dos atu-ais paradigmas reconhece que o conhecimento “vá-lido” não está restrito ao âmbito do mundo científico,mas que

[…] as práticas sociais alternativas gerarão formas deconhecimento alternativo e não reconhecer estasformas de conhecimento implica deslegitimar as práticassociais que as sustentam, e neste sentido promover aexclusão social dos que a promovam. (Santos, 1999,p. 328).

Podemos perceber que as três principais fon-tes de conhecimento estão, ainda, divorciadas. Oconhecimento científico, o popular e aquele que de-corre da experiência, da prática, não promovem aarticulação necessária para se contemplar uma pro-posta educacional integradora.

A ciência diz o que é ou não é válido e osdemais são, ainda, desconsiderados. Assim, deve-mos procurar métodos e formas que estimulem asubjetividade e a expressão, ouvindo o que os ato-res acham que aprenderam e o que realmente apren-deram. E, assim, desenvolver dinâmicas que ajudema elaboração de toda essa matéria prima, construin-do subsídios muito importantes. A pesquisa e a pro-dução de conhecimento podem, dessa forma, supriressa carência e unir o conhecimento acadêmico àintervenção social, ao transformar os dados colhi-dos em ações sociais concretas. E, ainda, se con-cebermos o “platô educativo como uma área aberta,

temos muito mais a ganhar em termos de criatividadee potencialidades com múltiplas abordagens trans-versais, com profissionais das mais diversas áre-as contribuindo para pensar e construir a educa-ção” (Rivero et al., 2004, p. 11) que demanda es-ses tempos.

E, considerando que vivemos na “sociedadedo conhecimento”, implica reconhecermos que estaé hoje uma “moeda de troca”, um dos principais bensde que o indivíduo, uma instituição ou uma comuni-dade podem possuir. Trata-se de um fator hegemônicona sociedade contemporânea. Vale a pena citar aspalavras de Lévy e Authier (1995, p. 24-25):

Hoje, é sobre o conhecimento que repousam a riquezadas nações e a força das empresas. É por suas compe-tências que os indivíduos adquirem um reconhecimentosocial, um emprego, uma cidadania real […]. Mas osaber não é somente a riqueza primeira do mundocontemporâneo. Vivendo de invenção coletiva, de trans-missão, de interpretação e de partilha, o conhecimentoé um dos lugares em que a solidariedade entre oshomens pode ter mais sentido, um dos elos mais fortesentre os membros de nossa espécie.

Enquanto educadores que somos, temos res-ponsabilidades e compromissos sociais, fazemosparte de um sistema que devemos conhecer parapodermos desafiar, contestar e contribuir, enquantomassa crítica, para propor e tentar em transforma-ções de diferentes ordens, almejando o acesso àeducação de qualidade para todos os cidadãos. En-quanto músicos, temos o comprometimento com acompreensão do objeto estético-musical e seu sig-nificado simbólico e material construído na relaçãosujeito/objeto, impregnado de valores que se cons-troem no contexto de sua produção. Trata-se de umtipo de competência ética e política. Por isso o co-nhecimento pedagógico musical, a meu ver, só podeser pensado enquanto um objeto nuclear cujas di-mensões e funções que orbitam em seu entornoserão determinadas pelas características desse nú-cleo. As posturas e decisões didático-pedagógicas,metodologias, formas de avaliações, posicionamentospolíticos e pedagógicos estão estreitamente relacio-nados com a concepção da natureza desse núcleo.

A pedagogia da música enquanto relaçãoentre pessoa(s) e música(s)

Kraemer (2000) centraliza suas reflexões so-bre a problemática da pesquisa pedagógico-musi-cal, questionando a dificuldade de se construir umateoria para essa área devido às diferentes idéias de

______________________________________________________________________________________________________________

1 Uma abordagem que converge para essa perspectiva é a de Pierre Lévy e Michel Authier (1995), que defendem, em As Árvoresde Conhecimento, uma extensão das ações educativas por todos os segmentos sociais, permeando as relações e abrindohorizontes muito mais amplos, inclusive – e principalmente – através do reconhecimento de saberes tradicionalmente negados pelas“escolas oficias”.

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como se pode executar uma pesquisa. Para ele, aprodução científica está para além de um trabalhometódico cuidadoso; os problemas estão mais rela-cionados com a característica do objeto do que comquestões de ordem metodológica.

Discutindo um pouco mais o texto de Kraemer(2000, p. 51), ressalto que um dos pontos centraisdo desenvolvimento do seu pensamento é a compre-ensão de que “pedagogia da música trata da relaçãoentre pessoa(s) e música(s) e o processo de apro-priação e transmissão das músicas”. Tal compreen-são justifica a argumentação de que esse campoabrange os diferentes espaços em que acontecemas práticas musicais, educacional, formal ou infor-mal, intencional ou ocasional, e, por isso, as açõeseducativas permeiam todos os segmentos sociais.A partir dessa perspectiva o autor levanta a seguintequestão: que dimensões e funções o conhecimentomusical pode abranger?

Kraemer (2000), corroborado por Souza (1996,2001), ao propor a discussão e reflexão sobre asdimensões e funções do conhecimento-pedagógicomusical e suas implicações “músico-históricas, es-tético-musicais, músico-psicológicas, sócio-musi-cais, etnomusicológicas, teórico-musicais e acústi-cas”, parte da premissa que esses são aspectos dopróprio fenômeno/objeto, sem pensá-lo fragmenta-do. Essa abordagem busca, ainda, ao delimitar ocampo epistemológico da educação musical, esta-belecer as conexões interdisciplinares entre as ci-ências humanas e a musicologia, o que dá ao co-nhecimento pedagógico-musical uma peculiaridadeque o destaca da definição de outras disciplinas. Aopropor isso, entendo que o autor busca clarear oslimites e as intersecções da educação musical, en-quanto área de conhecimento específico, mas trans-versalisado por outros campos do conhecimento.

Dessa forma, a importante análise de Naveda(2005) sobre o conjunto de temáticas dos trabalhosapresentados nesses cinco últimos anos nos encon-tros da Abem, revela-se, por um lado, uma significa-tiva fonte sobre as abordagens de pesquisa focali-zando o interesse, as preocupações e a busca de

construção de conhecimento de uma parte dos edu-cadores musicais no Brasil. Por outro lado, dá pistade que, talvez, ainda prevaleça o pensamento frag-mentado em relação ao objeto “conhecimento peda-gógico-musical”.

Creio que essa seria uma questão relevantepara o nosso debate, buscando alinhar esse concei-to a partir de uma perspectiva integradora de educa-ção musical e que abarque a diversidade cultural ine-rente ao processo pedagógico. Uma perspectiva frag-mentada dificulta associarmos nosso trabalho deeducadores com questões prementes e problemáti-cas presentes em nossa sociedade como exclusãoe desigualdade social, violência urbana e falta depolíticas públicas explícitas para apontar horizontespositivos.

Ao reconhecermos a força da diversidade cul-tural2 – tema geral deste encontro – na amplitudeem que ela se apresenta no mundo globalizado, aatuação de nossa prática docente requer um olharabsolutamente circular que transite por “caminhosinusitados e inesperados e articulações entre espa-ços escolares e não-escolares” (Souza, 2001, p. 165).Tal perspectiva pressupõe o fortalecimento das opor-tunidades de aprendizado pela convivência social,pela ampliação do repertório cultural, pela aquisiçãode informações, pelo acesso e uso de tecnologias epelo incentivo à participação na vida pública das co-munidades em que se inserem. Quanto mais articu-lados forem os espaços educativos disponíveis numacomunidade, maiores chances de se alcançar esseobjetivo e atender aos diversos contextos socio-culturais em que o ato de ensinar e aprender estánecessariamente conectado com o cotidiano. Postoisso, há que se assumir que

a aula de música [ou a proposta pedagógico-musical]passa a se orientar não em objetos (na gramática demúsica), e sim, nos alunos, em suas situações, proble-mas e interesses […] procurando questionar diversosconteúdos e relativizar ideais estéticos e valores.(Souza, 2001, p. 39).

Visto assim, o ato pedagógico estará permea-do pela noção de coletividade onde todos nós edu-

______________________________________________________________________________________________________________

2 A respeito da discussão sobre a diversidade cultural no mundo globalizado a Unesco (Organização das Nações Unidas para aEducação, a Ciência e a Cultura) vem elaborando a Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das ExpressõesCulturais. O texto do documento foi votado durante a 33ª Conferência Geral da Unesco, Paris, França, no dia 21 de outubro de 2005.A cultura é entendida como “o complexo dos padrões de comportamento, das crenças, das instituições e doutros valores espirituaise materiais transmitidos coletivamente e característicos de uma sociedade”. O texto, que afirma a diversidade cultural comocaracterística que define a própria humanidade, reconhece a importância dos conhecimentos tradicionais como fonte de riquezamaterial e imaterial a ser preservada e fala da necessidade de medidas de proteção, principalmente em situações onde asexpressões culturais estejam sob a ameaça de extinção. Entre todas as idéias que a convenção defende, porém, a mais importante– porque tem implicações nos acordos comerciais entre países – é a do artigo 18: “Convencidos de que atividades culturais, bense serviços têm natureza tanto econômica quanto cultural, porque são portadoras de identidades, valores e significados e nãodevem, portanto, ser tratadas como dotadas somente de valor comercial […]” (Diversidade cultural..., 2005).

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camos e aprendemos, juntos, os vários aspectos doobjeto música: sua gramática (linguagem, a lógicade suas representações gráficas, textura, etc.), seuvalor estético, histórico, a diversidade de repertó-rios, enfim, as inúmeras possibilidades que seapresentam e se tornam significativas no proces-so pedagógico-musical. Ela não é exclusiva, mas,antes, inclui as diversas possibilidades deperformance musical.

Outro aspecto a ser levantado no texto deNaveda (2005) é o processo de globalização culturalque traz desafios para o ensino da música na atuali-dade, procurando caminhos para ações conjuntas,principalmente em perspectivas midiáticas etecnológicas da educação musical. Essa amplatemática nos reporta aos questionamentos levanta-dos por Souza (2001, p. 46):3 “Como fica o ensino demúsica diante dos novos paradigmas? Para quaisproblemas temos que estar atentos? Que respostasestamos dando?”. Esses questionamentos corrobo-ram as reflexões de Naveda (2005), pontos impor-tantes para esse debate, exigindo um posicionamentoepistemológico, sociopolítico, pedagógico e ético doeducador musical; não há espaço para a neutralidade.

Assim, com tantos focos em questão, Naveda(2005) elabora uma interessante metáfora em que “asedução das janelas abertas da sala de música poronde fitavam os olhares sociológicos destes profes-sores (e dos alunos)” a qual pode, também, ser pen-sada, pelo avesso ou pelo caminho inverso: “a sedu-ção das janelas abertas da sala de música” – talvezporque as portas estejam fechadas – imanta ummovimento dinamizado pelo contextos cotidianodos alunos que faz pular para dentro delas (asjanelas abertas), a “paisagem sonora e tecnologiasmidiáticas” estimulando, e o “interesse destes pes-quisadores para as condições sociais, econômi-cas, gênero, idade, estímulos externos à sala deaula, mídia” (Naveda, 2005) que o olhar socio-cultural, talvez, propicie subsídios consistentespara propostas educativas musicais consideran-do os sujeito e seus contextos.

Creio que uma importante ferramenta que aperspectiva sociocultural da educação musical nosfornece é a possibilidade de aprender a ler as rea-ções da realidade e produzir o conhecimento musi-cal a partir disso. Não se trata, de forma alguma, dedesconsiderar o conhecimento e as formas musi-cais tradicionais, mas, pelo contrário, trata-se deconsiderar a mobilização musical, o fazer e refazerdas tradições musicais, na dinâmica dos movimen-tos sociais. Ressalta-se que isso, em nível de dis-curso e de prática, propicia o experimento de novosprincípios estéticos, criando novos rituais coletivos.Ao observamos os movimentos sociais, podemosconstatar a utilização da expressão artística paracomunicação com grande parte da sociedade queoportuniza o repolitizar da cultura popular e do pró-prio entretenimento. Na música, os movimentos so-ciais vêm propiciando uma renovação, implantandonovos significados e estabelecendo novas formas egêneros estéticos, desafiando, inclusive, categoriasdominantes de mérito artístico, questionando,problematizando, dissolvendo estruturas de avalia-ções e julgamento (Eyerman; Jamison, 1998).

ONGs e educação musical: novos espaços,muitos lugares para aprender e ensinarmúsicas

O Terceiro Setor4 tem se apresentado como adimensão da sociedade em que proliferam os movi-mentos sociais organizados, ONGs e projetos soci-ais onde se observa uma significativa oferta de práti-cas musicais ligadas ao resgate de jovens adoles-centes em situação de exclusão. O trabalho desen-volvido por ONGs tem revelado uma importante liga-ção com a dimensão cultural das comunidades ur-banas estigmatizadas, prevalecendo como objetivosprimordiais o resgate da dignidade humana e o exer-cício da cidadania plena (Kleber, 2003). A cultura évista como um importante meio de reconstrução daidentidade sociocultural, e a música está entre asatividades de maior apelo para a realização de proje-tos sociais, principalmente com os jovens adoles-centes. Constitui-se, assim, objeto de análise da área

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3 Souza destaca e analisa, nesse artigo, cinco fenômenos típicos do processo de globalização que se tornam relevantes para aeducação musical contemporânea: 1) formação de conglomerados internacionais incidindo nos interesses econômicos na políticade difusão e consumo de bens culturais, a música entre os mais visados; 2) linguagem polissêmica, som + imagem + movimento,considerando esses fenômenos como um dos mais importantes no âmbito técnico, político, cultural e econômico do século XX,propondo novas formas de interação, a informação e produção e disseminação do conhecimento musical; 3) estabelecimento denovas relações de espaço-tempo onde a veiculação de dados e informações em tempo real e de alcance geográfico imensuráveisincide significativamente na volatilidade dos conteúdos; 4) reordenação de espaço e tempo através de redes virtuais promovendouma interatividade tecnológica, social, política e ideológica, capaz de mobilizar processos determinantes de várias ordens; 5)uniformização de produtos, hábitos e gostos, informação e identidade que, apesar de ter intensidade e sentido desiguais nasdiferentes sociedades, promove a mundialização de padrões de consumo e estilos, não excluindo, entretanto, a diversidade cultural(Souza et al., 2000, p. 45-55).4 A denominação Terceiro Setor refere-se à sociedade civil organizada e o termo faz contraponto com o Estado, considerado oPrimeiro Setor, e o mercado, considerado o Segundo Setor.

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de educação musical situar o conteúdo e o sentidoda prática musical da cultura juvenil, particularmen-te dos jovens submetidos a um processo de exclu-são, que extrapola questões de natureza teórica. Acompreensão deve ser construída a partir da pesqui-sa empírica baseada em um trabalho de campo rigo-roso e, portanto, em contato direto com essa novarealidade que se nos apresenta.

As ONGs, de uma maneira geral, são cam-pos emergentes de novos perfis profissionais e ca-racterizam-se por serem organizações que trabalhamcom conteúdos flexíveis, ancorados em demandasemergenciais dos sujeitos e de suas comunidades.Por serem voláteis, enquanto instituição, as açõessocioculturais são constantemente redefinidas, pró-ximas às demandas da vida prática.

Exponho, agora, breves aspectos da pesqui-sa5 que venho desenvolvendo sobre projetos sociaisem ONGs e a prática de educação musical, cujocampo empírico são: a Associação Meninos doMorumbi, na cidade de São Paulo e o Projeto VillaLobinhos, no Rio de Janeiro.

As ONGs, em estudo, foram se constituindoe se instituindo como espaços legitimados para setrabalhar com o ensino e aprendizagem de música,a partir de propostas pedagógicas explícitas de seuscoordenadores – músicos e educadores musicais –no sentido de realizarem um trabalho socioeducativo-musical. A intencionalidade de se promover uma edu-cação musical com o objetivo social é defendida peloscoordenadores de ambas as ONGs, os quais rejei-tam uma abordagem assistencialista ou paternalista.Isso implica e denota a necessidade de se pensarna formação do educador musical que responda pelademanda de se trabalhar nesses espaços, cujos jo-vens adolescentes e crianças já vêm estigmatiza-dos pelo sistema social.

Os dois depoimentos abaixo expõem a con-cepção do trabalho sociomusical que ancora o tra-balho das duas ONGs em estudo, revelando umapostura aberta que considera o mundo social dosatores sociais e os aspectos múltiplos de um traba-lho socioeducativo-musical:

Olha, a proposta e a concepção do projeto era uma só.Quer dizer, nós vamos ensinar as crianças e vamos

aprender com elas. Desde o começo, avisei a todos osprofessores, avisei ao João Moreira Sales, avisei atodo mundo que participou, não existe uma escola feita.A escola, pra mim, ela nasce, entende, na hora quevocê percebe quem está vindo pra escola e que vocêtenha humildade de não… vamos ensinar isso… não!Eu vou ensinar alguma coisa que você vai me trazer alenha, porque sem a sua lenha eu não faço a fogueira.Eu acho que isso foi o princípio fundamental da escolae é por isso […] ela caminha em cima desse princípio.(Turíbio Santos, diretor do Projeto Villa Lobinhos, em30/06/04).

[…] Então, teria de ser muito lúdico, muito prazeroso,um tamanho da aula que não fosse over… algo queestivesse permeado de outros atrativos. Então nãopoderia ser só ensino de música, tinha que ter a paradapara tomar um lanche, tinha que ter o vídeo, tinha quemostrar instrumentos, tinha que tocar pra eles, tinhaque tocar com eles e então na aula sempre teve essacoisa de ter um guia […]. (Flávio Pimenta, coordenadorda Associação Meninos do Morumbi, em 10/11/2004).

As duas ONGs são dois cenários diferencia-dos de ensino e aprendizagem musical que têm comoeixo comum o objetivo de congregar jovens adoles-centes, atingidos pela desigualdade social, em situ-ação de exclusão ou restrição ao acesso de bensmateriais e simbólicos, considerados para exercícioda cidadania plena. A música é vista como o instru-mento capaz de promover uma transformação social.

A etnometodologia6 foi utilizada enquanto su-porte conceitual na pesquisa de campo para instru-mentalizar o olhar para as práticas musicais enquantoum fenômeno social onde as atividades e circuns-tâncias práticas e o raciocínio sociológico práticosão considerados temas de estudo empírico. Impor-ta aqui atentar para como se constrói o conhecimentomusical na dinâmica cotidiana dos atores sociais(Coulon, 1995, p. 16). Assim, a coleta exigiu um tem-po necessário para que essas relações se estabele-cessem, dando-se ênfase a uma abordagemmicrossociológica no trabalho de campo.

ONGs e o processo pedagógico-musical: umfato social total

Analisar o processo pedagógico-musical de-senvolvido nesses espaços foi o principal foco deobservação e a questão central da pesquisa. A cole-ta de dados me conduziu a uma intensa reflexão decomo olhar, entender e penetrar na complexidadedaquele campo empírico. Assim, optei por tratar o

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5 Projetos Sociais em ONGs e a Prática de Educação Musical: Dois Estudos de Caso, tese de doutorado desenvolvida no Programade Pós-Graduação em Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, orientada pela professora doutora Jusamara Souza.6 Harold Garfinkel (1984) cunhou o termo “etnometodologia” para identificar a abordagem que trata de como os indivíduos secomunicam enquanto interagem, ocupando-se da maneira como os atores descrevem, criticam e idealizam situações específicas edão sentido ao mundo social. A realidade, assim vista, não é estável e sim criada por situações específicas envolvendo comunicaçãointerpessoal. A linguagem tem lugar privilegiado na investigação daquilo que é dito e do não dito na comunicação. Na linha dointeracionismo simbólico inaugurado por Mead, também para a etnometodologia o foco da análise é a atividade humana por meio daqual os agentes elaboram linhas de conduta em situações concretas.

