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nmero 16 maro de 2007

Associao Brasileira de Educao Musical

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abem Associao Brasileira de Educao Musical

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Diretorias e Conselho Editorial da ABEM Binio 2005-2007DIRETORIA NACIONAL Presidente: Vice-Presidente: Presidente de Honra: Secretrio: Tesoureira: DIRETORIA REGIONAL Norte: Nordeste: Sudeste: Sul: Centro-Oeste: CONSELHO EDITORIAL Presidente:

Prof. Dr. Srgio Luiz Ferreira de Figueiredo UDESC, SC [email protected] Profa. Dra. Cristina Grossi UnB, DF [email protected] Profa. Dra. Jusamara Souza UFRGS, RS [email protected] Prof. Dr. Jos Nunes Fernandes UNIRIO, RJ [email protected] Profa. Dra. Regina Cajazeira UFAL, AL [email protected] Profa. Ms. Snia Blanco UEPA, PA [email protected] Prof. Dr. Luis Ricardo Queiroz UFPB, PB [email protected] Profa. Dra. Ilza Zenker Joly UFSCAR, SP [email protected] Profa. Dra. Rosane Arajo, UFPR, PR [email protected] Profa. Dra. Cssia Virgnia Coelho de Souza (UFMT) [email protected]

Profa. Dra. Cludia Bellochio UFSM, RS [email protected] Editora: Profa. Dra. Ceclia Torres UERGS, RS [email protected] Membros do Conselho Editorial: Profa. Dra. Isabel Montandon UnB, DF [email protected] Profa. Dra. Lia Braga UFPA, PA [email protected] Profa. Dra. Maura Penna UEPB, PB [email protected]

Revista da ABEM, n. 16, maro 2007. Porto Alegre: Associao Brasileira de Educao Musical, 2000 Semestral ISSN 15182630 1. Msica: peridicosIndexao: LATINDEX - Sistema Regional de Informacin en Lnea para Revistas Cientficas de Amrica Latina, el Caribe, Espaa y Portugal; Edubase (Faculdade de Educao/ UNICAMP - Campinas/SP - Brasil)Projeto grfico e diagramao: MarcaVisual Reviso: Trema Assessoria Editorial Fotolitos e impresso: Metrpole Indstria Grfica Ltda. Tiragem: 500 exemplares Periodicidade: Semestral permitida a reproduo dos artigos desde que citada a fonte. Os conceitos emitidos so de responsabilidade de quem os assina.

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SumrioEditorial ..................................................................................................................................................... 5 Pesquisa qualitativa em educao musical: contextos, caractersticas e possibilidades ................. 7 Liora Bresler Polticas culturais e polticas educacionais conflitos e convergncias .......................................... 17 Vanda Bellard Freire Pensar a educao musical como cincia: a participao da Abem na construo da rea ........ 25 Jusamara Souza Olhando o presente e delineando o futuro da Abem .......................................................................... 31 Srgio Figueiredo A educao musical na perspectiva de um concurso pblico para professor da disciplina de Arte ..................................................................................................... 39 Cristina Grossi No basta tocar? Discutindo a formao do educador musical ......................................................... 49 Maura Penna Produo cientfica em educao musical e seus impactos nas polticas e prticas educacionais ................................................................................................... 57 Luciana Del Ben Um estudo sobre a formao musical de trs professoras: o papel e a importncia da msica nos cursos de Pedagogia .......................................................... 65 Juliane Aparecida Ribeiro Diniz Ilza Zenker Leme Joly Mdias, msicas e escola: a articulao necessria ........................................................................... 75 Maria Jos Dozza Subtil Por dentro da matriz .............................................................................................................................. 83 Ceclia Cavalieri Frana Pesquisa em educao musical: situao do campo nas dissertaes e teses dos cursos de ps-graduao stricto sensu brasileiros (II) .................................................................. 95 Jos Nunes Fernandes Autores ................................................................................................................................................... 101 Normas para publicao ....................................................................................................................... 105

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ContentsEditorial ..................................................................................................................................................... 5 Qualitative research in Musical Education: contexts, characteristics and possibilities .................... 7 Liora Bresler Cultural policies and educational policies conflicts and convergences ....................................... 17 Vanda Bellard Freire Thinking of musical education as a science: ABEMs participation in the construction of the field .............................................................................................................. 25 Jusamara Souza Glancing at the present and outlining the future of ABEM ................................................................ 31 Srgio Figueiredo Musical education in the perspective of a public selective process for Art professors ................... 39 Cristina Grossi Isnt it enough to play? Discussing the musical educators graduation ............................................ 49 Maura Penna Scientific production in musical education and its impacts upon educational practices and policies ............................................................................................. 57 Luciana Del Ben A study on the graduation of three teachers: the role and importance of music in Pedagogy courses .............................................................................................................. 65 Juliane Aparecida Ribeiro Diniz Ilza Zenker Leme Joly Medias, music and school: the necessary articulation ....................................................................... 75 Maria Jos Dozza Subtil Inside the matrix .................................................................................................................................... 83 Ceclia Cavalieri Frana Research in musical education: situation of the field of essays and thesis of stricto sensu post-graduation Brazilian courses (II) ........................................................................ 95 Jos Nunes Fernandes

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Editorial com enorme satisfao que apresentamos a Revista da ABEM n.16. Este nmero parte dos textos dos convidados dos Fruns do XV Encontro Anual da ABEM, realizado na cidade de Joo Pessoa em outubro de 2006, cuja temtica foi Educao Musical: produo cientifica, formao profissional e impactos na sociedade e teve a coordenao dos professores Luis Ricardo Queiroz e Vanildo Marinho, da UFPB. O artigo de Liora Bresler, convidada internacional que proferiu a conferncia de abertura do Encontro, apresenta questes e trata de vrios aspectos da pesquisa qualitativa em educao musical, contextos, caractersticas e possibilidades. A revista apresenta, a seguir, os textos de Vanda Freire, Jusamara Souza e Srgio Figueiredo, respectivamente duas ex-presidentes e o atual presidente da ABEM. O texto Polticas culturais e polticas educacionais conflitos e convergncias, de autoria de Vanda Freire, apresenta reflexes acerca dos conceitos de cultura e de educao. J o texto de Jusamara Souza, intitulado Pensar a educao musical como cincia: a participao da Abem na construo da rea, traz subsdios para uma discusso sobre a ABEM como uma construo coletiva, destacando objetivos do seu Estatuto e aspectos da educao musical como cincia. Finalizamos este bloco com o texto Olhando o presente e delineando o futuro, que traz uma reflexo de Srgio Figueiredo sobre a trajetria desta Associao, ao longo dos seus quinze anos de existncia, e apresenta propostas para novas aes. Os prximos trs artigos integraram os Fruns do Evento, e o primeiro deles, de Cristina Grossi, discute o cenrio poltico-educativo na educao musical no Brasil a partir de reflexes de um edital de um concurso pblico para professor de Arte. O texto seguinte, de Maura Penna, trata da formao do educador musical no espao de uma licenciatura, ressaltando que no basta tocar para se capacitar como professor, abordando os desafios que constituem as escolas regulares de educao bsica. O artigo de Luciana Del Ben, Produo cientfica em educao musical e seus impactos nas polticas e prticas educacionais, faz uma anlise do papel da ABEM na circulao e divulgao desta produo da rea, tanto atravs dos encontros regionais e nacionais quanto por meio das publicaes. Os textos que seguem trazem diferentes cenrios musicais e desencadeiam reflexes para a rea. O artigo escrito em parceria por Juliane Ribeiro Diniz e Ilza Zenker Joly apresenta um recorte de pesquisa sobre a formao musical com trs professoras em cursos de Pedagogia. J Maria Jos Subtil disserta sobre prticas musicais e estudos sobre a msica miditica objetivando entender em que medida esse conhecimento se relaciona como as atividades escolares.

5TORRES, Ceclia. Editorial. Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 16, 5, mar. 2007.

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Os dois textos que finalizam este nmero da Revista do seguimento a discusses e ampliam dados de pesquisa apresentados no nmero 15. Ceclia Cavalieri Frana expande a discusso iniciada em artigo anterior (Frana, 2006) sobre a necessidade de se estabelecer fundamentos para o ensino bsico de msica e apresenta uma matriz curricular para a escola regular. O artigo de Jos Nunes Fernandes apresenta a segunda parte do estudo referente produo discente em educao musical dos cursos de ps-graduao stricto sensu brasileiros, entre os anos de 2002 e 2005, e analisa quantitativamente o material. Nosso desejo que os textos que compem este nmero possam contribuir e subsidiar discusses, reflexes, pesquisas, propostas pedaggicas e prticas musicais em diferentes contextos de ensinar e aprender msica. Uma tima leitura para todos!

Cecilia Torres Editora

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Pesquisa qualitativa em educao musical: contextos, caractersticas e possibilidades*Liora BreslerUniversity of Illinois at Urbana-Champaign Estados Unidos [email protected]

Resumo. Este texto, apresentado originalmente como conferncia de abertura do XV Encontro Anual da Abem, trata de vrios aspectos da pesquisa qualitativa em educao musical. So discutidas as principais caractersticas da pesquisa qualitativa, as razes intelectuais da metodologia qualitativa, conceitos de realidade, gneros de pesquisa e tica. A discusso sobre mtodos de pesquisa qualitativa em educao musical inclui exemplos norte-americanos a partir de pesquisas realizadas com professores especialistas e generalistas. O texto apresenta, tambm, a trajetria da pesquisa qualitativa em educao musical nos ltimos 25 anos nos Estados Unidos. Palavras-chave: educao musical, pesquisa qualitativa, mtodos de pesquisa

Abstract. This text, originally presented as the opening conference of the XV Encontro Anual da Abem (The XV Annual Meeting of the Brazilian Association of Music Education Abem), discusses several aspects of qualitative research in music education. The main characteristics of qualitative research, the intellectual roots of qualitative methodology, reality concepts, research genres and ethics are discussed. The presentation of qualitative research methods in music education includes North American examples of qualitative research accomplished with specialist and generalist teachers. The text also presents the path of qualitative research in music education over the last 25 years in the USA. Keywords: music education, qualitative research, research methods

A tarefa de trabalhar em um texto escrito baseado em uma apresentao oral, como fao agora, reala alguns pontos-chave de tenses inerentes pesquisa qualitativa. As circunstncias distintas das duas modalidades texto escrito contra apresentao oral mostram claramente a centralidade do contexto na comunicao e na produo de significado. O contexto de minha fala original era a abertura da conferncia

da Abem, diante de uma audincia de educadores musicais observando uma oradora falando em ingls, enquanto prestavam ateno traduo simultnea para o portugus atravs de fones de ouvido. Na perspectiva da audincia, essa ateno dupla dirigida para a apresentao em ingls e para a traduo para o portugus pode trazer alguma reminiscncia de filmes dublados, diferente da vida real.

