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Dissertacao Patricia Valim

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  • Universidade de So PauloFaculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

    Departamento de Histria

    Da Sedio dos Mulatos Conjurao Baiana de1798: a construo de uma memria histrica.

    Patrcia Valim

    Dissertao de Mestrado apresentadaao programa de Ps-Graduao emHistria Social do Departamento deHistria da FFLCH, sob orientaodo Prof. Dr. Carlos Alberto de MouraRibeiro Zeron.

    So Paulo2007

    1

  • Universidade de So PauloFaculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

    Departamento de Histria

    Da Sedio dos Mulatos Conjurao Baiana de1798: a construo de uma memria histrica.

    Patrcia Valim

    Dissertao de Mestrado apresentadaao programa de Ps-Graduao emHistria Social do Departamento deHistria da FFLCH, sob orientaodo Prof. Dr. Carlos Alberto de MouraRibeiro Zeron.

    So Paulo2007

    2

  • s minhas moas, Ana Carolina eMaria Eduarda. Amor pra

    sempre...

    3

  • RESUMO

    Em 8 de novembro de 1799, quatro homens foram enforcados e esquartejados em praapblica na cidade de Salvador. Condenados por conspirarem contra a Coroa de Portugal, osalfaiates Joo de Deus do Nascimento e Manuel Faustino, e os soldados Lucas Dantas deAmorim Torres e Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga foram considerados pelosDesembargadores do Tribunal da Relao da Bahia como sendo os nicos protagonistas deum movimento conhecido atualmente como Conjurao Baiana de 1798. O trgico fimdesses homens foi reputado pela historiografia oitocentista como sendo uma anomaliasocial e manifestao da barbrie habilmente abortada pelas autoridades rgias. Sob a penados intelectuais do sculo XX, entretanto, o evento foi considerado como a mais populardas revoltas que antecederam a emancipao poltica do Brasil, em 1822. Sendo que oexemplo mais notvel, nesse caso, a importante obra de Affonso Ruy, A PrimeiraRevoluo Social Brasileira. Dessa feita, aps as comemoraes do primeiro centenrio daIndependncia do Brasil, percebe-se que a pena histrica encarregou-se no s de alargar asbases sociais do evento, originalmente circunscrita aos mdios e baixos setores dasociedade baiana da poca, como, a partir de uma inverso historiogrfica dos plos dasanlises o transformou em um dos tournants da nossa histria nacional. Da Sedio dosmulatos Conjurao baiana de 1798, portanto, a histria da memria histrica de umevento ptrio cujo legado simblico de seus protagonistas foi retomado de tempos emtempos e parece ser destinado a servir de instrumento privilegiado para a reflexo ao saborde distintas conjunturas.

    Palavras-chaves: Conjurao Baiana de 1798; Memria Histria, Historiografia.

    4

  • ABSTRACT

    On November 8th of 1798, four men were hanged and quartered in a public square in the cityof Salvador. Condemned for conspiracy against the Royal Government of Portugal, thetailors Joo de Deus do Nascimento and Manuel Faustino and the soldiers Lucas Dantas deAmorim Torres e Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga were identified by the chief judge ofthe Tribunal da Relao of Bahia as the only protagonists of a movement known nowadaysas Conjurao Baiana de 1798. The tragic end of these men was considered by the 19thcenturys historiography as a social anomaly and a demonstration of the barbarity skilfullysuppressed by the royal authorities. However, according to the intellectuals of the 20thcentury, the event was the most popular revolt that preceeded the political emancipation ofBrazil, in 1822 and A Primeira Revoluo Social Brasileira, a book by Affonso Ruy, is anotable example of this interpretation. After the celebrations of the first centenary ofBrazilian Independence, it is possible to say that the historians not only spreaded out thesocial basis of the event, originally confined to the medium and low portions of Bahiassociety at that time but also by making an historiographical inversion of the extremepoints of the analyses - transformed it in a turning point of our national history. To sum up,From the Sedition of the mulattoes to the Conspirao baiana de 1798, here we have ahistory of the historical memory of a native event which simbolic legacy of its protagonistshas been constantly rehabilitated in order to act as a powerful instrument of analysis due todifferent circumstances.

    Key Words: Conjurao Baiana de 1798; Historical Memory; Historiography.

    5

  • Agradecimentos

    Final de uma etapa sempre um momento de balano. Nos ltimos quatro anos, o

    caminho percorrido para a redao final desta pesquisa nem sempre foi fcil. Ocupar-me

    com a memria histrica dos baianos de 1798, prospectando a pertinncia de se reabrir a

    discusso, significou uma obstinao at ento desconhecida. Uma espcie de metafsica do

    menos vir a ser mais algum dia... S que, desta vez, a tarefa no foi to simples quanto

    convencer o gerente do meu banco. Foi necessrio, primeiro, convencer a mim mesma

    sobre a pertinncia das minhas inquietudes, para, depois, tentar convencer os demais que a

    minha teimosia, ao menos neste caso, fazia algum sentido.

    As dificuldades no foram apenas essas. Deparei-me com situaes absolutamente

    inslitas ao longo do caminho. Desconsider-las neste momento significaria que elas foram

    renegadas ao confortvel e intocvel lugar das memrias indesejveis. No o caso.

    Significaria tambm minimizar o papel quase pedaggico que elas tiveram durante a

    pesquisa. Com essas situaes eu pude perceber que muito mais tranqilo, menos

    complicado, lidar com histrias alheias do que com a nossa; muito mais confortvel

    tergiversar sobre o passado do que intervir na circunstncia e em si prprio. Seja como for,

    o tempo, sempre ele, se encarregou dos desdobramentos dessas situaes. Olhando para

    isso tudo, hoje, no final desta etapa, a sensao de inadequao diante do embrutecimento

    alheio cedeu lugar para um sentimento de pertinncia, de segurana. bem verdade que

    isso s foi possvel porque, durante esse perodo, eu tive imensa sorte de contar com o

    amor, carinho e a amizade de vrias pessoas queridas. Por isso e por outras tantas coisas eu

    gostaria de agradecer as pessoas que de uma maneira ou de outra sempre estiveram por

    perto.

    s minhas meninas, Ana e Maria. Amor de muito!!! Vocs foram o meu cho em

    vrios momentos da minha vida e so os sonhos mais lindos que eu poderia ter. Sou a maior

    f e no tem nada que substitua a alegria e o prazer de conviver diariamente com vocs.

    Aos meus pais, Cida e Gilberto, pelo amor em todos os momentos da minha vida. Agradeo

    aos dois pela fora durante o perodo de pesquisa; por financiar boa parte dos meus sonhos;

    pela compreenso nos momentos de contratempo e pela enorme dedicao s meninas nas

    minhas ausncias. Ao meu querido irmo Jlio Csar pelo amor. Ter sonhos o primeiro

    6

  • passo para realiz-los. Ao meu irmo Marco Antnio, querido, sempre me apoiando,

    ajudando e aconselhando com muito carinho. Homem ntegro, de carter invejvel e tudo

    isso sem perder a ternura! Seu sua maior f! Obrigada por tudo! A Aline, minha cunhada,

    valeu pela fora e pelo carinho com as meninas!

    Ao Marcos Gonzaga, pelo amor s nossas filhas e por estar sempre presente na

    minha ausncia. Apesar de ocupar o ingrato papel social de ex-marido, voc um grande

    amigo. Este trabalho no seria possvel sem a sua ajuda. Ao Nelso Stepanha, pela tinta com

    a qual transformamos a nossa histria em uma grande amizade. Valeu pela fora em vrios

    momentos, pelos bate-papos e pelo dicionrio de filosofia na Augusta.

    Ao Rodrigo Ricupero, por tudo, sempre! Pela amizade construda ao longo desses

    anos. Pela militncia poltica mesmo quando programaticamente estivemos em lados

    opostos. Felizmente, foram poucas vezes. mais confortvel t-lo por perto! Ao Mrcio

    Fncia, amigo dos bons; daqueles que sempre me faz voltar pra terra! Fernanda Luciani,

    querida amiga que eu tive a sorte de encontrar no ltimo ano de pesquisa. Valeu pela fora

    na bibliografia e pelo carinho nos momentos finais! Ao amigo de todas as horas no alm-

    mar, Prof. Dr. Jos Augusto dos Santos Alves. Pelo apoio e orientao durante a estadia

    lisboeta, pelo congresso na UCLA, pelas provocaes polticas e pelas constantes gentilezas

    bibliogrficas.

    Aos amigos e companheiros de quinto esquerdo em Lisboa: Lus Filipe Silvrio

    Lima, Evandro Domingues, Micha, Luciana Gandelman, Jaqueson da Silva. Agradeo a

    alegria dos encontros regados a imperiais e cafs naquele rigoroso inverno de 2003.

    Ermelinda Pataca, que alm de Lisboa, compartilhou comigo momentos de grande

    entusiasmo histrico na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e no Instituto Histrico e

    Geogrfico Brasileiro. Aos amigos de ps: gatha, Breno, Evando Melo, Fbio Joly,

    Fabiola Holanda, Luana Chnaiderman, Lucas Jannoni, Gustavo Tuna, Igor de Lima, Jair,

    Joana Climaco, Joana Monteleone, Juliana Monzani, Laurent de Saes, Lidiane, Ligia Sena,

    Luiz Vailati, Miguel Palmeira, Nelson Cantarino, Priscila Bonne Fee, Rafael Benthien,

    Srgio Alcides, obrigada pelas leituras rigorosas do meu trabalho, pela alegria dos nossos

    encontros e a fora de sempre.

    7

  • Ao meu orientador, Prof. Dr. Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron, especial

    agradecimento por compartilhar um projeto de pesquisa cujas dimenses e desafios eu

    mesma desconhecia. Agradeo a liberdade com a qual conduziu a orientao deste trabalho.

    Ao Prof. Dr. Bernardo Ricupero pela inspirao acadmica e intelectual. Profa.

    Dra. Raquel Glezer, pela orientao de argumentos e idias elaboradas pelas inspiradas

    discusses realizadas no curso de Historiografia, e pelo apoio em vrios momentos. Aos

    dois sou imensamente grata pelas valiosas contribuies como membros da banca

    qualificadora e no decorrer deste trabalho.

    Ao professor Fernando Antonio Novais pelas valiosas contribuies durante o curso

    de Historiografia realizado nos momentos finais deste trabalho. Tenho a maior admirao

    pelo senhor e pela gentileza com a qual sempre tratou os alunos do curso. Agradeo ao

    Professor Rogrio Forastieri pela generosidade bibliogrfica e por participar do seminrio

    da ps-graduao com valiosas contribuies.

    Ctedra Jaime Corteso, em particular Profa. Dra. Vera Lcia Amaral Ferlini,

    pela concesso da bolsa de pesquisa que possibilitou minha ida a Portugal. Por me aceitar

    no PAE, pelo enorme apoio na etapa final deste trabalho e pelo devir. CAPES, que

    concedeu a bolsa no ltimo ano e meio de pesquisa. Meu especial agradecimento aos

    funcionrios do setor de ps-graduao da fefelche, Bete, Andra e Priscila.