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processo pedagógico-musical, envolvendo multicon-textos, como um “fato social “total”,7 conceito cu-nhado por Mauss (2003), onde não há rupturas nemantagonismos entre o social e individual, mas bus-ca-se recompor o todo. Esse conceito foi tomadocomo um axioma, uma premissa para a análise doprocesso pedagógico-musical das ONGs em ques-tão, entendido como um fenômeno social imerso nacomplexidade das diferentes dimensões da socie-dade contemporânea urbana, interligadas e interagin-do simultaneamente nos seus diversos planos: reli-gioso, jurídico, moral, econômico, estético e morfoló-gico, manifestados nas representações sociais(Mauss, 2003, p. 187). A partir desses pressupostoso processo pedagógico-musical é entendido com umaprática social e culturalmente constituída (Shepherd;Wicke, 1997), cujo caráter é visto como formas sim-bólicas e culturais manifestadas individual e coleti-vamente. Essa perspectiva vem convergir para a ar-gumentação de Kraemer (2000), para quem a peda-gogia da música – fruto da relação entre pessoas emúsicas – ao se ocupar com a produção e transmis-são do conhecimento musical deve conduzir asações de compreender e interpretar, descrever e es-clarecer, conscientizar e transformar.

A pesquisa de campo desvelou-me diferentescontextos de análise no movimento de aprender aler a dinâmica da realidade complexa da gestão dasONGs, buscando produzir conhecimento, costuran-do o saber científico, o saber popular e a prática so-cial. Assim, procurei olhar o objeto de pesquisa – oprocesso pedagógico-musical desenvolvido nasONGs – sob quatro contextos: 1) institucional – dasdimensões burocrática, jurídica, disciplinar,morfológica; 2) histórico, dimensão das históriascontadas pelos atores sociais, protagonistas da cons-trução da ONG enquanto espaço físico, material esimbólico; 3) sócio-cultural, dimensão do espaço decirculação dos valores simbólicos, dos encontros,das relações intersubjetivas e interinstitucionais, dosconflitos, das negociações; 4) contexto de ensino eaprendizagem musical, focalizando como, onde,porque, para que se aprendia e se ensinava músicaali. Todos esses aspectos se constituíram como um“fato social total”.

ONGs e a produção de conhecimento:contexto, processo e interesse

Outro aspecto que destaco envolve a compre-ensão da produção de conhecimento nessas ONGs

ancorada na abordagem denominada de “práxiscognitiva” (Eyerman; Jamison, 1998, p. 24), a qualfoca a atenção nas implicações das idéias e práti-cas provenientes dos movimentos sociais na cons-trução da identidade coletiva e individual dos atoressociais. Esse processo gera forças sociopolíticascapazes de abrir espaços para a produção de novasformas de conhecimento pedagógico, estético, polí-tico, institucional. Três conceitos são centrais nes-sa abordagem de produção de conhecimento: con-texto, processo e interesses de conhecimento. Oscontextos de espaço e tempo são produtos especí-ficos de determinadas condições sociopolíticas, sen-do eminentemente dinâmicos, podendo elaborar so-luções para problemas inusitados, inerentes ao uni-verso das ONGs. Assim, essas não podem ser re-duzidas à idéia de organizações ou instituições, navisão tradicional, sendo que seu caráter de flutuaçãoinstável e de mobilidade instaura processos em cons-tante formação, abertos à experimentação, arenapara novas práticas de ações sociais, culturais ecognitivas.

A produção de saberes nas ONGs, conside-rando seu caráter mutatis mutandis, pode articularnovos interesses de conhecimentos, novas suposi-ções de visão de mundo, inovações organizacionais,e, algumas vezes, novas abordagens para a ciência.Como práxis cognitiva, a música e outras formas deatividade cultural contribuem para as idéias que osmovimentos sociais e suas derivações – ONGs –oferecem e criam uma oposição na ordem jáestabelecida na sociedade.

Em relação às formas de aprender música, aprevalência de processos coletivos, intersubjetivos edialógicos no ensino e aprendizagem musical mos-trou-se evidente e determinante, conduzidos pela ena ação de “musicar” (Small, 1995). A performancemusical se mostrou como eixo do processo de ensi-no e aprendizagem musical abrangendo rituais, jo-gos, entretenimento popular e formas de interaçãoque tornam o aprendizado significativo. Mas o quecaracteriza o processo como “fato social total” é aconstatação de práticas complementares presentesno cotidiano das ONGs, como a construção do sen-tido de pertencimento através da convivênciaprazerosa com os colegas e amigos, dos cuidadossociais que abrangeram desde questões básicascomo higiene e alimentação até o acompanhamentopsicológico envolvendo, inclusive, as famílias, atra-vés de programas específicos.

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7 Feld (1984) utiliza esse conceito para analisar a as estruturas sonoras na sociedade Kaluli, na Nova Guiné, e Gonçalves (2003)também utiliza esse conceito para análise dos projetos sociais desenvolvidos na Estação Primeira da Mangueira com jovensadolescentes e crianças.

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As oportunidades dos jovens de realizaremperformances musicais transitando por diferentesespaços culturais como teatros – espaços sacra-lizados para repertórios canônicos e celebridades –escolas, empresas, instituições, representando aONG, revelaram, através de seus depoimentos, umsentido positivo na construção da identidade epertencimento a um grupo social reconhecido pelotrabalho artístico que realizam. Assim, multiplicam-se as iniciativas comunitárias e ampliam-se as ne-cessidades de recursos e competências necessári-os para a gestão dessa nova configuração que pos-sui, como já destaquei, dimensões de ordem social,jurídica, econômica, cultural e, sobretudo, ética.

A compreensão dos trabalhos sociomusicaiscomo os realizados pelas ONGs carece de que sepense nos novos paradigmas para a educação mu-sical, considerando que traz, necessária e explicita-mente para a arena de atuação pedagógica, o com-promisso com a ação do exercício da cidadania, in-corporando os conflitos sociais refletidos na precari-edade social, emocional e econômica da populaçãomais pauperizada. Exige, portanto, posicionamento,escolhas e capacidade de argumentação, compe-tências técnica, política e pedagógica próprias doeducador social, nas diferentes áreas do conheci-mento. Há que buscar maneiras de se ensinar e dese aprender que contemplem o inusitado e o inespe-rado e se propiciem uma práxis dialógica em que

[…] quem ensina, aprende ao ensinar e quem aprendeensina ao aprender… ensinar inexiste sem aprender evice-versa e foi aprendendo socialmente que,historicamente, homens e mulheres descobriram queera possível ensinar […] e perceberam que era possível– e depois, preciso – trabalhar maneiras, caminhos,

métodos de ensinar. (Freire,1996, p. 25-26).

Há, ainda, que se tentar dissolver a antinomiaONGs e escolas. Deixar de lado a visão maniqueístaque coloca as ONGs de um lado e escolas de outro.O que importa é que possa se garantir que se pro-mova nas ONGs uma educação intencional e nãoocasional, dado ao seu, ainda, frágil caráterinstitucional. Como destaca Cortella (2003, p. 99):“ela (a ONG) não pode abrir mão de passar conteú-dos fundamentais para o enfrentamento do mundo”.É preciso se promover uma forma articulada e per-mutar experiências, “ser capaz de olhar o outro comoo outro, de ter humildade pedagógica de aprendercom o outro e ensinar o outro” (Cortella, 2003, p. 101).

A questão da exclusão social no Brasil, de-corrente de uma das maiores desigualdades sociaisdo mundo, perdendo para Paraguai, Chile e Argenti-na, incompatível, portanto, com os índices de de-senvolvimento econômico do país, não pode maisficar à margem de qualquer abordagem educativa.Catalisando os quatro pilares da educação propostopor Delors (1999) – já citados por Tourinho no seutexto para esse encontro – podemos mixar a pers-pectiva de Paulo Freire (1996), pensando em umaarticulação dessas ações e dimensões do conheci-mento pedagógico-musical: aprender a conhecer li-gado à dimensão epistemológica; aprender a fazerligado à dimensão pedagógica, aprender a conviverligado à dimensão sociopolítica e aprender a ser li-gado à dimensão ética. Vista assim, a educaçãomusical tem possibilidades de gerar um processodialético que se humaniza à medida que os atoressociais têm possibilidades de intervir e se reconhe-cer nos processos e decisões sociais e políticos.

Referências

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Recebido em 02/03/2006

Aprovado em 15/03/2006

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O texto-base para o Fórum de Debate III– Educação Musical e Novas Abordagens –, deLuiz Alberto Bavaresco de Naveda (2005, p. 3),com uma maneira de enfocar muito interessan-te, apresenta um levantamento da produção re-gistrada dos encontros da Abem, nos últimoscinco anos, observando “vestígios de onde asações inovadoras não estariam tão fluentes e o

Conhecimento pedagógico-musical, tecnologias e novas

abordagens na educação musical

Cássia Virgínia Coelho de SouzaUniversidade Federal de Mato Grosso (UFMT)

[email protected]

Resumo. O texto destaca algumas implicações sobre o conhecimento pedagógico-musical e sobrea relação entre tecnologias e área de atuação, temas extraídos do texto de Luiz Alberto Bavarescode Naveda, apresentado no XIV Encontro Anual da Abem. As reflexões propostas contemplam adicotomia existente nos cursos de licenciatura advinda da divisão em disciplinas – específicas demúsica e pedagógicas. Também discutem a noção de tecnologia num sentido amplo e no sentido maisusual, como tecnologia informacional, ainda não plenamente utilizada pelos educadores musicais ealunos. Apontam a educação musical a distância como um sistema que depende da abordagemeducacional para aproximar professor e alunos do mesmo modo que a educação presencial. Aofinal, uma experiência realizada em uma pesquisa sobre um programa de educação musical adistância é relatada, mostrando que novas abordagens na educação musical podem estar maisrelacionadas à pesquisa e à democratização da educação em todos os níveis.

Palavras-chave: conhecimento pedagógico musical, tecnologias, novas abordagens

Abstract. This text emphasizes some implications about the musical and pedagogical knowledgeand the relation of technologies with the professional area, both themes of interest of Luiz AlbertoBavaresco de Naveda’s paper. The critique contemplates the present dichotomy of the undergraduatemusic teaching courses as a result of the division between music-oriented courses and pedagogical-oriented courses. It also discusses the notion of technology in general or in its strict sense asinformation technology not fully employed by music educators and students. Besides this, it stressesthe distance music education as a system that depends on its educational approach to approachteacher and students in the same way as in face-to-face education. Finally, an experience carriedout as part of a research about a program of distance music education is described arguing that newapproaches in music education can be related to research and democratization of education in alllevels.

Keywords: musical pedagogical knowledge, technologies, new approaches

cotidiano pedagógico-musical não estaria apon-tando reflexão e criatividade” (Naveda, 2005, p.2). A iniciativa inédita merece destaque por fa-zer, conforme o autor, “um rascunho aproxima-do das concentrações temáticas” do que temsido discutido nos encontros anuais da associ-ação, o que considero de extrema importânciapara a área de educação musical.

SOUZA, Cássia Virgínia Coelho de. Conhecimento pedagógico-musical, tecnologias e novas abordagens na educação musical.Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 14, 99-108, mar. 2006.

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A partir desse trabalho é possível verificar afreqüência de ocorrência e as ausências de focosnas ações e reflexões dos profissionais da área e,com isso, fazer, como Naveda, uma análise da situ-ação dos projetos que têm sido desenvolvidos nopaís. É possível, também, observar a abrangênciados públicos-alvos/sujeitos dos trabalhos da Abem,desde crianças pequenas até profissionais da músi-ca e da educação musical. Esses fatos apontampara muitos tipos de ações em desenvolvimento e apossibilidade de expandi-las nas instituições esco-lares e não escolares, assim como demonstra aAbem como uma associação que cresceu junto dosinteresses dos educadores, comprometida com osdiversos níveis de ensino e formas de aprendizagem.

O texto de Naveda (2005) nos revela váriasquestões sobre educação musical e novas aborda-gens, entre as quais destaco algumas implicaçõessobre o conhecimento pedagógico-musical e sobrea relação entre tecnologias e área de atuação. Porisso decidi fazer neste trabalho considerações quesão desdobramentos dentro desses temas, que es-tão inseridas no conjunto de condições que envol-vem a minha experiência, e que, portanto, podemnão cumprir um objetivo de generalização, mas, es-pero, podem estimular reflexões. Concluo levandoem conta as problemáticas que levanto no texto,concordando com Naveda (2005, p. 18) que é ne-cessário utilizar os meios e “planejar nossos proje-tos, permeá-los de valores, e realizá-los sem discernirinterfaces com nossas práticas”.

Conhecimento pedagógico e musical

Enquanto pesquisadora da área de educaçãomusical, enquanto professora de três licenciaturastenho refletido, inclusive junto a colegas e alunossobre a problemática do ensino de música, de formageral, em muitos campos de atuação, mas não te-nho encontrado muitos avanços, muitas saídas paraa situação do ensino de música na escola básicaem minha cidade. Com isso, tenho que concordarcom a frase de Gimeno Sacristán (2002, p. 81), quediz: “os professores [de educação básica] trabalhamenquanto nós [formadores de professores] fazemosdiscursos sobre eles”. Aquele autor ressalta que,embora todos sejamos professores, a nossa ativida-de na universidade é bem diferente da atividade da

escola básica, nossas relações de poder, nossos“preços” e nosso status e, principalmente, nossomodo de relacionamento com o conhecimento e asociedade são outros.

Diante das condições de trabalho dos profes-sores da escola básica, de salários baixos, de umacultura escolar tão “viciada”1 (nesse sentido com al-gumas similaridades com a universitária), nós fala-mos muito dos professores, de sua formação, masainda não conseguimos ajudá-los a pensar e fazerpráticas de ensino de música muito diferentes; pare-ce que não conseguimos propiciar novas abordagenspara a aula de Arte. Coloco a música inserida naaula de Arte porque são poucas as possibilidadesdo ensino de música como disciplina autônoma docurrículo da escola básica, e esse, também, é umproblema, mas que não será destaque neste texto.Só vou lembrar, como afirma Penna (2003, p. 76),que “não há diferenças significativas entre a matériaescolar Educação Artística e a atual Arte quanto auma garantia real de presença do ensino de músicana educação básica”.

Na verdade, o sistema escolar ainda não as-sumiu uma outra visão do ensino de Arte, como, tam-bém, ainda não compreendeu a importância da mú-sica como uma forma de conhecimento significativopara a formação geral dos estudantes. Os professo-res da educação básica se deparam com uma esco-la autoritária, que define o que e como devem traba-lhar, que lhes impõe inúmeros empecilhos para atu-ar com uma rotina de trabalho produtiva e efetiva, ecom isso acabam não tendo certeza do valor de suaspráticas, da importância de seus trabalhos para aformação de seus alunos, num processo de grandeautodesvalorização. As políticas educacionais já seimpuseram de tal forma na educação básica, que ovalor do ensino de Arte, do conhecimento em músi-ca, especificamente, se tornou nulo no passado re-cente, e agora, por mais que alguns segmentos seempenhem em transformar a situação, o sistemaescolar não consegue abrir-se para formas diferenci-adas de trabalho na escola, não consegue sustentaras propostas oficiais (especificamente os PCN eReferenciais Curriculares), não consegue interferir deforma mais efetiva em outras práticas sociais caren-tes de atenção. Nesse sentido é bom observar comonossas práticas de formação na universidade têm

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1 Dentre os “vícios” da cultura escolar podem ser destacados: o baixo incentivo para a leitura, conseqüentemente para a atualizaçãoreflexiva mais aprofundada; a separação do conhecimento em áreas de maior e menor importância para os estudantes; o simplesreconhecimento, mas não uma necessária conscientização, das múltiplas formas de aprender e da existência de diferentes tipos deconhecimentos; a falta de motivação de uma grande parte dos professores e dos estudantes para o ato de buscar pelo novo e deaprender por si; a preferência pelo formato de aula com a postura de auditório – platéia e palestrante; a avaliação como forma deprogressão no ensino e, portanto, de coerção na participação das atividades escolares; a utilização da música com forte predominânciadas funções de entretenimento, instrumento didático e reforço das normas sociais.

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influenciado nas decisões relacionadas com a músi-ca na escola básica, quanto os professores daquelesegmento encontram-se no meio das contradiçõesentre universidade e escola e quanto ainda carece-mos de novas abordagens.

Enquanto educadora musical que teve forma-ção profissional inicial em um bacharelado em Músi-ca, quero refletir um pouco sobre a licenciatura. Res-salto que o fato de alguns professores da licenciatu-ra não se considerarem educadores musicais por-que não se motivam pelos fundamentos que regemas práticas pedagógicas, não se interessam por dis-cutir e trabalhar as questões relacionadas com aeducação nos sentidos epistemológicos, didáticos,históricos e sociológicos, não lhes tira a importantereferência de serem educadores musicais, não sópor estarem atuando profissionalmente como profes-sores, como também, e principalmente, por esta-rem influenciando pessoas e intervindo nos sistemassociais, legitimando práticas e favorecendo políticassobre música e educação.

A dicotomia existente nos cursos de licencia-tura advinda da divisão em disciplinas – específicasde música e pedagógicas – tem acentuado a proble-mática da nossa divisão de trabalho – músicos eeducadores musicais –, o que, em meu entender,ajuda a manter a situação da música na escola bá-sica e influencia na formação social de concepçõese de valores sobre educação musical. Dadas as ca-racterísticas do trabalho de professores, as condi-ções que lhes oferece o sistema escolar e, princi-palmente, as formas de carreira e de remuneração,os profissionais que se envolvem com a educaçãomusical ficam à margem das profissões intelectuaisrelacionadas com a música por não serem conside-rados pelos pares de outras áreas (ou subáreas) osmelhores produtos do sistema artístico-musical. Aafirmação de Travassos (2005, p. 17) sobre uma li-cenciatura específica, mas que pode se entendida,amplamente, para as outras licenciaturas, explicabem este fenômeno.

A licenciatura em Educação Musical tem status ambíguo.[…] padece dos efeitos combinados da menordificuldade de acesso e do baixo status do professorde música, associado ao baixo status de sua clientela(crianças e jovens sem perspectiva imediata de carreiramusical – “musicalizados” que não serão “músicos”).Quem se candidata a uma carreira mais próxima àformação musical encarada como musicalizaçãouniversal e democrática também fica mais distante da“música”. Musicalizar amplamente entra em conflito coma meritocracia dos mundos artísticos, com adesigualdade naturalizada pela crença nos dotesmusicais desigualmente distribuídos e com a aposta naroda da fortuna que conduz, quiçá, ao estrelato.