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Texto traduzido por Srgio Figueiredo.

7BRESLER, Liora. Pesquisa qualitativa em educao musical: contextos, caractersticas e possibilidades. Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 16, 7-16, mar. 2007.

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A multiplicidade de perspectivas e sua vinculao a contextos especficos deixam claro que toda a comunicao envolve diversos tipos de tradues. Em nosso exemplo especfico, acontece a rpida traduo pelo tradutor local traduo simultnea. H a traduo demorada subseqente do Dr. Srgio Figueiredo, que assumiu a tarefa de traduzir o texto para o portugus. Alm do idioma, ficar a cargo do leitor traduzir o texto considerando sua prpria realidade e contexto individual. Realmente, um milagre que a comunicao de idias parea funcionar, embora claramente diferente do modo ingnuo que muitos professores conceberam o modelo de transmisso tradicional. O processo de converter uma fala para o papel exemplifica a complexidade de traduzir formas fluidas da experincia para formas fixas de materiais e textos escritos. Msicos, professores e investigadores trabalham dentro desta interao fluidez-fixao. Ensinar e fazer msica so freqentemente motivados pela busca de algo tangvel e estvel, algo que pode transcender a situao real. Da a centralidade em testes e trabalhos escritos nas escolas, documentos de pesquisa na academia e partituras na msica clssica e popular. Planos de ensino funcionam como mediadores entre as idias dos professores e o ensino real; partituras de msica funcionam mediando a composio e a execuo. As atividades de escrever este texto, ensinar e fazer msica so como respirar e pensar: fluidas, constantemente se movendo. Eu sugiro que nosso compromisso como professores de msica e msicos, que lidam com a fluidez do som e do movimento,1 possa nos sensibilizar para a fluidez da experincia pessoal e cultural, que so o corao da pesquisa qualitativa. Neste texto eu reviso a teoria bsica e o mtodo da pesquisa qualitativa em educao musical e examino como eles funcionam em estudos especficos do currculo de msica no cotidiano baseado em minhas pesquisas nos Estados Unidos. Abordagens qualitativas so apresentadas atravs de nomes diferentes, incluindo naturalista, interpretativa, construtivista, estudo de caso e estudo de campo. Metodologia qualitativa de fato um termo guardachuva para vrios gneros: etnografia, fenomenologia, interacionismo simblico, pesquisa-ao, pesquisa

de professor e pesquisa formativa (Bresler, 1995), para exemplificar alguns termos utilizados. Ns usamos pesquisa qualitativa como um termo geral que se refere a vrias estratgias de pesquisa que compartilham certas caractersticas: l) descrio detalhada do contexto de pessoas e eventos; 2) observao em ambientes naturais que, comparada com abordagens tradicionais experimentais, apresenta pouca interveno;2 3) nfase na interpretao gerada por perspectivas mltiplas que apresentam questes relacionadas aos participantes e questes relacionadas ao pesquisador;3 e 4) validao da informao atravs de processos de triangulao. Comparada com as abordagens quantitativas, a investigao qualitativa relativamente nova nas tradies de pesquisa dos Estados Unidos e Reino Unido. Investigadores educacionais do mundo todo tm valorizado amplamente diversos aspectos da educao, incluindo questes pessoais, culturais, organizacionais e polticas (Bresler; Stake, 1992). Os ltimos 40 anos viram um interesse crescente no uso do paradigma qualitativo no campo dos estudos sociais e da educao (Bogdan; Biklen, 1992; Bresler; Stake, 1992, 2006; Clandinin; Conneley, 2000; Denzin; Lincoln, 1994; Erickson, 1986; Lincoln; Guba, 1985; Wolcott, 1994). Caractersticas fundamentais do paradigma qualitativo tm a ver com um modo holstico de abordar a realidade que vista sempre vinculada ao tempo e ao contexto, ao invs de governada por um conjunto de regras gerais. Uma assuno subjacente ao paradigma qualitativo envolve as relaes do investigador e dos investigados: o investigador no visto separadamente dos investigados, mas, citando Max Weber, um animal suspenso em teias de significao que ele prprio teceu (apud Geertz, 1973). Neutralidade impossvel porque o investigador inevitavelmente uma parte da realidade que estuda. Ao contrrio, a meta se torna a domesticao de subjetividades (Peshkin, 1988), a conscincia das tendncias e dos preconceitos das pessoas e seu monitoramento atravs dos processos de coleta e anlise de dados. Este texto traz elementos baseados em dois estudos (Bresler, 1991; Bresler et al., 1996), exemplificando dados descritivos e interpretativos. Da eu esboo as principais caractersticas da pesquisa qualitativa. A partir de uma breve apresentao das

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Argumento desenvolvido em trabalho anterior (Bresler, 2005).

Embora, como eu disse em minha fala no evento da Abem, entrevistas sejam tipos de intervenes nas quais se chama a ateno para certos aspectos do mundo e, freqentemente, em minha experincia, induzem os entrevistados a refletir mais profundamente sobre os fenmenos (Bresler, 1991).3

Conforme o texto original, emic issues que se referem aos participantes e etic issues que se referem ao pesquisador (N. de T.).

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razes intelectuais e metodolgicas da pesquisa qualitativa em geral, e da pesquisa qualitativa em educao musical em particular, eu discuto mtodos e gneros em estudos qualitativos. Eu concluo, ento, com reflexes sobre questes de tica. Uma experincia musical com o canto ensinado por professor especialistaCrianas no jardim de infncia esto sentadas em filas, numa grande, quase estril sala de msica. O professor, Jeff Lindsey, com seu cabelo castanho avermelhado ligeiramente longo, est usando culos de aro fino sobre seus olhos azuis. Jeff sai do piano para estabelecer contato direto com a classe. Ele desenvolve a aula de msica junto com uma histria, atraindo a ateno das ansiosas crianas para a experincia musical. Jeff animado, teatral, dramtico e mgico. Eu estava noite na cama, e ouvi um barulho na cozinha. Ento eu sa de cama e fui ver o que era. Eu ouvi este barulho, e lentamente alcancei o interruptor (encenando), e acendi a luz! (os estudantes saltam) L estavam eles! Grilos! Em todos os lugares! Festejando! E eles estavam danando e cantando uma cano. Esta era a cano que eles estavam cantando. Jeff ensina a cano e a dana que consiste em abaixar nos finais de frases onde as notas so mi-r-d. Ele se levanta do piano e mostra a dana, e os estudantes tentam danar. As crianas esto entusiasmadas, ansiosas para fazer a dana do grilo e cantar a cano. Jeff: Agora h uma coisa que eu tenho que lembrar a vocs. Os joelhos no podem tocar o cho, nem as mos, mas ns vamos abaixar desta forma (e ele mostra fazendo o movimento). Todo mundo est de p bem bonito e bem colocado? Agora ns podemos levantar em frente a nossas cadeiras enquanto cantamos. Tudo est silencioso menos a cano do grilo, ns abaixamos, mas no at o cho porque no precisa ir tanto para baixo. (Ele comea a tocar o acompanhamento). Comecem bem bonito e bem alto ele grita sobre o piano. Jeff canta e brinca com os estudantes, cantando palavras na parte do mi-r-d e fazendo os movimentos da dana. Ele pra ento ao trmino da cano e diz, Todo mundo fez a dana corretamente; ningum abaixou at o cho; isso significa que vocs ganharam uma grande estrela (sim!! Responde a classe). Mas eu no ouvi as palavras! (Jeff diz enfaticamente) eu tenho que ouvir as pessoas cantando. (comea a tocar novamente) Pronto? Jeff ajuda no comeo das frases e escuta as crianas cantarem. Na ltima frase ele reduz a velocidade do acompanhamento e as crianas respondem cantando e se movendo de acordo com a mudana. Certo, bom trabalho! Vamos sentar.

dos e selecionadas de antologias de msica folclrica e livros de msica. Neste e em outros nveis escolares, o repertrio tambm inclui canes para datas comemorativas; canes de tradio escolar (canes escolares para as assemblias regulares4); canes divertidas e jogos de msica. Normalmente ensinadas para um grupo grande, os rituais de aula incluem um aquecimento vocal; estrelas de recompensa no quadro para fins de controle; e competio entre grupos da classe (meninos versus meninas, fileira versus fileira). Jeff usa o piano para ensinar as canes e para acompanhamento. Suas habilidades artsticas no piano enriquecem a msica a partir do uso de harmonias complexas (para o nvel escolar) e energizantes, alm de variedade e musicalidade. Quando Jeff tem a sua prpria sala de msica (em uma das duas escolas que ensina), usa ocasionalmente msica para instrumentos, principalmente percusso, para acompanhar o canto e reforar elementos especficos da msica. Cantar msica folclrica central para a proposta de ensino de Jeff. Ele usa partes rtmicas e meldicas das canes para organizar as unidades de ensino de msica de acordo com a abordagem de Kodly. Ele refora esses sons com movimento corporal dana do grilo onde o corpo se move para baixo com os sons mi-r-d no final de cada frase. Sinais de mo musicais (solfejo) so freqentemente utilizados como um recurso para os estudantes aprenderem a colocao das notas de uma escala musical. Jeff avalia o progresso musical informalmente, mas de maneira regular, oferecendo aos estudantes referncia com relao pronncia das palavras e ao ritmo. Atraindo as crianas para segui-lo atravs de uma seqncia de construo de habilidades musicais, Jeff enfatiza a tcnica do canto e a alfabetizao musical. Ele faz desenhos no quadro com propostas instrucionais, motivacionais e de controle (estrelas), utilizando estratgias visuais, exemplificando e contando histrias, mantendo o ambiente agradvel. As aulas de Jeff tm um direcionamento estabelecido por ele. Ele inicia, organiza, monitora. Ao mesmo tempo, seu estilo de ensino interativo. Ele fala com os estudantes (ao invs de para os estudantes) incorporando as idias e sugestes deles. Ele usa uma combinao entre contador de histria dramtico, voz de professor e regente. As aulas se desenvolvem com transies suaves entre atividades: Jeff tece conjuntamente atividades de msica, histrias e controle de sala.

