direito internacional privado
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Direito Internacional
Privado
Joyce Lira
www.masterjuris.com.br
PARTE I
2) Direito Internacional Privado: reflexões sobre o Brasil.
Aula 6 – Limites à aplicação da lei estrangeira.
“Em todos os sistemas jurídicos nacionais há previsão legal para a solução do
conflito de leis em situações jurídicas multiconectadas. No sistema do
método confllitual o juiz escolhe a lei aplicável a partir das normas de DIPr,
tendo como resultado a indicação da lei nacional ou estrangeira. Mas o
funcionamento desse sistema de DIPr poderá ser impedido pela aplicação da
exceção de ordem pública, que atua como um limitador da utilização da regra
de conexão.” (Nadia de Araujo)
a) Ordem Pública e regras de caráter imperativo
- Conceito de difícil definição.
- Pode ser considerado com um núcleo duro da ordem jurídica do foro, composto por
seus valores essenciais de justiça.
- É possível definir “ordem pública” como salvaguarda dos princípios fundamentais
do direito do foro, sendo maleável de acordo com as mudanças dos costumes e da
evolução temporal do direito em cada Estado.
- O critério essencial de ordem pública está ligado ao respeito aos direitos
fundamentais.
- A ordem pública intervém no cenário de um conflito plurilocalizado de maneira a
afastar a lei estrangeira cuja aplicação seria designada pela norma de conflito. Nesses
casos, a aplicação da lei estrangeira geraria um efeito negativo, pois importaria em
um resultado incompatível com a ordem pública do foro.
- A aplicação da ordem pública tem caráter excepcional, por ser diferente do que
determina a norma de conflito.
- O seu uso gera, aplicando-se a lei do foro, efeitos territoriais, em detrimento do
sistema de DIPr de caráter universalista.
- Na opinião de Nadia de Araujo: “Apesar das críticas ao seu uso demasiado, a ordem
pública é válvula de escape que pode conferir ao sistema de conflito de leis a
flexibilidade necessária à sua própria manutenção, especialmente porque o método
conflitual, nos moldes tradicionais, não atende as questões jurídicas atuais.”
- O efeito positivo da utilização do conceito de ordem pública seria a utilização da
regra adequada à situação, que pode não ser a lex fori, sendo possível aplicar uma
regra material especial para ocupar o seu lugar.
- Outra modalidade para impedir a utilização da norma estrangeira designada pela
regra de conexão: situações em que o interesse de proteção estatal é de tal ordem
que há normas internas de caráter imperativo ou de aplicação imediata — lois de
police — impedindo o uso da lei estrangeira.
- Lois de police (normas imperativas): “São normas que se caracterizam por serem de
aplicação obrigatória no direito interno, mas são usadas em situações internacionais
sujeitas a um direito estrangeiro, sendo controvertido o sentido, o alcance e o limite de
sua aplicação.” (Nadia de Araujo)
- Diferença entre ordem pública e regra de caráter imperativo (ou norma de aplicação
imediata): muito se discutiu na doutrina francesa, resultando em elaboração de
convenções internacionais sobre conflitos de lei.
Ordem Pública Norma de Aplicação Imediata
(lois de police)
Aplicação excepcional, após mediação pelanorma de conflitos (regra de conexão).
Dispensam a mediação da norma deconflitos geral, por definirem elas própriasseu âmbito de aplicação no espaço.
Exceção a posteriori da regra de conflito. Preliminar às regras de conflito (antesmesmo de se analisar o método conflitual).
Após a determinação da lei aplicável pelaregra de conexão, deixa-se de aplicar tal leipara solucionar a questão, porque contráriaà concepção do foro a esse respeito(coerência interna e externa).
Aquelas cujo conjunto é considerado comode domínio da regulamentação estatal e quepor todos deve ser seguido, parasalvaguardar a organização política, social oueconômica do país (coerência interna).
- Lei imperativa e DIPr: análise em dois momentos – verificar se há imperatividade
geral; verificar se a imperatividade é aplicável à relação multiconectada em análise.
