eduardo pellejero, o sul também não existe conferencia hoje

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Eduardo Pellejero

O sul tambm (no) existeA arquitetura ficcional da Amrica Latina

Entre outras tantas aventuras intelectuais, o sculo XIX reservava Europa o cansao da cultura e a tristeza da carne, contaminando os sonhos dos seus poetas com fantasias de evaso. A iluso de uma vida simples, sem as contradies que dilaceravam as cidades modernas, levaria alguns a fazerem-se ao mar (muitas vezes para desaparecer), mas sobretudo levantaria no vazio da literatura da poca a utopia de um mundo virgem, de um mundo onde tudo ainda estava por ver, por nomear e por fazer.

Essa utopia finissecular no era nova. A Amrica nascera de uma fantasia similar. A imaginao europeia projetara durante sculos a imagem de um paraso terrenal sobre os despojos da conquista, sobrepondo uma topografia intelectual e fantstica ao territrio real, perpetuando a fico de um mundo novo, puro, sem falhas. Os mares do sul no eram neste contexto um simples tropo literrio, eram assunto de Estado.

Signo do valor atribudo a essa fico pelo poder so as numerosas disposies coloniais atravs das quais Espanha pretendeu proibir, a partir do sculo XVI, a publicao e importao de qualquer material romanesco na colnia. Visando fundamentalmente o controlo ideolgico do novo mundo, a metrpole tentava deste modo impor limites imaginao americana. Os inquisidores compreendiam muito bem que a proliferao no regrada das imagens e dos discursos qual d lugar a fico literria constitua uma ameaa (real) para a fundao (ficcional) do novo mundo.

Espanha procurava assegurar o monoplio da fora assegurando o monoplio da fico. Com o argumento (platnico) de que os romances eram disparatados e absurdos (isto , mentirosos), com o argumento de que podiam ser prejudiciais para a sade espiritual dos cidados, durante trezentos anos os americanos foram privados do direito sua leitura.

Trezentos anos muito tempo. H costumes que se enrazam. Quero dizer que depois de viverem tantos anos envolvidas numa fico, as naes nascentes necessitariam da fico para viver. O sul, que at ento fora uma projeo fantasmtica do norte, arriscava a desagregar-se enquanto lugar simblico a golpes de realidade (guerras civis, conflitos fronteirios, fluxos migratrios, etc.). Libertada finalmente do controlo espanhol, era hora da imaginao americana dar consistncia a um territrio que aparecia dividido e depredado. E, numa poca em que a experincia religiosa (e as suas fbulas associadas) definhava enquanto fundamento do vnculo social, a literatura haveria de responder a essa necessidade espiritual e poltica, assumindo a tarefa de produzir o sucedneo de uma experincia partilhada, de uma memria comum.

Poetas e polticos confluiriam nessa empresa. Assim, por exemplo, em 1847, o futuro presidente da Argentina, Bartolom Mitre, introduzia no prlogo do seu romance Soledad, uma espcie de manifesto com o qual pretendia suscitar a produo de romances que fizessem as vezes de cimento para a nova nao. No esprito de Schiller, considerando que a revoluo poltica s era possvel a partir de uma reconfigurao da subjetividade, Mitre estava convencido de que os romances de qualidade promoveriam o desenvolvimento do pas; os romances ensinariam a populao sobre a sua histria incipiente, sobre os seus costumes apenas formulados, sobre ideias e sentimentos polticos e sociais, oferecendo uma representao sensvel da sua transformao em curso, do seu devir histrico imediato.

Resultado de invases violentas e de divises foradas, de pactos desiguais e alianas improvveis, as novas naes careciam de qualquer tipo de coeso. As identificaes imaginrias que a literatura era capaz de suscitar apareciam portanto como uma alternativa efetiva para a construo de um sujeito histrico.

Exemplo: Em Amalia (1844), de Jos Mrmol, Eduardo Belgrano ferido quando tenta fugir de Buenos Aires para somar-se resistncia ao governo de Rosas; Daniel Bello o salva e lhe oferece refgio na casa da sua prima, Amalia. Ela do interior, ele da capital, mas apesar dessa diferena poltica, a paixo leva ambos a fingirem-se partidrios do regime para secretamente lutar contra a diviso que dilacera o pas entre Buenos Aires e o resto dos Estados. Na vspera da inevitvel fuga, Eduardo e Amalia casam, mas morrem na tentativa s mos das tropas do regime, fechando um pacto que j no poder ser desfeito. Na prosa de Mrmol, a histria de amor semente de uma nova subjetividade poltica; projeta, num contexto de diviso social e na ausncia de um poder legtimo, o tipo de cpula entre a capital e as provncias capaz de estabelecer uma famlia pblica de direito.

