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    partido-alto samba de terreiro samba-enredo

    Dossi das Matrizes

    do Samba no Rio de Janeiropartido-alto samba de terreiro samba-enredo

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    Dossi das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro

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    partido-alto samba de terreiro samba-enredo

    Dossi das Matrizes

    do Samba no Rio de Janeiropartido-alto samba de terreiro samba-enredo

    proponente

    Centro Cultural Cartola

    superviso e financiamento

    Iphan/MinC

    apoio

    SEPPIR Fundao Cultural Palmares

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    Dossi das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro

    Sapateia mulata bambaSapateia em cima do salto

    Mostra que s filha do samba

    Do samba de partido-alto

    O samba tem a sua escolaE a sua academia tambm

    Como dana, uma boa bolaNs sabemos o gosto que tem

    Sapateia mulata bambaSapateia em cima do salto

    Mostra que s filha do sambaDo samba de partido-alto

    Voc seja de que linha forQue eu prefiro a de umbanda

    Quando no samba vejo meu amorSapeco logo uma boa banda

    Sapateia mulata bambaSapateia em cima do salto

    Mostra que s filha do sambaDo samba de partido-alto

    Ca, ca! Ca, ca! Ca, Cabeaci!Eu tenho o corpo fechado

    Lamento o tempo que perdiAndando no mundo errado

    Sapateia mulata bamba

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    partido-alto samba de terreiro samba-enredo

    Muito velho, pobre velho

    Vem subindo a ladeiraCom a bengala na mo o velho, velho Estcio

    Vem visitar a MangueiraE trazer recordao

    Professor chegaste a tempoPra dizer neste momento

    Como podemos vencerMe sinto mais animadoA Mangueira a seus cuidados

    Vai cidade descer

    Velho EstcioCartola

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    Dossi das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro

    A grande paixoQue foi inspirao

    Do poeta o enredo

    Que emociona a velha guardaL na comisso de frente

    Como a diretoriaGlria a quem trabalha o ano inteiro

    Em mutiroSo escultores, so pintores, bordadeirasSo carpinteiros, vidraceiros, costureiras

    Figurinista, desenhista e artesoGente empenhada em construir a iluso

    E que tem sonhosComo a velha baiana

    Que foi passistaBrincou em ala

    Dizem que foi o grande amor de um mestre-salaO sambista um artista

    E o nosso Tom o diretor de harmoniaOs folies so embalados

    Pelo pessoal da bateriaSonho de reis, de pirata e jardineiraPra tudo se acabar na quarta-feira

    Mas a quaresma l no morro coloridaCom fantasias j usadas na avenida

    Que so cortinasQue so bandeirasRazes pra vida

    To real na quarta-feira por isso que eu canto...

    Pra tudo se acabar na Quarta-FeiraMartinho da Vila

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    partido-alto samba de terreiro samba-enredosum

    rio

    Introduo

    Histria

    Datradioafricana

    Notasparaumahistriaafro-carioca

    DeixaFalar,osambaeaescola

    Descrio

    Amsica

    Apoesia

    Adana

    Acena

    Aroda

    Areligiosidade

    Acomida

    Osinstrumentos Abandeira

    Asbaianas

    Asvelhasguardas

    Oterreiro

    Atransmissodosaber

    Lugares

    Mangueira

    Portela

    ImprioSerrano

    Salgueiro

    SoCarlos/EstciodeS

    VilaIsabel

    Mapadosambacarioca

    As70escolasdoRiodeJaneiro

    Escolasextintas

    Escolas-mirim

    Outroslugares

    Atoresdosamba

    Situao

    Justificativa

    Objetodoregistro

    Recomendaesdesalvaguarda

    Depositriosdatradio

    Referncias

    Bibliografia

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    Dossi das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro

    i n t r o d u o

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    partido-alto samba de terreiro samba-enredo

    O presente trabalho, realizado no Rio de Janeiro

    entre janeiro e outubro de 2006, tem por objetivo

    reunir num dossi textos tericos e documentos que

    reorcem a importncia para a cultura brasileira das

    matrizes do samba no Rio de Janeiro.

    O reconhecimento do samba de roda do Recncavo

    Baiano como Patrimnio Imaterial da Humanidade,

    em 2005, motivou o Centro Cultural Cartola a

    analisar os variados estilos de samba no Rio de

    Janeiro, que se originaram nas reunies musicais em

    casa de Tia Ciata, no Estcio, nas escolas de samba,

    nos blocos, nos morros, nas ruas, nos quintais.

    No obstante existirem prticas musicais identicadas

    pelo termo samba, como o samba de roda do

    Recncavo e o samba rural paulista, no panorama

    musical brasileiro o samba no Rio de Janeiro se

    destaca por ser um enmeno cultural pujante

    que atravessou o sculo XX, passando de alvo de

    discriminao e perseguio nas primeiras dcadas

    a ritmo identicado com a prpria nao, a ponto

    de ser um de seus smbolos.

    Essa passagem gradual de gnero perseguido a

    smbolo nacional oi, em parte, uma contingncia

    relacionada ao ato de, nos anos 30 e 40, ser o Rio

    a capital do pas, possibilitando o encontro entre

    as elites do samba, como Donga e Joo da Baiana,

    e as elites intelectuais que orientavam as polticas

    culturais do Estado, como Villa-Lobos e Mrio de

    Andrade. Mas undamental observar que a atuao

    dos prprios sambistas no sentido da aceitao e do

    reconhecimento do gnero pelo establishment oi de

    importncia decisiva.

    Os processos de ocializao ou nacionalizao

    do samba descritos por estudiosos como Hermano

    Vianna e Cludia Matos no conseguiram calar as

    ormas genunas praticadas no Rio de Janeiro. E no

    s isso: pode-se armar que oram seus primeiros

    cultores, pobres, negros e excludos, os principais

    responsveis por essa conquista, tomando para si a

    introdu

    o

    liderana do processo de armao gradual do samba,

    urdido em diversos atores que vo da excelncia de

    sua expresso criativa ao capricho da indumentria e

    o emprego de palavras rebuscadas, no que se poderia

    resumir modernamente por atitude.

    Como resultado, o samba reconhecido como a

    msica popular do Brasil por excelncia. Ele ocorre

    em todo o pas, num sem-nmero de gneros e

    subgneros, maniestaes musicais, de dana e de

    celebraes da vida, originadas do que oi semeado

    ao longo dos sculos pelas populaes aricanas e

    aro-descendentes que aqui viveram e vivem.

    No comeo do sculo XX, comunidades negras do

    Rio de Janeiro excludas de participao plena nos

    processos produtivos e polticos ormais, persegui-das

    e impedidas de celebrar abertamente suas olias e sua

    deram orma a um novo samba, dierente dos

    tipos ento conhecidos, que viria a ser chamado de

    samba urbano, samba carioca, samba de morro ou

    simplesmente samba. Elas tambm criaram as escolas

    de samba, espaos de reunio, troca de experincias,

    estabelecimento de redes de soli-dariedade, criao

    artstica e esta.

    Essas comunidades, duramente atingidas pela

    reorma urbana da primeira dcada do sculo, que

    as aastou do Centro, resistiram e responderam

    excluso e ao preconceito, dentre outras maneiras,

    atravs do samba e das escolas, expresses populares

    de alto valor artstico e grande poder de integrao. O

    samba oi e um meio de comunicar experincias e

    demandas, individuais e de grupo; a escola de samba,

    nos terreiros/quadras e em seu momento maior, o

    desle, que inicialmente se dava na Praa Onze, oi e

    um exerccio de poltica social ao levar os sambistas

    a reocupar as ruas, num processo de conquista e

    armao social que, embora avanando, ainda no

    oi concludo.

    Em pouco tempo, o samba do Rio de Janeiro se

    espalhou pelo Brasil, inicialmente atravs do rdio e

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    Dossi das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro

    do disco. As escolas de samba atraram mais e mais o

    interesse de segmentos sociais diversos, aproxi-mando

    sambistas, classe mdia, intelectuais, mdia, poder

    pblico, polticos, indstria do entretenimento e

    do turismo.

    O samba e os sambistas participaram ativamente

    da construo da identidade nacional brasileira. O

    samba virou sinnimo de Brasil.

    Esta pesquisa busca situar o valor do samba no Rio

    como patrimnio, mostrando seu papel undamental

    na tradio cultural desta cidade e como reerncia

    cultural nacional, j que um importante ator dearmao da identidade brasileira, alm de onte de

    inspirao e de trocas interculturais para alm de

    suas ronteiras geogrcas.

    A pesquisa obedeceu metodologia do Inventrio

    Nacional de Reerncias Culturais do Iphan,

    instituio que garantiu ainda a superviso tcnica

    indispensvel e o apoio nanceiro.

    Na primeira etapa da pesquisa, de constituio daequipe, oram convocados ao trabalho pesquisadores

    que estivessem intimamente ligados a essa produo

    cultural brasileira, capazes de deender, no o

    engessamento dessa cultura viva e dinmica, mas

    o respeito, o reconhecimento e a transmisso de

    sua tradio, nos aspectos que a identiicam e

    dierenciam de vertentes que, atualmente, tomaram

    a orma de espetculo. Essa tradio o que sustentaos espaos destinados prtica, socializao e diuso

    do samba.

    Inicialmente, no comeo do sculo XX,tais espaos

    eram originalmente chamados terreiros, lugar de

    encontro e celebrao dos atores dos guetos, que

    ali cantavam e danavam seu samba livre, com as

    marcas de sua ancestralidade. Uma das modalidades

    de samba praticadas nesse lugar era o samba deterreiro, que cantava as experincias da vida, o amor,

    as lutas, as estas, a natureza e a exaltao da sua

    escola e do prprio samba.

    Praticavam tambm o partido-alto, nascido das

    rodas de batucada, no qual o grupo marcava o

    compasso batendo com a palma da mo e repetindo

    versos envolventes que constituam o rero. No

    partido-alto o rero se repete e os versos que se

    seguem, improvisados, normalmente (mas no

    necessariamente) obedecem ao tema proposto.

    tambm o rero que serve de estmulo para que um

    participante v ao centro da roda sambar e com um

    gesto ou ginga de corpo convide outro componente

    da roda a ocupar o centro.

    A partir da estruturao progressiva das escolas de

    samba, no nal da dcada de 1920, criou-se o samba-

    enredo, aquele em que o compositor elabora os seus

    versos paraapresentao no desle. Ao longo do

    tempo, ele adquiriu caractersticas prprias, como

    a capacidade narrativa de descrever de maneira

    meldica e potica uma histria o enredo que

    se desenrola durante o desle. De sua animao e

    cadncia depende todo o conjunto da agremiao,

    em termos de evoluo e envolvimento harmnico.O samba-enredo agrega caractersticas dos dois

    primeiros subgneros descritos, como, por exemplo,

    a presena marcante do rero e a incluso, quase

    sempre nas entrelinhas, de experincias e sentimentos

    dos sambistas, desaando a ria objetividade de

    alguns enredos.

