dossie bourdieu

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soci61ogo Pensador mais citado no mundo em sua area, Pierre Bourdieu tem reunidos em Sabre a Estada os cursos que deu entre 1989 e 1992, nos quais repensa 0 papel do Estado e do indivfduo na sociedade LENEIDE DUARTE-PLON, DE PARIS

A Franc;:a foi paralisada por varios dias em 1995, com greves de trabalhadores do setor publico, do setor privado, alem da de estudantes, que se opunham it reforma das aposentadorias, proposta pelo entao primeiro-ministro de direita, Alain Juppe.

Na melhor tradic;:ao frances a do intelectual engajado, que remonta ao Sartre da revolta dos estudantes de maio de 1968 e ao Emile Zola do caso Dreyfus, 0 ja renomado soci610go Pierre Bourdieu (1930-2002), juntando a teoria it pnitica, participou ativamente do movimento social e levou pessoalmente sua so­lidariedade aos trabalhadores em greve.

Em 1999, Bourdieu interpelou a social-democracia euro­peia, incapaz de se opor ao processo de destruic;:ao do Estado de bem-estar social. Hoje, provavelmente estaria ao lade dos "indignados" que protest am contra a submissao do campo

politico ao poder das financ;:as. Autor de uma obra intelectual monumental, 0 professor do

College de France - apice da carreira universitaria na Franc;:a - nasceu de pais camponeses e encarnou em sua vida pessoal a meritocracia da Republica Francesa, que 0 levou a cursar filo­sofia na prestigiosa Escola Normal Superior, tornar-se etn6logo e depois sOci610go.

Ele e hoje 0 segundo intelectual frances mais citado no mundo, superado apenas por Michel Foucault e it frente de Jacques Derrida (terceiro lugar), segundo 0 Instituto de Informac;:ao Cientifica da Thomson Reuters, que faz 0 acompa­nhamento do numero de citac;:6es em publicac;:6es academicas.

"Bourdieu atravessa as fronteiras das disciplinas e dos paises", diz 0 sOci610go Lolc Wacquant, professor na •••

_ n"16(; 121

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I DOSSIE I

Universidade de California, em Berkeley, e que foi seu aluno em Paris.

Hoje, os conceitos de habitus, repro­du<;ao social, violencia simbolica e capital cultural, forjados por Bourdieu, fazem parte do vocabuhirio manejado por todos os sociologos do planeta.

Para marcar os dez anos de sua mor­te, a editora Seuil, em coedi<;:ao com a editora criada pelo proprio Bourdieu, a Raisons d 'Agir, inaugura a publica<;:ao dos cursos e seminarios do sociologo com 0 lan<;:amento do curso Sur I'Etat - Cours au College de France 1989-1992 (Sobre 0 Estado, 657 pags., 30 euros), que compreende tres anos de seu cur­so no College de France, em torno da questao do Estado.

A obra, que revela uma erudi<;ao e urn rigor cientifico dignos dos grandes mestres, foi organizada por Patrick Champagne, Remi Lenoir, Marie-Christine Riviere e Franck Poupeau, que concedeu entrevista exclusiva a CULT, em Paris.

Poupeau, que contou com a part i­cipa<;ao de Bourdieu em sua banca de doutorado, dirige com outros sociologos a Raison d'Agir. Desde 2003, tambem e responsavel editorial pelos Actes de la Recherche en Sciences Sociales (Atos da Pesquisa em CH~ncias Sociais), a mitica revista criada por Bourdieu em 1975.

A seguir, ele comenta Sobre 0 Estado

e fala tambem da visao profetica de Bourdieu sobre os rumos do capitalismo.

CULT - Dez anos depois de sua morte, Bourdieu, 0 insubmisso, 0 ico­noclasta, tornou-se urn chissico?

Franck Poupeau - Faz bastan­te tempo que Bourdieu e 0 sociologo mais citado no mundo. Se voce pegar, por exemplo, 0 American Journal of Sociology, nao ha praticamente urn so artigo que nao fa<;:a referencia a seu tra­balho. Mas esse livro apresenta a van­tagem sobretudo de mostrar "urn outro Bourdieu", nao 0 dos livros, mas 0 que ensinava e que formou durante 40 anos diversas gera<;oes de pesquisadores.

Ve-se urn Bourdieu pedagogo, atento a seu publico, hesitante muitas vezes, avan<;:ando e voltando, testando seus modelos e conceitos sobre urn dos temas rna is dificeis que existem. Depois desse livro, fica dificil para seus detrato­res insistir na imagem de urn pensador dogmatico com urn sistema fechado.

Sobre 0 Estado nos leva a descober­ta de urn Bourdieu diferente do autor que conhecemos, ou pensamos conhe­cer, por meio de suas obras?

Trata-se de urn curso oral, no qual a palavra e livre, menos censurada que no texto escrito. Bourdieu chama aten­<;:ao para isso, enfatizando a dificul­dade de transmitir suas analises a urn publico muito heterogeneo: ele deve falar a "colegas" sOciologos como tam­bern a nao iniciados na disciplina; dai

"Ve-se no livro urn Bourdieu

pedagogo, atento a seu

publico, hesitante rnuitas

vezes, avan~ando e voltandoll

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seu esfofl;:o de pedagogia, de explica<;:ao nao somente de seus argumentos e teses mas tam bern de sua estrategia de pes­quisa, de seu programa cientifico.

Existem, pois, paginas ineditas so­bre 0 que significa construir urn modelo da genese do Estado, no cruzamento da historia com a £llosofia politic a e com a sociologia, que nao se encontraria num livro. Ha tambem longas reflexoes sobre as pesquisas passadas que revelam todas as suas sutilezas.

Em que as analises de Bourdieu sobre 0 Estado podem esclarecer po­liticas implementadas depois de sua morte, em 2002?

No fim do curso, Bourdieu faz di­versas referencias ao que considerava naquele momento (em que ele trabalha­va na pesquisa coletiva publicada, em 1993, como A Miseria do Mundo, Ed. Vozes) urn "abandono do Estado".

Referia-se a desconstru<;ao nao so­mente dos servi<;:os publicos e das poli­ticas sociais, mas da ideia de "publico" e do ideal de universalidade que tinha presidido a constru<;ao do Estado - atra­yes dos seculos de lutas de concorrencia, de monopoliza<;:ao e de acumula<;ao de capital burocratico.

o processo estava em curso na Fran<;a, apos America do SuI, Reino Unido e Estados Unidos. Faltava talvez a suas analises 0 recuo que temos hoje para dizer que as politicas liberais sao menos urn desaparecimento do Estado do que uma transforma<;:ao do Estado, de seus modos de gestao administrativa e de controle das popuJa<;:oes.

Este livro chega num momento em que a crise financeira esta levando a diminui<;:ao progressiva dos servi<;os publicos. 0 principal adversario de Bourdieu nao era finalmente 0

neoliberalismo e seu Estado minimo? Vemos emergir essa probJematica no

£lm do curso, quando ele faz alusao as pesquisas que tinha come<;ado e que se­rao em seguida publicadas em A Miseria do Mundo. Faz referencia ao que chama de "a retirada" do Estado sob a egide de reformadores neoliberais.

Mas sua reflexao sobre 0 Estado nao

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se resume a isso, ve-se que ele tenta su­perar a oposi~ao entre 0 Estado opressor (teoria marxista) eo Estado social (cor­rente social-democrata), para pensar sua ambiguidade fundamental.

o fato de que ele tenha se dedicado a defesa do Estado social no fim de sua vida nao significa que tivesse esquecido as outras "fun~6es" do Estado. 0 Iivro todo e uma prova disso.

Como Bourdieu veria, a atual cri­se europeia, que amea'ra a unidade do continente?

Na realidade, essa crise nao e tao di­ferente da que ja se iniciara no final dos anos 1990, alguns anos depois de seu curso sobre 0 Estado. Dai a atualidade de seus escritos posteriores, sobretudo Contrafogos 2, cujo subtitulo e Para urn Movirnento Social Europeu - urn movi­mento de que sentimos enorme neces­sidade hoje, para articular as lutas na Espanha, em Portugal, na Grecia etc.

o minimo que se pode dizer e que Bourdieu teve muito pouca audiencia e nao foi muito seguido pelas organiza­~6es socia is e sindicais francesas nesse projeto, com exce~ao da organiza~ao sindical SUD.

Em sua crftica ao neoliberalismo, Bourdieu participou com os opera­rios das greves de 1995, nas fabricas de Paris. Hoje, 0 filosofo Alain Badiou se engaja na luta dos "sans-papiers", os trabalhadores ilegais, sem docu­mentos. 0 intelectual engajado e uma institui'r3.o tipicamente frances a?

Existe uma especie de tradi~ao cri­tica no mundo intelectual frances que Bourdieu estudou juntamente com a ideia de autonomia do campo intelectuaL Ela te­ria se constituido com dificuldade, contra os poderes temporais, no fim do seculo 19.

Uma das raz6es de seu engajamento a partir das greves de dezembro de 1995 - que ultrapassaram 0 mundo opera rio, pois englobaram tambem os estudantes, os assalariados do setor publico e, em menor escala, os do setor privado - era de que a autonomia do campo intelec­tual estava amea~ada havia varios anos pelo dominio da midia sobre os campos politico e academico.

"A emancipa<;ao social nao e dada, mas conquistada, e fruto de um trabalho coletivo, de mobiliza<;ao"

A interven~ao de numerosos intelec­tuais da esquerda social-liberal apoiando a reforma das aposentadorias proposta pela direita neoliberal no poder (0 Plano Juppe) somente veio confirmar essas ana­lises e precipitou a visibilidade de seu enga­jamento publico contra esses intelectuais.

Os conceitos de "campo", "repro­du'r3.o" e "domina'rao" tornaram-se correntes, impostos pelos trabalhos de Bourdieu. Sua obra, mais reconhecida que lida, devera ser agora rna is estu­dada ~om a publica'r3.o desses curs os no College de France? Quais ser3.o os proximos cursos publicados?