Com isso, nem sempre uma lei imperativa será aplicável ao conflito de DIPr.
- A aplicação das exceções fica sob a discricionariedade judiciária. “Concordam os
internacionalistas possuir o juiz um poder discricionário de grande alcance, sobre o
qual é difícil estabelecer um padrão de previsibilidade para as partes interessadas.”
(Nadia de Araujo)
- Esse cenário desemboca na necessidade e relevância da promoção dos estudos de
casos, em especial nos países de tradição civilista, que historicamente não possuem
a cultura jurídica de precedentes.
- Essa conexão promovida pela aplicação de regras excepcionais aos conflitos
plurilocalizados envolvendo países de tradição civilista reforçou a ideia do que se
convencionou chamar de “pluralidade de métodos”.
- Pluralidade de métodos: “diálogo entre fontes normativas, o que pode ensejar a
aplicação de normas de caráter imperativo quando necessário, ao invés da regra
indicada pela norma de conflito”. (Nadia de Araujo)
- Exemplo teórico: (Claudia Lima Marques) Na proteção do consumidor, esse
diálogo se dá entre a finalidade de proteger o sujeito mais fraco (o consumidor) e a
finalidade de justiça e harmonia internacional clássica do direito internacional
privado.
- Exemplo prático: Aplicação da exceção da ordem pública nos casos relacionados
ao direito de família na seara obrigacional, diante do interesse maior do Estado em
proteger as crianças (como ocorre com indivíduos em situação de maior
vulnerabilidade, geralmente).
- Com a aplicação da exceção da ordem pública permite-se resolver um conflito de
forma diversa da determinada pela regra de conexão, ainda que não haja lei
específica no ordenamento interno do país envolvido.
- Aplicação da hermenêutica constitucional em DIPr: em ambos os ambientes há o
complexo sistema que envolve regras e princípios, com prevalência dos princípios,
conforme orienta a hermenêutica constitucional. Essa interpretação de uma maior
relevância dos princípios como meios para alcançar o resultado justo deve ser levada
para o DIPr, que busca a mesma finalidade.
-Assim, a principiologia dos direitos fundamentais permite concluir que: “a ordem
pública e as normas de caráter imperativo estão subordinadas aos critérios de proteção
garantidos pelos direitos fundamentais.” (Nadia de Araujo).
- A atividade hermenêutica perpassa, assim, pela eficácia dos princípios, geralmente
positivados nas Constituições dos Estados (ex.: art. 5º, CRFB/88) e nos Tratados
Internacionais de Direitos Humanos.
- Nesse ponto, existe coerência entre sistemas normativos internos e internacionais, já
que os princípios de proteção humana são a chave desses ordenamentos jurídicos.
- Perspectiva retórico-argumentativa (argumentação jurídica): Filosofia do Direito;
Ronald Dworkin (filosofia do direito e filosofia política).
- Ronald Dworkin: a importância do papel dos princípios a partir,
fundamentalmente, dos chamados hard cases (casos difíceis). E a crítica
contundente à concepção hegemônica do positivismo analítico de H. Hart.
- Utilização do método tópico-argumentativo: nova leitura do Direito e interpretação
da noção de ordem pública à luz dos princípios constitucionais e da proteção da
pessoa humana.
- Chaim Perelman: centrou suas reflexões em uma racionalidade prática, de forma
a descartar o ceticismo do positivismo lógico e o dogmatismo metafísico, no início
dos anos cinquenta.
- Essa corrente apresenta crítica ao modelo cartesiano: a argumentação é
considerada como um processo em que todos os seus elementos estavam em
constante interação; capaz de permitir a conciliação do respeito ao Direito com a
procura de uma solução justa no caso concreto, a partir da liberdade discricionária
do juiz, limitada pelos princípios.
- “Margarida Camargo explica que Perelman procurou alertar para a existência de
uma lógica própria ao direito, que não é a lógica formal (orientadora do
pensamento matemático) mas a lógica do razoável. Para Perelman, lógico era
aquilo que não era arbitrário.” (Nadia de Araujo)
- Existiria, assim, uma interação entre direito e moral que fugiria do alcance de um
pensamento meramente formal, para atingir um pensamento funcional (a função do
direito).