    O recorte contemplou as trs ormas de expresso que

    mais intimamente se relacionam com o cotidiano,com os modos de ser e de viver, com a histria e

    a memria dos sambistas. Em todo o universo do

    samba no Rio de Janeiro essas trs ormas de expresso

    samba de terreiro, partido-alto e samba-enredo so

    as que implicam relaes de sociabilidade: sua prtica

    est enraizada no cotidiano dos sambistas, na vida

    das pessoas, tendo, portanto, continuidade histrica.

    Avaliou-se que a pesquisa necessria instruo doprocesso de registro deveria ocalizar seis escolas de

    samba representativas da constituio das matrizes

    pesquisadas: Estao Primeira de Mangueira, Portela,

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    partido-alto samba de terreiro samba-enredo

    Imprio Serrano, Acadmicos do Salgueiro, Unidos

    de Vila Isabel e Estcio de S, bastante representativas

    do universo do samba carioca, sobretudo por sua

    localizao geogrca em redutos tradicionais de

    sambistas: Mangueira, Estcio, Tijuca, Vila Isabel,

    Madureira e Oswaldo Cruz. So escolas que se

    organizaram no momento em que essa orma de

    expresso, na modalidade samba-enredo, estava

    surgindo e se consolidando e que mantm viva a

    memria dos que participaram desse processo, do

    qual elas so reerncias.

    A pesquisa oi direcionada para a descrio do samba

    como orma de expresso, o que determinou a diviso

    do trabalho, basicamente, em duas rentes:

    a) Levantamento das fontes bibliograa (livros,

    dissertaes e teses acadmicas, matrias em

    peridicos, olhetos e lderes, etc.); discograa

    (gravaes em discos 78 r.p.m., discos de vinil, tas

    cassete, CDs, etc.); registros audiovisuais (depoimentos

    gravados, otograas, lmes e documentrios em

    pelcula, ta VHS ou DVD, etc.).

    b) Pesquisa de campo para preenchimento de

    eventuais lacunas vericadas no corpusdocumental,

    oram colhidos novos depoimentos com reconhecidos

    depositrios da tradio e realizados registros das

    matrizes do samba no Rio de Janeiro em sua orma

    contempornea.

    medida, porm, que o trabalho avanava, cou

    claro que os caminhos e ontes se cruzavam a todo

    momento, constituindo-se, na realidade, no no

    relato de seis trajetrias paralelas, mas em um s

    relato: o da trajetria das mutaes e permanncias

    que orjaram a estratgia de resistncia do samba

    como orma de expresso de um importante

    segmento da populao carioca.O inventrio e registro das matrizes do samba no Rio

    de Janeiro oi idealizado pela sambista Leci Brando

    e realizado pelo Centro Cultural Cartola, sob a

    introdu

    o

    coordenao de Nilcemar Nogueira. A pesquisa oi

    desenvolvida por Helena Theodoro, Rachel Valena

    e Aloy Jupiara, com participao de pesquisadores

    convidados: Nei Lopes, Roberto Moura, Srgio

    Cabral, Carlos Sandroni, Felipe Trotta, Joo Batista

    Vargens, Marlia de Andrade, Haroldo Costa e Lygia

    Santos. O projeto contou ainda com a colaborao

    de Janana Reis, como assistente de pesquisa, e de

    alunos do curso de Gesto do Carnaval do Instituto

    do Carnaval da Universidade Estcio de S: Ailton

    Freitas Santos, Celia Antonieta Santos Deranco,

    Cremilde de A. Buarque Arajo, Lilia Gutman P.

    Langhi, Luis Antonio Pinto Duarte, MeryanneCardoso, Nelson Nunes Pestana, Paulo Csar Pinto

    de Alcntara, Regina Lucia Gomes de S, Sergio

    Henrique Vieira Oliveira e Wellington Pessanha. As

    gravaes em vdeo oram realizadas por Luiz I. Gama

    Filho (direo) e Cristina Gama Filho (produo); o

    registro otogrco, por Diego Mendes.

    Paralelamente ao levantamento, oram promovidos

    debates na Associao das Escolas de Samba daCidade do Rio de Janeiro (AESCRJ), no Museu da

    Imagem e do Som (MIS) e no Instituto do Carnaval

    da Universidade Estcio de S, alm de reunies

    semanais da equipe de pesquisa no Centro Cultural

    Cartola, e periodicamente discutido o andamento

    do projeto com o Iphan em encontros no Centro

    Nacional de Folclore e Cultura Popular. O pedido

    de registro conta com o apoio da Liga Independentedas Escolas de Samba do Rio.

    Cumpre nalmente ressaltar que no dia 7 de outubro

    de 2006 realizou-se no Centro Cultural Cartola um

    encontro de velhas guardas e guras tradicionais

    das escolas de samba com o objetivo de troca de

    experincias, registro de prticas e consolidao do

    projeto.

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    Dossi das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro

    h i s t r i a

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    partido-alto samba de terreiro samba-enredo

    Tendo como marco a localidade denominada Pedra

    do Sal, no morro da Conceio,na zona porturia do

    Rio de Janeiro, nas primeiras dcadas do sculo XX,

    o samba carioca se apresenta desde sua origem como

    um elemento de expresso da identidade cultural dapopulao negra. Naquele momento decisivo em que

    o negro acabava de conquistar o direito de vender sua

    ora de trabalho, oi determinante a ormao de uma

    rede de solidariedade e sustentao que resultou num

    contato cultural enriquecedor e na miscigenao das

    vrias etnias que aqui vieram ter e conviveram.

    A modernizao da cidade e a situao de transio

    nacional fazem com que indivduos de diversas

    experincias sociais, raas e culturas se encontrem nas

    las da estiva ou nos corredores das cabeas-de-porco,

    promovendo essa situao, j no m da Repblica

    Velha, a formao de uma cultura popular carioca

    denida por uma densa experincia sociocultural que,

    embora subalternizada e quase que omitida pelos meios

    de informao da poca, se mostraria, juntamente com

    os novos hbitos civilizatrios das elites, fundamental

    na redenio do Rio de Janeiro e na formao de sua

    personalidade moderna. 1

    Com a drstica interveno urbanstica realizada pelo

    preeito Pereira Passos na primeira dcada do sculo

    XX promovida com o intuito conesso de limpar

    a cidade de tudo que signicasse pobreza, doena e

    atraso, dando eio que se pretendia moderna a uma

    metrpole que se queria europia essa populao

    marginalizada se reuniu na regio conhecida como

    Cidade Nova e a, em torno da casa da baiana TiaCiata, ormou um poderoso ncleo de resistncia

    cultural, cuja produo vigorosa comeou a urar o

    bloqueio social, econmico e geogrco. Em 1917,

    pela primeira vez, um selo de disco de 78 r.p.m. trouxe

    no campo reservado descrio do gnero musical

    a palavra samba.

    Embora existisse antes dessa data e a palavra j osse

    ento diundida, o ano de 1917 que entrou para

    a histria como o do nascimento do novo gneromusical. E seus autores e criadores eram exatamente

    os participantes dessa comunidade organizada da

    Cidade Nova, reqentada tambm por gente de outras

    histria

    partes da cidade, atrada pela riqueza da cultura que

    ali forescia.

    Aproximadamente uma dcada depois, o recm-nascido

    gnero soreria uma importante interveno, no

    Estcio, ao p do morro de So Carlos.

    A organizao do samba em grupos que receberam

    o pomposo nome de escolas acarretou o surgimento

    de um subgnero, o samba-enredo, composto para

    servir de trilha sonora aos desles carnavalescos,

    mas que transcendeu essa determinao sendo hoje

    cantado durante todo o ano em reunies de sambistas

    dentro ou ora das quadras e tendo conquistado

    absoluta hegemonia no Rio de Janeiro como msicade carnaval.

    Na descrio que se segue, em que as matrizes do

    samba carioca sero abordadas com mincia, ser

    possvel detectar que houve permanncia, ao longo

    de quase um sculo, das principais caractersticas

    que marcaram o seu surgimento. Apesar de sua

    bem-sucedida trajetria em direo a um patamar de

    reconhecimento como smbolo da nao, o samba

    logrou conservar suas caractersticas mais essenciais,seja na potica, na musicalidade, no ritmo, na

    coreograa, nas celebraes, nos ritos. As concesses

    eitas participao de todas as camadas da populao

    nas escolas de samba ocasionaram transormaes,

    mas ainda assim possvel identicar traos dessas

    matrizes, que continuam a azer parte do cotidiano

    de uma parcela considervel da populao com uma

    intensidade e um vigor tpicos das maniestaes

    autnticas da cultura popular.

    1 MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena frica no Rio deJaneiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura,1995. p. 86-7.

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    Dossi das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro

    . Da tradio africanaMuito antes de o gnero ganhar o alto estatuto de

    msica popular brasileira por excelncia e componente

    undamental da identidade nacional, o termo samba,

    na acepo de msica e dana praticada em roda e ao

    ritmo de tambores, palmas, etc., j circulava em vrias

    regies do pas.

    Antnio Geraldo da Cunha data de 1890 a entrada

    do termo na lngua portuguesa, provavelmente

    usando como abonao texto de Alusio Azevedo

    no romance O cortio. Mas j em 1886 Jos Verssimo

    dava-o como de origem pereitamente assentada.

    O llogo Macedo Soares, entretanto, registra essaentrada em 1884: No acreditamos que a dignidade do

    pas osse ultrajada porque nas ronteiras do Brasil com

    as Guianas rancesas, um mascate em hora de samba,

    ou de libaes, ousou arriar do respectivo mastro o

    pavilho nacional (A Folha Nova, jornal da Corte). E

    em 1889, o dicionarista Beaurepaire-Rohan j o denia

    como espcie de bailado popular.

    No Brasil, a tradio de danas em roda e caracterizadas

    pela umbigada provm certamente do extrato bantoormador de boa parte da cultura aro-brasileira, sendo

    observada por viajantes no interior de Angola no sculo

    XIX. Marcel Soret, na obra Les Kongo Nord-Occidentaux

    observou entre os povos objeto de seus estudos

    tambm cantos e danas de aparncia licenciosa, que

    na verdade nada mais so que antiqssimos hinos

    ecundidade. Karl Laman, no Dictionaire Kikongo-

    Franais, registra o vocbulo smba (acento grave

    na primeira slaba), com, entre outras, as seguintesacepes: pl. ma-samba, espcie de dana o on se

    heurte ensemble, contre la poitrine, ou seja, na qual

    os danarinos se chocam um com o outro, batendo

    de peito. Da mesma orma que na lngua tchokwe, de

    Angola, segundo Adriano Barbosa, o vocbulo smba

    (graado com acento agudo) tambm, entre outros usos

    e signicados, verbo usado na acepo de cabriolar,

    brincar, divertir-se (como cabrito). E o quimbundo

    registra o verbo semba, agradar, encantar.