    Ao Marquinhus, um grande amor que eu tive a sorte de encontrar quando a vida

    estava um tanto confusa. Obrigada por tudo: pelo amor, pelo carinho, pelas generosas

    tintas, pela intensidade e por essa histria linda.

    SUMRIO

    8

  • Alguma Explicao ............................................................................................... p. 10Captulo 1: Prmio e Castigo: a histria das devassas da Conjurao Baiana

    de 1798 .................................................................................................................... p. 221.1 Circunscrevendo possibilidades ..................................................................... p. 221.2 Algumas outras possibilidades ....................................................................... p. 65Captulo 2: Memrias da revolta baiana de 1798: a represso bem sucedida

    ou a insistente sublevao? ................................................................................... p. 732.1 A(s) revolta(s) baiana(s) de 1798 na pena dos contemporneos ................. p. 732.1.1 Frei Jos do Monte Carmelo ....................................................................... p. 732.1.2 Jos Venncio de Seixas ............................................................................... p. 852.1.3 Lus dos Santos Vilhena ............................................................................... p. 902.2 Os contemporneos e a revolta baiana de 1798 ............................................ P. 99Captulo 3: A revolta baiana de 1798 no oitocentos: uma outra histria

    ptria ...................................................................................................................... p. 1103.1 Incio Accioli de Cerqueira e Silva ............................................................... p. 1103.2 John Armitage ................................................................................................. p. 1173.3 Francisco Adolfo de Varnhagen ................................................................... p. 1313.4 Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro .......................................................... p. 142Captulo 4: A Conjurao Baiana de 1798 no sculo XX: da punio

    exemplar revoluo malograda ......................................................................... p. 163Parte I: O regionalismo soteropolitano: foram quatro os Tiradentes da

    Conjurao Baiana de 1798? ............................................................................... p. 1644.1 Francisco Vicente Viana ................................................................................. p. 1644.2 Francisco Borges de Barros ........................................................................... p. 1674. 3 Braz Hermenegildo do Amaral ..................................................................... p. 177Parte II: Das contradies do sistema colonial revoluo malograda ........... p. 1864.4 Caio Prado Jnior ........................................................................................... p. 1864. 5 Affonso Ruy de Sousa .................................................................................... p. 191Parte III: O debate atual sobre a Conjurao Baiana de 1798: a esperana

    venceu o medo? ...................................................................................................... p. 202Concluso ............................................................................................................... p. 222Bibliografia ............................................................................................................ p. 231

    9

  • Alguma explicao.

    Fazer poltica passar do sonho s coisas, do abstrato aoconcreto. A poltica o trabalho efetivo do pensamento social; apoltica a vida. Admitir uma quebra de continuidade entre a teoriae a prtica, abandonar os realizadores a seus prprios esforos,ainda que concedendo-lhes cordial neutralidade, renunciar causa humana. A poltica a prpria trama da histria.

    Maritegui1.

    Da sedio dos mulatos Conjurao Baiana de 1798: a construo de uma

    memria histrica um trabalho de histria da histria. Um trabalho desta natureza um

    estudo sobre a manipulao de um fenmeno histrico pela memria coletiva a partir de

    consensos estabelecidos pela historiografia. Nesta perspectiva de pesquisa, histria,

    historiografia e memria so conceitos fundamentais que se interpenetram constantemente

    de forma dinmica, ainda que sejam fenmenos de representao do real que em essncia

    no so da mesma natureza. Parte-se, portanto, da existncia de uma relao dialtica entre

    esses conceitos.

    Carlos Alberto Vesentini2, ao tratar das relaes dialticas entre esses conceitos,

    afirma que a produo historiogrfica uma construo, uma representao de diferentes

    seguimentos sociais, que o autor identifica como um processo absolutamente pertinente

    construo da memria histrica. luz da Revoluo paulista de 1930, o autor demonstrou

    que a memria histrica pode ser freqentemente apropriada e re-elaborada pelo poder, em

    circunstncias diversas. Para o autor vencedor e poder, identificados, reiteram o mesmo

    procedimento de excluso3. Isso porque, ainda segundo o autor, a construo da memria

    histrica relaciona-se com a luta poltica, na qual a memria amplamente difundida

    sociedade aquela que triunfou a partir da excluso, i.e., das disputas com as verses dos

    segmentos vencidos. A memria histrica que prevalece, com efeito, a memria dos

    vencedores, e, segundo o autor, a investigao sobre o processo de construo dessa

    1J. C. Maritegui. Do sonho s coisas: retratos subversivos. So Paulo, Boitempo: 2005. Traduo de LuizBernardo Perics. 2 Carlos Alberto Vesentini. A teia do fato: uma proposta de estudo sobre a memria histrica. So Paulo:Hucitec, 1997. 3 Idem, p.17, passim.

    10

  • memria pressupe, inevitavelmente, trilhar as vias pelas quais essa memria imps-se

    tanto aos seus contemporneos quanto a ns at os dias de hoje.

    Vesentini vai alm em suas consideraes acerca dos meandros da construo da

    memria histrica de um determinado evento. O autor afirma em tom provocativo que em

    alguns casos necessrio entender a histria como uma memria e perceber a integrao

    que ocorre de maneira contnua entre a herana recebida e projetada at ns. O autor

    sugere que a ateno seja voltada, nesse caso, para o dispositivo ideolgico com o qual o

    historiador confere objetividade para seu objeto de reflexo: temas fatos e agentes, neste

    processo, tm existncia objetiva independentemente do processo de luta e da fora de

    sua projeo e recuperao, como tema, em cada momento especfico que o retoma e o

    refaz4.

    Para tanto, Vesentini chama a ateno para a necessidade de o historiador depurar

    fontes e fatos em bruto, como que lhes dando certa qualidade cientfica, liberando-os do

    mundo das paixes e percepes parciais interessadas de forma a garantir, anlise, pontos

    firmes de apoio. Nesse caso, as verses contemporneas, em que as disputas entre as

    memrias ainda so turvas e impedem a viso do conjunto, devem ser isoladas, cotejadas e

    depuradas para que, segundo o autor, se possa abrir caminho cincia e s suas

    interpretaes. O rastreamento dessas vises, de acordo com Vesentini, equivaleria

    gnese do processo de construo da memria histrica. Entretanto, o prprio autor alerta

    para o fato de que deslocar subjetividades e idias, do fato em si, uma pretenso

    extremamente complicada, uma vez que a subjetividade da idia no se coloca como

    exterioridade. Ou ela reside no prprio interior do fato, constituindo-o, ou ele no nos

    aparece como fato5.

    Da que autor sugere que o pesquisador da memria histrica deve, antes de mais

    nada, buscar o prprio movimento do fato no caminho da unicidade que torna possvel a

    construo da ampla temporalidade caracterstica da memria do vencedor; da unificao

    de percepes divergentes advindas de fontes opostas, que se chocaram, confluram ou se

    anularam no processo mesmo de luta. Uma vez localizada a realizao da histria em um

    ponto-chave e de sua memria unitria, organizada de tal forma qualificar o tempo e

    absorver todo um conjunto de momentos e fatos, segundo Vesentini, o historiador deve,

    4 Ibidem, p. 18.5 Idem, Ibidem, p. 163.

    11

  • ento, se concentrar nas anlises e revises que recuperaram aquele conjunto abrangente, de

    modo que tambm se integrem naquela ampla memria. Ser esse o caminho trilhado neste

    trabalho para que o processo de construo da Conjurao Baiana de 1798 possa ser

    analisado.

    A histria da histria da Conjurao Baiana de 1798 um processo longo e

    ininterrupto de disputas e controvrsias, originado da interpretao dos acontecimentos da

    revolta baiana de 1798 pelas autoridades locais, em 1799. Desde a sua origem at hoje, o

    que as autoridades rgias denominaram de Sedio dos mulatos percorreu um longo

    caminho. Foi: sedio dos mulatos, para Jos Venncio de Seixas (1798);

    sublevao, para o carmelita descalo Frei Jos do Monte Carmelo (1798); insistente

    sublevao, para Lus dos Santos Vilhena (c.1798-1800); sublevao intentada, para

    um annimo (c.1798-1800); revoluo e movimento, respectivamente na 1a. e 2a. edio

    para Varnhagen; conjurao de Joo de Deus para Joaquim Caetano Fernandes

    Pinheiro; sublevao, para Francisco Vicente Vianna; conspirao republicana, para

    Brs do Amaral; primeira revoluo social brasileira, para Affonso Ruy; articulao

    revolucionria, para Caio Prado Junior; movimento revolucionrio baiano (em 1961)

    e sedio de 1798 (em 2003), para Lus Henrique Dias Tavares; movimento

    democrtico baiano (em 1969), e revoluo dos alfaiates (em 2004), para Ktia

    Mattoso; ensaio de sedio (edio de 1996) e inconfidncia baiana (tambm em

    1996), para Istvn Jancs; inconfidncia baiana, para o compilador dos Autos da

    Devassa e Seqestro da Biblioteca Nacional conspirao dos alfaiates, na 2a. edio de

    1998 dos Autos das Devassas; e na verso popular, conhecido por conjurao baiana

    de 17986.

    Chamamos ateno para o fato de que Conjurao uma palavra que deriva de

    Conjura, que significa uma forma de resistncia tipicamente aristocrtica, herdeira direta

    das Conjurationes das ligas medievais; Sedio significa perturbao da ordem pblica ou

    tumulto popular; Inconfidncia significa revelao de segredo confiado; Conspirao

    significa tramar contra; Sublevao significa levante, amotinar ou iniciar uma revolta, e

    Revolta significa indignao ou protesto. Considerando os significados dos termos e as6 Cf. Lus Henrique Dias Tavares. Da Sedio, op.cit., p. 30. O historiador apresenta a diferena em relao denominao do evento. Ampliamos o rol dos autores incluindo, inclusive, o prprio historiador que altera adenominao ao longo dos trabalhos publicados.. Cf. Antonio Manuel Hespanha e Jos Mattoso (Orgs).Histria de Portugal O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Editorial Estampa, Vol. 4, 1998.

    12

  • hipteses aventadas nesta pesquisa, utilizar-se- a denominao Conjurao Baiana de

    1798, uma vez que a variao dos nomes , como se ter oportunidade de mostrar, fruto de

    uma constante disputa entre os que versaram sobre o evento quando ele ainda estava em

    processo de investigao e, depois, ao longo dos sculos XIX e XX.

    Entre a historiografia que versou sobre a revolta baiana de 1798 ao longo dos

    sculos XIX e XX, ainda que s avessas, assente que o carter popular do evento designa

    a participao de homens livres pobres como alfaiates, milicianos e outros ofcios, bem

    como a participao de escravos domsticos. Com efeito, para o sculo XIX, a Conjurao

    Baiana de 1798 foi uma tentativa de revolta que conclamou o povo pelos pasquins

    sediciosos cuja redao e contedo demonstram a nfima relevncia social dos partcipes

    (Accioli, 1835); um arremedo da Revoluo Haitiana e uma chamada incendiria da

    Revoluo Francesa na Bahia, cujos conspiradores no eram homens de talento nem de

    considerao, posto que a pouca valia dos revolucionrios se deduz do modo estranho como

    projetaram a execuo dos planos (Varnhagen, 1857); uma revolta, cujos cabeas foram

    quatro infelizes alucinados pela m interpretao que fizeram das idias dominantes na

    Revoluo Francesa que, dada a ignorncia visvel dos chefes do movimento, deram-lhe

    uma cor socialista pouco prpria para angariar a simpatia e o apoio das classes mais

    ilustradas e influentes da sociedade colonial baiana (Fernandes Pinheiro, 1860); e, uma

    sublevao popular resultante das idias proclamadas pela Revoluo Francesa, e que foi

    habilmente abafada por d. Fernando Jos de Portugal e Castro, ento governador da Bahia

    (Vicente Viana, 1893).