Esta aula era uma entre muitas que ns observamos na classe de Jeff, como parte de um estudo de vrios anos realizado por especialistas das artes. O currculo de msica de Jeff consiste principalmente em canes folclricas, escolhidas de acordo com a seqncia dos contedos a serem estuda-

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Assemblias so reunies que ocorrem regularmente nas escolas americanas, envolvendo alunos, professores, funcionrios e pais.

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Alm de observaes, a pesquisa qualitativa utiliza entrevistas semi-estruturadas para obter perspectivas e contextos pessoais. Entrevistas com Jeff revelam vrios contextos pertinentes ao que ele est ensinando. Sua formao no Mtodo de Kodly que reala o canto de msica folclrica (ao invs de fundamentar o currculo de msica em conceitos como alguns especialistas de msica fazem) amolda tanto o repertrio utilizado quanto o estilo de instruo. No papel de regente de coral de igreja Jeff considera que a msica, e no a igreja, o elemento motivador para o trabalho (Jeff diz que se no fosse pela regncia musical, ele no levantaria cedo nos domingos para ir igreja). Msica seu principal interesse na vida; como ele mesmo afirma, a msica tem sido boa para mim. Foi o poder expressivo da msica que o levou a escolh-la como uma carreira.Eu estava no sexto ano e ns tivemos uma professora de msica que trouxe uma gravao da Sute Peer Gynt e colocou esta msica e eu no sabia que aquele tipo de coisa existia e eu soube que algo ia acontecer com msica em minha vida. Quando eu tinha 14 anos decidi que queria ser msico, mas eu no sabia tocar nada e ento eu comecei a ter aulas de piano com 14 anos e quando eu tinha 17 ou 18 anos eu comecei a faculdade tendo o piano como principal rea de estudo.

algo que elas fossem capazes com todas as artes, que bastante, se voc receber boa orientao. Eu fui treinado como um msico clssico. Eu sei que um pecado no incluir afro-americanos, asiticoamericanos, e os americanos hispnicos. Toda cultura criou grande msica. Eu penso que s a melhor msica deveria ser ensinada s crianas, apenas a melhor msica, e eu penso que imperativo que todo professor de msica saiba qual a melhor msica. Muitos professores no sabem.

Respeitando que cada professor de msica nico, individual, existem tambm elementos que so compartilhados com outros membros da subcultura de msicos especialistas, que se utilizam de habilidades musicais especficas e sensibilidades. Essas sensibilidades esto freqentemente ausentes em professores formados em cursos de pedagogia5 que atuam nos anos iniciais da escola, que no tm formao musical. O exemplo seguinte ilustra a msica ensinada por professores pedagogos, refletindo diferentes tipos de habilidades e metas que so solicitadas e formadas a partir do contexto escolar. Msica para as estaes do ano ensinada por uma professora de sala9h12 A atividade escolar est comeando. O incio do dia marcado pela execuo de duas peas cvicas (incluindo o Hino Nacional), atividade que faz parte da tradio das escolas americanas. Vinte e duas crianas do jardim da infncia esto sentadas em semicrculos no macio carpete azul. Est na hora de cantar, e a cano de hoje sobre a primavera. Qual a estao do ano que ns temos agora?, pergunta Gail Lowenfeld, a professora do jardim da infncia, sentada ao piano. Primavera, respondem as 22 crianas. Lowenfeld: Eu vou cantar, ns cantaremos juntos; e ento eu quero que vocs coloquem suas prprias palavras. Acompanhando-se ao piano de forma simples com acordes sonoros de tnica e dominante, ela canta: A primavera tempo de jardim. Depois de cantar quatro linhas curtas, ela se dirige para a classe e todos cantam. A melodia clara e precisa. O piano, um pouco forte, quase encobre as pequenas vozes, mas h energia e ritmo no canto das crianas. Lowenfeld: Que mais acontece na primavera? Joseph diz Chuva, e outro acorde precede o prximo verso: A primavera tempo de chuva. As prximas sugestes incluem Quente e Frio. Lowenfeld solicita No vamos falar apenas sobre o tempo. O que ns fazemos na primavera? O que voc v as crianas fazendo l fora? Tempo de plantar. Tempo de jogar. E eles cantam, tempo de plantar, tempo de jogar.6

A experincia profissional confirma convices pessoais: Jeff acredita que a experincia de cantar bem central. As estticas musicais e o significado e o prazer individual so to importantes para ele quanto a tcnica correta, a altura e o ritmo. Jeff considera o desenvolvimento de um repertrio de canes de qualidade como alta prioridade em seu trabalho, oferecendo aos estudantes experincias de tcnica vocal, escrita musical, contato com bom repertrio de canes folclricas, e tempo para vivenciar o prazer de cantar. A experincia musical uma meta central.Eu estou absolutamente certo de que a msica a fonte a partir da qual tudo flui. Qualquer sentimento e bem-estar eu posso trazer para as crianas, qualquer tcnica eu posso ensinar para as crianas, quaisquer princpios, tudo eu consigo fazer atravs da msica. Msica a coisa mais importante e eu acredito nisso em meu trabalho como professor de msica, quando a msica boa, tudo bom. Se a msica bem executada, e aprendida corretamente, ento tudo se acomoda adequadamente. Eu penso que este um modo pelo qual as pessoas podem aprender a compreender o que beleza e podem apreciar o que bonito na vida. Eu penso que quando as crianas aprendem msica, elas precisam aprender msica que elas levaro com elas. Eu penso que as crianas deveriam cantar Mozart, Palestrina, Haydn, e penso que elas deveriam fazer

Quando ensinada por professores de sala, a msica era normalmente apresentada no contexto

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Esses professores podem ser chamados de pedagogos, generalistas, unidocentes, professores de sala, professores no especialistas (N. de T.). Em ingls, no original: Springtime is garden time, rainy time, planting time, playing time. (N. de T.).

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de datas especiais, estaes do ano, ou tpicos relacionados aos aspectos acadmicos das escolas. Na aprendizagem das canes no exemplo acima, melodia e ritmo eram subordinados ao texto, e a discusso de outros parmetros (por exemplo, harmonia, dinmica, forma) praticamente era inexistente. A aula tratou de assuntos que poderiam ser classificados como pr-acadmicos, ampliando as associaes que as crianas podiam fazer com as estaes do ano e o uso de adjetivos que eles conheciam. Outras atividades musicais deste mesmo tipo incluram a realizao de canes com temas acadmicos, como Os Planetas cano cantada em uma quinta srie que estava estudando o sistema solar, ou Fifty Nifty United States em uma aula de geografia. Essas atividades, administradas por professores de sala com pouca formao musical, derivaram de tradies locais e de revistas que trazem materiais escolares. Os objetivos do trabalho eram dirigidos para a aquisio de contedo acadmico, em lugar de experincia esttica, ou o desenvolvimento de habilidades musicais. Em entrevistas realizadas, os professores explicaram que os estudantes com diferentes habilidades e dificuldades tinham mais chance de sucesso se eles pudessem trabalhar com formas variadas de representao (por exemplo, visual, auditiva). Msica, os professores disseram, lhes permitiu ensinar o conhecimento escolar atravs de formas diferentes da verbal e da numrica. Os contextos pessoais dos professores crenas e percepo sobre msica e como ela se adapta s necessidades das crianas estruturam suas prticas. Outro contexto relacionado com a prtica musical o contexto institucional, o clima da escola e suas prioridades. Devido importncia de assuntos acadmicos, os professores de sala de aula consideraram que eles no tinham tempo para ensinar msica como um assunto separado. Molly Leonard, professora de sala do stimo ano em uma escola de Chicago, expressa o pensamento de muitos outros professores, quando ela me diz:Msica e arte so parte do currculo que todos os professores devem ensinar. Nem sempre voc tem tempo para fazer isto. Se voc quiser ensinar msica ou arte, voc tem que ensin-las junto com outro assunto.

estes perodos de transio ou como fundo para trabalho silencioso sobre outros assuntos. Os contedos das aulas foram adaptados a partir do conhecimento do professor, sua sensibilidade musical e pontos de vista, suas habilidades pedaggicas e a disponibilidade (ou falta de) de instrumentos, e aparelho de CD ou fita cassete. Diferentemente dos especialistas, a maioria dos professores de sala no usou instrumentos eles no estavam disponveis e os professores no sabiam us-los. Os professores no possuam uma voz treinada. Em um contexto escolar que enfatiza a alfabetizao, o vocabulrio e as palavras so assuntos centrais para professores de sala, e elementos musicais so marginalizados. O vocabulrio tem maior importncia, tambm, sobre o interpretativo ou o expressivo. Raramente os professores buscaram significados mais profundos, pessoais ou culturais. Assim, o institucional, contexto intermedirio (Bresler, 1998), refletiu os valores da escola alfabetizao e tpicos acadmicos. Realmente, o macrocontexto a cultura dos Estados Unidos reflete a nfase da sociedade na alfabetizao e a viso de msica como entretenimento ou dispositivo para alterar o humor das pessoas. No caso de professores de sala, esses contextos macro e intermedirio so freqentemente centrais na estruturao de suas prprias vises e crenas. Caractersticas de pesquisa qualitativa Os exemplos anteriores sobre ensino de msica apresentaram algumas caractersticas importantes da pesquisa qualitativa. 1. Contextual e holstica. Os contextos incluem: a) microcontextos a experincia de vida dos professores, crenas, compromissos, a experincia de vida dos estudantes; b) contextos intermedirios estruturas institucionais e metas; e c) macrocontextos os valores maiores da cultura (Bresler, 1998). 2. Envolve perspectivas mltiplas de participantes situados em lugares diferentes. 3. tipicamente dirigida para um caso. Um caso pode ser um professor, um estudante, uma sala de aula, um currculo de uma cidade. relativamente no comparativa, porque busca entender um caso e no entender como esse caso difere de outros (Stake, 1978, 1994). 4. emprica e dirigida para um campo, sendo o campo o local onde acontece o caso a ser investigado. Dados so coletados nos prprios locais da pesquisa. Sua nfase est naquilo que observvel, incluindo observa-