As questões que permeiam as práticas dosprofessores de música na escola básica não inte-ressam aos formadores que trabalham nas discipli-nas diretamente relacionadas com a música na li-cenciatura. É como se o ato de ensinar, a ação deser professor estivesse garantida somente pelossaberes de música do indivíduo, como se caminhan-do nessa perspectiva a motivação, a aprendizagemmusical significativa e as questões sócio-pedagógi-cas que envolvem o ensino fossem alcançadas eestivessem asseguradas, independentemente deoutros fatores. Não resta dúvida de que um profes-sor com qualidades no saber fazer música tem mui-to mais probabilidades de alcançar suas metas noconhecimento dos alunos, mas na situação sobre aque reflito aqui, preocupa-me o distanciamento en-tre as várias atividades existentes no currículo dalicenciatura, que tem como principal objetivo a for-mação de professores de música, e as práticas deensino de música, na escola básica e na sociedade,em geral, que ficam muito distanciadas das práticasde ensino de música na universidade. Voltando a ci-tar Gimeno Sacristán (2002, p. 85), ressalto que atu-amos como pensamos, mas não podemos esque-cer que os conteúdos de nosso pensamento não sãoa mesma coisa que os conteúdos da ciência: “Aindaque o pensamento não seja a ciência, pode-se pen-sar através da ciência, ela pode servir para pensar”;o autor continua: “o grande fracasso da formação deprofessores está em que a ciência que lhes damosnão lhes serve para pensar”.

Quero com isso interrogar sobre a função so-cial do professor universitário, como profissional damúsica e da educação musical ativo, reflexivo e trans-formador. Se por um lado temos um docente demúsica que não se interessa em refletir sobre osconhecimentos pedagógicos, sabemos que, por ou-tro lado, nós, que deliberadamente nos denomina-mos de educadores musicais, temos investido nes-ses conhecimentos e, talvez, esquecido do papelprimordial da música na prática pedagógica dos pro-fessores que estamos formando. Em minha opinião,precisamos investir mais na reflexão-ação de nos-sas próprias práticas, para encontrarmos novas abor-dagens e atingirmos de maneira mais equilibrada (eeficaz) os conhecimentos pedagógicos-musicais doprofessor de música, em qualquer nível de ensino.Talvez nossa forma de entender o ensino de músicaseja o principal enfoque para tratar a educação mu-sical; este tipo de investida já é, por si, uma novaabordagem.

Como nos afirma Lima (2003, p. 85), não se-rão regras e leis que resolverão os maiores proble-mas da educação musical, mas

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enquanto o ensino musical não for pensado de baixopara cima, ou seja, a partir das suas bases, toda alegislação pedagógica, seja ela a mais inovadorapossível, será superficial e insatisfatória.Especificidade, habilitação, compreensão de linguagemformação continuada, capacitação, são os requisitosprincipais para a formação de um profissional integradoao sistema de ensino previsto na LDB no 9394/94 e aosdemais ordenamentos existentes ou que futuramentevenham a ser criados. Não basta a lei. Um bomordenamento legislativo para obter sustentação exigea inclusão e a integração de ações e vivências dosseus educadores, das instituições, dos músicos, dasentidades de classe e das políticas de ensino, paraque o sentido real da educação musical seja atingido,propiciando-lhe uma dimensão funcional e umaaplicabilidade social.

Tecnologias e educação musical

A outra questão que destaco nesta oportuni-dade é a afirmação de Naveda: “Tradição e tecnologianão estão em posições opostas, elas são comple-mentares.”; certamente que o autor citou sua visãoampla de tecnologia, mas decidiu apoiar-se numaposição que dá sentido à tecnologia através dos su-portes tecnológicos, principalmente, centrados natecnologia informacional, como afirma, porque verifi-cou a importância de “uma discussão que tentassedissolver as fronteiras entre prática pedagógico-musi-cal e tecnologia informacional” (Naveda, 2005, p. 18).

Mesmo sabendo dessa opção, quero lembrarque tecnologia é uma palavra, relativamente nova,que representa um domínio do conhecimento huma-no que tem se estendido por milhões de anos. Abase desse conhecimento iniciada com as técnicasde fazer fogo, de cortar pedras, de formatar utensíli-os, de construir armas, de instalar armadilhas, deelaborar pinturas junto aos relevos das cavernas nosrevela com clareza que o ser humano está em cons-tante movimento de conservação e de superação desuas práticas.

Indo ao máximo da realização de uma ação,conforme ela é tida pelo hábito e pelo costume, ob-tendo as respostas possíveis para uma determinadasituação, a tendência humana é considerar algunsprocedimentos e modos de sentir e pensar sobreeles como formas de relacionamento com a açãoque necessitam ser preservadas. Por outro lado, oaumento constante de informação, a vontade de co-nhecer e de explorar o desconhecido e o novo, odesejo de encontrar o diferente, o necessário, o efi-ciente, o eficaz, também proporcionam a produçãode uma outra maneira de realizar a ação ou acharuma solução para um problema detectado, quasesempre, desenvolvida a partir da forma habitual. Issonão quer dizer que somente o sentido de permanên-cia predomine ou que há um movimento do conheci-

mento, contínuo ou evolutivo, sempre. Não é possí-vel avaliar benefícios e problemas da forma de reali-zar a ação e de todo o conhecimento daí provenientesem considerar a dinâmica e a inter-relação daquelasituação na sociedade e no momento histórico emque está inserida.

Dessa forma é oportuno ressaltar a afirmaçãode Naveda (2005) da complementaridade entre tradi-ção e tecnologia. O que parece um pouco problemá-tica, e aqui, lembrando que o autor optou por fazersuas reflexões centradas no que chama detecnologia informacional, é a certeza que ao “enten-der e se utilizar dos suportes tecnológicos domina-mos os trânsitos de conteúdos, apropriamo-nos deuma maneira prática das possibilidades amplas denossa atuação pedagógica, da renovação das nos-sas convicções, tradições e inventividade” (Naveda,2005, p. 18).

Com essa frase fica parecendo que a ausên-cia nos documentos da Abem de projetos pedagógi-co-musicais relacionados com as novas tecnologias– as tecnologias da informação e comunicação (TIC)– implica a falta de domínio sobre os conteúdos, delimitação da atuação pedagógica. O fato de, em nos-so contexto brasileiro, em nossos diferentes brasis,as TIC, chamadas por Naveda de tecnologiainformacional, ainda não serem plenamente utiliza-das pelos educadores, não quer dizer que exista umarelação direta entre entendimento e utilização dossuportes com uma prática pedagógico-musical dequalidade ou que não haja novas abordagens na edu-cação musical que está sendo divulgada pela asso-ciação. Discordo, também, que a “reação (ou o queem certos momentos aparenta ser uma “tecnofobia”)gerada por esta transição agressiva na base de nos-sa própria inteligência” (Naveda, 2005, p. 12) seja,simplesmente, um desejo de ignorar as TIC, que temcomo fundamento a dificuldade de relacionamentocom os computadores.

Como certifica o autor há em nosso país ummovimento de crescimento das ações de inclusãodigital. As pessoas até têm acesso às máquinas eeu acredito que possam aprender a manipulá-las comcerta facilidade. Os celulares estão possibilitando averificação que a aquisição é possível e que suamanipulação pode ser aprendida rapidamente. Osreceios sentidos em relação ao computador já nãosão tão intensos como antes, talvez nem sejam sig-nificativos. Sem bases científicas faço essa afirma-ção tomando como referência a observação da gran-de quantidade de jovens e, também, de adultos quese relacionam com as TIC sem nenhum problema.Havendo um acesso, mesmo que relativo, o senti-

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mento negativo, o medo fica para trás rapidamente,tal como a maioria dos sentidos e significados quedão forma à vida na sociedade hoje, logo são incluí-dos como coisa do passado; a questão está maisrelacionada com a forma social como as tecnologiassão incluídas nas vidas das pessoas.

Em termos de população brasileira em geral,e aqui voltando ao foco da educação básica, públicapela condição desta ser obrigação do Estado, háuma grande maioria de alunos e professores, per-tencentes a classes de baixa renda, que vive numasituação diferente. Para estas pessoas a exclusãoem relação às TIC persiste pelos ônus financeiro e,também, pedagógico e temporal. As despesas doacesso discado à Internet ou o alto custo das cone-xões rápidas, a falta de controle e manutenção dasmáquinas nas instituições públicas, a ausência deobjetivos educacionais que promovam uma apren-dizagem significativa com o computador, a pulve-rização constante de propostas dos “amigos daescola”, ou seja, dos projetos externos que, entreoutras “inclusões”, oferecem aulas de informática,dificilmente apontam para um trabalho efetivo eduradouro com as TIC.

Estas, para atuarem como instrumentos deprodução de conhecimento, para assumirem o pa-pel transformador proposto no texto de Naveda (2005)precisam de professores e de escolas que saibamproduzir conhecimento. No que diz respeito ao cam-po da educação musical, o professor que está naescola básica também está comprometido com assuas funções sociais da mesma maneira que o pro-fessor de outras áreas. Por isso precisa atuar deuma forma mais consistente, que não sustente umaconcepção de música somente por um prisma, sejade maneira tão comum, funcional e sem valor ou, nooposto, tão preocupada com leitura e técnica, des-comprometida com a construção do conhecimentomusical num sentido amplo, dos seus alunos espe-cíficos que estão inseridos numa determinada soci-edade. Assumir qualquer uma das duas posiçõestambém é uma atitude de exclusão, pois dificilmen-te irá gerar uma educação musical que promovamelhores condições de participação cultural e políti-ca na sociedade. O professor que não consegueconstruir sua prática musical de uma maneira refle-xiva e crítica provocando mudanças nas condições

sociais da atividade musical, não consegue enten-der e utilizar de forma adequada os suportestecnológicos. Estes não nos fazem mais qualifi-cados a não ser que tenhamos o conhecimentoem nosso poder e, naturalmente, os suportes emnosso alcance. Tal como afirmam Sampaio e Lei-te (2000, p. 100),

O conceito de alfabetização tecnológica do professorenvolve o domínio contínuo e crescente das tecnologiasque estão na escola e na sociedade, mediante orelacionamento crítico com elas. Este domínio se traduzem uma percepção do papel das tecnologias naorganização do mundo atual – no que se refere aaspectos locais e globais – e na capacidade doprofessor em lidar com essas diversas tecnologias,interpretando sua linguagem e criando novas formasde expressão, além de distinguir como, quando e porque são importantes e devem ser utilizadas no processoeducativo.

Transformação do conhecimento e propostapedagógica

A relação entre novas tecnologias da informa-ção e comunicação e educação, atualmente, confi-gura-se com um vínculo muito forte entre elas, atri-buído à educação a distância. Pelo senso comum,esta implica, necessariamente, a utilização das TIC.Como neste texto estou tratando da educação es-colar, a educação a distância a que me refiro é amodalidade de educação que tem como caracterís-tica principal a distância física entre professor e alu-no. Ela está estabelecida em um sistema,2 que re-quer a oferta de propostas de ensino tendo comocaracterística básica a comunicação entre profes-sor e aluno realizando-se através de meios.3

Na educação presencial, mesmo havendo autilização de diferentes meios, quem realiza a medi-ação pedagógica principal é o professor. Na educa-ção a distância, devido aos vários tipos de estratégi-as de aprendizagem,4 reconhece-se a necessidadede apoio pedagógico de outro meio para o mediadorpedagógico principal (Sherry, 1996). Com isso tam-bém, como na educação com presença do profes-sor, existe a possibilidade educativa de um progra-ma de educação a distância contando com meiosdiversos. Estes apóiam um mediador pedagógicoprincipal e oferecem recursos variados para os dife-rentes tipos de aprendizagem dos estudantes.

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2 Sistema – “Disposição das partes ou dos elementos de um todo, coordenados entre si, e que funcionam como estrutura organizada”,segundo o Novo Dicionário Aurélio, 2ª edição.3 Meios são quaisquer suportes que permitam a sua utilização para realizar o processo educacional em suas diferentes maneiras deser concebido.4 Seja qual for a linha que fundamenta a educação é possível reconhecer que há vários tipos de estratégias de aprendizagem,técnicas ou métodos que as pessoas usam para facilitar a forma de utilizar o pensamento para aprender.

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Ao educador, então, na educação a distân-cia, cabe desenvolver habilidades e saber refletir cri-ticamente sobre o processo educativo, condição quereforça a sua participação ativa na produção e/ouelaboração dos meios, assim como no planejamen-to, na utilização e avaliação dos mesmos. Gutiérreze Prieto (1994, p. 23) chamam a atenção sobre essaestreita relação entre os materiais e o educador naeducação a distância, observação que os professo-res deveriam ter sempre em mente: “de nada valeexigir materiais [meios] com intenção transformadorase não há transformação na maneira de produzi-los,distribuí-los e utilizá-los”.

A maior diferença entre a educação com apresença do professor (presencial) e a educação adistância talvez esteja na modificação do processode ensino. Esse processo, em ambas as modalida-des, tem adquirido formas diferentes de ser concebi-do e, portanto, de ser colocado em prática, ganhan-do mais abertura para o desenvolvimento do aluno apartir de uma postura menos diretiva do professor.Nessa linha, a possibilidade que as pessoas ganha-ram de administrarem os estudos conforme o seudesejo e suas necessidades na educação a distân-cia passa a ser um aspecto muito importante, quefaz um marco diferencial entre as duas modalidadesde educação.

Os vários modos de fazer educação a distân-cia surgiram das adaptações feitas a partir das vári-as propostas pedagógicas da educação presencial,mas hoje ela se vale de abordagens distintas, deacordo com as diferentes concepções de educaçãoe necessidades da população. “Cada região temdesenvolvido sua própria forma de educação a dis-tância de acordo com os recursos locais, público-alvo e a filosofia das organizações que promovem ainstrução”5 (Sherry, 1996, tradução minha).

Assim, a educação a distância pode ser cons-tatada como uma possibilidade de ensino que podeapresentar condição educativa numa perspectiva nãosó de reprodução, mas de transformação do conhe-cimento. A noção de proximidade, como afirmaAlmeida (2003), está muito mais relacionada com aabordagem educacional, seja esta presencial ou adistância. Tanto uma como a outra pode fazer usode qualquer recurso, pode proporcionar uma rede deinformação e de comunicação, pode ampliar ou blo-quear a aprendizagem dos alunos.

A amplitude da distância é dada pela concepçãoepistemológica e respectiva abordagem pedagógica, a

qual separa ou aproxima professor e alunos. Existe umconjunto de aspectos indicadores da coerência com aconcepção epistemológica que interferem na distânciae direção comunicacional criada entre professor ealunos, os quais se fazem presente tanto na educaçãopresencial como na educação a distância. A distância,que pode afastar ou aproximar as pessoas, se refereà mediação pedagógica. (Almeida, 2003, p. 334).

Pode parecer que o exemplo que vou dar aseguir seja uma apologia ao trabalho do educadormusical para não utilizar as tecnologias da informa-ção e comunicação, mas esse entendimento é equi-vocado. Na verdade quero aproveitar a oportunidadepara dar exemplos de trabalhos musicais que, paramim, demonstram aprendizagem significativa, apre-sentando alguns pontos de minha pesquisa sobreeducação musical a distância para professores dasséries iniciais do ensino fundamental que por umaquestão de contexto não tiveram como mediador prin-cipal da aprendizagem o computador e a Internet. Oobjetivo dessa divulgação, também, pretende contri-buir para a reflexão sobre outro tema que envolvetecnologias, áreas de atuação e proposta pedagógi-ca, a educação musical a distância.

Devido à escassez de formadores especialis-tas nas diferentes linguagens da Arte e a carênciade atenção dada a elas nas estruturas curricularesdos cursos de formação de professores, que atuamnas primeiras séries ou ciclos do ensino fundamen-tal (pedagogia), a trajetória da área, especificamen-te da música, nesse nível de ensino é bastante defi-ciente. Entendendo que, por essa razão, há neces-sidade de se promover a modificação das concep-ções sobre o ensino e práticas de Arte e de músicana escola, a partir das primeiras séries, a formaçãodo professor constituiu-se como um dos objetos dapesquisa, de que aqui relato alguns pontos.

O sistema de educação a distância tambémfoi escolhido para ser estudado na formação musi-cal de professores porque prescinde da relação pro-fessor-aluno no ambiente tradicional da aula parafavorecer a aprendizagem. Essa particularidade trou-xe a oportunidade de elaborar, oferecer e investigarum programa de música para estudantes de um cur-so de formação de professores residentes em diver-sas regiões do Estado de Mato Grosso, e, com isso,proporcionar a reflexão sobre a educação musical adistância (Emusad) naquele estado. A pesquisa con-tou com a participação de 279 voluntários, professo-res em serviço, oriundos de 22 municípios, alunosdo curso de Licenciatura em Educação Básica (1a à4a séries), modalidade a distância, oferecido pelo

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5 “Each region has developed its own form of distance education in accordance with local resources, target audience, andphilosophy of the organizations which provide the instruction”.

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Núcleo de Educação Aberta e a Distância (Nead) daUniversidade Federal de Mato Grosso (UFMT).

Os estudos dos licenciandos foram feitos adistância, individualmente ou em grupo, tendo comomediadores pedagógicos principais textos escritos,reunidos num fascículo, e exemplos musicais, gra-vados em um compact disc (CD), produzidos espe-cialmente para o programa. Foi possível, também,contar com o apoio de textos de periódicos científi-cos, exemplos musicais de outros CDs e livros daárea de educação musical. No fascículo constavamtextos para reflexão com propostas de ação indivi-dual ou em grupo. Cabe aqui ressaltar a importânciados grupos constituídos para as atividades musicaisna aprendizagem. Foram realizados atendimentospresenciais nos municípios com a orientação dapesquisadora e de seis monitores da pesquisa, ex-alunos ou formandos do curso de Licenciatura emEducação Artística – Habilitação em Música da mes-ma universidade.

Conforme defendem muitos pesquisadores6 daeducação, o pensar reflexivo é uma tarefa educacio-nal de extrema relevância, pois favorece aprendiza-gem consistente. As atividades musicais do progra-ma de Emusad foram desenvolvidas seguindo essepensamento. Cada estudante/professor, além deconhecer algumas teorias do desenvolvimento musi-cal, teve a oportunidade de agir sobre o objeto sono-ro elaborando conceitos, dando asas à sua imagina-ção, trabalhando com o ato lúdico de uma forma ori-entada para o pensar sobre essa ação e construindoo seu próprio significado para a produção sonoro-musical. Essa construção foi, também, refletida emrelação às crianças, como elas são motivadas ecomo a aprendizagem pode ser favorecida.

Após dois meses de estudo do programa osestudantes/professores realizaram três tarefas deavaliação de aprendizagem. Dentre essas atividadesde avaliação eles tiveram que fazer uma gravaçãoem fita cassete contendo a primeira versão de umacomposição baseada na história “Pai do Mato”. Acomposição podia ser individual ou feita em grupode até dez pessoas, e deveria durar cerca de umminuto. Todos enviaram suas fitas gravadas por car-ta e receberam um parecer sobre suas composições,além do convite para apresentar a segunda versãocom as devidas modificações, demonstrando cres-cimento na aprendizagem musical.

O texto de Dunga Rodrigues, “Pai do Mato”,foi escolhido como tema para as composições pela

intimidade com a língua escrita que, normalmente,os professores das séries iniciais possuem, alémde ser auditivamente interessante porque o texto ébastante sugestivo de sonoridades. “Pai do Mato”também tem uma importante reflexão para os mora-dores de Mato Grosso, estado que sofre muitas agres-sões ambientais com os desmatamentos, garimpos,pesca e caça predatórias.

Foram apresentadas 51 composições feitaspelos grupos, que após analisadas puderam sercategorizadas, basicamente, em três tipos: as pro-duções constituídas de voz e instrumento, as produ-ções que exploram determinados elementos da lin-guagem musical em instrumentos tradicionais e/oualternativos e as produções que exploram o tema de“Pai do Mato” num discurso sonoro descritivo. Amaioria das composições apresentou problemas denatureza técnica, tal como dificuldade de sincroniaao cantar ou tocar em grupo e necessidade de afina-ção mais cuidada ao cantar uma melodia. Algunsproblemas apresentados recaíram sobre a constru-ção da produção sonora quando houve massa sono-ra provocada por excesso de instrumentos tocadosjuntos, o que apresentou uma textura muito homo-gênea, ou com algumas representações vocais desons bastante estereotipadas, tais como chuva (chuá,chuá), índio (uó, uó), ou ainda com história narra-da dando aos sons diferentes dos da linguagemverbal um aspecto de ilustração ao que estavasendo contado. As composições demonstram nasegunda versão um tratamento mais aprofundadodo trabalho, com atenção para as sugestões con-tidas nos pareceres.