    Na Angola contempornea, semba ou varina,

    em todas as suas innitas variaes, a dana mais

    popular da capital, Luanda, notadamente na aixa

    martima (Ilha de Luanda, Samba Grande e Pequena,

    Ilha do Musulu, Barra do Cuanza, Cacuaco, etc.).

    A dana se executa por um sapateado de cadncia

    rtmica ligeiramente acentuada, ao som de tambores

    (bumbos) e caixas de madeira ou latinhas metlicas. A

    coreograa undamental caracteriza-se por uma roda

    no centro da qual os danarinos gravitam, remexendo

    o corpo e balanando as ancas e, ocasionalmente,

    movimentando-se para rente, dobrando o corpo e

    executando o sapateado.

    A tradio dos povos bantos deu, no Brasil, origem

    a toda uma amlia de danas aparentadas, que vai docarimb paraense e do tambor-de-crioula do Maranho

    passando pelo coco do litoral nordestino e pelos

    sambas do Recncavo e do mdio So Francisco, na

    Bahia at o jongo ou caxambu no Sudeste brasileiro,

    notadamente no Vale do Paraba. Onde houve negro

    banto, l esto as danas de roda, com ou sem

    umbigada.

    Todas essas danas oram includas por Oneyda

    Alvarenga, colaboradora de Mrio de Andrade, dentrodo grande espectro das danas do tipo samba; e

    Edison Carneiro, em 1961, listava como ormas de

    samba atuais e passadas, entre outras, o caxambu,

    o coco, o jongo, o lundu, o partido-alto, o samba de

    roda e o tambor-de-crioula.

    Mrio de Andrade, em sua pesquisa sobre o

    coco nordestino, inormava que, em seu tempo,

    principalmente no Cear e em Alagoas os termos coco

    e samba muitas vezes se conundiam, para designar a

    mesma expresso musical.

    Acrescente-se, como j dissemos antes, que escritores

    como Euclides da Cunha, em Os sertes, e Alusio

    Azevedo, em O cortio, descreveram o que ento se

    entendia como samba.

    Inegvel, ento, a bem-documentada origem aricana

    do samba, a qual, em algum momento, algum se

    disps a negar, atribuindo ao gnero origem indgena.Indiscutvel, tambm, sua origem entre os povos bantos

    do antigo Congo, que compreendia regies da atual

    Angola.

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    partido-alto samba de terreiro samba-enredo

    Resta dizer, apenas, que vrias dessas ormas rurais de

    samba chegaram ao Rio de Janeiro, principalmente

    durante as migraes ocorridas nos cerca de 50 anos que

    se passaram entre a proibio do trco atlntico e a

    abolio da escravatura. E, aqui chegadas, amalgamaram-

    se, tanto ao gosto, por exemplo, de migrantes bantos do

    Vale do Paraba quanto de sudaneses e tambm bantos

    vindos da antiga Bahia e do seu Recncavo, tomando

    no meio urbano, com o passar dos anos, novas e ainda

    mais variadas ormas.

    O samba , pois, ruto de ricas tradies aricanas e

    aro-brasileiras. E sua proteo, como bem imaterial dopatrimnio cultural nacional, alm de ser um imperativo

    constitucional, um dever de conscincia.

    .. Notas para uma histriaafro-cariocaDepois de 1810, com as sucessivas abolies em quase

    a totalidade dos pases escravagistas, se mantm dois

    grandes fuxos de escravos: Brasil e Cuba. Em 1821,

    excludas as parquias rurais, o Rio de Janeiro tinha

    86.323 habitantes, dos quais 40.376 eram escravos,

    a maior populao escrava urbana das Amricas

    e do mundo, quando, por exemplo, na cidade de

    Nova Orleans, onde tambm se reunia um grande

    contingente, havia 15.000 escravos. Por volta de 1830,

    com o rpido crescimento populacional propiciado

    pelo trco, pela imigrao interna de cativos e de

    negros e brancos livres para o Rio, o nmero de escravos

    em toda a provncia aumenta consideravelmente,

    igualando o da populao livre.

    Entre os negros, o dado qualitativamente novo era o

    crescimento do nmero de libertos que alugavam seus

    servios junto aos negros de ganho, nesse ormidvel

    universo do trabalho que era o bairro da Sade. Uma

    subcasta de negros livres, alorriados, verdadeiros herisque tinham superado a escravatura dentro das regras

    do jogo, comprando sua liberdade, em geral como

    resultado do esoro de um grupo, a que se juntavam

    muitos ugidos que se escondiam entre essa multido

    de trabalhadores, procurando sobreviver e mesmo

    comear uma vida nova na cidade. Em 1849 j havia

    10.732 negros libertos nas reguesias urbanas, deixando

    apreensivos os administradores da corte, temerosos,

    como ora a administrao colonial, de um levantenegro na cidade que ultrapassasse o desao permanente

    com as ugas e com os quilombos. Temores que haviam

    crescido com a revolta de iorubs e mals em Salvador

    em 1835, provocando duras medidas municipais contra

    os negros dentro do permetro urbano, que repercutiam

    nas atitudes do poder imperial e de sua polcia com os

    escravos em todo pas.

    A escravido nas Amricas ocasiona uma mescla sem

    precedente de povos e culturas aricanas , que em algunsmomentos de infexo, ocorridos em determinados

    lugares, elabora novas snteses, decisivas na construo

    das novas sociedades nacionais que se montam depois

    histria

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    Dossi das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro

    do processo abolicionista e do republicanismo que

    varrem o continente. No literalmente novo mundo

    para o aricano, se d uma reordenao dos valores

    e smbolos produzidos na origem aricana rente

    condio de escravos e ao convvio entre diversas etniasno cativeiro, o que no Rio ganharia tais peculiaridades

    ao longo dessa histria popular da cidade constituindo

    uma densa tradio, os princpios msticos coletivizantes

    e a cultura armativa e musical, que depois, a partir

    da terceira dcada do novo sculo, dariam substncia

    s estas da capital ederal e ao seu ascinante universo

    de espetculos.

    tradicional presena de angoleses e moambicanos

    bantos na cidade se soma progressivamente a presena

    de negros da rica Ocidental, principalmente das

    naes iorub mas tambm negros islmicos, que

    passam a migrar regularmente para o Rio, tanto cativos

    para serem redistribudos pelas azendas de acar ou

    ca, como alorriados baianos que vem reorganizar

    suas vidas na capital ugindo das prticas repressivas

    que haviam se instaurado em Salvador.

    Na segunda metade do sculo, com a progressivadiminuio de aricanos com o m do trco, e com

    a mistura entre negros, mulatos, caboclos e europeus,

    principalmente portugueses, nos bairros populares e

    nas ocupaes mais duras e desprestigiadas, a cidade

    tinha se tornado menos aricana e mais crioula. A

    populao negra, entretanto, voltaria a crescer com a

    decadncia do ca no Vale do Paraba e com as chegadas

    sistemticas dos orros baianos. O grupo baiano iria

    situar-se nessa parte da cidade onde a moradia era maisbarata, perto do cais do porto, nas reguesias de Santana

    e S. Rita, onde os homens, como trabalhadores braais,

    obtinham vagas nas docas construdas em meados do

    sculo, que absorviam avidamente a mo-de-obra barata

    de estivadores, se concentrando os baianos nas ruas e

    ladeiras nas vizinhanas da Pedra da Prainha, depois

    conhecida por Pedra do Sal.

    Se nas ruas a capoeira armava agressivamente a

    presena do negro, no mais apenas subalterno e mrtir,a religio dos baianos daria uma nova dimenso ao

    negro carioca e em contato com os cultos dos bantos

    undaria sob o panteo dos orixs uma religio negra

    nacional que no sculo seguinte se multiplicaria

    em diversas ormas regionais, tendo como raiz o

    candombl e como matriz transormadora a macumba

    carioca. O candomblbaiano era, , de uma certa

    orma, uma nova liturgia, pois compensa as lacunas nacosmogonia iorub ocasionadas pela escravatura com

    uma nova organizao ritual, assentando num mesmo

    terreiro os cultos de diversos grupos e cidades, passando

    a representar uma pequena rica, os orixs urbanos

    com seus assentamentos inicialmente dissimulados

    dos senhores e da tropa em quartos ou num barraco,

    enquanto as entidades de cu aberto eram cultuadas

    nas matas nas cercanias da cidade.

    O candombl no Rio to antigo quanto as primeiras

    levas de baianos que chegam na capital depois das

    revoltas de 1831-1835 em Salvador, e logo, alm dos

    cultos amiliares, casas de grande importncia seriam

    undadas na cidade. Notcias quase perdidas no tempo

    do conta do candombl de Bamboche ou Bambox na

    Sade, aricano chegado Bahia na metade do sculo

    XIX, que vem para o Rio, onde unda sua casa de santo,

    voltando depois para a rica, azendo parte de uma

    minoria que retorna logo depois da Abolio.

    Entretanto, considerado o candombl seminal a casa

    de Joo Alab, de Omulu, na rua Baro de So Flix,

    no caminho da zona porturia para a Cidade Nova,

    instituio popular que se constituiu numa garantia

    para o negro no Rio de Janeiro, vitalizando-o para

    resistir e sustentar seus novos caminhos na cidade e

    no pas. Suas lhas-de-santo marcaram poca como

    as rainhas negras do Rio Antigo: tia Amlia, AmliaSilvana de Arajo, me do violonista e compositor

    Donga; Perciliana Maria Constana, ou melhor, tia

    Perciliana do Santo Amaro; tia Mnica e sua prodigiosa

    lha, Carmem Teixeira da Conceio, a Carmem do

    Xibuca, a lha de Alab que vive, sbia e soberana,

    at a dcada de 1980 com seus mais de 110 anos; a tia

    Bebiana dos ranchos; tia Gracinha, que oi mulher do

    grande Assumano Mina do Brasil, sacerdote islmico;

    tia Sadata do rancho Rei de Ouro; e a grande tia Ciata(1854-1924), Hilria Batista de Almeida, me-pequena

    do candombl de Joo Alab, lideranas undamentais

    para uma verdadeira revoluo que se travaria no meio

    negro naquela zona depois da libertao.

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    partido-alto samba de terreiro samba-enredo histria

    Provavelmente, a casa de Alab tinha ligaes com o

    candombl do Il Ax Op Aonj de Salvador, ruto

    de uma dissidncia do Il Ix Nass do Engenho Velho,

    onde tinha sido eita Ciata. Notcias do conta que

    Joo Alab o reqentava, assim como Bambox ora opai espiritual de sua babalorix Aninha. Em 1886 me

    Aninha vem ao Rio na companhia de outra iniciada,

    Ob Sani, encontrar-se com Bambox, que j estava

    na cidade, junto com quem unda a casa no bairro da

    Sade, voltando depois para Salvador. Esse candombl

    que se extingue com a volta de seu lder para a rica.