    Para o sculo XX, contudo, a Conjurao Baiana de 1798 teve suas bases sociais

    ampliadas e foi considerada um levante com a participao de vrios setores, inclusive a

    participao da fina flor da sociedade baiana, que assumia propores assustadoras

    alastrando-se do Recncavo ao centro da Capitania, resultando na execuo de quatro

    homens que tiveram o mesmo papel de Tiradentes (Borges de Barros, 1922); uma sedio

    que evidencia sua relevncia pelo grande nmero de proslitos que teve, os quais no eram

    somente pessoas elevadas da colnia, mas homens que constituam a massa de uma nao

    que, no obstante aos severos castigos, continuaram a causa at 1822 (Braz do Amaral,

    1927); uma articulao revolucionria realizada entre as camadas populares da capital

    baiana: escravos, libertos, soldados e pequenos artesos que estiveram lado a lado a alguns

    13

  • intelectuais (Prado Junior, 1933); a primeira revoluo social brasileira ou revoluo

    proletria, dado o ambiente de operrios, artesos e soldados que propagavam as doutrinas

    socialistas e irreligiosas da Frana, embora os atos e as palavras socialistas tenham sido mal

    ouvidas e nunca absorvidas (Affonso Ruy, 1942); um projeto de revolta, que teve como

    protagonistas um grupo de homens livres inseridos nas camadas mdias e baixas da

    sociedade urbana, cuja inteno foi propor uma aliana poltica com a elite local (Mattoso,

    1969, 2004); um levante, na medida em que houve elaborao de um projeto de ao

    poltica por homens livres, mas socialmente descriminados como mulatos, soldados,

    artesos, ex-escravos e descendentes de escravos , cujo objetivo era alterar as relaes de

    poder vigentes a partir da idia de uma repblica que garantisse igualdade (Dias Tavares,

    1969, 1975, 2003); o primeiro ensaio de aliana de classes em torno de propostas

    explicitamente polticas, que significou a face soteropolitana da crise do Antigo Sistema

    Colonial (Jancs, 1975. 1996, 2001); um levante de elementos subalternos que buscavam

    a ordem perdida daquela sociedade a partir de manifestaes proto-nacionalistas que

    reapareceriam em 1822 (Motta, 1967, 1996); um projeto de insurreio armada, planejada

    pelos artesos pardos que, de to amargurados e anti-clericais, eram to avessos aos

    brasileiros ricos quanto dominao portuguesa (Maxwell, 1977, 1998); uma inconfidncia

    protagonizada por gente mida, artesos, soldados, na grande maioria mulatos, alguns

    escravos entre eles, cuja componente nacionalista marginal, uma vez que no h, assim

    como em Minas em 1789, o ataque ao ponto fundamental da dominao portuguesa: o

    exclusivo de comrcio (Alexandre, 1993).

    Nenhum dos nomes da revolta baiana de 1798, ou mesmo as interpretaes supra

    citadas, abarcam sozinhos todos os significados do evento. Mas cada um deles funciona

    como um prisma para observarmos o processo de construo da memria histrica de um

    evento ptrio, cujo legado simblico de seus protagonistas foi retomado de tempos em

    tempos e parece ser destinado a servir de instrumento privilegiado para a reflexo ao sabor

    de distintas conjunturas como marco de referncia e ruptura popular.

    * * *

    14

  • Em uma tpica manh quente da mesma cidade de Salvador, em 22 de agosto de

    2003, o Ministro da Cultura Gilberto Passos Gil Moreira abriu um encontro que tratou da

    questo de gnero e raa com um discurso que versou sobre a relevncia de polticas

    pblicas para a incluso social dos brasileiros discriminados. O Ministro chamou a ateno

    para as aes do governo federal como condio estruturante da verdadeira democracia,

    legitimando-as como o ponto de partida para a efetivao da permanente promessa, por

    suposto ainda no cumprida, de um governo brasileiro representativo de fato. Para tanto,

    afirmou o Ministro

    [...] nesta cidade de So Salvador da Bahia, em 1798 e l se vaimuito tempo! homens pardos, pretos, mestios todos, levantaram-se pela transformao da Bahia em uma terra de liberdade.Postulavam os princpios contemporneos da Revoluo Francesa:a liberdade e a igualdade. Aqueles soldados e alfaiates do povoconceituaram muito precisamente a liberdade que propugnavam.Diziam eles, em um dos seus panfletos revolucionrios, que aliberdade era o estado feliz do no abatimento. Entendiam quenada deveria abater, rebaixar, humilhar o cidado perante seusemelhante nem perante o Estado. Compreendia-se o abatimentoeconmico, o rebaixamento social, a humilhao racial, a exclusopoltica, o abatimento moral. A felicidade como materializao daliberdade s teria sentido pela realizao radical da igualdade.Ainda hoje este ideal est vivo!7

    Um ano antes, em 2002, no decorrer da campanha presidencial que elegeria Lula

    presidncia do Brasil, a populao de modo geral e os alunos do ensino mdio da

    modalidade suplncia, em particular, foram contaminados pela esperana. Aguardavam

    ansiosos pelo dia em que um de seus pares, um ex-sindicalista da regio, assumiria o mais

    alto posto da burocracia estatal, a Presidncia da Repblica Federativa do Brasil. A

    possibilidade indita de um governo popular que efetivamente os representasse nas esferas

    internas do Estado, fez da escola um dos espaos privilegiados para que os alunos-

    trabalhadores refletissem sobre a historicidade da sua participao na Histria. Sociedade

    essa que, em seus termos, at o momento insistia em exclu-los do universo da poltica. Foi

    7 Conferncia do Ministro da Cultura Gilberto Passos Gil Moreira, publicada pela assessoria de comunicaodo MINC em 22 de agosto de 2003, e acessado em 08 de julho de 2005, no stio: www.cultura.gov.br/notcias

    15

  • nesse espraiar que o tema das revoltas coloniais malogradas no final do sculo XVIII foi

    abordado em sala de aula e suscitou manifestaes de toda sorte.

    O livro didtico8 sugerido pela coordenao do curso abordava o tema das referidas

    revoltas vislumbrando-se a Independncia como o fim do caminho. Assim, foi via 1822,

    que o livro encadeou o acontecimento mineiro de 1789 e o baiano de 1798, carregando na

    tinta o processo dialtico de amadurecimento da ao poltica separatista. Para a concluso

    do tema, o recurso adotado no livro um quadro adaptado da obra de Fernando Antonio

    Novais, Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808), com a seguinte

    citao:

    A Inconfidncia Mineira e a Conjurao Baiana podemlegitimamente considerar-se movimentos precursores daemancipao poltica do Brasil. Elas formam um crescendo detomada de conscincia que, pelo menos para o Nordeste, no seconteve com a vinda da corte e as mudanas que isso implicou9.

    Embora a abordagem buscasse as contradies e as similitudes dos eventos,

    tornando o episdio baiano tributrio do mineiro, a partir da distinta composio social

    que as revoltas adquirem significao no livro didtico. Assim, exceo de Tiradentes, a

    Inconfidncia Mineira aparece como um movimento poltico liderado por membros da elite

    mineira colonial e a Conjurao Baiana, um movimento liderado por pessoas simples,

    como mulatos, libertos e at mesmo escravos10. Para a verificao da aprendizagem, o

    livro indica uma atividade na qual os alunos escrevessem a respeito das semelhanas e

    diferenas dos movimentos de 1789 e 1798, relacionando-as com o trecho da obra de

    Carlos Guilherme Mota:

    O conceito de independncia surge mais ntido nas Minas Gerais:a situao colonial pesa para esses homens proprietrios; oproblema mais colonial que social. [...] na Bahia de 1798, ainquietao orientada por elementos da baixa esfera e a revoluo pensada contra a opulncia [...]11.

    8 Jos Jobson de Arrusa. & Nelson Piletti. Toda a Histria: Histria Geral e Histria do Brasil. So Paulo:tica, 2000.9 Op. cit. p. 257.10 Idem.11 Carlos Guilherme Mota. Idia de Revoluo no Brasil. So Paulo: Cortez, 1986, p. 115, apud, Jos Jobsonde Arruda, op.cit.

    16

  • No exemplar do professor do livro didtico, no item com as respostas das atividades

    propostas, duas questes eram fundamentais para uma resposta correta em relao ao tema:

    a dicotomia da composio social dos episdios Mineira/elite X Baiana/popular , e a

    relao dos movimentos com a Independncia do Brasil. As respostas das atividades

    seguiram o padro estabelecido pelo livro didtico, contudo um aluno apresentou o tema da

    seguinte forma:

    [...] a Bahia [Conjurao Baiana de 1798] foi um exemplo de lutados companheiros por melhores condies de trabalho, salriosjustos e por oportunidades de participao naquele governo.Infelizmente eles [partcipes] no tiveram uma liderana capazchefiar o movimento e brigar contra os poderosos, por isso foramenforcados. [...] No sei se eles queriam uma Revoluo, achomesmo que nem saberiam fazer naquele momento. Foi preciso muitotempo para que o povo aprendesse que chegada a nossa hora, otempo de vingarmos os destinos daqueles pobres coitados. [...] nolutamos pelos privilgios da burguesia como os mineiros[Inconfidncia Mineira de 1789], mais (sic) por dignidade, por umlugar na sociedade, por trabalho, comida e casa, assim comoaqueles baianos12.

    Os trechos acima sugerem que tanto o Ministro da Cultura quanto o aluno, cada um

    a sua maneira, re-interpretaram o que as autoridades rgias denominaram de sedio dos

    mulatos, em 1799, para, no sculo XXI, transform-lo no ponto de partida de um longo

    processo de amadurecimento poltico que efetivaria a promessa de um governo democrtico

    e representativo de fato. Para o Ministro, a cidade eixo central do discurso, o lcus

    privilegiado para a efetivao dos ideais democrticos ainda vivos e que animaram as lutas

    dos baianos dos tempos idos e estavam ainda presentes, como promessa a ser cumprida, em

    2003.

    A redao do aluno, por seu turno, silencia a Independncia do Brasil e indica um

    outro evento no horizonte: a eleio de um lder sindicalista Presidncia do Brasil. Cabe

    lembrar novamente que, nos idos de 2002, a vitria de um lder popular aparece no trecho

    como a efetivao da promessa de um governo representativo de fato e a participao da

    classe trabalhadora nas estruturas internas do Estado projeto que o aluno reconhece como

    seu e, concomitantemente, dos baianos de 1798. H referncia precria condio de vida

    12 A redao utilizada nesta pesquisa foi gentilmente cedida e elaborada por um aluno do 2o. ano do EnsinoMdio da modalidade Educao de Jovens e Adultos, no 2o. semestre de 2002.