Nas composições para vozes e instrumentospredomina o estilo canção, com uma melodia canta-da e um acompanhamento instrumental. Este foi fei-to ao violão, com uma harmonia tradicional simples.Com bastante ocorrência houve a apresentação damelodia cantada com um acompanhamento rítmicodando ênfase para timbres diferentes. Com umamenor ocorrência houve, também, a expressão davoz através da declamação com um acompanhamen-to instrumental ao fundo ou a melodia na voz juntocom a exploração de sons imitativos da natureza ouo diálogo entre instrumentos e vozes.

Nas composições que exploram elementos dalinguagem musical em instrumentos tradicionais e/ou alternativos houve diálogo entre instrumentos, al-gumas vezes incluindo a voz, com apresentação detimbres variados e contrastantes com momentos demenor densidade sonora, com utilização de mudan-

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6 Ver Dewey (1971), Freire (1997, 2001), Schön (1983, 2000), Zeichner (1998, 2000), Perrenoud (2002), Geraldi, Messias e Guerra(1998), entre outros.

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ça de andamento e variação de intensidade. Algunsgrupos destacaram a forma de suas composiçõesapresentando um roteiro composicional escrito eoutros fizeram as partes aplicando, principalmente,os princípios de variação e repetição estudados noencontro presencial, explicando o processo, ou não.A presença de ostinato rítmico junto com o traba-lho com diferentes timbres, num aspecto descriti-vo do tema, ou não, foi uma das soluções encon-tradas para a elaboração da composição. Houvetambém a apresentação de instrumento solistacom acompanhamento.

Nas produções sonoras que exploraram o temada história “Pai do Mato” num discurso descritivohouve uma preocupação de fazer um desenho sono-ro do tema dado, sendo, portanto, o timbre oparâmetro mais destacado. Todas as histórias so-noras descrevem a lenda do protetor da Mata daPoaia, o “Pai do Mato”, atribuída ao município deBarra do Bugres, havendo uma infinidade de efeitossonoros feitos de diversas maneiras para sons deágua, vento, chuva, fogo, árvores sacudindo ou cain-do, animais diversos, além do som do destruidor edo defensor da mata, entre outros. Foi possível notarque os enredos também foram bastante variados.Mesmo nesse tipo de representação sonora houvepreocupação de muitos grupos com a forma. Estafoi demonstrada nos roteiros escritos ou nas pró-prias composições, que não aparentam muito umaestória, mas usam os sons descritivos da mataem seqüências que sugerem início, mudança erepetição.

Houve 28 composições que apresentaram tí-tulos, sendo que a maioria foi intitulada Pai do Mato,como o texto de origem. Mas houve outras propos-tas, tais como: A Floresta é Linda, A Natureza, Sonsda Natureza, Medo do Pai do Mato, O Canto do Paido Mato em Diferentes Tons, O Agito da Bicharada,A Floresta Encantada, Equilíbrio, Sons da Mata, Paida Mata, Preservação, O Velho Líder e o Reino En-cantado.

É importante ressaltar a grande quantidadede textos que foram criados para as composiçõestendo como base o mesmo tema. Os textos apre-sentam diferentes formas de produção da escritaverbal, da narração à poesia. Muitos desses textosapresentam um clima poético admirável, com sim-plicidade ou rebuscamento, diretividade ou simbolis-mo, seriedade ou brincadeira, que são pérolas dacomunicação expressiva verbal dos estudantes/pro-fessores.

As composições demonstraram um grandepotencial de imaginação, de criação e de produção

sonora, além de serem produtos concretos datransformação de conjuntos de sons em discur-sos musicais carregados de expressão, intençãoe organização.

O programa de Emusad só foi possível de serrealizado mediante o engajamento institucional e oenvolvimento dos estudantes/professores. A institui-ção, por ter oferecido o espaço para a pesquisa como entusiasmo de realizar um teste para futuras in-serções curriculares, foi essencial com seu apoioao programa de Emusad. Toda a estrutura física eapoio humano do Nead foram colocados à disposi-ção nas cidades (pólos) que tinham estudantes/pro-fessores dos arredores, e a pesquisadora teve liber-dade para colocar em ação a sua proposta, contan-do com a assistência de monitores, especialistasem música, de sua escolha. Os estudantes/profes-sores, mesmo estando muito atarefados, se dispu-seram a trabalhar colaborativamente com seus pa-res, o que sugere ter havido motivação para o fazermusical. Os trabalhos e estudos em grupo decidida-mente garantiram a interação e a proximidade enteas pessoas. O interesse aconteceu com dificulda-de, porque os professores acharam difícil refletir so-bre os conteúdos musicais do material do programade Emusad, segundo seus próprios relatos, umacomplexidade que veio associada à falta de tempoque tinham para estudar. Eles declararam, entre ou-tras coisas, terem sido recompensados porque osganhos com a participação no curso foram muitos,desde ganhos pessoais até ganhos nos processosde atuação no ensino. O trabalho influenciou-lhesem vários campos de suas atividades docentes, fa-vorecendo a construção de concepções mais am-plas de educação musical, relacionadas com umamudança de visão sobre a mesma, relacionadas como processo de ensino, com o desenvolvimento gerale musical da criança e com a necessária formaçãoem música do educador.

Os estudantes/professores, acima de tudo,mostraram-se sensibilizados para o desenvolvimen-to da educação musical, levando-me a ter certezaque eles não desejam encurtamento do caminho di-dático ou desvalorizam conscientemente a educa-ção musical. Eles são fruto de uma escola que temnegado essa educação aos cidadãos, em geral, epor isso agem com a mesma naturalidade, assegu-rando uma continuidade do mesmo processo. Elesdesejam ter acesso ao conhecimento escolar na áreapara poderem garantir práticas de ensino mais bemencaminhadas e consistentes, faltando-lhes somenteque o direito de ter a música em sua formação pro-fissional seja garantido e continuado. Esses resulta-dos fazem-me afirmar que com velhas tecnologias

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podemos colocar em prática novas abordagens emeducação musical.

Algumas conclusões

Já afirmei em outras oportunidades que tenhopistas de soluções para algumas problemáticas daeducação musical, não respostas absolutas. Dentreas pistas em que tenho me apoiado mais firmemen-te encontra-se a pesquisa. Defendo a pesquisa emeducação musical como peça-chave para a atuaçãocompetente do profissional, como elemento básicopara o surgimento de novas abordagens. Ela, semdúvida, coloca o educador numa posição de cons-tante reflexão sobre sua própria prática, colaboran-do com a tomada de decisões sobre os conheci-mentos que devem ser orientados em seu fazer coti-diano, ajuda-o a transformar seus procedimentos deensino musical, coloca-o sintonizado com produçõesrecentes da área, favorece uma atuação motivada eatraente e, sobretudo, promove uma busca constan-te de competência e de dignidade profissional.

As questões colocadas por Naveda (2005)estão ancoradas num porto essencial para a educa-ção musical brasileira, as propostas pedagógicas.Estas dependem em grande proporção das condi-ções em que são aprendidas e elaboradas, o quereforça a preocupação do autor com a aproximaçãodas especialidades (através dos departamentos),com a criatividade pedagógica, com o uso diversifi-cado e inteligente do computador, e eu acrescentocom a pesquisa consistente e democratização daeducação em todos os níveis. As propostas conti-das no texto de Naveda para desenvolver um traba-lho efetivo e abrangente da educação musical e suassugestões no Fórum de Debate III para a associa-ção, que envolvem, entre outros fatores, omapeamento da produção científica da ABEM, sãode extrema importância. Se tiver desdobramentos eanálises suficientes, o mapeamento poderá se con-figurar como uma história da educação musical nopaís, parte significativa do conjunto de conhecimen-tos que marcam a condução da área e o desenvolvi-mento do pensamento musical brasileiro.

Referências

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Recebido em 02/03/2006Aprovado em 12/03/2006

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Neste texto, pretendo refletir sobre o filme 2Filhos de Francisco, de autoria de Breno Silveira,que teve sua estréia nos cinemas brasileiros em 19de agosto de 2005. Com uma grande aceitaçãopopular, o filme já obteve diversas descrições eabordagens cinematográficas da imprensa e dacrítica especializada, divulgadas pelas revistas ejornais brasileiros e sites da Internet. Utilizo-medessas fontes como ponto de partida para análise.Na visão de Miranda (2005), o filme mostra,

Aprendizagem musical emfamília nas imagens de um filme

Celson Henrique Sousa GomesUniversidade Federal do Pará (UFPA)

[email protected]

Resumo. O presente ensaio analisa o filme 2 Filhos de Francisco, de autoria de Breno Silveira,procurando evidenciar aspectos relacionados ao ensino e aprendizagem de música em família,que possam colaborar para a compreensão de questões na área de Educação Musical, numaperspectiva sociológica. Com o objetivo de tratar sobre a aprendizagem musical de uma “duplasertaneja” mostrada pelo filme em questão, a análise é feita a partir de pressupostos relacionadosao contexto socioeconômico da família, o projeto educativo dos pais, a diversidade de situaçõese envolvimento de outras pessoas além da família nuclear na aprendizagem, assim como asrelações entre as oportunidades e aprendizagens vividas em família e atuação profissional.

Palavras-chave: educação musical, aprendizagens em família, contexto socioeconômico

Abstract. The present assay analyzes the film 2 Filhos de Francisco of authorship of BrenoSilveira looking for to evidence aspects related to education and learning of music in family that cancollaborate for the understanding of questions in the area of Musical Education in a sociologicalperspective. With the objective to deal with on the musical learning a “dupla sertaneja” shown bythe film in question, the analysis is made from estimated related to the social and economic contextof the family, the educative project of the parents, the diversity of situations and envolvement ofother people beyond the nuclear family in the learning, as well as the relations between thechances and learnings lived in family and professional performance.

Keywords: music education, learnings in family, social and economic context

sobretudo, o “pré-sucesso” dos irmãos Zezé diCamargo e Luciano, a dupla sertaneja nascida noEstado de Goiás, que alcançou grande sucesso demídia e de público. É sob essa perspectiva, do “pré-sucesso”, que abordarei a temática “aprendizagensmusicais em família”, presente no filme e, também,relacionada com minha pesquisa,1 iniciada no anode 2005.

Não é minha intenção fazer comentários críti-cos e de valor sobre a forma e estrutura do filme,

GOMES, Celson Henrique Sousa. Aprendizagem musical em família nas imagens de um filme. Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 14,109-114, mar. 2006.

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1 Pesquisa sobre “Aprendizagens Musicais em Família” como projeto de doutorado orientado pela professora doutora JusamaraSouza, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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nem tampouco sobre a sua música, mas evidenciar,a partir de seu enredo e de algumas de suas cenas,aspectos relacionados ao ensino e aprendizagem demúsica que possam colaborar para a compreensãode questões na área de educação musical, numaperspectiva sociológica. Com o objetivo de tratarsobre a aprendizagem musical da dupla sertanejamostrada pelo filme em questão, inicio minhas refle-xões a partir de alguns pressupostos e suasimbricações, tais como:

– as aprendizagens musicais iniciais da du-pla se dão em família e apresentam-se relaci-onadas ao contexto de vida familiar, assimcomo ao seu contexto socioeconômico;

– cantar e tocar não são “talentos herdadosdos pais”, mas aprendizagens relacionadasao projeto educativo dos pais e de preferênci-as e vivências musicais em família;

– as opções e oportunidades de aprendiza-gem musical extrapolam os limites familiaresenvolvendo outras situações e outras pesso-as além da família nuclear;

– as escolhas e atuações profissionais dosmúsicos se relacionam com as oportunidades deformação iniciadas e construídas em família, assimcomo, também, estão relacionadas com as ques-tões socioeconômicas familiares de sobrevivência eopções de realização familiar.

As aprendizagens musicais iniciais da duplase dão em família e apresentam-serelacionadas ao contexto de vida familiar,assim como ao seu contexto socioeconômico

Escrito por Patrícia Andrade e CarolinaKotscho, o roteiro do filme acompanha os esforçosde seu Francisco Camargo, um agricultor que culti-va um terreno cedido pelo sogro, para proporcionarmelhores condições de sobrevivência e de formaçãoa seus filhos. A história é contada sob a perspectivade vida de seu Francisco, um “amante do cancionei-ro caipira”, que elegeu dois, entre seus nove filhos,para seguirem os passos de outros grupos bem su-cedidos. É no contexto familiar, vivendo da agricultu-ra de subsistência, no interior goiano, próximo à ci-dade de Pirenópolis, interior de Goiás, no Centro-Oeste do Brasil, em um casebre sem conforto, queseu Francisco busca realizar o seu “sonho”.

Para a área de educação musical, mais doque o sucesso da dupla, nos interessa saber o que

está por trás das aprendizagens e do desejo de seuFrancisco na constituição da dupla, bem como dassuas diversas estratégias para ensinar os dois filhos acantar e tocar dentro do contexto de vida da família.

A história pode ser semelhante à de muitaspessoas que vivem no meio rural de Pirenópolis, ondea música sertaneja, apesar da existência de outrosestilos,2 faz parte do gosto e cotidiano das pessoasque ali habitam. Foi nesse contexto rural e sem con-forto que seu Francisco alimentou o sonho de su-cesso dos filhos de várias formas, tentando, segun-do Miranda (2005), “não apenas realizar uma vonta-de, mas dar vida digna e de respeito à prole”.

De acordo com Geraldo (2005), apesar dasdificuldades de subsistência, seu Francisco “não sevale da miséria para construir um discurso em favorda pobreza”. Ao fazer uma releitura do filme, esteautor nos apresenta uma descrição do contextosocioeconômico da família de seu Francisco, bemcomo de suas atitudes frente à situação de vida efreqüentes mudanças:

Ela [a pobreza] está ali por contingências sócio-econômicas, de classe, contidas nos diálogos do sogro(Lima Duarte), que cobra sua parte na produção dogenro, nada captando de sua obstinação em retiraros filhos da miséria. Nem se vale da história cheia depercalços, tragédias, fome e falta de saídas. Faz umencadeado da luta do pai com o aprendizado dos filhos,cujos nomes mudam ao sabor dos interesses artísticosdos empresários que encontram pela frente. Esse jogode mudança de nomes, de cidade (troca do sertão dePirenópolis por Goiânia) e de condições de vida, mostraas relações de produção no campo e no meio urbano.Desnuda os limites da agricultura familiar, que rendetrocas desfavoráveis para o lavrador, e as relaçõesde trabalho na construção civil, onde o olho do patrãoestá mais presente, via encarregado.

As dificuldades do ensino escolar no camposão, também, retratadas, ao mostrar a falta de es-colas para os filhos de seu Francisco, mas, ao mes-mo tempo, o filme evidencia a rica presença de tradi-ções culturais populares trazidas pelas rádios e fes-tas que aconteciam na cidade de Pirenópolis.

Após assistir o filme constatei que a expec-tativa de seu Francisco em relação à formação mu-sical dos filhos aparece relacionada a seu própriogosto musical, coerente com o do contexto culturalonde vivia, e também ao desejo de proporcionar umaoutra condição de vida aos filhos, tornando-se, es-ses, fatores principais e desencadeadores da apren-dizagem musical dos mesmos.

É possível constatar, portanto, algumasimbricações existentes entre o contexto socio-

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2 Ver Goiás é celeiro... (2004).

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econômico familiar e o projeto dos pais, mais espe-cificamente, o projeto de seu Francisco em relaçãoà aprendizagem musical dos filhos, que almejava aformação de uma dupla sertaneja bem sucedida,como a dupla Milionário e José Rico.

Sem estabelecer fronteiras, mas evidencian-do a estreita relação entre contexto socioeconômicoda família e projetos educativos dos pais, passo aosegundo pressuposto.

Cantar e tocar não são “talentos herdadosdos pais”, mas aprendizagens relacionadasao projeto educativo dos pais e depreferências e vivências musicais em família

Gayet (2004), ao considerar família comoinstituição, evidencia a existência de projetoseducativos na família, onde, em certa medida, oprojeto parental é um elemento central do processode constituição de identidade do indivíduo. ParaGayet (2004, p. 72, tradução minha):

Mesmo antes do nascimento da criança, os paiselaboram um “projeto educativo”. Ele é mais ou menosconsciente e mais ou menos realista. Ele varia segundoa variedade de pais, entre algum princípio elementar,e um programa variável de formação. Ele se adaptaráà personalidade da criança e à sua evolução ou seráde uma rigidez inflexível. Entre essas posiçõesextremas, todas as nuances são permitidas.

Seu Francisco, acreditando por meio da mú-sica idealizar um futuro socioeconômico melhor paraos filhos, em relação à habilidade musical dos mes-mos, parecia não considerar a existência de “talen-tos herdados” ou que seus filhos tinham nascido com“talento musical”, mas, sim, acreditava na possibili-dade do desenvolvimento de habilidades, de seusfilhos tornarem-se músicos sertanejos a partir davivência e das oportunidades a serem geradas emfamília, assim como na convivência com os outros.

O sociólogo francês Lahire (2004, p. 18) afir-ma que Norbert Elias nos fornece, em seu livroMozart: Sociologia de um Gênio, o exemplo de ummodo de reconstrução sociológica do vir a ser umindivíduo. Citando Elias, Lahire (2004) explica quepara compreender um indivíduo seria necessário sa-ber quais são os desejos predominantes que eleaspira a satisfazer. Porém adverte:

Mas estes desejos não estão inscritos nele antes dequalquer experiência. Constituem-se a partir de suaprimeira infância sob o efeito da coexistência com osoutros, e fixam-se progressivamente na forma que ocurso de sua vida determinar, no correr dos anos, ou,às vezes, também de maneira brusca, após umaexperiência particularmente marcante. (Elias apudLahire, 2004, p. 18).

Segundo a perspectiva de seu Francisco, paraque seus filhos pudessem se formar como uma duplasertaneja teriam que passar por um processo deaprendizagem, que é revelado aos filhos através dosmeios que dispunham ali, no contexto em que viviam.

Nas primeiras cenas do filme aparece o rádio,que, além de veículo de comunicação com o meiourbano, foi, também, meio de aprendizagem musicalda família e da dupla. Através do rádio, seu Franciscosabia quais eram os músicos e músicas de sucesso,quais os principais eventos da cidade próxima, assimcomo sobre as possibilidades de aprendizagem eatuação musical dos filhos. O filme nos mostra queseu Francisco compreendia que as músicas ouvidasna rádio poderiam ser as músicas cantadas etocadas por eles.

Através do rádio eram anunciados os palcos,inclusive os da rádio, os quais poderiam ser locaisde atuação da futura dupla. Dessas referênciasapresentadas sobretudo pela rádio a que tinhaacesso, seu Francisco passou a buscar os meiospossíveis para oportunizar vivências musicais aosfilhos que os tornasse, além de ouvintes, músicosatuantes.