Quando ensinada por professores de sala a msica era localizada em perodos de transio depois do intervalo, comeo ou fim do dia, da semana ou do semestre (muitos professores no incluam msica). Cantar era a atividade predominante. Alguns professores propuseram a audio de msica para

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es por informantes. A pesquisa qualitativa se esfora para ser naturalista. 5. Envolve compromisso prolongado com os campos de pesquisa. Investigadores qualitativos normalmente passam um tempo considervel em escolas, casas, bairros, e outros locais onde aprendem sobre o tpico investigado. 6. H uma sobreposio constante entre coleta e anlise de dados. Embora planejado, o design da pesquisa emergente, responsivo ao tpico investigado. So focalizados assuntos progressivamente, incorporando questes apresentadas pelos participantes. 7. descritiva. H uma preferncia pela descrio usando linguagem natural. Os dados so formatados em palavras e grficos mais do que em nmeros. Os resultados escritos da pesquisa contm citaes para ilustrar e substanciar a apresentao. O relatrio da pesquisa objetiva oferecer a experincia do pesquisador para os leitores. 8. interpretativa e emptica. A pesquisa qualitativa est preocupada com os diferentes significados que aes e eventos adquirem para diferentes pessoas, suas referncias, seus valores, prestando ateno s intenes daqueles que so observados. H uma tentativa de capturar as perspectivas e as percepes dos participantes, junto com a interpretao do investigador. 9. O investigador o instrumento fundamental. Objetividade impossvel por definio, j que o investigador est sempre situado. As subjetividades compromissos, valores, crenas deveriam ser reconhecidas ao invs de suprimidas.7 10. A anlise dos dados indutiva. Alguns investigadores enfatizam o trabalho de baixo para cima bottom-up (por exemplo, Glaser e Strauss (1967), grounded theory). Realmente, a direo dos assuntos e os focos emergem freqentemente durante a coleta de dados. A situao pesquisada adquire forma quando as partes so examinadas. 11. As observaes e interpretaes preliminares so validadas. A triangulao envolve a

verificao de dados a partir de mltiplas fontes e diferentes mtodos. H um esforo deliberado para no confirmar as prprias interpretaes. 12. O relatrio da pesquisa procura facilitar a transferncia dos resultados s experincias dos leitores. A descrio detalhada ajuda os leitores na construo de suas prprias interpretaes, assim como no reconhecimento da subjetividade. Razes intelectuais da metodologia qualitativa: contexto histrico As razes intelectuais da metodologia qualitativa se encontram no movimento idealista, em particular em William Dilthey e Max Weber, que encontraram as suas origens filosficas no pensamento kantiano. Imanuel Kant distinguiu objetos e eventos como eles aparecem na experincia de objetos e eventos como eles so em si mesmos, independentemente das formas neles impostas por nossas faculdades cognitivas. O primeiro ele chamou de fenmeno, e o segundo de numeno. Tudo o que ns j sabemos, Kant discutiu, so fenmenos. Em lugar de conhecer o mundo diretamente, ns sentimos, interpretamos, e explicamos isso a ns mesmos. Toda a experincia mediada pela mente e todo o intelecto humano impregnado com e limitado pela interpretao e representao humanas. Os fenomenologistas seguiram Kant no sentido que as experincias imediatas e observaes sensoriais so sempre interpretadas ou classificadas a partir de conceitos gerais. Sua atrao para os fenmenos no , portanto, uma atrao para aquilo que simples, dados no interpretados da experincia sensria. O significado o objetivo da fenomenologia. Os fenomenologistas no assumem que eles sabem o que as coisas significam para os outros. Enfatizando os aspectos subjetivos, eles tentam ganhar entrada no mundo conceitual deles mesmos e dos outros. Levando em considerao sua prpria construo da realidade, os fenomenologistas acreditam que esses construtos internos derivam de uma compreenso contnua de si mesmo, dos outros e das coisas. As relaes entre estes no so dadas mas dialticas, processuais e vinculadas ao contexto. Investigadores qualitativos sustentam que o conhecimento uma construo humana. Eles ar-

7 Aqui, minha prpria formao como musicista e minha ateno aos elementos musicais, assim como o aprendizado com a experincia, foram fundamentais para formatar minhas descries, minhas interpretaes e minhas avaliaes.

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gumentam que enquanto o conhecimento comea com a experincia sensria de estmulo externo, essas sensaes recebem imediatamente significados por aqueles que viveram essa experincia. Embora o significando se origine em uma ao externa, somente a interpretao interior conhecida. At onde as pessoas podem dizer, nada sobre os estmulos registrado na conscincia e na memria alm de nossas interpretaes. Esse registro no necessariamente consciente ou racional. Conceitos de realidade O objetivo da pesquisa qualitativa no descobrir a realidade, pois os fenomenologistas argumentam que isto impossvel. O objetivo construir uma memria experiencial mais clara e tambm ajudar as pessoas a obterem um sentido mais sofisticado das coisas. Sofisticao em parte uma questo de resistncia ao ceticismo disciplinado. A cincia se esfora para construir uma compreenso universal. Embora a compreenso que ns buscamos seja de nosso prprio fazer, ela um fazer coletivo que se apia em construes humanas adicionais, escrutnio e desafio. O investigador qualitativo escolhe quais realidades deseja investigar. Nem toda realidade de uma pessoa vista da mesma maneira. A pessoa pode acreditar em relatividade, contextualidade e construtivismo sem considerar que todas essas vises possuem o mesmo valor. Os investigadores interessados na singularidade de algum tipo de ensino e aprendizagem encontram valor em estudos qualitativos porque o desenho da pesquisa permite ou exige ateno extra a contextos fsicos, temporais, histricos, sociais, polticos, econmicos e estticos. A epistemologia contextual requer estudos detalhados. As cincias culturais precisam ser descritivas, assim como explicativas e previsveis. No princpio, no meio e no fim de um programa de pesquisa, o investigador precisa se concentrar na interpretao, na compreenso emptica (verstehen). O processo de verstehen envolve a habilidade de empatia, de recriao da experincia dos outros dentro de si mesmo. Dilthey e Weber perceberam a compreenso como hermenutica, sendo o resultado de um processo de interpretao. A experincia hermenutica histrica, lingstica, dialtica. Entender o significado particular de um trecho de um texto (uma palavra ou uma sentena) requer uma compreenso do significado do todo e vice-versa. Assim, para se chegar a uma interpretao significativa necessrio que haja movimento de um lado para outro entre as partes e o todo. A compreenso no pode ser alcan-

ada na ausncia de um contexto e de uma estrutura interpretativa. A perspectiva hermenutica significa que a experincia humana vinculada ao contexto e no pode haver algo sem contexto ou uma linguagem cientfica neutra com a qual seja possvel expressar o que acontece no mundo social. Na melhor das hipteses, ns poderamos ter leis que poderiam ser aplicadas a um nico contexto limitado durante um tempo limitado. Modelos literrios oferecem outro modelo importante para a metodologia qualitativa. Eisner (1979, 1991) defende o uso paradigmtico da investigao qualitativa encontrada nas artes e no mundo da crtica das artes. Artistas questionam atravs do modelo qualitativo sobre a formulao dos fins e o uso de meios para alcanar tais fins. A tarefa da crtica das artes apresentar as qualidades inefveis essenciais que constituem obras de arte em uma linguagem que ajudar outros indivduos a perceberem o mundo mais profundamente. Tom Barone (1987, 1990, 2000) segue o pensamento de Eisner referindo-se a obras de arte a partir de uma quantidade contnua de textos cientficos. Todos os textos, afirma Barone, so modos de fico (tomando emprestado de Geertz o significado de fico algo produzido). Cada texto traz consigo a subjetividade do pesquisador/autor e suas tendncias, ideologias e vises pessoais, mas com trabalhos ficcionais esses aspectos se tornam mais visveis, explcitos. Barone nos lembra que os novelistas no constroem suas redes imaginrias a partir de um mundo de pura iluso e fantasia, mas que desde Henry Fielding, eles tm contado com a observao de detalhes da atividade humana, observando fenmenos sociais (Barone, 1987, p. 455). Jean-Paul Sartre (1981, p. ix-x) reconheceu o poder do exame literrio detalhado de um caso no prefcio a The Family Idiot:O que, neste momento, ns podemos saber sobre o homem? A mim parecia que esta pergunta s poderia ser respondida estudando um caso especfico Porque um homem nunca um indivduo; seria mais adequado cham-lo de um universal singular.