    Muito tempo depois, Aninha volta capital, onde no

    Santo Cristo, na zona porturia, inicia sua lha-de-

    santo Conceio de Omulu, que abre uma nova casa.Outras casas tm grande importncia na cidade, como

    o candombl de Cipriano Abed de Ogum, na rua do

    Propsito e depois na Joo Caetano, e o de Felisberto,

    na rua Marqus de Sapuca, guras mitolgicas cujos

    contornos pouco vislumbramos, intimamente presentes

    na cosmogonia negra da cidade.

    Desses candombls matriciais, s resta vivo na cidade

    o undado por Me Aninha com Conceio. Depois de

    morte desta, sua sucessora Agripina de Xang transere

    o ax para o subrbio de Coelho da Rocha, onde at

    hoje batem os tambores chamando os orixs. O culto,

    e depois a presena cultural daqueles orros, ormam

    na cidade uma identidade nag, que se particulariza

    progressivamente ganhando uma identidade carioca

    a partir do convvio com os bantos, na cada vez

    mais infuente dispora baiana no universo popular

    da cidade.

    Inicialmente sediados na ladeira da Pedra do Sal, nas

    casas alugadas por baianos e aricanos para abrigar as

    levas de recm-chegados, tornam-se tradicionais na zona

    porturia os zungus, casas coletivas ocupadas por negros

    escravos e orros, que se dierenciavam dos cortios,

    onde cada indivduo ou amlia se apertava em seu

    cubculo, apenas partilhando os banheiros e s vezes

    a cozinha coletiva. Nos zungus, geralmente iniciados

    por naes, amlias, ou por grupos de companheirosde trabalho, as tradies coletivistas negras vindas da

    situao tribal organizavam uma vida onde o aspecto

    comunitrio e a partilha dos esoros era central. Aos

    poucos, se tornam centros de encontro de negros de

    diversas origens aproximados pela cidade, chamando

    logo a ateno constante dos morcegos, como eram

    por eles chamados os guardas urbanos.

    Como um dos primeiros sinais pblicos da importncia

    dos baianos na vida do Rio, tia Bebiana impe sua esta

    da lapinha no Largo de So Domingos, que se torna

    um lugar de convergncia dos desles dos pastoris e

    ranchos existentes pela cidade na poca do natal ainda

    na dcada de 1880. Mas o principal personagem dos

    primrdios dos ranchos cariocas oi indubitavelmente

    Hilrio Jovino Ferreira, um pernambucano criado no

    meio nag em Salvador, que chega ao Rio de Janeiro

    na poca indo morar no morro da Conceio, nas

    vizinhanas no Beco Joo Incio, onde j saa um

    rancho com o nome de Dois de Ouros. Em 1893, ele

    unda o Rei de Ouros com um ch danante em sua

    casa, o licencia na polcia, e, numa deciso que muda

    a histria musical da cidade, decide realizar seu desle

    no carnaval, em vez sair no dia de Reis, como aziam

    os outros ranchos, em busca de maior liberdade de

    movimento e expresso.

    Das variantes entre tradies europias ternos,pastoris e aricanas congos, congadas, ticumbis,

    cucumbis e aochs , quem se destaca so os ranchos.

    Hilrio Jovino, numa entrevista a um jornal1, conta

    que em 1872, quando chega cidade, j encontrara os

    ranchos. Uma comunidade de auxlio mtuo integrada

    por migrantes, sobrevivendo atravs do trabalho pesado

    na estiva e do comrcio ambulante, estruturada em

    torno dos terreiros e de associaes estivas, que se

    tornaria por momentos uma aristocracia popularechada com seus preceitos e movimentos prprios para

    depois se abrir cidade moderna como uma resistente

    reerncia.

    O carnaval muda a caracterstica do rancho, embora ele

    no deixe de se vincular s tradies, como na visita de

    praxe casa dos notveis entre os baianos, entre os quais

    a notria tia Ciata. No carnaval um rancho se desdobrava

    num sujo, uma ormao gaiata e satrica; o Bem de

    Conta de Hilrio terminaria por ironizar Ciata e seurancho, o Rosa Branca, que responderia com seu sujo

    O Macaco Outro, na seqncia dessa histria.2Jornal do Brasil, 18 de janeiro de 1913.

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    8

    Dossi das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro

    Se no incio a presena de negros discreta no carnaval,

    uma vez que era vista com desconana pelas oras

    repressivas qualquer orma de extroverso do negro e

    principalmente maniestaes coletivas, podemos supor

    a presena progressiva de blocos de brancos pobres,mestios e negros, a tal democracia racial na base.

    Com a brusca mudana no meio negro ocasionada

    pela Abolio, que extinguira as organizaes de nao

    ainda existentes no Rio de Janeiro, o grupo baiano

    seria uma nova liderana. A vivncia como alorriados

    em Salvador de onde trouxeram o aprendizado de

    ocios urbanos, e s vezes algum dinheiro poupado e

    a experincia de liderana e administrao de muitos

    de seus membros em candombls, irmandades,

    nas juntas ou na organizao de grupos esteiros

    os tornariam uma elite no meio negro carioca,

    quando se constituem num dos nicos grupos com

    tradies comuns, coeso e um sentido amilstico

    que, vindo do religioso, expande o sentimento e o

    sentido da relao consangnea. Assim, na Sade

    se ormara uma dispora baiana cuja infuncia se

    estenderia por toda a comunidade heterognea que

    se orma nos bairros em torno do cais do porto e

    depois da Cidade Nova, povoados por esta gente

    pequena que seria tocada para ora do Centro pelas

    reormas urbansticas que culminariam com as obras

    do preeito Pereira Passos em 1904.

    Do encontro desses indivduos de diversas experincias

    sociais, raas e culturas na estiva ou nas cabeas-de-

    porco, e depois no candombl, na capoeira ou no

    rancho, instituies de marcada infuncia negra,resultaria a ormao das matrizes undamentais

    da cultura popular carioca. Uma densa experincia

    sociocultural que, embora subalternizada e quase

    que omitida pelos meios de inormao da poca, se

    mostraria, tanto quanto os novos hbitos civilizatrios

    importados pelas elites, undamental na redenio

    do Rio de Janeiro e na ormao de sua personalidade

    moderna.

    A Pequena rica, considerando a presena armativado negro na zona porturia do Rio, progressivamente

    se estendendo para a Cidade Nova, uma conquista

    poltica, a territorializao de seu prprio ambiente de

    vida e trabalho onde antes eram escravos, conquista

    conrmada, mesmo que ambiguamente, pela Abolio,

    j que se mantm os preconceitos na subalternizao,

    na pobreza e na represso policial. Sua primeira

    experincia como homem livre na capital, emboracontestada pela realidade de cada dia, obtida na marra

    pelo capoeira, exigida pelo rito religioso, se consolida

    na esta comunitria ou no glamour episdico nos

    espetculos-negcio, onde os negros armariam sua

    arte, metamorose moderna de antigas tradies.

    Insuspeitadamente, mas logo apropriadas por inte-

    ressados, surgem novas snteses culturais dessa ral:

    instituies populares, ormas de organizao de um

    grupo heterogneo e disorme reunindo indivduos

    diversos ligados apenas pela situao comum de

    excluso; gneros artsticos, musicais, dramticos,

    esteiros, processionais, esportivos; novas paixes

    populares, estejos, situaes particulares a esta

    cidade, que seriam disseminados por todo pas. Em

    sua plasticidade, essa cultura popular incorporaria

    elementos de diversos cdigos culturais , sobre os quais

    as tradies dos negros teriam liderana e dariam coeso

    e coerncia, o que tornaria a pluralidade cultural sob

    a hegemonia do negro a peculiaridade central dessas

    novas snteses.

    A contribuio dos baianos se eternizando na macumba

    carioca, que reelabora os cultos bantos sob o panteo

    dos orixs iorub, permite que uma estrutura de aldeia

    se preserve na cidade, enraizada na sua cultura e no

    inconsciente coletivo de seu povo e no samba, tornado

    msica sntese da brasilidade.A participao do negro no carnaval carioca o Rio

    de Janeiro capital nacionalizava suas ocorrncias d

    uma nova substncia esta e provoca um rearranjo

    nas ormas de participao dos diversos setores da

    sociedade que a cidade de hoje herdou.

    Assim, nas primeiras dcadas do sculo XX no Rio,

    no ambiente conuso e excludente do ps-Abolio,

    os negros, que numa primeira acomodao tinham

    se bandeado para guetos nos morros do Centro ou

    na perieria, perto das estaes do trem suburbano,

    gozavam uma primeira e precria ranquia. Legitimados

    por uma crescente platia com a adeso de elementos da

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    partido-alto samba de terreiro samba-enredo

    sociedade, os ranchos dos negros, que inicialmente

    se apresentaram no largo de So Domingos e depois

    na praa Onze de Junho, no limite da zona, exibiam-

    se, organizados em cordes, pelo Catete e Laranjeiras.

    No entanto, o grande carnaval, apoiado pela imprensae pelo comrcio, continuava sendo os desles dos

    prstitos, os corsos e os bailes. Os negros, sempre na

    rua, limitavam-se a uma participao como assistentes

    vigiados, sendo praticamente impedidos de se reunir

    e se divertir nas ruas e avenidas do Centro, o que por

    vezes era transgredido por grupos de jovens avelados,

    como os Arengueiros da Mangueira, que desaavam a

    sociedade e a polcia deslando com msica, cachaa

    e porrada.

    A gravao do primeiro samba a azer grande sucesso,

    o Pelo Telefone, em 1917, completando a articulao

    lundu-maxixe-samba, sucesso absoluto no carnaval,

    acompanhada por rumorosos e emblemticos

    acontecimentos. Sua criao coletiva se d numa

    reunio do rancho Rosa Branca na casa de Ciata,

    presentes, alm da prpria, Hilrio Jovino, o emergente

    Sinh, Donga dos Oito Batutas e outros. Donga registra

    o samba e d parceria ao infuente jornalista Mauro

    de Almeida.

    Na virada dos anos 1920 Sinh, pianista do clube

    Kananga do Japo, comea a dominar como compositor

    os carnavais, juntamente com outros compositores

    como Caninha e Eduardo Souto, quando, ainda

    num momento de adaptao s normas da indstria

    cultural, as msicas eram ainda que nem passarinho:

    de quem pegar.Mas, como muitos anos depois diria Cartola sobre

    aqueles tempos, no havia mesmo um interesse pelo

    pessoal do morro e ns tambm no nos interessvamos

    pelo pessoal da cidade, vivamos separados3.