Sua obra ja e imensa, mas esse li­vro podera contribuir para difundir os conceitos com uma abordagem mais pedag6gica.

Ele se encontra no ponto nevralgico de varias outras obras e eixos de pesqui­sa de Bourdieu: seus trabalhos sobre a casa beamaise (da regiao de Beam) ou kabyle para pensar a 16gica da cas a do rei e do Estado-dinastia, sua pesquisa sobre 0 mercado da casa individual para pensar a 16gica do Estado burocratico, seus trabalhos sobre a teoria da pratica e sobre a Iinguagem para pensar a no~ao de poder simb6lico etc.

Resumindo, e urn curso que pode ser lido por pesquisadores experien­tes, e as rea~6es que recebemos vern confirmar isso.

Como Bourdieu teria visto e

analisado a elei'rao de urn metalurgi­co - Lula - a Presidencia da entao nona economia do mundo (em outubro de 2002), superando todos os determinis­mos culturais, politicos e socia is sobre os quais 0 sociologo teorizou?

A procura dos determinismos obe­dece a urn principio cientifico claro, que e explicitar as condutas, as 16gicas sociais - e 0 que da sentido a sociologia. E a sociologia critica se interroga sobre os limites desses determinismos e de seu poder explicativo, como fazia no fundo a filosofia critica de Kant.

Por outro lado, para ficarmos na tra­di~ao filos6fica, Bourdieu era profunda­mente espinosista e marxista: e 0 conhe­cimento desses determinismos que pode levar a liberta~ao em rela~ao a eles mes­mos. A emancipa~ao social nao e dada, ela e conquistada, e 0 fruto de urn trabalho coletivo, de urn trabalho de mobiliza~ao, de educa~ao popular e de politiza~ao.

Creio que 0 Partido dos Traba­lhadores e Lula correspondem, mesmo em suas ambivalencias, a essa ideia. Bourdieu sempre quis ir a America Latina, mas sempre adiava a viagem por causa das urgencias francesas e eu­ropeias e pela consciencia de que nao poderia ir por apenas do is ou tres dias.

Ele teria ficado fascinado ao ver 0 sur­gimento dessas "esquerdas de governo" na America Latina, de Lula a Evo Morales, esquerdas que sao 0 produto de mobiliza­~6es socia is, na intensidade e na dura~ao, ineditas deste lade do Atlantico. 13

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I DOSSIE I INEDITO I

o

A crftica marxista torna-se falsa quando esquece de integrar na teoria aquilo contra 0 qual a teoria e construfda PI ERRE BOURDIEU

Certos autores insistiram no fato de que 0 Parlamento, particularmente o Parlamento ingles, e uma inven<rao historica, 0 que, se refletirmos bern, nao tern nada de evidente: e urn lugar onde as lutas entre os grupos, os grupos de in­teresses, as classes, se preferirmos, van se dar segundo as regras do jogo que faz com que todos os conflitos externos a es­sas lutas tenham algo de semicriminoso.

A proposito dessa "parlamentariza­<rao" da vida politica, Marx fazia uma ana­logia com 0 teatro: ele via no Parlamento e no parlamentarismo uma especie de engodo coletivo no qual os cidadaos se deixam lograr; essa especie de teatro de sombras ocultaria de fato as verdadeiras lutas que estao do lado de foral.

Penso que e 0 erro sistematico de Marx. Ja disse isso cern vezes aqui, e sem­pre 0 mesmo principio. A critica marxis­ta, que nao e falsa, torna-se falsa quando esquece de integrar na teoria aquilo con­tra 0 qual a teoria e construida2.

Nao haveria razao de dizer que 0

Parlamento e urn teatro de sombras·se as pessoas nao acreditassem que ele e algo diferente. E ele nao teria nenhum merito de dizer isso.

Em certo sentido, Marx diminui seus proprios meritos esquecendo que aquilo contra 0 qual ele afirmou sua teoria so­brevive a sua teoria: 0 Parlamento pode ser este lugar de debates regula menta­dos, num sentido urn pouco mistificado e mistificador, esta mistifica<rao fazendo parte das condi<roes de funcionamento dos regimes e, em particular, das con­di<roes de perpetua<rao dos regimes que cham amos democniticos.

o Parlamento e, pOis, esse lugar de consenso regulado ou de dissenso den­tro de certos limites, que pode excluir ao mesmo tempo objetos de dissenso e so­bretudo maneiras de exprimir 0 dissen­so. Pessoas que nao tern as boas maneiras de expressar 0 dissenso sao excluidas da vida politica legitima. [3

1. MARX Karl. Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte. Paris: Ed itions Socia les, 1976 [1852] [no Brasil, 0 18

de Brumdrio de Luis Bonaparte, Boitempo].

2. Ver BOURDIEU, P. Chases dites [no Brasil, Coisas ditas, Brasiliense].

Este texto e parte do curso dado por Pierre Bourdieu em 12/ 1211991 e que faz parte do livro Sur

I'Etat. Tradu~ao de Leneide Duarte-Plan.

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"Intelectuais ,.",

sao como crian~as" Principal herdeiro de Bourdieu, Bernard Lahire critica a sociologia francesa atual por querer "enterrar" sua obra, diz que Max Weber nao teria espa<;o no mundo universitario de hoje e ataca a vaidade dos intelectuais MARCOS FLAMiNIO PERES

Bernard Lahire e urn dos grandes herdeiros do pensa­mento de Bourdieu. Deve muito a ele, con forme declara em entrevista a CULT: "Foi urn grande exemplo. Eu admirava seu lado combativo, sua ironia, sua potencia critica".

Contudo, construiu sua carreira longe de Paris, 0 espa­ero classico de legitimaerao do saber e da cultura na Franera. Nasceu, crlou-se e hoje leciona em Lyon, na prestigiosa Escola Normal Superior.

Mas talvez tenha sido esse distanciamento da "Cidade Luz", assim como a inftmcia passada em urn bairro operario, que tenha Ihe permitido levar adiante a analise dos processos de legitimaerao da sociedade frances a - tanto politicos, sociais, economicos quanto universitarios.

E 0 tema que percorre toda sua obra, em livros como Retratos

Sociol6gicos, A Cultura dos Individuos (ambos pela Artmed) e, sobretudo, Sucesso Escolar nos Meios Populares (Atica). A inspiraerao para este ultimo veio de seu proprio passado: oriundo de urn meio pobre, Lahire quis saber por que foi bem-sucedido na carreira escolar enquanto as pessoas que 0 cercavam nem

sequer conseguiam chegar it universidade. "Queria compreender o que havia me conduzido a urn caminho tao incomum".

Na entrevista a seguir, concedida it CULT por e-mail, ele tam bern a,taca a desvalorizaerao da pesquisa academica na Franera, em especial apos a crise de 2008. Mas tambem nao poupa sua propria classe: "0 poder sempre con segue colo car a seu serviero os universitarios e pesquisadores".

CULT - Que influencia a obra de Bourdieu exerce hoje no meio intelectual frances e internacional?

Bernard Lahire - Se entendermos por "influencia" os efei­tos diretos ou indiretos produzidos por sua obra, entao essa "influencia" permanece muito forte, ja que varios sociologos franceses nao param de proclamar ou de operar nos fatos uma ruptura radical com essa tradierao sociologica.

A grande maio ria dos sOciologos franceses tern hoje como objetivo enterrar sua obra e considera "ultrapassados" todos aqueles que se interessam por ela. Trata-se de urn principio de desqualificaerao, infelizmente classico nas ciencias sociais . •••

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I DOSSIE I

IIA sociologia atual recusa

a volta ao subjetivismo e 0

estudo dos fen6menos de

domina~ao e desigualdadell

Infelizmente porque is so testemu­nha que as l6gicas da moda - 0 "novo" eo "ultrapasado", 0 "atual" e 0 "caduco" - estao no corayao desse universo, quan­do, na verdade, apenas as argumentayoes e provas empiric as deveriam ser levadas em considerayao.

Mas alem da ruptura com a "so­ciologia de Pierre Bourdieu", e preciso entender que a sociologia [atuall recu­sa 0 retorno ao subjetivismo, a uma sociologia que estuda os fen6menos de dominayao e desigualdade, que "ainda" fala de "classes sociais" ou dos efeitos - estatisticamente comprova­dos - da origem social e das posiyoes socioprofissionais sobre os comporta­mentos sociais, a uma sociologia que poe em evidencia os determinismos sociais etc.

Quando se fala de Bourdieu, fala­-se tambem de Durkheim, Max Weber, Marx, Mauss etc.

Assim, por outro lado, se entender­mos "infiuencia" como 0 uso de concei­tos ou de modos de pensar atribuidos a tal sOciologia, entao essa infiuencia [de Bourdieul me parece cada vez mais fra­ca na Franya.

No exterior, a situayao varia mui­to de urn pais para outro. Nos Estados Unidos e no Reino Unido, por exemplo, a obra de Bourdieu esta em fase de des­coberta progressiva. Mas a integralidade de seu trabalho ainda esta longe de ser universalmente traduzida elida; sera preciso tempo para isso.

Pode-se considerar Bourdieu urn "intelectual total", rnesrno tendo criti­cado Sartre justarnente por isso?

Ele se sentia ao mesmo tempo irri­tado e fascinado pela figura de Sartre. E impossivel que Bourdieu nao tenha pensado em Sartre quando se envolveu no debate publico a partir de 1995.

Mas tambem era urn "intelectual total", como Sartre, embora de outra maneira: em seu desejo de cobrir uma gama extrema mente variada de proble­mas, dominios e dimensoes da vida so­cial. Sao raros aqueles que trabalharam ao longo da carreira sobre temas como esporte, politica, arte, literatura, cien­cia, moda, escola, direito, desigualda­des culturais, linguagem, filosofia etc.

