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DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO PROF. LIMA PINHEIRO Faculdade de Direito de Lisboa DISCLAIMER Estes apontamentos não dispensam o estudo dos manuais recomendados pelo Professor Regente e Assistente.

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Direito Internacional Privado - Faculdade de Direito de Lisboa, ano lectivo 2008/2009.Professor regente: Prof. Lima Pinheiro.Autoria: Lara Geraldes.DISCLAIMER: estes apontamentos não dispensam o estudo dos manuais recomendados pelo professor regente e assistente.

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Page 1: Direito Internacional Privado

DIREITO INTERNACIONAL

PRIVADO

PROF. LIMA PINHEIRO

Faculdade de Direito de Lisboa

DISCLAIMER

Estes apontamentos não dispensam o estudo dos manuais recomendados pelo Professor Regente e Assistente.

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Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

INTRODUÇÃO

1. INTRODUÇÃO

§1: NOÇÃO DE DIP

DIP: regula situações transnacionais de Direito Privado, em princípio. Com

efeito, mesmo relativamente a questões submetidas ao DIP Público pode ser

necessário determinar o direito aplicável (vg se existir uma cláusula de arbitragem,

através da qual as partes atribuem jurisdição a um tribunal arbitral).

Situação transnacional: situação que transcende a esfera social de

um Estado soberano e entra em contacto com outras sociedades

estaduais, colocando-se, portanto, um problema de determinação do

Direito aplicável que deva ser resolvido pelo DIP. Preferível ao

conceito ambíguo de “situação internacional”, que pode confundir-se

com o conceito de relação internacional, relevante para o DIP público.

o Pelo critério do contacto relevante, não é situação

transnacional: A, residente em Lisboa, escreve uma carta

injuriosa a B, residente no Porto, que é acidentalmente

transportada por estradas de Espanha. A norma de conflitos

potencialmente aplicável a este caso é o art. 45º, sendo que

todos os quatro elementos de conexão aí previstos apontam

para a aplicação da lei portuguesa.

O núcleo essencial do DIP é constituído por normas de conflitos:

o Normas de conflitos: proposições que, perante uma situação

transnacional, determinam o Direito aplicável.

o Conflito de leis não se confunde com:

Conflitos de soberanias: conflitos de competências

legislativas entre Estados

Conflitos de sistemas de DIP: divergência entre os

Direitos de Conflitos das ordens jurídicas em presença,

sobre qual delas deve ser aplicada ao caso.

Conflitos de normas na ordem jurídica local: não é,

pois, questão de DIP: relação entre o Direito do Texas e

o Direito da Califórnia, vg.

O Direito de Conflitos regula situações transnacionais através de um

processo de regulação indirecta, mediante a remissão para o Direito

aplicável.

O DIP enquanto ramo do Direito, engloba:

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Direito dos Conflitos

Direito de Reconhecimento (das situações jurídicas fixadas por

decisão estrangeira) – o processo de regulação é ainda um processo

conflitual ou indirecto.

Com efeito, uma situação transnacional pode suscitar a resolução de três

problemas:

1. Determinação do direito aplicável – direito dos conflitos

(arts. 25º ss)

2. Determinação do tribunal competente – direito da

competência internacional (arts. 65º e 65º-A CPC)

3. Determinação da relevância num Estado dos efeitos

produzidos pela decisão estrangeira – direito de

reconhecimento (arts. 1094º ss CPC e 33º ss BRUX-I)

§2: CARACTERIZAÇÃO DAS NORMAS DE CONFLITOS

Tradicionalmente, as normas de conflitos assumem três características

fundamentais:

Normas remissivas ou de regulação indirecta (é esta a

característica essencial, para LIMA PINHEIRO):

o Normas que mandam aplicar à situação descrita na sua

previsão outras normas ou complexos normativos. Não

modelam, per si, as situações jurídicas das pessoas.

o vs normas materiais ou de regulação directa: normas que

desencadeiam efeitos jurídicos que modelam as situações

jurídicas das pessoas.

o FERRER CORREIA: só as normas materiais seriam normas de

conduta, ao passo que as normas de conflitos seriam meras

regras de decisão, tendo por destinatários os órgãos de

aplicação do Direito (concepção que assenta numa visão

judiciária do DIP).

ISABEL DE MAGALHÃES COLLAÇO e LIMA

PINHEIRO: recusam esta visão judiciária do DIP, uma

vez que os sujeitos das situações transnacionais

necessitam de determinar o Direito aplicável para

assim poderem orientar as suas condutas. A norma de

conflitos é, pois, uma norma de conduta, embora de

regulação indirecta.

Normas de conexão:

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o Normas que conectam uma situação da vida, ou um seu

aspecto, com o Direito aplicável, mediante um elemento ou

factor de conexão.

o Seleccionam-se, assim, diversos laços que o DIP considera

juridicamente relevantes e decisivos para a determinação do

Direito aplicável: os elementos de conexão (vg nacionalidade,

residência habitual, lugar da situação da coisa, etc.).

o Os factores de conexão podem ser:

Vínculos jurídicos (vg nacionalidade)

Laços fácticos (vg residência habitual)

Consequências jurídicas (vg lugar do efeito lesivo)

Factos jurídicos (vg designação do Direito aplicável,

pelos interessados)

o LIMA PINHEIRO: nem todas as normas sobre a determinação

do Direito aplicável utilizadas pelo DIP são normas de

conexão! Exemplo:

art. 33º, nº 2 LAV: manda aplicar o direito “mais

apropriado ao litígio” – falta, em absoluto, o elemento

de conexão.

o Conclusão: o DIP é caracterizado essencialmente pelo

processo de regulação indirecta, e este processo tanto pode

ser realizado por normas de conexão como por outras normas

sobre a determinação do Direito aplicável.

Normas fundamentalmente formais:

o Normas que, na designação do Direito aplicável, não atendem

ao resultado material a que conduz a aplicação de cada uma

das leis em presença. Exemplo:

art. 49º -- 31º, nº 1: a capacidade para contrair

casamento é, em princípio, determinada através da

respectiva lei pessoal (nacionalidade, em princípio).

Esta norma de conflitos manda aplicar a lei da

nacionalidade à capacidade, sem atender ao conteúdo

dessa lei (seja ela mais exigente ou mais permissiva).

o LIMA PINHEIRO: as normas de conflitos que não sejam

normas de conexão podem ou não ser fundamentalmente

formais! Exemplo:

Norma de conflitos que manda aplicar o Direito que dá

a melhor solução material ao caso (better rule

approach) – a determinação do Direito aplicável é,

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aqui, feita com base em critérios de justiça material.

Embora não haja nenhuma norma de conflitos com

este conteúdo na ordem jurídica portuguesa, o Direito

de conflitos nunca é absolutamente formal, porque não

se desinteressa completamente do resultado a que

conduz a aplicação do Direito competente (art. 22º:

cláusula de ordem pública internacional).

Na ordem jurídica portuguesa há normas de conflitos

materialmente orientadas, favorecendo certo resultado

material:

arts. 35º e 65º e art. 9º ROMA - favorecem a

validade formal dos negócios jurídicos

As normas de conflitos gerais são afastadas por:

Normas de conflitos especiais

Normas de conflitos internacionais:

o Convenção de Roma (ConvROMA): aplica-se a contratos (e a

negócios jurídicos unilaterais, para LIMA PINHEIRO, contra a

maioria da doutrina, que prefere a aplicação dos arts. 41º e

42º) celebrados a partir de 1 de Setembro de 1994.

o Regulamento de Roma I (ROMA I): vai revogar a ConvROMA

o Regulamento de Roma II (ROMA II): aplica-se a obrigações

extracontratuais, quando o dano haja ocorrido depois de 11 de

Janeiro de 2009.

o Outras convenções

2. PLANOS, PROCESSOS E TÉCNICAS DE REGULAÇÃO DAS SITUAÇÕES

TRANSNACIONAIS

§1: PLANOS DE REGULAÇÃO

Regulação pelo Direito estadual:

o Tradicionalmente considera-se que o único plano de regulação

das situações transnacionais seria aquele que corresponderia

à ordem jurídica estadual, aplicando-se o direito que vigora

nesse Estado.

o Nestes termos, as partes das situações transnacionais

deveriam orientar-se exclusivamente pelas normas e

princípios vigentes nas ordens jurídicas conectadas com a

situação.

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Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

o Assim, em caso de litígio, o Direito aplicável à situação seria

determinado pelos tribunais estaduais que fossem

internacionalmente competentes.

A evolução que se verificou entretanto tornou necessário atender à

regulação de situações transnacionais no plano do DIP público, do Direito

Comunitário e do Direito autónomo do comércio internacional, conforme veremos

infra.

Na actualidade, em matéria de estatuto pessoal, as situações transnacionais

continuam a ser, na sua generalidade, reguladas na esfera de uma ordem jurídica

estadual. O mesmo não se verifica nas relações comerciais internacionais (em

especial, contratos internacionais).

§2: PROCESSOS DE REGULAÇÃO

Quanto aos processos de regulação das situações transnacionais contrapõe-

se tradicionalmente:

1. Processo conflitual ou de regulação indirecta:

o Consiste no recurso a uma norma de conflitos para a

determinação do Direito material aplicável.

o Esta é a regra geral da regulação das situações transnacionais

na ordem jurídica estadual.

2. Processos materiais ou de regulação directa:

o Consiste na aplicação directa do Direito material, sem a

mediação de uma norma de conflitos, designadamente

através de três técnicas de regulação directa, a analisar infra.

§3: TÉCNICAS DE REGULAÇÃO

Técnicas de regulação indirecta:

o Regulação pelo sistema de Direito de Conflitos.

Técnicas de regulação directa:

A. Aplicação directa do Direito material comum do foro a

quaisquer situações, independentemente de envolverem

elementos de ordens jurídicas estrangeiras.

B. Criação do Direito material especial (ad hoc) de fonte

interna a situações que envolvem elementos de ordens

jurídicas estrangeiras, independentemente dos laços que

apresentem com o Estado local.

C. Unificação internacional do Direito material especial de

fonte supraestadual, aplicando-o a situações

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transnacionais, independentemente de uma conexão entre

essas situações e um dos Estados em que vigora esse Direito.

§4: REGULAÇÃO PELO DIREITO ESTADUAL

A regulação pelo Direito Estadual implica que a situação seja em primeira

linha regulada pelo Direito vigente na ordem jurídica estadual em causa, e que os

litígios que lhe digam respeito sejam apreciados pelos respectivos tribunais

estaduais.

A regulação das situações transnacionais pelo Direito estadual é, em regra,

indirecta ou conflitual. Como veremos infra, a aplicação directa de Direito material

só se justifica, excepcionalmente, relativamente a certas regras de Direito material

especial.

Só o Direito material unificado constitui uma alternativa global ao sistema de

Direito de Conflitos, ainda que de forma limitada (já que se trata de um Direito

material parcial e fragmentário). Cumpre apreciar.

1. REGULAÇÃO INDIRECTA – Regulação pelo sistema de Direito de

Conflitos:

Tradicionalmente, todas as situações transnacionais eram reguladas

na ordem jurídica estadual por este sistema.

O sistema de Direito de Conflitos é formado essencialmente por um

conjunto de normas de conflitos bilaterais (normas que remetem

tanto para o Direito do foro como para o Direito estrangeiro) e de

normas sobre a interpretação e aplicação destas normas bilaterais.

2. REGULAÇÃO DIRECTA

A. Aplicação directa do Direito material comum:

As situações transnacionais seriam reguladas como se de situações

puramente internas se tratasse.

Técnica de regulação directa que prescinde de normas de conflitos.

Vantagens:

o Consiste na via mais fácil para os órgãos de aplicação do

Direito, que estão mais familiarizados com o Direito material

interno do que com o Direito estrangeiro.

Desvantagens:

o Esta técnica poria em risco a segurança jurídica e a harmonia

internacional de soluções:

O Direito aplicável não seria previsível, variando

consoante o Estado em que a questão se colocasse.

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A aplicação de um Direito diferente em cada Estado

fomentaria a desarmonia internacional de soluções.

Permitiria um forum shopping: a escolha do foro mais

conveniente à pretensão.

o Esta técnica seria incompatível como o DIP público:

Levaria à negação injustificada dos direitos adquiridos

pelos estrangeiros segundo o Direito estrangeiro.

B. Criação de um Direito material especial (ad hoc) de fonte interna:

Em lugar de aplicar o seu Direito material comum, os Estados podem

criar um Direito material especial aplicável exclusivamente às

relações transnacionais.

LIMA PINHEIRO: as concepções favoráveis à regulação das relações

do comércio internacional por meio de soluções materiais especiais

de origem jurisprudencial só parecem ser defensáveis nas ordens

jurídicas em que vigora um sistema de precedente vinculativo.

Vantagens:

o Maior adequação à especificidade das relações internacionais

Desvantagens:

o Todas as desvantagens supra citadas (A.).

Conclusão: esta técnica de regulação directa é de rejeitar como

alternativa global ao processo conflitual. Ainda assim, nada obsta a

que relativamente a certas questões delimitadas se possa justificar a

formulação de normas de Direito material especial, em casos

excepcionais em que a actuação do Direito de Conflitos não permite

alcançar uma solução adequada. Exemplo:

o art. 54º, nº 2: Em caso de mudança da nacionalidade comum

pode haver uma modificação do regime de bens que não era

previsível para terceiros que estabeleceram relações jurídicas

com os cônjuges. Assim, o legislador considerou que era

necessário excluir a eficácia retroactiva para terceiro da

modificação do regime de bens.

A aplicação do Direito material especial depende de uma ligação com o

Estado do foro, pelo que consiste numa técnica de regulação indirecta que não

prescinde de normas de conexão. Tipos de normas de Direito material especial:

Normas de aplicação dependente: a aplicabilidade do Direito material

especial depende do sistema de normas de conflitos. Exemplos:

o art. 2223º: aplicável pelo art. 65º, nº 2

o art. 3º nº 2 e ss CSC, aplicáveis pelo nº 1.

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Normas de aplicação independente: a aplicabilidade do Direito

material especial depende de normas de conexão especiais.

Exemplos:

o Normas que estabelecem um tratamento específico para os

estrangeiros, aplicáveis com base num elemento de conexão

com o território português (vg lugar de execução do contrato,

em Portugal). Exemplo:

o art. 1664º ss: normas sobre registo de casamento de

portugueses no estrangeiro.

No âmbito das normas de aplicação independente do sistema de Direito de

Conflitos, cuja aplicação resulta de normas de conexão especiais, cumpre reter a

noção de normas “autolimitadas”.

Normas “autolimitadas”: normas materiais cuja técnica de regulação

permite que o sistema de Direito de Conflitos seja substituído por

normas de conflitos ad hoc ou por uma valoração conflitual

casuística.

o vg art. 38º DL Contrato de Agência: só será aplicável

legislação diversa da portuguesa se a mesma se revelar mais

vantajosa para o agente. Norma de conflitos unilateral que

alarga a competência atribuída à lei portuguesa pelas normas

de conflitos gerais.

o No sistema jurídico português, a “autolimitação” só pode ser

produto de uma valoração casuística se se revelar uma lacuna

que deva ser integrada mediante a criação de uma solução

conflitual ad hoc, excepcionalmente.

Remissão para o estudo de normas de conflitos unilaterais, infra.

C. Unificação internacional do Direito material aplicável:

Métodos de unificação internacional (vg por via de Convenções

internacionais):

o Uniformização: criação, por uma fonte supraestadual, de

Direito uniforme (Direito aplicável tanto nas relações internas

como nas relações internacionais).

Convenções de Genebra sobre a Lei uniforme em

matéria de letras e livranças e sobre a Lei uniforme em

matéria de cheques.

LIMA PINHEIRO: em regra, normas de aplicação

dependente do sistema de Direito de Conflitos (por

exemplo, a aplicação das Leis uniformes supra

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depende das normas de conflitos gerais que constam

das Convenções de Genebra).

o Unificação stricto sensu: criação, por uma fonte

supraestadual, de Direito material unificado (Direito material

especial de fonte supraestadual).

Convenções de Haia: venda internacional de

mercadorias e contrato de mandato com ou sem

representação (sem aplicação dos arts. 41º e 42º).

Transportes internacionais (marítimo, aéreo, etc.)

Propriedade intelectual

Testamento

LIMA PINHEIRO: em regra, normas de aplicação

independente do sistema de Direito de Conflitos (por

exemplo, quanto às Convenções internacionais, é o

acto supraestadual que cria e define os pressupostos

de aplicação do Direito no espaço). As Convenções de

unificação delimitam as situações reguladas pelo

Direito unificado em atenção à matéria jurídica em

causa (atendendo à “esfera espacial de aplicação”) –

domínio material de aplicação da Convenção. Nestes

termos, a aplicação universal do Direito material

unificado também contribui para o forum shopping.

o Harmonização: estabelecimento de regras ou princípios

fundamentais comuns. O seu objectivo é mais modesto que o

objectivo dos métodos supra, uma vez que não pretende

estabelecer um regime idêntico nos diversos sistemas

nacionais, mas tão-só aproximá-los entre si.

Leis-modelo

Directivas comunitárias

Princípios (conjuntos sistematizados de soluções

elaborados por grupos de especialistas)

LIMA PINHEIRO: este método em nada vem alterar o

normal funcionamento do sistema de Direito de

Conflitos, uma vez que não elimina as diferenças entre

os ordenamentos em presença.

Se a aplicação do Direito unificado depende de uma conexão com um Estado

contratante, definida por normas de conexão especiais, trata-se de um processo de

regulação indirecta. Não se confunda, contudo, com a técnica de regulação

relativamente ao sistema de Direito de Conflitos: aqui, a aplicabilidade do Direito

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(unificado) resulta da actuação de normas de conexão ad hoc, contidas numa

Convenção internacional.

Vantagens:

o Não há que escolher o sistema local aplicável, desde que uma

situação transnacional caia directamente dentro da esfera

espacial e do domínio material de aplicação do regime

convencional.

o Os Estados contratantes assumem uma posição uniforme

sobre a regulação jurídica da situação.

o O regime material aplicável nos diferentes Estados é o

mesmo, facilitando-se, assim, o conhecimento da disciplina

jurídica da situação – garante a segurança jurídica, enfim.

o Técnica de regulação particularmente adequada a situações

transnacionais que surgem em conexão com meios de

comunicação globais (vg Internet).

Desvantagens:

o O processo de unificação internacional é moroso, difícil e

oneroso.

o A desejada “supressão dos conflitos de leis” só seria atingida

se a unificação fosse geral (cobrindo todas as matérias) e

universal (abrangendo todos os Estados). Ora a unificação não

é nem uma coisa, nem outra.

Não é geral: apenas algumas áreas jurídicas são

objecto da unificação (principalmente: comércio

internacional). A unificação é mais difícil em domínios

como o Direito da Família e Sucessões.

Não é universal: nem todos os Estados são partes nas

Convenções de Direito material unificado e, ainda que

assim fosse, as Convenções são frequentemente

modificadas posteriormente por protocolos (tratados

posteriores que respeitam apenas a alguns dos Estados

contratantes).

o Divergências de interpretação e integração do Direito

unificado:

LIMA PINHEIRO: não sendo possível evitar soluções

divergentes, deve-se atender à solução consagrada no

ordenamento nacional competente segundo o Direito e

Conflitos quando for competente a jurisdição estadual.

Por outro lado, se for competente a jurisdição arbitral,

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só será pertinente atender à orientação de uma

particular jurisprudência nacional quando as partes

tenham escolhido o respectivo regime jurídico para

reger a situação.