    17

  • daqueles baianos e ausncia de possibilidade de participao naquela sociedade, mas,

    paradoxalmente, no o limite poltico e social para os homens livres em uma sociedade

    escravocrata, imposto pelo Estado absolutista e pelo esquema interno de foras articulado

    pela elite colonial, o principal ponto de significao do evento na redao do aluno. Ao

    contrrio, o ponto de significao a ausncia de amadurecimento poltico dos baianos de

    1798, i.e., a redao ressalta a incapacidade de articulao poltica dos baianos e a falta de

    uma liderana popular e de projeto poltico consistente.

    No toa, na ausncia de um lder que levasse a cabo as reivindicaes dos

    baianos de 1798 que o aluno v a razo do malogro do evento e do derivado enforcamento

    dos quatro homens pardos em praa pblica condenados por crime de lesa-majestade. Nessa

    perspectiva, a representao do evento aparece como a etapa inicial de um longo processo

    de amadurecimento poltico da classe popular que, como vimos, no representou o perigo

    que as autoridades da poca vislumbraram, pois para o aluno, tanto na Bahia de 1798 como

    no Brasil de 2002, buscava-se um espao naquela sociedade e no a subverso da sua

    ordem.

    A redao do aluno e o discurso do Ministro, ainda que no sejam textos

    historiogrficos e contenham elementos aparentemente anacrnicos, por suposto

    partidrios, estabelecem uma relao extremamente fecunda a partir da confluncia

    temporal de projetos polticos contemporneos no processo de atualizao do evento baiano

    de 1798. Digno de nota o fato de que o carter popular e os ideais democrticos so os

    eixos da punio exemplar na lgica do poder rgio em 1799, e ainda permanecem como

    pontos de forte identificao poltica do evento como promessas a serem cumpridas.

    Os dois excertos apresentados, ainda que pontualmente distintos, fazem parte de um

    mesmo movimento no qual a memria histrica se sobreps histria e, tal como a fora de

    um arete, forneceu simbolicamente os parmetros para uma espcie de acerto de contas no

    presente com o legado do nosso passado colonial. Parece inegvel que, em ambos os casos,

    h a idia de um evento cujas categorias histricas teriam entrevistas sua prpria

    superao, confluindo para um outro evento, esse sim dotado da idia de mudana. Nesse

    processo, se por um lado, a memria histrica discurso do Ministro e redao do aluno ,

    se realimenta de consensos estabelecidos pela historiografia, por outro lado, cabe histria

    pr em xeque os ngulos de coerncia desses consensos que compem e realimentam a

    18

  • memria histrica. Caberia saber, ento, que implicaes levaram as autoridades rgias a

    denominarem de Sedio dos mulatos um evento que, passados dois sculos, se

    transformou em Conjurao Baiana de 1798 denominao do livro didtico -, um evento

    que traz consigo a idia de mudana, de ruptura? Teriam as autoridades rgias avizinhado

    uma ameaa socialmente legitimada que significasse, poca, uma ruptura com Portugal?

    Quais foram os partcipes do evento, segundo as autoridades locais? A circunscrio social

    do evento, definida pelos Desembargadores do Tribunal da Relao da Bahia, foi

    corroborada pelos depoimentos e assentadas dos partcipes? Por que os quatro rus

    enforcados e esquartejados foram os nicos que sofreram a pena ltima por crime de lesa-

    majestade? Seriam potencialmente revolucionrias as idias dos partcipes da revolta baiana

    de 1798? Todos os partcipes tiveram a mesma percepo dos acontecimentos? Quais as

    percepes que os contemporneos tiveram dos acontecimentos? Teriam eles entrevisto a

    possibilidade de ruptura com Portugal nas aes dos partcipes da revolta? O que os

    contemporneos absorveram das aes das autoridades locais na conduo das

    investigaes? Quais as causas da revolta? Os protagonistas? O projeto da revolta baiana de

    1798? Haveria apenas um projeto? Como a historiografia do sculo XIX interpretou a

    revolta baiana de 1798? Haveria uma histria ptria oitocentista hegemnica? Qual a

    documentao consultada no oitocentos? Os autores oitocentistas leram os

    contemporneos? Como a historiografia novecentista versou sobre a revolta baiana de

    1798? Haveria uma histria hegemnica acerca do evento? Se sim, qual? Se no, quais so

    as histrias? Qual a documentao consultada? Como foi consultada? Os contemporneos

    foram incorporados nas anlises? Como? Finalmente: a revolta baiana de 1798, como um

    marco de referncia e ruptura da Independncia do Brasil estaria na agenda poltica dos

    partcipes de evento tal como aparece no livro-didtico, no discurso do Ministro e na

    redao do aluno?

    E como promessa a ser cumprida apresentam-se os seguintes caminhos: no captulo

    I desta dissertao procurou-se reconstituir a histria das devassas da Conjurao Baiana de

    1798. A partir das anlises das informaes dos Autos das Devassas do evento percebe-se

    que na lgica punitiva do poder local e das autoridades metropolitanas, a circunscrio das

    bases sociais do evento decorreu de uma clivagem social com vistas manuteno de uma

    certa ordem cara, no aqum e no alm-mar, conjuntura do final do sculo XVIII. Por um

    19

  • lado, puniu-se exemplarmente quatro homens livres, pobres e pardos e, por outro, negociou-

    se com um grupo de notveis que, alm de colaborarem efetivamente nas denncias e

    execuo dos rus, tinham em comum tinham o fato de serem todos proprietrios dos

    escravos indiciados nos processo e agentes da administrao local. Essas informaes,

    entrementes na prpria documentao h muito analisada, foram desconsideradas pelas

    autoridades rgias e, como se ter oportunidade de demonstrar, pela historiografia que

    versou sobre o evento ao longo dos sculos XIX e XX.

    O captulo II ocupou-se dos relatos contemporneos de Jos Venncio de Seixas,

    Lus dos Santos Vilhena e Frei Jos de Monte Carmelo sobre a revolta baiana de 1798, que

    analisados em conjunto so menos esquemticos do que a lgica do poder local. Os relatos

    indicam outras possibilidades e pontos de significao distintos dos que foram

    circunstanciados pelos Desembargadores do Tribunal da Relao da Bahia na concluso dos

    processos, sobretudo no que se refere composio social e natureza do evento. No

    obstante, os intelectuais oitocentistas fizeram letra morta dessas informaes, subsumindo a

    participao indireta do grupo de notveis. No sem surpresa, os intelectuais oitocentistas

    mantiveram em suas anlises os eixos definidos pelo poder rgio em 1799. Todavia, quando

    eles analisam o evento h certas diferenas na aparente hegemonia do mundo dos iguais: se

    para Francisco Adolfo Varnhagen o evento baiano foi um arremedo da Revoluo Haitiana

    habilmente abortada pelas autoridades locais; para Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro,

    entretanto, diante da iniqidade das autoridades dos tempos coloniais era legtimo o direito

    rebelio dos povos, ainda que o cnego adjetivasse os protagonistas da revolta como as

    fezes daquela sociedade. O debate poltico subjacente s interpretaes sobre a Conjurao

    Baiana de 1798, a partir da segunda metade do oitocentos, foi balizado pelos vrios

    significados do processo de independncia de 1822. Para Fernandes Pinheiro h uma

    diferena entre a administrao dos tempos coloniais e a sagrada mansido instituda pela

    administrao do segundo Reinado, poca bastante desgastado.

    No captulo III, dividido em trs partes, analisou-se a historiografia que versou sobre

    o evento no sculo XX. nesse perodo que o evento sofre mutaes pela pena do saber

    histrico, quando deixa de ser considerado uma anomalia social, uma sedio dos mulatos

    nos termos das autoridades rgias, para ser reputado como a Conjurao Baiana de 1798. A

    historiografia novecentista, a partir da Primeira Repblica, inverteu os plos das anlises

    20

  • oitocentistas quanto relevncia da baixa abrangncia social, por um lado, e, por outro,

    suspendeu o conservadorismo oitocentista e passou a analis-lo luz da crise do Antigo

    Sistema Colonial. A partir desse processo de inverso historiogrfica, o evento

    interpretado como contradio e tentativa de superao do prprio sistema colonial. As

    aes dos partcipes em alguns casos como manifestao proto-nacionalistas e, ao fim e ao

    cabo, como a etapa popular do processo de emancipao poltica do Brasil.

    Com efeito, conferido ao evento uma forte coeso ideolgica em torno de um

    projeto de nao predefinido. o caso das anlises de Istvn Jancs e Carlos Guilherme

    Mota. O impacto ideolgico dessa vertente explicativa foi to forte que, at hoje, se

    reconhece o sentido democrtico subjacente no projeto e nas aes dos homens livres,

    pobres e pardos que participaram da Conjurao Baiana de 1798. Mesmo nos trabalhos de

    Ktia Mattoso e Lus Henrique Dias Tavares que, cada um a sua maneira, procuram

    compreender o evento como a expresso de uma srie de contradies e ambigidades

    prprias do perodo. Todavia, a natureza separatista, democrtica e popular so apenas

    sutilmente questionadas.

    21

  • Captulo 1. Prmio e Castigo: a histria das devassas daConjurao Baiana de 1798.

    Prmio e castigo so os dois plos sobre que estriba toda amquina poltica.

    D. Rodrigo de Souza Coutinho, 179813.

    1.1 Circunscrevendo possibilidades.

    Passados pouco mais de dois meses das primeiras prises decorrentes da

    publicizao de pasquins de contedo revoltoso na manh de 12 de agosto de 1799, d.

    Fernando Jos de Portugal, ento governador-general da Bahia, envia uma extensa carta a d.

    Rodrigo de Souza Coutinho, Ministro de d. Maria I14 explicando os procedimentos adotados

    na consecuo das Devassas instauradas para se descobrir, respectivamente, o(s) autor(es)

    dos pasquins e os partcipes do movimento. Justificando-se, inicialmente, pelas

    providncias imediatamente tomadas que pedia matria to delicada e melindrosa, o

    governador afirma que para descobrir os autores dos papis ele praticaria todos os mais

    procedimentos que julgasse necessrios. E assim o fez. Aps as prises e as informaes

    obtidas nas primeiras acareaes, o governador pondera com d. Rodrigo sobre os meios

    mais adequados para se descobrir os rus

    [...] reflectindo eu ao meio da devaa, posto que o mais conforme aLey neste cazo, no he regularmente o [meio] mais eficaz para sedescobrirem os Reos dessa qualidade de delicto, que procuram usarde todo o desfarce, segredo e cautela quando o cometem, para quefaltem testemunhas oculares que o comprovem, e que se devio fazertodas as averiguacoens, ainda que incertas e duvidosas [...]15.