- É decorrente do cenário pós-positivista surgido no segundo pós-guerra.
- Uma releitura da argumentação tópico-retórica que poderia ser encontrada em Aristóteles foi
retomada por Viehweg (Tópica e Jurisprudência).
- Para Bonavides, esse pensamento inaugurou na hermenêutica contemporânea direções inovadoras.
Essa inovação filosófica repercute, também, em DIPr.
- Manuel Atienza: a teoria da argumentação jurídica atinge três campos
o da produção de normas (fase legislativa);
o da aplicação de normas (decisão dos hard cases);
o da dogmática jurídica (estudos que fornecem critérios auxiliares no processo de tomada de
decisão).
- Robert Alexy: A aplicação dos princípios enquanto diretrizes da decisão, dotados de valor normativo,
com alto grau de generalidade, viabilizaria de maneira mais adequada a solução para os casos
concretos, em comparação às regras, que seriam comandos mais fechados e específicos, com pouca
ou nenhuma flexibilidade.
- Princípio da proporcionalidade: funciona como critério de definição do direito
fundamental aplicável em caso de colisão diante de um hard case.
- A ponderação no conflito entre princípios leva em consideração três elementos para
dar resposta ao caso concreto:
sua adequação (todo ato deve ser adequado para produzir o resultado desejado);
sua necessidade (ou proibição de excesso, ou seja, escolha do meio menos
gravoso ao direito fundamental);
sua proporcionalidade em sentido estrito (meio mais vantajoso na promoção do
direito fundamental, que represente o menor desrespeito possível aos outros direitos
também protegidos pelo ordenamento).
- Princípio da Dignidade Humana: na perspectiva da metodologia retórico-
argumentativa, esse princípio funciona como um dos principais eixos do sistema
jurídico.
- Em um caso concreto envolvendo conflito plurilocalizado, atualmente, a primeira
das atividades judiciais será a verificação da vulnerabilidade humana envolvida,
buscando a primazia da proteção da dignidade humana. A essa atividade se atribui
justamente o fundamento da “ordem pública”.
- Violar a ordem pública parte da premissa inicial de violar a dignidade humana.
- “Assim, a regra estrangeira, se em colisão com um princípio — dado o
reconhecimento da superioridade e hegemonia deste na pirâmide normativa —, será
considerada contrária ao princípio da ordem pública.” (Nadia de Araujo)
-Esse modus operandi pode ser considerado como a nova metodologia jurídica no
DIPr.
- O caso paradigmático ocorreu na Alemanha, em 1971, e envolvia o conflito de leis
espanhola e alemã.
- O caso: “cidadão espanhol, solteiro, que pretendia casar-se com uma cidadã alemã, divorciada. Para
o direito alemão, a capacidade era regida pelo direito nacional de cada um. Por isso, era necessário
comprovar, no momento da habilitação de casamento — que se processava na Alemanha —, que a
capacidade das partes respeitava a lei do país de origem. Não obteve o espanhol tal certificado,
porque segundo a lei espanhola o casamento não podia ser realizado, em virtude do impedimento de
uma das partes, que era divorciada — por ser o divórcio proibido na Espanha. As partes requereram a
dispensa da formalidade, o que foi negado pelo tribunal, ao argumento de que não fora violada a
ordem pública internacional alemã. Recorreram ao Tribunal Constitucional alegando-se a violação de
um direito constitucional do indivíduo — o da liberdade de casamento. O Tribunal Constitucional
decidiu pela prevalência do princípio sobre a norma, ao entender que a violação ao direito
constitucional ocorrera. Nas suas razões, o tribunal também cita a proteção conferida a esse direito no
Art. 12 da Convenção Europeia de Direitos Humanos e no preâmbulo da Convenção das Nações
Unidas de 1962. Com isso, anulou-se a decisão da corte de apelação, e a licença foi concedida. Ao
justificar sua decisão, o Tribunal Constitucional fez questão de frisar que a aplicação do direito
estrangeiro, designado pela regra de conflito, estava sempre sujeita à Constituição. Impediu, desta
forma, que o alcance da decisão pudesse ser subestimado com a alegação da sua exclusiva
incidência sobre aquele caso concreto.” (Nadia de Araujo)
- Interferência direta da constituição e do núcleo duro “ordem pública” na seleção da
regra aplicável ao conflito plurilocalizado.