§5: OUTROS PLANOS DE REGULAÇÃO

Para além da regulação pelo Direito estadual, observamos actualmente:

Regulação pelo DIP público

Regulação pelo Direito Comunitário

Regulação pelo Direito autónomo do comércio internacional

Antes de prosseguirmos, cumpre estabelecer as seguintes conclusões:

Regulação pelo Direito estadual:

o Opera-se uma regulação essencialmente indirecta ou

conflitual.

o A regulação directa ou material é excepcional.

o Apesar dos progressos realizados pela unificação internacional

do Direito material aplicável, o sistema de Direito de Conflitos

é ainda aquele que desempenha a principal missão de

regulação das situações transnacionais.

Regulação pelo DIP público e pelo Direito Comunitário:

o Nestes planos, diferentemente, a regulação tanto pode ser

directa ou material, como indirecta ou conflitual.

o Regulação pelo DIP público: cumpre ter presente a Convenção

de Washington de 1965 (CIRDI – Centro Internacional para a

Resolução de Diferendos de Investimento), e a criação do

Tribunal Arbitral Internacional.

o Ainda assim, a regulação indirecta ou conflitual continua a ser

a regra. Naturalmente, neste caso o Direito de Conflitos

aplicável não é o Direito de um Estado em particular, mas sim

um Direito Internacional de Conflitos, Direito esse que regula

indirectamente as situações relevantes na ordem jurídica

internacional ou na ordem jurídica comunitária e que é

aplicável pelas jurisdições internacionais ou comunitárias.

Regulação pelo Direito autónomo do comércio internacional:

o A regulação é em parte indirecta e em parte directa.

o Neste âmbito importa reter:

A Nova Lex Mercatoria, ao contrário da Lex Mercatoria

medieval, estabeleceu regras e princípios aplicáveis às

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Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

relações do comércio internacional,

independentemente dos órgãos estaduais e

supraestaduais. Inclui, para tal, os usos e costumes do

comércio internacional.

SCHMITTHOFF reconduz este conjunto de regras e

princípios a um direito material especial do comércio

internacional, uma vez que o Direito de Conflitos seria

uma barreira artificial à condução dos negócios de

modo prático. Segundo esta concepção, a Lex

Mercatoria não seria um direito internacional ou

supranacional. LIMA PINHEIRO sustenta que esta tese

se ajusta bem à arbitragem internacional.

Contra esta tese se pronunciou GOLDMAN,

reconduzindo a Lex Mercatoria a uma ordem jurídica

autónoma do comércio internacional (societas

mercatorum).

o O Conselho de Direcção do UNIDROIT (Instituto Internacional

para a Unificação do Direito Privado) aprovou, nesta sede, os

princípios relativos aos contratos do comércio internacional,

em 1994.

o Para LIMA PINHEIRO, a formação de uma ordem jurídica

autónoma do comércio internacional depende da verificação

de dois pressupostos:

1. Existência de um espaço transnacional adequado

2. Consenso básico sobre um certo núcleo de valores

comuns

o Em suma:

Recorre-se ao Direito de Conflitos para determinar o

Direito aplicável à situação mas, concorrentemente,

são tidos em consideração os usos do comércio

internacional.

Naturalmente, o Direito de Conflitos aplicável não é o

Direito de um Estado em particular, mas sim um Direito

de Conflitos autónomo (que integra o Direito

Transnacional da Arbitragem) – Direito autónomo do

Comércio Internacional.

Antes de procedermos, cumpre estabelecer os traços gerais do método da

Escola Estatutária de DIP Público.Com efeito, SAVIGNY, na sua obra Tratado, tratou

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Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

da aplicação no espaço de estatutos e propôs que a interpretação fosse feita em

relação a cada uma das relações jurídicas típicas do Direito Civil. Nestes termos,

estabeleceu o princípio de aplicação da lei da sede de categorias amplas de

relações jurídicas:

Estado e capacidade das pessoas: lei do domicílio

Contratos: lei do lugar da execução

Direitos Reais: lei da situação da coisa

Família: lei do domicílio do marido

Sucessões: lei do domicílio do autor da sucessão

Uma breve incursão pelo Código Civil (arts. 25º ss) permite-nos constatar

que, ainda hoje, o nosso DIP se encontra estruturado por categorias amplas de

relações jurídicas típicas.

Este método evoluiu para um método analítico ou de especialização (vg conexão

mais estreita), subdividido em questões mais parcelares do que as categorias

amplas supra.

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Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

DIREITO DE CONFLITOS

PARTE GERAL

1. NATUREZA DO DIREITO DE CONFLITOS

§1: ÓRGÃOS DE APLICAÇÃO DO DIREITO DE CONFLITOS

O Direito de Conflitos é aplicado pelas entidades que exercem funções

jurisdicionais ou administrativas.

Órgãos supraestaduais: ordem jurídica internacional ou comunitária

o Excepção.

o Jurisdições internacionais:

TIJ (órgão de contencioso)

CIRDI (Centro Internacional de Resolução de Diferendos

de Investimento)

o Tribunais comunitários:

TJCE

Tribunal de 1ª instância

Órgãos estaduais: ordens jurídicas estaduais

o Órgãos nacionais portugueses:

Jurisdicionais:

Tribunais estaduais

Tribunais arbitrais, eventualmente (LAV)

Administrativos:

Conservadores dos registos

Notários

Agentes diplomáticos

Comandantes das unidades militares, navios,

etc.

Órgãos transnacionais:

o Tribunais de arbitragem transnacional (arbitragem comercial

internacional – o modo normal de resolução de diferendos no

comércio internacional)

§2: FONTES DO DIREITO DE CONFLITOS

Fontes internacionais (designadamente, Convenções)

Fontes comunitárias (designadamente, Directivas)

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Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

Fontes transnacionais (designadamente, regulamentos dos centros

de arbitragem e costume)

Fontes internas (designadamente, lei, costume e jurisprudência)

§3: NATUREZA DO DIREITO DE CONFLITOS

A tese clássica sobre o objecto e função da norma de conflitos, encarando-a

como uma norma de delimitação de competências legislativas que resolveria

conflitos de soberania estaduais, mostra-se adversa à concepção do Direito de

Conflitos enquanto Direito Privado.

Neste âmbito, desenvolveram-se as seguintes teorias:

Construções universalistas: inclusão do DIP no DIP público,

reclamando-se a existência de um sistema de DIP com validade

universal que se impõe aos ordenamentos nacionais.

Construções particularistas: a norma de conflitos tem por função a

delimitação da competência legislativa dos Estados, ainda que o DIP

tenha carácter interno.

A favor da natureza pública do Direito de Conflitos: sectores da

doutrina italiana.

A opinião dominante, contudo, entende que o DIP é Direito privado: Direito

privado especial regulador das situações privadas transnacionais. Ora, como supra

foi referido, há situações transnacionais que, apesar de conformadas por Direito

público, devem ser resolvidas pelo DIP (vg no caso de as partes estabelecerem uma

cláusula de arbitragem).

2. OBJECTO E FUNÇÃO DA NORMA DE CONFLITOS

§1: TIPOS DE NORMAS DE CONFLITOS

Objecto da norma: realidade que a norma regula

Função da norma: problema jurídico que a norma tem por missão resolver e

o processo por que o resolve

Para examinar o objecto e a função das normas de conflitos, cumpre

distinguir entre:

Normas de conflitos bilaterais: normas que tanto remetem para o

Direito do foro como para o Direito estrangeiro.

o Constituem exemplos a generalidade de normas de conflitos

do CC: o sistema português é de base bilateralista.

Normas de conflitos unilaterais: normas que só determinam a

aplicação do Direito do próprio foro. Exemplos:

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Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

o art. 3º, nº 3 Code Civil (Francês): “as leis francesas sobre o

estado e a capacidade aplicam-se aos franceses, mesmo que

residam no estrangeiro” (exemplo histórico) – norma de

conflitos unilateral geral.

o art. 38º DL Contrato de Agência: “aos contratos regulados por

este diploma que se desenvolvam exclusiva ou

preponderantemente em território nacional só será aplicável

legislação diversa da portuguesa, no que respeita ao regime

da cessação…” – norma de conflitos unilateral especial ad hoc.

o art. 37º LAV: “o presente diploma aplica-se às arbitragens que

tenham lugar em território nacional” – norma de conflitos

unilateral especial ad hoc.

o art. 28º, nº 1: a capacidade é, em princípio, regida pela lei

pessoa (art. 25º). Porém, o negócio jurídico celebrado em

Portugal por pessoa que seja incapaz segundo a lei pessoal

competente não pode ser anulado no caso de a lei interna

portuguesa, se fosse aplicável, considerar essa pessoa como

capaz. Esta norma é de algum modo bilateralizada pelo art.

28º, nº 3 – norma de conflitos unilateral especial que se

reporta a questões parcelares.

o As normas unilaterais podem ser:

Normas unilaterais gerais: é o já citado art. 3º, nº 3

Code Civil (refere-se a estados ou categorias de

relações jurídicas). Não vigoram no sistema jurídico

português.

Normas unilaterais especiais: encontram-se numa

relação de especialidade com outras normas de

conflitos, unilaterais ou bilaterais. Podem assumir três

modalidades, quanto à sua previsão:

Normas unilaterais especiais que se

reportam a estados ou categorias de

relações jurídicas, encontrando-se numa

relação de especialidade com outras normas de

conflitos que se reportam a categorias

normativas mais amplas – vg art. 3º, nº 1, 2ª

parte CSC, em relação de especialidade com a

1ª parte do nº 1 do mesmo artigo (regra de

conflitos que regula em geral essa categoria

ampla). Vejamos: as relações do estatuto

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Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

pessoal das sociedades comerciais estão

submetidas à lei do Estado onde se encontre

situada a sede principal e efectiva da sua

administração (nº 1, 1ª parte); a sociedade que

tenha sede estatutária em Portugal não pode,

contudo, opor a terceiros a sua sujeição a lei

diferente da lei portuguesa (nº 1, 2ª parte).

Normas unilaterais especiais que se

reportam a questões parcelares que, em

princípio, estariam englobadas no domínio de

aplicação de outras normas de conflitos – vg a

norma unilateral relativa à validade de uma

determinada cláusula contratual, uma questão

que encontra dentro do domínio de aplicação da

lei reguladora do contrato; art. 28º, nº 1.

Normas unilaterais especiais ad hoc,

reportando-se a uma norma ou lei material

individualizada – vg art. 37º LAV, 38º DL

Contrato de Agência e 60º, nº 7 DL Direito Real

de Habitação Periódica. A maior parte das

normas unilaterais especiais vigentes na ordem

jurídica portuguesa são normas ad hoc.

As normas de conflitos unilaterais, em especial as normas unilaterais

especiais ad hoc, são frequentemente encaradas como normas adversas em

relação ao “sistema de normas de conflitos”. LIMA PINHEIRO considera que esta

visão é demasiado simplista, uma vez que não é de excluir que certas normas

unilaterais sejam “conformes ao sistema” e, por isso, não são necessariamente

“adversas” ou “estranhas” a esse sistema de normas de conflitos, maxime se se

proceder à sua generalização e bilateralização, em termos que veremos infra.

Numa posição intermédia situam-se as normas bilaterais imperfeitas:

Normas bilaterais imperfeitas: normas que determinam a

aplicação tanto do Direito do foro como de Direito estrangeiro,

limitando o seu objecto a certos casos que têm uma ligação

especial com o Estado do foro. Não fornecem directamente a

solução para as situações do mesmo tipo abstracto e não esgotam,

por isso, todos os casos.

o Exemplo: o art. 1107º CC Seabra – “se o casamento for

contraído em país estrangeiro entre português e estrangeira,

ou entre estrangeiro e portuguesa, e nada declararem nem

estipularem os contraentes relativamente a seus bens,

18

Page 19: Direito Internacional Privado

Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

entender-se-á que casaram conforme o direito comum do país

do cônjuge varão”. Aqui, a ligação especial à ordem jurídica

portuguesa exigida para a aplicação da norma de conflitos é a

nacionalidade portuguesa de um dos cônjuges. Esta norma

nada dispõe, por isso, sobre o Direito aplicável no caso de

casamento entre dois estrangeiros em Portugal.

o Actualmente: art. 51º, nº 1 e 2, com desvios ao art. 50º. O nº 1

prevê o casamento de dois estrangeiros em Portugal,

enquanto que o nº 2 prevê o casamento de dois portugueses

ou de um português e de um estrangeiro no estrangeiro. Fica

de fora o casamento de dois estrangeiros.

§2: OBJECTO E FUNÇÃO DA NORMA DE CONFLITOS BILATERAL

É certo que não está em causa um problema de respeito da soberania

estrangeira, a respeito da aplicação ou não aplicação do Direito estrangeiro, mas

trata-se antes de uma questão de regular uma situação transnacional,

determinando a ordem jurídica que vai fornecer a disciplina material aplicável ao

caso.

Nestes termos, e segundo a maioria doutrinária da Escola de Lisboa (na qual

se inclui LIMA PINHEIRO) o objecto da norma de conflitos bilateral é o mesmo que

o objecto do DIP enquanto ramo de Direito: a realidade que a norma regula consiste

na situação transnacional.

Diferentemente, a Escola de Coimbra (a título exemplificativo, FERRER

CORREIA) entende que o objecto da norma de conflitos bilateral seria uma norma

material (já que as normas de conflito são encaradas como “normas sobre normas”

e não como normas de regulação indirecta).

Quanto à função (rectius, o problema jurídico a que a norma se propõe

resolver) da norma de conflitos em geral, seja bilateral, unilateral ou especial ad

hoc, LIMA PINHEIRO entende que será necessariamente a regulação das situações

transnacionais mediante um processo conflitual ou indirecto.

Relativamente às normas de conflitos bilaterais, LIMA PINHEIRO identifica-

lhes uma dupla função técnico-jurídica:

A norma de conflitos propõe-se a determinar o Direito aplicável

A norma de conflitos, quando remeta para Direito estrangeiro,

propõe-se a conferir-lhe um título de aplicação na ordem jurídica

interna – diferentemente, quando a norma de conflitos unilateral

remeta, necessariamente, para o Direito do foro, não é necessário

que lhe confira um título de aplicação na ordem jurídica interna.

Assim se compreende que a remissão operada pela norma de conflitos seja

não recipienda, ie, a norma de conflitos não converte proposição jurídica

19

Page 20: Direito Internacional Privado

Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

estrangeira num elemento da ordem jurídica do foro enquanto critério de conduta

ou de decisão. O Direito estrangeiro é aplicado enquanto Direito estrangeiro, e não

se torna português pelo facto de ser aplicado por tribunais portugueses.

§3: NORMAS DE CONFLITOS UNILATERAIS

Na norma bilateral, o “chamamento” do Direito estrangeiro decorre, em

princípio, do mesmo elemento de conexão que define a esfera de aplicação da lei

do foro (vg: o Direito português é aplicável à capacidade de um português do

mesmo modo que o Direito espanhol é aplicável à capacidade de um espanhol). O

Direito estrangeiro é aplicável em “igualdade de circunstâncias” com o Direito do

foro, enfim.

Já o unilateralismo, por seu lado, é suspeito de levar a um favorecimento da

esfera de aplicação do Direito do foro em detrimento do Direito estrangeiro.

Vantagens: as normas unilaterais maximizam a aplicação da lei do

foro

Desvantagens: conduzem à desarmonia internacional de soluções,

aumentando o risco de os tribunais dos diferentes Estados

apreciarem segundo Direitos diversos uma mesma situação.

Se a situação em apreço se encontrar fora da esfera de aplicação do Direito

do foro, o unilateralismo manda atender ao Direito estrangeiro que se considera

competente. Questiona-se: e se dois Direitos estrangeiros se considerarem

competentes? Ou, diferentemente, se nenhum Direito estrangeiro se considerar

competente? Sob pena de denegação de justiça, o juiz deve escolher um dos

Direitos para solucionar o caso ou, no caso em que nenhum mostre disposição para

isso, deve chamar à aplicação algum deles.

§4: BILATERALIZAÇÃO DE NORMAS UNILATERAIS

Neste âmbito, surge o conceito de “bilateralização de normas

unilaterais”: quando num Estado vigore uma norma de conflitos unilateral e a

situação em causa se situe fora da esfera de aplicação do Direito do foro, os

tribunais desse Estado integram a lacuna mediante a bilateralização da norma

unilateral. Esta operação pressupõe, por isso:

1º: uma lacuna.

2º: generalização da previsão da norma.

Exemplifiquemos:

Exemplo paradigmático de norma unilateral: o art. 3º, nº 3 Code Civil

– considerando que “as leis relativas ao estado e à capacidade das

pessoas se aplicam aos franceses, mesmo que residam em país

estrangeiro”, os juízes daqui extraem a conclusão que o estado e a

capacidade de um português está submetido ao Direito português e,

20

Page 21: Direito Internacional Privado

Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

mais em geral, que o estado e a capacidade das pessoas em geral

são regidos pelo Direito da nacionalidade. Esta seria, assim, uma

norma de conflitos bilateral pura, pelo que a bilateralização diz-se

pura ou perfeita. Exemplo de bilateralização imperfeita: se o art. 3º,

nº 3 Code Civil dissesse que aos portugueses se aplica a lei

portuguesa, sem mais.

Assim, ainda que o bilateralismo seja preponderante nos sistemas de DIP,

não encontramos actualmente sistemas puramente unilateralistas ou puramente

bilateralistas.

Mas nem sempre a bilateralização é possível: só será possível quando a

regra unilateral valha como revelação de um “princípio geral”, como uma conexão

adequada à situação.

LIMA PINHEIRO coloca o problema em dois níveis diferentes:

1º: cumpre determinar se existe, efectivamente, uma lacuna.

o Num sistema jurídico em que não haja normas bilaterais (mas

tão-só normas unilaterais), surge uma lacuna sempre que não

seja aplicável o Direito do foro a certos estados ou categorias

de relações jurídicas. Exemplo: uma norma que apenas

estabelece a competência do Direito do foro para reger o

estado e a capacidade dos nacionais (art. 3º, nº3 Code Civil),

suscita uma lacuna quando se coloca o problema do Direito

aplicável aos estrangeiros – vg A, francês, casa-se com B,

português.

o Problema: normas de conflitos unilaterais especiais, como o

art. 3º, nº 1 CSC – a 2ª parte só contempla a hipótese em que

a sociedade tem sede da administração no estrangeiro e sede

estatutária em Portugal. Nos restantes casos (sede estatutária

num país estrangeiro diferente daquele onde se situa a sede

da administração, vg duas sedes no estrangeiro), deve aplicar-

se a regra geral (o estatuto pessoal é regido pela lei da sede

da administração) ou bilateralizar-se a norma unilateral

especial (nº 1, 2ª parte)? – LIMA PINHEIRO: há que atender à

ratio legis da norma (às razões que fundamentam o critério de

conexão utilizado pela norma de conflitos unilateral, enfim) – o

legislador atendeu à confiança depositada por terceiros na

competência da lei da sede estatutária, pelo que não haveria

lacuna e aplicar-se-ia a regra geral prevista no nº 1, 1ª parte

(MARQUES DOS SANTOS e MOURA RAMOS). Assim, a

confiança de terceiros também deve ser tutelada quando a

21

Page 22: Direito Internacional Privado

Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

sede estatutária esteja situada no estrangeiro. Há uma lacuna,

que deve ser suprida mediante bilateralização da norma

unilateral especial (nº 1, 2ª parte), para LIMA PINHEIRO, uma

vez que essa norma preconiza a solução mais adequada do

que a tutela da confiança prevista no nº 1, 1ª parte. O

afastamento da última norma implica um raciocínio de

interpretação restritiva ou de redução teleológica.

o E quando as normas de conflitos unilaterais se referem a

questões parciais que estariam, em princípio, englobadas no

domínio de aplicação de normas de conflitos bilaterais? Neste

caso, entende LIMA PINHEIRO que só existirá

verdadeiramente uma lacuna se, na impossibilidade de

determinar o Direito aplicável, se afastar o recurso às normas

de conflitos geral.

o Outro exemplo: se não existisse no nosso sistema o art. 65º,

nº 2, que ressalva a aplicabilidade de normas como aquela do

art. 2223º, colocar-se-ia a questão de saber se a forma do

testamento celebrado por um estrangeiro, num país que não é

o da sua nacionalidade, seria exclusivamente regida pela

regra de conflitos geral ou por uma norma semelhante à do

art. 2223º. Na falta da última, estaríamos perante uma

verdadeira lacuna que deveria ser integrada mediante a

bilateralização da norma de conflitos unilateral em causa.