Pesquisa qualitativa em educao musical: os ltimos 25 anos No final dos anos 1960, os focos nacionais nas questes de justia educacional e nos currculos bsicos dividiram a ateno entre valores, sentimentos e perspectivas das minorias. Muitos reconheceram que ns no sabamos o suficiente sobre a experincia educacional de crianas que no tinham acesso educao. Na educao em geral, a nfase qualitativa na compreenso da perspectiva de

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todos os participantes desafiou a idia de que as vises daqueles que estavam no poder eram mais vlidas que as vises de outros indivduos. As perspectivas dos estudantes (Jackson, 1968) e a viso da escola como um sistema disciplinador (Dreeben, 1968; Foucault, 1977; Henry, 1966) ganharam destaque. O interesse sobre a realizao dos estudantes (avaliao) produziu algum interesse naquilo que os estudantes estavam fazendo de fato na escola. Tudo isso estimulou a necessidade de diferentes contedos, objetivos e mtodos. As abordagens qualitativas foram abertas para os investigadores educacionais. Educadores musicais tambm seguiram naquela direo, com um atraso de duas dcadas. As primeiras dcadas de pesquisa em educao musical, assim como na educao geral, foram caracterizadas pela aderncia a modelos quantitativos. Porm, os anos 1980 testemunharam o aparecimento de estudos qualitativos em msica, identificando novas questes, abrindo direes inovadoras para a pesquisa. Essas pesquisas incluem composio e processamento musical das crianas, processos de pensamento de compositores e regentes, e estudos sobre currculo (por exemplo, Bresler, 1987; Cohen, 1980; Harwood, 1987; Krueger, 1985; LRoy, 1983; Sosniak, 1985). Por volta do ano 2000, a pesquisa qualitativa se tornou uma metodologia aceita no campo da educao musical. As duas conferncias sobre pesquisa qualitativa realizadas na Universidade de Illinois, Urbana (Boardman, 1994; Bresler, 1994), e a publicao dos discursos principais e outros textos selecionados dessas conferncias em um dos mais importantes peridicos da rea, o Council for Research in Music Education, ampliou a legitimidade dessa metodologia. Mais recentemente, os eventos Research in Music Education e Narrative in Music Education, assim como documentos qualitativos publicados em peridicos relativamente novos como o Research Studies in Music Education e Music Education Research, trouxeram grande prestgio para a pesquisa qualitativa. Peridicos que trazem formatos inovadores, como o International Journal for Education and Arts (http://ijea.asu.edu/) com sua capacidade para vdeo e udio, permitem tipos inovadores de pesquisa qualitativa em educao musical, incluindo abordagens baseadas na msica. Dentre essas realizaes, a etnomusicologia ofereceu importantes insights, tanto no nvel paradigmtico quanto no nvel de questes e mtodos. A etnomusicologia tem suas razes intelectuais e mtodos na musicologia e na antropologia, buscando a8

compreenso da msica no contexto do comportamento humano. Os etnomusiclogos esto normalmente preocupados com questes amplas sobre os usos e funes da msica, o papel e o status do msico, os conceitos que sustentam o comportamento musical, e outras questes semelhantes (Merriam, 1964, 1967; Nettl, 1983, 1987). A nfase est na msica em seu contexto total: o investigador busca com seu estudo um conhecimento amplo da cultura e da msica, assim como procura compreender de que forma a msica se ajusta e usada dentro de um contexto mais amplo (Merriam, 1964). Tradicionalmente estudos de etnomusicologia examinam outras culturas. Mais recentemente estudos de etnomusicologia examinam msica conhecida em locais tambm conhecidos (Keil, 1966; Nettl, 1995). Outra idia recente coloca a esttica no centro da pesquisa qualitativa, sugerindo que processos musicais podem iluminar aspectos significativos da pesquisa qualitativa, incluindo a coleta de dados, a anlise de dados e a escrita (Bresler, 2005, 2006). Examinando os modos pelos quais as artes, em geral, e a msica, em particular, oferecem modelos ricos e poderosos para a percepo, a conceitualizao e o compromisso de ambos, pesquisadores e pesquisados, esse tipo de abordagem reala o potencial para que se cultivem hbitos da mente que so diretamente relevantes aos processos e produtos da pesquisa qualitativa. O objetivo da pesquisa que busca a compreenso emptica baseado numa conexo do tipo eu-tu dentro de um espao esttico, cognitivo e afetivo. Essas relaes dialgicas so intensificadas pela expectativa de comunicar a uma audincia, criando uma relao tridirecional. Gneros de pesquisa O guarda-chuva qualitativo contm vrias abordagens. Compartilhando um amplo conjunto de suposies e valores, os gneros e as abordagens esto inseridos em prticas e tradies disciplinares e intelectuais distintas. Notamos diferenas nos objetivos, nos tipos de questes de pesquisa, nas unidades de anlise, no uso de mtodos de pesquisa e no estilo da escrita. Tambm diferem nos modos pelos quais o investigador envolvido no estudo, at que ponto ele uma parte no grupo especfico que estuda (isto , pertence ao grupo ou estranho a ele),8 e os vrios papis que ele assume naquele grupo. Uma distino til pode ser feita entre gneros bsicos e aplicados (Bresler, 1996), nunca em seu formato puro, mas com algum tipo de nfase.

No original: insider versus outsider. (N. de T.).

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tica As prprias caractersticas que tipificam e fazem a pesquisa qualitativa compreensvel a imerso no campo, as observaes do comportamento de outros, descobrindo convices pessoais, pensamentos e sentimentos podem tambm causar problemas ticos. Muitos pases requerem que o pesquisador se utilize de termos de consentimento dos pesquisados para a realizao da pesquisa, mas estes no so suficientes. As metas e procedimentos da metodologia qualitativa solicitam um novo conjunto de qualificaes por parte do investigador. Entre essas qualificaes esto as habilidades de desenvolver e manter uma relao prxima e confiante com os participantes (que j no so mais identificados como sujeitos). O paradigma qualitativo requer consideraes ticas diferentes. Sensibilidade para o particular, cuidado e preocupao com a pessoa individual so fundamentais para a moralidade na conduo da pesquisa qualitativa com seus princpios gerais. Diferentes fases da pesquisa vinculam-se a diferentes questes ticas. Cada uma das cinco fases distintas de pesquisa qualitativa: a) entrando no campo; b) permanecendo no campo; c) deixando o campo; d) escrevendo; e e) disseminando os resultados, carrega consigo suas prprias questes e diretrizes (Bresler, 1997).

Posies ticas envolvem dois conjuntos de compromissos: para os participantes do estudo e para a comunidade de leitores, prticos e acadmicos. Mais do que seguindo uma frmula e esperando respostas fceis, consideraes ticas relacionam-se com a busca por uma compreenso mais complexa baseada nas perspectivas dos participantes, e no cultivo de uma curiosa e ao mesmo tempo compassiva e emptica estrutura de pensamento.9 Coda A metodologia qualitativa permite a explorao de novas direes, incluindo estudos sobre currculo, estudos etnogrficos que estudam a msica dentro de uma comunidade, estudos fenomenolgicos de ouvintes, compositores e intrpretes, e estudos sobre o uso de materiais curriculares e inovaes tecnolgicas em msica. Esse cardpio s um comeo, e o campo parece ser muito amplo e aberto para novas e instigantes questes a serem exploradas, procurando um entendimento aprofundado da educao musical em sua variedade de contextos culturais, institucionais e pessoais. O importante trabalho realizado por pesquisadores brasileiros, incluindo aspectos negligenciados de gneros musicais urbanos e populares (Arroyo, 1999; Silva, 1995, 2007) oferece uma contribuio importante para a pesquisa qualitativa e para a educao musical.

RefernciasARROYO, M. Representaes sociais sobre prticas de ensino e aprendizagem musical: um estudo etnogrfico entre congadeiros, professores e estudantes de msica. Tese (Doutorado em Msica)PPG Msica, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1999. BARONE, T. Research out of the shadows: a reply to Rist. Curriculum Inquiry, v. 17, n. 4, p. 453-463, 1987. ______. Rethinking the meaning of vigor: toward a literary tradition of educational inquiry. Paper presented at the annual meeting of the American Education Research Association, Boston, 1990. ______. Touching eternity. New York: Teachers College Press, 2000. BOARDMAN, E. Introduction. Council of Research in Music Education, v. 122, p. 3, 1994. BOGDAN, R. C.; BIKLEN, S. K. Qualitative research for education: an introduction to theory and methods. 2nd ed. Boston: Allyn & Bacon, 1992. BRESLER, L. The role of the computer in a music theory classroom: integration, barriers, and learning. Tese (Doutorado)Stanford University, 1987. ______. Armstrong elementary school, Chicago, Illinois. In: STAKE, R. E.; BRESLER, L.; MABRY, L. Custom and Cherishing. Urbana: Council of Research for Music Education, 1991. p. 95-136. ______. Qualitative methodologies in music education: a contextual framework. Council of Research in Music Education, v. 122, p. 9-13, 1994. ______. Ethnography, phenomenology, and action research in music education. Quarterly Journal of Music Teaching and Learning, v. 6, n. 3, p. 6-18, 1995. ______. Basic and Applied Qualitative Research in Music Education. Research Studies in Music Education, v. 6, p. 5-17, 1996.

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Para maiores discusses neste tpico, ver Bresler (1997).

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Recebido em 15/02/2007 Aprovado em 10/03/2007

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Polticas culturais e polticas educacionais conflitos e convergnciasVanda Bellard FreireUniversidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) [email protected]

Resumo. O presente artigo foi apresentado, originalmente, em forma concisa, no Frum Polticas culturais, formao profissional e produo cientfica em Educao Musical, realizado no XV Encontro Nacional da Abem. O objetivo principal abrir questionamentos sobre a aplicao das polticas de fomento cultura, sobretudo aos projetos ligados educao musical, que vm procurando suprir a demanda pelo ensino de msica, em face da insuficincia das aes governamentais. A anlise parte dos conceitos de cultura e de educao, com base em autores da rea de educao, e tece outras consideraes, com base nos objetivos da Lei Rouanet e na observao de inmeros projetos analisados pela autora, ao longo de sua atuao como membro da Comisso Nacional de Incentivo Cultura. Utiliza tambm a contribuio de pesquisadores da rea de educao musical que analisaram casos especficos de projetos sociais. Conclui pela urgncia de a rea de educao musical aprofundar-se sobre esta temtica e refletir sobre os cursos de licenciatura. Palavras-chave: educao musical, projetos sociais, formao de professores

Abstract. This paper is an extended version of a presentation made during the Forum Culture policies, professional formation and scientific production in Music Education that took place in the XVth Abems National Metting. The main goal is to question the use of culture fomentation policies, particularly in music education projects, destined to compensate the lack of government actions concerning music teaching offering. Begining with the concepts of culture and education as discussed in Education literature, this analysis focuses on the purposes of Rouanets Law, using the authors experience as former member of National Committee for Culture Fomentation. This paper also benefits from researches in Music Education that dealt with specific social projects. It is necessary to deepen the Music Education fields considerations on such issue and to rethink the undergraduate programmes. Keywords: music education, social projects, music teachers formation

Introduo

O presente texto amplia a exposio feita pela autora no Frum Polticas culturais, formao profissional e produo cientfica em Educao Musical, no XV Encontro Anual da Abem, realizado em Joo Pessoa, cujo objetivo foi o de discutir as pers-

pectivas polticas em torno do fomento cultura, bem como as possibilidades de atuao para a rea de educao musical nesse contexto, a partir de projetos, da participao em rgos ligados cultura etc., e na prpria definio dos rumos de incentivo e apoio cultura no pas.