- Não se pode permitir que a aplicação da lei designada pela regra de conflito importe
em um resultado flagrantemente inconstitucional, à semelhança do que ocorre com
as regras do direito interno.
- A hermenêutica privilegia a busca do conhecimento de algo que não se apresenta
de forma clara. No surgimento de um conflito de regra versus princípio, nem sempre
estará clara, à primeira vista, a colisão da lei estrangeira em face da ordem pública
designada por um princípio fundamental aplicável.
- A forma dogmática de pensar orienta para uma resposta positivista, limitada ao que
diz a regra, de forma objetiva. A hermenêutica, por sua vez, cria um ambiente em que
se busca o que é justo a partir do princípio fundamental em jogo no caso concreto.
- No exemplo citado, o princípio fundamental do direito à constituição familiar, por sua
generalidade, configura-se norma mais adequada para resolver o conflito
plurilocalizado. A regra estrangeira aplicável que limita esse direito fundamental viola
a ordem pública e, portanto, deve ser afastada, ainda que o método conflitual e a
regra de conexão em DIPr orientasse para a aplicação da lei espanhola. Aplicá-la
seria violar um direito fundamental, seria violar, assim, a própria Constituição Alemã
e, no aspecto macro, a dignidade humana.
- Surge o que se convencionou chamar de efeito horizontal dos direitos
fundamentais: aplicação dos princípios fundamentais constitucionais aos casos
concretos de difícil solução no cenário multiconectado, afastando-se a norma
mandamental de DIPr que seria aplicável ao caso, em nome da proteção ao critério
de ordem pública.
- Na comunidade europeia, com a Convenção Europeia de Direitos Humanos,
instituiu-se uma verdadeira ordem pública comunitária, vigente em todo o território
dos países integrantes. Vem sendo desenvolvida a pauta interpretativa dos direitos
fundamentais dos países signatários para que se possa estabelecer esse núcleo
duro da ordem pública no âmbito comunitário.
- Esse pensamento segue na direção dos debates da composição de uma ordem
pública internacional.
- Em resumo: “A ordem pública transforma-se em uma barreira
à penetração de regras estrangeiras, ainda que indicadas pela
regra de conexão, se em flagrante oposição aos valores
fundamentais que o Direito interno quer garantir.” (Nadia de
Araujo)
- Caso Marckx (Corte Europeia de Direitos Humanos): Estava em jogo a
interpretação dos artigos 8 e 14 da Convenção Europeia, que cuidam da proteção da
família. O primeiro protege a vida privada e familiar, de modo a prevenir qualquer
ingerência arbitrária dos poderes públicos. O segundo estabelece a proibição de
discriminação de qualquer espécie, consubstanciando um direito à igualdade, que é
um dos princípios estruturantes do sistema europeu de proteção.
Alexandra Mackx era filha de uma mãe solteira. Por ser filha natural, cuja filiação
não era reconhecida pela legislação belga, sua mãe teve de adotá-la para garantir
seus direitos inerentes à filiação. Inconformada, sua mãe acionou a Corte Europeia
de Direitos Humanos, em face da discriminação contida na lei belga, que não
assegurava à sua filha todos os direitos da filiação. A Corte declarou, em 1979, que
alegislação belga violava a Convenção Europeia e deveria ser modificada. A
mudança ocorreu em 1987, quando a igualdade entre filhos naturais e legítimos foi
reconhecida. A Corte consagrou a interpretação do adágio “mater sempre certa est”
como sendo um princípio integrante do direito nacional da maioria das nações
europeias, e utilizou como fonte os princípios gerais do direito
- Legislação discriminatória entre filhos na Europa: após o caso, foi sendo
modificada, efetivando-se o efeito horizontal da Convenção Europeia de Direitos
Humanos.