    O caminho duvidoso escolhido por d. Fernando foi o exame de vrias peties

    antigas que se encontravam na Secretaria de Estado e Governo do Brasil, sob o comando de13 Incio Accioly de Cerqueira e Silva, Memrias Histricas e Polticas da Bahia, anotadas por Braz doAmaral, 6 vols. Bahia: Imprensa Oficial, 1919-1940, vol. III, p. 95.14 Biblioteca Nacional, doravante BN, Sesso de Manuscritos, I-28, 26, 1, no. 13. Carta de 20 de outubro de1798.15 Idem.

    22

  • Jos Pires de Carvalho e Albuquerque. O objetivo era confrontar as letras dos documentos

    oficiais com a letra dos pasquins sediciosos. Note-se que os documentos entregues ao

    governador eram documentos referentes s tropas urbanas de milcia, circunscrevendo o(s)

    ru(s) antecipadamente a um determinado grupo daquela sociedade, os milicianos. O exame

    resultou na descoberta de duas peties que indicavam ser de autoria de Domingos da Silva

    Lisboa, homem pardo16. A priso foi decretada ainda que esse indcio fosse remoto e

    falvel, pois o governador ouviu dizer ser o dito Domingos algum tanto solto de

    lingoa17. Para alm da frouxido verbal do acusado, pesou sobre ele seu ofcio.

    Domingos da Silva Lisboa nasceu na Freguesia da Nossa Senhora da Encarnao,

    em Lisboa, era filho de pais desconhecidos, solteiro, requerente nos Auditrios e Alferes do

    Quarto Regimento de milcias da Salvador. Foi preso aos quarenta e trs anos de idade e foi

    descrito no termo de sua priso, hbito e tonsura, pelo escrivo Verssimo de Sousa Botelho

    como um

    [...] homem pardo de Estatura alta groo [sic] do Corpo, Cabeagrande cabelo atado e Crespo, testa alta, sobrancelhas finas, epretas, olhos grandes e pardos, nariz groso e afillado, boca grande,Lbios finos digo Lbios groos [sic], Rosto comprido, e cheio debarba, estaua uestido Com camisa de bertanha, Siroula de pano deLinho, Sapatos nos pes [...]18.

    Era praxe para a averiguao de crimes, sejam eles quais fossem, a elaborao do

    termo de priso, hbito e tonsura no mesmo dia ou no dia seguinte priso do acusado para

    assegurar sua integridade fsica a partir da descrio de suas caractersticas19. No caso de

    Domingos da Silva Lisboa chama a ateno o fato de que a data exata de sua priso no

    consta nos autos. Entretanto, pode-se asseverar pelo auto de achada e aprehenso,

    realizado em 17 de agosto de 1798, que o acusado se no foi preso no mesmo dia, foi no dia

    seguinte. Contudo, seu termo de priso foi elaborado oito meses depois, precisamente no16 Auto de exame, e combinao das Letras dos pesquins [sic], e mais papeis sedicciozos [sic], queapparecero nas esquinas, ruas, e Igrejas desta Cidade que se acho incorporados na Devassa, que estadebaixo do N. 1 e do papel que elles esto escritos, com as letras de Domingos da Silva Lisboa naspeticoens, que foro achadas em sua caza, e com o papel limpo, que ahi tambem se achou, e tudo se achajunto ao auto da achada, e aprehenso constante do appenso N. 9. In: Autos da Devassa da Conspiraodos Alfaiates. Salvador: Imprensa Oficial do Estado, 1998, vol. 1, pp. 86-89. Doravante ADCA. 17 Ibidem; ADCA, vol 1, p. Asentada, p. 62. 18 Cpia do termo de prizo, habito e tonura feita ao Reo Domingos da Sylva Lisboa. In: ADCA, vol.1, p.143.19 Arno Wehling. Administrao portuguesa no Brasil de Pombal a D. Joo (1777-1808). Braslia: FUNCEP,1986, vol. 6. Ver, especialmente, o captulo VII, Administrao Judiciria Itinerrios possveis dosprocessos da justia colonial, pp. 151-172.

    23

  • dia 02 de maro de 1799. Esse estranho procedimento tambm ocorreu com o prximo

    acusado.

    A suspeita de d. Fernando em relao a Domingos da Silva Lisboa no se confirma.

    Dez dias aps a referida priso apareceram dois bilhetes destinados ao Prior dos Carmelitas

    Descalos, provando que no fora Domingos da Silva Lisboa o autor dos papis, e o tal

    meio utilizado para a averiguao dos cabeas do movimento era de fato bem duvidoso.

    No obstante, o governador novamente procura evidncias nas tais peties da Secretaria de

    Estado e encontra trs documentos que comprovam, dessa vez, que os pasquins foram

    escritos por Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga, homem igualmente pardo e soldado do

    Primeiro Regimento de Linha da Praa da Salvador e Quarta Companhia de Granadeiros20.

    Ocorre que dessa vez pesou sobre o ru um requerimento atrevido enviado certa feita

    pelo acusado para que d. Fernando

    [...] o nomeasse Ajudante do quarto Regimento de Milcias destaCidade, composto de homens pardos, alegando que estes devio serigualmente attendidos que os brancos, a que no deferi, e queconservava em meu poder pela sua extravagncia [...]21.

    Por analogia ao teor da carta, o governador chega ao contedo dos pasquins

    sediciosos, uma vez que os papis tambm inculcavo aquela mesma igualdade entre os

    pardos, pretos e brancos. Isto posto, faz no s conjecturar mas persuadir ser elle [Luiz

    Gonzaga das Virgens e Veiga], e no outrem o autor dos Papeis Sediciozoz. Luiz Gonzaga

    das Virgens e Veiga nasceu em Salvador, filho legtimo de Joaquim da Cunha Rob e de

    Rita Gomes e poca de sua priso tinha trinta e seis anos. Foi descrito pelo escrivo

    Verssimo de Sousa Botelho como um

    [...] homem pardo de ordinria estatura cheio do Corpo, tem acabea Redonda, e examinando a no lhe achei Coroa, ou Sinaldella, e Sim o Cabelo que h preto, e algum tanto trocido [sic], ecrescido por detrs, e com falta delle adiante, Rosto Comprido,orelhas grandes testa alta, olhos pretos, sobrancelhas pretas, efinas, naris afillado, boca Rasgada, Lbio groos a barba feixada,

    20 Auto de combinao de letra dos pesquins [sic], e papeis sediciosos, que apparecero nas esquinas, ruase Igrejas desta Cidade, incorporados na Devassa debaixo do n. 1 com a letra de Luiz Gonzaga das Virgensnas peticoens que esto no appenso n. 4 e papeis juntos por linha ao appenso n. 5, e com a letra deDomingos da Silva Lisboa nas peticoens,.... In: ADCA, vol. 1, pp.123-124.21 BN, Sesso de Manuscritos, I-28-26, 1, n. 13.

    24

  • est vestido Com Camisa de bertanha, e Siroulas de pano de Linho,embrulhado com hum Cazuz de pano azul, Calado somente comsapatos, e sem fiuellas [...]22

    Apesar de ter sido preso em 23 de agosto de 1798, seu termo de priso foi elaborado

    em 24 de fevereiro de 1799, uma semana antes do termo de priso do ento primeiro

    acusado, Domingos da Silva Lisboa. Sentenciado o acusado em Relao, de maneira

    bastante duvidosa e falvel, d. Fernando cria ter resolvido com a maior prontido o crime

    sobre os papis sediciosos. Todavia, no foi o que ocorreu.

    No dia 25 de agosto de 1798, dois dias aps a priso de Luiz Gonzaga, o governador

    surpreendido por trs denncias cujo teor davam conta de que outro pardo, Joo de Deus

    do Nascimento havia convidado algumas pessoas do Regimento de Artilharia para uma

    reunio que seria realizada naquela noite, no Campo do Dique do Desterro, cujo objetivo

    era

    [...] formar huma rebelio, e revoluo, que entravo outraspessoas que to bem chamara ao seu partido rogando-lhe que seachasse na noite do dia seguinte em sua caza, para ir dali com elle[Joo de Deus] e os mais, ao Campo do Dique, a fim de ajustarem omodo, meios, e occazio em que havia ter efeito a projectadarevoluo[...]23.

    A reunio no Campo do Dique, como se sabe, foi abortada. Uma das razes foi

    haver entre os partcipes quem reconhecesse os denunciantes e desconfiasse de suas

    presenas. Aps esse episdio, no dia 26 de agosto do mesmo ano, outra devassa foi

    instaurada para investigar o crime de conjurao, sob os cuidados do desembargador

    Francisco Sabino da Costa Pinto. Vrias pessoas foram presas ao longo de seis meses.

    Dentre elas algumas apenas prestaram esclarecimentos, outras foram consideradas culpadas

    a priori, pois o que ocorreu foi a clivagem social para que houvesse diferenciao entre os

    acusados, conforme d. Fernando explicitou a d. Rodrigo de Sousa Coutinho:

    22 Copia do termo de prizo habito e tonura feita ao Reo Luis Gonzaga das Virgens. In: ADCA, vol. 1,pp. 142-143.23 Denncia publica jurada e necessria que d Joaquim Joze da Veiga, homem pardo, forro, cazado eofficial de ferrador [...]; Denncia publica [...] que d o Capito do Regimento Auxiliar dos homenspretos Joaquim Joze de Santa Anna [...]; Denuncia publica [...] Joze Joaquim de Serqueira, homem brancoe Soldado Garnadeiro do primeiro Regimento pago desta Praa [...]. In: ADCA, vol. II, pp. 910-920.

    25

  • [...] o contexto dos Papeis sediciozoz, to mal organizados, postoque sumamente atrevidos e descarados; o caracter e qualidade doseu autor, e das principaes cabeas que trataram da rebelio taescomo Luiz Gonzaga das Virgens, Joo de Deos Alfaiate, LucasDantas, e Luiz Pires lavrante, todos quatro homens pardos, depssima conducta, e faltos de Religio, me fez capacitar, que nestesattentados, nem entravo pessoa de considerao, nem deentendimento, ou que tivessem conhecimento e Luzes, o que melhorse tem acontecido pelas confissoens destes Ros [...]24.

    Segundo as informaes dos autos, a situao no era exatamente a narrada na carta

    por d. Fernando Jos de Portugal. Paralelamente s prises, os desembargadores Manoel

    Magalhes Pinto e Avellar de Barbedo e Francisco Sabino lvares da Costa Pinto colhiam,

    desde o dia 17 de agosto de 1798, os depoimentos dos presos e coordenavam as

    Asentadas, depoimentos de testemunhas que, nesse caso, eram senhores de engenho,

    comerciantes, duas mulheres pardas e alguns homens livres que alguma relao tiveram

    com os acusados. As informaes que se apreende dos depoimentos dos acusados e de

    algumas testemunhas indicam a existncia de uma sociabilidade poltica entre os partcipes

    do evento que no esteve apenas circunscrita s mdias e baixas camadas daquela sociedade

    como d. Fernando insistia em afirmar para d. Rodrigo de Sousa Coutinho, pois por ocasio

    do relato da priso do primeiro acusado, Domingos da Silva Lisboa estivera [...] aliciando

    e convidando para este fim [revolta], como convidaro, a vrios Escravos de diversos

    Senhores, e alguns soldados, e outros indivduos que foram sucessivamente prezos [...]25.