2º: integração da lacuna.

o Quanto às normas unilaterais ad hoc: a bilateralização está

condicionada à existência, naquele sistema, de normas com o

mesmo conteúdo e função, envolvendo um processo mais

amplo, a que LIMA PINHEIRO designa de “generalização”. A

generalização compreende:

O “alargamento da previsão” da norma (reformulando-

a, por forma a abranger normas materiais estrangeiras

com o mesmo conteúdo e função); e

A bilateralização em si (veja-se os arts. 2223º e 65º, nº

2).

o De iure condendo , LIMA PINHEIRO defende que esta

bilateralização se venha a traduzir na formulação de regras de

remissão condicionada, em termos que veremos infra.

o As normas bilaterais imperfeitas (cfr. supra) também suscitam

um problema de integração de lacunas: no caso de se concluir

22

Page 23: Direito Internacional Privado

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pela existência de uma lacuna, esta pode, em princípio (a

verificação deve ser caso a caso!), ser integrada mediante

uma aplicação analógica da norma bilateral imperfeita. Por

exemplo, no caso de o art. 51º não prever o casamento entre

dois estrangeiros (lacuna), parece que a sua aplicação

analógica é possível neste caso, para que dois estrangeiros

possam casar noutro Estado perante os respectivos agentes

diplomáticos ou consulares. Já a formulação de uma norma

bilateral perfeita está afastada.

Ainda que possam ser levantados impedimentos à bilateralização, como a

necessidade de defesa de interesses privados locais perante interesses

estrangeiros, LIMA PINHEIRO considera que, perante a verificação de uma lacuna,

as normas unilaterais são, em regra, bilateralizáveis. Aquelas que não o forem

serão normalmente designadas por normas de delimitação (rules of limitation of

law).

§5: FUNÇÃO DA NORMA DE CONFLITOS UNILATERAL

As normas de conflitos unilaterais realizam um processo de regulação

indirecta de situações transnacionais mas por meio do chamamento do Direito do

foro. Não têm, por isso, uma dupla função (como as normas de conflitos bilaterais).

A função das normas unilaterais especiais ad hoc consiste ainda na

determinação do Direito aplicável a uma situação transnacional, mas delimitam a

esfera de aplicação no espaço das normas a que se reportam.

§6: NORMAS DE REMISSÃO CONDICIONADA

As normas de remissão condicionada são aquelas em que observa uma

“conexão condicional”, ie, a norma de conflitos incorpora, como condição de

aplicação, determinada posição assumida pelo DIP da lei designada: é o que se

verifica com o art. 47º: a capacidade para constituir ou dispor de direitos reais

sobre imóveis é definida pela lei da situação da coisa desde que essa lei assim o

determine. Para LIMA PINHEIRO, uma norma de remissão condicionada é aquela

que tem em conta a competência da lei estrangeira segundo o respectivo DIP.

Exemplos: arts. 28º nº 3, 31º nº 2, 36º nº 1 in fine, 45º nº 3, 47º e 65º

nº 2.

Não se confunda com devolução, uma vez que esta se verifica se a lei

estrangeira designada pela nossa norma de conflitos não aceitar a

competência, caso em que cabe aplicar a lei portuguesa.

§7: NORMAS DE RECONHECIMENTO

23

Page 24: Direito Internacional Privado

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Norma de reconhecimento é, para LIMA PINHEIRO, aquela que estabelece

que determinado resultado material ou que efeitos jurídicos se produzirão na ordem

jurídica do foro caso se verifiquem noutro Direito (normas sobre o reconhecimento

de efeitos de sentenças estrangeiras).

É, ainda assim, uma norma de remissão porque determina a aplicação do

Direito estrangeiro à produção do efeito.

§8: O DIP E OUTRAS DISCIPLINAS JURÍDICAS

O DIP na relação com outras disciplinas jurídicas:

O DIP e o Direito Constitucional

o O Direito Constitucional interfere com o DIP nos seguintes

planos:

Recepção do DIP Público Geral (art. 8º CRP)

Incidência sobre:

O Direito da Nacionalidade

O Direito dos Estrangeiros (art. 15º CRP)

Compatibilidade de certos elementos de conexão com

a tutela constitucional dos Direitos Fundamentais, em

países com Constituições recentes, como Portugal: o

Princípio da Igualdade levou à alteração dos arts. 52º e

53º, ao preverem anteriormente a lei da nacionalidade

do cônjuge marido.

O DIP e o DIP Público

o As fontes de um podem ser as fontes do outro.

o DIP Público: reconhece a personalidade internacional dos

particulares em termos limitados; as situações transnacionais

são reguladas na ordem jurídica dos Estados e no plano do

direito autónomo do Comércio Internacional.

o DIP: assiste-se a tendências de internacionalpublicização das

relações do Comércio Internacional.

o Há, pois, áreas de sobreposição entre um e outro ramo.

O DIP e o Direito Comunitário

o Para LIMA PINHEIRO, o TCE não contém “normas de conflitos

ocultas” nem condiciona a actuação do Direito de Conflitos.

o O princípio de proibição de discriminação em razão da

nacionalidade, previsto no art. 12º TCE, só proíbe a

discriminação “no âmbito de aplicação do Tratado”.

o Pergunta-se frequentemente se a integração comunitária

implicou uma unificação do direito material privado. Para

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Page 25: Direito Internacional Privado

Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

LIMA PINHEIRO, mesmo se vigorasse uma concepção

federalista da União Europeia (os “Estados Unidos da

Europa”), essa concepção não implicaria a unificação do

Direito (veja-se o exemplo americano). O mercado comum é,

por isso, compatível com a pluralidade de situações jurídicas.

3. A JUSTIÇA E OS PRINCÍPIOS GERAIS DO DIREITO DE CONFLITOS

§1: A JUSTIÇA

A justiça concretiza-se em valores e princípios jurídicos:

Ideia de supremacia do Direito

Valores formais do Direito de Conflitos:

o Certeza

o Previsibilidade

o Harmonia internacional de soluções

Valores materiais do Direito de Conflitos:

o Dignidade da pessoa humana

Respeito da personalidade dos indivíduos

o Igualdade

Carácter bilateral das normas de conflitos

Igualdade de tratamento

Exclusão de elementos de conexão discriminatórios

o Adequação

o Equilíbrio e ponderação

o Liberdade

Princípio da autonomia privada

o Tutela da confiança

o Bem comum

§2: OS PRINCÍPIOS

Os princípios do Direito de Conflitos auxiliam o intérprete na interpretação e

integração de lacunas.

LIMA PINHEIRO discorda da posição de BAPTISTA MACHADO segundo a

qual os princípios prevalecem sobre as normas de conflitos singularmente

consideradas, uma vez que defende a igual vinculatividade das normas de conflitos

face às normas materiais. Distingue:

Princípios de conformação global do sistema:

o Princípio da harmonia jurídica internacional

25

Page 26: Direito Internacional Privado

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o Princípio da harmonia material ou interna (unidade do

sistema)

o Princípio da confiança

o Princípio da efectividade

o Princípio do favor negotii

o Princípio da reserva jurídico-material

Princípios de escolha das conexões:

o Princípio da conexão mais estreita

o Princípio da personalidade (noção de lei pessoal)

o Princípio da territorialidade

o Princípio da autonomia privada

4. ESTRUTURA GERAL DA NORMA DE CONFLITOS

§1: ELEMENTOS DA NORMA DE CONFLITOS

A previsão (= conceito-quadro) da norma de conflitos define os

pressupostos de cuja verificação depende a sua aplicação, delimitando o seu

objecto e o seu âmbito material.

Nestes termos, a maior parte das normas de conflitos delimitam as situações

da vida através de conceitos técnico-jurídicos, correspondendo a categorias de

situações ou a questões parciais (como a capacidade) – vg art. 46º, nº 1.

Todavia, encontramos exemplos de algumas normas de conflitos que não se

reportam a situações típicas globalmente consideradas, mas apenas a certos

aspectos parcelares (vg capacidade negocial). Com efeito, a especialização do

Direito de Conflitos acentua o fraccionamento na regulação das situações

transnacionais, uma vez que quanto mais numerosas forem as normas de conflitos,

e mais limitado o seu âmbito de incidência, mais frequente será a submissão de

diferentes aspectos da mesma situação a leis diversas e a várias normas de

conflito, com aplicação de leis materiais distintas. Exemplo: o contrato de compra e

venda celebrado em França entre um português e um espanhol pode desencadear

a aplicação da lei portuguesa, lei espanhola ou lei francesa, consoante se apliquem

os arts. 8º ROMA, 46º CC e 9º ROMA, respectivamente.

Este fenómeno de fraccionamento designa-se de dépeçage. MARIA HELENA

BRITO enuncia, neste âmbito, dois princípios: o princípio do direito único (conexão

mais estreita, art. 4º ROMA) e o princípio da coordenação (eliminação de

contradições normativas ou valorativas).

O dépeçage traz consigo o risco de contradições normativas ou valorativas

entre proposições jurídicas que são pedidas a diferentes ordens jurídicas. A

26

Page 27: Direito Internacional Privado

Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

preservação da harmonia material reclama, por isso, a reconstrução da unidade e

coerência mediante a conjugação dos diferentes estatutos.

A estatuição (= conexão) da norma de conflitos consiste na consequência

jurídica que a norma desencadeia, sendo tradicionalmente identificada com a

conexão. A conexão, essa, é o chamamento de um ou mais Direitos para regularem

a questão (coincide com a função da norma de conflitos). O Direito aplicável será

designado de lex causae.

A estatuição da norma de conflitos carece, pois, de concretização.

§2: CONEXÃO

A conexão em geral pode assumir as seguintes modalidades:

Conexão singular: conexão cujo resultado desencadeia a aplicação

de um só Direito para reger a situação.

o Simples: a norma de conflitos designa por forma directa e

imediata um único Direito aplicável à questão, vg art. 46º, nº

1.

o Subsidiária: a norma de conflitos dispõe de uma série de

elementos de conexão que operam em ordem sucessiva, por

forma a que a actuação do elemento de conexão seguinte

depende da falta de conteúdo concreto do elemento de

conexão anterior, vg arts. 52º, 53º, 31º e 32º.

o Alternativa: a norma de conflitos contém dois ou mais

elementos de conexão, susceptíveis de designarem dois ou

mais Direitos, sendo efectivamente aplicado aquele que, no

caso concreto, se mostrar mais favorável à produção de um

efeito jurídico, vg art. 36º e 65º.

o Optativa: a norma de conflitos dispõe de dois ou mais

elementos de conexão, susceptíveis de designarem dois ou

mais Direitos, sendo efectivamente aplicado aquele que seja

escolhido por uma determinada categoria de interessados, vg

art. 7º ROMA II.

Conexão plural: conexão cujo resultado desencadeia a aplicação de

mais de um Direito para reger a situação.

o Cumulativa simples: a norma de conflitos exige, para que se

produza certo efeito jurídico, que o efeito seja desencadeado

ou reconhecido por dois ou mais Direitos simultaneamente, vg

art. 33º, nº 3. Consequência: aplicação da lei mais exigente

(BATIFFOL).

27

Page 28: Direito Internacional Privado

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o Limitativa ou condicionante: a norma de conflitos chama

um Direito como primariamente competente, mas atribui a

outro sistema uma função limitativa ou condicionante quanto

à produção de certo efeito, vg art. 60º, nº 4.

§3: ELEMENTO DE CONEXÃO

O elemento de conexão é tradicionalmente considerado um laço que se

estabelece entre uma situação da vida e o ordenamento de um Estado soberano.

LIMA PINHEIRO considera esta noção insuficiente, uma vez que pode consistir em:

Laço fáctico (art. 60º, nº 2)

Vínculo ou qualidade jurídica (vg nacionalidade)

Consequência jurídica (vg lugar do efeito lesivo)

Facto jurídico (art. 41º, nº 1)

Não se confunda com conexão: o elemento de conexão individualiza o

Direito a ser aplicado, enquanto que a conexão chama uma ou mais ordens

jurídicas.

LIMA PINHEIRO classifica o elemento de conexão, quanto ao conteúdo:

Conceito técnico-jurídico (vg nacionalidade e domicílio)

Descritivo ou fáctico (vg lugar da situação da coisa ou lugar do facto)

Para além desta classificação, o elemento de conexão pode ainda ser:

Móvel: passível de mudança no tempo (vg domicílio, nacionalidade ou

residência habitual).

Imóvel: insusceptível de mudança no tempo (vg lugar da celebração

do contrato, lugar da situação da coisa imóvel ou lugar da

perpetração do delito).

Neste âmbito, cumpre atender ao denominado elemento de conexão de

conceito designativo indeterminado: vg lei do Estado com o qual existe conexão

mais estreita (arts. 4º ROMA, 52º, nº 2, in fine e 60º, nº 2, in fine).

A conexão mais estreita radica no princípio da proximidade, de LAGARDE,

segundo o qual se aplicaria a lei da conexão mais estreita em função da

ponderação das circunstâncias do caso concreto. Nestes termos, adopta dois tipos

de normas de conflitos:

Normas de conflitos que remetem directamente para a lei da conexão

mais estreita (os exemplos supra).

Cláusulas de excepção: normas jurídicas que ordenam a aplicação da

lei com a qual existe uma conexão mais estreita, em detrimento da

lei mandada aplicar a título principal por outras normas de conflito.

o Gerais: não existem em Portugal (contra, FERRER CORREIA e

BAPTISTA MACHADO sustentam que vigora na nossa ordem

28

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jurídica uma cláusula de excepção geral implícita que manda

aplicar a lei do Estado com o qual existe conexão mais

estreita).

o Especiais: art. 4º, nº 5 ROMA II.

5. INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA NORMA DE CONFLITOS

§1: INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO DA NORMA DE CONFLITOS

Os critérios de interpretação da norma de conflitos são os critérios gerais do

CC (arts. 8º e 9º).

Estaremos perante uma lacuna da lei no Direito dos Conflitos quando não

encontramos uma norma de conflitos de fonte legal que indique a lei reguladora de

determinada situação transnacional. As lacunas podem ser patentes ou ocultas:

serão ocultas quando se descobrem mediante interpretação restritiva ou redução

teleológica de uma norma de conflitos existente.

Para BAPTISTA MACHADO, as lacunas de DIP são necessariamente

patentes. Já LIMA PINHEIRO não afasta a possibilidade de verificação de lacunas

ocultas de DIP. Exemplifiquemos: uma situação transnacional pode, à primeira

vista, parecer encontrar-se abrangida pela previsão de uma norma de conflitos mas,

por via de interpretação restritiva ou de redução teleológica, vir-se a concluir que

existe uma lacuna (vg o já analisado art. 3º, nº 1 CSC).

Na integração da lacuna deve ter-se em conta o disposto no art. 10º, nos

termos gerais:

1º: deve recorrer-se à norma aplicável a caso análogo (analogia

legis).

2º: na falta de norma aplicável a um caso análogo, a solução do caso

deve ser obtida mediante uma concretização dos princípios gerais e

ideias orientadoras do Direito de Conflitos (analogia iuris).

3º: não sendo possível integrar a lacuna por nenhum dos processos

supra, o intérprete deve criar um critério de decisão “dentro do

espírito do sistema”, que seja susceptível de ser seguido em casos

semelhantes, no futuro.

§2: A NORMA DE CONFLITOS COMO NORMA DE CONDUTA

Para a Escola de Coimbra (FERRER CORREIA e BAPTISTA MACHADO) as

normas de conflitos têm por principais destinatários os tribunais, não os

particulares. Nestes termos, o objecto das normas de conflitos são normas

materiais (uma vez que as normas de conflitos são normas sobre normas). São

29

Page 30: Direito Internacional Privado

Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

normas que teriam por fim resolver um conflito de leis materiais. Por isso, a norma

de conflitos será de aplicação universal e imediata, uma vez que o seu âmbito de

aplicação no espaço e no tempo é ilimitado. Uma vez que não se constituem

direitos nem se impõem deveres, a questão da retroactividade nem sequer é

suscitada. Por outras palavras, as normas de conflitos seriam normas materiais que

se aplicam a situações da vida.

Já LIMA PINHEIRO, na esteira de ISABEL DE MAGALHÃES COLLAÇO,

defende que as normas de conflitos são normas de (1º) regulação (2º) indirecta e

que, por regra, têm por função orientar a conduta dos sujeitos. Só

excepcionalmente seriam aplicadas como meros critérios de decisão. Não há que

considerar, por isso, que sejam à partida de aplicação imediata e universal, no

tempo e no espaço, respectivamente. O seu objecto coincide com o objecto do DIP

(situações transnacionais). Por outras palavras, as normas de conflitos seriam

situações da vida que se aplicam a normas materiais.

Ainda que as divergências entre as duas Escolas sejam significativas, ambas

concordam que as normas de conflitos incidem sobre interesses particulares e não

sobre os interesses do Estado (foi há muito afastada a concepção de regularem

conflitos de soberanias).

§3: APLICAÇÃO NO TEMPO DO DIREITO DE CONFLITOS

No âmbito da aplicação de normas de conflitos no tempo, LIMA PINHEIRO

propõe:

1º: recurso a normas transitórias, se as houver, que disponham

expressamente sobre a aplicação no tempo do Direito de conflitos. É

o caso das normas que constam do Decreto Preambular do Código

Civil de 1966: são normas especiais de direito transitório que regulam

a sucessão no tempo de regras materiais, pelo que são

analogicamente aplicáveis às normas de conflitos (uma vez que não

existem normas de direito transitório que apenas regulem a sucessão

no tempo de normas de conflitos). Outro exemplo: art. 1107º Código

Seabra.

2º: na omissão do legislador, deve recorrer-se ao Direito

Intertemporal da ordem jurídica em que estão integradas as normas

de conflitos em causa (na esteira de ISABEL DE MAGALHÃES

COLLAÇO). Assim, a aplicação da norma de conflitos antiga é

imposta pelo princípio da continuidade das situações jurídicas.

o arts. 12º e 13º: normas gerais de direito transitório que

regulam a sucessão no tempo de regras materiais.

§4: APLICAÇÃO NO ESPAÇO DO DIREITO DE CONFLITOS

30

Page 31: Direito Internacional Privado

Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

São duas as concepções tradicionais nesta matéria:

Alcance universal e territorialismo quanto aos órgãos de aplicação do

DIP:

o Toda e qualquer designação da lei competente para regular

uma situação passa exclusivamente pelo Direito do foro.