- Exigência dos Estados não só um dever de abstenção sobre a vida privada do
indivíduo, mas também um papel efetivo na positivação desses direitos.
- Posição da Corte Europeia: padrão contemporâneo europeu de igualdade entre
filhos, sejam eles naturais, adulterinos ou legítimos, ante a necessidade de
estabelecer um controle da proporcionalidade para aplicação do princípio da
igualdade.
- Legislação da maior parte dos países europeus atualmente: ausência de regras
discriminatórias e existência de regras protetivas da igualdade na relação familiar.
- Convenção Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de
Adoção Internacional (vigente no Brasil): no mesmo sentido, adota previsões
igualitárias e protetivas do melhor interesse do menor.
- José Gomes Canotilho: efeito horizontal na eficácia dos direitos fundamentais na
ordem jurídica civil.
- Alemanha: a doutrina e a jurisprudência cuidam da eficácia horizontal como sendo
uma questão da irradiação da ordem constitucional dos direitos fundamentais para a
ordem jurídica civil.
- Espanha: os juristas usam esse conceito, para designar que as normas de conflitos
do DIPr devem estar em conformidade com a carta de valores da Constituição.
- Exemplos: temas como igualdade dos cônjuges diante da lei, a proteção do
consumidor, a defesa da livre concorrência no mercado.
- DIPr na Europa contemporânea: ambiente de incorporação de regras de conexão
que refletem os novos valores constitucionais — lei da residência habitual dos
cônjuges, lei mais favorável ao consumidor, dentre outros.
- DIPr nas Américas contemporâneas: adoção das convenções resultantes das
CIDIPs foi influenciada por essas novas matrizes normativas (eficácia horizontal dos
direitos fundamentais).
b) Ordem pública e jurisprudência brasileira (STF e STJ)
- Ordem pública enquanto princípio limitador da aplicação do método conflitual.
- Ocorrências: casos de concessão de exequatur às cartas rogatórias e na
homologação de sentenças estrangeiras, antes sob a guarida do STF e agora de
competência do STJ (EC 45).
- Homologação de sentença estrangeira (exemplo): no passado, havia indeferimento
de pedidos de homologação de divórcios realizados no exterior (contrariavam a
ordem pública brasileira de então). Passaram a ser deferidos após a Lei do Divórcio
e da Separação Judicial (Lei nº 6.515/1977).
- Carta rogatória (exemplo): concessão de exquatur em medidas executórias.
O STF, enquanto competente, inicialmente considerava contrária à ordem pública
a concessão de exequatur em medidas de caráter executório. Posteriormente, houve
um abrandamento.
O STF passou a aceitar sua concessão nos casos em que o Brasil fosse
signatário de convenção que contasse com permissão nesse sentido.
Com a EC nº 45/2004, o STJ, agora competente para as cartas rogatórias, passou
a adotar uma nova postura nessa hipótese, a partir da permissão do Art. 7º da
Resolução nº 9/2005, e a concessão de medidas de caráter executório não é mais
considerada como sendo contrária à ordem pública.
-Alterações na concepção de ordem pública: flexibilização do ordenamento interno
em respeito à cooperação internacional.
Caso das cartas rogatórias citatórias em ações estrangeiras sobre cobrança de
dívida de jogo.
Historicamente, por não reconhecer a legitimidade dessas cobranças, o Brasil não
concedia exequatur às cartas rogatórias que continham o pedido de citação do
devedor de jogo, o qual se encontrava domiciliado no Brasil.
Em nome da ordem pública, o STF recusava a aplicação da lei estrangeira, ainda
que a regra de conexão determinasse a aplicação desta (a lei regente da ação de
cobrança em razão do local da constituição da obrigação, conforme preceitua o Art.
9º da LINDB).
Os EUA reconhecem a legitimidade da dívida proveniente de jogo e a respectiva
ação de cobrança, e grande parte das cartas rogatórias nesse sentido eram
provenientes de lá.