    A alta de signos potencialmente utilizveis na

    construo de uma identidade nacional prpria pelas

    elites nacionais internacionalizadas e, mais tarde,

    o prprio nacionalismo exacerbado utilizado por

    Vargas como instrumento de governo avoreceriam as

    primeiras organizaes de sambistas que se renem

    por volta de 1928 no Estcio, em Oswaldo Cruz e

    nos morros da Favela e da Mangueira. O prprio

    termo escola de samba refetiria as expectativas e

    a responsabilidade dessas primeiras comunidades

    populares que ganham estabilidade nessas ormas de

    organizao. Novas snteses proanas de matrizes vindas

    das prticas religiosas , que de alguma orma herdavamsua uncionalidade social.

    O prprio Sinh nomeava de romances pedaggicos

    algumas de suas composies, compreendendo

    o samba como ato pedaggico e lhe dando um

    sentido diuso de misso. Sim, deveria aquela poesia

    musical destilar princpios de uma losoa prtica

    do cotidiano aplicvel por aqueles que estavam

    numa situao de desvantagem, para os seus, para

    seu pblico que se expandia para alm de crculos e

    classes na cidade. Conta-se que oi Ciata que, tendo

    organizado um pagode numa escola das redondezas da

    Praa Onze, d como senha para driblar a polcia o

    pagode vai ser na escola, sendo o termo guardado por

    suas possibilidades protetoras como por consciente

    ou inconscientemente anunciar sua uno para o

    negro desprivilegiado. Ismael Silva, outro personagem

    crucial, como Cartola, pensava nos mestres do samba

    como proessores de aulas tericas e prticas,

    sendo os sambas-enredo ormas privilegiadas de

    comunicao com as massas.

    As escolas se renem em concursos patrocinados pelo

    esteiro e pai-de-santo Z Espinguela, todas recebem

    trous, as escolas se visitam, se homenageiam, deslam

    na Praa Onze de Junho como um desdobramento da

    estrutura dos ranchos negros com uma msica mais

    quente. As comunidades exultam. A Mangueira, ondeexistiam pequenos ncleos separados de moradores,

    ganha com a escola um nexo de coletividade comum.

    A corda, marcando os limites do desle, na verdade era

    uma proteo contra a polcia, e unciona. O Pequeno

    Carnaval acontecia separado. Mas s o comeo. Ele e

    sua nova msica o samba vo tomar a cidade.

    Aqui, desde o nal do sculo XVI, o negro escravizado

    trabalhou surdamente na construo da cidade e

    em seu abastecimento. Aqui, a partir do sculo XIX,

    3 Gravao 1972, Arquivo Corisco Filmes.

    histria

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    0

    Dossi das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro

    Mrio de Andrade, o grande crtico de msica e de artes plsticas

    e autor de magncos ensaios, romances e poesias, registrou

    num poema o seu entusiasmo pelo carnaval dos negros do Rio

    de Janeiro, anos antes da criao da primeira escola de samba,

    ao se ver, embaixo do Hotel Avenida em 1923/na mais pujante

    civilizao do Brasil/os negros sambando em cadncia./To

    sublime, to rica!. possvel que ele tenha visto um cucumbi ou

    um cordo de velhos, duas das ormas que os negros encontravam

    na poca para se reunir em grupos e se divertir no carnaval.

    Naquele ano, o samba j existia como gnero musical, mas,

    ortemente infuenciado pelo maxixe o primeiro gnero musical

    urbano, criado no Rio de Janeiro na dcada de 1870 , ainda notinha um ritmo capaz de ajudar os olies que quisessem cantar,

    danar e andar ao mesmo tempo. Que desejassem deslar, para

    usar um verbo que resume o que azem os integrantes das escolas

    de samba nos dias de carnaval.

    Coube a um grupo de jovens talentosos do bairro do Estcio

    de S, todos negros, azer do samba eetivamente msica de

    carnaval. Ao explicar a dierena entre os dois tipos de samba, o

    compositor Ismael Silva, um daqueles jovens, disse que o ritmo

    do samba antigo era apenas tan tantan tan tantan, enquanto onovo, mais rico, era bum bum paticumbumprugururundum. O

    compositor Baba, do Morro de Mangueira, deniu a novidade

    como samba de sambar.

    O grupo de sambistas do Estcio ormou (em 12 de agosto de

    1928) um bloco carnavalesco para cantar, tocar e danar os sambas

    que azia, ao qual oi dado o nome de Deixa Falar, nome criado

    como uma resposta antecipada s crticas negativas que certamente

    ariam os adeptos do velho samba amaxixado. Os ritmistas do

    bloco apresentavam-se com os tradicionais instrumentos de

    percusso, o tamborim, o pandeiro, o reco-reco, a cuca e outros,

    at perceberem que o samba deles exigia um instrumento de

    marcao ainda inexistente, o que levou o compositor Alcebades

    Barcelos a recorrer a uma lata grande e vazia de manteiga, echar

    uma das bocas com couro de cabrito e concluir que aquele era

    o instrumento que altava bateria do bloco. Assim nasceu o

    surdo, instrumento que passou a ser undamental em qualquer

    conjunto de ritmistas do samba.

    As novidades apresentadas pelo Deixa Falar repercutiram

    imediatamente em todas as comunidades negras do Rio de Janeiro,

    nos subrbios e nas avelas, que passaram a compor e a cantar

    . Deixa Falar, o samba e a escolacomeou seu processo de airmao,tanto atravs da expresso coletiva de

    sua cultura como em sua participao

    das vicissitudes nacionais, do processo

    poltico, das guerras internas ou externas,das transormaes da cidade e do pas.

    Aqui se monta, na virada do novo sculo,

    um modelo de excluso com a avela,

    impasse do Brasil moderno, e mesmo

    um sistema do carnaval onde ao negro

    atribudo um lugar. Mas a Pequena

    rica, que nasceu e se imps como um

    ambiente airmativo e comunicativo

    do negro, oi um momento denitivo,eterno, para o Rio de Janeiro, para quem

    um smbolo resistente e inspirador.

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    partido-alto samba de terreiro samba-enredo histriasambas maneira do Estcio de S. E no deixavam

    de homenagear os sambistas do bairro, intitulando-

    os proessores, e o prprio bloco carnavalesco Deixa

    Falar, que todos diziam ser uma verdadeira escola de

    samba, tantas lies recolhiam l.

    Tantas homenagens tiveram como conseqncia uma

    curiosa contradio histrica: o bloco carnavalesco

    Deixa Falar, considerado a primeira escola de samba,

    nunca oi escola de samba, pois apresentava-se como

    bloco e, no ltimo carnaval de sua existncia, o de

    1932, apresentou-se como rancho carnavalesco, outra

    orma criada pelo povo carioca para se reunir nocarnaval. quela altura, comunidades dos subrbios

    e dos morros, inluenciadas pelos sambistas do

    Estcio, criaram seus blocos carnavalescos, aos quais

    contemplaram com o ttulo de escolas de samba,

    expresso to vigorosa que, aos poucos, oi eliminada

    a designao de blocos carnavalescos dada aos grupos

    que iam nascendo.

    Tanto vigor inspirou o jornalMundo Sportivo a promover

    em 1932 o primeiro desle das escolas de samba na PraaOnze, em torno da qual localizavam-se vrios bairros

    ocupados pela populao negra, assim como a primeira

    avela da cidade, instalada numa elevao que recebeu

    o nome de Morro da Favela e que tambm tinha a

    sua escola de samba. Alis, a maioria esmagadora das

    escolas de samba participantes dos primeiros desles

    era ormada por avelados. Vinham dos morros de

    Mangueira (Estao Primeira), do Salgueiro (Azul e

    Branco e Depois Eu Digo), do Borel (Unidos da Tijuca),da Matriz (Aventureiros da Matriz), da Serrinha (Prazer

    da Serrinha), de So Carlos (Para o Ano Sai Melhor),

    do Tuiuti (Mocidade Louca de So Cristvo), etc. As

    demais vinham dos bairros suburbanos, com destaque

    especial para a Portela chamada na poca de Vai Como

    Pode de Osvaldo Cruz, alm da Recreio de Ramos,

    Lira do Amor (Bento Ribeiro), Vizinha Faladeira

    (Sade), Em Cima da Hora (Catumbi) e Unio Baro

    da Gamboa, entre outras.

    Antes mesmo do desle de 1932, as escolas de samba

    j contribuam para o enriquecimento da msica

    popular brasileira lanando dezenas de compositores,

    cujas obras oram imediatamente absorvidas pelos

    cantores prossionais da poca. Nomes como os de

    Cartola de Mangueira, Paulo da Portela, Antenor

    Gargalhada do Salgueiro, Buci Moreira do Morro de

    So Carlos, Armando Maral de Ramos, alm dos

    pioneiros do bairro do Estcio de S, tornaram-se to

    conhecidos quanto os compositores da cidade, como

    eram chamados os que no vinham dos morros ou

    dos subrbios. Tambm saram das escolas de samba

    quase todos os ritmistas das gravaes de discos. A

    contribuio das escolas no campo da msica pode

    ser acrescida com um novo tipo de samba criado por

    elas, o samba-enredo, ou seja, a msica que descreve o

    enredo apresentado no carnaval.

    Formadas as escolas de samba, o povo carioca passou

    a contar com uma espcie de passaporte para cantar,

    danar e tocar o samba, hbitos que, nas primeiras

    dcadas do sculo XX, eram violentamente reprimidos

    pela polcia, que agia como instrumento do preconceito

    das classes dominantes contra as maniestaes

    culturais e religiosas dos negros. Os sambistas oramcando livres das perseguies quando as autoridades

    comearam a perceber que os desles das escolas atraam

    grande pblico e, melhor do que isso, despertavam a

    ateno dos turistas, contribuindo decisivamente para

    a elevao da ocupao dos hotis nos dias de carnaval.

    Trs anos depois do primeiro desle, a preeitura da

    cidade ocializou a apresentao das escolas, estabeleceu

    subvenes para ajud-las nanceiramente e distribuiu

    pequenas revistas em rancs, ingls e espanhol comexplicao sobre aqueles grupos carnavalescos.

    A populao negra e pobre do Rio de Janeiro criou,

    assim, o que seria, dali a pouco mais de dez anos, no

    s a maior atrao do carnaval carioca, mas tambm

    um espetculo de msica, dana, ormas e cores que

    seria reconhecido como uma das maiores e mais belas

    maniestaes de cultura popular do mundo.

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    Dossi das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro

    d e s c r i o

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    partido-alto samba de terreiro samba-enredo

    O samba no Rio de Janeiro oi e um

    plo aglutinador dos grandes universos

    culturais tradicionais aricanos o banto,o jje e o nag , que englobam uma

    innidade de variaes, signicados e

    realidades, dierenciados de comunidade

    para comunidade. Esses universos

    geraram dierentes estilos de samba e

    possibilitaram seu desenvolvimento e

    expanso, como ruto de importantes

    trocas culturais.

    Como arma Lopes1, o critrio geogrco

    undamental para a compreenso

    do samba, que ganhou, no Rio de

    Janeiro, modicaes estruturais que

    o dierenciam muito do samba rural,

    danado em roda, base de pergunta (solo

    curto) e resposta (rero orte). Aqui, uma

    nova orma de samba amadureceu.