O caso de Amalia representativo de um gnero que conheceu uma tradio prolfica, cujo objeto era conciliar as diferenas entre etnias, classes e regies, postulando os antigos inimigos como futuros aliados. Romance ertico/poltico, onde a metfora do matrimnio (conquistado com grandes esforos) ou da unio de fato (minada por todo o tipo de condicionamentos materiais, sociais e culturais), se desdobra como metonmia de consolidao nacional. Os amantes desejam-se apaixonadamente ao mesmo tempo que desejam o nascimento de uma nova ordem poltica, uma ordem capaz de tornar possvel a sua unio; cada obstculo que os amantes encontram intensifica o amor o das personagens e o dos leitores , pelo surgimento de uma nao onde a paixo possa ser consumada. A fico literria politicamente fundacional: no implica diretamente uma organizao nova do social, mas d forma a uma subjetividade em devir.

Balzac dizia que o romance a histria privada das naes, mas o que acontece na Amrica demasiado; os termos invertem-se: as biografias familiares da literatura so as que do lugar histria nacional. Enquanto na Europa os escritores exploram as falhas da sociedade burguesa e projetam a fantasia de um novo comeo nos mares do sul, na Amrica os escritores tentam balizar a imaginao desse territrio em ebulio imagem e semelhana dos Estados do norte. E, enquanto a literatura europeia reconhece na crtica a sua autntica forma de interveno, a literatura americana da poca parece definir-se politicamente por uma funo substitutiva: oferece um horizonte de sentido (sobre um territrio fragmentado), preenche vazios (identitrios), cobre distncias (tnicas, sociais, polticas). Sem nenhum fundamento moral, filosfico ou religioso, os romances fundacionais so fices que se fazem passar por verdade, criando um espao ilusoriamente estvel para novas formas de subjetividade poltica.

Identificar-se na leitura com a paixo dos amantes para consumar o seu desejo, era j assumir um programa poltico. Por exemplo, o da eliminao das diferenas sociais, tnicas ou culturais numa sociedade dada, isto , o da produo de uma identidade cvica nacional capaz de se impor sobre essas formas conflituosas de identidade tradicional. (Evidentemente, esses programas polticos nem sempre pressupunham a igualdade e, do mesmo modo que os romances, implicavam a subordinao de uma parte outra da mulher ao homem, do ndio ao mestio, do campo cidade, etc.)

O certo que a fundao da Amrica Hispnica em boa medida um exerccio de fabulao. Um singular exerccio de fabulao, que tem o homem americano apenas por sujeito dos enunciados (nos enunciados assistimos, de fato, sua criao como personagem de uma histria sem memria), mas do ponto de vista do sujeito da enunciao pressupe o homem europeu (inclusive se cruzou o Atlntico, inclusive se leva j nas suas veias uma parte do sangue novo). nesse sentido que temos que entender o problema levantado por Octavio Paz em El laberinto de la soledad (1950): a Amrica uma ideia, uma inveno do esprito europeu, mas enquanto ser autnomo, a Amrica v-se confrontada com essa ideia e capaz de opor-lhe uma resistncia imprevisvel.

A Amrica uma complexa trama ficcional, pela sua vez reescrita pela prpria literatura americana. O novo mundo no to novo assim. Comeo que j uma repetio, ocupa um espao duplamente fictcio: primeiramente constitudo pela tradio europeia e mais tarde reelaborado pelos escritores americanos, que tentam reinventar-se a si prprios e Amrica num movimento sem fim.

nesse segundo sentido que os grandes romances contemporneos re-escrevem ou des-escrevem as fices fundacionais latino-americanas. Opem formas de desincorporao literria s identificaes imaginrias forjadas durante o sculo XIX (e no s), isto , colocam em causa, segundo um deslocamento estratgico da perspectiva, essa poltica ficcional que no logrou reconciliar as classes em luta, nem aproximar o campo cidade, nem unir os pais europeus com as mes da terra (ou que s logrou essa reconciliao subordinando, silenciando ou eliminando um dos termos).