17FREIRE, Vanda Bellard. Polticas culturais e polticas educacionais conflitos e convergncias. Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 16, 17-23, mar. 2007.

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Alm das contribuies da literatura das reas de educao e de educao musical, foram utilizadas, neste trabalho, as observaes e anotaes reunidas ao longo de cinco anos como representante titular da rea de msica, e em especial da Abem, junto Comisso Nacional de Incentivo Cultura, no Ministrio da Cultura (MinC). A temtica do frum proposto pela Abem relevante e atual, e dela emergem dois conceitos que certamente precisam ser focalizados para abrir a presente colocao, sobretudo pela forma dicotmica como as polticas pblicas vm tratando esses dois temas: educao e cultura. At mesmo no que tange alocao em ministrios no governo brasileiro, pois temos um Ministrio da Educao e um Ministrio da Cultura. Qualquer anlise que faamos do conceito de educao remeter, inevitavelmente, a nosso ver, ao conceito de cultura. H correntes pedaggicas que concebem a educao como instncia de preparao para a ocupao de papis predefinidos pela sociedade, outras que objetivam a formao do indivduo como ser ideal, outras que pretendem formar cidados e alcanar a transformao social. Inevitavelmente, em todas elas, est em questo a formao de um homem que, como ser social, est integrado a uma sociedade, a uma cultura, a um momento histrico. Relembramos, aqui, palavras de Paulo Freire (1996), quando afirma que uma das tarefas mais importantes da prtica educativo-crtica propiciar as condies em que os educandos ensaiem a experincia profunda de assumir-se como ser social e histrico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos etc. Ou seja, as palavras de Paulo Freire, s quais nos associamos, tratam a educao como experincia social, e, portanto, cultural. Na concepo de Paulo Freire, como na de inmeros educadores que militam na rea de educao nas trs ltimas dcadas (Apple, Giroux, Doll, Perrenoud e outros), a questo da identidade cultural problema que no pode ser desprezado, nem na formao dos professores, nem na prtica educativa. Cabe ento perguntar: possvel pensar em educao em uma perpectiva a-histrica e dissociada da cultura? Que conceito de cultura pode levar a uma separao do conceito de educao? O conceito de cultura, abrangendo o conjunto de valores, de manifestaes materiais e imateriais

produzidas em sociedade, obviamente inclui a educao, esta entendida como o processo pelo qual as sociedades geram conhecimento crtico e inculcam seus valores, os criticam ou transformam. Nas palavras de Moreira e Macedo (2001, p. 118) aceitando-se a importncia da cultura [], no h como no aceit-la tambm nas decises e nas reflexes referentes vida escolar, ao currculo, ao ensino, ao professorado. , portanto, a partir do pressuposto da inseparabilidade dos conceitos de educao, cultura e sociedade que esta reflexo se inicia. O incentivo cultura a viso do Ministrio da Cultura e a viso da sociedade A proposta de separar a cultura em ministrio prprio adveio, possivelmente, de uma inteno de melhor atender s suas especificidades. A captao de recursos para iniciativas ligadas cultura, sempre difcil, pareceu encontrar na lei no 8313, de 1991, conhecida como Lei Rouanet (Brasil, 1991), uma soluo favorvel, pois, com o aval do Ministrio da Cultura (MinC), os responsveis pelos projetos aprovados podem buscar apoio financeiro junto s empresas, valendo, para isso, o mecanismo da renncia fiscal. Os objetivos da lei so claros em seu texto: facilitar populao o acesso s fontes da cultura; estimular a produo e difuso cultural e artstica regional; apoiar os criadores e suas obras; proteger as diferentes expresses culturais da sociedade brasileira; proteger os modos de criar, fazer e viver da sociedade brasileira; preservar o patrimnio cultural e histrico brasileiro; desenvolver a conscincia e o respeito aos valores culturais nacionais e internacionais; estimular a produo e difuso de bens culturais de valor universal; dar prioridade ao produto cultural brasileiro. Observamos que, nos objetivos acima descritos, est bem clara uma concepo de cultura que abrange as dimenses materiais e imateriais, bem como podemos observar que no h referncia ex-

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plcita educao, de competncia de outro ministrio. Mais recentemente, em 2005, a Presidncia da Repblica publicou o Decreto 5761, em 27 de abril de 2006, que, entre outras providncias, retomou e ampliou os objetivos da lei no 8313 (Brasil, 2006). Como podemos constatar a seguir, h uma nfase, no decreto, em uma perspectiva multicultural, o que inclui uma nfase na aceitao e na valorizao das diversas matrizes culturais presentes na sociedade brasileira. Seguem os objetivos expressos no Decreto 5761: I valorizar a cultura nacional, considerando suas vrias matrizes e formas de expresso; II estimular a expresso cultural dos diferentes grupos e comunidades que compem a sociedade brasileira; III viabilizar a expresso cultural de todas as regies do Pas e sua difuso em escala nacional; IV promover a preservao e o uso sustentvel do patrimnio cultural brasileiro em sua dimenso material e imaterial; V incentivar a ampliao do acesso da populao fruio e produo dos bens culturais; VI fomentar atividades culturais afirmativas que busquem erradicar todas as formas de discriminao e preconceito; VII desenvolver atividades que fortaleam e articulem as cadeias produtivas e os arranjos produtivos locais que formam a economia da cultura; VIII apoiar as atividades culturais de carter inovador ou experimental; IX impulsionar a preparao e o aperfeioamento de recursos humanos para a produo e a difuso cultural; X promover a difuso e a valorizao das expresses culturais brasileiras no exterior, assim como o intercmbio cultural com outros pases; XI estimular aes com vistas a valorizar artistas, mestres de culturas tradicionais, tcnicos e estudiosos da cultura brasileira; XII contribuir para a implementao do Plano Nacional de Cultura e das polticas de cultura

XIII apoiar atividades com outras finalidades compatveis com os princpios constitucionais e os objetivos preconizados pela lei no 8.313, de 1991, assim consideradas pelo Ministro de Estado da Cultura.

A possvel interseo da educao nos objetivos da poltica de incentivo cultura no expressa em nenhum dos dois textos legais acima referidos. O conceito de cultura e a filosofia subjacente Lei Rouanet e ao decreto presidencial est explicitada com clareza, embora no seja esta, necessariamente, a forma como a sociedade, ou alguns segmentos dela, compreendem o assunto. Provavelmente, uma viso mercadolgica de cultura que predomina na sociedade e permeia hoje os conceitos de cultura e de educao nos projetos enviados ao MinC, ainda que no seja essa, provavelmente, a inteno original da lei. Faz-se necessrio, portanto, discutir polticas pblicas e fomentos cultura em um espao legal no qual a educao no estaria assumidamente presente, sendo que o prprio conceito de cultura entendido pela sociedade pelo prisma do mercado. A expresso indstria da cultura aparece em muitos projetos que pleiteiam apoio da lei de incentivo fiscal, por vezes aparecendo, tambm, em projetos que envolvem educao. Com o objetivo de ilustrar as permeaes da viso de mercado no mbito da cultura, transcrevemos, a seguir, trecho de notcia veiculada pela Gazeta de Alagoas, colhida na pgina do MinC, na Internet:Rouanet, se voc quiser conversar sobre cultura, no procure nunca os artistas e intelectuais, eles s querem falar em dinheiro. Se voc quiser conversar sobre cultura, procure os banqueiros. A frase seria do banqueiro Walter Moreira Salles, citado em discurso [] pelo criador da Lei Rouanet, o embaixador Srgio Paulo Rouanet.

A notcia menciona, tambm, a deciso do MinC de acompanhar mais de perto a realizao dos projetos e seus resultados. A citao ricamente ilustrativa, e nesse contexto que se insere a breve anlise aqui apresentada, ou seja, o conceito de cultura, tal como expresso pelo MinC, e os projetos sociais permeados pela viso dos banqueiros, dos produtores culturais e outros, bem como a expectativa freqente, na sociedade, de que a cultura produza algum resultado rentvel, explicita ou implicitamente.

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Educao e cultura o papel do Estado e o papel dos projetos sociais Comeamos, ento, aqui a focalizar outra vertente da questo: a de recursos para a rea de educao. A educao, colocada em outro ministrio e carente de formas mais significativas de sustentao econmica, comea, aos poucos, e de forma evidentemente crescente, a achar o seu espao no Ministrio da Cultura, no qual, em princpio, no teria vez. A lei de incentivo cultura (ou indstria da cultura, como dizem alguns) aparece como um campo propcio. O nmero de projetos que buscam o apoio do MinC e incluem o ensino de artes, sobretudo o de msica, aumentou de forma expressiva nos ltimos cinco anos. Ocorre que a legislao educacional brasileira, desde a dcada de 1970, permitiu que se formasse, nas escolas, uma enorme lacuna no que tange s artes, em geral, tratando-as, problematicamente, como um nico bloco, sem distino ntida entre os diversos saberes artsticos. Mais de 20 anos depois, na seqncia de atos que sucederam Lei de Diretrizes e Bases da Educao (Brasil, 1996), o MEC instituiu uma comisso de especialistas que discutiu e promoveu a separao curricular das linguagens artsticas na educao, embora o texto da Lei de Diretrizes e Bases permanecesse ambguo, utilizando a expresso ensino de arte. Essa ambigidade permite que, ainda hoje, dez anos passados da publicao da lei, muitos municpios e estados ainda no tenham compreendido que essa expresso se refere a uma rea ampla de conhecimento, cuja formao de professores, hoje, se d em licenciaturas especficas para cada modalidade artstica, tais como artes plsticas, msica, dana etc. Essa enorme lacuna deixou, durante muitos anos, as escolas de formao de professores e as escolas de ensino bsico sem um espao definido para a msica, o que leva, hoje, a que se procure um espao no Ministrio da Cultura para preencher o vazio que ainda existe no setor. De certa forma, ao procurar as verbas da cultura para subsidiar projetos de ensino de msica, est sendo evidenciada a dificuldade do Ministrio da Educao de lidar com a questo. O Brasil, hoje, no tem professores de msica, educadores musicais na acepo completa, em nmero suficiente para ocupar o espao nas escolas. Nem em nmero, nem em qualidade, pois durante muitos anos formamos professores de msica em licenciaturas que no os instrumentalizavam musicalmente de forma consistente.