Limitação do Direito de Conflitos pelo princípio dos direitos

adquiridos:

o Pretende-se tutelar a confiança depositada pelas partes na

existência de situações que se constituíram segundo o Direito

de um Estado que apresenta um laço particularmente

significativo com a situação.

Vigoram na ordem jurídica portuguesa certas normas de conflitos que de um

ou outro modo limitam o campo de aplicação no espaço de outras normas de

conflitos. Exemplos:

art. 31º, nº 2 (conjugado com o nº 1 e o art. 25º).

o Norma de remissão condicionada que dá relevância ao Direito

de Conflitos estrangeiro.

art. 47º (conjugado com os arts. 25º, 31º nº 1 e 32º).

o Norma de remissão condicionada que dá relevância ao Direito

de Conflitos estrangeiro.

art. 37º LAV

6. DO ELEMENTO DE CONEXÃO

§1: INTERPRETAÇÃO E CONCRETIZAÇÃO DO ELEMENTO DE CONEXÃO

Há dois momentos fundamentais na interpretação e aplicação do elemento

de conexão:

Interpretação: determinação do sentido e alcance do conteúdo do

conceito que designa o elemento de conexão – vg: o que deve

entender-se por nacionalidade?

o A interpretação é feita lege fori.

Concretização: determinação do laço em que se traduz o elemento de

conexão – vg: qual o Estado de que A é nacional?

o A concretização pode ser lege fori ou lege causae.

A concretização do elemento de conexão pode debater-se com três

problemas:

Determinação do conteúdo concreto do elemento de conexão:

o Concretização lege fori (com base nas normas materiais da

ordem jurídica do foro)

31

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Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

o Concretização lege causae (com base na ordem jurídica que

se considera competente). Este tipo de concretização debate-

se com um vício lógico: dar por adquirido o que se pretende

demonstrar. Assim, a solução pauta-se por um método de

tentativas ou de ensaio, consultando todas as leis

potencialmente aplicáveis.

Neste âmbito, cumpre atender aos denominados conflitos latentes de

concretização do elemento de conexão, exemplificando:

Há harmonia jurídica se:

o Concretização lege fori do elemento de conexão

nacionalidade:

Lei PT – Lei Fr.

Lei Fr – Lei Fr.

Lei Ital – Lei Fr.

Não há harmonia jurídica, mas sim um conflito latente (mesmo

tratando-se do mesmo elemento de conexão), se:

o Concretização lege fori do elemento de conexão capacidade:

Lei PT – Lei Fr.

Lei Fr – Lei Fr.

Lei Ital – Lei PT.

Há harmonia jurídica se:

o Concretização lege causae:

Lei PT – Lei Fr.

Lei Fr – Lei Fr.

Lei Ital – Lei Fr.

O ordenamento jurídico francês é o único em que o

elemento de conexão se concretiza no seu território.

A concretização lege causae pode suscitar casos de conteúdo

múltiplo ou de falta de conteúdo:

o Conteúdo múltiplo do elemento de conexão: vg dupla ou tripla

nacionalidade, dupla residência habitual (conflito positivo na

concretização do elemento de conexão). O problema do

conteúdo múltiplo pode ser resolvido por uma norma especial

(vg arts. 27º e 28º LNAC, quanto ao elemento de conexão

nacionalidade). Os restantes elementos de conexão devem ser

concretizados caso a caso, à luz dos princípios gerais do DIP.

o Falta de conteúdo do elemento de conexão: vg apátridas

(conflito negativo na concretização do elemento de conexão:

nenhuma lei atribui nacionalidade àquela pessoa). O problema

32

Page 33: Direito Internacional Privado

Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

da falta de conteúdo também pode ser resolvido por uma

norma especial (vg arts. 32º, nº 2, e 82º), ou através do

critério geral estabelecido pelo art. 23º, nº 2, 2ª parte (manda

recorrer à lei que for subsidiariamente competente). Na falta

de conexão subsidiária, sem que se possa concretizar o

elemento de conexão (seja porque nem sequer alegou o lugar

da situação da coisa imóvel, vg), resta recurso ao Direito

material português do foro, por aplicação analógica do

disposto no art. 348º, nº 3, uma vez que não vigora um

princípio de conexão mais estreita em Portugal (LIMA

PINHEIRO).

Concretização no tempo do elemento de conexão

o E se o conteúdo concreto for susceptível de sofrer alteração

no tempo? - vg nacionalidade, residência habitual, etc.

o Solução:

Analogia entre a sucessão de estatutos e o conflito de

leis no tempo (BAPTISTA MACHADO)

Interpretação da norma de conflitos que suscita o

problema (ISABEL DE MAGALHÃES COLLAÇO e

FERRER CORREIA).

§2: ELEMENTOS DE CONEXÃO EM PARTICULAR

A doutrina interpretou e concretizou cada um dos elementos de conexão, em

particular:

Nacionalidade:

o arts. 31º, nº 1, 52º e 53º: normas que remetem para a lei

pessoal.

o art. 45º, nº 3: norma que não remete para a lei pessoal do

indivíduo.

o Para a ordem jurídica portuguesa, estas normas nunca podem

remeter para a lei de um Estado não soberano.

o Neste âmbito, cumpre atender ao Acórdão MICHELETTI

(1992): acórdão que pretendeu solucionar o problema de um

argentino/italiano que pretende prevalecer-se da liberdade de

estabelecimento, invocando o facto de uma das suas duas

nacionalidades ser de um Estado-membro da União Europeia.

Jurisprudência pronunciou-se no sentido de, para efeitos da

liberdade de estabelecimento, prevalecer sempre a

nacionalidade do Estado-membro. DÁRIO MOURA VICENTE

33

Page 34: Direito Internacional Privado

Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

veio sustentar a impossibilidade desta solução jurisprudencial

ser transposta para o Direito de Conflitos, em termos gerais,

mas apenas tratando-se de um caso de uma das quatro

liberdades comunitárias. Já LIMA PINHEIRO defende que esta

solução vale para resolver conflitos de nacionalidade de

Direito de Conflitos, afastando o art. 28º LNAC (uma vez que

prevalece sobre este).

o Interpretação do elemento de conexão nacionalidade: vínculo

jurídico-político que une a pessoa ao Estado.

o Concretização: lege causae, por força de um princípio de DIP

Público (é prerrogativa de cada Estado dizer quem são os seus

nacionais).

Domicílio:

o arts. 32º, nº 1, 2ª parte (apátrida menor)

o art. 39º, nº 3 (representação voluntária: domicílio profissional)

o Interpretação do elemento de conexão domicílio: vínculo

jurídico que liga uma pessoa a um lugar, aliado a uma nota

objectiva de permanência nesse mesmo lugar.

o Concretização: lege causae (domicílio legal) e lege fori

(domicílio profissional), art. 39º.

Problemas de conteúdo múltiplo do elemento de

conexão (vg duplo domicílio): MARQUES DOS

SANTOS propõe a aplicação analógica dos arts. 27º e

28º LNAC.

Problemas de falta de conteúdo do elemento de

conexão (vg falta de domicílio): MARQUES DOS

SANTOS propõe, no caso do art. 39º, a aplicação

analógica do art. 32º. Na falta destes, a aplicação da lei

do foro.

Residência habitual:

o art. 32º, nº 1 (apátridas)

o arts. 52º nº 2, 53º nº 2, 54º, 56º nº 2, 57º nº 1 e 60º nº 3

o Interpretação do elemento de conexão residência habitual:

residência com carácter de permanência.

o Concretização: lege causae.

Problemas de conteúdo múltiplo do elemento de

conexão (vg dupla residência habitual): MARQUES

DOS SANTOS propõe a aplicação analógica dos arts.

27º e 28º LNAC e LIMA PINHEIRO sustenta a

34

Page 35: Direito Internacional Privado

Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

residência habitual do Estado com conexão mais

estreita.

Problemas de falta de conteúdo do elemento de

conexão (vg falta de residência habitual, mas apenas

residência ocasional): MARQUES DOS SANTOS

propõe a aplicação analógica dos arts. 31º e 32º e, na

falta destes, a aplicação da lei do foro.

Lugar da celebração do contrato:

o O problema de concretização do elemento de conexão apenas

se coloca quando o contrato é celebrado entre ausentes.

Assim, ISABEL DE MAGALHÃES COLLAÇO propõe que a

concretização seja lege fori, aplicando-se analogicamente o

disposto no art. 224º, quanto à teoria da recepção. Com uma

excepção: se a aceitação chegou ocasional ou acidentalmente,

deve ser considerado o lugar onde deveria ter chegado a

aceitação.

7. REMISSÃO PARA ORDENAMENTOS JURÍDICOS COMPLEXOS

§1: O PROBLEMA

São ordenamentos jurídicos complexos, entre outros:

EUA

Canadá

Suiça

Neste âmbito importa reter as seguintes normas:

art. 20º: elemento de conexão nacionalidade

art. 19º, nº 1 ConvROMA

art. 22º RegROMA I

art. 25º, nº 1 RegROMA II

o A lei local: do Estado federado, vg.

Para os elementos de conexão que não a nacionalidade:

FERRER CORREIA: é competente o sistema em vigor no lugar para

que aponta directamente o elemento de conexão.

Diferentemente, ISABEL DE MAGALHÃES COLLAÇO: é competente

o ordenamento do Estado soberano. LIMA PINHEIRO concorda com

este entendimento, uma vez que ao DIP não cumpre resolver

conflitos internos.

§2: A SOLUÇÃO

35

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Na resolução do problema da remissão para ordenamentos jurídicos

complexos, cumpre estabelecer a seguinte distinção:

Se o elemento de conexão for a nacionalidade:

o art. 20º

nº 1: sistema unitário de Direito interlocal; se não:

nº 2: DIP unificado; se não (vg EUA):

nº 2, in fine: residência habitual. Aqui, a Escola de

Coimbra (FERRER CORREIA e BAPTISTA MACHADO)

entende esta remissão para a residência habitual,

mesmo que fora do Estado da nacionalidade do

indivíduo. Contra, ISABEL DE MAGALHÃES COLLAÇO

entende tratar-se da residência habitual dentro do

Estado da nacionalidade. Se não, estaremos perante

uma lacuna que deve ser integrada através do princípio

da conexão mais estreita (também LIMA PINHEIRO):

1º: Estado local (subnacionalidade)

2º: Estado local (domicílio)

3º: Estado local (último domicílio/residência

habitual)

e ainda, para ISABEL DE MAGALHÃES

COLLAÇO, 4º: Estado federado onde se situa a

capital do Estado soberano (no caso dos EUA, o

Estado de Washington, DC).

Se o elemento de conexão for outro que não a nacionalidade:

o Não cabe aplicação do art. 20º, pelo que estamos perante

uma lacuna.

o Solução:

Para LIMA PINHEIRO: a lacuna integra-se mediante

aplicação analógica do disposto no art. 20º.

Contra, a Escola de Coimbra propugna a remissão

directa para o Estado local.

8. A DEVOLUÇÃO OU REENVIO

§1: INTRODUÇÃO

O problema da devolução coloca-se quando a norma de conflitos portuguesa

remete para uma ordem jurídica estrangeira e esta, por ter uma norma de conflitos

diferente da nossa, não se considere competente e remeta para outra lei.

Nestes termos, pergunta-se:

36

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Devemos aplicar a lei designada, mesmo que esta não se considere

competente?

Ou devemos ter em conta o DIP da lei designada?

Para respondermos a esta questão cumpre determinar o sentido e alcance

atribuído à referência feita pela nossa norma de conflitos:

Esta referência dirige-se directa e imediatamente ao Direito material

da lei designada? – Referência material.

Ou esta referência dirige-se antes ao DIP da lei designada (Direito de

Conflitos)? - Referência global.

Os pressupostos de um problema de devolução são, pois, os seguintes:

A norma de conflitos do foro (a norma portuguesa) remete para uma

lei estrangeira.

A lei estrangeira designada não se considera competente (a norma

de conflitos estrangeira utiliza um elemento de conexão diferente da

norma de conflitos do foro ou, embora utilizando o mesmo elemento

de conexão, seja interpretada por forma diferente), remetendo para

outra lei (Estado terceiro ou Estado do foro).

§2: TIPOS DE DEVOLUÇÃO

A devolução pode apresentar-se como:

Retorno de competência ou reenvio de primeiro grau:

o O Direito de Conflitos estrangeiro remete a solução da questão

para o Direito do foro (o direito português).

o Exemplo:

Lei aplicável à capacidade de um brasileiro domiciliado

em Portugal:

Lei PT – capacidade é aferida segundo a lei

nacionalidade – Lei Br – capacidade é aferida

segundo a lei do domicílio – devolve para a Lei

PT.

o Podemos ter retorno indirecto quando:

A lei designada (L2) remete para uma lei estrangeira

(L3) com referência global e esta, por sua vez, devolve

para o Direito do foro (o direito português, L1).

Transmissão de competência ou reenvio de segundo grau:

o O Direito de Conflitos estrangeiro remete a solução da questão

para outro ordenamento estrangeiro (que não o direito do

foro).

o Exemplo:

37

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Lei aplicável à sucessão de imóveis, em Inglaterra, do

de cujus francês:

Lei PT – sucessão imobiliária é aferida segundo

a lei da última nacionalidade do de cujus – Lei Fr

– sucessão imobiliária é aferida segundo a lei da

situação dos imóveis – devolve para a Lei Ingl.

o Podemos ter transmissão em cadeia, quando:

A lei designada (L2) remete para uma lei estrangeira

(L3) com referência global e esta também não se

considera competente, devolvendo para uma quarta lei

(L4).

o A transmissão será com retorno, quando:

A lei estrangeira (L3) remete para a lei designada (L2).

Os esquemas típicos de reenvio são quatro:

Retorno directo: L1 – L2 – L1

Retorno indirecto: L1 – L2 – L3 – L1

Transmissão de competência: L1 – L2 – L3 – L4…

Transmissão de competência com retorno: L1 – L2 – L3 – L2

§3: CRITÉRIOS GERAIS DE SOLUÇÃO

Os critérios gerais de solução dos problemas de devolução ou reenvio

podem ser sistematizados nas seguintes teses:

Tese da referência material:

o A referência feita pela norma de conflitos é sempre entendida

como uma referência material: remissão directa e imediata

para o Direito material da lei designada (L2). O Direito de

Conflitos da lei designada não interessa, portanto, e esta tese

contrapõe-se a qualquer sistema de devolução (negação do

reenvio). Encontra-se consagrada no art. 15º ConvROMA e art.

24º RegROMA II.

o Vantagens: respeita a valoração feita pelo legislador na

escolha da conexão mais adequada. Como não aceita a

devolução, não implica abdicar da escolha consagrada na

norma de conflitos do foro.

o Desvantagens: ao ignorar o Direito de Conflitos estrangeiro

esta tese fomenta a desarmonia internacional de soluções.

Tese da referência global:

38

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o A remissão da norma de conflitos para uma ordem jurídica

estrangeira abrange sempre o Direito de Conflitos da lei

designada (referência global).

o Vantagens: esta tese radica no princípio da harmonia

internacional. Uns poderão dizer que reflecte a

indissociabilidade das normas de conflitos em relação às

normas materiais. LIMA PINHEIRO rejeita este entendimento,

uma vez que umas e outras são suficientemente autónomas

para que outra ordem jurídica determine a aplicação desse

Direito material apesar de não ser competente segundo o

Direito de Conflitos.

o Desvantagens:

Objecções de fundo: ao fazer a referência global, o

Direito de Conflitos do foro vai renunciar ao seu juízo

de valor sobre a conexão mais adequada, privilegiando

o critério de conexão do Direito de Conflitos

estrangeiro.

Objecções de natureza prática:

Transmissão ad infinitum (L2 – L3 – L4 – L5…

sucessivamente, sem que se chegue a lei

nenhuma) – para LIMA PINHEIRO, esta

objecção é de rara verificação na prática, uma

vez que as situações transnacionais estão

geralmente em contacto com um número

limitado de Estados;

Ping pong perpétuo (só é possível quebrar o

círculo vicioso de referência global se um dos

sistemas praticar referência material).

Esta tese apresenta duas modalidades:

TESE DA DEVOLUÇÃO SIMPLES: a remissão da norma de conflitos

do foro abrange as normas de conflitos da ordem estrangeira

(referência global), mas a remissão operada pela norma de conflitos

estrangeira entende-se como referência material (um só Direito

material). Não se respeita, portanto, o tipo de remissão feito pelo

Direito de Conflitos estrangeiro. Por outras palavras, a referência é

global, para o Direito de Conflitos, mas só quanto às normas de

conflitos, e não quanto às normas de reenvio.

o Teoria adoptada pela jurisprudência portuguesa antes da

entrada em vigor do CC 1966, nos casos de retorno.

39

Page 40: Direito Internacional Privado

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o Exemplo: Direito aplicável à sucessão de um francês

domiciliado e com bens imóveis em Portugal – L1 – lei da

última nacionalidade do de cujus – L2 (Lei francesa) – lei do

último domicílio e lei da situação dos bens imóveis – L1 (lei

portuguesa). O STJ aceitou o retorno, neste caso, e aplicou o

Direito português. Quid iuris se a questão tivesse sido

apreciada num tribunal francês? Este aceitaria o retorno e

aplicaria o Direito francês.

o Vantagens: favorece a aplicação do Direito do foro; é

relativamente fácil de aplicar; encontra sempre uma lei

competente; evita situações de ping pong perpétuo.

o Desvantagens: não leva, em princípio, à harmonia

internacional de soluções, excepto se L2 praticar referência

material. Se todos os sistemas fossem de devolução simples,

nunca haveria harmonia internacional.

TESE DA DEVOLUÇÃO INTEGRAL, foreign court theory ou

dupla devolução: ao contrário da devolução simples, na devolução

integral o tribunal do foro deve decidir a questão transnacional tal

como ela seria julgada pelo tribunal do país da ordem jurídica

designada (L2). A norma de conflitos remete para a ordem jurídica

estrangeira no seu conjunto, incluindo as próprias normas sobre a

devolução (normas de conflito + normas de reenvio).

o Exemplos: L1 (DD) – L2 (RM) – L3; L1 (DD) – L2 (RM) – L1

o Teoria aceite no Direito de Conflitos inglês.

o Vantagens: garante a harmonia na aplicação do Direito. O

tribunal de L1 aplicará a mesma lei e dará, em princípio, a

mesma solução ao caso que o tribunal de L2, caso L2 tenha

um sistema de referência material.

o Desvantagens: tese de difícil generalização, uma vez que

pressupõe, em caso de retorno, que a ordem jurídica

designada não pratica também devolução integral, sob pena

de círculo vicioso ou ping pong perpétuo. Para quebrar o

círculo é preciso recorrer à devolução simples ou à referência

material. Por vezes conduz ainda à aplicação de uma lei que

não se considera competente, e, portanto, ao abandono da

conexão escolhida pelo legislador do foro. Exemplos: L1 (DD) –

L2 (DD) – L3 (DD) – L4 (DD)….; L1 (DD) – L2 (DD) – L1 (DD) –

L2….

40

Page 41: Direito Internacional Privado

Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

Solução adoptada:

ISABEL DE MAGALHÃES COLLAÇO, BATIFFOL e LAGARDE: deve

renunciar-se a qualquer regra geral em matéria de devolução. O

problema deve ser resolvido no plano da interpretação de cada

norma de conflitos, à luz das finalidades por ela prosseguidas.