Esse era seu modo de encarnar a fi­gura do "intelectual total" - e isso em seu Esbor;:o de Autoanalise (Companhia das Letras).

o que seu pensamento deve a ele? Eu me formei nos anos 1980 em urn

contexto pedag6gico no qual todas as sOciologias (ou quase) estavam repre­sentadas: a de Bourdieu, mas tambem a de Alain Touraine e Erving Goffman, o estruturalismo de Levi-Strauss, assim como 0 marxismo etc.

Sem duvida alguma, nao teria tido vontade de prosseguir na carreira se nao houvesse encontrado em Bourdieu uma sociologia ao mesmo tempo muito rica (que integra grande variedade de questoes e problemas filos6ficos, •••

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Pierre Ve:dy/Getttyimages

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I DOSSIE I

"Venho de um meio operario; sou um 'milagre social'

(0 primeiro em min'ha familia

a chegar a universidade)"

situando Bourdieu, em minha opiniao, urn degrau acima de seus concorrentes it epoca) e muito sensivel.

Uma sociologia que nao deixa nin­guem indiferente, que nao e consensual, que situa as rela~6es de domina~ao no cora~ao do mundo social.

Eu admirava 0 lado combativo de Bourdieu, sua ironia, sua potencia cri­tica. Mas gostava tambem dessa forma de identifica~ao total com a sociologia

CRONOLOGIA

1930 Nasce em Denguin, Fran~a, em lode agosto

1951 Ingressa na Escola Normal Superior de Paris

1954 Gradua-se em filosofia e as-sume a fun~ao de professor em Moulins

1958 Assume 0 cargo de profes-sor-assistente na Faculdade de Letras de Argel, na Argelia; publica seu primeiro livro, Soci%gia da Arge/ia

1960 Torna-se assistente de Raymond Aron, na Faculdade de Letras de Paris

que se sente sob sua pluma. Pessoalmente, tenho 0 mesmo ti­

po de rela~ao com a sociologia, que, para miin, nao e uma atividade como nenhuma outra. E, sob esse ponto de vista, Bourdieu foi urn grande exemplo paramim.

o senhor cresceu em urn bairro openirio, Como suas origens sociais determinaram a escolha de seus

1 962 Torna-se secretario-geral do Centro de Sociologia Europeia

1 964 Ingressa na Escola Pratica de Altos Estudos, na Fran~a

1968 Publica,juntamente com Passeron e Camboredon, Of[cio de Soci6/ogo (Vozes)

objetos de estudo e de suas orienta­~6es teoricas?

A determina~ao jamais e mecfllli­ca, mas e evidente que 0 sociologo faz pesquisa apoiando-se em suas proprias experiencias. Suas escolhas de tema ja­mais sao produtos do acaso.

De fato, venho de urn meio ope­nhio e sou uma especie de "milagre social" (0 primeiro em minha familia a ter chegado it universidade). Isso me levou a me perguntar sobre as raz6es do fracasso escolar (e tambem do su­cesso, estatisticamente improvavel) nos meios populares.

Eu queria compreender por que mi­nha irma ou me us primos sempre en­frentaram dificuldades na escola. Queria compreender tambem 0 que havia me conduzido a urn caminho tao incomum.

Todas as minhas pesquisas (da analise das desigualdades escolares ao estudo da cria~ao litera ria de Kafka, passando pelo estudo das praticas cul­turais) respondem a "necessidades" inteiramente existenciais para mim. Estao, na verdade, no cruzamento en­tre quest6es tanto existenciais pessoais quanto cientificas.

1 975 Funda a revista Actes de /a

Recherche en Sciences Socia/es

1 979 Publica A Distinc;ao: (r[tica

Socia/ do Ju/gamento (Edusp)

1980 Publica OSensoPrdtico (Vozes)

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Seus primeiros trabalhos tra-tam de um assunto muito comumno Brasil, que é o fracasso escolarnos bairros mais pobres. Suas con-clusões poderiam ser aplicadas aoBrasil? Qual é a importância, para a .sociologia, da relação entre educaçãoe classe social?

Acredito que as questões que co-loquei em minhas pesquisas poderiamser reutilizadas pelos pesquisadoresbrasileiros para estudar sua realidade.

Mas conclusões científicas jamaispodem ser transportadas de uma situa-ção nacional a outra. Por mais que fale-mos a mesma linguagem sociológica, asrealidades às quais remetem as noçõesde "classe popular" e "instituição es-colar" são muito diferentes na Françae no Brasil. Não temos nem a mesmahistória social, nem a mesma históriaescolar ou cultural.

Dito isso, o fato de que a educaçãoseja diferente conforme o meio social éum dado de base de todas as sociedadesdesiguais. Esquecer as desigualdades so-ciais que se perpetuam, antes de tudo,na ordem familiar seria passar deixar delado o essencial.

Qual é o papel da cultura em umasociedade socialmente polarizada?

Isso pode variar conforme o tipo desociedade. No entanto, em sociedadesquecolocam o sistema escolar no centro doprocesso de seleçãoe reprodução social, a"cultura" (o arbitrário cultural dominan-te que se impõe e se faz reconhecer comoa única "cultura legítima") tem funçõessociais.Ela confere valor social e legitimi-dade àqueles que a possuem.

Mas é preciso tomar cuidado paranão tratar esse fenômeno como univer-sal e eterno. Antes de tudo, o conteúdodessa cultura evoluiu muito em um país

como a França desde os anos 1970:pas-samos de uma cultura humanista clás-sica (literatura, pintura, música clássica,teatro etc.) a uma cultura mais científicae moderna.

No dia em que as elites encontraremum meio mais eficaz que a cultura parase distinguirem e legitimarem suas po-sições de poder, ela deixará de ocupar olugar central que hoje ocupa.

Mas o consumismo, hoje, já nãoocupa o papel que foi da cultura?

Para uma parte das elites eco-nômicas e políticas, certa forma •••

"Eu queria compreenderpor que minha irmã ou meusprimos sempre enfrentaramdificuldades na escola"

1981 Apoia a candidatura de 1988 PublicaA Ontologia Política 1996 Publica Sobre a Televisão

Coluche (um comedian- de Martin Heidegger (Zahar)te francês) às eleições (Papirus)presidenciais 1993 Funda o Comitê1982 Ministra sua aula inaugural Internacional de Apoiono Collêge de France aos Intelectuais Argelinos;

1987 organiza a publicação de A

Publica Coisas Ditas Miséria do Mundo (Vozes).(Brasiliense) obra coletiva que representa

o esforço engajado dos 1998intelectuais na vida política PublicaA Dominação

1995 Masculina (Bertrand)Passa a ser tratado como 2002o "sociólogo do povo'; ao Morre em Paris,aos 71 anosapoiar a categoria dosmaquinistas em greve naestação de Lyon

I_,,"\(;6 129

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I DOSSIE I

"Quando as elites

encontrarem um meio mais

eficaz que a cultura para

se legitimarem, esta deixara

de ocupar lugar central"

de consumismo e de fa to uma maneira de exibir seu poder social. Para elas, os modelos sao antes as estrelas do show business do que os artistas, escritores ou intelectuais.

Mas nao e certo que essas novas for­mas de comportamento - que tornaram

obsoleta a figura do "homem honesto" (segundo uma expressao muito classica, isto e, 0 da cultura humanista classica) -ten ham urn poder legitimador tao forte quanta a religiao au a cultura no passado.

Suas pesquisas, assim como as de

Bourdieu, se caracterizam pela enfa­se no trabalho de campo. Qual e a im­portancia desse trabalho para evitar a instrumentaliza.yao e a ideologiza.yao das ciencias humanas?

Os pesquisadores deveriam consi­derar como ponto de honra 0 fato de jamais permitirem a instrumentaliza­.yao de seus trabalhos. Mas isso sup6e haverem conquistado coletivamente bastante independencia em relayaO a todos os poderes (do Estado, politico, economico, religioso etc.).

Infelizmente, constata-se que, nes­sa area, 0 progresso esta longe de ser linear. E uma vigWlncia permanente que deve ser exercida para evitar que as ciencias humanas e sociais prestem serviyo a quem detem 0 poder.

Isso ocorre na Fran.ya hoje? Infelizmente sim, e nao apenas na

Franya. 0 poder sempre consegue colo car a seu serviyo os universitarios e pesquisa­dores, atribuindo-Ihes reconhecimento,

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prometendo ajuda financeira aqueles que sabem se mostrar d6ceis e "uteis".

Os "intelectuais" (mesmo aqueles que merecem esse nome sem aspas) sao como crianc;:as grandes. Dependem de tal forma do modo como olham para eles e das gratificac;:oes simb6licas que basta seduzi-Ios com palavras que cor­respondarri a sua ideologia profissional ("excelencia", "inovac;:ao", por exemplo, sao centrais nessa "novilingua" do po­der atual na Franc;:a) para que fac;:am praticamente qualquer coisa.

Nao se deve esperar nenhum reco­nhecimento quando se quer permanecer livre em relac;:ao ao poder (a comec;:ar do universitario) - a nao ser 0 dos colegas que nao se embrenharam nesses proce­dimentos oficiais de reconhecimento.

Desde 0 governo do premie socialis­ta Lionel Jospin (1997-2002), as ciencias humanas vern sendo objeto de ataques na Franc;:a, como suposto exemplo do "atraso" do pais em relac;:ao aos Estados Unidos. Qual e a situac;:ao hoje?

Sob Sarkozy, as ciencias humanas e sociais foram particular mente maltrata-· das, em especial a sociologia (a economia sempre se sai urn pouco melhor por pres­tar servic;:os ao poder). Foram acusadas, por exemplo, de justificar as violencias urbanas (os atores politicos confundem bobamente "explicar" e "justificar"). Isso e ridiculo. 0 nivel intelectual de nossas elites e particularmente fraco. Mas elas fazem com que as ciencias sociais pa­guem por sua grande capacidade critica.