A opção de seu Francisco pela constituiçãode uma dupla sertaneja familiar reflete, ao mesmotempo, o reconhecimento de um modelo socialmen-te reconhecido no seu contexto de vida, onde asmúsicas a serem aprendidas deveriam estar de acor-do com as preferências e perspectivas do lugar, talcomo mostra o filme nas atuações da dupla em pa-lanque político, em que a motivação e a continuida-de de aprendizagem musical aparece relacionadacom o contexto. Tais situações sócio-educativas re-lacionadas com o contexto são melhor esclarecidaspor Carrano (2003). Para esse autor: “A realidadeacentua o movimento de redes sociais que geramcontextos e acontecimentos educativos, em simul-taneidade com as ações de instâncias educativastradicionais como as relacionadas com famílias einstituições escolares.” (Carrano, 2003, p. 16).

As estratégias do pai para atingir seus objeti-vos em relação à aprendizagem musical dos filhosaparecem de diversas formas, utilizando-se, sobre-tudo, dos meios locais que dispõe para ensinar osfilhos. Uma cena que merece ser comentada, emrelação a isso, é a que demonstra uma obrigato-riedade imposta por seu Francisco à dupla, que de-veria levantar de manhã cedo para fortalecer e prepa-rar a voz, tal qual o exemplo de um galo. O recursoque se utiliza para tal aproximação com o canto po-tente do “galo cantor” é o ovo que obriga os filhos a

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ingerir. Além desse recurso, seu Francisco se preo-cupou em promover o ensaio do repertório “a duasvozes, em intervalos de terças e sextas, sendo avoz que canta a melodia mais aguda considerada avoz principal, apesar de muitas vezes a melodia realnão se encontrar na voz aguda”.3

Quanto à resposta dos meninos em aprender,em relação ao projeto do pai, o filme revela que amotivação nem sempre ocorre de forma similar entreirmãos, como aparece na primeira constituição dadupla. Segundo o filme, a primeira formação da du-pla composta por Zezé e Emival, e com apelido deCamargo e Camarguinho, é desfeita pela morte doirmão mais novo da dupla em acidente de carro, apósuma das suas atuações em viagem. Diferentementedo irmão mais velho, o irmão mais novo da dupla,que se encarregava de fazer a segunda voz, parecianão demonstrar total aceitação e interesse no apren-dizado e atuação musical.

Esse modelo, ou projeto de formação e atua-ção musical de crianças, como a participação decantores mirins nas rádios, aparece, também, nadécada de 1960 como tradição em outras regiõesbrasileiras, como demonstra a pesquisa da área deeducação musical realizada por Schmitt (2004). Apesquisa apresenta o Clube do Guri, da RádioFarroupilha, em Porto Alegre, revelando que a rádioé também considerada como meio de aprendizageme atuação de músicos no Estado do Rio Grande doSul. O estudo mostra, ainda, que alguns dos partici-pantes do programa, na idade adulta, tornaram-semúsicos profissionais.

Para além do contexto de vida familiar, o fil-me demonstra que música se aprende na interaçãoentre as pessoas que vivem e fazem música emsociedade, em comunidade de pessoas mais am-pla que a instituição familiar.

As opções e oportunidades de aprendizagemmusical extrapolam os limites familiares,passando a envolver outras situações epessoas além da família nuclear

A partir da constante avaliação de caminhos játrilhados, seu Francisco passa a promover e investirem outras estratégias de aprendizagem aos filhos en-volvendo outras pessoas, demonstrando a necessida-de de transposição dos limites locais e de seus pró-prios limites. Tais investimentos, feitos na maioria dasvezes com dificuldades, além de os proporcionar o de-senvolvimento de conhecimentos e habilidades musicais,os conduziu à autonomia e futuro profissional.

Segundo Lahire (2004), o investimento dospais na educação dos filhos pode se dar de diversasmaneiras, podendo os pais “sacrificar” a vida pelosfilhos para que cheguem aonde gostariam de ter che-gado ou para que saiam da condição sociofamiliarem que vivem. Atitude que deverá deixar traços naorganização da ordem moral doméstica e na manei-ra de gerir a situação econômica da família (Lahire,2004, p. 28-29).

Uma conquista e investimento significativo, paraseu Francisco, na aprendizagem dos filhos, foi o deabrir uma escola na sua própria casa, que possibili-tasse às crianças aprenderem a ler e escrever, de-monstrando o reconhecimento de que o sucessomusical estava ligado, também, à aprendizagem daleitura-escrita. Outros investimentos foram feitos, emrelação à aprendizagem dos filhos, como a comprade instrumentos (um acordeom e um violão) e a opor-tunidade de contato com músicos que pudessemservir-lhes de modelo, como o foi o caso do músicoque, ao ter ser abordado por seu Francisco, sempreacompanhado da família, em uma festa, e ao ver ointeresse do menino em tocar, lhe dá as primeirasorientações do acordeom. Apenas em um primeirocontato como o músico, apesar da aparente e limi-tada transmissão de conteúdos, em que algunsmovimentos rítmicos no fole foram ensinados, omenino pôde, com tais orientações, dar início aum aprendizado que o proporcionou otimizar aaprendizagem posteriormente, partindo de suaprópria iniciativa.

O valor de tal perspectiva de aprendizagemrelacionada à autonomia e à autoformação éenfatizado pelo conceito de “educação difusa”, o qualé considerado o contexto e a condição de vida daspessoas. Segundo Furter (1977 apud Carrano, 2003,p. 18-19), tal concepção compreende:

o conjunto das condições – a qualidade de vida – quepermite um desenvolvimento cultural graças àcapacidade da autoformação, como auto-regulação eapropriação da existência, da história pessoal ecoletiva (…) já não se trata mais, através da educaçãoextra-escolar, de fazer mais, fazer melhor ou fazerde outro modo que a “escola”; trata-se, sim, deexaminar as possibilidades que tanto a educaçãoescolarizada como a extra-escolar oferecem nosentido de permitir aos outros que se façam.

A iniciativa de seu Francisco de levar a famíliapara as festas na cidade próxima onde moravam, nointerior de Goiás, bem como as primeiras tentativasdo filho de cantar em público seguidas da avaliaçãodo próprio pai, demonstram que tais iniciativas, demão dupla, se complementavam na formação e de-

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3 Algumas características sobre a música sertaneja goiana é apresentada em site da Internet (Goiás é celeiro..., 2004).

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senvolvimento das habilidades desejadas, que inclu-íam as de cantar e tocar em público. Para o filhomais velho, mais do que obrigação de aprender, ogosto pela aprendizagem musical aparece, também,nas insistentes tentativas de cantar e de tocar agaitinha de boca recebida como premiação por suaprimeira tentativa de atuação em público.

A avaliação do pai sobre a formação musicaldos filhos era uma constante, tal como demonstra-do no filme, quando Francisco intervém, já nas pri-meiras tentativas do filho Zezé de emitir sons na gaita,no processo inicial, onde se evidenciava um grandecontraste entre a atuação dos meninos e as músi-cas “prontas” transmitidas pela rádio. Da mesma for-ma ocorria sobre a performance musical, em queseu Francisco reconhecia os limites na atuação dadupla e, conseqüentemente, sentia necessidade demotivar o desenvolvimento das suas habilidades decantar e tocar em público. Isso é mostrado em umadas cenas do filme, em que o pai simula a atuaçãodos filhos, como uma aula ao ar livre, orientando-osem relação a questões de postura frente a um micro-fone fictício, improvisado com um cabo de enxada.

A partir das diversas estratégias usadas pelopai, e intervenções externas, passa a existir um pro-cesso de aproximação entre a execução musical dosmeninos e aquelas transmitidas pela rádio. Para seuFrancisco aumenta cada vez mais a perspectiva deum futuro promissor e da possibilidade do sucesso,ao perceber que já havia a emissão de um “som co-erente”, próximo das músicas cantadas e tocadaspelas duplas bem sucedidas das rádios.

Ao imbricamento existente entre os pontosanteriormente mencionados, soma-se a questão dasopções e oportunidade de atuação profissional, con-forme trataremos no pressuposto a seguir.

As escolhas e oportunidades de atuaçãoprofissional dos músicos se relacionam comas oportunidades de formação iniciadas econstruídas em família, assim como, também,estão relacionadas com as questõessocioeconômicas familiares de sobrevivênciae opções de realização familiar

Ao mudar-se com a família do campo para acidade, seu Francisco pretendia sair da condição depobreza no campo para uma possível condição pro-fissional e de trabalho que proporcionasse melhorescondições de vida à família. A situação de pobrezanão resolvida com a mudança para a capital Goiâniaforçou a atuação musical precoce da dupla, que por

iniciativa de Zezé passa a atuar na rodoviária da ci-dade. A atuação de músicos na rodoviária de Goiâniafoi presenciada por Zezé, que ao chegar na cidade,percebe que havia possibilidades de ganhos finan-ceiros na rodoviária como “músico de rua”,4 ondeposteriormente vai atuar com o irmão, local onde,também, a dupla é “descoberta” por um empresário.

O contexto de vida na cidade grande, comas crescentes necessidades financeiras de sub-sistência, bem como os diversos palcos de atua-ção, passam a ser fatores motivadores de novasaprendizagens musicais. A partir de viagens, adupla passa a aprender novas músicas que ospudessem levar à uma realização satisfatória eao “sucesso” de público, como também o suces-so financeiro do empresário.

Sobre essa situação vivida na cidade pelosmúsicos iniciantes, à semelhança da situação de“exploração” vivida por seu Francisco, como pedreiro,Geraldo (2005) escreve:

Situação semelhante à do pai vivem os cantores mirinsna construção de suas carreiras. Os dois garotos,“Camargo e Camarguinho”, irão fazer seu aprendizadosob o mesmo foco de exploração. Miranda (JoséDumont), o empresário, sabe o ouro bruto que temnas mãos, só falta burilá-lo e se enriquecer.

A possibilidade de uma certa “exploração” fi-nanceira por parte do empresário não impediu quehouvesse situação de aprendizagem musical signifi-cativa para os meninos. De acordo com Carrano(2003, p. 310), “os relacionamentos que os sujeitosestabelecem entre si nos diferentes territórios da ci-dade são educativos, mesmo que nem sempre este-jam voltados para os ideais da cidadania democráti-ca”. Tais atuações, portanto, mesmo com os fins delucro financeiro, serviriam como laboratório de apren-dizagem de habilidades e de atuação musical, prin-cipalmente no caso de Zezé di Camargo, o mais ve-lho da dupla, que mais tarde, já na idade adulta, viriaa atuar profissionalmente como músico. Posterior-mente, na formação da dupla formada por Zezé diCamargo e Luciano, constituída com o seu irmãomais novo, este último pôde aprender com a vivênciaprofissional do irmão mais velho, inclusive com suasgravações e posteriormente com o contato direto como irmão, passando a aprender a executar as músi-cas em uma segunda voz.

Considerações finais

Outras questões, que não foram discutidasneste ensaio, poderão ser abordadas e refletidas

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4 Sobre a formação e atuação de músicos das ruas, ver Gomes (1998).

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posteriormente, tais como: quais as diferenças deinvestimento do pai sobre o filho mais velho e o maisnovo? Há relação das expectativas e investimentopaterno com a posição de cada um dos filhos nadupla, dividida em primeira e segunda voz? A com-pra de um acordeom para o filho mais velho, e pri-meira voz, e o violão para o mais jovem, e segundavoz, que desejaria ter ganhado uma bola de futebol,está relacionada com os interesses paternos e coma divisão das vozes pela faixa-etária? Por quais mo-tivos as duplas sertanejas são constituídas tradicio-nalmente por homens? Qual o papel de dona Hele-na, esposa de seu Francisco e mãe dos meninos,na formação musical deles?

Entre as possíveis contribuições da análisedo filme 2 Filhos de Francisco, aqui proposta, desta-

Referências

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Recebido em 24/02/2006

Aprovado em 28/03/2006

co a constatação da importância da vida socioeco-nômica e cultural familiar, do projeto educativo dospais, da diversidade de situações e do envolvimentode outras pessoas além da família nuclear na apren-dizagem musical da dupla sertaneja em questão,além das possíveis relações entre as oportunidadese aprendizagens vividas em família e atuação profis-sional. Para além do foco na dupla sertaneja, talcomplexidade de envolvimento compreendido socio-logicamente demonstra que as histórias de vida eformação musical individuais são projetadas e trilha-das em coletividade, incluindo a vida em família, nosfazendo acreditar que as diversas situações e contex-tos de aprendizagem “devem ser considerados comoefetivamente educativos, desde uma perspectiva deeducação que se amplia para além dos horizontesestritamente pedagógicos” (Carrano, 2003, p. 15-16).

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Aula de música na escola:integração entre especialistas eprofessoras1 na perspectiva de

docentes e gestoresMaria Teresa de Beaumont

Universidade Presidente Antônio Carlos (UNIPAC – Campus Araguari)[email protected]

Janete Aparecida BaesseUniversidade Presidente Antônio Carlos (UNIPAC – Campus Araguari)

[email protected]

Marcela Elessandra PatussiUniversidade Presidente Antônio Carlos (UNIPAC – Campus Araguari)

[email protected]

Resumo. Neste artigo discutimos o trabalho conjunto entre professoras e professores que ministramaulas de música em duas escolas da rede particular de ensino da cidade de Araguari (MG). Objetivamosrefletir sobre o trabalho integrado, apresentado como promissor por pesquisadores do campo daeducação musical. Focalizamos a temática pela perspectiva de especialistas, professoras e membrosda equipe de gestão das escolas. Utilizamos questionários como instrumentos de investigação eapresentamos análises sobre agrupamentos temáticos elencados a partir das respostas obtidas, masconstruídas na confluência entre duas pesquisas.2 Nossas principais considerações apontam para apresença da aula de música como “vitrine” para os pais. Sobre o trabalho entre especialistas eprofessoras, encontramos, surpreendentemente, a ênfase na preparação de festividades escolares.Esperamos contribuir no debate acerca dos limites e possibilidades da atuação dos professores demúsica nas escolas de educação básica.

Palavras-chave: ensino de música, professores especialistas, trabalho conjunto

Abstract. In this article we discussed the united work among teachers and specialists that supplyclasses of Music in two private teaching school in Araguari-MG. We aimed to reflect about the groupswork, presented as promising for researchers of the Musical Education field. We focussed the thematicon the specialists’ perspective, teachers and administrators of the schools. We used questionnaires asinvestigation instruments and we presented analyses on grouping thematic cast by the obtained answers,but built in the confluence among two researches. Our main considerations point out the presence of theMusic class as “a model” for the parents. About the work between specialists and teachers, we found,surprisingly, the emphasis in the preparation of school festivities. We hoped to contribute in the debateconcerning the limits and possibilities of the Music teachers’ performance in Basic Education schools.

Keywords: music teaching, specialist teachers, group work______________________________________________________________________________________________________________

1 A opção pela utilização do gênero feminino, professora/s, deve-se ao número expressivamente superior de mulheres que atuamna docência, no nível da educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental. A designação se refere às professoras unidocentes.Para os/as professores/as de música ou educadores musicais utilizamos a designação de professores/as especialistas ou,simplesmente, especialistas.2 A primeira delas foi desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Uberlândia, nos anosde 2002 e 2003, cuja dissertação intitula-se Paisagens Polifônicas da Música na Escola: Saberes e Práticas Docentes, elaboradasob orientação da professora doutora Selva Guimarães Fonseca, com apoio financeiro da Capes (Beaumont, 2003). A segunda éparte de uma pesquisa que encontra-se em desenvolvimento, realizada pelas autoras, intitulada Influência dos Saberes Musicais naPrática Cotidiana de Professoras da Educação Infantil, programa Probic-Unipac, com apoio financeiro da Funadesp.

BEAUMONT, Maria Teresa de; BAESSE, Janete Aparecida; PATUSSI, Marcela Elessandra. Aula de música na escola: integraçãoentre especialistas e professoras na perspectiva de docentes e gestores. Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 14, 115-123, mar. 2006.

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Contextualizando a temática

Ensino de música e professoras

A presença do ensino de música nas escolasde educação básica constitui-se em temática recor-rente no campo das pesquisas da área de educaçãomusical na atualidade.3 Como parte desses estudos,temos observado a defesa pelo trabalho conjuntoentre professores especialistas e professoras, asquais requerem uma formação musical mais especí-fica em função da quase total ausência de estudosmusicais durante os anos de sua formação inicial,nos cursos de Pedagogia, Normal Superior e afins.

Acreditamos que a defesa pela implantação,e permanência, do ensino de música nas escolas,perpassa a discussão sobre quem é o professor res-ponsável por ministrar esse ensino, onde e comoocorre sua formação e, ainda, como tem desempe-nhado sua prática. Em nossa cidade, nos anos fi-nais do ensino fundamental (5a à 8a séries) e no en-sino médio, os problemas dizem respeito à presen-ça – ou ausência – dos professores de Arte. Porém,na educação infantil e anos iniciais do ensino funda-mental, a discussão alcança um outro nível de com-plexidade, visto que as professoras também sãochamadas a desempenhar essa tarefa, pois já mi-nistram o ensino das demais áreas do conhecimen-to escolar. A argumentação de Godoy e Figueiredo(2005, p. 2) esclarece e exemplifica essa questão:

Fazendo um paralelo com outras áreas doconhecimento, verifica-se que o professor generalistanão é matemático, mas ensina matemática, não éhistoriador, mas ensina história, e assim por diante. Damesma forma, acredita-se que, para iniciar o ensino demúsica, o professor não precisa ser, necessariamente,um músico. Basta que possua vivência com osaspectos musicais e um conhecimento básico dosconteúdos a introduzir em suas aulas. Autoresconcordam que os professores generalistas podemcontribuir para o desenvolvimento musical das criançasse receberem formação adequada […].

Um fator local que reforça a ênfase sobre aatuação musical das professoras refere-se ao fatodas escolas da rede pública municipal e estadualnão contratarem professores de música. Em levan-tamento recentemente realizado fomos informadasde que, na rede municipal, que conta com 13 cre-ches e 15 escolas, não existe nenhum/a professor/aespecialista. As escolas da rede estadual, por suavez, podem considerar-se privilegiadas, pois Araguarifigura entre as 12 cidades mineiras que possuem

um conservatório público. Isso implica projetos deextensão que, freqüentemente, são realizados emparceria com as demais escolas da rede estadual.Cabe destacar que durante a realização desses pro-jetos não apenas professores de música, mas tam-bém das áreas de artes visuais e artes cênicas, jádesenvolveram propostas de ensino em algumas dasescolas da rede.

Frente a esse panorama, nosso objeto de in-vestigação refere-se à atuação das professoras paraque realizem trabalhos com o ensino de música,contando que possuam uma formação musical quelhes forneça fundamentação teórica, conhecimentosde atividades práticas e reflexão sobre suas experi-ências, a fim de garantir que a realização dos referi-dos trabalhos se dê de maneira criativa e crítica.Temos procurado, por um lado, compreender o modocomo as professoras concebem e realizam os faze-res musicais nas escolas. Por outro, buscamos co-nhecer, ampliar e aprofundar os saberes musicaisque disponibilizam em suas práticas educativas co-tidianas. A respeito da investigação que ora realiza-mos, nosso foco recai sobre a temática dos saberese práticas musicais de professoras, visando umaprofundamento teórico no estudo sobre as relaçõesque se estabelecem entre esses dois eixos da atua-ção docente, inseridos na educação escolar.