Sistema vigente em Portugal (arts. 17º, nº 1 e 18º, nº 1): consagra

uma regra geral de referência material mas aceita a devolução em

certos casos, maxime como mecanismo de correcção do resultado a

que conduz no caso concreto a aplicação da norma de conflitos do

foro (quando seja exigido pela justiça conflitual – princípio da

harmonia internacional de soluções e princípio do favor negotii). É um

sistema híbrido, que não consagra em termos expressos qualquer

uma das teses supra.

Sistema alemão e italiano: aceitam a devolução como regra geral,

estabelecendo certos limites.

§4: REGRA GERAL

A regra geral da referência material (remissão directa e imediata para o

Direito material da lei designada, L2) encontra-se consagrada no art. 16º: a

referência das normas de conflito a qualquer lei estrangeira determina apenas, na

falta de preceito em contrário, a aplicação do direito interno [leia-se, Direito

material] dessa lei.

Daqui não resulta, contudo, qualquer adopção da tese da referência material

supra, uma vez que se prevê que “preceito em contrário” a afaste. Exemplos: arts.

17º, 18º, 36º, nº 2 e 65º, nº 1 in fine.

BAPTISTA MACHADO justifica, assim, a consagração, no art. 16º, de uma

“regra pragmática” que admite desvios, e não de um princípio geral.

Cumpre analisar as disposições especiais supra, nas quais o favor negotii

actua como fundamento autónomo de devolução:

art. 36º: no âmbito da forma da declaração negocial, o nº 1 contém

uma conexão alternativa (“é, porém, suficiente”), enquanto que o nº

2 cria uma terceira possibilidade – a observância da forma prescrita

pela lei para que remete a norma de conflitos da lei do lugar da

celebração (a lei local, enfim). Esta norma adopta um sistema de

devolução simples, uma vez que nada refere sobre o sistema de

devolução da norma de conflitos da lei local. Para LIMA PINHEIRO,

este caso de devolução deve ser entendido em termos de devolução

integral.

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Page 42: Direito Internacional Privado

Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

art. 65º, nº 1, in fine: aqui, a devolução vem abrir uma quarta

possibilidade para salvar a validade formal de uma disposição por

morte. Remete-se para o que anteriormente foi dito.

Em conclusão, em matéria de forma do negócio jurídico, admite-se a

transmissão de competência para uma lei que não esteja disposta a aplicar-se para

obter a validade formal do negócio.

Os arts. 17º e 18º contêm regras especiais que admitem a devolução,

configurando um sistema de devolução sui generis, mais próximo da devolução

integral do que da devolução simples (a devolução depende sempre do acordo com

L2). Explicitemos, infra.

§5: TRANSMISSÃO DE COMPETÊNCIA

O art. 17º, nº 1 admite a transmissão de competência: se, porém, o DIP da

lei referida pela norma de conflitos portuguesa remeter [leia-se, aplicar] para outra

legislação e esta se considerar competente para regular o caso, é o direito interno

[leia-se, Direito material] desta legislação que deve ser aplicado. É necessário, pois,

que L2 aplique outra ordem jurídica estrangeira (e não a lei do foro) e que esta

aceite a competência. Não há transmissão de competência quando L2, apesar de

remeter primariamente para L3, não a aplique, vingando antes a regra da

referência material do art. 16º. A transmissão pode ainda ser indirecta se L2 aplicar

L3 mas esta, embora remetendo para L2 outra vez, praticar devolução simples e

aceitar o retorno, considerando-se indirectamente competente.

Já BAPTISTA MACHADO e FERRER CORREIA defendem que, em certos

casos, se aceite a transmissão de competência mesmo que a outra ordem jurídica

aplicada por L2 (seja ela L3 ou L4…, chamemos-lhe Ln) não se considere

competente: vg quando a lei da nacionalidade e a lei da residência habitual ou

domicílio estiverem de acordo na aplicação de Ln. LIMA PINHEIRO rejeita este

entendimento, de iure constituto, uma vez que colidiria com o disposto no art. 16º:

na falta de preceito em contrário, as normas de conflito portuguesas remetem

apenas para o Direito material da lei designada. De iure condendo, contudo, não

afasta esta proposta em termos absolutos.

Exemplo: sucessão imobiliária de francês, cujo imóvel se encontra sito em

Inglaterra. L1 – lei da última nacionalidade do de cujus – L2 (Lei francesa) – lex rei

sitae – L3 (Lei Inglesa) – lex rei sitae – L3 considera-se competente.

O art. 17º, nº 1 abrange ainda, no seu espírito, as hipóteses em que a

transmissão de competência se verifica num caso de transmissão em cadeia (L2

aplica L4 e esta considera-se competente).

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Page 43: Direito Internacional Privado

Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

Sucessão mobiliária de um francês que morreu em Portugal, tendo

com último domicílio a Alemanha.

A norma de conflitos francesa sujeita a sucessão mobiliária à lei do

último domicílio do de cujus.

A norma de conflitos alemã sujeita a sucessão à lei da nacionalidade

do de cujus no momento da morte.

Os tribunais franceses e alemães praticam devolução simples.

1. A situação é transnacional: as ordens jurídicas em contacto são a ordem

jurídica francesa, alemã e portuguesa.

2. A questão jurídica em apreço é a sucessão mobiliária de bens do de cujus.

3. As normas de conflitos potencialmente aplicáveis são os arts. 62º e 31º,

nº 1: a sucessão por morte é regulada pela lei pessoal do autor da sucessão; a lei

pessoal é, neste caso, a da nacionalidade, nos termos gerais. Não se trata de

aplicar potencialmente os arts. 36º, nº 2 e 65º, nº 1, uma vez que se trata de uma

questão relativa à substância da sucessão e não à sua forma.

4. LPT – Lei da nacionalidade – LFr (DS) – Lei do domicílio – Lalem (DS) – Lei

da nacionalidade – LFr.

LF: LF (se a acção fosse intentada em França, aplicar-se-ia o Direito material

francês)

LA: LA (se a acção fosse intentada na Alemanha, aplicar-se-ia o Direito

material alemão)

LPT: LPT (se a acção fosse intentada em Portugal, aplicar-se-ia o Direito

material português)

Devolução simples: a referência é global, para o Direito de Conflitos, mas só

quanto às normas de conflitos, e não quanto às normas de reenvio.

Não se aplica o art. 17º, nº 1 porque a lei francesa aplica o seu Direito

material, por força da remissão operada pela lei alemã.

Aplica-se a regra geral do art. 16º: a referência operada pela lei portuguesa

é material, ie, remete directa e imediatamente para o Direito material da lei

designada, L2 (lei francesa). Logo, cabe aos tribunais portugueses aplicar a lei

francesa.

Sucessão imobiliária de um francês que morreu em Portugal, tendo

como último domicílio o Brasil e cujos imóveis se encontram sitos na

Dinamarca.

As normas de conflitos brasileiras e dinamarquesas submetem a

sucessão mobiliária e imobiliária à lei do último domicílio do de cujus.

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Page 44: Direito Internacional Privado

Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

As normas de conflitos francesas submetem a sucessão imobiliária à

lei do lugar da situação do imóvel.

Os tribunais franceses praticam devolução simples.

Na Dinamarca e no Brasil, a referência a uma lei estrangeira é

geralmente entendida como uma remissão para o seu Direito material

(referência material).

1. A situação é transnacional: as ordens jurídicas em contacto são a ordem

jurídica francesa, brasileira, portuguesa e dinamarquesa.

2. A questão jurídica em apreço é a sucessão imobiliária de bens do de

cujus.

3. As normas de conflitos potencialmente aplicáveis são os arts. 62º e 31º,

nº 1: a sucessão por morte é regulada pela lei pessoal do autor da sucessão; a lei

pessoal é, neste caso, a da nacionalidade, nos termos gerais. Não se trata de

aplicar potencialmente os arts. 36º, nº 2 e 65º, nº 1, uma vez que se trata de uma

questão relativa à substância da sucessão e não à sua forma.

4. LPT – Lei da nacionalidade – LFr (DS) – Lex rei sitae – LDinam (RM) – Lei

domicílio – LBr (RM) – LBr

LF: LB (se a acção fosse intentada em França, aplicar-se-ia o Direito material

brasileiro)

LD: LB (se a acção fosse intentada na Dinamarca, aplicar-se-ia o Direito

material brasileiro)

LB: LB (se a acção fosse intentada no Brasil, aplicar-se-ia o Direito material

brasileiro)

A lei portuguesa remete para L2 (LF), que remete para outra legislação, e

esta considera-se competente (LB): deve aplicar-se o art. 17º, nº 1, e,

consequentemente, o Direito material brasileiro.

§6: EXCEPÇÃO À TRANSMISSÃO DE COMPETÊNCIA

Cessa o disposto no nº 1, se (art. 17º, nº 2): … a lei referida pela norma de

conflitos portuguesa for a lei pessoal e o interessado residir habitualmente em

território português ou em país cujas normas de conflito considerem competente o

Direito interno [leia-se, Direito material] do Estado da sua nacionalidade. Esta

excepção aplica-se em matéria de estatuto pessoal, e nos casos em que já se tenha

aplicado o nº 1. L2 deve ser a lei da nacionalidade.

E se a lei pessoal não for a da nacionalidade? A ratio do preceito (nº 2, in

fine) parece afastar a hipótese em que a lei pessoal fosse a da residência habitual.

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Page 45: Direito Internacional Privado

Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

Cumpre determinar quem é “o interessado” para efeitos de verificação desta

excepção. O interessado é aquele que desencadeou o funcionamento do elemento

de conexão que designou L2 (na sucessão, vg, o interessado será o de cujus).

Se, face ao art. 53º (efeitos das convenções antenupciais e regimes de

bens), entretanto tiver mudado a residência habitual para a aplicação do art. 17º,

nº 2, entende-se que é relevante a residência habitual ao tempo do casamento, e

não a residência habitual actual, sob pena de alterações no regime de bens.

A razão de ser desta norma, dificultando a transmissão de competência em

matéria de estatuto pessoal, radica na primazia da conexão nacionalidade:

Quando o interessado tenha residência habitual em Portugal (nº 2, 1ª

parte): há uma conexão estreita com o Estado do foro e este não

deve, por isso, abdicar da solução que elegeu por mais justa (a lei

nacional).

Quando o interessado tenha residência habitual noutro Estado que

aplica a lei da sua nacionalidade (nº 2, 2ª parte, in fine): a lei da sua

nacionalidade remete para um Estado que não é o da residência

habitual (vg por não consagrar os elementos de conexão

considerados relevantes nesta matéria, como a nacionalidade, o

domicílio ou a residência habitual). Pode acontecer que a lei da

nacionalidade remeta a questão da capacidade para a prática de um

acto para a lei do lugar da celebração, vg. Podemos correr o risco de

aplicar uma lei que não tem um ligação íntima nem estável com o

interessado, ou, no reverso da medalha, aplicar uma lei da

nacionalidade que fica em desarmonia com o DIP da residência

habitual. Assim, justifica-se o recurso à conexão julgada mais

adequada para reger o estatuto pessoal (a lei da nacionalidade),

mesmo que em detrimento da harmonia internacional. Cessa, pois, a

devolução, aplicando-se a lei da nacionalidade.

O art. 17º, nº 3 vem repor a transmissão de competência em casos em que,

por força da norma supra, se justifique um “princípio de maior proximidade”: ficam,

todavia, unicamente sujeitos à regra do nº 1 os casos de:

Tutela

Curatela

Relações patrimoniais entre os cônjuges

Poder paternal

Relações entre adoptante e adoptado

Sucessão por morte

…se a lei nacional indicada pela norma de conflitos devolver para a lei da

situação dos bens imóveis e esta se considerar competente.

Sistematizando, eis os pressupostos de aplicação deste preceito:

45

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Matérias supra indicadas

A lei da nacionalidade aplica-se a lex rei sitae

A lex rei sitae considera-se competente

Verifica-se um dos casos de cessação da transmissão de competência

previstos no nº 2:

o O interessado reside habitualmente em território português

o O interessado reside habitualmente em país cujas normas de

conflitos considerem competente o Direito material do Estado

da sua nacionalidade

Sucessão de um súbdito do Reino Unido, falecido em Portugal,

residente em Londres até 1993, data em que mudou a sua residência para

Roma, cujo património, à data da morte, era constituído por um imóvel

situado na França.

As normas de conflitos francesas e inglesas sujeitam a sucessão

imobiliária à lei do lugar da situação da coisa.

A norma de conflitos italiana sujeita a sucessão à lei da

nacionalidade do de cujus no momento da sua morte.

Os tribunais franceses praticam devolução simples, os tribunais

ingleses praticam dupla devolução e os tribunais italianos praticam

referência material.

1. A situação é transnacional: as ordens jurídicas em contacto são a ordem

jurídica do Reino Unido, italiana, portuguesa e francesa.

2. A questão jurídica em apreço é a sucessão imobiliária de bens do de

cujus.

3. As normas de conflitos potencialmente aplicáveis são os arts. 62º e 31º,

nº 1: a sucessão por morte é regulada pela lei pessoal do autor da sucessão; a lei

pessoal é, neste caso, a da nacionalidade, nos termos gerais. Não se trata de

aplicar potencialmente os arts. 36º, nº 2 e 65º, nº 1, uma vez que se trata de uma

questão relativa à substância da sucessão e não à sua forma.

4. LPT – Lei da nacionalidade – Lei RU (DD) – Lex rei sitae – Lei Fr (DS) – Lex

rei sitae – Lei Fr.

O Reino Unido é um ordenamento jurídico complexo, no qual não vigora

qualquer direito interlocal ou DIP unificado, pelo que se aplica o art. 20º, nº 2, in

fine: atende-se à residência habitual do interessado (de cujus), dentro do Estado da

nacionalidade (para ISABEL DE MAGALHÃES COLLAÇO). Existindo uma lacuna,

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esta deve ser integrada através do princípio da conexão mais estreita (também

para LIMA PINHEIRO), e sucessivamente:

1º: Estado local (subnacionalidade) – Lei inglesa.

2º: Estado local (domicílio)

3º: Estado local (último domicílio/residência habitual) – Lei inglesa.

e ainda, para ISABEL DE MAGALHÃES COLLAÇO, 4º: Estado federado

onde se situa a capital do Estado soberano (no caso dos EUA, o Estado de

Washington, DC).

LING: LF (se a acção fosse intentada em Inglaterra, aplicar-se-ia o Direito

material francês)

LF: LF (se a acção fosse intentada em França, aplicar-se-ia o Direito material

francês)

LIT: LING (se a acção fosse intentada em Itália, aplicar-se-ia o Direito

material inglês)

Os tribunais ingleses praticam dupla devolução, ie, o tribunal do foro deve

decidir a questão transnacional tal como ela seria julgada pelo tribunal do país da

ordem jurídica designada (L2). A norma de conflitos remete para a ordem jurídica

estrangeira no seu conjunto, incluindo as próprias normas sobre a devolução

(normas de conflito + normas de reenvio).

L2 remete para L3 (LFr) e esta considera-se competente (art. 17º, nº 1), mas

não há transmissão de competência porque o de cujus tinha residência habitual na

Itália e as normas de conflitos italianas consideram competente o direito interno do

Estado da sua nacionalidade (a Lei inglesa), segundo o art. 17º, nº 2.

Todavia, cumpre atender ao disposto no art. 17º, nº 3: tendo sido aplicados

os nº 1 e 2, tratando-se de (nomeadamente) sucessão por morte e remetendo a lei

da nacionalidade (Lei inglesa) para a lei da situação dos imóveis (Lei francesa) e

esta se considere competente, voltamos a aplicar a regra do nº 1. A Lei portuguesa

aplica a Lei francesa, porque L2 remete para L3 e esta considera-se competente (nº

1).

Diferentemente, caso adoptássemos a doutrina da Escola de Coimbra quanto

à remissão operada pelo art. 20º, nº 2, in fine, esta seria entendida para a

residência habitual, mesmo que fora do Estado da nacionalidade do indivíduo. Ou

seja, para a Lei italiana. Assim:

LPT – Lei da residência habitual – Lital – Lei da nacionalidade – LIng – Lex rei

sitae – LFr – Lex rei sitae – LFr

LITAL: LING (se a acção fosse intentada em Itália, aplicar-se-ia o Direito

material inglês)

LING: LF (se a acção fosse intentada em Inglaterra, aplicar-se-ia o Direito

material francês)

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Page 48: Direito Internacional Privado

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LF: LF (se a acção fosse intentada em França, aplicar-se-ia o Direito material

francês)

Não caberia aplicar o art. 17º, nº 1, uma vez que L2 (Lital) não remete para

uma lei que se considere competente, pelo que, segundo a regra geral do art. 16º,

a Lei portuguesa aplicaria a Lei italiana.

§7: RETORNO

O retorno de competência é admitido, sob certas condições, pelo art. 18º, nº

1: se o DIP da lei designada pela norma de conflitos devolver para o direito interno

português, é este o direito aplicável. O retorno de competência pressupõe, pois,

que L2 remeta para o Direito português e aplique (!) o Direito material português

(seja por retorno directo ou indirecto): a verificação deste pressuposto é essencial

para que o retorno se considere condição necessária e suficiente para assegurar a

harmonia com L2.

Exemplo (retorno directo): sucessão mobiliária de um francês com último

domicílio em Portugal. Lei portuguesa – Lei da última nacionalidade do de cujus –

Lei francesa – Lei do último domicílio – Lei portuguesa. Lei francesa pratica

devolução simples, pelo que aceita o retorno operado pela lei portuguesa e

considera-se competente. L2 apenas remete para L1, sem a aplicar, pelo que não

aceitamos o retorno e aplicamos L2, nos termos gerais do art. 16º. Em conclusão,

nunca aceitamos o retorno directo operado por um sistema que pratica devolução

simples.

Exemplo (retorno indirecto): L2 remete para L3, com devolução simples, e L3

remete para o Direito português. L2 aplica o Direito material português.

Maiores dificuldades suscita a hipótese de L2 condicionar a aplicação ou não

aplicação do Direito material português ao nosso Direito de Conflitos, vg tratando-

se de um PALOP (sistema de devolução igual ao nosso, antes da reforma de 1977

do Código Civil). No caso de L2 fazer devolução integral, BAPTISTA MACHADO

defende a aceitação do retorno, aplicando-se o Direito material português e

facilitando-se a administração da justiça. LIMA PINHEIRO defende que esta

solução implica um raciocínio circular, uma vez que só poderemos concluir que L2

aplica o Direito material português se afirmarmos que L1 aceita o retorno. Para

mais, se aplicarmos L2, L2 considera-se competente, pelo que o retorno não seria

necessário (recorde-se o princípio de paridade entre a lei do foro e a lei

estrangeira).

FERRER CORREIA é o único que afasta a aplicação do art.18º, nº 1, no caso

de nem todas as leis estarem de harmonia quanto ao Direito material aplicável.

Para a restante doutrina, basta que apenas L2 remeta para LPT.

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Page 49: Direito Internacional Privado

Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

Sucessão dos bens móveis de um francês domiciliado em Portugal

no momento da sua morte.

A norma de conflitos francesa sujeita a sucessão mobiliária à lei do

último domicílio do de cujus.

Os tribunais franceses praticam devolução simples.

1. A situação é transnacional: as ordens jurídicas em contacto são a ordem

jurídica portuguesa e francesa.

2. A questão jurídica em apreço é a sucessão mobiliária de bens do de cujus.

3. As normas de conflitos potencialmente aplicáveis são os arts. 62º e 31º,

nº 1: a sucessão por morte é regulada pela lei pessoal do autor da sucessão; a lei

pessoal é, neste caso, a da nacionalidade, nos termos gerais. Não se trata de

aplicar potencialmente os arts. 36º, nº 2 e 65º, nº 1, uma vez que se trata de uma

questão relativa à substância da sucessão e não à sua forma.