Frequentemente se diz que a im­prensa e urn contrapoder, 0 que fre­quentemente me parece ser urn contra­verdade. Ja as ciencias sociais, quando praticadas corretamente, constituem, sim, verdadeiros contrapoderes.

o advento da internet e das redes sociais pode mudar a relac;:ao do indi­viduo com a cultura? A web pode mo­dificar ainda mais a "heterogeneida­de" da sociedade contemporanea - de que 0 senhor fala em 0 Homem Plural (Vozes) - e mudar tambem a "sociali­zac;:ao" do individuo?

E preciso ser muito prudente nessas questoes. ·A internet cobre urn campo tao

vasto de atividades e prMicas que seria preciso estudar seus diferentes tipos de uso.

Mas uma coisa e certa: ninguem permanece indiferente a ela. As pes­soas nao tern as mesmas capacidades culturais para compreender 0 conjunto de informac;:oes que podem ser encon­tradas na rede, e corre-se 0 serio risco de vermos surgirem novas desigualdades tecnol6gicas.

podem criar novos tipos de sociologia. Mas nao penso que os avanc;:os cienti- . ficos depend am da riqueza economica ou de politicas conduzidas, urn pouco em toda parte, em nome da "excelencia".

A crise financeira na Europa atin­giu as universidades do continente - 0

caso mais grave talvez s~ja 0 do Reino Unido. Qual e a situac;:ao da Franc;:a?

"No sistema universitario atual, urn soci61ogo como Norbert Elias nao teria tido chance de seguir na carreira"

Urn dos temas que 0 senhor vern estudando e a condic;:ao extraliteraria dos escritores. Qual e a situac;:ao do "campo" literario atualmente?

. Praticamente em todo lugar (esse fato e quase universal, em todas as sociedades onde existe algo como a literatura), os es­critores tern dificuldade em viver da escrita e se habituaram a ter urn "segundo oficio".

Mesmo na Franc;:a, apesar do desenvol­vimento de urn mercado literario desde 0

seculo 19, aqueles que estao no centro da economia do livro - os escritores - em geral nao vivem de sua pluma. E aqueles que podemos considerar como os maiores profissionais, sob urn ponto de vista estrita­mente literario, tambem sao levados a acu­mular atividades literarias e extraliterarias.

Tal situac;:ao de "vida dupla" - de que Kafka da urn testemunho doloroso em seu diario - nao e nem nova nem oca­sional. Ela e plurissecular e estrutural.

Onde se produz sociologia de pon­ta hoje em dia?

Acho sinceramente que varios paises

A politica francesa, em materia de en­sino superior e de pesquisa, e desastrosa ha pelo menos cinco anos. Em nome da excelencia, colocam todos concorrendo entre si, ameac;:am sancionar os pesquisa­dores com horas de trabalho suplemen­tares se nao publicarem suficientemen­te, dao muito dinheiro a muito poucos pesquisadores (mas nao forc;:osamente os mais inovadores), avaliam os pesquisado­res a partir de bases estupidamente biblio­metricas, privilegiam a cultura do artigo (nas revistas bern ranqueadas) - desvalo­rizando os trabalhos de fundo e 0 livro (que e sua sequencia 16gica) - e restringem o tempo da pesquisa (sobretudo das teses).

Em tal sistema, urn soci610go como Norbert Elias, que quase nao publi­cou durante 20 anos, nao teria chance de prosseguir na carreira. E uma obra monumental como a de Max Weber nao seria de modo algum encorajada.

Felizmente nem todos os pes­quisadores sao submissos. Eles ainda tern chance de produzir ciencia, apesar da loucura das instituic;:oes cientificas. B

_ n0166 31

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incorporado, como disposi<;:ilo du­radoura do corpo (por exemplo, a facilidade de expressilo em publico, o dominio da linguagem); em es­tado objetivo, como bern cultural (a posse de quadros, livros, dicio­narios, instrumentos, maquinas); em estado institucionalizado, isto e, socialmente sancionado por ins­titui<;:oes (como titulos escolares).

"0 capital cultural e urn ter convertido em ser, uma pro­priedade que se tornou corpo, parte integrante da 'pessoa', urn habitus."

Conjunto de qualifica<;:oes intelec­tuais produzidas pelo sistema es­colar ou transmitidas pela familia.

Nilo se adquire nem se herda sem esfor<;:os pessoais, sem urn longo trabalho de aprendizagem e de acultura<;:ilo; tende a ser estrei­tamente correlacionado ao capital econ6mico do agente.

Esse capital pode exis­tir sob tres formas: em estado

CAPITAL

Conjunto de recur­sos patrimoniais (terras, bens i'mo­biliarios, papeis de credito) e de rendas, sejam ligados ao capital (alugueis, ju­ras, dividendos) ou a urn exercicio pro­fissional assalariado

ou nilo assalariado (honorarios de pro­fissoes liberais, be­neficios industriais e comerciais para em­presarios, operarios e comerciantes).

Page 17: Dossie Bourdieu

I DOSSIE I

Conjunto de contatos, relac;:oes, amizades, obri­gac;:oes, relac;:oes social­mente uteis que podem ser mobilizadas pelos individuos ou grupos ao longo de sua trajetoria

pro fissional e social. Variavel que cbnfere

ao agente maior ou me­nos "espessura" social, poder de ac;:ao e reac;:ao mais ou menos significa­tivo em func;:ao da qua­lidade e quantidade de

suas conexoes.

Espac;:o social estruturado e conflitual no qual os agentes sociais ocupam uma posic;:ao definida pelo volume e pela es­trutura do capital eficiente no

campo, agindo segundo suas posi­c;:oes nesse campo.

Cada campo - urn "campo de forc;:a" de agentes e instituic;:oes em luta - e dotado de regras de fun­cionamento e de agentes investi­dos de habitos especificos (campo universitario, campo jornalistico, campo literario, campo juridico, campo economico ... ).

"0 processo qe diferenciac;:ao do mundo social que conduz Ii existencia de campos autonomos diz respeito tanto ao ser quanta ao conhecer: ao se diferenciar, 0

mundo social produz a diferencia­c;:ao de modos de conhecimento do mundo; a cada campo correspon­de urn ponto de vista fundamental sobre 0 mundo que cria seu ob­jeto proprio e que encontra em si mesmo 0 principio de compreen­sao e de explicac;:ao conveniente a este objeto."

A rede de relac;:oes e 0

produto de "estrategias de investimento social" que 0 agente, conscien­temente ou nao, de ­senvolve a fim de criar, manter, reforc;:ar, reati­var ligac;:oes das quais pode esperar a qualquer momenta retlrar "lucros materiais ou simbolicos".

A logica de urn campo, a hierar­quizac;:ao dos interesses e a discri­minac;:ao dos objetos pertinentes instituidos funcionam como urn pano de fundo impensado das pnl­ticas dos agentes.

"Esquecemos que a luta pressu­poe urn acordo entre os antagonis­tas sobre aquilo pelo que merece que se lute e que e recalcado no aparentemente evidente, deixado em estado de doxa - ou seja, tudo o que faz 0 proprio campo, 0 jogo, os riscos, todos os pressupostos que se aceitam tacitamente, sem mesmo que os saiba, pelo mero fato de jo­gar, de entrar no jogo."

A doxa (opiniao) e uma "fe prati­ca", experiencia primeira do mundo, relac;:ao de crenc;:a imediata que nos faz aceitar 0 mundo como evidente, uma experiencia primeira do social. Faz parte dos pressupostos de inclu­sao num determinado campo.

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Corresponde a uma estrategia de diferencia<;:ao que esta no amago da vida social. Ii uma propriedade rela-

urn desvio, uma di­feren<;:a com rela<;:ao a outrem e que funda uma hierarquia entre individuos e grupos - e 0 suporte de es­trategias inscritas nas pniticas sociais.

Assim, a burguesia possui uma maneira propria de se distin­guir, por seu "gosto",

da ostenta<;:ao ou da vulgaridade (ou ao menos do que se julga como tal) dos "par­venus" (arrivistas), da pequena burgue­sia. Sua rela<;:ao com a arte, pela qual se diferencia de outras camadas socia is, se opera sob 0 modo do distanciamento,

LIeD Conjunto de rituais (como a etiqueta e 0

protocolo) ligados a honra e ao reconhe­cimento. Ii 0 credito e a autoridade que conferem a urn agente o reconhecimento e a posse das tres ou­tras formas de capital (economico, cultural e social). Ele e 0 pro­duto da "transfigura­<;:ao de uma rela<;:ao de for<;:a em rela<;:ao de sentido", designando o efeito de violencia imaterial das outras formas de capital sobre a consciencia.

Urn exemplo tipico das transmuta<;:oes das outras especies de ca­pital em efeitos simbO­licos e 0 "grande no­me" (de uma "grande

naturalidade, da cul­tura discreta. Quanto menos ostensiva a inten<;:ao de parecer "distinto", melhor.

Bourdieu foi pre­nunciado pelas analises do esnobismo social, intelectual e artist i­co feitas por Marcel Proust. em Em Busca do Tempo Perdido.

familia"), patronimico que condensa simboli­camente todas as pro­priedades materiais e imateriais acumula­das e herdadas.

A compreensao da logica dos efeitos sim­bolicos de posi<;:oes e de recurs os advem de uma "economia dos bens simbolicos" (da qual a economia propriamente "eco ­nomica" nao e senao uma das dimensoes), que da conta das es­trategias de acumu­la<;:ao, de reprodu<;:ao e de reconversao das diferentes especies de capital por urn individuo, com vista a manter ou melho­rar sua posi<;:iio no espa<;:o social.

_ ,,°166 1.%

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I DOSSI~ I

SOCIAL

Representa<;:ao multidi­mensional e relacional da estrutura da socie­dade de acordo com 0

volume e a estrutura do capital (economico, cul­tural) em posse das dife­rentes classes sociais em confiito.

o conceito de espa<;:o social permite ultrapas­sar as concep<;:6es natura­lizantes do mundo social, que tendem a coisificar entidades ou oposi<;:6es conceituais - que, para Bourdieu, sao apenas proje<;:6es dos valores e

categorias dominantes no momento (classes, pos­suidores/despossuidos, povo ... ). Essa coisifica<;:ao favorece a ignorancia da verdadeira l6gica da dinamica social.