Ento, os amores fundacionais prprios dos romances do sculo XIX revelam a sua intrnseca violncia, e as mentiras piedosas aparecem como estratgias para controlar conflitos raciais, regionais e econmicos que ameaavam o desenvolvimento das novas naes. Esses romances aparecem como parte do projeto da burguesia para conquistar (para assegurar) a hegemonia desta cultura que se encontrava em estado de formao (uma cultura que, idealmente, seria uma cultura acolhedora, que ligaria as esferas pblica e privada, dando lugar a todos, desde que todos soubessem qual o seu lugar).

De alguma forma, os escritores, antes alentados a preencher os vazios de uma histria que contribua para legitimar o nascimento de uma subjetividade nacional e impulsionar a sua histria no sentido de um futuro ideal, procuram dizer agora o no dito nas fices fundacionais, tentam reintroduzir a contingncia no passado, destruindo as estruturas imaginrias e materiais sobre as quais assenta o presente, propiciando a resistncia e a abertura de novos espaos de possvel.

Exemplo: Em El siglo de las luces (1962), de Alejo Carpentier, trs adolescentes Sofa, Carlos e Esteban perdem o pai e o tio, ficando sozinhos numa enorme casa da Cuba colonial. Ento, um dia chega um estranho visitante Vctor Hugues, comerciante e partidrio dos novos ideais polticos do sculo XVIII que abre a casa ao mundo e poca, implicando-os nos movimentos revolucionrios. Mas as ideias de liberdade, fraternidade e igualdade que traz Vctor so colocadas em questo numa histria difcil para as personagens, revelando a traio da revoluo francesa aos levantamentos dos negros do Caribe. Sofa, que se apaixona por Vctor e pelas suas ideias (e se entrega a ambos, apaixonadamente), acaba por se desenganar: Vctor acaba comprometido num intento de genocdio da populao negra. Ou seja, o romance, longe de fundar alguma coisa, des-funda uma narrativa hegemnica (a declarao universal dos direitos do homem, enquanto fico fundacional ou constituinte da modernidade poltica).

Exemplo: Em Conversacin en La Catedral (1969), de Mario Vargas Llosa, Santiago e Ambrosio mantm uma conversa num bar chamado La Catedral, durante a ditadura do general Odra. Falam, enquanto bebem, da corrupo e da desdia dos dirigentes, mas tambm da resignao e da impotncia dos peruanos. Isto , Vargas Llosa no nos oferece (mais) uma fico fundacional para o Peru, mas, pelo contrrio, aplica-se destruio ( desconstruo) de um estado de coisas insustentvel, que as fices fundacionais pretendem passar por alto. De fato, o romance de Vargas Llosa comea assim: Da porta de La Crnica, Santiago olha para a avenida Tacna, sem amor: carros, edifcios desiguais e descoloridos, esqueletos de anncios luminosos na nvoa, o meio-dia cinzento. Em que momento se tinha lixado o Per?. A pergunta no tem resposta, ou, melhor, no tem apenas uma resposta. Cada resposta (cada histria) levanta novas questes, cada questo d lugar a novas histrias, e assim. No h verdade fundacional, apenas fices que na tentativa de articular o sentido do presente redeterminam (ou simplesmente apagam) o passado.

Exemplo: Em Yo, el supremo (1974), Augusto Roa Bastos reconstri, utilizando indiferenciadamente elementos histricos e fictcios, a biografia poltica de Jos Gaspar Rodrguez de Francia, ditador do Paraguai durante 26 anos. A biografia estrutura-se sob a forma de uma espcie de discurso ditado, estrategicamente pontuado pelos comentrios (sediciosos) do seu secretrio pessoal, multiplicando as vozes de tal modo que a fico mstica sobre a qual se fundava o poder de Francia aparece atravessada de contradies, de inconsistncias e de mentiras. O ditador dita, mas o secretrio adenda, omite, repete, e em geral faz gaguejar o discurso. O escritor empreende um trabalho de segunda mo, no funda nada, no pre-escreve nada com a sua escrita, simplesmente re-escreve uma verso anterior. Sobre a literatura j no repousa nada (no pode), mas no seu movimento desregrado a escrita faz tremer (e em ltima instncia derruir) qualquer construo (cultural, social ou poltica) que assente sobre bases ficcionais.