4. LPT – Lei da nacionalidade – LFr (DS) – Lei do último domicílio – LPT

Não podemos aplicar o art. 18º, nº 1 porque a Lei francesa, ao praticar

devolução simples, faz referência global, para o Direito de Conflitos da LPT, mas só

quanto às normas de conflitos, e não quanto às normas de reenvio. O art. 18º, nº 1

só se aplicaria no caso em que a Lei francesa remetesse para a LPT, fazendo

referência material.

A Lei francesa aplica, pois, o seu próprio Direito material.

LF: LF (se a acção fosse intentada em França, aplicar-se-ia o Direito material

francês)

A referência é material, nos termos gerais (art. 16º, uma vez que o art. 18º

não tem aplicação), pelo que os tribunais portugueses devem aplicar a Lei francesa.

Não há que ponderar a aplicação do art. 18º, nº 2, uma vez que esta norma só se

aplica se concluirmos ser possível a aceitação do reenvio ao abrigo do nº 1 do

mesmo artigo.

Em 1998, A, súbdito do Reino Unido e residente em Londres fez,

nesse local, um testamento. Em 1999, quando faleceu, o seu património

era apenas constituído por um imóvel sito em Sintra, que A deixou à sua

amiga B nos termos desse testamento. C, único filho de A, vem requerer,

perante os tribunais portugueses, a redução do testamento por ofensa da

legítima.

As normas de conflitos inglesas sujeitam a sucessão imobiliária à lei

do lugar da situação do imóvel.

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Page 50: Direito Internacional Privado

Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

O DIP inglês consagra a teoria da dupla devolução e, à luz do seu

Direito material, o testamento é válido.

A remissão da lei portuguesa para a lei da nacionalidade é

entendida para o respectivo Direito material, e não para as suas normas

de conflitos (referência material).

O direito dos filhos à legítima não é um princípio de ordem pública

internacional do direito português.

1. A situação é transnacional: as ordens jurídicas em contacto são a ordem

jurídica do Reino Unido e portuguesa.

2. A questão jurídica em apreço é a sucessão imobiliária de bens do de

cujus.

3. As normas de conflitos potencialmente aplicáveis são os arts. 62º e 31º,

nº 1: a sucessão por morte é regulada pela lei pessoal do autor da sucessão; a lei

pessoal é, neste caso, a da nacionalidade, nos termos gerais. Não se trata de

aplicar potencialmente os arts. 36º, nº 2 e 65º, nº 1, uma vez que se trata de uma

questão relativa à substância da sucessão e não à sua forma.

4. LPT – Lei nacionalidade – LRU (LING/DD) – Lex rei sitae – LPT

O Reino Unido é um ordenamento jurídico complexo, no qual não vigora

direito interlocal nem DIP unificado. Considera-se lei pessoal do interessado (o de

cujus) a lei da sua residência habitual dentro do Estado da sua nacionalidade (art.

20º, nº 2, 2ª parte), ou seja, Inglaterra (Londres).

Não se aplica o art. 18º, nº 1 porque o Direito inglês remete para o Direito

material português e para o seu Direito de Conflitos (dupla devolução) – o tribunal

inglês deve decidir a questão transnacional tal como ela seria julgada pelo tribunal

do país da ordem jurídica designada (LPT). A norma de conflitos remete para a

ordem jurídica estrangeira no seu conjunto, incluindo as próprias normas sobre a

devolução (normas de conflito + normas de reenvio). A dupla devolução impede-

nos de aplicar o art. 18º, nº 1.

Logo, aplica-se a regra geral da referência material (art. 16º) e LPT aplica a

Lei inglesa. Há harmonia, na medida em que a Lei inglesa aplicaria também a sua

lei (dupla devolução). Contra, BAPTISTA MACHADO sustenta a aceitação do

reenvio, aplicando-se o art. 18º, nº 1 e a LPT, em nome de uma melhor

administração da justiça, uma vez que o juiz português conhece o Direito material

português.

Este entendimento colide com o que sustenta a maioria doutrinária

(FERRER CORREIA, ISABEL DE MAGALHÃES COLLAÇO, MARQUES DOS

SANTOS e LIMA PINHEIRO) e a jurisprudência: a aceitação da devolução, neste

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Page 51: Direito Internacional Privado

Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

caso, envolveria uma petição de princípio, dando-se por demonstrado o que se

pretende concluir: o reenvio quando a aceitação da devolução depende do reenvio

da LPT para a Lei inglesa.

§8: LIMITAÇÃO DO RETORNO DE COMPETÊNCIA

O retorno de competência também é limitado em matéria de estatuto

pessoal (art. 18º, nº 2): quando, porém, se trate de matéria compreendida no

estatuto pessoal, a lei portuguesa só é aplicável se o interessado tiver em território

português a sua residência habitual ou se a lei do país desta residência considerar

igualmente competente o direito interno português. Este preceito só se aplica

quando há retorno nos termos no nº 1 do mesmo artigo.

Por outras palavras, em matéria de estatuto pessoal, o retorno deve

obedecer a requisitos adicionais, só sendo aceite em duas hipóteses:

Quando o interessado tenha residência habitual em Portugal

Quando o interessado tenha residência habitual num Estado que

aplica o Direito material português: LPT (RM) – L2 (RM) – LPT.

Uma vez mais, este preceito radica na primazia da conexão lei da

nacionalidade. Apesar de a LPT não ser a mais relevante, a Lei da nacionalidade e a

Lei da residência habitual estão de harmonia quanto à aplicação da LPT.

No entanto, dificulta-se mais o retorno de competência (art. 18º, nº 2) do

que a transmissão de competência (art. 17º, nº 2), uma vez que, aqui, o retorno só

se mantém em dois casos, enquanto que a transmissão de competência só cessa

em duas hipóteses. Em caso de retorno, se o elemento de conexão lei da

nacionalidade designar a lei portuguesa, entende-se existir uma conexão forte com

a ordem jurídica do foro.

Sucessão imobiliária de um francês com último domicílio em

Portugal, cujos imóveis se encontram situados no Brasil.

As normas de conflitos francesas sujeitam a sucessão imobiliária à

lei da situação dos imóveis.

As normas de conflitos brasileiras sujeitam a sucessão, em termos

gerais, à lei do último domicílio do de cujus.

Os tribunais franceses praticam devolução simples e o Código Civil

brasileiro consagra o princípio da referência material.

1. A situação é transnacional: as ordens jurídicas em contacto são a ordem

jurídica portuguesa, francesa e brasileira.

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Page 52: Direito Internacional Privado

Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

2. A questão jurídica em apreço é a sucessão imobiliária de bens do de

cujus.

3. As normas de conflitos potencialmente aplicáveis são os arts. 62º e 31º,

nº 1: a sucessão por morte é regulada pela lei pessoal do autor da sucessão; a lei

pessoal é, neste caso, a da nacionalidade, nos termos gerais. Não se trata de

aplicar potencialmente os arts. 36º, nº 2 e 65º, nº 1, uma vez que se trata de uma

questão relativa à substância da sucessão e não à sua forma.

4. LPT – Lei nacionalidade – LFr (DS) – Lex rei sitae – LBr (RM) – Lei último

domicílio – LPT.

A Lei brasileira devolve a competência à LPT.

LF: LPT (se a acção fosse intentada em França, aplicar-se-ia o Direito

material português)

LB: LPT (se a acção fosse intentada no Brasil, aplicar-se-ia o Direito material

português)

LPT: LPT (se a acção fosse intentada em Portugal, aplicar-se-ia o Direito

material português)

Há harmonia: LPT

Não se aplica o art. 17º porque o retorno em causa é para a lei do foro (LPT),

e não para outra legislação.

Segundo o art. 18º, nº 1, se o Direito de L2 (LFr) devolver para LPT, é este o

Direito material aplicável. Ora a Lei francesa pratica devolução simples, aplicando a

LPT. Todavia, como se trata de matéria de estatuto pessoal, a LPT só se aplica se o

interessado (o de cujus) tiver residência habitual em Portugal (art. 18º, nº 2). É o

caso, pelo que se aceita a devolução e é competente a LPT.

§9: LIMITES À DEVOLUÇÃO

Segundo o art. 19º, nº 1, cessa o disposto nos dois artigos anteriores,

quando da aplicação deles resulte a invalidade ou ineficácia de um negócio jurídico

que seria válido ou eficaz segundo a regra fixada no art. 16º, ou a ilegitimidade de

um estado que de outro modo seria legítimo. Se L2 for mais favorável à validade ou

eficácia do negócio ou à legitimidade de um estado, prevalece, pois, o favor negotii

sobre a devolução e sobre a harmonia internacional, na medida em que se pretende

facilitar e desenvolver o comércio internacional. LIMA PINHEIRO considera

exagerada esta primazia, sacrificando-se a harmonia internacional de soluções.

FERRER CORREIA e BAPTISTA MACHADO defendem a interpretação

restrita deste preceito, aplicável apenas às situações já constituídas e em contacto

com a ordem jurídica portuguesa ao tempo da sua constituição, de forma a tutelar a

confiança depositada pelas partes. LIMA PINHEIRO discorda deste entendimento,

uma vez que a interpretação tem que respeitar o sentido possível do texto legal. A

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Page 53: Direito Internacional Privado

Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

“interpretação restritiva” proposta aproxima-se de uma verdadeira redução

teleológica, pelo que é de afastar.

Não há reenvio quando as partes hajam escolhido uma lei material

estrangeira (art. 19º, nº 2): vg art. 34º (pessoas colectivas internacionais) e art. 41º

(obrigações voluntárias). Não se trata de “fazer cessar” ou paralisar a devolução,

mas sim da pura não aplicação dos arts. 17º e 18º, por força da ideia de que a

conexão “escolha das partes” é adversa ao reenvio (FERRER CORREIA).

A referência considera-se material (arts. 36º, 50º e 65º, para MARQUES

DOS SANTOS).

DÁRIO MOURA VICENTE acrescenta ainda que são também adversas ao

reenvio conexões que protejam uma parte (vg art. 45º, nº 2) – lei do lugar do efeito

lesivo, fazendo também referência material.

LIMA PINHEIRO restringe a “aversão ao reenvio” apenas ao âmbito do

art.19º, nº 2.

Certas matérias também não admitem devolução ou reenvio:

art. 15º ConvROMA (referência material)

art. 24º RegROMA II (referência material)

Ressalve-se que nenhum destes preceitos exclui a hipótese de as partes

designarem como aplicável um sistema globalmente considerado, incluindo o

respectivo Direito de Conflitos, vg se remeterem para “o Direito aplicável nos

tribunais do Estado X”. Aqui, respeita-se a vontade das partes.

A devolução também não é admitida nas seguintes matérias, por

Convenções internacionais:

Obrigações alimentares (Convenção da Haia)

Representação voluntária (1978)

“Contratos de mediação” (1978)

Nestes casos, remete-se para a “lei interna”, no sentido de Direito material.

A referência é, pois, material.

LIMA PINHEIRO considera que seja no caso das Convenções internacionais

supra, seja no caso do RegROMA II, a exclusão do reenvio é injustificada.

A, brasileiro com residência habitual em Lisboa, pretende casar em

Portugal.

O Direito brasileiro sujeita a capacidade matrimonial à lei do

domicílio, praticando referência material.

Segundo o Direito português, A não tem capacidade para casar. Mas

tem capacidade à luz do Direito brasileiro.

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Page 54: Direito Internacional Privado

Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

1. A situação é transnacional: as ordens jurídicas em contacto são a ordem

jurídica portuguesa e brasileira.

2. A questão jurídica em apreço é a capacidade para casar.

3. As normas de conflitos potencialmente aplicáveis são os arts. 49º e 31º,

nº 1; a lei pessoal é, neste caso, a da nacionalidade, nos termos gerais.

4. LPT – Lei da nacionalidade – LBr (RM) – Lei do domicílio – LPT.

LB: LPT (se a acção fosse intentada no Brasil, aplicar-se-ia o Direito material

português)

LPT: LPT (se a acção fosse intentada em Portugal, aplicar-se-ia o Direito

material português)

Há reenvio para a lei portuguesa, porque o DIP de L2 (LBr) devolve a

competência para o direito interno português, pelo que é este que se aplica (art.

18º, nº 1). Mas, tratando-se de matéria compreendida no estatuto pessoal (é o

caso), e uma vez que o interessado tem residência habitual em Portugal, aplica-se o

art. 18º, nº 2 e LPT é, ainda assim, aplicável.

Contudo, o casamento seria válido à luz da Lei brasileira, mas não à luz de

LPT. Aplica-se, pois, o art. 19º: o reenvio não é admitido por força do princípio do

favor negotii (que se sobrepõe ao princípio da harmonia jurídica internacional).

Verificam-se todos os pressupostos de aplicação desta norma: a ponderação da

aplicação do art. 18º, a invalidade do negócio, resultante dessa mesma aplicação, e

a validade deste se o art. 16º (regra geral) fosse de aplicar. Cessando o disposto no

art. 18º, aplica-se a referência material, nos termos gerais (art. 16º), devendo os

tribunais portugueses aplicar o Direito material brasileiro.

FERRER CORREIA e BAPTISTA MACHADO, numa “interpretação

restritiva” deste preceito (para LIMA PINHEIRO, uma verdadeira redução

teleológica), defendem a sua aplicação apenas às situações já constituídas e em

contacto com a ordem jurídica portuguesa ao tempo da sua constituição, de forma

a tutelar a confiança depositada pelas partes. Nestes termos, apenas seria aplicado

quando a situação em causa (aqui, o casamento) fosse constituída ou celebrada

perante as autoridades públicas, em Portugal – estas deveriam recusar a celebração

do negócio jurídico. Seguindo este entendimento, e sendo o casamento a celebrar

futuramente em Portugal, não cabe aplicação do art. 19º, mas sim do art. 18º, nº 1

e nº 2.

A, britânico com residência habitual em Londres, deixou todos os

seus bens imóveis situados em França a favor de instituições francesas.

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Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

Os filhos, que viviam em Lisboa, requereram em Portugal a redução do

testamento, invocando violação do direito à legítima.

As normas de conflitos francesas e inglesas sujeitam a sucessão

imobiliária à lei do lugar da situação da coisa.

Os tribunais ingleses praticam dupla devolução, e os tribunais

franceses praticam devolução simples.

Em Inglaterra não se protege a legítima, enquanto que em França

esta é protegida.

1. A situação é transnacional: as ordens jurídicas em contacto são a ordem

jurídica do Reino Unido, portuguesa e francesa.

2. A questão jurídica em apreço é a sucessão imobiliária de bens do de

cujus.

3. As normas de conflitos potencialmente aplicáveis são os arts. 62º e 31º,

nº 1: a sucessão por morte é regulada pela lei pessoal do autor da sucessão; a lei

pessoal é, neste caso, a da nacionalidade, nos termos gerais. Não se trata de

aplicar potencialmente os arts. 36º, nº 2 e 65º, nº 1, uma vez que se trata de uma

questão relativa à substância da sucessão e não à sua forma.

4. LPT – Lei da nacionalidade – LIng (DD) – Lex rei sitae – LFr (DS) – Lex rei

sitae – LFr.

O Reino Unido é um ordenamento jurídico complexo, no qual não vigora

direito interlocal nem DIP unificado. Considera-se lei pessoal do interessado (o de

cujus) a lei da sua residência habitual dentro do Estado da sua nacionalidade (art.

20º, nº 2, 2ª parte), ou seja, Inglaterra (Londres). Assim, por força dessa norma, LPT

remete para a Lei inglesa.

Aplica-se o art. 17º, nº 1, uma vez que o DIP de L2 (LIng) remete para outra

legislação e esta considera-se competente. Os tribunais portugueses devem aplicar

a Lei francesa. Assim, temos que:

LING – LF (se a acção fosse intentada em Inglaterra, aplicar-se-ia o Direito

material francês)

LF – LF (se a acção fosse intentada em França, aplicar-se-ia o Direito

material francês)

LP – LF (se a acção fosse intentada em Portugal, aplicar-se-ia o Direito

material francês)

Não há lugar à aplicação dos nº 2 e 3 do mesmo artigo.

Cumpre ponderar a aplicação do art. 19º: não se admite o reenvio quando,

ponderado e aceite nos termos do art. 17º, de cuja aplicação resulta a invalidade do

negócio jurídico em causa, se conclua que esse negócio seria válido se fosse

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Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

aplicável o art. 16º. Cessa o reenvio, não se aplica o art. 17º, e retornamos à regra

geral do art. 16º: o Direito material a aplicar é o Direito inglês.

Remete-se para o que supra foi dito quanto à interpretação restritiva

sugerida por FERRER CORREIA e BAPTISTA MACHADO.

9. AS NORMAS “AUTOLIMITADAS” OU DE APLICAÇÃO NECESSÁRIA

§1: NOTA TERMINOLÓGICA

Cumpre estabelecer as seguintes diferenciações terminológicas:

LIMA PINHEIRO: normas “autolimitadas” ou de aplicação necessária

– será esta a expressão adoptada.

MARQUES DOS SANTOS: normas de aplicação imediata

FERRER CORREIA: normas de aplicação imediata e necessária

DÁRIO MOURA VICENTE: normas internacionais imperativas

É comum a todos estes autores a expressão tradicional de lois de police.

Para MARQUES DOS SANTOS, estas normas caracterizam-se por ser:

Materiais (e não normas de conflitos)

Especialmente autolimitadas (o âmbito de aplicação espacial é

independente do que decorre das regras de conflitos gerais – a sua

delimitação espacial é feita por normas de conflito unilaterais

especiais ad hoc).

Dotadas de especial intensidade valorativa (são consideradas

especiais por um determinado Estado: a sua observância é

fundamental para a salvaguarda política, económica e social desse

Estado) – inspiração na doutrina de FRANCESCATIS. Contra, LIMA

PINHEIRO defende que nem sempre as normas de aplicação

necessária referem o interesse do Estado.

Outras características que podem ser apontadas: heterogeneidade

(referindo-se a vários ramos do Direito Privado e do Direito Público) e

variabilidade no tempo e no espaço.

Dada a sua especialidade, estas normas prevalecem sobre as normas de

conflitos gerais, segundo LIMA PINHEIRO.

§2: AS NORMAS “AUTOLIMITADAS”

As normas “autolimitadas” são as normas cuja aplicação resulta de normas

de conexão especiais.

Ainda que a designação de normas “autolimitadas” seja insuficiente, será

esse o conceito adoptado, à falta de melhor, e ainda que este tipo de normas

materiais não autolimite a sua esfera de aplicação no espaço.

56

Page 57: Direito Internacional Privado

Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

Normas “autolimitadas”: normas materiais cuja técnica de regulação

permite que o sistema de Direito de Conflitos seja substituído por

normas de conflitos ad hoc ou por uma valoração conflitual

casuística. A “autolimitação” resulta de esta norma material ser

acompanhada de uma norma de conflitos unilateral ad hoc, que se

reporta exclusivamente a uma norma ou a uma lei material

determinada, ou de uma valoração casuística à luz das circunstâncias

do caso. Essas normas unilaterais ad hoc podem ser expressas ou

implícitas (de natureza consuetudinária ou criadas pelo intérprete

para integrar uma lacuna). Para MARQUES DOS SANTOS, as

normas unilaterais implícitas (vg art. 1682º-A, nº 2) devem ser

criadas pelo intérprete por via da interpretação, enquanto que LIMA

PINHEIRO sustenta que tal operação interpretativa é impossível,

sendo necessária também a supra mencionada “valoração conflitual”.