Ja 0 modo de repre­senta<;:ao espacial permi­te considerar a sociedade nao como urn mecanis­mo natural, mas como urn "universo de pro­pens6es" (Popper) ou de tendencias. Trata-se de urn espa<;:o de distribui­<;:ao, ou seja, urn vasto conjunto de posi<;:6es

hierarquizadas at raves de multiplas dimens6es (os campos e as espe­cies de capital que eles privilegiam).

o espa<;:o social, re­cortado por tens6es e domina<;:6es, "e definido pela exclusao mUtua, ou distin~ao, das posi<;:6es que 0 constituem, ou seja, como estrutura de justaposi<;:ao de posi<;:6es socia is, elas mesmas de­finidas como posi<;:6es na estrutura de distribui<;:ao das diversas especies de capital".

TERESIS

as estruturas sociais mudam e nao sao mais conformes aquelas que foram interiorizadas quando da forma<;:ao do habitus).

(do Habitus)

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No<;:ao que tern uma lon­ga hist6ria, de Arist6teles a Norbert Elias, passando pelos fil6sofos medievais, Leibniz, Husser! e Mer!eau­Ponty. Talvez seja 0 conceito central do pensamento de Bourdieu, definido por ele como urn sistema de "dis­posi<;:6es dur8.veis e trans­poniveis", isto e, que podem gerar praticas em esferas

TUS

alheias aquela de origem, adquiridas pelo individuo no curso do processo de so­cializa<;:ao que engendra e organiza as praticas e as re­presenta<;:6es de individuos e grupos. Sao potencialidades objetivas que tern a tenden­cia a se atuali zar e a operar nas praticas e representa­<;:6es que elas moldam de forma duradoura.

o habitus e produtor de a<;:6es e produto do condicio­namento hist6rico e social -embora Bourdieu recuse a pecha de urn determinismo social rigido, ao admitir uma mar gem de ma­nobra para 0 "jogo" e a improvisa<;:ao.

o habitus nao pode ser revertido por uma mer a to­mada de consciencia devido

a profundidade com que se inscreve nos corp os, gestos e posturas. 0 habitus configu­ra urn universo de classifica­<;:6es e de possibilidades que o agente que 0 internalizou assume como apriorismos mentais e praticos que se fazem perceber mas nao sao necessariamente percebidos, muito menos explicitados num calculo racional.

Violencia nao percebida, fundada sobre 0 reconhe­

cimento, obtida por urn trabalho de inculca<;:ao da

legitimidade dos domi­nantes sobre os domina-

dos e que assegura a per­manencia da domina<;:ao

e a reprodu<;:ao social. Por exemplo, a transmissao da

cultura escolar, que veicula as normas das classes do-

minantes, e uma violencia simb6lica exercida sobre as

classes populares.

SIMBOLICA

_ nOl66 37

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I DOSSI~ I

• o vlra-casaca o soci61uyu Geoffroy de Lagasnerie, da Universidade de Paris 1, diz que Bourdieu ajudou a destruir 0 debate intelectual ao reneyar suas origens e desqualificar 0 debate jornaifstico MARCOS FLAMINIO PERES

Geoffroy de Lagasnerie e uma jovem promessa da sociolo­gia francesa. Vinculado ao Departamento de Ciencia Polftica

da Universidade de Paris lIPantheon Sorbonne, e personagem insuspeito para criticar justamente urn dos medalh6es de sua disciplina: Pierre Bourdieu.

Em L'Empire de J'Un iversite (0 Imperio da Universidade, Ed. Amsterdam, Franc;:a, 2007), ele estuda a relac;:ao ambigua

que Bourdieu, Foucault, Deleuze e Derrida mantiveram com a midia. Se durante os libertarios anos 1960 esses jovens inte­

lectuais criticavam a casta excludente em que a academia se transformara, alguns anos depois essa situac;:ao se inverteria.

:m am ,,"166

Ja bern instalados no sistema de ensino superior frances, re­agiriam com virulencia it criac;:ao de jornais - como 0 Liberation - e suplementos culturais - como 0 Le Monde des Livres. A razao para is so, afirma De Lagasnerie, foi 0 medo de perder 0 "monop6Iio" do discurso academico junto a opiniao publica.

Bourdieu, reconhecido ja entao como 0 principal soci610go frances vivo, foi 0 mais contundente dos quatro, ao defender a meritocracia academic a e atacar os "falsos" valores das midias.

Mas, nesse confronto entre universidade e jornalismo, am­

bos sairam perdendo, lamenta De Lagasnerie em entrevista concedida a CULT, por e-mail, de Paris.

Page 22: Dossie Bourdieu

CULT - Por que houve essa revira­volta por parte de Bourdieu, Derrida, Foucault e Deleuze? Queriam manter seu status quo?

Geoffroy de Lagasnerie - A partir de meados dos anos 1970, assistimos a uma multiplicac;:ao de jornais e a emergencia da midia como polo de con­sagrac;:ao alternativo a universidade - e, por isso mesmo, suscetiveis de produzir urn embaralhamento das hierarquias. Bourdieu, Foucault etc. reagiram a essa situac;:ao, contestando 0 direito do jor­nalismo de julgar as obras. Quiseram reafirmar 0 monopolio dos universihi­rios sobre a avaliac;:ao legitima.

Bourdieu, em particular, criou uma especie de fetichismo da universidade?

Ao colocar a ideia de que defender o pensamento implicava defender a universidade contra " 0 que esta fora", eles contribuiram - Bourdieu, em es­pecial- para fazer crer que a universi­dade era 0 lugar natural da pesquisa. A instituic;:ao academic a aparecia como urn espac;:o de resistencia contra 0 en­saismo e os falsos valores.

Essa retorica impediu a conduc;:ao de uma irivestigac;:ao critica sobre as prati­cas academicas. As normas disciplinares foram vistas como bloqueios contra as imposturas, e nao como problemas. E, no entanto, elas tambem sao perigosas e violentas. Ha imposturas academicas, assim como ha imposturas midiaticas.

Sob esse aspecto, Bourdieu foi 0

mais diciente dos quatro fil6sofos? Bourdieu nao se contentou com tex­

tos de circunstflllcia. Fez dessa questao urn dos temas de sua reflexao, por meio do conceito de "autonomia". Elaborou a ideia segundo a qual a condic;:ao para a inovac;:ao residia no fechamento do "campo cientifico" .sobre si mesmo: os

pesquisadores deveriam elaborar seus trabalhos no quadro de uma discussao interna com seus "pares" e submeter-se a seu controle.

Ao usar essa lingua gem, Bourdieu fez com que· a esquerda universitaria aderisse as mesmas representac;:oes que a direita. Ela promoveu a Figura conservadora do pesquisador con forme a ordem disciplinar.

Qual e a importancia do jornalis­mo para a academia? Como explicar 0

afastamento cada vez maior entre as duas instancias?

Quando refletimos sobre 0 jornalis­mo, insistimos com frequencia na cen­sura que ele exerce. Mas a contribuic;:ao essencial do jornalismo reside no fato de que se trata de uma instancia exterior a universidade. Ele represent a urn espac;:o de acolhimento para as obras, os auto res e questionamentos em ruptura com as normas academicas.

Essa e a razao pela qual autores ino­vadores se apoiaram com frequencia nas midias para se impor contra 0 confor­mismo universitario.

Nao estabelec;:o uma oposic;:ao entre jornalismo e debate intelectual, mas en­tre midia e academia. Ha pelo menos 20 anos esses espac;:os vern se fechando sobre si mesmos, 0 que tern levado ao desapa­recimento do debate intelectual tal como existia nos anos 1960 e 70. E a func;:ao desse debate era justa mente desestabi­lizar as fronteiras entre a universidade e seu entorno, entre saber e politica, entre universitarios e publico em gera!.

Como Bourdieu reagiria a internet e as redes sociais?

Ele era urn pensador da inovac;:ao. Jamais via como urn problema aquilo que se elaborava na sociedade. Teria fi­cado atento a maneira como a internet poe em questao 0 poder de censura da

midia - mas tambem dos editores - e 0

controle que ela exerce sobre 0 acesso ao espac;:o publico.

Qual e hoje 0 mais midiatico dos intelectuais franceses? Bernard-Henri Levy?

BHL nao e urn intelectual. Mas, se quisermos escolher urn nome para de­signar aquele que escreve livrinhos vio­lentos e que vai falar deles mesmo nas midias mais indignas, esse nome seria Alain Badiou.

Ele exerce uma influencia nefasta sobre a vida das ideias ao quebrar as fronteiras que intelectuais autenticos, como Bourdieu e Derrida, se esforc;:a­ram por instalar. Sua sede de reconhe­cimento 0 levou a constituir como inter­locutores ensaistas de segunda linha ou jornalistas sem talento.

De resto, Badiou era celebrado pelas midi as enquanto Bourdieu era insulta­do, 0 que mostra que ele esta em sinto­nia com 0 sistema midiatico.

Quem ganhou a disputa en­tre 0 campo intelectual e 0 campo midiatico?

Todo mundo perdeu. A segregac;:ao entre esses espac;:os produziu a destrui­c;:ao da vida intelectual: os autores sem ideias dominaram 0 campo midiatico; os pesquisadores se profissionalizaram e produzem hoje uma subpesquisa que nao interessa a ninguem.

Essa e a razao por que e preciso reto­mar urgentemente a atitude intelectual inventada por Sartre, a qual Bourdieu foi fiel, e que consiste em sempre escre­ver para publicos heterogeneos.