Exemplo: Em Respirao Artificial (1980), Ricardo Piglia trama, a partir de fragmentos de cartas, monlogos, dilogos e documentos, um romance que, contra o monoplio narrativo que tendem a impor as fices estatais, procura restaurar a polifonia de vozes silenciadas pela ditadura. Renzi (um dos protagonistas) recebe os papis de um dos seus antepassados, dando origem descoberta de uma histria no oficial, de uma histria dos derrotados, ou, melhor, de uma memria sem histria. A sua reconstruo tem por resultado uma verso sem pretenses de institucionalizao, que nas margens de um pas das margens, torna possvel (vivvel) a desincorporao das personagens (e dos leitores) em relao aos horizontes institudos de sentido. Renzi compreende com Tardewski (e ns compreendemos com ele) que o grande mrito de um escritor no a fundao do comum, mas a capacidade de ouvir a sua prpria poca, de ouvir e fazer ouvir o murmrio silenciado pela histria oficial, de trazer luz a palavra dos esquecidos, mesmo se se trata da palavra da derrota, da claudicao ou do desespero. A identidade de um povo depende para Piglia de uma trama de relatos, de um conjunto de histrias que circulam entre as pessoas, pelo que traar o mapa ficcional da sociedade constitui a tarefa mais importante do escritor, remetendo as fices hegemnicas a uma regio especfica do plano, e assinalando os lugares onde algo dito e no ouvido, algo pensado e no considerado, algo feito e no visto.

Exemplo: Em Zama (1956) de Antonio Di Benedetto, o romance fundacional invertido atravs de uma pardia do romance histrico. A estrutura de Zama aparentemente simples: o protagonista narra, na primeira pessoa, dez anos da sua vida; anos cruciais, nos quais o protagonista experimenta os sintomas da sua decadncia fsica e moral (, portanto, a histria de um perdedor, com o qual muda j o sujeito da histria em relao ao sujeito heroico das fices fundacionais). Por outro lado, Di Benedetto multiplica as estrias, as alegorias e as metforas, anulando a iluso biogrfica e historicista de um sujeito histrico qualquer. Essa fragmentariedade, que contamina o livro, dispe, a onde as fices fundacionais pressupunham a identidade, a continuidade e a coerncia no desenvolvimento, a heterogeneidade, as diferenas, os acidentes, os acontecimentos mais insignificantes ou mais refratrios ao sentido. Consideremos a passagem a seguir, onde esta espcie de contra-histria aparece de forma mpar. Zama est a cruzar ingloriamente a selva paraguaia quando d com uma estranha tribo, que caminha pelas veredas abertas no mato, guiada por crianas que levam os adultos pela mo. Zama diz: Cegos. Todos os adultos eram cegos. As crianas no. (...) Eram vtimas da ferocidade de uma tribo inimiga. Os cegaram com facas ao rubro. (...) No viam e tinham eliminado deles o olhar dos outros. (...) Quando a tribo se habituou a viver sem olhos foi mais feliz. Cada um podia estar s consigo prprio. No existiam a vergonha, a censura, a culpa; no eram necessrios os castigos. Acudiam uns aos outros para atos de necessidade coletiva, de interesse comum: caar um animal, reparar o telhado duma cabana. O homem procurava a mulher e a mulher procurava o homem para o amor. Para se isolarem mais, alguns batiam nos ouvidos at partir os ossos. Mas quando os filhos alcanaram certa idade, os cegos compreenderam que os filhos podiam ver. Ento foram penetrados pelo desassossego. No conseguiam estar em si mesmo. Abandonaram as cabanas e internaram-se nos bosques, nas pradarias, nas montanhas... Algo os perseguia. Era o olhar das crianas, que ia com eles, e por isso no conseguiam deter-se em parte nenhuma. Na sua austeridade e o seu laconismo, Zama no representa a condio profunda da Amrica, no mais uma imagem da nossa fragilidade e da nossa contingncia (mesmo que isso possa ser reconfortante). Se o romance de Di Benedetto evita qualquer exaltao patritica, se recusa qualquer tentao de historicismo ou de cor local, no o faz em nome de nenhuma nova identificao. A agonia do seu protagonista, o seu inevitvel declnio, apenas metonmia da desorientao e da falta de sentido (histrico) do tempo no qual Di Benedetto escreve a sua histria. Zama prope-nos, no uma evaso do presente, mas um trabalho (necessariamente paciente) sobre a sua irresoluo e a sua problematicidade, sendo o afastamento metafrico em direo ao passado apenas um mecanismo para a sua irrealizao. Na sua leitura desconhecemo-nos enquanto sujeitos de uma histria que acreditvamos ser nossa, estranhamo-nos de ns prprios, isto , colocamos em causa os fundamentos da nossa identidade e os alicerces das construes imaginrias s quais a nossa identidade se encontra associada (simplesmente, j no nos sentimos parte).