Surge, ento, a perspectiva de utilizar as verbas da cultura para subsidiar e difundir o ensino de msica. Proliferam, ento, os projetos sociais, empenhados nessa tarefa. H projetos de todos os tipos, h trabalhos de todos os nveis de qualidade imaginvel, inclusive diversos projetos de excelente qualidade. Kleber (2006) apresenta uma anlise de duas experincias de projetos sociais: o Projeto VillaLobinhos, no Rio de Janeiro, e o trabalho desenvolvido pela Associao Meninos do Morumbi, em So Paulo. Segundo a autora, os coordenadores responsveis por esses dois trabalhos afirmam que o objetivo principal o de promover educao musical com objetivo social, rejeitando abordagens assistencialistas ou paternalistas. A autora pondera, ainda, sobre a necessidade de se pensar na formao do educador musical para trabalhar nesses espaos. Conclui que a atuao das ONGs instaura processos em constante formao, abertos experimentao, criando arenas para novas prticas de aes sociais, culturais e cognitivas. Conclui, tambm, sobre a importncia de que se assegure s ONGs a possibilidade de promover uma educao intencional e no ocasional, deixando de lado uma viso que oponha ONGs, de um lado, e escolas, de outro. Outra pesquisadora que abordou o ensino de artes atravs das ONGS, Carvalho (2005), focalizou o perfil do educador responsvel pelo ensino de arte nessas instituies, alm de outros aspectos pertinentes temtica. A pesquisa baseou-se em trs estudos de caso, relativos s ONGs: Casa Pequeno Davi, em Joo Pessoa; Casa Renascer, em Natal; e Daru Malungo, em Recife. A pesquisadora observa que nem todos os educadores tm formao especfica, atravs de licenciaturas, mas que este no , necessariamente, um requisito essencial ao sucesso do trabalho desenvolvido. Ela ressalta a importncia de o educador social somar, aos conhecimentos tericos, habilidades pessoais para intervir, de maneira apropriada, em determinadas circunstncias, bem como o entendimento das condies reais em que vivem os educandos, suas necessidades e aspiraes. Ou seja, portadores de ttulos acadmicos desacompanhados desses entendimentos e habilidades so de pouca valia, o que a leva a concluir que: 1) as universidades no esto levando em conta a realidade do mercado de trabalho existente no momento; 2) os cursos de licenciatura em artes necessitam reformular seus currculos, de modo a oferecer trei-

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namento e habilitao a seus alunos, de maneira que eles possam atuar apropriadamente em espaos no-formais, alm das escolas regulares. As duas pesquisas descritas acima, abordando cinco estudos de caso, so exemplos importantes de possibilidades positivas de trabalhos extramuros das escolas. As concluses de Carvalho (2005) encontram paralelo no novo currculo de Licenciatura em Msica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, aprovado em 2003, que j inclui entre os estgios regularmente oferecidos aos licenciandos instituies do terceiro setor (ONGs). As observaes positivas, contudo, das duas pesquisadoras acima referidas, embora verdadeiras quanto aos casos analisados, no refletem a realidade de grande parte (possivelmente, da maioria) dos projetos que buscam apoio da lei de incentivos fiscais, nos quais predominam concepes de educao musical bastante distantes daquelas que permeiam as discusses da rea de educao musical, no Brasil. De qualquer forma, a verba que esses projetos mobilizam surpreendente para quem transita na rea de educao. Se, por um lado, difcil conseguir apoio de dez ou 15 mil reais para realizao de um congresso, como o Encontro Anual da Abem, dificilmente aparece, no mbito do Ministrio da Cultura, algum projeto que pleiteie menos de cem mil reais. Alguns ultrapassam a casa do milho. claro que no se trata, aqui, de tentar preconizar que o Ministrio da Cultura no deva dar o aval para que as empresas apiem aes ligadas educao musical, nem tampouco dizer que esses projetos devem ser banidos do mapa. Tambm no se trata de opor projetos sociais e escolas, como mundos adversrios ou mesmo incongruentes. Trata-se, na verdade, de ressaltar a importncia de refletir sobre essa realidade, de forma a discutir o papel da rea de educao musical e dos cursos de formao de professores nesse processo. Polticas pblicas (perspectivas mais duradouras para a educao), incentivo cultura e o papel do educador musical Refletir sobre polticas pblicas, incentivo cultura e educao musical certamente um tema complexo, pois se pensamos em polticas pblicas e em educao como uma instncia da formao do indivduo e da cidadania, se consideramos que o Estado deve assumir importante responsabilidade quanto aos rumos da educao e se considerarmos a viso mercadolgica que permeia fortemente a

demanda de fomento cultura, temos alguns problemas a enfrentar. Polticas pblicas envolvem planejamento, definio de objetivos sociais, de concepes filosficas etc. Como proceder dessa forma, no mbito de verbas destinadas cultura, de forma ampla e difusa, no mbito de uma viso de mercado que, se no a do MinC, de grande parte da sociedade? Como lidar com a pulverizao de objetivos, inevitvel nesse contexto? Citando um caso concreto, por ns analisado, sem, contudo identificar os atores, exemplificamos, aqui, com o caso de um municpio do Brasil que reedita, anualmente, um projeto com apoio de verbas provenientes de renncia fiscal, mobilizando mais de um milho de reais por ano, com o objetivo de levar msica a crianas de escolas de ensino bsico. Obviamente, esse ensino de msica se d fora da estrutura curricular, no sendo, portanto, um direito de todos. A soluo selecionar talentos, concepo essa j suficientemente questionada pelas reas de etnomusicologia e de educao musical, mas que serve viso de conservatrio desse projeto, como tambm a muitos dos que transitam hoje pelo Ministrio da Cultura. Faz-se tambm necessrio selecionar monitores ou instrutores para dar as aulas, sem que essas pessoas tenham passado por uma formao como profissionais de educao, ou seja, na maioria absoluta dos casos, so msicos sem formao pedaggica. Uma oficina no incio de cada etapa do projeto prepara os monitores ou instrutores para o ensino. Os instrumentos musicais comprados no so, necessariamente, incorporados rede pblica, permanecendo nas mos de fundaes, ONGs, ou outras instituies. Ou seja, um investimento milionrio feito em um ensino de msica perifrico, sem continuidade assegurada, sem consistncia pedaggica, sem profissionais adequadamente formados. Cabe ainda observar que os monitores do projeto recebem um pr-labore igual ou superior ao salrio dos professores da rede municipal, sendo que estes dificilmente recebem qualquer ajuda material, como instrumentos musicais, mesmo quando solicitada. Coloca-se, a partir desse exemplo descrito, uma questo importante para debate neste frum, pois, ao pensarmos em polticas pblicas para nossa rea, preciso que reflitamos sobre casos como o que agora foi descrito, sem deixar, contudo, de analisar exemplos de projetos bem sucedidos, como os focalizados por Carvalho (2005) e Kleber (2006). Destacamos, ainda, que no pretendemos, aqui, negar a legitimidade das prticas orais e infor-

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mais de ensino de msica. Mas essas prticas raramente recorrem ou necessitam do apoio das verbas de renncia fiscal. Poucos, tambm, so os projetos que as envolvem. Observamos que a viso de ensino de msica, nos moldes de conservatrio, a que prevalece nos projetos que recorrem aos incentivos cultura. Formao de futuros virtuoses, a partir de seleo de talentos, o que predomina em projetos que, paralelamente s polticas educacionais, procuram suprir a lacuna que existe no que tange ao direito de todo cidado educao musical, embora terminem, muitas vezes, por excluir aqueles que no so escolhidos nos testes de seleo para poderem participar das atividades. Este frum, em que debatemos questes ligadas formao de professores e s polticas pblicas, certamente um espao privilegiado para discutirmos o papel da rea de educao musical nesse contexto.No basta reintroduzir a msica no currculo escolar das escolas. [] o silenciamento das escolas foi conseqncia de um processo em que pesaram fatores de ordem poltica, cultural e pedaggica. [] Fruto de uma poltica educacional equivocada, esse silncio, que calou as vozes de milhares de crianas e jovens, deve se constituir em ponto de partida para um novo caminho para a msica na escola [] pautado pelo seu entendimento como uma linguagem com possibilidades de transformar, modificar e estabelecer uma nova concepo de homem de sociedade e de mundo. (Loureiro, 2003, p. 221).