Isso supoe considerar a teoria uma especie de politica continuada por outros meios, cujos conceitos jamais devem servir apenas para aumentar 0

conhecimento - devem servir tambem para produzir emancipac;:ao. B

_ n166 139 II ____________________________________ ~------------~--_I~

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I DOSSI~ I

Em Os Herdeiros, que sai no Brasil no tim do ano, Bourdieu disseca 0 sistema excludente da escola publica francesa lONE RIBEIRO VALLE

40 I _ n0166

Ama educa~ao

Pierre Bourdieu dedicou muitas de­cadas ao estudo do sistema de ensino (frances), evidenciando a distancia entre os sistemas rea is de educa<;:ao e 0 modele preconizado pelas politicas educacionais, orientado segundo as exigencias do cres­cimento economico, e a "inercia cultu­ral" que dele resulta.

Isso Ihe permitiu estabelecer impor­tantes rupturas epistemologicas ao des­velar interesses e objetivos dissimulados pela institui<;:ao escolar, pela pf<ltica dos profissionais da educa<;:ao, pelas estrate­gias dos agentes rna is bern posicionados na hierarquia escolar.

Seus estudos puseram em xeque os projetos de democratiza<;:ao da educa<;:ao e os principios da escola republicana, apoiados e justificados na meritocracia escolar.

Tendo por base 0 termo "herdeiro"', inspirado na perspectiva weberiana que considera que a rela<;:ao de domina<;:ao nao se limita a esfera economica e reten­do do pensamento marxista 0 carater fundamental da divisao da sociedade en­tre dominados e dominantes, Bourdieu e Passeron romp em, por meio da obra as Herdeiros (1964), com a "ingenuidade" da ideologia da igualdade de oportunidades que funda 0 projeto escolar da Terceira Republica francesa.

Esse projeto defendia a tese do "pri­vilegio cultural", levando a escola a se tomar "indiferente as diferen<;:as", a tratar como iguais em direitos e deveres crian<;:as desiguais em rela<;:ao aos crite­rios exigidos para 0 exito escolar.

Ainda que a escola proclame, persis­tentemente, sua fun<;:ao de instrumento democnltico da mobilidade social, seus estudos vaG mostrar que ela exerce urn papel crucial na legitima<;:ao e, portanto, na perpetua<;:ao das desigualdades diante da cultura.

Ao ignorar que as aptid6es dos alunos nao se devem somente aos "dons naturais': e meritos pessoais (os quais permanecem hipoteticos), a escola transmite - por meio dos dispositivos de julgamento que em­prega - a cultura da elite, reafirmando seus privilegios sociais: "Todo ensino, e mais particularmente 0 ensino de cultura (mesmo cientifica), pressup6e implicita­mente urn corpo de saberes, de saber-fazer e sobretudo de saber-dizer que constitui 0

patrimonio das classes cultas" (Bourdieu e Passeron, 1985, p. 36).

Heranc;a cultural A partir de estatisticas que mediam

as desigualdades de aces so ao ensino su­perior (frances) segundo a origem social e 0 sexo, apoiando-se num estudo empi­rico das atitudes dos estudantes univer­sitarios e de professores e tambem numa analise das regras - frequentemente nao escritas - do jogo universitario, nossos autores evidenciam a for<;:a da heran<;:a cultural e do ambiente familiar (onde a · cultura e adquirida "como por osmose") no desempenho e nas escolhas das habi­lita<;:6es desses estudantes.

Fica assim demonstrado que a carrei­ra e 0 exito escolar nao decorrem somen­te das desigualdades economic as, pois 0

Page 24: Dossie Bourdieu

"peso da heran~a cultural e tal que se po­de desfrutar dela sem ter necessidade de excluir, pois tudo se passa como se fos­sem excluidos apenas os que se excluem" (Bourdieu e Passeron, 1985, p. 43).

A maior originalidade da tese esbo­~ada nesta obra, que poe em questao os prindpios da meritocracia escolar, esta relacionada a genese do conceito de ha­bitus, um dos conceitos centrais da so­ciologia de Bourdieu.

Ao concebe-lo como a interioriza~ao das condi~oes objetivas das quais ele e o produto, 0 autor constata que os in­dividuos aprendem des de muito cedo a antecipar seu futuro de acordo com a ex­periencia vivida no presente e, portanto, a nao desejar 0 que, no seu grupo social

de origem, aparece como eminentemente pouco provavel ou, no caso do sexo femi­nino, como inadequado.

Assim, 0 que frequentemente se consider a - sobretudo pelos professores - como ausencia de dons ou capacidades e tao somente 0 resultado de uma socia­liza~ao divers a daquela preconizada e realizada pela escola. 8

lone Ribeiro Valle

e professora do Centro de Ch~ncias

da Educa~ao da Universidade

Federal de Santa Catarina e

esta traduzindo Les Heritiers

(Os Herdeiros), de Pierre Bourdieu

e Jean-Claude Passeron. 0 livro sai

no final deste ano pela Editora UFSC

1.0 termo "herdeiro" foi quase com­

pletamente incorporado a linguagem

corrente pa ra designar os filh os

das famfl ias mais cultas e mais bem

favorecidas economicamente, os quais

se sa be que nao terao problemas na

esco la e fa raD carreiras universitarias

bril hantes: "Ao lade do capita l cu ltura l

que dispoem 05 jovens oriundos das

classes mais favorecidas, a saber,

todos esses elementos (Iivros, obras

de arte, viagens, acesso as mfd ias ... )

que compoem um ambiente propfcio

as aprendizagens, e mais amplamente

a 'heran<;a cul t ural' que const itui a

d imensao mais discrimina nte e mais

decisiva em termos de exito escolar"

(Duru-Bellat e Zanten, 1992, p. 67).

o pais dos poetas e dos pensadores esta mais perto do que voce imagina. Para saber mais sobre a Alemanha e aproveitar tudo 0 que 0 pais tem a oferecer, voce precisa conhecer 0 Goethe-Institut. Aqui voce aprende a lingua atraves de uma ampla oferta de cursos, vivencia a cultura atraves de uma variada programa~ao e confere as mais recentes publica~oes alemas.

Page 25: Dossie Bourdieu

I DOSSIE I

Bordieu sou eu

IQtrodutor no Brasil das teorias do pensador frances, 0 soci61ogo e

professor da USP Sergio Miceli revela o espanto e 0 desconhecimento de suas ideias no Brasil dos anos 1970

BRIAN 01 ASSIS REQOENA

Page 26: Dossie Bourdieu

(ouquase)

Em 1969,0 jovem aluno de mestra­do da Universidade de Sao Paulo Sergio Miceli Pessoa de Barros

(1945) escreveu para 0 novo diretor de estudos da Escola de Altos Estudos em Ciencias Sociais, em Paris. A carta, alem de uma breve apresenta<;:ao, trazia alguns comentarios acerca das leituras de artigos e livros produzidos pelo an­trop610go, sOci610go e fil6sofo frances.

A correspondencia foi respondida, com a promessa de envio de textos que publicara em revistas francesas, para que ele pudesse ler.

Nos anos seguintes, continuaram trocando cartas. E, em 1971, Miceli publica ria pela editora: Perspectiva uma coletanea de artigos do intelectual frances. Posteriormente, Miceli iria a

Fran<;:a desenvolver sua tese de douto­rado e bus car respostas as suas inda­ga<;:6es. Alem de encontrar respostas, encontrou Bourdieu.

"Eu estava cursa'ldo ciencias sociais na PUC do Rio de Janeiro quando Ii urn numero da revista Les Temps Modernes sobre os problemas do estruturalismo. Havia urn artigo chamado "Campo Intelectual e 0 Projeto Inovador", de urn autor chamado Pierre Bourdieu. Fiquei alvoro<;:ado. Na epoca, eu participava de urn grupo de estudos com 0 Sergio Azul eo Antonio Calm on e cheguei dizen­do que tinha acabado de le r urn artigo barbaro e era aquilo que eu queria para a minha vida. Nao sabia como, mas iria fazer urn neg6cio pa recido com aque­Ie. Eu importei todos os artigos e •••

_ n' I(~) 14')

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I DOSSIE I

livros existentes, na epoca, de autoria de Bourdieu."

Na varanda de seu confortavel apartamento na Avenida Higienopolis, regiao central de Sao Paulo, Miceli se recordava de como era dificil achar trabalhos de Bourdieu no Brasil. Em 1970, aos 25 anos e fazendo mestrado na Universidade de Sao Paulo, ele im­portava pela Livraria Francesa os titu­los que encontrava. Nao existia nada em portugues no final da dec ada de 1960.

o doutor em sociologia Jose Carlos Durand foi urn dos que se beneficiaram das tradw;:oes e organiza<;:oes dos tex­tos de Bourdieu pelas maos de Miceli. Durand adquiriu reno me na decada de 1980 por suas analises do campo inte­lectual, em especial das artes plasticas.

Assim como Miceli, Durand' nao teve urn orientador substantivo. Ambos trabalharam lado a lado na Funda<;:ao Getulio Vargas, e Miceli acabou indi­cando seu nome a Bourdieu para urn es­tagio no Centro de Sociologia Europeia.

Do lade paterno, a familia de Miceli era tradicional e detentora de grande quanti dade de terras, fazendas e terre­nos urbanos nas regioes de Mendes e Resende, no Rio de Janeiro. A mae era funcionaria publica e 0 ajudou a custe­ar os estudos. Mas uma figura especial marcaria sua adolescencia e posterior­mente sua vida profissional: Armando, o tio materno.

"0 tio Armando foi redator-chefe do jornal Correia da Manha e pro­curador do Estado e da Republica. Casou urn pouco tarde e foi morar em Ipanema. Ficava 0 dia todo com meus primos na casa dele. Frequentemente passavam la pessoas como Nelson Rodrigues, Antonio Calado e Carpeaux. Esse universe que debatia livros e poli­tica me estimulou muito. Eu so ouvia e pouco falava ."