    D. Fernando Jos de Portugal e Castro, ao longo da carta e mesmo na conduo do

    processo demonstra certo cuidado no que respeita procedncia social dos homens que

    participaram da revoluo projectada. Ao longo de cinco meses dos depoimentos para se

    confirmar o autor dos papeis revoltosos e nervosos, as testemunhas afirmaram que

    ouviram dizer sobre o contedo dos ditos papis, mas que no tinham certeza de seu

    autor. O testemunho de Francisco Pereira Rabello, homem branco, Alferes do Tero

    Auxiliar das Ordenanas e morador em Itapagipe, cercania de Salvador, bastante

    significativo. Afirma o Alferes

    24 Carta de 20 de outubro de 1798. BN Sesso de Manuscritos.25 Idem.

    26

  • [...] que publicamente tem ouvido dizer que aparessero hunscertos papeis atrevidos pellas Esquinas, porem que elle [...] nem temnoticia de quem os fizesse ou para isso concorresse. E [...] estandoelle no Citio do Bomfim e dando-se a noticia da prizo de Domingosda Sylva Lisboa, elle testemunha dissera que o dito Lisboa no tinhacido Autor dos papeis mas sim que seos maiores e que so lhesfaltava ter a Tropa a seo favor [...]26.

    Doutor Manoel Magalhes Pinto de Avelar e Barbedo no verificou a informao do

    depoente preferindo relat-la ao governador. No bastasse a denncia de que os superiores

    das tropas estavam envolvidos no movimento, outro depoente, Jos Fernandes de Miranda

    no s confirmou a informao como acrescentou que, quando estivera em uma casa indo

    para So Bento, soubera que

    existio quinhentos homens ocultos para darem execuo aoprojecto a que se dirigio os sobreditos papeis [pasquins], e que elletestemunha [...] tinha ouvido contar em huma conversa de humaspoucas [corrodo] pessoas cujos nomes no se lembra27.

    Ciente da possibilidade dos comandantes das tropas urbanas serem os cabeas do

    movimento e comandarem um grande nmero de homens para a execuo do levante, d.

    Fernando no comenta essas informaes na carta enviada a d. Rodrigo de Souza Coutinho,

    preferindo ganhar tempo na consecuo das devassas, sem contudo verificar a procedncia

    dessas denncias. Como as informaes evidenciavam uma maior amplitude social dos

    envolvidos, a conduo dos processos caminhava para um engenhoso mecanismo de

    silenciamento das informaes.

    Nos depoimentos e na acareao entre o ento acusado Domingos da Silva Lisboa e

    as testemunhas Bento Jos de Freitas e Thomas Pereira da Fonseca, foram longos oito

    meses e os encontros ocorreram em trs momentos diferentes. Ainda sob a condio de

    principal suspeito, no dia 27 de agosto de 1798, quinze dias aps a publicao dos pasquins

    em locais pblicos, os desembargadores perguntaram a Domingos da Silva Lisboa se era ele

    o autor dos pasquins publicados nas esquinas da Salvador e se reconhecia ser dele a letra de

    algumas peties que estavam na Secretaria de Estado. Domingos da Silva Lisboa

    26ADCA, vol. 1, p. 61. Grifo meu.27 Idem.

    27

  • respondeu negativamente a primeira pergunta e positivamente a segunda. O desembargador,

    contudo

    [...] foi instado que [Domingos da Silva Lisboa] dissesse averdade, porquanto pello exame judicial a que se tinha procedido naprezena delle Menistro, feita huma exacta observao eCombinao, entre os sobreditos requerimentos por ellereconhecidos, e os sobreditos papeis revoltozos, se tinha achado, eassentado pellas razoens ahy alegadas, que ero estes escrituradospor elle respondente, e a Letra delles a sua prpria no obstante quedesfigurada, ou desfarada algum tanto28.

    A insistncia sobre a letra dos pasquins ser do acusado continuou por mais quatro

    perguntas acrescidas da informao que porquanto hera de voz pblica que o acusado

    falara temerria e audaciozamente sobre matrias de Governo, e Religio posto serem

    estes, para o desembargador, fortes indcios de que o acusado era capaz de escrever os

    pasquins. Aps as negativas do acusado sob a argumentao de que vivia catholicamente e

    sob as Leys de seo Governo, uma nova pergunta foi feita referente ao teor das obras

    aprendidas na casa do acusado pelas autoridades29. Assim, foi proguntado (sic) se elle

    respondente [Domingos da Silva Lisboa] reconhecia como seos, huns veros feitos a

    Liberdade, e igualdade, que se aprehendero em sua Caza, imediatamente a sua prizo30.

    O acusado respondeu que os tais versos no eram seus e que se foram encontrados

    entre seus pertences porque teriam sido postos por um homem chamado Manoel

    Henriques que ficara abrigado em sua casa por dois meses, e tinha o intuito de lhe

    prejudicar, pois fora expulso por ser ele muito bbado. Com a mesma veemncia sobre a

    letra dos pasquins, insistiu-se com o acusado sobre a pertena dos versos, dado que

    imediatamente aps a sua priso, Domingos da Silva Lisboa havia pedido ao carcereiro que

    fosse at a sua casa retirar um versos sobre a liberdade que haviam sido feitos pello

    defunto Salvador Pires31, ou no seu tempo.

    28 ADCA,vol. 1, p. 93.29 Cf. Auto de aprehenso nos bens achados em caza de Domingos da Silva Lisboa, e depozito delles. ADCA,vol. I, pp. 81-82. Nos autos consta a apreenso do seguinte: huma caixa grande j velha, e dentro dellabastantes Livros, e alguns desencadernados, e hu boceta grande de folha, huma estante de pes com cento, esetenta e nove Livros grandes e pequenos de varios Autores, e hum de Capa de pergaminho ainda em brancocom alguns asentos [...]. 30 ADCA., vol I, p. 94.31 Salvador Pires de Carvallho e Albuquerque, acadmico renascido, morreu em 1795 e era um dos filhos deJos Pires de Carvalho e Albuquerque, proprietrio do morgado dos Pires e do morgado da Casa da Torre deGarcia dvila, herdado pela prtica de endogamia familiar e social pelo casamento com d. Leonor Pereira

    28

  • O acusado respondeu afirmando que era [...] o sobredito Henriques, o qual dizia

    ter Introduo, e conhecimento com o defunto Salvador Pires de Carvalho. Ainda que o

    desembargador tivesse mencionado o nome do proeminente defunto, nada mais disse a seu

    respeito naquele momento. J ao final do depoimento, as perguntas feitas referiam-se s

    obras encontradas na casa do acusado, entre elas hum papel revolucionario intitulado

    Orador dos Estados Geraes32, pelo que o acusado reconheceu serem suas sem, contudo,

    concordar com a doutrina que elas incitavam. Todavia, ser na segunda etapa de

    depoimentos com Domingos da Silva Lisboa, realizada alguns meses depois, aos vinte e

    seis dias do ms de fevereiro de 1799, que sero esclarecidas as questes apenas apontadas

    no primeiro depoimento. A principal questo da segunda etapa para os desembargadores

    foram as obras encontradas na casa do acusado e que o mesmo insistiu que no eram suas.

    Entretanto, o acusado modificou sua resposta com uma informao preciosa:

    o dito papel [versos sobre liberdade e igualdade] lhe confiarasendo vivo Salvador Pires de Carvalho, para que elle Respondenteovesi (sic) e sobre ele proferise o seu sentimento, [...] porem que elleRespondente nunca aprovara as maximas que o dito papel de suapropria letra, e nem era caps elle Respondente dizer o Juzo[corrodo] semelhantes doutrinas pelo digo tendo vividocatolicamente, e como bom Vasalo33.

    O desembargador afirmou que essas declaraes eram falsas e fraudulentas, uma vez

    que o acusado havia inventado a existncia do tal Manoel Henriques para se livrar das

    acusaes, no obstante a minuciosa descrio que Domingos da Silva Lisboa fornecera

    sobre o dito Manoel Henriques34. Em contrapartida, seria por demais ingnuo

    considerarmos que passou desapercebido ao desembargador o fato do acusado haver

    afirmado no ter ele relaes com Salvador Pires de Carvalho e Albuquerque para em

    Marinho de Arago. Amealhou uma das maiores fortunas da Bahia de meados do sculo XVIII. Cf. LuizAlberto Torres Moniz Bandeira. O Feudo. A casa da torre de Garcia dvila: da conquista dos sertes independncia. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000, captulo X, pp. 313-353; Pedro Calmon.Introduo e notas ao catlogo genealgico de Frei Jaboato. Salvador: Imprensa Oficial do Estado, 1985. 32 Cf. Ktia M. de Queirs Mattoso. Presena francesa no Movimento Democrtico Baiano de 1798.Salvador: Itapu, 1969. Sobre o teor da obra Orador dos Estados Gerais, ver especialmente o captulo 2.Cabe ressaltar que, segundo a autora, a obra fazia parte apenas das bibliotecas de outros envolvidos naConjurao Baiana de 1798, nomeadamente, Cipriano Jos Barata de Almeida e Hermgenes Francisco deAguillar Pantoja. 33 ADCA,vol. 1, p. 98.34 Idem.

    29

  • seguida alterar seu depoimento e indicar que no s tinha relao como esta deveria ser bem

    prxima. Todavia, esta questo foi retomada pelo prprio acusado apenas na acareao

    entre ele, o carcereiro Bento Joze de Freitas e o escrevente Thomas Pereira de Afonseca, no

    dia 06 de maro de 1799.

    Iniciou-se a acareao com a leitura das perguntas e respostas obtidas nos

    depoimentos de Domingos da Silva Lisboa e perguntou-se se o acusado concordava com o

    teor das informaes. Ratificando-as, o acusado presenciou o testemunho do carcereiro

    Bento para depois confirm-lo. O carcereiro confirmou que o acusado lhe dissera sobre

    humas Stiras francezas que lhe dera Salvador Pires de Carvalho j defunto e se tirio

    [...] aprehendido os seos papeis ou se havia alguma pessoa que lhe fosse tirar as ditas

    Stiras ou versos35. Domingos da Silva Lisboa no s confirmou a informao como fez

    questo de mencionar novamente o modo pelo qual ele tomara conhecimento das tais

    Stiras, pelas mos de Salvador de Carvalho e Albuquerque.

    Novamente, nada foi dito a respeito. Chamado Thomaz Pereira de Afonseca a

    participar da acareao e feita as perguntas e ratificaes de praxe, o acusado mais uma vez

    cita o dito Salvador, entretanto acrescenta mais uma nova informao:

    [...] hera verdade o que o Cariante [Thomaz] tinha declaradoporquanto elle mesmo Cariado [Domingos] he que tinha dado aoCariante para tresladar o referido papel, porem que fora por ordemdo defunto Salvador Pires de Carvalho que o dera a elle Cariado,assim como igualmente ao dito Cariante outro papel intitulado e quenomeia Secreto dos Jesutas36, o qual tambem ouvera [sic] domesmo Salvador Pires de Carvalho37.