Posteriormente, o Min. Marco Aurélio entendeu que a não concessão do exequatur
é que representaria violação à ordem pública, que acarretaria um enriquecimento
indevido e o desrespeito do princípio da boa-fé.
Para o ministro, as razões que em 1916 impediam o recebimento de dívidas de
jogo não mais persistem, verificando-se hoje a disseminação do jogo oficial, que faz
parte da rotina de todos.
Preocupou-se com o respeito ao direito vigente nos demais países, numa
demonstração intuitiva de respeito ao princípio basilar do DIPr: o comitas gentium.
- STJ (enquanto novo órgão competente) e carta rogatória concessão de exquatur
em medidas executórias (citação por dívida de jogo):
Seguiu a orientação do STF.
citação para dívida de jogo contraída no exterior: o exequatur foi concedido por
não ofender a soberania nacional ou a ordem pública a citação de pessoa aqui
domiciliada para responder a ação de cobrança de uma dívida de jogo, contraída em
país estrangeiro no qual esta atividade é lícita.
o caso era um agravo contra uma decisão do STF (enquanto ainda competente),
que havia concedido o exequatur para a citação por dívida de jogo em país
estrangeiro que admitia a possibilidade de cobrança contra devedor domiciliado no
Brasil. Provocou-se o STJ (enquanto novo órgão competente) a se posicionar sobre
a matéria. O STJ seguiu a orientação final esposada pelo Min. Marco Aurélio e
manteve a concessão do exequatur a esta carta rogatória.
No seu voto, o Min. Humberto Gomes de Barros (STJ) acrescenta, ainda, uma
ponderação importante: que não cabe ao STJ imiscuir-se no mérito da ação, mas
apenas “que o ato rogado seja passível de cumprimento em nosso território, sem
violação à soberania nacional e à ordem pública.” Entendeu que a citação é um ato
passível de cumprimento.
STF- INFORMATIVO Nº 273
TÍTULO
Carta Rogatória e Dívida de Jogo
PROCESSO CR 9897
ARTIGO
Iniciado o julgamento de agravo regimental interposto contra decisão do Min. Marco
Aurélio, Presidente, que deferira a execução de carta rogatória para a citação de
cidadão brasileiro em ação de cobrança de dívida de jogo em curso perante a
justiça dos Estados Unidos da América. Sustenta o agravante que a decisão
atacada ofende a ordem pública, em face da proibição da cobrança
de dívidade jogo no território brasileiro. Após o voto do Min. Marco Aurélio, relator,
desprovendo o agravo, e do voto da Ministra Ellen Gracie, provendo-o para negar o
exequatur, o julgamento foi adiado em virtude do pedido de vista do Min. Nelson
Jobim. CR (AgR) 9.897-EUA, rel. Min. Marco Aurélio, 17.6.2002.(CR-9897)
CARTA ROGATÓRIA - CITAÇÃO - AÇÃO DE COBRANÇA DE DÍVIDA DE JOGO
CONTRAÍDA NO EXTERIOR - EXEQUATUR - POSSIBILIDADE.
Não ofende a soberania do Brasil ou a ordem pública conceder exequatur para
citar alguém a se defender contra cobrança de dívida de jogo contraída e
exigida em Estado estrangeiro, onde tais pretensões são lícitas.
(AgRg na CR 3.198/US, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, CORTE
ESPECIAL, julgado em 30/06/2008, DJe 11/09/2008)
Resumo da aula:
- Limites à aplicação da lei estrangeira;
- Conceito e aplicação de ordem pública no cenário estrangeiro e no Brasil;
- Noções sobre a aplicação do conceito de ordem pública em casos concretos na
Europa e no Brasil;
- Evolução da flexibilização do conceito diante da cooperação internacional e da
universalização de direitos;
- Preponderância dos direitos fundamentais na aplicação horizontal em casos difíceis
(hard cases).
Fontes:
- ARAUJO, Nadia de. Direito Internacional Privado: Teoria e Prática Brasileira. 1. ed.
Porto Alegre: Revolução eBook, 2016.