Atuação de professores de música

No decorrer desta investigação, deparamo-noscom a inquietante questão sobre a presença e atua-ção dos professores especialistas e os trabalhosconjuntos, integrados ou parceiros que realizam comas professoras. Três fatores nos motivaram a inves-tigá-la. Em primeiro lugar, as discussões realizadasa partir dos estudos teóricos sobre a literatura re-cente da área de educação musical, especialmenteos trabalhos de Godoy e Figueiredo (2005),Figueiredo (2005), Figueiredo e Silva (2005) eSpanavelo e Bellochio (2005), que argumentam emfavor da colaboração que os especialistas podemprestar às professoras num trabalho que se desejaser integrado, mas apontam questões de um debateque se encontra em aberto:

Os profissionais da educação estão habituados adiscutirem políticas pedagógicas? Estão dispostos areverem suas práticas em favor de novas concepçõeseducativas? Desejam ser parceiros? Como essasparcerias poderiam ser exercitadas pelos diversosprofissionais da educação? (Figueiredo, 2005, p. 27).

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3 Como exemplos da produção científica recente sobre a atuação de professoras e especialistas no ensino de música nas escolas,citamos: Bellochio (2000, 2001a, 2001b, 2002, 2003); Figueiredo (2001, 2003, 2004, 2005); Penna (2001a, 2001b, 2002, 2003);Torres (2001, 2004a, 2004b), Targas (2002); Targas; Joly (2004); Diniz; Ribeiro (2004); Souza (2003), Spanavello e Bellochio (2005);Ribeiro; Scarambone (2005), Godoy; Figueiredo (2005); Diniz (2005) e Figueiredo e Silva (2005).

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Um segundo fator refere-se a posiciona-mentos4 de professoras, que afirmam ver, nos espe-cialistas, um profissional que “não tem domínio” so-bre a disciplina dos alunos, “atrapalhando” o anda-mento de suas aulas. E um terceiro fator diz respei-to a posicionamentos de professores especialistas,encontrados nas informações e análises oriundas depesquisa concluída anteriormente (Beaumont, 2003).

Por ocasião dessa investigação, discutimosque embora as determinações dos documentos ofi-ciais – LDB, RCNs e PCN-Arte – sejam decisivas naimplantação do ensino de música nas escolas, aspráticas desse ensino passam por negociaçõesestabelecidas no interior da cultura escolar e envol-vem professoras, especialistas e equipes de ges-tão. Analisamos determinadas dificuldades narradaspelos/as professores/as no trabalho com música:inadequação do espaço físico; falta de materiais;carga horária diminuída na disputa por espaços comoutras disciplinas; concepções do ensino de músi-ca como “cantoria”, “pura e simplesmente lazer”, “sópara brincar”, “uma coisa a mais”, “um módulo amais”; e falta de solicitação e incentivo da escolapara efetivar o ensino dessa área. Ocorre, ainda, arestrição da presença dos/as professores/as demúsica apenas aos horários em que ministram asaulas, e o desconhecimento sobre o trabalho dasprofessoras e demais atividades próprias do cotidia-no escolar.

As narrativas também apontaram a maneiracomo as professoras se utilizam do horário da aulade música para a realização de atividades para asquais “não têm tempo”, tais como “tomar” leitura,“tomar” tabuada, “vencer” um conteúdo, “passar” ta-refa, corrigir ditado, cumprir uma apostila, sanar dú-vidas ou dificuldades dos alunos ou escrever faixase cartazes para finalidades diversas, práticas quenos remetem às aulas da (em alguma medida, ex-tinta) Educação Artística, quando o horário era utili-zado inclusive para que fossem trabalhados temasde outras disciplinas, por exemplo, trigonometria, docampo da matemática. As professoras também sãoresponsabilizadas por procurarem os especialistasapenas para a apresentação de “musiquinhas” e“teatrinhos” nas festas do calendário escolar, forma-turas e outras comemorações. Algumas delas, ain-da, consideram-se “desobrigadas” do trabalho commúsica devido à presença da “aula especializada”.É interessante notar como esse fato é apontadocomo negativo, por parte de algumas professoras,as quais não se “utilizam” da presença do especia-lista, uma vez que “o trabalho colaborativo tem sido

sugerido como forma de garantir a integração doconhecimento escolar, e professores ‘generalistas’e especialistas poderiam exercitar essa prática tra-zendo benefícios diretos para as crianças”(Figueiredo, 2005, p. 26).

A esse conjunto de problemas, apontadoscomo fatores que dificultam o desenvolvimento detrabalhos conjuntos ou integrados, soma-se oposicionamento dos gestores e suas exigências paraque a professora se atenha ao ensino das discipli-nas “sérias e nobres”. A eles também é associada aconcepção de que o ensino de música torna a esco-la “atraente” perante os pais. Compreendemos, por-tanto, que ao discurso que viabiliza somam-se práti-cas que dificultam e, em alguma medida, inviabilizamtrabalhos integrados e, até mesmo, a aula de músi-ca como disciplina curricular.

Questões de pesquisa e metodologia

Em virtude dessas reflexões, formulamos aquestão de pesquisa que se converteu em objeto doestudo do presente trabalho: quais são as concep-ções de especialistas, professoras e gestores a res-peito dos trabalhos conjuntos ou integrados entreesses profissionais? Com o objetivo de analisar taisconcepções, acreditávamos encontrar discursosbastante diversos entre si – considerando especia-listas, professoras e gestores – e também diversosdas propostas de trabalhos integrados, apresenta-dos como promissores por pesquisadores do cam-po da educação musical.

A questão, ou problema, inicial de pesquisase desdobrou em questões com as quais compuse-mos um questionário como instrumento de investi-gação. As temáticas de cada uma dessas questõesversaram sobre: implantação do ensino de músicaem escolas particulares ministrado por professores/as especialistas; dificuldades e aspectos positivosdos trabalhos conjuntos ou integrados entre especi-alistas e professoras; envolvimento dos especialis-tas nas atividades cotidianas da escola; conhecimen-to que as professoras possuem sobre o trabalho re-alizado pelos especialistas e vice-versa; realizaçãodo trabalho com música pelas professoras, apesarda presença da aula com o professor especialista;carga horária, espaço físico e materiais da aula demúsica; participação e disciplina dos alunos nessaaula e participação dos gestores da escola na im-plantação do ensino de música.

Inscrevemos a investigação na abordagemqualitativa de pesquisa, caracterizada, dentre outros

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4 Obtidos em cursos de formação musical, inicial e continuada, para professoras.

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fatores, pela compreensão dos fatos humanos con-siderando as interações existentes entre pesquisa-dores/as e colaboradores/as, ambos construtores doprocesso de investigação. Nesse contexto, optamospor realizar um estudo exploratório utilizando ametodologia de pesquisa descritiva, ou estudo des-critivo, caracterizado por Triviños (1987, p. 110) comoaquele que “pretende descrever ‘com exatidão’ osfatos e fenômenos de determinada realidade”.

Convidamos, como colaboradoras, seis pro-fissionais de duas escolas da rede particular de en-sino de Araguari (MG). A escolha das escolas de-veu-se ao fato de serem as duas nas quais o ensinode música é ministrado por especialistas há maistempo, configurando-se, portanto, nas experiênciasmais sistematizadas desse ensino no momento. Emcada uma das escolas encaminhamos os questio-nários para três profissionais: a professora de músi-ca, a professora de uma das turmas e a coordena-dora pedagógica, a fim de investigar a participaçãodo conjunto de profissionais escolares na implanta-ção do ensino de música e, mais especificamente,nos trabalhos conjuntos entre professoras e especi-alistas. As respostas obtidas foram transcritas e or-ganizadas em agrupamentos temáticos. Na conflu-ência entre as considerações descritas na pesquisaanterior e as informações dessa nova pesquisa, ela-boramos as análises que apresentamos a seguir.

Informações e análises

Das colaboradoras

As duas escolas em questão, as quais no-meamos como 1 (um) e 2 (dois),5 pertencem à redede ensino particular, são centrais e possuem parce-rias com sistemas de ensino na modalidade fran-quia. Nelas, as professoras de música lecionam naeducação infantil e nos anos iniciais do ensino fun-damental, a da escola 1 encontra-se cursando gra-duação em Música-Licenciatura e a da escola 2 con-cluiu esse curso há sete anos. A professora (regen-te) da escola 1, graduada em Letras, atua na turmade seis anos, designada como 3o período e perten-cente ao nível de ensino da educação infantil. A daescola 2 é graduada em Pedagogia e também atuana turma de seis anos, mas que, nesse ano, passoua pertencer ao ensino fundamental.6 Na escola 1,colaboraram a coordenadora e a diretora, como mem-bros da equipe de gestão da escola, respondendo

conjuntamente ao questionário, por iniciativa delaspróprias. Na escola 2, participou a coordenadora daeducação infantil e anos iniciais do ensino funda-mental. Todas as profissionais da equipe da gestãosão pedagogas e especialistas em Educação.

Implantação do ensino de música eparticipação dos gestores nesse processo

O posicionamento mais crítico encontrado arespeito da implantação do ensino de música partiuda especialista da escola 2, que designou como“chamativo e diferencial” a maneira como as escolaspropagam a presença da aula de música. Para essaprofessora as equipes de direção não acreditam naimportância da música no currículo, mas, ainda as-sim, afirmou receber apoio, valorização e incentivoem sua escola. Esse apoio também é obtido pelaespecialista da escola 1, que caracterizou a partici-pação e o envolvimento dos gestores como funda-mental. Coordenadora e diretora dessa escola afir-maram que a implantação do ensino de música teveo objetivo de ampliar a grade curricular, “oferecendoaos alunos uma modalidade diferenciada dentro dosPCNs” (G1).

Tanto professoras quanto gestoras apontarama importância da aula de música. Na escola 2, aprofessora associou essa importância ao prazer e àalegria, e na escola 1, às noções sobre música apren-didas pelos alunos e à concentração, destacandoos resultados positivos obtidos por esta disciplina:interesse dos alunos pela música e por instrumen-tos musicais. Quanto ao posicionamento dasgestoras, a da escola 2 considerou a implantaçãodo ensino de música excelente e as da escola 1utilizaram a expressão “de suma importância”, poismúsica é arte e é uma forma de conhecimento, in-terpretação e transformação da realidade. Nessesentido, lembramos um argumento de Figueiredo(2005, p. 26):

O trabalho integrado entre os professores dos anosiniciais e professores especialistas poderia minimizara questão do trabalho solitário dos professores demúsica em diversos contextos escolares. E mais doque isso, poderia ampliar a quantidade e a qualidade daargumentação sobre a importância da música naformação dos indivíduos.

É provável que as informações não sejam su-ficientes para associarmos os argumentos de pro-fessoras e gestoras sobre a importância do ensino

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5 Os nomes das escolas e das colaboradoras foram preservados. Em substituição, utilizamos a seguinte terminologia: profissionaisda escola 1: especialista – E1, professora – P1, coordenadora e diretora – G1. Profissionais da escola 2: especialista – E2,professora – P2 e coordenadora – G2.6 Conforme a ampliação do ensino fundamental para nove anos.

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de música, à presença das especialistas na escola,pois, para isso, seria necessário um contato maisaprofundado, obtido, por exemplo, por meio de en-trevistas ou observações. Além disso, questionamo-nos sobre a efetividade dos argumentos disponibiliza-dos pelas gestoras, diante do quadro apresentadopela especialista da escola 2, pois apesar de mos-trarem uma preocupação em defender a presençadesse ensino em suas escolas, ainda encontramosconcepções associadas à utilização da música comfinalidades diversas daquelas que pressupõe um tra-balho destinado à aprendizagem dessa disciplinacomo área de conhecimentos. Esse elemento podeser auferido na percepção da gestora da escola 2,quando afirma que a aula de música proporcionouaos alunos “maior organização mental, postural ecomportamental” (G2). A ampliação dessa concep-ção está presente no argumento da especialista daescola 2: “Já existe musicalização, ainda que timi-damente em algumas escolas (muitos acham quemusicalização é formar um coro e só). Talvez consi-gamos futuramente um ensino efetivo de música…”(E2). Por isso, apesar do questionamento, concor-damos que, certamente, a presença da aula de mú-sica, e de suas professoras especialistas, contribuipara o delineamento de concepções sobre o papelque essa área desempenha na formação integral dosalunos.

Trabalho conjunto, integrado, parceiro,compartilhado, coletivo, cooperativo,colaborativo

Na literatura do campo da educação musical,assim como no discurso das colaboradoras dessapesquisa, encontramos termos diferentes que com-preendemos serem usados como sinônimos a res-peito da atuação conjunta entre professoras e espe-cialistas. Porém, ainda que não tenhamos o objetivode debater a nomenclatura, mas sim as práticasdesempenhadas por esses profissionais na escola,acreditamos que a expressão “trabalho integrado”talvez fosse a melhor opção, pois integração parecepressupor diálogo, intercâmbio, cruzamento, interfacee ações planejadas, desenvolvidas e avaliadas con-juntamente. Na pesquisa anteriormente realizadaobtivemos exemplo que se aproxima dessa modali-dade de ação na narrativa de um dos professores demúsica entrevistado. Diz respeito a um projeto ela-borado e desenvolvido em conjunto entre as profes-soras de todas as turmas da educação infantil e dosanos iniciais do ensino fundamental, juntamente comele e com a professora de teatro da escola. Tratou-se de um projeto a respeito do trânsito, qualificadopelo professor como interdisciplinar:

tivemos que estudar muito, conhecer sobre o trânsito,tivemos que nos preparar para apresentar. Foi umtrabalho de um semestre, começou por volta de maio,junho, entramos de férias em julho e em agosto,setembro, apresentamos. Todo mundo, a escola todaestava envolvida, de maternal até a 4ª série. No Infantil,o teatro “mais pesado”, as músicas, o coro, ficou parao Pré 3, que são as crianças que já sabem ler, mas osoutros trabalharam a questão do “pare”, “atenção”,“siga”, as cores do semáforo e também algumas formasde primeiros socorros de acidentes, que acontecemno trânsito. (Beaumont, 2003, p. 99).

Na presente investigação, informações degestoras diferiram daquelas prestadas por professo-ras e especialistas, no que tange aos trabalhos con-juntos. Para as primeiras, eles ocorrem rotineiramen-te e se acentuam nas comemorações da escola (G2)ou ainda “a professora de música realiza seu traba-lho integrado aos projetos desenvolvidos pela pro-fessora regente de forma interdisciplinar” (G1). Po-rém, professoras e especialistas afirmam que os tra-balhos coletivos ocorrem nas apresentações e fes-tas de formatura para “mostrar aos pais”. A professo-ra da escola 1 afirma que ambas – ela e a especia-lista – não têm tempo para organizar e avaliar juntasos alunos, e que apenas participa dos trabalhos quefazem para as apresentações. A questão das apre-sentações e a utilização do termo “participação” tam-bém é encontrada no discurso da especialista daescola 2: “normalmente, a integração acontece quan-do preparamos alguma apresentação para pais ouprofessores. Já trabalhamos muito bem, com parti-cipação de todas as professoras do infantil.” (E2).

Podemos afirmar que as respostas obtidasnos surpreenderam. A ênfase sobre a prática corren-te que restringe o espaço da música a momentos oucircunstâncias como apresentações de canções nasfestas das datas comemorativas do calendário, for-maturas, festivais e demais eventos similares éfreqüentemente discutida quando abordamos o tra-balho das professoras, sobretudo nas escolas quenão contam com a presença da aula dessa discipli-na, ministrada por especialistas. Em sentido opos-to, ao trabalho dos especialistas vinculam-se práti-cas que ultrapassam esta concepção, uma vez querealizam atividades em suas aulas que não visam àpura e simples apresentação. Ainda que conhece-doras do fato de que tais apresentações ocorram,acreditamos que sua finalidade associa-se mais aexemplos do desenvolvimento musical dos alunos doque ao aprendizado de canções de homenagens ousimilares. As apresentações tornam-se, nesse caso,uma espécie de mostra de resultados de um trabalhodesenvolvido em longo prazo, chegando mesmo, algu-mas vezes, a ser mal compreendida pelo público.Exemplo disso encontra-se na narrativa de uma pro-fessora de música entrevistada na pesquisa anterior:

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Então quando você apresenta, que nem eu fiz, umaperformance rítmica, acaba sem muito entendimento.Ou quando você faz, por exemplo, um cânone, a meuver as pessoas acabam achando que aquilo estádesencontrado, não vêem a complexidade da coisa, oquanto a criança teve que estar atenta para chegarnesse resultado. (Beaumont, 2003, p. 46).

Assim, ao buscarmos pelas práticas integra-das entre professoras e especialistas, e encontrar-mos tal associação a apresentações para datas co-memorativas, questionamo-nos se essas práticasnão estariam limitando, sobremaneira, a atuaçãodesses profissionais, considerando que, nas esco-las em que não estão presentes, as próprias profes-soras se encarregam das canções utilizadas naque-las ocasiões. Essa reflexão nos fez compreender aimportância em discutirmos mais profundamentesobre o significado do trabalho integrado entre pro-fessoras e especialistas, buscando por seus con-ceitos, limites e possibilidades no espaço escolarda educação infantil e anos iniciais do ensino funda-mental.

Acreditamos que as restrições para que oespecialista se integre ao trabalho das professorasjustificam-se, ainda, devido à pequena participaçãodesse profissional nas atividades cotidianas da es-cola. Gestoras, professoras e especialistas foramunânimes em afirmar que estas últimas participamdas reuniões escolares. Porém, a especialista daescola 2 afirmou conhecer pouquíssimo o trabalhoda professora e as gestoras da escola 1 informaramque “a dificuldade encontrada é o número de aulasprevisto na grade curricular (uma aula/semanal) quese torna insuficiente para um melhor aproveitamen-to” (G1, grifo nosso).

Esse termo nos fez refletir que as especialis-tas talvez estejam, de fato, “subaproveitadas” pelasescolas em que lecionam, sob o ponto de vista darealização de trabalhos integrados. Isso porque re-tomando o raciocínio de que as professoras traba-lham com alfabetização, português, matemática, ci-ências e história sem a possibilidade de dialoga-rem, cotidianamente, com especialistas dessas áre-as, é de se supor que trabalhar conjuntamente comespecialistas em Música, Teatro, Inglês, EducaçãoFísica e Informática, por exemplo, (que constituemas designadas “aulas especializadas”) seria enrique-cedor para o trabalho de todos e para as aprendiza-gens dos alunos. Vejamos, a esse respeito, o argu-mento de Spanavello e Bellochio (2005, p. 96):

Embora o unidocente tenha interagido, em suaformação inicial, com os conhecimentos musicais, éum sujeito que precisa estar em contato com umprofissional da área, para que em sua formação

continuada e práticas educativas em sala de aulapossa compreender certos conhecimentos musicaisque só o especialista é capaz de conceber.

Mas as trocas e os intercâmbios, até mesmoos encontros, permanecem praticamente inexisten-tes, uma vez que durante as aulas de música asprofessoras agem: “adiantando as tarefas dentro dasala de aula” (P2), “atendendo algum pai, para solu-cionar alguma dúvida ou corrigindo cadernos” (P1). Aprofessora da escola 1, ao informar que participa dotrabalho da especialista quando fazem apresenta-ções, acrescentou: “nos demais dias prefiro que aprofessora trabalhe sozinha”, corroborando a já co-nhecida informação de que o professor de música,na escola, via de regra, realiza um trabalho sozinho,isolado e descontextualizado do cotidiano escolar, enos remetendo, novamente, à pergunta elabora porFigueiredo: professores “desejam ser parceiros?”