Poderamos multiplicar os exemplos indefinidamente. As obras de Felisberto Hernndez, Haroldo Conti, Jos Donoso, Alfredo Bryce Echenique, Manuel Puig, Jos Revueltas, Ernesto Sabato, Osvaldo Soriano, Juan Jos Saer, Roberto Bolao, e boa parte da literatura sul-americana, permitem uma leitura deste tipo, e compreendem uma relao problemtica, difcil, irresoluta, com as fbulas fundacionais da nossa identidade.

Durante sculos, o norte imps ao sul a sua espada e a sua pena. Cavou, no vazio da sua prpria disperso, um lugar ficcional a partir do qual pretendia afirmar-se apesar de todas as suas diferenas, das suas falhas e contradies. O sul era uma miragem: a iluso mnima necessria para manter as coisas a funcionar (outro mundo possvel, mas do outro lado do mundo, elusivo, inatingvel, proibido).

Os poetas, os loucos e os desesperados o procuraram de diversas formas, e de diversas formas o encontraram, mas no como paraso perdido nem como territrio virgem (nem, certamente, como terra da liberdade).

Com a sua fome disponvel (...) e a sua esperana dura, o sul insinua-se nas margens das lnguas e do imaginrio que chegaram do norte, mas no existe, pelo menos no como lugar de identificao.

Se o sul alguma coisa, uma diferena, ou, melhor, a promessa (sempre diferida) de uma diferena. A diferena, sempre conflituosa, entre a representao que a Europa fazia de ns, a representao que os fundadores das naes americanas faziam de ns, e as representaes que ns prprios fazemos de ns. Uma diferena que a literatura frequenta de forma clandestina. Uma diferena na qual no se joga destino nenhum, mas em virtude da qual resiste aquilo que mantm viva a imaginao do que ainda no somos, do que ainda no dissemos nem sonhmos, do que apenas nos atrevemos a pensar.

Entre as fbulas da sua origem e uma origem sempre por fabular, entre as identificaes imaginrias que do forma ao horizonte da sua histria e as desincorporaes estticas que relanam continuamente o devir da sua conscincia, o sul debate-se por essa diferena sem modelo, isto , pela utopia desrazovel de uma liberdade sem determinao.

, claro, um sonho de loucos, de desesperados e de poetas. Que outra coisa podem ser os mares do sul?

La chair est triste, hlas! et j'ai lu tous les livres. / Fuir! l-bas fuir! Je sens que des oiseaux sont ivres / D'tre parmi l'cume inconnue et les cieux! / Rien, ni les vieux jardins reflts par les yeux / Ne retiendra ce coeur qui dans la mer se trempe / O nuits! ni la clart dserte de ma lampe / Sur le vide papier que la blancheur dfend / Et ni la jeune femme allaitant son enfant. / Je partirai! Steamer balanant ta mture, / Lve l'ancre pour une exotique nature! / Un Ennui, dsol par les cruels espoirs, / Croit encore l'adieu suprme des mouchoirs! / Et, peut-tre, les mts, invitant les orages / Sont-ils de ceux qu'un vent penche sur les naufrages / Perdus, sans mts, sans mts, ni fertiles lots... / Mais, mon coeur, entends le chant des matelots!! (Mallarm, Brise marine, 1887)

As mesmas contradies que inspiravam d fantasias, por outra parte, davam lugar na mesma poca a outra utopia, esta vez imanente e materialista, que afirmava que o mundo estava por ver, pensar e fazer em todas partes e a todo o momento.