    Ao longo do sculo passado, esse sambaganhou muitas denominaes, como

    samba urbano, samba carioca, samba

    de morro. Depois, apenas samba.

    Atualmente, os sambistas das Velhas

    Guardas, os baluartes das escolas, alam

    muitas vezes em samba de raiz e samba

    tradicional. Esto alando do mesmo

    samba, o que cresceu no Rio de Janeiro.

    As suas matrizes representadas aquipelos gneros partido-alto, samba de

    terreiro e samba-enredo so um

    patrimnio popular e cultural no s do

    Rio de Janeiro, mas de todo o pas.

    descri

    o-m

    sica

    .. A MsicaSamba, samba-chula, samba raiado, samba-choro, samba-cano,

    samba-enredo, samba de breque, de terreiro, de quadra, de

    partido-alto. So tantos os estilos de azer samba que podemospens-lo como uma espcie de metagnero, um grande ambiente

    sociomusical onde prticas culturais coletivas ocorrem a partir

    da msica e atravs dela. Dentre as vrias ormas que o samba

    assume, podemos estabelecer uma distino entre aqueles sambas

    eitos no contexto da indstria cultural e da msica prossional,

    e aqueles eitos em contextos mais ou menos comunitrios e

    inormais. Essa distino no corresponde a ronteiras estanques,

    mas pode ser pensada como plos de um contnuo com razovel

    zona de intercmbio e fuxo intenso entre as extremidades. Poresse motivo, a determinao de reas matriciais desse metagnero

    tarea muitas vezes espinhosa, que demanda certos cuidados.

    Nesse sentido, a denio das trs maniestaes de samba aqui

    consideradas como eixos de denio das matrizes do gnero

    (partido-alto, samba de terreiro e samba-enredo) contempla

    exatamente o plo deste contnuo mais distante dos meios de

    circulao massiva de msica, da indstria do entretenimento,

    do mercado musical global. Estas expressam em suas estruturas

    musicais undamentais as relaes de sociabilidade cultivadas emambientes sociais especcos, constituindo-se num patrimnio

    representativo da riqueza cultural do pas. Veremos que essa

    origem comum ecoa em traos estilsticos caractersticos, que, de

    ato, demarcam aquilo que pode ser entendido como uma espcie

    de undao do samba carioca.

    Adotaremos como eixos de anlise alguns elementos importantes

    para o reconhecimento dos trs tipos, demarcadores de suas

    respectivas classicaes. Assim, sero descritas as especicidades

    no aspecto rtmico, na sonoridade, na estrutura harmnico-meldica e nas ormas de algumas canes consideradas tpicas

    de cada um dos universos abordados. Ser mister destacar que

    tais prticas socioculturais representam uma determinada matriz

    ideolgica e musical da prtica do samba que se encontra cada vez

    mais escassa nas prticas atuais do gnero. Esta constatao se torna

    particularmente visvel ao conrontarmos as ormas de experincia

    musical que partido-alto e samba de terreiro representavam em um

    passado no muito distante e a situao real em que estes tipos

    aparecem nos ambientes de samba atualmente. O caso do samba-enredo , nesse aspecto, um pouco dierente e exige discusso em

    separado.4. LOPES, Nei. Sambeab. Rio de Janeiro:Casa da Palavra:Folha Seca, 2003. p. 15.

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    Dossi das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro

    Dentre os trs tipos de samba analisados neste dossi, o

    partido-alto se destaca por determinadas caractersticas

    singulares. Talvez represente mais do que os outros

    uma certa ancestralidade das matrizes do samba, o

    que se evidencia de diversas maneiras. De acordo

    com o pesquisador, sambista e partideiro Nei Lopes,

    autor do mais completo estudo sobre o partido-altoj realizado, intitulado Partido-alto: samba de bamba, o

    samba de partido-alto pode ser denido como uma

    espcie de samba cantado em orma de desao por

    dois ou mais contendores e que se compe de uma

    parte coral (rero ou primeira) e uma parte solada

    com versos improvisados ou do repertrio tradicional,

    os quais podem ou no se reerir ao assunto do rero

    (p. 26-27).

    Quanto sua ormao, o autor destaca que o partido

    o resultado do cruzamento de diversas prticas musicais

    e coreogrcas que ormavam no incio do sculo

    XX aquilo que Jos Ramos Tinhoro chamou de um

    verdadeiro laboratrio de experincias ragmentadas

    de usos e costumes de origem rural na cidade do Rio

    de Janeiro (1998:265). Entre essas prticas, destacam-se

    as chulas, o lundu, o samba rural paulista, o samba

    de roda baiano e o calango, gnero de grande ora

    principalmente no interior da regio Sudeste, que

    tambm apresenta caractersticas de improviso e disputaentre os versadores. Todas essas misturas processadas

    em solo carioca moldaram o perl e as caractersticas

    do partido desde suas primeiras ocorrncias at seus

    desdobramentos atuais.

    O partido-alto um tipo de samba e, como tal,

    corresponde denio mais ampla do gnero tanto

    no aspecto sonoro quanto no rtmico. O samba

    pode ser denido como um tipo de cano popular

    na qual os versos so acompanhados basicamente

    por instrumentos de percusso (pandeiro, surdo,

    tamborim, cuca, repique, reco-reco, ganz, etc.) e

    cordas dedilhadas (cavaquinho, banjo, violo de 6 e de

    Partido-alto

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    partido-alto samba de terreiro samba-enredodescri

    o-m

    sica

    7 cordas), aos quais pode ser acrescida uma innidade

    de instrumentos solistas ou acompanhadores (metais,

    madeiras, teclados, cordas, oles), de acordo com a

    inteno esttica e possibilidades de execuo. No

    partido-alto, contudo, essa con-gurao sonora setorna menos ampla, sendo pri-vilegiados a marcao

    do pandeiro e o suporte har-mnico do violo e do

    cavaquinho. Deve-se destacar que, sendo uma cano

    em orma de desao, os instrumentos acompanhadores

    do partido permanecem em um papel secundrio no

    panorama geral de sua sonoridade, uma vez que h um

    grande destaque para o improviso do solista. Da mesma

    orma, uma massa muito volumosa de instrumentos

    se torna pouco desejvel, pois encobriria o destaque

    desse personagem nos momentos das rodas. A questo

    da sonoridade de-marca, portanto, uma especicidade

    do partido-alto em relao aos demais tipos de samba,

    mas no a nica.Ritmicamente, o samba que se desenvolveu no Rio de

    Janeiro se dene por um padro polirrtmico, baseado

    primordialmente (mas no exclusivamente) noparadigma

    do Estcio (Sandroni 2001) executado simultaneamente a

    um instrumento mdio-agudo de conduo (pandeiro

    ou ganz) e a um surdo atacado no contratempo (para

    essa discusso, ver Sandroni 1997 e Trotta 2006).

    Este padro polirrtmico xou-se sobretudo em torno do ano de 1930 atravs da obra de compositores do

    Largo do Estcio (por isso o termo), substituindo um outro reerencial rtmico que caracterizava os sambas

    at ento. Trata-se de uma clula rtmica conhecida por muitos etnomusiclogos como 3-3-2, encontrada em

    diversas prticas musicais do planeta1.

    No entanto, a especicidade rtmica do partido-alto em relao ao samba no exatamente a adoo espordica

    do ritmo 3-3-2, ainda que esse acompanhe muitas rodas na palma da mo. Sendo um tipo de samba que se

    estrutura em uma ormao basicamente mais econmica do que o padro reerencial, o partido costuma utilizar

    como clula bsica uma variante do paradigma do Estcio, executada principalmente pelo pandeiro.

    1Apesar de no hegemnico no samba carioca produzido a partir da dcada de 1930, o ritmo 3-3-2 aparece em muitas gravaes

    recentes de partideiros, quase sempre em sambas calangueados que evidenciam a ancestralidade entre as duas prticas e a

    estreita aproximao entre partido e calango. Esse herana musical e aetiva compartilhada aparece, por exemplo, em gravaes

    de Martinho da Vila (Segure tudo), Seu Jair do Cavaquinho (Doce na feira e Soltaram minha boiada) e no samba Coit e cuia(Wilson

    Moreira e Nei Lopes), no qual os autores armam que calango e samba igual a coit e cuia, tudo da mesma amlia.

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    Dossi das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro

    Essa levada caracteriza-se por substituir a continui-

    dade do pandeiro de conduo, o que resulta em uma

    percepo mais quebrada, mais dura, interrompida,

    partida. Apesar de a repetio da levada representar um

    elemento de continuidade, os cortes mais agudos dos

    ataques do pandeiro parecem rear a continuidade

    rtmica. A levada de partido-alto associa-se ainda a um

    andamento mais lento, avorecendo o desenvolvimento

    do canto tanto do coro quanto da parte versada. Na

    gravao de No vem(Candeia), a levada do partido

    aparece em toda a msica, sendo um timo exemplo

    de sua utilizao.

    Se por um lado a levada de partido caracterstica

    desse tipo de samba, ela no suciente para deni-

    lo, pois em vrios exemplos pode-se vericar que o

    acompanhamento ocorre a partir do padro polirrtmico

    consagrado do samba, baseado no paradigma do Estcio

    (como, por exemplo, a gravao do tradicionalMoro na

    roapor Clementina de Jesus). Dessa orma, para tornar

    nossa denio de partido mais precisa, no podemos

    restringi-la ao reerencial rtmico e nem exclusivamente

    sonoridade. Analogamente, a alternncia entre solo

    e coro (rero) recurso ormal recorrente em dezenas

    de prticas musicais, no se congurando por si s

    em uma caracterstica exclusiva do partido-alto. No

    entanto, o partido-alto torna-se reconhecvel por

    uma maneira peculiar de organizar essa alternncia,

    demarcando, a sim, sua especicidade. No partido, a

    prpria noo de cano se encontra no rero, uma

    vez que as segundas partes so improvisadas.

    sabido que a adoo de segundas partes xas e

    estveis no samba um enmeno que se processou a

    partir do desenvolvimento de um mercado de gravaes

    musicais, onde a autoria determinada se sobreps

    criao coletiva e consagrou a orma cano popular

    como a conhecemos atualmente. Assim, deve-se destacar

    que as matrizes estticas do que se popularizou como

    samba oram construdas a partir de uma concepo

    de msica popular que prescindia de segunda parte.

    Em outras palavras, a msica erao rero. Este ato

    pode ser evidenciado tanto na prtica do partido como

    na prtica do samba de terreiro, que com reqncia

    apresenta uma primeira parte orte e cantada em coro e

    uma segunda parte de estrutura meldica mais estvel,

    porm livre para improvisos.

    Possivelmente o que caracteriza com maior eccia

    o partido-alto a presena desta segunda parte

    improvisada, isto , tirada ou versada na hora,

    no momento daperformance. Nesse sentido, o improviso

    est relacionado a uma habilidade de raciocnio rpido

    do versador em criar solues poticas convincentes

    respeitando a mtrica da cano, as rimas baseadas norero e, muitas vezes, mas nem sempre, a sua temtica.