Expectativas do trabalho integrado

Na seção final deste trabalho refletimos sobreas expectativas que possuímos com relação à atua-ção conjunta e integrada entre professoras e profes-sores de música nas escolas. Longe de apontar pres-crições a respeito de temática tão complexa, opta-mos por recuperar algumas concepções provenien-tes de estudos realizados em torno da questão dadisciplinaridade presente nos currículos escolares.Nosso interesse destina-se a conhecer e discutirpropostas que apontem para “modelos” que se preo-cupam em sugerir a diminuição da fragmentação,pois também acreditamos que “a parceria com pro-fessores das séries iniciais pode se tornar relevantenão apenas para a argumentação da área da educa-ção musical, mas para o desenvolvimento de umaeducação mais significativa, menos fragmentada emais completa” (Figueiredo, 2005, p. 28).

Associamos a fragmentação observada noscurrículos escolares à trajetória da especializaçãodo conhecimento humano em diferentes áreas cien-tíficas, devido, principalmente, às necessidades im-postas pela industrialização européia dos séculosXVIII e XIX, visando atender à demanda por trabalhoespecializado da sociedade moderna. Tal fragmen-tação, por si só, trouxe e traz conseqüências positi-vas se considerarmos os avanços científicos em di-versos campos, como nas áreas tecnológica, médi-ca, biológica, física, dentre outras. Porém, as reper-cussões da fragmentação no campo da educaçãoescolar atingiram a estruturação dos currículos emdisciplinas que mantêm pequeno ou nenhum diálo-go na atualidade. Gallo (2000, p. 23) ilustra essaquestão de modo muito claro:

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Quando assiste a uma aula de história, cada alunoabre a gavetinha de seu arquivo mental onde guardaos conhecimentos históricos; ao final da aula, fechaessa gavetinha e abre aquela referente à matéria aser estudada na próxima aula, e assim por diante… Ecomo cada uma das “gavetinhas” é estanque, semnenhuma relação com as demais, os alunos nãoconseguem perceber que todos os conhecimentosvivenciados na escola são perspectivas diferentesde uma mesma e única realidade, parecendo cada umdeles autônomo e auto-suficiente, quando na verdadesó pode ser compreendido em uma totalidade comoparte de um conjunto, peça ímpar de um imenso puzzleque pacientemente montamos ao longo dos séculos edos milênios.

A construção social que estabeleceu oposicionamento estanque das disciplinas escolaresocupa, hoje, apenas uma das possibilidades de or-ganização curricular. Propostas caracterizadas comointerdisciplinaridade, transversalidade, rede ocupam-se em, ao menos, minimizar as fronteiras tão dura-mente estabelecidas e suavizar a excessiva fragmen-tação. No campo da educação musical, a interdisci-plinaridade talvez assuste um pouco os que tememo retorno do trabalho polivalente, característico daEducação Artística. Dito nos termos de Figueiredo(2001, p. 34-35), “a integração, interdisciplinaridade,trabalhos em conjunto, retomam alguns aspectos dapolivalência e uma grande parte dos professores dearte abomina tal idéia”, mas

a possibilidade de integração das áreas não significaque os professores nas escolas estarão invadindoterritórios alheios, mas sim, aponta para uma educaçãomais significativa, sem tanta fragmentação, que leveem conta os saberes da humanidade, incluídas asartes nestes saberes.

Assim, consideramos importante conhecer,propor, exercitar e refletir sobre as relações que po-dem ser estabelecidas entre professores de músicae professoras. Acreditamos que ambos sejam porta-dores de saberes e práticas que permitem a realiza-ção de trabalhos integrados, mas o encontro, a dis-ponibilidade e o diálogo parecem ser condições im-portantes para que tais trabalhos se efetivem nasescolas. Mas não apenas isso, pois a possibilidadede realização de trabalhos dessa natureza tambémse inscreve na questão da formação docente. Noscursos universitários de ambos os profissionais –especialistas e professoras – o modelo curricularpadrão também permanece estruturado em discipli-nas isoladas, fragmentadas, implicando que o egres-so, ao ingressar no exercício da profissão docente,tenha dificuldades de criar e exercer um ensino dife-renciado e integrado.

Dadas as condições apresentadas pelas pro-fissionais participantes desta pesquisa, considera-mos que as comemorações festivas realizadas con-

juntamente não expressam, de modo significativo,as possibilidades de integração desejadas esugeridas pela literatura do campo da educaçãomusical. Barbosa (2002, p. 109) lembra que

O professor é o maestro que constrói a rede deprofessores e disciplinas para uma prática interdisci-plinar, o professor de Arte pode ter um papel muitoimportante nesta prática mas é preciso cuidado, já quepor anos, todos nós da área de artes ouvimos quedevemos ser o elo integrador na escola. Não se fazinterdisciplinaridade usando da habilidade do professorde artes nas festas da escola, ou para ilustrar textosem Português, ou para ensinar princípios matemáticosvia origami.

Julgamos necessário, portanto, que o de-bate sobre o trabalho conjunto ou integrado entreespecialistas e professoras continue fazendo partedos estudos daqueles que se dedicam a compre-ender a presença da aula de música nas escolas.Acreditamos que os esforços poderão se debru-çar, dentre outros aspectos, sobre o aprofunda-mento na compreensão: do significado que atri-buímos a essa integração, dos pressupostos queorientam nossas compreensões, das matrizes teó-ricas sobre as quais se ancoram nossas concep-ções e propostas, das práticas efetivamente rea-lizadas nas escolas, bem como das circunstânci-as que permitem, e das que inviabilizam, aefetivação dessas práticas.

Considerações finais

A implantação do ensino de música, na edu-cação infantil e anos iniciais do ensino fundamental,ministrado por professores especialistas passa porpráticas bastante diversificadas se considerarmos asmúltiplas realidades brasileiras, em nível estadual emunicipal. Observamos, nessa investigação, concep-ções e atuação de especialistas, professoras egestoras nessa implantação, bem como no estabe-lecimento dos trabalhos conjuntos ou integrados.Nossas considerações apontam para o isolamentoda aula de música no contexto das demais ativida-des escolares, mantendo-se, apesar de ministradapor professores especialistas, como “vitrine” para ospais. Compreendemos, por isso, a necessidade demobilização de argumentos convincentes por partede professores de música a respeito da importânciadessa área como disciplina escolar, conforme dis-cutem pesquisadores desse campo. Consideramos,ainda, a necessidade de que o estabelecimento depolíticas de formação musical para professoras al-cance os gestores das escolas.

Sobre os trabalhos conjuntos encontramos aênfase sobre a preparação de apresentações nasdatas comemorativas do calendário escolar, forma-

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Referências

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turas e eventos similares, o que consideramos ex-tremamente restritivo. Associamos a ausência detrabalhos integrados ao modelo curricular disciplinare fragmentado que mantém distantes as áreas deconhecimento e seus profissionais. Avaliamos sernecessário o aprofundamento dos debates acercada integração, alcançando seu significado, pressu-

postos, fundamentação teórica e possibilidades con-cretas de realização.

Esperamos, em suma, que, ao dar visibilidadeà diversidade de práticas encontradas na atuação deprofessores de música, possamos contribuir no deba-te acerca dos limites e possibilidades da atuação des-ses profissionais nas escolas de educação básica.

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RIBEIRO, Sônia Tereza da Silva; SCARAMBONE, Denise Cristina Fernandes. Programa de formação continuada em educaçãomusical para professores que atuam no ensino de arte em Uberlândia-MG. In: ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRADE EDUCAÇÃO MUSICAL, 14., 2005, Belo Horizonte. Anais… Belo Horizonte, 2005. 1 CD-ROM.SOUZA, Cássia Virgínia Coelho de. Desafios e perspectivas para a gestão na educação musical à distância. In: ENCONTROANUAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MUSICAL, 12., 2003, Florianópolis. Anais… Florianópolis: Universidade doEstado de Santa Catarina, 2003. 1 CD-ROM.SPANAVELLO, Caroline Silveira; BELLOCHIO, Cláudia Ribeiro. Educação musical nos anos iniciais do ensino fundamental: analisandoas práticas educativas de professores unidocentes. Revista da ABEM, Porto Alegre, n. 12, p. 89-98, mar. 2005.TARGAS, Keila de Mello. Contribuições de um programa de formação continuada em educação musical para professoras das sériesiniciais do ensino fundamental no desenvolvimento dessas professoras e seus alunos. In: ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃOBRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MUSICAL, 11., 2002, Natal. Anais… Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2002. 1 CD-ROM.TARGAS, Keila de Mello; JOLY, Ilza Zenker Leme. A música integrada à sala de aula numa perspectiva de formação continuada paraprofessores dos anos iniciais do ensino fundamental: redimensionando a prática pedagógica. In: ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃOBRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MUSICAL, 13., 2004, Rio de Janeiro. Anais… Rio de Janeiro: Conservatório Brasileiro de Música-CentroUniversitário; Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2004. 1 CD-ROM.TORRES, Maria Cecília de Araújo Rodrigues. Articulações entre memórias e identidades musicais de professoras: análise de umaexperiência. In: ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MUSICAL, 10., 2001, Uberlândia. Anais…Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, 2001. p. 22.______. Entrelaçamentos de lembranças musicais e religiosidade: “quando soube que cantar era rezar duas vezes...” Revista daAbem, Porto Alegre, n. 11, p. 63-68, set. 2004a.______. Identidades musicais e concepções pedagógicas de professoras e futuras professoras do ensino fundamental. In:REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO, 27., 2004, Caxambu. Anais...Caxambu: Anped, 2004b. Disponível em: <http://www.anped.org.br>. Acesso em: 17 fev. 2006.TRIVIÑOS, Augusto N.S. Introdução à Pesquisa em Ciências Sociais: a pesquisa qualitativa em Educação. São Paulo: Atlas, 1987.

Recebido em 27/02/2006

Aprovado em 28/03/2006

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O multiculturalismo e a problemática dadiferença

O termo “multiculturalismo”, de uma maneirageral, vem sendo usado para definir uma visão demundo que respeita a diversidade de modos de vidade cada sociedade, suas características próprias,seus valores éticos e sua identidade cultural. Exis-tem numerosas concepções sobre multiculturalismo,diferindo principalmente na radicalidade de suasposições, mas todas têm em comum a problema-tização da diferença.1

A dimensão multicultural danova filosofia da educação

musical

Luís Fernando LazzarinUniversidade Federal de Roraima (UFRR)

[email protected]

Resumo. Este artigo analisa a abordagem multicultural da experiência com música, propostapela Nova Filosofia da Educação Musical (NFEM), dentro de seu modelo multidimensional.Apresento, primeiramente, as idéias centrais do multiculturalismo e em seguida sua influência navisão multidimensional da NFEM, que comporta uma tríplice compreensão do termo “música”:uma atividade humana universal, uma atividade humana com manifestações contextualizadas ea cristalização dessa atividade na forma de obras musicais. Ao tencionar alguns conceitos eidéias, sobretudo a respeito da diferença, levanto algumas questões a serem repensadas pelaabordagem multicultural em educação musical, a partir da proposta da NFEM.

Palavras-chave: educação musical, Nova Filosofia da Educação Musical, multiculturalismo

Abstract. This article analizes the multicultural approach to music experience, proposed byNew Philosophy of Music Education (NFME), as presented in its multidimensional model. At first,I present the central ideas of multiculturalism and after that, at what extent its influence on themultidimentional vision of NFME, that comprehends a triple sense of the word “music”: a universalhuman practice, a contextualized human practice and the emboidement of that practice intomusical works.

Keywords: music education, New Philosophy of Music Education, multiculturalism

McLaren (1997) apresenta uma tentativa demapear as maneiras pelas quais a diferença éconstruída e engajada, distinguindo três espécies demulticulturalismo: o conservador, o liberal, o crítico.O multiculturalismo conservador apresenta uma vi-são colonizadora de unidade nacional, está ligado aatitudes imperialistas e a doutrinas de superioridaderacial, que consideram os povos das colônias comoprimitivos e bárbaros, privados das “graças salva-

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1 Cabe lembrar a distinção que Hall (2003) faz entre multicultural e multiculturalismo. O primeiro é um qualificativo de sociedades queapresentam diferentes comunidades culturais “originais” que tentam levar uma vida comum. O segundo é um substantivo quedesigna políticas e estratégias para administrar problemas gerados em sociedades multiculturais.

LAZZARIN, Luís Fernando. A dimensão multicultural da nova filosofia da educação musical. Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 14,125-131, mar. 2006.

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doras” da civilização ocidental. Tanto o multicultura-lismo humanista liberal de direita quanto o de es-querda acreditam na convivência harmoniosa e nafusão das culturas. Eles tratam a diferença comouma essência, que existe independentemente dehistória, cultura e poder. São, nesse ponto, bastanteingênuos, pois acreditam na possibilidade de umaigualdade relativa, quando as restrições socioculturaise econômicas forem reformadas.

O multiculturalismo crítico, por outro lado, re-cusa-se a ver a cultura como não conflitiva e harmo-niosa, e propõe que a diversidade deva ser afirmadadentro de uma política de justiça social. A diversida-de não é uma meta, mas deve ser afirmada dentrode uma política de crítica e compromisso com a jus-tiça social. A diferença deve ser compreendida den-tro da especificidade de sua produção, como produ-to da história, do poder, da cultura e da ideologia. Omulticulturalismo crítico “se posiciona contra o ro-mance neo-imperial com etnicidade monoglótica,sustentado em uma experiência compartilhada ou“comum” da “América” que está associada às ten-dências conservadoras e liberais do multicultu-ralismo” (McLaren, 1997, p. 124). O multiculturalismocrítico rejeita a possibilidade do melting pot, o cal-deirão cultural no qual as culturas se fundem, per-dendo sua individualidade em prol de uma ideologianacional harmoniosa.

Semprini (1999) aponta três áreas de proble-mas com que o multiculturalismo se defronta: a dife-rença, o lugar da minoria em relação à maioria, aidentidade e seu reconhecimento. Para essas trêsgrandes problemáticas há pelo menos duas leituras:uma política, que contempla a questão da conquistade direitos políticos e sociais dentro de um Estado;outra antropológica, que evidencia uma análise emi-nentemente cultural, e contempla movimentos quenão têm necessariamente uma base étnica, nacio-nal ou política, mas um sentimento de identidade evalores comuns. Pode-se reconhecer também umaepistemologia multicultural, ou seja, uma discussãoteórica que dá base à prática multicultural e que seopõe à epistemologia monocultural ou tradicional.Esta se baseia na concepção da verdade como ade-quação, e “afirma que uma teoria das condições daverdade depende de uma teoria representacional domundo natural” (Semprini, 1999, p. 82), através daqual se consegue apreender e dominar toda a com-plexidade da realidade.

Em contrapartida, a epistemologia multicultu-

ral afirma a realidade como uma construção huma-na, baseada em sua descrição através da lingua-gem. Toda realidade é uma descrição a partir de umponto de vista, uma versão particular de cada perso-nagem da realidade social. Se a realidade é em sirelativa e subjetiva, as interpretações dela também osão. Em decorrência, os valores tornam-se relativos,pois não existe mais uma verdade fixa e objetiva,dentro de uma configuração discursiva que lhe dêsentido. O conhecimento é um fato político, que nascecomo uma versão da realidade, relacionando umacondição do mundo e um enunciado, embora se im-ponha, muitas vezes, como verdade única, objetivae neutra.

Torna-se fácil entender como a escola ocupalugar central nas disputas multiculturais, uma vezque a ela se atribuem virtudes formativas do indiví-duo. Como instância libertadora, permitiria desen-volver seu espírito crítico, transformando-o em umhomem livre e responsável, dando-lhe condições deescolher de modo autônomo tudo o que lhe convém.O multiculturalismo reclama para si a promessa damodernidade, principalmente aquela de seu projetopedagógico. Surgida dos ideais do Iluminismo (sé-culos XVII-XVIII), a modernidade institui um modo depensar que promete libertar o homem de todas astutelas metafísicas (míticas ou religiosas), atravésdo uso da razão.

O caráter paradoxal – não sem uma certa ironia – domulticulturalismo é o de fazer a modernidade cair em suaprópria armadilha ao reclamar dela, realmente, o que lheé devido, ao pretender que ela coloque esseuniversalismo, essa igualdade, essa justiça, essereconhecimento que ela sempre pretendeu ter na própriabase de seu projeto civilizatório. (Semprini, 1999, p. 161).

O projeto moderno inaugura os sistemas pú-blicos de ensino como base da emancipação huma-na, sem recorrer a uma metafísica de natureza teo-lógica. A partir daí, o fundamento religioso se desva-nece e o fundamento racional toma seu lugar. Entre-tanto, segundo MacIntyre (1987), o projeto modernofracassou, visto que inexiste nele a possibilidade deuma moral independente do contexto, o que leva àimpossibilidade de uma lei moral universal.

As éticas da modernidade fracassaram por-que fizeram uma transposição do esquemateleológico aristotélico, que descreve um percursono qual no início há um homem como é e, no final,um homem tal como poderia ser se realizasse suanatureza2 essencial, através da educação. Essatransposição não funciona porque a modernidade

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2 Segundo Cassirer (1997), o termo “natureza”, no século XVIII, refere-se não só à existência física e à realidade material, mastambém à origem e ao fundamento das verdades.

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nega a possibilidade de se revelar a essência danatureza humana verdadeira. Não temos comoeducá-la, já que não temos uma natureza única, aprópria modernidade inaugura múltiplos modos deinterpretá-la. Assim, dá-se a falência do conceito denatureza humana, que passa a ser múltiplo, pois aciência invalida um acordo sobre o que ele seja. Apartir daí, está posta a idéia de que o fenômeno moraltorna-se essencialmente histórico e contextualizado.As pretensões do projeto educacional moderno deliberdade, universalidade, emancipação, autonomiae consciência moral são abaladas. A pedagogia tam-bém pode se considerar abalada, já que sempre de-pendeu de uma matriz de natureza humana parasobre ela interferir e realizar uma idéia de bem.

Por expor toda essa problemática, omulticulturalismo revela-se um forte indicador da cri-se da modernidade, pois as principais categorias fi-losóficas, sociais e políticas sofrem um profundoquestionamento pelas reivindicações multiculturaise seu conceito de diferença. A abordagemmulticultural da NFEM incorpora esses pressupos-tos, a partir dos três sentidos da palavra “música”,que passo a analisar a seguir.

MÚSICA, Música e música

O modelo multidimensional da experiência commúsica proposto pela Nova Filosofia da EducaçãoMusical (NFEM)3 incorpora avanços significativos dosnovos temas surgidos até então, particularmente nasáreas da etnomusicologia e da ciência cognitiva. Paraa NFEM, do ponto de vista da aquisição do conheci-mento, a experiência musical apresenta quatro di-mensões: formal, informal, impressionística esupervisorial. Todas essas dimensões se potencia-lizam quando o conhecimento musical é aplicado,como atividade procedural,4 ou seja, como um fazermusical. A partir desse ponto, passo a apresentaros aspectos que constituem a multidimensionalidadeda experiência com música, de acordo com aNFEM, para a qual música deixa de ser apenas oconjunto das obras musicais e passa a abrangertrês dimensões.

MÚSICA, como uma prática humana diversificada,consiste em muitas diferentes práticas musicais ouMúsicas. Cada e toda prática musical (ou Músicas)envolve duas correspondentes e mutuamentereforçadas atividades de fazer musical e ouvir musical.

[…] A palavra música (caixa baixa) refere-se aoseventos sonoros audíveis, obras, que decorrem dosesforços dos praticantes musicais nos contextos depráticas particulares. (Elliott, 1995, p. 44, traduçãominha).