Na PUC, Sergio logo se enturmou. Fez teatro, foi it praia e pouco estudou. Mas nesse periodo come<;:aram as pri­meiras leituras de Bourdieu. Ao term i­nar a gradua<;:ao, decidiu abrir novos horizontes e cursar mestrado em so­ciologia. Em 1968, apenas a USP of ere­cia um sistema de pos-gradua<;:ao. Mas, antes de mudar-se, Miceli iria dever

441 _ n"166

liEu queria trabalhar com assuntos culturais, mas a sociologia brasileira tinha ma vontade em lidar com iSSO"

alguma coisa ao clientelismo brasileiro. "Na rua da minha casa morava um

sociologo chamado Jose Arthur, e mi­nha familia 0 conhecia. Certo dia, mi­nha mae, que era muito saida, encon­trou a esposa dele e disse que eu estava querendo estudar em Sao Paulo. No dia seguinte, 0 procurei, dizendo que gosta­ria de ir it USP, mas precisava da bolsa. Ele disse para eu nao me preocupar com isso. Ganhei a bolsa da Capes assim."

No inicio de 1968, 0 carioca de 23 anos se mudaria para Sao Paulo, viven­do em urn treme-treme entre as ruas Amaral Gurgel e Marques de Itu. 0 tio custeava toda a estadia. Desde en­tao, nunca mais saiu da regiao central de Sao Paulo. Antes, a desculpa era por estar proximo ao antigo predio da USP na Rua Maria Antonia. Hoje, ele se diz plena mente adapt ado it regiao.

Mesmo sob 0 AI-5, ainda em 1968, Florestan Fernandes e Octavio Ianni (responsaveis pelas cieneias sociais na USP) permaneceram no comando (fato que mudaria em 1969, com as aposen­tadorias compulsorias). Na hora de de­cidir 0 tema da tese, teve que falar com Florestan. Miceli chegou it sala e per­guntou qual tema iria apresentar:

"- Professor Florestan, gostaria de fazer um negocio sobre Caetano e 0

tropicalismo. 0 grupo esta ai, e todo mundo esta interessado.

- Nem pensar, disse Florestan. Isso nao tern distanciamento.

E, apontando para a lousa, retrucou:

- Sao estes os temas que estao faltando, voce pode escolher urn!"

Miceli olhou os tern as e viu 0 pensa­mento do Iseb. Achou todos realmente desinteressantes. Como ele mesmo dis­se, "sal com 0 rabinho no meio das per­nas e tive que aceitar".

Mas a sorte 0 favoreceu. Sorte no desastre: em 1969, Florestan e Ianni fo­ram aposentados pelo AI-5. Os alunos ficaram soltos e os orientadores, rna is desorientados que os estudantes. Os professores pediram aos alunos que en­tregassem as teses 0 mais rapidamente possivel. Como a pesquisa do Iseb tinha avan<;:ado pouco, Miceli aproveitou a deixa e procurou a responsavel pela pos­-gradua<;:ao it epoca, Marialice Foracchi.

Ele come<;:ara urn artigo sobre 0 pro­gram a de auditorio de Hebe Camargo e, ja que eles queriam que as teses fossem entregues rapidamente, 0 mestrando ar­gumentou que essa pesquisa estava mais adiantada do que a do Iseb. Televisao nao estava na lista feita por Florestan, mas Foracchi nao tinha muito que fazer e aceitou.

"Ele foi meu primeiro orientando. Nao sablamos direito como organizar a pos-gradua<;:ao. Tudo era precario, poq­

ca gente trabalhando. Cada orientador recebia dez orientandos por ano. Urn numero absurdo, e as teses demoravam mais que 0 curso. A coisa era tao fragil e inexperiente que Octavio Ianni foi 0 pri­meiro orientador de Miceli, assim que ele se mudou para Sao Paulo. Depois, por

Page 28: Dossie Bourdieu

alguma razao que nao sei, ele mudou, se inscreveu comigo, assim como a esposa dele. Orientei os dois ao mesmo tempo. A minha especializa<;:ao era sociologia do trabalho, e 0 Sergio estava desenvolven­do uma tese sobre industria cultural", relembra Leoncio Martins Rodrigues, seu orientador no mestrado.

A Noite da Madrinha (Companhia das Letras) tinha como objeto de estudo as facet as utilizadas pela apresentadora Hebe Camargo para reproduzir e firmar para 0 publico valores culturais e com­portamentais da classe media brasileira. Para tanto, dentro do seu programa de auditorio, Hebe Camargo assumia dife­rentes papeis socia is que garantiam uma interpreta<;:ao correta dos diferentes codigos simbolicos. A esposa, mulher, mae e madrinha. A televisao seria uma propagadora desses valores.

Leoncio Martins Rodrigues so 0

acompanhou simbolicamente. Seguindo a tradiyao da cadeira de sociologia de Florestan Fernandes, Karl Marx e a dia­letica materialista historica davam os rumos das pesquisas. Quando Miceli pe­diu para que ele 0 orientasse, Rodrigues disse que nao entendia nada de industria cultural, muito menos do programa de auditorio de Hebe Camargo.

"Mas ele insistiu tanto .. . No fun­do nao tive nenhum papel, apenas dei pita cos. Na produ<;:ao de A Noite da Madrinha, ele ja come<;:ou a ler Pierre Bourdieu, e eu, para ser sincero, nao ti­nha interesse nenhum no autor. Marx, nessa epoca, era uma febre na USP, nun­ca se leu e se debateu tanto 0 Capital."

o contexte politico instavel, uma pos-gradua<;:ao incipiente e ,a falta de orienta<;:ao efetiva nao intimidaram 0

jovem carioca. Pelo contra rio, Miceli sentia-se a vontade para guiar os ru­mos de seu proprio trabalho, embora, posterior mente, nao fosse mais enfocar analises de TV, apresentadores nem pro­gramas de audit6rio.

Em 1972, ja come<;:ara a obter des­taque dentro da universidade e da so­ciologia. Urn ana depois, inscrevia-se para 0 doutorado, tambem na USP. A pesquisa sobre os intelectuais brasilei­ros foi levantada durante dois anos. Em 1974, depois das trocas de cartas entre

ele e Bourdieu e com uma longa e dens a pesquisa nas maos, finalmente Miceli viajou a Fran<;:a.

Nesse tempo, foi aprovado em con­curso na Funda<;:ao Getulio Vargas e se beneficiou largamente da institui<;:ao para realizar sua pesquisa.

"A minha tese de doutorado era cara porque havia muito levantamento. Eu tinha cinco assistentes, voce pode ima­ginar? Tive condi<;:6es excepcionais, que provavelmente hoje em dia ninguem mais teria. Dois anos no exterior, mais urn ana fechando 0 texto, onde rna is iria conseguir isso? Eu tinha a bolsa e meu salario (que ganhava mesmo sem dar aulas). 1sso nao acontece mais."

A FGV tinha urn programa de bol­sas para que os professores procurassem centros de pesquisa europeus ou ame­ricanos, e foi 0 que permitiu a ida de Miceli a Fran<;:a para bus car a orienta<;:ao do diretor de estudos da Escola de Altos Estudos em Ciencias Sociais.

Em 1974, quando chegou ao Centro de SOciologia Europeia, ele era 0 lmico latino-americano.

Bourdieu era urn jovem patrao: todos os alunos e orientandos, est ran­geiros ou nao, que 0 procurassem po­diam con tar com sua participa<;:ao. No entanto, com a repercussao que seu tra­balho adquiriu ao Ion go daquela deca­da, Bourdieu se tornaria urn intelectual requisitado.

Mas Miceli teve sorte novamente. Alem da sociabiliza<;:ao com seus assis­tentes, 0 frances acompanhava de perto

a produ<;:ao deles. Em 1975, Miceli de­cidiu que era 0 momenta de voltar ao Brasil para terminar a tese de doutora­do, ap6s urn ana estagiando no Centro de Sociologia Europeia e dois anos en­volvido em uma longa pesquisa sobre a vida intelectual brasileira.

Mas, para sua surpresa, seu mestre frances the incumbiu de urn teste que ele deveria cumprir antes de seu regresso ao Brasil. Miceli se recorda bern do "recado".

"Vamos fazer urn exercicio, urn teste, com esse material e, em vez de pegar esse grupo grande que voce esta selecionando dos intelectuais dos anos 1930 e 40, que e 0 objeto que voce quer estudar, escolha urn grupo menor, que possa testar suas hip6teses."

o ensaio dos autores pre-modernis­tas denominados anatolianos (publicado no Brasil como Poder, Sexo e Letras na Republica Velha) foi uma intima<;:ao que funcionou. Os assistentes todos foram contra a iniciativa de Bourdieu, por acreditarem que 0 texto de Miceli, in­clusive seu frances, nao estava adequado para publica<;:ao em uma revista do pais.

Quando Luc Boltanski e Monique 'de Saint-Martin leram 0 estudo antes de Bourdieu, a rea<;:ao foi imediata, lem­bra Miceli. "1sso e urn absurdo, como alguem fala de feminiliza<;:ao dentro da profissao literaria?" Na opiniao dos jo­yens assistentes, Bourdieu nao reagiria bern, mas ele revelou extremo interesse. Indicou uma melhora de alguns capitulos e financiou a publicayao do texto na revista francesa Actes de •••

"Bourdieu nao era

propriamente humilde;

era muito direto, vivo,

intenso e nada arrogante"

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I DOSSIE I

la Recherche en Sciences Sociales, nu­mero 5-6, que pertencia ao Centro de Sociologia Europeia. Em 1978, Miceli acertou alguns pontos e voltou ao Brasil.

"Eu sabia apenas que queria tra­balhar com assuntos culturais, mas a sociologia brasileira tinha dificulda­de e rna vontade em lidar com isso. 0 marxismo tratava a cultura de forma

anatolianos era proveniente de setores empobrecidos da oligarquia. A literatu­ra era uma das poucas op<;:6es que esses personagens encontravam como forma de aproxima<;:ao das elites dirigentes e de evitar, assim, 0 rebaixamento social.