    O carter de desao elemento de grande relevncia,

    pois instaura uma determinada ambincia social

    nas rodas de partido-alto baseada numa competio

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    partido-alto samba de terreiro samba-enredodescri

    o-m

    sica

    recheada de provocaes, piadas, jogos de linguagem

    e muita criatividade. O versador ou partideiro ,

    portanto, gura de grande respeitabilidade nos circuitos

    de samba, sendo admirado por seu pensamento gil.

    Quanto tipologia musical do partido, possvel

    encontrar trs grandes grupos estticos capazes de

    Podemos notar nesses exemplos uma caracterstica

    marcante dos partidos, que a utilizao de arpejos

    meldicos e de graus conjuntos, tanto no rero quanto

    nos versos. A harmonia simples, quase sempre girando

    em torno da tnica (I) e da dominante (V7), com

    algumas passagens pelo segundo grau menor (IIm),

    o pano de undo para melodias que poderamoschamar de intuitivas, pois traam caminhos meldicos

    recorrentes, quase sempre conclusivos. Vale destacar

    tambm que a esmagadora maioria dos partidos est no

    modo maior, ato que colabora para uma ambientao

    estiva, uma vez que este modo geralmente associado

    plenitude e alegria, por oposio ao modo menor,

    considerado sombrio e introspectivo. Nos partidos

    curtos, no h muito tempo para desenvolvimento da

    idia do rero, que concisa e reiterada pelo repouso

    na tnica, de onde parte o verso improvisado. H aindauma variante ormal para esse tipo de partido curto que

    Nei Lopes chamou de partido cortado, onde as estroes

    improvisadas so entrecortadas com rases do coro.

    serem identicados como sambas de partido-alto.

    Um primeiro grupo, que poderamos chamar de

    partidos curtos, corresponde a reres ormados por dois

    versos, de cerca de quatro compassos, cujo improviso

    normalmente tambm curto. Neste caso encontram-seexemplos como os partidos Maria Madalena da Portela

    (Aniceto) e Partido-alto (Padeirinho).

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    8

    Dossi das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro

    Um segundo grupo de partidos se identica por comportar reres mais extensos (normalmente de oito compassos)

    e improvisos de mesmo tamanho. Os reres normalmente apresentam quatro versos, com um desenvolvimento

    maior da idia central, mas tambm podem ter apenas dois versos, aproximando-se da estrutura concisa dopar-

    tido curto. Novamente, nestes casos, a harmonia circula pelos acordes bsicos da tonalidade (I, V7 e IIm), sendo a

    melodia construda a partir de arpejos e graus conjuntos sobre essa estrutura harmnica simples. Esses partidos

    correspondem ao que pode ser entendido como uma estrutura tpica, regular e simtrica (tanto o rero quanto o

    improviso correspondendo a quatro versos que se estendem por oito compassos), sendo os versadores separados

    sempre pelo rero e este quase sempre repetido.

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    partido-alto samba de terreiro samba-enredo

    Finalmente teramos um terceiro tipo de partido-alto que, dada a maior complexidade de sua estrutura ormal e

    harmnica, comea a se aproximar do que podemos entender como samba de terreiro. Sua principal caracterstica

    que tanto o rero quanto o desenvolvimento do improviso se alongam por 12 ou 16 compassos. Em Para o bem

    do nosso bem, de Alvaiade, gravado pela Velha Guarda da Portela em 1986, os trs versos do rero (em 12 compassos)

    se tornam quatro na repetio (a com 16 compassos), levando ao improviso.

    A parte versada desse tipo de samba quase sempre inclui uma inclinao para o quarto grau (IV), numa harmo-

    nia que, apesar de intuitiva, j conere maior desenvolvimento do que a dos casos anteriores, onde a tnica e a

    dominante eram praticamente os nicos acordes. Quanto quantidade de versos, esse tipo de partido pode ter

    quatro ou seis versos no rero, mas normalmente o improviso se estende por seis versos, dividido entre doispartideiros. O primeiro versador elabora uma idia para o verso e conduz a melodia at o quarto grau (IV) e o

    segundo se encarrega de estabelecer uma concluso semntica do verso e harmnica da melodia no acorde de

    tnica. O primeiro verso de improviso de Para o bem do nosso bemexemplica bem o tipo de conduo harmnica

    e a diviso entre dois versadores:

    descrio

    -m

    sica

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    0

    Dossi das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro

    Aps esse improviso, o coro retorna com o rero e, em

    seguida, um outro improviso cantado por mais dois

    versadores. interessante reparar que neste segundo im-

    proviso gravado a melodia completamente dierente

    do primeiro, evidenciando que a conduo harmnica

    tem uma importncia maior na estruturao da parte

    versada do que exatamente a denio de uma linha

    meldica. Destaca-se nesse exemplo que os quatro im-

    provisadores respeitaram a temtica do rero, o que

    nem sempre ocorre. Nesse caso, o desenvolvimento da

    mesma temtica az a cano parecer um todo nico e

    o improviso parecer, de ato, uma segunda parte.

    Essa diviso entre os trs tipos de partidos, assumidamente arbitrria,

    tem a inteno de mapear estilos e ormas, deixando claro que no so

    rmulas rgidas e que podem comportar variaes e mudanas.

    Com sua gama relativamente estreita de variaes e sempre apoiado

    naperformanceao vivo, o partido-alto o tipo de samba que menos

    se adequa ao mercado musical, uma vez que seu valor artstico e sua

    graa residem na criatividade do momento, dicilmente registrvel

    ou reproduzvel. Ainda assim, em diversos momentos da histria da

    onograa nacional sambistas registraram partidos com maior ou

    menor grau de pr-determinao das segundas partes e eventualmente

    at mesmo buscando traduzir para o estdio a espontaneidade

    do improviso, da roda, o que dicilmente se viabiliza ou se torna

    convincente. Nesse sentido, o partido se destaca no cenrio do

    metagnero samba como uma vertente umbilicalmente ligada s suas

    matrizes socioculturais , com orte tendncia valorizao da letra, do

    improviso, do ambiente comunitrio, dos padres de sociabilidade

    undados no coletivo, no azer musical amador, compartilhado.

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    partido-alto samba de terreiro samba-enredo

    Samba de terreiro

    Dierentemente do partido alto, que se deinediretamente por caractersticas ormais (musicais

    e poticas), e do samba-enredo, que se caracteriza

    principalmente por sua uno, o samba de terreiro

    parece se denir antes pelo seu contexto, ou seja, pelo

    ato de ser um tipo de samba que ocorre no terreiro.

    O terreiro, amplamente denido, oi e um espao

    sociocultural de grande importncia para o samba.

    Terreiro pode ser o quintal de Tia Ciata, do mesmo

    modo como a palavra designa popularmente a casade candombl, e pode se reerir tambm aos undos

    de quintal dos subrbios cariocas. As rodas de samba

    que agregavam (e ainda agregam) parentes, amigos,

    vizinhos num grande congraamento aetivo e musical

    uncionavam (e ainda uncionam) tambm como

    momentos de intensas trocas culturais, realizadas

    sobretudo atravs da msica. Assim, o terreiro do samba

    um espao de sociabilidade, no qual os sambistas se

    encontram, trocam idias, histrias e sambas.

    Mas o terreiro, num sentido mais restrito, designa

    especicamente a rea comum de uma escola de samba.

    Dado o papel undamental (propriamente matricial)

    das escolas, desde os anos 1930, na constituio dosamba, o samba de terreiro dene-se como aquele eito

    para consumo interno das mesmas, ou, por assim dizer,

    como o lado de dentro do samba organizado. A roda de

    samba, quando no terreiro, , ento, mais especca

    do que outras rodas de samba, pois est associada

    estrutura das escolas de samba e s suas ormas de

    organizao social e musical.

    Desta orma, temos o samba de terreiro caracterizado

    mais como uma prtica sociomusical do quepropriamente como um tipo especco de samba, cujos

    elementos poderiam ser isolados e descritos. Por este

    motivo, um samba s pode ser classicado como de

    terreiro por uma determinada comunidade. Apenas

    o grupo de pessoas auto-reconhecido como sambistas

    das escolas tem legitimidade para designar determinado

    samba ou grupo de sambas como sendo de terreiro,

    pois essa classicao deriva exatamente do ato de

    ele ter sido apresentado nas rodas dos terreiros e derepresentar esse ambiente, esse lado de dentro.

    Como resultado desta denio contextual, os sambas

    de terreiro apresentam grande variedade estilstica. Tal

    descri

    o-m

    sica

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    Dossi das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro

    variedade alimentada por intensas trocas culturais

    entre os sambistas das vrias escolas, e, de orma

    ainda mais ampla, pelo contato entre esse ambiente

    comunitrio do azer musical e o seu plo oposto,

    da circulao massiva de msicas pela indstria doentretenimento. Ainda assim, possvel identicar

    duas tendncias estticas que se azem presentes nesse

    repertrio. De um lado, teramos aqueles sambas

    que, dada sua estrutura musical, se conundiriam

    com os prprios sambas de partido-alto: um rero

    orte, cantado em coro, e uma segunda parte que se

    desenvolve atravs de caminhos meldico-harmnicos

    que estamos chamando aqui de intuitivos. Com

    esta palavra queremos designar aquelas construesmeldico-harmnicas consideradas ceis o bastante

    para que o partideiro possa concentrar-se no aspecto

    verbal da suaperformance, dirigindo sua capacidade

    criativa para a improvisao de versos.

    Muitos desses sambas de terreiro, especialmente os mais

    antigos, se caracterizam, tal como no caso do sambas

    dos primeiros desles (que discutiremos a seguir), por ter

    apenas essa primeira parte, sendo a segunda totalmente

    livre para os versadores. Ocorre que, de um modo geral,

    essa primeira parte mais longa do que as encontradas

    nos partidos de estrutura tpica, correspondendo, quase

    sempre, a 16 compassos e seis ou mais versos. Um bom

    exemplo o samba Serra dos meus sonhos dourados, de

    Carlinhos Bem-te-vi, composto na dcada de 1940 no

    terreiro da antiga escola de samba Prazer da Serrinha.

    Em alguns casos, sobretudo depois de gravadas em disco, as segundas partes se xaram como denitivas para

    aquela cano. A estrutura da cano, no entanto, permanece nesses casos aberta ao improviso: sempre ser pos-

    svel acrescentar novos versos no local apropriado, desde que a ocasio se apresente. como se o samba guardasse

    uma espcie depotencial de improviso, que podemos identicar nesta segunda parte desse mesmo samba, gravado em

    1982 por Dona Ivone Lara:

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    partido-alto samba de terreiro samba-enredo

    Podemos destacar nesse exemplo a total liberdade de

    temticas entre o rero e a segunda parte. Enquanto

    a primeira enaltece a escola e seus espaos, a segunda

    parte valoriza a viola e ignora os versos do rero

    dirigidos Serrinha. Essa caracterstica, que aparecetambm em alguns partidos, pode ser pensada como

    sendo recorrente em sambas improvisados, nos quais

    o improviso nem sempre construdo a partir da

    temtica do rero.