Exemplos:

o vg art. 38º DL Contrato de Agência: só será aplicável

legislação diversa da portuguesa se a mesma se revelar mais

vantajosa para o agente – norma de conflitos unilateral que

alarga a competência atribuída à lei portuguesa pelas normas

de conflitos gerais.

o No sistema jurídico português, a “autolimitação” só pode ser

produto de uma valoração casuística se se revelar uma lacuna

que deva ser integrada mediante a criação de uma solução

conflitual ad hoc, excepcionalmente. Como são diminutos os

casos em que o legislador estabelece uma norma de conflitos

ad hoc, o acento é frequentemente colocado no

estabelecimento desta “autolimitação” por via interpretativa,

ie, mediante uma valoração casuística.

A autolimitação destas normas implica que só devam ser aplicadas quando a

regra de conflitos unilateral ad hoc assim o determine (MARQUES DOS SANTOS).

A isto acrescenta LIMA PINHEIRO que também se devem aplicar quando as regras

de conflitos comuns mandarem aplicar o Direito no qual se inclui essa norma.

Exemplo: se uma norma de conflitos geral (comum) mandar aplicar o diploma sobre

o Direito Real de Habitação Periódica, então as normas que estejam consagradas

nesse âmbito devem ser consideradas autolimitadas, e prevalecem sobre as

normas comuns. Por isso se diz que são “normas susceptíveis de aplicação

necessária” (veja-se o art. 16º DL DRHP, quando se aplica nos termos do art. 60º, nº

7 do mesmo diploma).

57

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Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

As normas “autolimitadas” podem ser divididas em quatro categorias (para

LIMA PINHEIRO, já que a doutrina tradicional, preconizada por FERRER CORREIA

e MARQUES DOS SANTOS, apenas enuncia dois tipos):

Normas que têm uma esfera de aplicação no espaço mais

vasta do que aquela que decorreria do Direito de Conflitos

geral: o já referido art 38º DL Contrato de Agência – norma que

alarga a competência atribuída à lei portuguesa pelas normas de

conflitos gerais. Revendo a sua posição, LIMA PINHEIRO não mais

considera as normas de aplicação necessária ou imediata (vg lois de

police ou overriding statutes) sejam uma modalidade de normas

“autolimitadas” deste primeiro tipo. Hoje considera que esse tipo de

normas são um modo de actuação de certas normas “autolimitadas”

(a norma pode actuar como norma de aplicação necessária, ou ser

susceptível de aplicação necessária, mas não ser, à partida, e sem

mais, de aplicação necessária). Conclui-se: as normas “autolimitadas”

susceptíveis de aplicação necessária não constituem uma alternativa

ao processo conflitual ou de regulação indirecta, mas uma

manifestação de um certo tipo de unilateralismo.

Normas que têm uma esfera de aplicação no espaço que só

em parte coincide com aquela que decorreria do Direito de

Conflitos geral: vg art. 60º, nº 7 DL Direito Real de Habitação

Periódica – as disposições deste diploma aplicam-se a todos os

contratos relativos a direitos reais de habitação periódica e a direitos

de habitação turística em empreendimentos que tenham por objecto

imóveis sitos em Portugal, ie: as disposições aplicam-se qualquer que

seja a lei reguladora do contrato, desde que o imóvel se encontre em

Portugal.

Normas que têm uma esfera de aplicação no espaço mais

restrita do que aquela que decorreria do Direito de Conflitos

geral

Normas que têm uma esfera de aplicação no espaço

inteiramente diferente da que decorreria do Direito de

Conflitos geral, aplicando-se sempre fora da esfera de competência

normal da ordem jurídica a que pertencem (daí a sua verificação ser

manifestamente rara).

Como aferir se uma norma é “autolimitada”?

Se o legislador formar expressamente uma norma de conflitos ad

hoc, esta prevalece sobre o Direito de Conflitos geral, como norma

especial que é – casos de rara verificação.

58

Page 59: Direito Internacional Privado

Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

Na falta de solução expressa, uma norma material será

“autolimitada” se:

o Se assistir à inferência de uma norma de conflitos ad

hoc implícita – pode inferir-se das proposições legais ou de

costume (prática reiterada acompanhada de uma convicção

de vinculatividade).

o Se criar uma solução conflitual ad hoc à luz da teoria

das lacunas da lei – na maioria dos casos, tratar-se-á de

uma lacuna oculta, já que a maior parte das lacunas

encontram solução numa norma do sistema de Direito de

Conflitos; a revelação de uma lacuna pressupõe, assim, uma

interpretação restritiva ou uma redução teleológica da norma

de conflitos geral. Exemplo: quando a norma de conflitos não

tutela o valor que está subjacente à norma ou à lei material

em causa, cumpre integrar essa lacuna nos termos seguintes

– vg normas de conflitos vigentes em matéria de contratos e,

por isso, aplicáveis aos contratos de arrendamento (ROMA):

não atendem ao fim de protecção da parte contratual mais

fraca (o arrendatário). Logo, deve entender-se que existe uma

lacuna no Direito de Conflitos geral, que deve ser integrada

por uma solução ad hoc que determine a aplicação das

normas protectoras do arrendatário a todos os arrendamentos

de imóveis situados em Portugal.

o Se vigorar uma cláusula geral que coloque o problema

da aplicabilidade da norma material em função das

circunstâncias do caso. Perante a vigência de um sistema

codificado de Direito de Conflitos que não contém qualquer

indicação nesse sentido, LIMA PINHEIRO não vê fundamento

para a vigência dessa cláusula geral. Assim, quando não se

trate de um caso em uma norma é “autolimitada” pelos dois

exemplos supra, o intérprete não pode atribuir a uma regra

material o carácter de norma “autolimitada”, e esta só pode

relevar através da cláusula de ordem pública internacional,

como limite à aplicação do Direito estrangeiro. Para isso, é

necessário que:

Se trate de uma norma fundamental da ordem jurídica

portuguesa.

59

Page 60: Direito Internacional Privado

Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

O resultado concreto a que conduza o Direito

estrangeiro seja manifestamente incompatível com

esta norma.

Conclui-se: as normas “autolimitadas” são excepcionais. A “autolimitação”

resultará, em princípio, de esta norma material ser acompanhada de uma norma de

conflitos unilateral ad hoc ou de uma valoração casuística à luz das circunstâncias

do caso.

A adopção de cláusulas gerais, neste âmbito, não é recomendável, sob pena

de o legislador “passar um cheque em branco” aos tribunais. Uma cláusula geral

que permita aos tribunais estabelecer essa “autolimitação” com base numa

valoração casuística prejudica gravemente a certeza e a previsibilidade jurídicas.

Se, excepcionalmente, certas normas ou leis materiais devam ter uma

esfera de aplicação no espaço diferente daquela que resulta do sistema de Direito

de Conflitos, o legislador deve antes formular normas de conflitos ad hoc

apropriadas.

Em 20 de Novembro de 2006, A, britânico com residência habitual

em Londres, celebrou nesse local um contrato com a sociedade BV, com

sede em Lisboa, pelo qual adquiriu a esta um direito real de habitação

periódica, pelo período de 15 dias em cada ano, num condomínio no

Algarve.

Nos termos do art. 3º ConvROMA, o contrato em causa é regulado

pelo direito material em vigor na Ilha de Mann, uma vez que contém uma

cláusula de escolha a favor desta lei.

Em 25 de Novembro de 2006, A, já arrependido de ter celebrado o

contrato, comunica à sociedade BV, por carta registada, a sua intenção de

o resolver. A sociedade BV opõe-se a esta pretensão, com fundamento na

renúncia de A, nos termos do contrato, a qualquer direito de resolução.

A intenta uma acção contra a sociedade, em tribunal português,

requerendo a declaração de nulidade da referida cláusula contratual.

1. A situação é transnacional: as ordens jurídicas em contacto são a ordem

jurídica do Reino Unido e portuguesa.

2. A questão jurídica em causa é a extinção de um contrato relativo à

transmissão de um Direito Real de Habitação Periódica.

3. As normas de conflito potencialmente aplicáveis são os arts. 16º e 60º, nº

7 do DL DRHP e os arts. 3º, 15º e 19º ConvROMA.

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Page 61: Direito Internacional Privado

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4. Observamos um conflito entre a Lei da Ilha de Mann (lei escolhida pelas

partes), segundo a qual a resolução do contrato não é possível, e a lei portuguesa

(art. 16º, nº 1 DL Direito Real de Habitação Periódica), que admite essa mesma

resolução.

5. A Convenção de ROMA é aplicável, na medida em que o contrato foi

celebrado depois de 1 de Setembro de 1994 e antes de 17 de Dezembro de 2009 (a

partir dessa data tem aplicação o Regulamento ROMA I). Segundo o art. 3º

ConvROMA (norma de conflitos geral), que consagra o princípio da liberdade de

escolha, o contrato rege-se pela lei escolhida expressamente pelas partes (nº 1).

Nestes termos, se a acção for intentada em Portugal, os tribunais portugueses

devem aplicar a Lei da Ilha de Mann.

LPT: LIM

O Reino Unido é um ordenamento jurídico complexo, pelo que se aplica o

disposto no art. 19º ConvROMA: a Ilha de Mann é considerada como um país, e o

seu Direito material será assim exclusivamente aplicado.

A referência, no âmbito desta Convenção, é sempre material, excluindo-se o

reenvio (art. 15º ConvROMA).

6. Segundo o art. 60º, nº 7 do DL Direito Real de Habitação Periódica, o qual

consagra uma norma de conflitos unilateral especial ad hoc, as disposições desse

diploma aplicam-se a todos os contratos dessa índole em empreendimentos que

tenham por objecto imóveis sitos em Portugal. É o caso, uma vez que o condomínio

se situa no Algarve. Por força desta norma, LPT será de aplicar, e não a Lei da Ilha

de Mann.

7. Dir-se-ia que, em caso de conflito entre as duas fontes, prevaleceria a

Convenção de ROMA, uma vez que se trata de fonte internacional de DIP. Todavia,

esta Convenção ressalva (art. 7º, nº 2 e 20º ConvROMA) a aplicação de normas de

aplicação necessária como aquela consagrada no art. 60º, nº 7 DL DRHP. Com

efeito, o nº 7 desse diploma faz com que todas as normas desse mesmo diploma

sejam consideradas autolimitadas, incluindo o referido art. 16º, nº 1 DL DRHP.

Os tribunais portugueses devem aplicar LPT.

Subhipótese: e se as partes tivessem escolhido a aplicação do

Direito português?

E se o condomínio se situasse em Marrocos? Poderá ainda assim

aplicar-se o DL DRHP?

Segundo o art. 3º ConvROMA (norma de conflitos geral), a lei a aplicar pelos

tribunais onde a acção for intentada é LPT, na medida em que foi essa a lei

escolhida pelas partes.

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Page 62: Direito Internacional Privado

Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

Nestes termos, dir-se-ia que o art. 16º DL DRHP, quanto à resolução do

contrato, teria aplicação, uma vez que integra a ordem jurídica portuguesa.

Todavia, MARQUES DOS SANTOS sustenta que uma norma de aplicação

imediata (como esse art. 16º DL DRHP) só pode ser aplicada quando a norma de

conflitos o permitir (aqui, seria o art. 60º, nº 7 DL DRHP). Nada sendo dito, ou não

permitindo a norma em causa essa aplicação (é o caso!), o Direito português é

ainda aplicável (já que foi o Direito escolhido pelas partes), mas o DL DRHP não tem

aplicação (até porque o imóvel se encontra sito em Marrocos, não cabendo aplicar o

art. 60º, nº 7 desse diploma): recorremos às regras do Direito das Obrigações geral.

A autolimitação no espaço significa que não se pode aplicar uma norma que não

quer ser aplicada: ora o art. 16º DL DRHP, por força do art. 60º, nº 7 desse diploma,

não “quer ser aplicado”, uma vez que o imóvel não se encontra sito em Portugal.

Contra este entendimento, a maioria da doutrina entende que o art. 16º DL

DRHP teria aqui aplicação, e não as regras gerais do Direito das Obrigações, por

força da atribuição de competência à LPT pelo art. 3º ConvROMA.

O que distingue as duas teses é que MARQUES DOS SANTOS não

estabelece a fronteira entre âmbito de aplicação possível (ou susceptível de

aplicação necessária) e âmbito de aplicação necessária, enquanto que o resto da

doutrina (por todos, LIMA PINHEIRO) assim o faz. O art. 16º DL DRHP é uma

norma susceptível e aplicação necessária, pelo que prevaleceria sobre as regras

gerais do Direito das Obrigações.

A e B, alemães, casados há 10 anos, vivem em Portugal há 5 anos.

Recentemente, A decide vender, sem o consentimento de B, a casa de

morada de família (situada em Portugal). Na acção intentada por B contra

A, este vem dizer que vendeu a casa legitimamente, na medida em que se

aplica o Direito alemão, que não contém regra equivalente à do art. 1682º-

A, nº 2 CC português.

1. A situação é transnacional: as ordens jurídicas em contacto são a ordem

jurídica alemã e portuguesa.

2. A questão jurídica em causa é a legitimidade da venda de bens dos

cônjuges, na constância do matrimónio.

3. As normas de conflitos potencialmente aplicáveis são os arts. 52º e

1682º-A,nº 2.

4. As relações entre os cônjuges, maxime nas relações patrimoniais (é o

caso), são reguladas pela Lei nacional comum (art. 52º, nº 1). Aqui, os cônjuges têm

a mesma nacionalidade, pelo que se aplica a lei alemã.

LPT: LA

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Page 63: Direito Internacional Privado

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MARQUES DOS SANTOS entende que o art. 1682º-A, nº 2 constitui um

exemplo de uma norma de aplicação imediata, à qual devemos recorrer sempre

que a casa de morada de família se situe em Portugal. Di-lo por via interpretativa,

partindo da ratio da norma material, identificando nesta sede uma norma de

conflitos implícita, unilateral ad hoc.

LIMA PINHEIRO não corrobora deste entendimento, uma vez que repudia a

criação de normas de conflitos implícitas pela via interpretativa, como é o caso. As

que eventualmente poderão ser identificadas, são implícitas por via do costume, a

partir da análise de princípios de aplicação no espaço ou por via da integração de

lacunas. Com efeito, em princípio vigorará sempre uma norma de conflitos geral,

pelo que a conclusão por uma norma de conflitos unilateral especial ad hoc só

poderá ser extraída por interpretação restritiva ou redução teleológica, como supra

já foi explanado.

10. RELEVÂNCIA DAS NORMAS IMPERATIVAS ESTRANGEIRAS

§1: NORMAS IMPERATIVAS ESTRANGEIRAS

As normas imperativas estrangeiras só podem ser aplicadas na ordem

jurídica local por força do título de aplicação que uma proposição vigente nesta

ordem jurídica lhes conceda. Cumpre distinguir:

Normas imperativas da lex causae: aplicáveis pelo título de aplicação

conferido pelas normas de conflitos gerais.

o Problemas:

Normas de conflitos especiais, que limitam o domínio

de aplicação das normas de conflitos gerais.

Normas “autolimitadas”, que excluem a sua aplicação

à situação que são chamadas a disciplinar.

Normas imperativas de terceiros ordenamentos: questiona-se se a

ordem jurídica local lhes confere um título de aplicação mediante

proposições jurídicas especiais ou permite antes a sua tomada em

consideração.

o Exemplo: art. 7º, nº 1 ROMA (não vigora na ordem jurídica

portuguesa, porque o nosso país fez uma reserva) – só confere

relevância às normas imperativas de terceiro Estado que

sejam de aplicação necessária.

No âmbito da relevância de normas imperativas de terceiros ordenamentos

em matéria de obrigações contratuais, desenvolveram-se as seguintes teses:

Teoria do estatuto obrigacional (tradicional): as normas imperativas

estrangeiras só serão aplicadas quando integrem a lex causae.

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Page 64: Direito Internacional Privado

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o LIMA PINHEIRO: levada às suas últimas consequências, esta

tese impediria qualquer desenvolvimento e aperfeiçoamento

do sistema pela jurisprudência e pela ciência jurídica.

Teoria da conexão especial:

o Cláusula geral segundo a qual serão aplicadas, além das

normas jurídicas que pertençam ao estatuto obrigacional, as

de qualquer outra ordem jurídica, desde que exista uma

relação suficientemente estreita entre a ordem jurídica em

causa e o contrato, e tendo como limite a sua conformidade

com a ordem pública do foro.

o Para LIMA PINHEIRO e MARQUES DOS SANTOS, deve ser

adoptada uma “regra de reconhecimento” que dê um título e

legitime a relevância, no Estado do foro, das normas de

aplicação imediata estrangeiras, de acordo com as condições

e dentro dos limites fixados pelo Estado do foro.

De iure condendo, LIMA PINHEIRO dá preferência à criação de normas de

remissão condicionada a certas categorias de normas imperativas vigentes em

Estados que apresentam determinada conexão com a situação. A remissão será

condicionada à “disposição a aplicar-se” das normas em causa.

De iure constituto, não vigora na ordem jurídica portuguesa qualquer regra

geral sobre a relevância de normas imperativas de terceiros ordenamentos.

Todavia, observamos algumas normas relevantes neste domínio:

art. 16º Convenção de Haia

art. 23º, nº 2 DL CCG

Em 20 de Novembro de 2006, A, britânico com residência habitual

em Londres, celebrou nesse local um contrato com a sociedade BV, com

sede em Lisboa, pelo qual adquiriu a esta um direito real de habitação

periódica, pelo período de 15 dias em cada ano, num condomínio em

Inglaterra.

Nos termos do art. 3º ConvROMA, o contrato em causa é regulado

pelo direito material em vigor na Ilha de Mann, uma vez que contém uma

cláusula de escolha a favor desta lei.

Em 25 de Novembro de 2006, A, já arrependido de ter celebrado o

contrato, comunica à sociedade BV, por carta registada, a sua intenção de

o resolver. A sociedade BV opõe-se a esta pretensão, com fundamento na

renúncia de A, nos termos do contrato, a qualquer direito de resolução.

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Page 65: Direito Internacional Privado

Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

A intenta uma acção contra a sociedade, em tribunal português,

requerendo a declaração de nulidade da referida cláusula contratual.

Neste caso, aplicar-se-ia o art. 60º, nº 8 DL DRHP, uma vez que o imóvel se

situa no território de outro Estado-membro da UE. Os tribunais portugueses devem

aplicar a lei inglesa uma vez que esta norma é de aplicação imediata. MARQUES

DOS SANTOS designa-a de norma de reconhecimento expressa de âmbito

especial.

Subhipótese: e se o imóvel se situasse na Suiça?

A Suiça não é um Estado-membro da UE, pelo que se aplica o art. 7º, nº 1

ConvROMA: pode ser dada prevalência às disposições imperativas da lei de outro

país com o qual a situação apresente uma conexão estreita.

Contudo, Portugal fez uma reserva a esta norma, pelo que não se aplica no

nosso país.

Segundo a tese do estatuto obrigacional, as únicas normas estrangeiras de

aplicação imediata são as da lex causae (neste caso, a lei da Ilha de Mann). Neste

sentido, LIMA PINHEIRO sustenta que as normas de aplicação imediata da lex

causae devem ser aplicadas. Diferentemente, segundo a tese da conexão especial,

de WENGLER, o legislador deve adoptar regras que facilitem a aplicação de

normas de aplicação imediata estrangeira, pelo que a distinção entre normas de

aplicação imediata da lex causae não procede. Deve aplicar-se as normas de

Estados estrangeiros, desde que tenham uma conexão especial, respeitando-se a

“vontade” dessas normas.