Sobre a fundao ficcional da Amrica, cf. Todorov, Fictions et vrits , in: L'Homme, Volume 29, Numro 111 , Paris, 1989, pp. 7-33; cf. Octavio Paz, El laberinto de la soledad, Madrid, Fondo de Cultura Econmica, 1998; p. 71: A Amrica uma utopia, isto , o momento no qual o esprito europeu se universaliza, se desprende das suas particularidades histricas e se concebe como uma ideia universal que, quase milagrosamente, encarna e afiana-se numa terra e num tempo preciso: o porvir. Na Amrica a cultura europeia concebe-se como unidade superior; cf. Dieter Richter, El sur. Historia de un punto cardinal. Un recorrido cultural a travs del arte, la literatura y la religin, traduo espanhola de Mara Condor , Madrid, Ediciones Siruela, 2011; p. 30: Com a descoberta da Amrica, o Novo Mundo, o Ocidente converte-se em terra verdadeira de promisso. () A chave mais importante deste ocidente ser o ouro. A ideia de El Dorado (uma lenda ndia que chegou aos ouvidos dos espanhis no sculo XVI), deu asas fantasia e cobia dos europeus. O Ocidente passar a ser a partir das expedies dos conquistadores do sculo XVI at quimera do ouro californiana na poca posterior a 1848 , o ponto cardeal dos caadores de tesouros. () Mas o Ocidente converte-se em terra promisionis tambm em sentido poltico. Durante sculos, a Amrica constituir a meta de inmeros emigrantes que, abandonando as estreitas e opressivas condies europeias, procuravam no dourado Ocidente liberdade individual, independncia e riqueza, ou como os padres peregrinos, os ququeres e muitos outros grupos queriam tornar realidade, com a fundao de novas comunidades, uma ordem social ideal.

Para uma viso mais apurada da questo da fico na Amrica colonial, cf. Antonio Antelo, Literatura y sociedad en la Amrica Espaola del siglo XVI: Notas para su estudio, in: Thesaurus, tomo XXVIII, n 2, 1973.

Como seria de esperar, e apesar da repetio dos editais, os documentos sobreviventes da poca registam uma animada circulao de romances proibidos, demonstrando que a censura da coroa nunca conseguira instaurar-se totalmente; cf. Doris Sommer, Ficciones fundacionales, traduo espanhola de Jos Leandro Urbina e ngela Prez, FCE, Bogot, 2004; p. 27.

Espanha aspirava controlar totalmente a vida nas colnias americanas, e pretendia portanto deter tambm o monoplio da fico. difcil de compreender, contudo, que tenha tentado submeter a literatura a uma forma to sistemtica de censura. O certo que se o poder pretende, por um lado, enclausurar ou expulsar a fico (pensem na expulso dos poetas da repblica platnica, que inaugura esta histria de exlios que se estende tristemente at aos nossos dias), por outro lado, o poder tambm procura apropriar-se da potncia da fico para os seus prprios fins (lembrem tambm, neste sentido, que na Repblica, Plato funda a diviso do trabalho numa fico ou num mito: o da implantao do ouro, da prata, do bronze e do ferro nas almas dos homens). A associao imediata, claro, 1984, de George Orwell: Quem domina o presente, domina o passado. Quem domina o passado, domina o futuro. Cf. Mario Vargas Llosa, La verdad de las mentiras, Buenos Aires, Alfaguara, 2002; pp. 15-16.

Trata-se do romance de Jos Joaqun Fernndez de Lizardi, El periquillo sarniento, publicado no Mxico, em 1816.

A interpretao que Mitre faz de Schiller pode ser posta em causa, mas certamente Mitre afeta a sua influncia, chegando a utilizar, no Prlogo, as categorias de homem moral e homem fisiolgico.

por isso que gostaramos que o romance criasse razes no solo virgem de Amrica. O povo ignora a sua histria, os seus costumes apenas formulados no foram filosoficamente estudados, e as ideias e sentimentos modificados pelo modo de ser poltico e social no foram apresentadas sob formas vivas e animadas copiadas da sociedades na qual vivemos. O romance popularizaria a nossa histria apelando aos acontecimentos da conquista, da poca colonial, e das memrias da guerra da independncia. Como Cooper no seu Puritano e o espa, pintaria os costumes originais e desconhecidos dos diversos povos deste continente, que tanto se prestam a ser poetizados, e dariam a conhecer as nossas sociedades to profundamente agitadas pela desgraa, com tantos vcios e tantas grandes virtudes, representando-as no momento da sua transformao, quando a crislida se transforma em brilhante borboleta. Tudo isto faria o romance, e a nica forma sob a qual podem apresentar-se estes diversos quadros to cheios de ricas cores e movimento. (Bartolom Mitre, Soledad, Buenos Aires, Tor, 1952).