2) Como conciliar os objetivos e a aplicao da lei de incentivo cultura com os objetivos que a rea de educao musical visualiza para a msica, como instncia de formao do indivduo e da cidadania? 3) Como captar verbas adequadas e continuadas para a educao, na rede regular, fora do mbito da concepo mercadolgica que prolifera na sociedade? 4) Qual o papel dos cursos de formao de professores de msica nesse contexto? Essas so algumas das perguntas sobre as quais acreditamos que a rea de educao musical necessite se debruar. Tramita, hoje, no Congresso Nacional, proposta para que o ensino de msica se torne obrigatrio nas escolas. Existem tambm outras iniciativas importantes em prol do ensino regular de msica nas escolas, sendo um exemplo bem recente o manifesto gerado no ltimo Congresso da Anppom (2006), em Braslia. Possivelmente, a simples obrigatoriedade do ensino no ir resolver nossos problemas, que vo desde as dificuldades que as universidades enfrentam (o que afeta os cursos de formao de professores) at mesmo a precria situao oferecida aos professores de msica na rede escolar, na qual o ensino de msica goza de baixo prestgio, justificando-se, apenas, como uma forma de tirar as crianas e jovens das ruas e das mos do trfico de drogas (incluso social), ou como uma forma de disciplinlas, ou mesmo como uma forma de fazer com que elas aprendam melhor outros contedos no musicais. A principal funo da msica, na maioria dos projetos que buscam verbas de incentivo fiscal, a de incluso social, ou seja, mantendo a criana ou o jovem ocupado, ele estar menos vulnervel a influncias negativas, ele desenvolver sua auto-estima e estar mais apto ao aprendizado de outros contedos na escola. Pouco ou nada se fala do ensino de msica como fim em si, como instncia importante na formao do indivduo. Urge, portanto, perguntar: qual o papel da msica que queremos na educao brasileira? Qual o papel da msica que acreditamos vlido para a formao do indivduo? Qual o papel da arte na sociedade? Como os cursos de licenciatura em Msica podem, hoje, relacionar-se com essas questes?

Projetos sociais, educadores musicais e formao de professores Realmente, no basta reintroduzir o ensino de msica nas escolas, mas tambm necessrio que repensemos as nossas licenciaturas (Carvalho, 2005). Por outro lado, fato que hoje existe uma conscientizao crescente a respeito da problemtica aqui focalizada, o que tem levado, inclusive, o Ministrio da Cultura a procurar estabelecer uma aproximao maior com o Ministrio da Educao. Ainda que louvvel, isso no ser suficiente, talvez, para superar a dicotomia conceitual que se estabelece quando educao e cultura so pensadas em ministrios separados, embora a alocao de ambas em um mesmo ministrio possa no ser suficiente para produzir solues melhores. Algumas das questes que podem ser colocadas a respeito so: 1) Como traar polticas pblicas consistentes para o ensino de msica, no Brasil, que realmente centralizem a questo no mbito

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Retomo e resumo, aqui, algumas proposies (Freire, V., 1999), voltadas para uma discusso do papel da Educao Musical em face da globalizao, e que se aplicam s reflexes desenvolvidas neste texto, no que concerne tarefa que cabe s licenciaturas: 1) Rever e ampliar os significados de ensinar e aprender no mundo contemporneo, em face da diversidade cultural e globalizao e em face da necessidade de somar a dimenso afetiva ao foco cognitivo. 2) Desenvolver, nos cursos de formao de professores, conhecimentos e habilidades necessrias promoo de um dilogo intercultural, propiciando a identificao e superao de preconceitos e esteretipos, favorecendo a conscientizao das assimetrias de poder atuantes na sociedade e propiciando melhor compreenso das possibilidades de relao da escola com a cultura e seus significados. 3) Instrumentalizar o licenciando para atuar com alunos de diferentes condies sociais, reconhecendo a riqueza da diversidade etnocultural e conduzindo-o a melhor compreender e lidar com ela. 4) Favorecer a conscientizao crtica do futuro docente sobre a prpria cultura, permitindo-lhe questionar sua prtica docente, bem

como levando-o a poder conduzir seus futuros alunos mesma conscincia crtica e questionadora. Essas tambm so proposies que se aplicam s colocaes aqui apresentadas, e que podem ser includas nos debates sobre o tema. So proposies que, tal como os objetivos expressos pelo Decreto 5761, citado neste artigo, contm uma fundamentao tomada ao multiculturalismo. So tambm proposies passveis de serem convertidas em diretrizes nos cursos de licenciatura em Msica, contribuindo para que os licenciandos usufruam de uma formao que os habilite a lidar com as novas demandas sociais da atualidade. possvel que a reviso e a ampliao da formao dos futuros professores venha a gerar profissionais mais flexveis, mais preparados para lidar com diferentes situaes de ensino, ocupando, talvez, a lacuna que hoje os projetos sociais tentam suprir. A funo desses projetos seria, ento, de enriquecimento, diversidade, complementaridade, no deixando, portanto, a educao regular de se responsabilizar por garantir o ensino de msica a todos. Longe de tentar apresentar posies definitivas sobre questes to complexas e importantes, nossa pretenso aqui a de incitar reflexo e ao debate, contribuindo para que a rea de Educao Musical possa oferecer subsdios consistentes em um momento de tanta relevncia nas discusses sobre cultura e polticas pblicas no Brasil.

RefernciasBRASIL. Lei no 8.313, de 23 de dezembro de 1991. Restabelece Princpios da Lei no 7.505, de 2 de julho de 1986, institui o Programa Nacional de Apoio Cultura PRONAC e d outras providncias. Braslia, 1991. BRASIL. Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional. Braslia, 1996. BRASIL. Decreto no 5.761, de 27 de abril de 2006. Regulamenta a Lei no 8.313, de 23 de dezembro de 1991, estabelece sistemtica de execuo do Programa Nacional de Apoio Cultura PRONAC e d outras providncias. Braslia, 2006. CARVALHO, Livia Marques. Quem ensina arte nas ONGS? In: MARINHO, Vanildo Mousinho; QUEIROZ, Luis Ricardo Silva (Org.). Contexturas: o ensino de artes em diversos espaos. Joo Pessoa: Editora Universitria/UFPB, 2005. p. 67-94. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessrios prtica educativa. So Paulo: Paz e Terra, 1996. FREIRE, Vanda L. Bellard. Msica, globalizao e currculos. In: ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAO BRASILEIRA DE EDUCAO MUSICAL, 8., 1999, Curitiba. Anais Curitiba: Abem, 1999. p. 10-16. KLEBER, Magali. Educao musical: novas abordagens novos ou outros protagonistas. Revista da Abem, n.1 4, p. 91-97, mar. 2006. LOUREIRO, Alcia Maria Almeida. O ensino de msica na escola fundamental. Campinas: Papirus, 2003. MOREIRA, Antnio Flvio; MACEDO, Elizabeth Fernandes. Em defesa de uma orientao cultural na formao de professores. In: CANEN, Ana; MOREIRA, Antnio Flvio (Org.). nfases e omisses no currculo. Campinas: Papirus, 2001. p. 117-146.

Recebido em 19/02/2007 Aprovado em 20/03/2007

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Pensar a educao musical como cincia: a participao da Abem na construo da reaJusamara SouzaUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) [email protected]

Resumo. Este artigo discute como a Abem tem contribudo para pensar a educao musical como cincia ou rea do conhecimento. Baseado em Nunes (2005) e Bourdieu (2000) considera que os objetos cientficos de uma rea so construdos socialmente e que cada cincia produz o seu prprio objeto. Palavras-chave: Abem, epistemologia, educao musical

Abstract. This article discusses how Abem has been contributing to the thought of musical education as a science or knowledge field. Based on Nunes (2005) and Bourdieu (2000), it considers that the scientific objects of a certain field are socially built and that each science produces its own object. Keywords: Abem, epistemology, music education

Introduo Era final de uma noite de trabalho durante o XIII Encontro Nacional da Abem, realizado no Rio de Janeiro em 2004, quando discutamos, na sala superior ao hall do hotel onde estvamos hospedadas, os temas que poderiam ser apresentados como propostas para os prximos encontros.1 A sede do prximo encontro seria a cidade de Belo Horizonte. O tema da diversidade poderia abranger as discusses j trazidas pelo Frum Nacional de Extenso realizado naquela cidade, bem como retomar as discusses propostas para o encontro de 2001.2 Em 2006, o XV Encontro seria em Joo Pessoa. Geralmente, as datas redondas se prestam de uma maneira particular para comemoraes. Mas pensvamos em uma comemorao diferente. Alm de um baile ou uma festa seria importante fazer uma avaliao dos impactos do trabalho que Associao Brasileira de Educao Musical (Abem) vinha desenvolvendo. Era necessrio pensar na produo cientfica divulgada nos encontros e publicaes, nas redes de intercmbio e contatos de profissionais que a se formavam, enfim, refletir sobre os avanos e as dificuldades bem como as conquistas e projetos futuros da Abem.

1

Participaram dessa discusso as professoras Teresa Mateiro (tesoureira da Abem gesto 2003-2005), Beatriz Ilari (secretria da Abem gesto 2003-2005) e Cludia Bellochio (presidente do conselho editorial gesto 2003-2005) a quem agradeo pelo entusiasmo e partilha de idias.

2

Trata-se do X Encontro Anual da Abem, realizado em Uberlndia (MG), em 2001, e que teve como tema Educao musical hoje: mltiplos espaos, novas demandas profissionais.

25SOUZA, Jusamara. Pensar a educao musical como cincia: a participao da Abem na construo da reas. Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 16, 25-30, mar. 2007.

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Proposta e aprovada a temtica pela assemblia geral daquele encontro, a comisso organizadora do XV Encontro Anual da Abem tratou de definir o tema: Educao musical: produo cientfica, formao profissional, polticas pblicas e impactos na sociedade. Foi tambm necessria uma articulao e operacionalizao do tema com a estrutura do evento, dando origem aos fruns de debate que integraram a programao geral do evento. Este artigo refere-se minha participao no Frum 1, intitulado Os 15 (quinze) anos da Abem: conquistas, lutas e perspectivas,3 para o qual fui convidada como ex-presidente da associao. Durante a minha passagem por duas gestes na presidncia da Abem, de 2001 a 2005, aprendi muito sobre polticas pblicas e proposio de projetos que dessem conta de um coletivo de educadores musicais. Nos vrios encontros anuais e regionais em que participei tive contato com professores de msica que relatavam sobre sua prtica docente, mencionando os problemas enfrentados no dia-a-dia, as dificuldades na busca de uma literatura especializada, os interesses de pesquisa, as demandas e, principalmente, questionavam como a Abem poderia auxiliar. Algumas solicitaes talvez fossem mais pertinentes a um sindicato de classe do que a uma associao cientfica, sem fins lucrativos. Mas isso me fazi