    Se, portanto, possvel identicar sambas de terreiro

    que correspondem a uma estrutura aberta ao improviso,

    existe tambm um grupo desses sambas em que a

    estrutura composicional mais echada, isto , onde

    a parte principal do processo de elaborao esttica

    da segunda parte do samba acontece previamente,

    e no na hora da performance. Essas composies tm

    garantida a unidade temtica de sua letra, e comumente

    apresentam estrutura harmnica mais sosticada. Em

    algumas delas, torna-se at dicil encontrar aquilo

    que poderamos chamar de rero, uma vez que os

    versos esto de tal orma integrados que a diviso entre

    primeira e segunda parte soa um pouco articial. Nesses

    casos, o canto coletivo com reqncia percorre toda a

    composio, numa estratgia que se assemelha ao estilo

    de interpretao do samba-enredo. Um bom exemplo

    o samba Velho Estcio, de Cartola:

    Muito velho, pobre velho

    Vem subindo a ladeira

    Com a bengala na mo

    o velho, velho Estcio

    Vem visitar a Mangueira

    E trazer recordao

    Proessor chegaste a tempo

    Pra dizer neste momento

    Como podemos vencer

    Me sinto mais animado

    A Mangueira a seus cuidados

    Vai cidade descer

    Chegou a capital do samba

    Dando boa noite com alegria

    Viemos apresentar o que Mangueira temMocidade, samba e harmonia

    Nossas baianas com seus colares e guias

    At parece que estou na Bahia

    At parece que estou na Bahia

    Da cidade alta da Mangueira

    Avisto a Vila tenho saudades de algum

    At parece que eu estou em So Salvador

    Avistando o que a Bahia tem

    minha maior alegria

    At parece que estou na Bahia

    At parece que estou na Bahia

    Esse compartilhamento de smbolos se evidencia nos

    momentos do canto coletivo. Nesse sentido, o rero

    tem grande importncia na estrutura dos sambas de

    terreiro. O rero se dene pela repetio, e, maisdo que isso, pela participao do canto coletivo e

    por isso apresenta caractersticas expressivas que

    avorecem a entrada do coro. No exemplo acima,

    Sobre esses sambas dicilmente pode-se desenvolver

    um improviso, uma vez que sua congurao musical

    e potica simplesmente no se presta a essa prtica. So

    sambas autoraisno sentido estrito da palavra, onde o

    autor se az presente em toda a cano, conerindo-lheum estilo, um recado.

    No que se reere s temticas dos sambas de terreiro, uma

    das preeridas a exaltao da prpria escola, de suas

    cores, smbolos e integrantes. Os elogios escola eitos

    no ambiente dos terreiros, e integrando o repertrio

    reerencial daquele grupo de pessoas, adquire grande

    importncia, pois, em torno desse conjunto de canes,

    os sambistas constroem elos de amizade e de identidade

    coletiva. Nesses exemplos, muito comum a narrativa

    de eitos, glrias, guras e histrias que compem o

    quadro de valores compartilhados da agremiao. Vale

    destacar que muitos sambas compostos dessa orma se

    tornaram clssicos do repertrio de diversas escolas,

    como este, Capital do samba, de Jos Ramos.

    descri

    o-m

    sica

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    Dossi das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro

    possvel identicar um pequeno

    rero (At parece que estou

    na Bahia), que ocorre ao nal

    de ambas as partes. Este rero

    representa dois momentos decanto coletivo que pontuam a

    declarao de amor escola,

    garantindo que nesses pontos

    o mximo de pessoas estar

    cantando junto. Em outros

    casos, como o de Agoniza mas

    no morre, a msica inteira se

    transorma em mensagem da

    comunidade, representada pelocanto coletivo.

    O samba de terreiro representa

    uma identidade compartilhada

    por determinado grupo de

    pessoas agregadas pela escola

    de samba. At determinado

    momento do sculo XX, os

    compositores de sambas de

    terreiro oram guras respeitadas

    na hierarquia interna das escolas,

    baluartes de cada agremiao,

    quase sempre ocupando cargos

    importantes no poder e na

    estruturao das escolas. Apesar

    de esse poder ter se dissolvido

    entre outros protagonistas das

    escolas, atravs dos sambas de

    terreiro que a coletividade ala

    e se az ouvir, elaborando suas

    interpretaes e narrativas. Esse

    lado de dentro das organizaes

    carnavalescas torna visvel

    (audvel) atravs do conjunto

    de seus sambas de terreiro, que

    expressam sua viso de mundo,

    seu pensamento, suas idias e

    sua identidade.

    Devemos destacar, no entanto,

    que esse lado interno no

    nem nunca oi um ambiente

    Vejo o samba to modicado

    Que eu tambm ui obrigado a azer modicao

    Espero que ningum no me censure

    O que eu quero que todos procurem

    Ver se no tenho razoJ no se ala mais no sincopado

    Desde quando o desanado

    Aqui teve grande aceitao

    E at eu tambm gostei daquilo

    Modicando o estilo do meu samba tradio

    Neste samba, o compositor refete sobre o advento da bossa nova, um en-

    meno que atingia poca o mercado de msica de um modo geral e o sambade orma particular. Destaca-se neste samba um perl esttico totalmente

    avesso prtica da improvisao. Seus dez versos estendem-se por uma melo-

    dia sinuosa de 32 compassos, percorrendo caminho harmnico altamente

    inesperado, como se sua estrutura meldico-harmnica osse uma espcie de

    pardia dos tortuosos sambas da esttica bossanovista.

    echado, mas sim um espao com muitas restas, entradas e sadas, que

    permitem aos sambas circularem por outras rodas, outros terreiros e at

    mesmo pelo mercado de msica. Analogamente, os movimentos musicais e

    as mudanas na sociedade vazam para o lado de dentro das escolas e, atravs

    dos sambas de terreiro, so interpretados e elaborados pela comunidade,que assim evidencia suas crticas sobre a sociedade mais ampla. O samba

    Modicado, de Padeirinho, composto provavelmente na dcada de 1960, refete

    bem esse movimento:

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    partido-alto samba de terreiro samba-enredo

    Esse percurso sinuoso no impede, entretanto, que

    o compositor expresse em seus versos e msica um

    comentrio possivelmente compartilhado por seus

    colegas de dentro das escolas sobre as transormaes da

    msica veiculada na mdia. Essa uno propriamentecomunitria dos sambas de terreiro talvez seja seu mais

    alto valor cultural.

    medida que as escolas vo sorendo cada vez de orma

    mais clere transormaes em sua estrutura, os terreiros

    se transormam em quadras e a denominao samba

    de terreiro perde sua ora, conseqncia da queda

    de prestgio dos prprios sambistas no poder interno

    das escolas. Esse processo, j bastante documentado

    e comentado pela bibliograa, que cou conhecido

    como prossionalizao das escolas e do desle,

    ocorreu no mesmo perodo (por volta da dcada de

    1960) em que passaram a atuar no mercado de msica

    cantores especializados em samba, que vo buscar no

    repertrio dos sambas de terreiro canes para serem

    lanadas comercialmente. Observa-se ento, que osamba que ocorria nos terreiros se desloca para outras

    rodas, para o mercado, ou mesmo dentro da estrutura

    das escolas, para espaos de menor destaque.

    Se, na prtica, os terreiros reais no representam mais

    esse plo comunitrio do azer musical sambista, pode-

    se armar com alguma segurana que o terreiro como

    espao simblico se mantm no imaginrio de parte

    signicativa do repertrio do samba, especialmente

    cultivado naqueles sambistas que nutrem maior zelo pela

    trajetria do gnero e pela reerncia s suas matrizes.

    Samba -enredo

    descri

    o-m

    sica

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    Dossi das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro

    O samba-enredo, mais do que simplesmente um tipo

    de temtica ou nalidade para o samba, consolidou-se

    atravs de sua histria como uma esttica especca de

    samba. Baseada na estrutura do desle carnavalesco,

    essa esttica associa a sonoridade pujante da bateriada escola de samba com uma orma de cano que se

    caracteriza sobretudo por sua narratividade, que aos

    poucos se tornou imperativa na composio de sam-

    bas destinados aos desles.

    preciso distinguir, portanto, entre os sambas can-

    tados nos primeiros desles, nos anos 1930, que no

    tinham, na maioria dos casos, qualquer relao com o

    enredo; os sambas relacionados ao enredo, mas comp-

    ostos musicalmente de uma maneira que no se die-

    renciava de outros sambas dos mesmos compositores,

    que prevaleceram aproximadamente do nal dos anos

    1930 at o nal dos anos 1940; e os sambas-enredo

    propriamente ditos, que desde ento associam uma

    uno determinada no desle a uma orma musical

    especca.

    No incio dos desles das escolas de samba, os sambas

    cantados no se relacionavam com qualquer enredo,assim como o prprio desle da escola no era condi-

    cionado por um. Talvez o mais amoso samba desse

    perodo seja Chega de demanda, de Cartola. O samba

    oi composto possivelmente antes mesmo da criao

    da Mangueira, quando Cartola saa no Bloco dos

    Arengueiros (Cabral, 1996: 65); segundo o site ocial

    da escola, oi cantado no carnaval de 1929.

    Embora os dados disponveis sejam muito limitados,

    parece provvel que muitas escolas que saram nos

    carnavais de 1930 a 1933 no apresentassem enredo.

    O primeiro desle competitivo sobre o qual h reg-

    istros escritos contemporneos o de 1932 (Cabral,1996: 67), e em tais registros no h qualquer aluso a

    enredo. Tambm no h tal aluso nos testemunhos

    orais sobre a competio de sambas promovida por

    Z Espinguela em 1929 (Cabral, 1996: 66).

    No que se reere ao carnaval de 1933, h duas inorma-

    es sobre o assunto. O jornal Correio da Manh pre-

    tendia realizar, na quinta-eira anterior ao carnaval,

    uma noite das escolas de samba, para a qual chegou a

    publicar um regulamento. O evento nalmente no

    se realizou, mas o regulamento, publicado por Cabral

    (1996: 78), rezava em seu item 5: No obrigatrio o

    enredo. O desle de ato aconteceu, organizado pelo

    jornal concorrente O Globo no domingo de carnaval,

    e tinha o enredo entre seus quesitos de julgamento

    (Cabral, 1996: 79). Das 31 escolas que concorreram,

    porm, oito no tinham enredo, ou eles no oram

    percebidos pelos jornalistas presentes (Cabral, 1996:

    80-1).

    Chega de demanda uma melodia de 16 compassos,

    correspondendo ao rero de quat