"Achei interessante 0 estudo dos anatolianos, porque Bourdieu disse que eu nao poderia vol tar ao Brasil com as

"Minha tese tratava OS intelectuais como tais,

e nao de seusideais; isso foi urn choque"

reducionista. 0 trabalho de Bourdieu maos abanando e foi fir me ao dizer 'vai estava em outro patamar, outro nivel de complexidade. Eu estava fascinado por seu trabalho."

o estudo dos anatolianos (nome proveniente do escritor frances Anatole France, assumido pelos primeiros grupos de letrados brasileiros que tinham como referencia a literatura francesa) foi publi­cado pela editora Perspectiva em 1977.

Esse ensaio, curto e denso, pro­porcionou uma visao do que seria de­pois Intelectuais e Cia sse Dirigente no Brasil: 1920-1945. Miceli selecionou urn grupo menor de intelectuais do pre-modernismo, caracterizado pelo aparecimento dos primeiros escritores profissionais atuantes na Republica Velha (1889-1930).

Para que essas trajetorias fossem recontadas, Miceli usou biografias e memorias dos letrados do periodo, co­mo Manuel Bandeira, Lima Barreto e Humberto de Campos.

No entanto, 0 mercado editorial brasileiro nao estava totalmente estabe­lecido. Uma parcela representativa dos

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testar esse caminho que esta tra<;:ando'. Aquela for<;:a dele foi muito importante para mim naquele momento. No inicio ace~tei apenas para nao contraria-lo. Ele me ensinou que nao bastava fazer analise, tinha que tentar fazer uma ar­ticula<;:ao final mais generica."

Poucos meses antes de sua morte, em 2002, Bourdieu ministrava urn cur­so no College de France quando fez re­latos intimos sobre sua origem, os con­frontos socia is que enfrentou quando chegou a Paris e seus estudos de caso na Argelia. Esboro de Autoanalise, titulo em portugues, foi publicado posterior­mente ,pela Companhia das Letras, em tradu<;:ao de Miceli.

"Ele nao era propriamente humilde. Era uma pessoa muito direta, viva e in­tensa, mas nada arrogante. So que era de ideias firmes e danado. Quando cheguei it Ecole, Bourdieu era jovem e fazia suces­so com as mulheres. Urn homem bonito e discreto que sempre usava 0 mesmo ter­no, a mesma cal<;:a, uma roupa ja batida. Ele nao fazia 0 estilo burgues."

Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil, tese defendida em 1978, propu­nha urn metodo inovador ao avaliar as obras dos intelectuais brasileiros sob a interface das trajetorias materia is e origens sociais dentro de suas proprias produ<;:6es. Em uma universidade onde Marx, Gramsci e Althusser eram privi­legiados, falar de domina<;:ao simbolica para sOciologos acostumados a lidar com a luta de classes entre detentores e nao detentores dos meios de produ<;:ao materiais nao causou apenas estranha­mento como perplexidade.

"Acho que a tese era ousada por­que tratava os intel,ectuais como tais, e nao de seus ideais; isso foi urn choque. Ninguem ate entao tinha tratado dos intelectuais, somen.te de suas produ­<;:6es, idea is e categorias. Depois teve outra parte da rea<;:ao. E que na cadeira da sociologia, por causa da tradi<;:ao do Florestan e do mapa da lousa que era essa reconstitui<;:ao da sociedade urba­na industrial em Sao Paulo, cultura nao ocupava destaque. E de repente aparece uma tese que tinha investido louca­mente na reconstitui<;:ao da historia da vida intelectual brasileira. Tambem es­tava pondo em cilicula<;:ao autores que ninguem conhecia, como Raymond Willians, Ringer, Bourdieu."

Luiz Carlos Bresser Pereira abriu a argui<;:ao criticando a tese por tratar de esferas da vida iFltelectual que nao inte­ressavam it sOciologia. Insistentemente ele dizia que a questao sobre os generos das carreiras definidas como masculi­nas, principalmente a literatura, classi­ficada por Miceli como feminina, era no minimo absurda.

Ja Maria do Carmo Campello de Souza - Carmuti, como era apelidada -estava descrente com 0 fato de alguem falar de sociologia da cultura sem usar o sOciologo hungaro Karl Mannheim. Quando estava com a palavra, Sergio ja tinha a resposta na ponta da lingua: "Ele e urn chato, detestavel, e nao quero sa­ber desse cara". Gabriel Cohn arguiu na mesma linha de Maria do Carmo, uma miscelanea te6rica.

A argui<;:ao mais surpreendente foi a de Antonio Candido (que posterior­mente escreveria 0 prefacio). Miceli fora

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seu aluno em duas disciplinas, Estetica Contemporanea e Tragedias Hist6ricas de Shakespeare.

Miceli tinha verdadeiro fascinio por ele. Sua presenc;:a na banca atribuia prestigio e era urn agente legitimador da tese. Afinal, ele conhecia de perto aque­les letrados estudados por Miceli. Para o autor de Os Parceiros do Rio Bonito, justa mente a reconstituic;:ao da vida ma­terial e intelectual desses auto res era 0

pioneirismo do trabalho. Candido foi contra os colegas da

banca por quererem matar 0 que a tese tinha de mais brilhante: a trajet6ria e a origem social de alguns intelectuais que participaram ativamente da construc;:ao politica cultural do Estado Novo.

Alem de defender 0 tema, sua par­ticipac;:ao foi camica. Candido comec;:ou a imitar os autores tratados na tese, e 0

audit6rio caiu na gargalhada. Terminada a tumultuada arguic;:ao,

o recem-doutor queria que Candido fi­zesse 0 prefacio de seu livro. Mas Miceli nao achou grac;:a nenhuma quando 0 leu.

"Quando fui receber 0 pre facio na casa dele, peguei, agradeci 0 reconheci­mento e fui me despedir. Ele disse: 'Nao, voce vai sen tar e ler porque, se nao gos­tar do que escrevi, pode nao publicar'. Quando 0 Ii, logo entendi por que ele tinha insistido tanto."

Segue urn trecho do prefacio: "Estamos diante de urn investigador

honesto que procura levar a verdade 0 mais longe possivel, num terreno es­corregadio e cheio de armadilhas ( . .. ) Digo is to porque neste caso 0 autor acaba sendo tambem objeto do pr6prio estudo ( ... ) Dai seu inquerito ser tenso, e quem sabe algo punitivo em relac;:ao a sua categoria."

"( ... ) Nesta batalha das interpreta­c;:oes ele nem sempre escapa ao risco de condenar em vez de compreender ( ... ) E que no fundo a atitude de Micelli (sic) e polemica, e talvez ele 'julgue' mais do que preciso."

"( ... ) Mas 0 fato e que no processo estao envolvidos os homens, com sua carne e alma, de modo que se con­viria acentuar rna is que urn Carlos Drummond de Andrade 'serviu' ao Estado Novo como urn funcionario que

ja era antes dele, mas nao alienou por is­so a menor parcela da sua dignidade ou autonomia mental ( ... ) dou este exemplo nao apenas para dizer que Micelli (sic) as vezes da realce excessivo a generali­zac;:ao simplificadora."

Miceli comenta: "Eu 0 pubHquei assim mesmo. Acima das criticas, Candido reconheceu que eu tinha urn afastamento hist6rico e pessoal daque­les autores que ele nao tinha, pois 0 livro tratava de figuras que ele conhe­cia muito intima mente, como Carlos Drummond de Andrade."

Miceli acredita que Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil seja seu trabalho mais importante e de maior repercussao.

Ao revelar as condic;:oes materiais e socia is envolvidas nas obras dos inte­lectuais, desmitificava a atividade inte­lectual, denunciando a falta de isenc;:ao.

Essa incipiencia no mercado cultu­rallevava a uma mobilizac;:ao de capitais social (definido por Bourdieu como 0

comprometido e referencial para quem trabalha com socioJogia da cultura e da vida intelectual brasileira . "0 tra­balho de Miceli foi inovador por tra­zer Bourdieu sob nova perspectiva, ja lidando com os intelectua is e dialo­gando criticamente com boa parte das instituic;:oes da epoca. Foi urn livro de enorme importancia para a amplifica­c;:ao de Bourdieu entre n6s."

Ja para a soci610ga Maria Arminda do Nascimento Arruda (USP), Miceli foi o principal ·divulgador de Bourdieu no Brasil. "Bourdieu traz uma nova leitura menos dogmatica, menos marxista e mais simb6lica. lsso ate entab domina­va no Brasil, 0 que empobrecia Marx e nao dava opc;:ao para a gente. Os fr.ank­furtianos fizeram tambem uma analise central da cultura, um lugar privilegia­do para se entender a sociedade e uma visao men os dogm.hira. Bourdieu con- . seguiu consolidar 0 que a Escola Critica havia comec;:ado."

Mesmo nutrindo toda especie de

Miceli tinha fascfnio par Antonio Candido; sua presen~a na banca era um agente legitimador da tese

conjunto de relac;:oes sociais de que 0 individuo dispoe e que favorece a so­ciabilizac;:ao e a manutenc;:ao dos rei a­cionamentos) e cultural (qualificac;:oes produzidas dentro de urn sistema es­colar formal) para a aproximac;:ao com as classes dirigentes por parte desses intelectuais.

Segundo 0 soci610go Ricardo Benzaquen Cluperj), Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil e urn estudo

fascinio pelas teoria s de Bourdieu, 0 doutorando brasileiro nao aplicava tu­do em sua tese. Um dos conceitos mais difundidos ate hoje pelo fil6sofo fran­ces - "campo" - nunca foi aplicado por Miceli "porque a ideia de campo nem existia no caso brasileiro. Fa lei sobre is­so a Bourdieu, na epoca. Ele achava que respeitava meu material. Eu conversava com as ideias dele, 0 que e diferente de aceitar tudo", condui Miceli. B

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