Jos Marmol, Amalia, Madrid, Ctedra, 2000.

Enquanto, por exemplo, na Frana, os romances de Balzac expunham as tenses e as brechas da famlia burguesa, os latino-americanos tentavam reparar essas fissuras, com a vontade de projetar histrias idealizadas que apontavam, ora ao passado (enquanto espao legitimador), ora ao futuro (enquanto meta nacional).

Cf. Doris Sommer, Ficciones fundacionales, pp. 41-65.

No se trata apenas de uma forma arcaica de funcionamento. A literatura, o cinema, a televiso, conheceram sempre e continuam a conhecer um valor substitutivo similar, sempre mais ou menos polarizado pelas apostas do poder. Tambm no se trata de um fenmeno meramente local, uma deformao terceiro-mundista da arte (atribuvel, por exemplo, ao hipottico populismo latino-americano). Nos Estados Unidos, por exemplo, Robert Burgoyne retoma o tema das fices dominantes enquanto imagens de consenso social e o seu papel central na construo de uma identidade nacional por parte do cinema norte-americano do tipo The birth of a nation. Fabulao nacionalista que opera de cima (isto , propiciada ou dirigida pelos poderes institudos), e para a qual o cinema clssico teria constitudo uma mediao fundamental, criando uma imagem da sociedade imediatamente acessvel a todas as classes.

Borges seria um dos primeiros a assinalar a impostura dos mitos da fundao (Fundao mtica de Buenos Aires), reconhecendo (criticamente) a superioridade da potncia poltica da poesia sobre o esprito das leis (Evaristo Carriego). Cf. Jorge Luis Borges, Obras Completas, Barcelona, Emec Editores, 1989.

Cf. Lelia Madrid, La fundacin mitolgica de Amrica Latina, Madrid, Espiral Hispano Americana, 1989; p. 8.

Cf. Roberto Gonzlez Echeverra, Alejo Carpentier: The pilgrim at Home, Cornell University Press, New York, 1977; p. 28.

Alejo Carpentier, El siglo de las luces, Barcelona, Seix Barral, 1985.

No fim, procurando expiar a culpa ou conquistar a redeno, Sofia viaja para Madrid, onde se faz matar (corajosamente, desesperadamente) num levantamento popular contra Napoleo.

Mario Vargas Llosa, Conversacin en La Catedral, Buenos Aires, Sudamericana - Planeta, 1981.

Nesse sentido, Vargas Llosa no se limita conduzir a sua genealogia at o momento da conquista, mas reconhece, nos prprios povos originrios (concretamente, nos Incas), o mesmo mecanismo mistificador de ficcionalizao total da realidade. (Mario Vargas Llosa, La verdad de las mentiras, pp. 25-28) Historicamente fiel ou no, a proposio de Vargas Llosa um principio de interpretao: qualquer fico fundacional a apropriao violenta de uma fico anterior, no sendo possvel, por um exerccio de regresso, dar com nenhuma palavra verdadeira (o mito um mito, dir Jean-Luc Nancy); logo, no h comunidade originria, apenas fices da comunidade.

Augusto Roa Bastos, Yo, el Supremo, Buenos Aires, Sudamericana, 1985.

Ricardo Piglia, Respiracin artificial, Buenos Aires, Sudamericana, 1988.

Que estrutura tm essas foras fictcias?: talvez este seja o centro da reflexo poltica de qualquer escritor (Ricardo Piglia, Crtica y ficcin, Buenos Aires, Seix Barral, 2000; p. 43)

Cf. Juan Jos Saer, Prlogo, in: Antonio Di Benedetto, Zama, Buenos Aires, Adriana Hidalgo, 2000.

Antonio Di Benedetto, Zama, pp. 171-172.

Mario Benedetti, El sur tambin existe, in: Mario Benedetti, Preguntas al azar, Buenos Aires, Sudamericana, 2000.

Os produtos da fico so particulares e arbitrrios, mas a faculdade de produzir fices universal e necessria.

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