LIMA PINHEIRO defende que se a norma for de um terceiro Estado (e não

da lex causae, é o caso!), e na falta de regra expressa, deve ser-lhe atribuída

relevância através de uma norma de remissão condicionada implícita, mediante o

processo de bilateralização que já conhecemos. Para tal, cumpre aferir da

existência de uma lacuna, para que assim se possa generalizar a previsão da norma

de conflitos unilateral especial.

O art. 60º, nº 7 e 8 DL DRHP contém normas unilaterais ou bilaterais

imperfeitas. A generalização da sua previsão (alargando-a e bilateralizando-a)

permitiria extrair a seguinte norma: “aos contratos de direitos reais de habitação

periódica aplica-se a lei do lugar do imóvel”. Esta regra seria de remissão

condicionada, para LIMA PINHEIRO, uma vez que está condicionada à existência

de normas de conteúdo e função idênticas às normas do Direito do foro (aqui, face

às normas suíças de DRHP).

Aplicar-se-ia a Lei suíça, uma vez que o imóvel se encontra aí situado, por

via deste raciocínio. Assim se assegura a harmonia jurídica internacional.

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Page 66: Direito Internacional Privado

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11. FRAUDE À LEI

§1: NOÇÃO

A fraude à lei consiste na utilização de um tipo negocial não proibido para

contornar uma proibição legal. Desta feita, as partes conseguem alcançar o

resultado que a norma proibitiva visava evitar.

Em Portugal, o instituto da fraude à lei constitui um instrumento da justiça

da conexão e um limite ético à autonomia privada na modelação do conteúdo

concreto dos elementos de conexão.

§2: TIPOS DE FRAUDE À LEI

Tipos de fraude à lei:

Manipulação do elemento de conexão para afastar a lei normalmente

competente: vg naturalização num país para beneficiar de

determinado elemento de conexão.

Internacionalização fictícia de uma situação interna: vg celebração de

um contrato no estrangeiro.

§3: ELEMENTOS DE FRAUDE

Elementos de fraude:

Elemento objectivo

Elemento subjectivo ou volitivo (é necessário dolo, sempre)

§4: SANÇÕES DA FRAUDE

Existem duas soluções:

FERNANDO OLAVO e jurisprudência francesa: todos os actos

integrados no processo fraudulento são nulos e inoperantes.

Doutrina recente e art. 21º: o Estado do foro não pode recusar a

naturalização, mas sim a produção de efeitos na aplicação da norma

de conflitos.

A fraude à lei estrangeira também deve ser sancionada. FERRER CORREIA

e BAPTISTA MACHADO não diferenciam essa fraude à fraude à lei do foro. Já

ISABEL DE MAGALHÃES COLLAÇO não só diferencia as duas fraudes, como

considera que a fraude à lei do foro é sempre sancionada, enquanto que a fraude à

lei estrangeira só é sancionada se:

A lei estrangeira defraudada também sanciona a fraude

A lei estrangeira defraudada não sanciona a fraude mas está em

causa, do ponto de vista do DIP do foro, um princípio do mínimo ético

nas relações internacionais.

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Page 67: Direito Internacional Privado

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12. QUALIFICAÇÃO

§1: NOÇÃO

A qualificação permite determinar qual a norma material a que se reconduz

o Direito aplicável. Por outras palavras, permite-nos determinar se certa realidade

jurídica se reconduz a uma ou outra norma de conflitos. Só depois desta operação

deveremos ponderar o reenvio ou a ordem pública internacional.

A qualificação suscita dois problemas:

As normas de conflitos utilizam, no conceito-quadro, conceitos

jurídicos sintéticos.

As situações com as quais o DIP lida são transnacionais, contactando

com várias ordens jurídicas. Por isso, cumpre determinar se a

interpretação deve ser lex fori ou lex causae.

§2: OPERAÇÕES DE QUALIFICAÇÃO

A doutrina portuguesa distingue as seguintes operações de qualificação:

1. Interpretação do conceito-quadro que determina a categoria de

conceitos

2. Caracterização do objecto que há-de ser reconduzido ao conceito-

quadro

3. Qualificação stricto sensu ou subsunção: determinação do critério

que há-de presidir à integração do objecto referido em 2. no conceito

referido em 1.

1. Interpretação:

A interpretação consiste na determinação do sentido e alcance dos conceitos

utilizados no conceito-quadro (vg o conceito de Direitos Reais, no art. 46º).

A interpretação deve ser feita lege fori, de acordo com o Direito material da

ordem jurídica do foro. Assim, Direitos Reais serão os direitos que, na ordem

jurídica, são considerados como tal (incluindo Direitos Reais menores). Se a

interpretação fosse lege causae, todas as normas de conflitos seriam normas em

branco, na medida em que remeteriam para conceitos-quadros definidos pela lei da

causa.

MARIA HELENA BRITO defende a tese de RABEL e ZWEIGERT, segundo a

qual o conceito-quadro da norma de conflitos deve ser interpretado através de uma

análise do Direito Comparado, alcançando-se assim um conceito universal comum,

na medida do possível. A análise deve ser comparativa, mas não necessariamente

universal (a comparação não deve ser entre todos os ordenamentos jurídicos, mas

apenas entre aqueles envolvidos na situação transnacional em apreço).

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Page 68: Direito Internacional Privado

Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

2. Caracterização:

A caracterização consiste na determinação da conformidade entre as

normas materiais da lex causae e a previsão. Exemplo: o art. 46º remete para a lei

do lugar da situação da coisa, pelo que cumpre aferir se, de acordo com o Direito

material alemão, a norma que se aplica àquela situação da vida é ou não de

Direitos Reais.

Dir-se-ia que a remissão em causa é para todo o Direito material da lex

causae, independentemente do ramo de Direito. Assim não o é em Portugal:

segundo o art. 15º, a competência atribuída a uma lei abrange somente as normas

que, pelo seu conteúdo e pela função que têm nessa lei, integram o regime do

instituto visado na regra de conflitos. A referência é, pois, selectiva.

A caracterização deve ser feita lege causae (para tal aponta o próprio art.

15º).

3. Qualificação stricto sensu ou subsunção:

Chegados à subsunção, podemos assistir a divergências de qualificação

stricto sensu, caso em que temos três hipóteses:

1. As normas materiais qualificam-se numa norma que remete para o

seu Direito – conflito positivo de qualificações.

2. As normas materiais qualificam-se numa norma que não remete

para o seu Direito, mas sim para outra ordem jurídica – conflito

negativo de qualificações.

3. Apesar de existir divergências de qualificação, há uma das normas

que se subsume a uma regra de conflitos que remete para o seu

Direito.

§3: ESQUEMA DE RESOLUÇÃO DE CASOS PRÁTICOS

Determinação dos ordenamentos jurídicos em contacto com a

situação e das potenciais leges causae em questão.

Identificação do objecto da qualificação: qual a questão jurídica em

causa?

Identificação das normas materiais potencialmente aplicáveis ao caso

concreto nas ordens jurídicas em contacto com a situação.

2º momento da qualificação - CARACTERIZAÇÃO: caracterização

das normas materiais, determinando o seu conteúdo e função, à luz

da ordem jurídica a que pertencem – lege causae (art. 15º).

Ponderação da possibilidade de subsunção das normas materiais em

alguma regra de conflitos vigente no ordenamento jurídico português

– lex fori.

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Page 69: Direito Internacional Privado

Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

1º momento da qualificação – INTERPRETAÇÃO: interpretação

do conceito-quadro da regra de conflitos em que parece ser possível

subsumir as normas materiais já caracterizadas.

3º momento da qualificação – SUBSUNÇÃO: qualificação stricto

sensu das normas na regra de conflitos.

o Não há divergência nas caracterizações: conclui-se pela

subsunção numa única regra de conflitos, que será aplicável.

Cumpre concretizar a conexão:

A regra de conflitos remete para a ordem

jurídica a que pertence a norma material? – a

norma material de que partimos, como faz parte

da ordem jurídica designada como competente,

é aplicável.

A regra de conflitos não remete para a ordem

jurídica a que pertence a norma material? – a

norma material de que partimos não faz parte

da ordem jurídica que é declarada como

competente pela regra de conflitos a que se

subsume, pelo que não é aplicável.

o Há divergência nas caracterizações – as normas materiais dos

ordenamentos em contacto subsumem-se a regras de

conflitos de foro diferentes:

Cumpre concretizar a conexão:

Conflitos positivos ou concursos de normas

aplicáveis

Conflitos negativos ou situação de falta de

normas aplicáveis – as normas de conflitos

remetem para ordens jurídicas diferentes

daquelas a que pertencem as normas materiais

qualificadas nas normas de conflitos.

Apenas uma regra de conflitos remete para a

norma material – é esta a norma material

aplicável.

A e B, cidadãos espanhóis do mesmo sexo, casaram em Espanha,

onde o casamento homossexual é permitido. A, que pretende agora casar

em Portugal com outra pessoa, invoca a invalidade do casamento com B

com fundamento no Direito português.

69

Page 70: Direito Internacional Privado

Direito Internacional Privado - Lara Geraldes @ FDL

1. Os ordenamentos jurídicos em causa são o ordenamento português e

espanhol.

2. A questão jurídica em apreço é a capacidade para contrair casamento.

3. A norma material potencialmente aplicável ao caso é o art. 1577º,

segundo a qual o casamento consiste no contrato celebrado entre pessoas de sexo

diferente.

4. Segundo o art. 49º, a capacidade para contrair casamento é regulada, em

relação a cada nubente, pela respectiva lei pessoal. A lei pessoal é, nos termos do

art. 31º, nº 1, a lei da nacionalidade.

A interpretação deve ser lege fori. Como tal, o art. 1577º impede a aplicação

das normas espanholas a respeito do casamento homossexual. Para mais, LIMA

PINHEIRO entende que faz parte do núcleo essencial do casamento a diferenciação

de sexos.

Ainda assim, não se afasta a aplicação analógica do art. 49º a casos como

este.

A, português, e B, italiana, estão casados há 20 anos e residem

habitualmente em Roma. Decidem vender a C, filha do casal, portuguesa

residente habitualmente em Faro, um bem imóvel situado nesta cidade.

Escolhem como lei aplicável a lei italiana.

D, que se sente prejudicado pela venda feita à sua irmã, C,

questiona-se se pode anular o casamento com fundamento na lei

portuguesa, uma vez que em Itália existe uma norma que proíbe a venda

de pais a filhos.

1. Os ordenamentos jurídicos em causa são o ordenamento português e

italiano.

2. A questão jurídica em apreço é a validade da venda a filhos ou netos.

3. A norma material potencialmente aplicável ao caso é o art. 877º, segundo

a qual é proibida a venda a filhos ou netos.

4. Segundo a lei portuguesa, a norma material constante no art. 877º

pertence ao ramo do Direito da Família (art. 15º) e, uma vez que respeita às

relações entre pais e filhos, subsume-se à regra de conflitos do art. 57º. Essas

relações são reguladas pela lei nacional comum dos pais (não é o caso, uma vez

que A e B têm nacionalidades diferentes) e, na falta desta, pela lei da sua

residência habitual comum (Lei italiana), segundo o art. 57º, nº 1.

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Segundo a lei italiana, a norma material que proíbe a venda de pais a filhos

pertence ao ramo do Direito das Obrigações (art. 15º) e subsume-se ao art. 3º da

ConvROMA (e não ao art. 41º, uma vez que respeita a obrigações provenientes de

negócio jurídico celebrado antes de 1 de Setembro de 1994).

LPT: LI

LI: LI

Há divergência na qualificação, uma vez que as normas materiais dos

ordenamentos em contacto se subsumem a regras de conflitos de foro diferentes

(art. 57º vs art. 3º ConvROMA). Apesar de existir divergências de qualificação, há

uma das normas que se subsume a uma regra de conflitos que remete para o seu

Direito (a Lei Italiana remete para si). Logo, é essa a lei competente.

A, cidadão dos EUA, pede em Portugal a condenação de B,

português, no pagamento de dívida contratual deste. As partes tinham

convencionado a aplicação da lei do Tennessee. Segundo o Direito desse

estado, a acção para o exercício do direito de crédito de A deveria ter sido

intentada no prazo de 6 anos.

B alega a prescrição do direito de A.

As normas são de natureza processual.

1. Os ordenamentos jurídicos em contacto são o ordenamento jurídico

complexo dos EUA e Portugal.

2. A questão jurídica em apreço é a prescrição da acção para o exercício do

direito de crédito.

3. As normas materiais potencialmente aplicáveis são: a norma do art. 309º,

segundo a qual o prazo prescricional ordinário em Portugal é de 20 anos; e a norma

do estado do Tennessee segundo a qual o prazo seria de 6 anos.

4. Caracterização das normas materiais: a norma da lei do Tennessee é uma

norma processual, enquanto que a norma portuguesa é uma norma substantiva.

5. As normas de conflitos potencialmente aplicáveis ao caso são os arts. 40º

(a prescrição é regulada pela lei aplicável ao direito, ou seja, pela lei do Tennessee)

e 3º ConvROMA.

LPT: LT

Mas a lei do Tennessee é Direito Processual que não cabe na previsão do art.

40º. Não há normas de conflito sobre normas processuais. Alguns autores (vg LIMA

PINHEIRO) defendem mesmo a existência, em Portugal, de uma norma de conflitos

implícita que considera que a lei processual portuguesa se aplica sempre que a

acção corra no nosso país.

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Se concluirmos pela existência de uma norma de conflitos implícita,

poderemos ter que:

LPT: LPT

Todavia, cremos que a subsunção não tem que ser um mero corolário lógico

ou uma consequência automática da caracterização. Tem que existir uma

correspondência funcional entre uma, e outra. Aqui, o conteúdo e função do

instituto previsto na lei do Tennessee é funcionalmente semelhante ao conteúdo do

instituto português da prescrição. Logo, é possível reconduzir a questão em apreço

aos arts. 40º e 3º ConvROMA, dos quais resulta a aplicação da lei do Tennessee

pelos tribunais portugueses. Assim, o direito de acção já se encontra prescrito e já

não pode ser exercido em tempo útil.

A e B, cidadãos franceses, residentes na Alemanha, celebram uma

promessa de casamento. B rompe a promessa, casando com C na

Alemanha.

A demanda B perante um tribunal português exigindo o pagamento

de uma indemnização.

A lei alemã regula a promessa de casamento autonomamente, no

livro do Direito da Família do BGB.

Em França, o rompimento da promessa de casamento gera

obrigação de indemnizar com fundamento em responsabilidade

extracontratual.

1. Os ordenamentos jurídicos em contacto são o ordenamento português,

alemão e francês.

2. A questão jurídica em causa é o incumprimento de promessa de

casamento.

3. As normas materiais potencialmente aplicáveis são as normas constantes

do art. 1594º (segundo o qual há fundamento de indemnização), do BGB e do Code

Civil.

4. As normas de conflito potencialmente aplicáveis são os arts. 25º e 31º, nº

1 (quanto às normas materiais portuguesas e alemãs, sistematicamente

consagradas no Livro do Direito da Família) e art. 45º (quanto às normas materiais

francesas, do Direito das Obrigações).

5. Concretização do elemento de conexão e subsunção:

LPT: art. 1594º - Direito da Família – arts. 31º, nº 1 e 25º - lei da

nacionalidade – LF.

LA: BGB – Direito da Família – arts. 31º, nº 1 e 25º - lei da nacionalidade – LF.

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LF: Code Civil – Direito das Obrigações – art. 45º - lei do lugar do dano – LA.

Estamos perante um conflito negativo de qualificações, uma vez que as

normas de conflitos remetem para ordens jurídicas diferentes daquelas a que

pertencem as normas materiais qualificadas nas normas de conflitos. Este conflito

negativo resolve-se mediante ajustamento de uma regra a uma solução concreta

(adaptação). Deve preferir-se a adaptação de normas de conflitos à adaptação de

normas materiais, e deve fazer-se nos termos dos princípios do DIP.

Neste caso, ISABEL DE MAGALHÃES COLLAÇO e LIMA PINHEIRO

defendem que não faz sentido recusar o direito à indemnização do nubente não

faltoso, por força da inexistência de uma regra de conflitos aplicável, já que todas

as ordens jurídicas a preveem. Deve, pois, adaptar-se o art. 45º, substituindo-se o

elemento de conexão: prefere-se a lei da nacionalidade e não a lei do lugar do dano

(esse é, alias, um elemento de conexão previsto no art. 45º, nº 3, 1ª parte). Nestes

termos,

LF: LF (a nacionalidade francesa é a nacionalidade comum aos dois

nubentes)

13. LEI APLICÁVEL ÀS OBRIGAÇÕES CONTRATUAIS E

EXTRACONTRATUAIS

§1: ÂMBITOS DE APLICAÇÃO DA CONVENÇÃO DE ROMA,

REGULAMENTO ROMA I E ROMA II

Âmbito material:

art. 1º ConvROMA e art. 1º RegROMA I: obrigações contratuais de

âmbito civil e comercial

o Excluem-se os negócios jurídicos unilaterais (contra, LIMA

PINHEIRO)

RegROMA II: obrigações extracontratuais de âmbito civil e comercial

o Responsabilidade objectiva e subjectiva

o Gestão de negócios, enriquecimento sem causa e culpa in

contrahendo (arts. 10º ss RegROMA II)

o Os arts. 5º a 8º RegROMA II são especiais face à regra geral do

art. 4º RegROMA II.

o Escolha das partes: art. 14º RegROMA II.

Âmbito espacial:

ConvROMA: Estado-contratante (regra geral do DIP público)

RegROMA I: Estados-membros (menos a Dinamarca)

RegROMA II: Estados-membros (menos a Dinamarca)

Âmbito temporal:

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ConvROMA: contratos celebrados a partir de 1 de Setembro de 1994

(art. 17º ConvROMA)

RegROMA I: contratos celebrados a partir de 17 de Dezembro de

2008 (art. 28º RegROMA I)

RegROMA II: factos ocorridos depois de 11 de Janeiro de 2009

§2: PRINCÍPIOS COMUNS ÀS OBRIGAÇÕES CONTRATUAIS

Autonomia privada

Conexão mais estreita

Protecção do contraente mais fraco

A referência é sempre material, pelo que não há reenvio.

Se as partes escolherem os princípios do UNIDROIT, vg, há uma referência

material e não conflitual (é como se constassem do contrato enquanto cláusulas

contratuais). Esses princípios não poderão, consequentemente, violar disposições

imperativas da lei competente.

14. LIMITES À APLICAÇÃO DO DIREITO ESTRANGEIRO OU

TRANSNACIONAL

§1: CARACTERÍSTICAS DA ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL

Excepcionalidade

Relatividade

Actualidade

15. RECONHECIMENTO DE SENTENÇAS ESTRANGEIRAS

§1: FONTES

CPC: arts. 1094º ss.

Regulamento 44/2001: arts. 32ºss.

Regulamento 2201/2003

§2: PRINCÍPIOS GERAIS

Há sistemas que não admitem o reconhecimento de sentenças estrangeiras.

Dentro daqueles que o admitem, há dois sistemas possíveis:

Reconhecimento automático (Regulamento 44/2001)

Reconhecimento individualizado (arts. 38º ss Regulamento 44/2001)

o Controlo formal (vg arts. 1094º ss CPC)

o Controlo de mérito (vg art. 110º, nº 2 CPC)

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