Primeiramente, “MÚSICA” como atividade de-liberada de organizar os sons faz parte de todas asculturas. Deliberada significa não natural, pois nemtodos os sons podem ser música. Há sons e formasde organizá-los aceitos e proibidos. Todas as socie-dades, todos os contextos organizam os sons deforma intencional. Essa capacidade musical é uni-versalmente compartilhada por todos os homens emtodos os contextos. A multidimensionalidade daMÚSICA constitui-se em um “fazedor” (doer), umaatividade, um produto e um contexto circundante, ouseja, músicos produzem obras musicais através desua prática contextualizada. Assim como o fazermusical, o ouvir é procedural e contextualmente re-ferido, isto é, os padrões musicais específicos deuma prática musical só fazem sentido quando setornam familiares (tones-for-us) e são entendidos nãocomo dados naturais, mas como construções cultu-rais específicas. Contudo, o ouvir competente estána dependência direta de um fazer musical compe-tente. “Educar ouvintes competentes, proficientes ehábeis para o futuro depende de uma progressivaeducação de competentes, proficientes e artísticosprodutores de música no presente.” (Elliott, 1995, p.99, tradução minha).

Assim, entender “Música” como organizaçãocultural do material sonoro é estar aberto a reconhe-cer que, se existem estruturas básicas, pré-construídas e reconhecíveis do sistema tonal queformam o sentido de música que se conhece noOcidente, essa organização, porém, não é natural.Muitas vezes, contudo, se naturaliza e privilegia-seesse sistema, o que muitas vezes impede de reco-nhecer e aceitar outras diferentes manifestaçõesmusicais. Outras vezes, privilegia-se a música deuma época e de determinada sociedade em espe-cífico, sendo ela eleita como padrão a ser segui-do, como no caso da música européia “séria” doséculo XIX.

O fazer musical deliberado (musicing), queocorre dentro de contextos específicos, subdivide-se em: atividade de composição, atividade deperformance (vocal ou instrumental), atividade de

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3 Título original: Music Matters: a New Philosophy of Music Education, de David Elliott (1995).4 Segundo a NFEM, o conhecimento formal é o conhecimento teórico sobre música. Este depende de saber como e onde fazerjulgamentos musicais que, por sua vez, dependem do entendimento da situação musical específica, dos padrões e tradições quesão a base de um fazer musical específico. O conhecimento impressionístico pressupõe integração e interação entre cognição eafeto, as “emoções cognitivo-musicais”. O conhecimento supervisorial monitora e ajusta o pensamento musical a curto e médioprazos.

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improvisação, atividade de arranjo, atividade de re-gência. Consideradas contextualmente, essas ativi-dades estão imersas em uma prática e uma tradi-ção que surgem, extinguem-se, alteram-se graças àrelação de diálogo bastante dinâmica entre quem asexecuta, ou seja, compositores e executantes(instrumentistas, cantores, regentes e arranjadores)fazem parte de uma cadeia inter-relacional.

Esse caráter dinâmico é exemplificado pelasanalogias que se podem fazer, por exemplo, com acitação e a paráfrase. Quando se faz uma citação,reproduz-se literalmente o que outra pessoa disse.Quando se faz uma paráfrase, mantém-se o sentidodo que foi dito por outrem, mas utiliza-se uma certaliberdade interpretativa, usando cada intérprete a suaprópria maneira de falar. Algo análogo ocorre com ainterpretação de uma composição. O intérprete pre-cisa dosar as “citações” – o que o compositor dei-xou registrado por escrito (supondo que isso tenhaacontecido) – e a “paráfrase” – aquilo que pode serexecutado com certa liberdade, certa participaçãodo executante na composição. Considerado no todoesse movimento de “citações” e “paráfrases”, ou seja,a interpretação de cada executante, cria-se uma tra-dição interpretativa, que é incorporada à práticacomposicional do contexto musical correspondentee a influencia.5

“Música” (a obra musical) possui tambémmultidimensionalidade, pois é constituída pelo dinâ-mico inter-relacionamento entre a tradiçãocomposicional e a tradição interpretativa. Inclui-se,nessa dinâmica, a audiência e a crítica musical. Aobra de arte musical não é apenas o seu registrográfico (a partitura, por exemplo). A obra de artemusical, segundo o modelo da NFEM, tem a dimen-são da composição, um design sonoro particular,projetado pelo compositor; a dimensão execução-interpretação, representada pela tradição interpre-tativa; a dimensão prático-específica, compartilhadapela tradição da prática musical. “A obra musical é aexecução de padrões musicais organizados por umaação artística, um design sonoro, que revela costu-mes e tradições de uma prática, e seus respectivoscomprometimentos ideológicos.” (Elliott, 1995, p.199, tradução minha).

MÚSICA (a prática humana), Música (as ma-nifestações contextuais de MÚSICA) e música (asobras de arte) são dimensões de uma mesma ativi-

dade, do que depreende-se que o fazer musical deveser o centro de toda a EM. Esse fazer não é sim-plesmente um ato mecânico, mas um “pensar emação” (thinking-in-action). Anteriormente, a centra-lidade da educação do sentimento e da sensibilida-de estética valorizava demais o conhecimento verbalsobre música, tendo uma atitude passiva de con-templação e de descrição da música. Transformava-se, segundo a NFEM, em uma “antieducação musi-cal”, pois afastava os alunos da própria experiênciado fazer musical, que constitui o conhecimentoprocedural em música. O conceito de conhecimentoprocedural é emprestado de Ryle (1963) e consisteno conhecimento manifesto em ação (knowing how).Ele surge da necessidade de reconhecer que existeoutro tipo de conhecimento além daqueles expres-sos por conceitos verbais (knowing that).

Portanto, é possível para as pessoas realizarinteligentemente alguns tipos de operações quandoainda não estão em condições de considerar asproposições que indicarão como elas deveriam agir.Algumas performances não são controladas porqualquer conhecimento interior dos princípios que asregem. (Ryle, 1963, p. 31, tradução minha).

Não existe um “fantasma dentro da máquina”,uma mente que trabalha oculta, teorizando, antesde realizarmos qualquer atividade cotidiana. “A su-posição absurda feita pela lenda intelectualista é ade que, se a performance de alguma coisa leva onome de inteligente, é devido à operação internaanterior planejando o que fazer” (Ryle, 1963, p. 30,tradução minha). Essa posição é contrária à idéiade que a execução musical é um ato corporal, me-cânico e reprodutivo.

Nas atividades cotidianas, não há dois mo-mentos separados, em que primeiro planejamos se-gundo regras e depois executamos a atividade. Amente não é um lugar separado do corpo, secreto,onde acontece a teoria. Teorizar é apenas uma dasatividades da mente. Ser inteligente é controlar eavaliar constantemente as ações praticadas, apren-dendo com elas. Embora se saiba executar ativida-des inteligentemente, muitas vezes não se conse-gue teorizar sobre elas (falar sobre elas, descrevê-las). Depois que se aprendem as regras, elas pas-sam a ser uma “segunda natureza”. Aqui se inclui amúsica, pois a prática musical não precisa passarpela teoria.

A dualidade corpo versus mente (que conce-______________________________________________________________________________________________________________

5 De modo geral, essas considerações têm inspiração na idéia de estilo de Meyer (1956, 1967), que sugere a interação entrecompositores, intérpretes e ouvintes competentes na formação do estilo como o universo em que se dá o sentido do discursomusical. Essa interação dá o equilíbrio entre novidade e familiaridade, o qual torna o estilo atrativo. O termo “estilo” pode sersubstituído e seu sentido ampliado para práticas ou culturas musicais, mas a noção de significado musical em relação dinâmica comum contexto permanece.

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be primeiro o pensamento em forma de linguagemverbal e depois a ação) é uma falácia a ser supera-da. A premissa aqui é de que a mente é o corpo enão se pode separá-los. O conhecimento proceduralé o knowing-in-action, um tipo de conhecimento quenão se limita à linguagem verbal, sendo maisabrangente e mais rico que esta. O conhecimentoprocedural é mais que uma habilidade técnica,artesanal ou simplesmente mecânica, embora de-las necessite para se constituir. Ele envolve um con-junto complexo de conhecimentos que participamda consciência. Não existem etapas sucessivas depensamento e de ação, ambos acontecem ao mes-mo tempo, sendo impossível separá-los em sua uni-dade. A música é uma atividade procedural, pois éum conhecimento manifesto em ação. Decisões sãotomadas e problemas musicais são encontrados eresolvidos durante o fazer musical (thinking and doingin action).

A NFEM sustenta que a verdadeira EMhumanística (aquela preocupada com o crescimen-to do indivíduo como um todo) está ligada ao ensinoda música como prática humana diversificada. Doconfronto entre os significados culturais e ideológi-cos de culturas musicais não familiares, surge aoportunidade de conhecer a diferença e de descobrirque o que parece natural e comum pode não ser.Entende-se por que a dimensão contextual é tãovalorizada pela NFEM: como atividade, ela é produ-ção cultural específica, reveladora de uma identida-de cultural.

Pois uma prática musical é um pequeno sistema socialou um minimundo. MÚSICA, acima de tudo, é umuniverso de minimundos (por exemplo, mundo do jazz,mundo da música coral), cada um dos quais éorganizado ao redor de respectivos saberes, crenças,valores, objetivos e padrões em direção à produçãode um certo tipo de obras musicais para um grupoparticular de ouvintes. Além disso, cada cultura musicalé ligada em uma relação de mão dupla com seucontexto culturalmente circundante com os quaisessas crenças e valores e tudo o que constitui acultura musical são constantemente praticados,refinados e modificados com relação a mais amplasconcernências culturais. (Elliott, 1995, p. 198, traduçãominha).

A visão multicultural em arte-educação assu-me ser necessário considerar a maneira como dife-

rentes grupos culturais entendem a arte e a incluemdentro de seus contextos.6 Questões relativas aetnocentrismo, preconceitos ou racismo devem serincluídas nessa discussão multicultural, tentandosempre questionar a cultura manifesta e todo tipo deopressão. Somente uma educação que fortalece adiversidade cultural pode ser entendida como demo-crática. “Procurar a igualdade sem considerar as di-ferenças é obter uma pasteurização homogenei-zante.” (Barbosa, 1998, p. 80). Um argumento pró-prio do discurso multicultural em arte-educação é ode que deve haver ênfase no fazer criativo da crian-ça, em suas interações com as diversas práticasartísticas e na democratização e socialização doacesso à educação em arte.

Os significados em arte são aprendidos noprocesso de leitura,7 que se baseia em um modelosemiológico de comunicação de uma mensagemartística, muito embora esta possua semântica maisindeterminada. Nesse deslocamento do estético parao semiótico, a experiência com arte passa a ser “in-teressada” (nas condições de sua produção e de seusfins) e esse “interesse” tenta deslocar seus critériosvalorativos. Isso dá à educação em arte uma tendên-cia cognitivista, cuja principal missão é ensinar aoestudante os diversos códigos das linguagens artís-ticas para que ele possa desfrutá-las. Existe, por-tanto, uma forma correta de experienciar a arte, ne-cessária para o deleite estético, possível apenas paraos iniciados. Pressupõe-se que a escola seja capazde recriar o conhecimento de uma prática artísticaespecífica, vivida de forma rica e ativa pelo estudante.

A atribuição de sentidos e significados em arteé, desse ponto de vista, uma questão de “freqüen-tação”, ou seja, de “familiarização com as lingua-gens artísticas. Em lugar de pressupô-las, buscarformas alternativas para, no curto espaço da situa-ção escolar, desenvolver em todos a familiarizaçãoque alguns devem a uma vida inteira em determina-do ambiente sócio-cultural.” (Penna, 1995, p. 51).Existe o pressuposto de que a escola deve ampliaro conhecimento do estudante a partir de suasvivências. Esse “ampliar”, no entanto, tem a carac-terística de refinamento dos “esquemas perceptivos”,capaz de tornar o estudante interessado e crítico.

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6 Embora arte-educação e EM nem sempre tenham interesses convergentes, parece que essas duas áreas compartilham algumasidéias. Aqui apenas sugiro que o debate sobre o multiculturalismo está inserido em uma perspectiva mais ampla, que concerne aambas as áreas.7 A palavra “leitura” aplica-se melhor às artes plásticas, quando eminentemente ligada à interpretação e à atribuição de significadoem uma representação visual. Contudo, em música, a palavra leitura refere-se à decodificação de um registro notacional (umapartitura, uma cifra ou outra representação gráfica, por exemplo). Isso pode gerar uma interpretação restrita do termo, mais do quejá acontece com respeito às artes visuais. De fato, pode-se fazer uma leitura musical – no sentido de decifração do código – semse fazer música.

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Essas proposições multiculturais são feitastambém pela NFEM, que afirma que é necessárioque todo estudante mova-se para fora de seu con-texto musical, em direção aos significados musicaisque os contextos não familiares podem proporcio-nar. “Acompanhando um certo risco, desorientação,e eventualmente uma ‘aculturação musical’, surgeuma reconstrução pessoal das próprias relações,preferências e suposições.” (Elliott, 1990, p. 161, tra-dução minha). Esse movimento de abertura em dire-ção ao diferente tem o objetivo de torná-lo menosdistante e assim compreendê-lo como próprio. O di-ferente não se conserva como tal, mas é assimiladoe moldado no modelo multidimensional da NFEM.

Considerações finais

A proposta multicultural da NFEM baseia-seem uma concepção de educação musical que pre-tende ser democrática, na qual a todos é dada aoportunidade de conhecer e conviver com a diferen-ça e que, ao valorizar a música como produção cul-tural, permite através dela o conhecimento da cultu-ra específica. A atividade musical não somente pos-sibilitaria conhecer uma realidade cultural através dasua prática musical, mas também serviria como ins-trumento de transformação social. A visão multiculturalpretende questionar e deslocar os padrões valorativosdados pela música “séria” de tradição européia. Essepadrão, ideologicamente comprometido, despreza aspráticas musicais que fogem a ele rotulando-as deprimitivas, segundo a crítica da NFEM.

Há o deslocamento da importância do signifi-cado intrínseco musical, ligado às formas sonoras,para o significado extrínseco, ligado às condiçõesdo contexto em que a música é produzida, valori-zando toda e qualquer prática musical como mani-festação legítima e única de cada cultura. A música,como característica única de humanidade, manifes-ta em cada cultura seu contexto de valores, tradi-ções, crenças, linguagem, etc. Como é obrigaçãodo multiculturalismo respeitar todas as manifesta-ções artísticas de todos os contextos, tornam-sequestionáveis os julgamentos de qualidade musical,já que se deslocam os padrões da música eruditaocidental como critério do que seja “boa música” ese relativizam os critérios de avaliação.

Contudo, esse relativismo na valorização daspráticas musicais fica mais facilitado quando se falade culturas distantes. Mas a situação se modificaquando se trata de práticas urbanas próximas. Quan-do se trata de culturas distantes e exóticas, parecenão haver dificuldade em aceitar-se sua inclusão emcurrículos multiculturais. O problema se agrava quan-do se trata de avaliar a inclusão de práticas musi-

cais de “dentro de nossa cultura ocidental” – o rock,o pop, a MPB, por exemplo. Nesse sentido, nãoexiste, por parte da NFEM, nenhum tipo deproblematização dos conflitos ideológicos que pos-sam existir entre as diferentes práticas musicais.

A valorização da pluralidade torna-se maiscomplexa à medida que as práticas musicais degrupos específicos se multiplicam e que asdiferenças começam a ser mais sutis, ainda maisse levando em conta a dinâmica de trocas entre elas.

Uma das dificuldades dessa noção reside em que,enquanto as pessoas de uma cultura entram emcontato com outras de outra cultura, cada uma afetaas práticas culturais da outra. E, a menos que umgrupo cultural possa de alguma maneira garantir totalisolamento, o contato com os outros é tão inevitávelquanto a troca que esse contato engendra. (Walker,2000, p. 36, tradução minha).

Significa, em outras palavras, que este contatonos transforma sempre em algo de “híbridos”, demisturados, em um processo de apropriação devalores dinâmico, que afasta a idéia de que existamculturas musicais separadas e estáveis. Asdificuldades aumentam, pois fica claro que já não étão fácil reconhecer quem é ou onde está o “outro”,e o quanto ele (ainda) é tão diferente. O problemado multiculturalismo não é apenas a interface entreo “de dentro” (insider) e o “de fora” (outsider) dedeterminada cultura, mas também a incapacidadepara se determinar quem é um e quem é outro. Asvanguardas musicais e a mídia surgem comocatalisadoras desta dinâmica de apropriaçõesculturais, ao mesmo tempo em que “derrubaram osideais de refinamento da arte burguesa” (Walker,2000, p. 33, tradução minha). Ao mesmo tempo, autilização que as vanguardas musicais do séculoXX fizeram da música não-ocidental, ao invés de umaabordagem multicultural, apresenta-se como umexemplo do quanto uma cultura dominante podeapropriar-se de elementos de outra cultura, que perdesua identidade.

De fato, não há mais como pensar emsociedades e comunidades isoladas e puras em suacultura. As características da vida contemporâneacomo a tecnologia, a velocidade cada vez maior dainformação através das mídias eletrônicas, osprocessos de globalização da economia queprescindem das fronteiras nacionais, as constantesmigrações, tudo isso remete ao que García Canclini(1998) chama de hibridização das culturas, na qualpráticas particulares que existiam de formas isoladascombinam-se para gerar outras estruturas e práticas.Esse processo tem um aspecto positivo de dinâmicareconstrução, ressignificação de mundo e depessoas, reposicionando tempos e espaços. Nesse

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sentido, as identidades culturais são artefatosabertos e flexíveis.

Assim, a abordagem multicultural da NFEMcorre dois riscos, ao tornar-se apenas uma mudançametodológica. O primeiro é o de transformar-se emuma multiculturalidade aditiva, com uma “atitude deapenas adicionar à cultura dominante alguns tópicosrelativos às outras culturas” (Barbosa, 1998, p. 93),8

de forma folclórica e turística. O segundo risco é oda rejeição sumária de qualquer manifestaçãomusical que possa representar a chamada culturadominante. Nesse sentido, ao invés de ouvir eproduzir música erudita, como quase sempre temacontecido na escola, util izam-se apenasmanifestações musicais de contextos multiculturais.Pensar o multiculturalismo nesses termos é apenassubstituir uma visão hegemônica por outra.

O multiculturalismo proposto pela NFEM querser uma perspectiva inclusiva, que torne aconvivência entre os povos possível e pacífica,através da preparação das “crianças para trabalhar

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8 A este propósito, a NFEM apresenta uma tipologia de currículos: o assimilacionista, o amalgamacionista, o currículo da “sociedadeaberta”, o insular, o modificado e o dinâmico. Aqui interessa apenas notar que essa tipologia segue um continuum que vai do menos“tolerante” ao mais “tolerante”.

efetivamente e tolerantemente com os outros pararesolver problemas comunitários comuns” (Elliott,1995, p. 293, tradução minha). Seria aceitável incluira música da mídia também como uma dessasmanifestações internas de uma mesma cultura. Atéque ponto a música transmitida pelo rádio, de umamaneira intensa, é produto de uma manifestaçãocultural ou uma imposição da mídia e de seusinteresses de mercado? A esse propósito, Eco (2000)aponta para a falta de representação e simbolizaçãodas emoções despertadas, que se tornam objetode uma apreciação acrítica, passiva e epidérmica.Esse tipo de problematização não é, contudo,contemplado pelo multiculturalismo da NFEM. Pelocontrário, acredito ser fundamental em todadiscussão sobre multiculturalismo a constanteexplicitação dos conflitos e das idiossincrasias quese escondem sob, por exemplo, este slogan da“valorização de todas as práticas musicais”. Asimples adesão a esse slogan, aceito como verdadeinconteste, não permite desvelar sua complexidade,reduzindo e simplificando a discussão.

Referências

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Recebido em 20/02/2006

Aprovado em 28/03/2006