    35 Ibidem, p. 100.36 H fortes indcios de que Segredo dos Jesutas a denominao utilizada nas reunies sediciosas para olibelo editado originalmente em latim Monita privata Societatis Jesu, em 1612 por um ex jesuta polacobanido da Companhia. Depois de circular por mais de um sculo sob a forma manuscrita em Portugal, foipublicado primeiro em 1767 ainda em lngua latina, depois, j na lngua portuguesa, a obra foi editada em1820, 1834, 1859, 1881, 1901 e 1910. Ocorre que por ocasio da expulso dos jesutas, em 1759, Pombalmandou que se aumentasse a divulgao do manuscrito para que se tivesse uma imagem negativa dos jesutas,que poca eram vistos como uma organizao destituda de qualquer interesse no progresso das naes. Noltimo quartel do sculo XVIII, entretanto, tem-se notcia de que as edies do manual foram realizadas emPortugal e na Frana, por centros republicanos e maons, o que sugere que o manuscrito pode ter sidoinstrumentalizado em termos polticos para o movimento em questo. Cf. Jos Eduardo Franco & ChristineVogel. Monita Secreta: instrues secretas dos jesutas. Histria de um manual conspiracionista. Lisboa:Roma Editora, 2002. Agradeo ao Prof. Eduardo Franco por enviar-me a obra. 37 ADCA, vol. 1, p. 101.

    30

  • Dessa vez no havia como o desembargador desconsiderar a informao de que

    obras proibidas pelo aparato repressivo da Coroa no s circulavam na Salvador da poca

    junto com folhetos de propaganda anti-jesutica como eram traduzidas e discutidos em

    reunies de carter eminentemente poltico. Nitidamente acuado, o desembargador pergunta

    o motivo pelo qual Domingos da Silva Lisboa logo de incio no afirmara ter sido ele que

    mandara tresladar o referido papel, antes pelo contrrio afirmara lhe tinha sido

    Comunicado pelo sobredito Salvador Pires de Carvalho para ser elle interpor o seu

    pareser38. Domingos da Silva Lisboa respondeu:

    [...] perturbado da prizo se no lembrara de fazer a referidadeclarao ao longo da primeira vez que fora proguntado [sic]. E[...] por duvidar que fosse acreditada a sua comunicao com o ditosenhor Salvador Pires de Carvalho visto ser elle Cariado de inferiorqualidade e ultimamente por ter se passado intervallo de annos, eelle Cariado ter perdido a lembrana do mesmo papel e ignorar seestava ou no em seu puder39.

    O desembargador encerrou a acareao e nada mais foi perguntado a respeito. A

    resposta de Domingos da Silva Lisboa trouxe luz que a despeito da macula da cor, raa e

    nascimento serem os critrios definidores das posies sociais da sociedade soteropolitana,

    em 1798, havia uma fluda relao de homens provenientes de vrios setores, mas

    especialmente entre senhores de escravos e de terras, escravos urbanos e os milicianos das

    tropas urbanas. O depoimento do dito Domingos, sugere, ainda, que essa sociabilidade tinha

    um fim especfico que superava a cordialidade entre os convivas, pois as reunies ocorridas

    nas casas dos senhores de escravos e nas tabernas tinham como tema recorrente a poltica

    local, as idias de francezia40 e os acontecimentos revolucionrios em Frana.

    38 Ibidem.39 Ibidem. Grifo meu.40 A idia de Francezia concebida poca, via de regra, relacionava-se s doutrinas que questionavam oEstado Absolutista, especialmente os princpios revolucionrios franceses difundidos pelos Clubes, aps 1789.Em ofcio ao governador d. Fernando Jos de Portugal e Castro, datado de 21 de fevereiro de 1792, Martinhode Melo e Castro expressou com bastante clareza a idia que os agentes metropolitanos faziam do termo.Afirma o Ministro [...] servindo para espalhar a semente da Insurreio entre Vassalos dos seus respectivosSoberanos, [...] j de escritos sediciozos, e incendirios, conseguindo por estas abominveis maquinaoens oalterar em alguns deles a tranqilidade de que gozavo os Povos debaixo do Sbio e paternal Governo dosseus naturaes e Legtimos Imperantes [...]. Sobre a francezia chegar aos domnios coloniais portugueses, oMinistro alertou: Com a propagao destes abominveis princpios atearam os mesmos Clubs nas ColniasFrancezas o fogo da Revolta, e da insurreio, fazendo levantar os Escravos contra os seus Senhores, eexcitando na parte Franceza da Ilha de So Domingos huma Guerra Civil entre uns e outros, em quecometero as mais atrozes crueldades, que jamais se praticaro [...]. BN Sesso de Manuscritos, doc. II

    31

  • Nas declaraes dos depoentes, muitos deles forneceram detalhes do contedo dos

    pasquins e dos pressupostos polticos dos partcipes, por ouvir dizer a respeito, porque

    tiveram conhecimento dos fatos por ouvirem de voz pblica ou ouvir dizer

    publicamente. Diante do nvel de boato que caracterizava aquela sociedade, as autoridades

    locais no desconheciam o fato de que havia uma intensa circulao das notcias francesas e

    da revoluo projectada nesta Praa. A circulao dessas idias no parece ter sido a

    maior preocupao das autoridades, a despeito da censura rgia. O problema era saber o uso

    que se poderia fazer dos princpios de francezia por um setor especfico daquela

    sociedade, pois o circuito das idias comeava pelo alto com os homens principais e as

    informaes eram rapidamente pulverizadas entre os homens livres, pobres, pardos e

    escravos citadinos41.

    Aos doze dias do ms de fevereiro de 1799, teve incio o depoimento de outro

    acusado de participar da projectada revoluo e ser sectrio dos princpios franceses. O

    acusado era Francisco Muniz Barreto de Arago, branco, filho de Antonio Felix de Arago

    e Souza e Bernarda de Assumpo Muniz Barreto, solteiro e professor rgio de gramtica

    na vila do Rio de Contas, na Comarca de Jacobina42. O Desembargador Francisco Sabino

    lvares da Costa Pinto, inicia o interrogatrio perguntando para o acusado sobre as suas

    relaes sociais na Salvador e se ele era sectrio das idias de francezia. O acusado

    responde que em 1797, vivera na cidade do Salvador e fora vizinho de Jos Borges de

    Barros homem pardo, que pouco tempo antes tinha vindo aqui [Salvador] da Ilha da

    Madeira, com o dizignio de se estabelecer em negcio [...]43. O desembargador pergunta

    sobre o teor das conversas entre o acusado e Jos Borges. O professor responde que

    todas as suas conversaoens com Joze Borges se reduzio areflexes sinceras, sobre o governo economico desta Terra, e sobreo Estado Poltico da Europa, segundo as poucas notcias, que a elleambos podio chegar a este respeito, sem que jamais costumassemconcorrer na dita caza outras algumas pessoas44.

    33.29.29. 41 Cf. Florisvaldo Mattos. A comunicao social na Revoluo dos alfaiates. Salvador: AssembliaLegislativa do Estado/Academia de Letras da Bahia, 1998, 2a. edio. Ler, especialmente, o captulo 5: 1798:a teia da comunicao. Pp. 71-90.42 Perguntas a Francisco Moniz Barreto de Arago, homem branco e prezo nas cadeas da Relao. In:ADCA, vol. 2, pp. 886-902.43 Idem, p. 887.44 Ibidem.

    32

  • As perguntas subseqentes referem-se ao contato do professor com o Tenente

    Hermgenes Francisco de Aguillar e com o escravo de Dona Maria Francisca de Arago, o

    pardo Lira, e se o teor das conversas era sobre o Systema da Nao Francesa. O acusado

    responde que conhece ambos os homens e que entre eles o teor das conversas nunca se

    animara semelhantes absurdos, [pois ele] antes sempre abominou e abomina tais

    princpios45. Aps vrias perguntas, o desembargador questiona se o professor tinha em

    seu poder alguns manuscritos libertinos e sediciosos que persuadissem os povos para o

    systhema da revoluo. O acusado respondeu que certa feita tinha em seu poder alguns

    manuscritos traduzidos de huma obra de Valney [sic], intitulada a Revoluo dos tempos

    passados, em que figuravo os povos revoltados pelos diversos systemas de Religio,

    representados na Turquia, e na Rssia [...]46. O acusado continua seu depoimento

    afirmando, entretanto, que a tal obra no estava mais em seu poder, pois emprestara para

    algumas pessoas que tinham ido para a Corte.

    No final da primeira parte do depoimento do professor Francisco Muniz, o

    desembargador apresenta as obras confiscadas em sua casa por ocasio de sua priso e

    pergunta se o acusado reconhece serem dele. Afirmando a pergunta, o acusado

    confrontado com a apresentao de uma cpia manuscrita de Julia ou a Nova Helosa de

    Rousseau e mais dois tomos de uma obra em verso do mesmo autor que o desembargador

    pergunta se o acusado reconhece a letra da cpia como sua. O professor confirma ser o

    dono do manuscrito e foi questionado pelo desembargador por que motivo sendo

    perguntado a este respeito [sobre as obras serem do acusado] to repetidamente, e por

    tantos modos, se firmou uma redonda negativa, agora desfeita e convencida?47.

    O professor disse que os tais manuscritos eram para sua leitura pessoal, sem que se

    destinasse a algumas sinistras intencoens contra o Estado. Encerra-se o depoimento sem

    nada constar. Passados cinco dias, o professor novamente chamado a depor, e dessa vez

    pesava sobre ele o depoimento de Hermgenes Francisco de Aguillar Pantoja, branco,

    Tenente do Segundo Regimento de linha da Salvador e filho legtimo do Sargento-Mor

    Pantoja48. O tenente havia dito que o professor

    45 Idem, p. 888.46 Idem, p. 889.47 Idem, p. 891.48 Copia do termo de prizo habito e tonura feito ao reo Hermgenes Francisco de Aguillar, Tenente doSegundo Regimento de Linha desta Praa, ao vinte dias do ms de Fevereiro de 1799. In: ADCA, vol. II, p.1085.

    33

  • no s freqentava esta sociedade [reunies], mas que at assistiaas diversas prticas [...] sobre matrias secidiozas [sic], sobre aconstituio, e liberdade da Nao Franceza, applicando estasidias ao povo da Bahia com o perniciozo projecto [de] conseguirhuma sublevao49.

    O desembargador prossegue com seus argumentos afirmando que o professor

    espalhara as dcimas sobre liberdade por diversas mos, at o ponto de a conservarem de

    memria alguns dos cmplices desta infame rebelio, sem que possa escuza-lo a frgil

    coartada [...] por se acharem corrigidos e emendados por elle [...]50. O longo depoimento

    atinge os seus momentos finais com o desembargador arvorando o fato de que tanto o

    professor quanto o Tenente Hermgenes eram homens brancos e collocados entre os

    povos, portanto, era inadmissvel que homens como eles fossem sectrios das idias de

    francezia, uma vez que deveria ser do conhecimento deles o contgio de semelhante lio,

    e o mal que vinha em conseqncia de sua descoberta51.O interessante notar que nos

    depoimentos sobre a acusao de Domingos da Silva Lisboa e Luiz Gonzaga das Virgens,

    as informaes fornecidas pelos pardos e escravos no foram averiguadas, no obstante

    terem sido utilizadas com o professor e o tenente para demonstrar o lugar e o papel de cada

    um naquela sociedade.

    As informaes dos escravos e de alguns pardos ora eram negligenciadas, ora eram

    utilizadas para um fim especfico. Do total de trinta e duas pessoas presas, dez eram

    escravos e foram indiciados na devassa realizada pelo desembargador do Tribunal da

    Relao, Francisco Sabino lvares da Costa Pinto, para verificar os fatos conexos aos

    pasquins sediciosos publicizados na manh do dia 12 de agosto de 1798. O modo pelo

    qual o desembargador chegou participao dos escravos bastante significativo, e

    conforme a expresso de um dos proprietrios, fez-se pronta entrega dos escravos52.

    Temerosos por serem acusados de conivncia em aes sediciosas, conforme a

    informao do autor annimo da Relao de Francesia formada pelos homens pardos na

    49 Idem, p. 893.50 Idem, p. 893.51 Idem.52 ADCA, vol. II, p. 925, Testemunho de Manoel Vilella de Carvalho, proprietrio do escravo Jos Felix daCosta.

    34

  • cidade da Bahia no ano de 179853, os senhores resolveram no s entregar seus escravos

    como dois deles foram importantes testemunhas na devassa instaurada sobre a conjurao.

    Em meados de 1799, j eram nove escravos, pois um deles, Antonio Jos, morrera

    na priso aparentemente por um mal sbito depois que se alimentou de uma comida trazida

    por outro escravo do mesmo dono, o Tenente Coronel Caetano Maurcio Machado54. Dos

    escravos indiciados nos Autos quase todos eram pardos e nascidos na Bahia55, domsticos,

    citadinos, sabiam ler e escrever, e socializavam pelas ruas da cidade de Salvador. Conforme

    as informaes nos autos fornecidas pelos rus Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga, Joo de

    Deus do Nascimento e Manuel Faustino, os escravos presenciaram e participaram de

    encontros de seus senhores com homens livres, alguns brancos, outros pardos; alguns

    militares, oficiais de baixa e mdia patente; artesos, e, ainda, alguns intelectuais56.

    Igncio Pires, vinte anos, escravo do Capito-Mor e Secretrio do Estado e Governo

    do Brasil, Jos Pires de Carvalho e Albuquerque, foi a nica testemunha que teve direito ao

    Auto de Justificao, entre os pardos e cativos. Trata-se de uma auto defesa na qual o

    escravo se isentou das denncias que lhe foram imputadas pelos rus, dando a entender que

    no podia responder pelos seus atos, pois

    [...] h quatro, ou Sinco annos, pouco mais, ou menos [ele] foiatacado de molstia capital, que lhe desordenou o juzo [...] [amolstia] he da qualidade que possa [sic] Segunda vez Sobrevir poralguns acidentes, ou em algumas ocazioens [...]57.

    Testemunharam a favor do escravo Igncio Pires, o cirurgio Manuel Jos Estrela, o

    oficial da Secretaria de Estado e Governo do Brasil, Joo Nepumoceno da Trindade, o

    comerciante Jos Joaquim Pinheiro e o caixeiro Custodio Jos Pinto Coelho. Todos os

    53 Arquivo do IHGB, Descripo da Bahia, Tomo IV, DL, 399.2, Relao de francesia formada peloshomens pardos da cidade do Salvador, pp. 294-301. 54 ADCA, vol. I, pp. 356-357.55 Dos dez escravos indiciados, o nico preso e processado foi o escravo alfaiate de aluguel, Vicente. Escravoafricano da mina, Vicente era de propriedade de Bernardino de Sena e Arajo, Tabelio de Notas da Bahia.Cf. Lus Henrique Dias Tavares. Os escravos na sedio de 1798 na Bahia. In: Da sedio de 1798 Revoltade 1824 na Bahia. So Paulo/Salvador: Unesp/Editora da UFBA, 2003, pp. 85-124. 56 Cf. Relao dos reos prezoz, a que dis respeito o alvar para se lhe correr folha. ADCA, vol. II, pp 939-944; BN 28, 26, 1, n. 13, sesso de manuscritos; Relao das pessoas que se acho prezas na cadea destaCidade da Bahia por ocazio dos factos revolucionrios de que por Portaria do Illmo. Exmo. Governador eCapito General desta Capitania Dom Fernando Jos de Portugal tem devassado o Dezembargador dosagravos da Relao desta Cidade, o Doutor Francisco lvares da Costa Pinto, Bahia 23 de outubro de1798. ADCA, vol. II, pp. 812-815.57 Autos de justificao de Igncio Pires menor de vinte annos, escravo do Capito Mor Joze Pires deCarvalho e Albuquerque In: ADCA, vol. II, pp. 1088-1099.

    35

  • homens eram brancos, collocados entre os povos e tinham relaes estreitas com o

    Secretrio de Estado. A presena de escravos no evento, ainda que seja merecedora de um

    maior detalhamento, remete a outra ponta que essa condio legal designa: seus

    proprietrios. Os proprietrios dos escravos citados nas devassas da Conjurao Baiana de

    1798 so um grupo homogneo, pequeno e composto pelos donos das maiores fortunas da

    Salvador de 1798. O grupo era assim constitudo: o Capito-Mor das Ordenanas da cidade

    da Bahia e Secretrio de Estado e Guerra do Brasil, Jos Pires de Carvalho e Albuquerque

    possua quatro escravos; o Tabelio Bernardino de Senna e Arajo possua um escravo;

    Francisco Vicente Viana, Baro do Rio das Contas e primeiro Presidente da Provncia da

    Bahia (1823-1825) possua um escravo; o Tenente-Coronel Caetano Mauricio Machado

    possua um escravo; Manoel Jos Villela de Carvalho 58 possua dois escravos, Maria

    Francisca da Conceio, cunhada de Jos Pires de Carvalho e Albuquerque possua um

    escravo e abrigou em sua casa o condenado forca, Manoel Faustino dos Santos Lira; o

    Capito Paulino de S Tourinho, casado com Teodora Maria da Conceio, prima de Maria

    Francisca da Conceio, possua um escravo, e por fim, Joaquim Pereira Basto possua um

    escravo59.

    exceo de Maria Francisca da Conceio, quase todos os homens eram

    habilitados na Ordem de Cristo60 e a maioria deles exercia um ou mais postos estratgicos

    da administrao rgia. A personalidade mais proeminente desse grupo foi sem dvida o

    detentor do monoplio do comrcio de tabaco, Jos Pires de Carvalho e Albuquerque e no

    58 No incio de 1799, d. Fernando recebeu o relato de uma representao feita na Corte, cujo teor referia-se aoatraso de pagamentos dos professores rgios da Bahia. A queixa recaa sobre o tesoureiro dos ordenados,Manoel Jos Villela de Carvalho, um dos proprietrios dos escravos indiciados nas devassas da ConjuraoBaiana de 1798 e suspeito de fazer mau uso da verba pblica. BN- sesso de manuscritos fundo Marqus deAguiar, n. 140.59 Para uma viso de conjunto sobre as famlias dos proprietrios de escravos da Conjurao Baiana de 1798,ler: Catlogo genealgico das principais famlias que precederam de Albuquerques e Cavalcantes emPernanbuco e Caramurus na Bahia. Segundo Moniz Bandeira, esta obra foi escrita por volta de 1768 epublicada pelo Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro em 1889. A reedio em dois volumes que data de1985 foi acrescida por uma introduo e notas de Pedro Calmon, op.cit; Antonio de Arajo de Arago BulcoSobrinho. O patriarca da liberdade bahiana: Joaquim Incio de Siqueira Bulco, 1. Baro de SoFrancisco. Bahia, 1946. Antonio de Arajo de Arago Bulco Sobrinho. Famlias Bahianas (Bulco, Pires deCarvalho e Vicente Viana), vol. 1, Bahia: Imprensa Oficial, 1945. 60 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, doravante ANTT, Cdice Habilitao da Ordem de Cristo: JosPires de Carvalho e Albuquerque, filho de outro do mesmo nome, e de D. Isabel Joaquina de Arago. De 19de maio de 1779. Habilitao da Ordem de Cristo. Letra J, Mao 49, nmero 5; Bernardino de Sena e Arajo.Habilitao da Ordem de Cristo, Letra B, Mao 9, nmero 1; Caetano Maurcio Machado. Habilitao daOrdem de Cristo, Letra C, Mao 8, nmero 3; Manoel Jos Vilela de Carvalho. Habilitao da Ordem deCristo, Letra M, Mao 37, nmero 8; Manoel Jos Vilela de Carvalho. Habilitao da Ordem de Cristo, LetraM, Mao 29, nmero 42.

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  • por acaso seu escravo foi o nico a ter direito do auto de justificao. Segundo attestao

    do ento Governador da Bahia d. Rodrigo Jos de Menezes, de 03 de janeiro de 178861, Jos

    Pires de Carvalho e Albuquerque servia nos empregos de Secretrio de Estado e Governo

    do Brasil, cargo que era proprietrio por herana; de Intendente da Marinha e Armazns

    Reais; Vedor Geral do Exrcito; e Provedor e Ouvidor da Alfndega da Bahia e Deputado

    da Junta da Real Fazenda rgo em que os Autos das Devassas foram recolhidos por

    ordem de d. Fernando Jos de Portugal e Castro62.

    H muito pouca informao a respeito da presena do dito secretrio no decorrer das

    devassas ou mesmo nos testemunhos e assentadas. Entretanto, o seu nome est nas duas

    devassas por ocasio da pronta entrega de seus escravos. A atuao do secretrio

    bastante obscura. Em primeiro lugar, como Deputado da Junta da Real Fazenda, as devassas

    ficaram sob seus cuidados e toda a correspondncia oficial referente ao evento trocada entre

    o governador, d. Maria I e d. Rodrigo de Souza Coutinho era copiada por um funcionrio

    designado por ele. Depois, Jos Pires de Carvalho e Albuquerque era muito influente e

    justamente por isso teve l seus desafetos.

    Em Lisboa foram vrias as denncias que acusavam o secretrio de enriquecimento

    ilcito, de contrabando de tabaco, de disputa pela herana do principal morgadio da Bahia, o

    da Casa da Torre dos Garcia Dvila, e, principalmente, de uma atuao duvidosa frente

    da Real Fazenda, principal rgo do governo. No ano de 1797, Antonio Ferreira de Andrade

    escreve a d. Rodrigo de Souza Coutinho uma carta referente aos pssimos procedimentos de

    Jos Pires de Carvalho e Albuquerque. Quem intervm a favor do dito secretrio ningum

    menos que o prprio governador e o Tabelio Bernardino de Sena Arajo, outro

    proprietrio de escravo63. O problema da denncia estava em torno do pagamento que a

    Real Fazenda fazia ao ofcio de escrivo dos rfos da Bahia. No se averiguou

    efetivamente a denncia sobre o secretrio, concluindo-se um ms depois que o dito era de61 AHU_ACL_CU_005, Cx. 210, doc. 14878: Papis de Servio do Capito-Mor das Orde