digesto econômico nº 457

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Abril de 2010

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Page 1: Digesto Econômico nº 457
Page 2: Digesto Econômico nº 457

Ser responsável é da nossa natureza.

Associação Comercial de São Paulo, crescendo com responsabilidade.

A Associação Comercial de São Paulo, ao conquistar a certificação NBR16001:2004 - Responsabilidade Social, reafirma seu compromisso na relação ética etransparente com as partes interessadas,com base nessa norma. Isso é o resultado mais do que esperadopara uma instituição que vem há mais de100 anos agindo de forma pioneira emdefesa dos interesses, tanto do empresáriocomo de toda a sociedade.Aqui, na Associação Comercial de São Paulo, aprende-se desde cedo que o futuro é fruto da forma com que lidamos com nosso meio, seja nos campos econômico, ambiental ou social.

A Certificação NBR 16001:2004 é maisuma conquista da ACSP.

MAIS INFORMAÇÕES : (11) 3244 3030 - www.acsp.com.br

Mar

ketin

g AC

SP

Page 3: Digesto Econômico nº 457

3ABRIL 2010 DIGESTO ECONÔMICO

Alencar BurtiPresidente da Associação Comercial de

São Paulo e da Federação das AssociaçõesComerciais do Estado de São Paulo

Renina Katz assina o desenhoacima, uma representação da

morte de Tiradentes, mártirque lutou pela independência

do Brasil e contra a altacarga tributária cobrada pela

Coroa Portuguesa. A ilustraçãofaz parte do livro Romanceiro daI n co n f i d ê n c i a , que reúne versos

da escritora Cecília Meireles.Tiradentes e os ideais da

Inconfidência Mineira sãolembrados neste mês de abril.

O Brasilpassado

a limpo

Foi um sucessoa primeira ediçãoda série Pro pos-

tas para o Próximo Presi-d e nt e , da revista Dig estoEc on ômi co . O objetivo destasérie especial é fazer um comple-to diagnóstico dos grandes temasnacionais, e dessa forma ampliar odebate junto à sociedade e aos candi-datos à Presidência da República naspróximas eleições. Por conta da qualidadedos primeiros artigos e da relevância dos te-mas abordados, recebemos muitos elogios dosmeios empresarial, acadêmico e político. Logonas primeiras semanas após a revista estar em cir-culação, registramos milhares de acessos à sua ver-são eletrônica (www.dcomercio.com.br). Os autoresdos artigos também foram entrevistados e puderam co-mentar seus trabalhos no jornal Diário do Comércio. Isso tu-do ampliou a repercussão desta nossa iniciativa.

Nesta segunda edição da série, mais cinco especialistasde renome trazem suas valiosas contribuições para o deba-te. O ex-coordenador tributário da Secretaria da Fazendade São Paulo, Clóvis Panzarini, discute em seu artigo pro-postas para uma reforma tributária voltada para o ICMS.Trata-se de um tema polêmico, com grandes barreiras po-líticas, mas cujo debate é necessário caso o País queiraavançar rumo à modernidade.

O futuro do agronegócio brasileiro é o tema do economistaJosé Roberto Mendonça de Barros, que foi secretário de Po-lítica Econômica do Ministério da Fazenda. Ao mesmo tempoem que expõe os principais entraves ao desenvolvimento ple-no do setor, Mendonça de Barros aponta soluções para cor-rigir as distorções e deficiências das políticas atuais.

Geraldo Biasoto Jr., ex-secretário de Gestão de Investimen-tos do Ministério da Saúde e atual diretor da Fundação do De-senvolvimento Administrativo do Estado de São Paulo, discutea renovação do Sistema Único de Saúde (SUS). Para ele, o de-senho de novas formas de convivências entre os setores pú-

Pabl

o de

Sou

sa/L

UZ

blicos e privados podesignificar um salto dequalidade na área daSaúde, um tema que,sem dúvida, estará napauta de todos os can-didatos à Presidência.

José Roberto Afonso, economista de carreira do Banco Na-cional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), fazem seu trabalho um diagnóstico preciso e atualizado do inves-timento público no Brasil, e propõe medidas e políticas para asua elevação. Apesar de todo o alarde sobre as obras do PAC(Programa de Aceleração do Crescimento), principal bandei-ra da candidata do governo à Presidência da República, Afon-so traz a informação de que os investimentos públicos no Bra-sil estão entre os mais baixos do mundo.

Por fim, o professor Nelson Marconi (FGV e PUC) abordaa gestão de recursos humanos no governo federal. É preo-cupante a informação de que as despesas com pessoaltêm sido bem superior à inflação desde 1995, e se intensi-ficaram de forma significativa no atual governo, que nãotem cumprido o seu dever de enxugar a máquina pública ecortar seus gastos.

Boa leitura

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4 DIGESTO ECONÔMICO ABRIL 2010

ÍNDICE

Rua Boa Vista, 51 - PABX: 3244-3030CEP 01014-911 - São Paulo - SP

home page: http://www.acsp.com.bre-mail: [email protected]

Pre s i d e nteAlencar Burti

Superintendente InstitucionalMarcel Domingos Solimeo

Coordenador da Série Especial Eleições 2010Roberto Macedo

ISSN 0101-4218

Diretor-Resp onsávelJoão de Scantimburgo

Diretor de RedaçãoMoisés Rabinovici

Ed i to r - Ch e feJosé Guilherme Rodrigues Ferreira

Ed i to re sCarlos Ossamu e Domingos Zamagna

Chefia de ReportagemJosé Maria dos Santos

Editor de FotografiaAlex Ribeiro

Pesquisa de ImagemMirian Pimentel

Editor de ArteJosé Coelho

Projeto Gráfico e DiagramaçãoEvana Clicia Lisbôa Sutilo

Ilustrações e InfográficosAlfer, Max e Zilberman

Gerente ComercialArthur Gebara Jr. ([email protected]) 3244-3122

Gerente Executiva de PublicidadeSonia Oliveira ([email protected]) 3244-3029

Gerente de OperaçõesJosé Gonçalves de Faria Filho ([email protected])

I m p re s s ã oPrintcrom Gráfica e Editora Ltda.

REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PUBLICIDADERua Boa Vista, 51, 6º andar CEP 01014-911

PABX (011) 3244-3030 REDAÇÃO (011) 3244-3055FAX (011) 3244-3046

w w w. d co m e rc i o. co m . b r

Capa impressa em papel ecoeficiente Lumimaxfosco 150g/m² e o miolo no papel ecoeficiente Starmax

fosco 80g/m² da Votorantim Celulose e Papel - VCP.

CAPAFotomontagem de Paulo Zilberman

sobre fotos de Mauricio Lima/AFPe Epitácio Pessoa/AE

20O Futuro do Agronegócio

José Roberto Mendonça de Barros e equipe

L. A

dolfo

/AE

42A Saúde Brasileira emTempos de Renovar o SUSGeraldo Biasoto Jr. e Ricardo Oliva

Ale

x Ri

beiro

/DC

58O Nó dos Investimentos

PúblicosJosé Roberto Afonso

Alfer

80A Gestão de Recursos Humanosno Governo Federal:Diagnóstico e PropostaNelson Marconi

Alfer

6Conceitos para umaReforma TributáriaClóvis PanzariniA

lfer

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5ABRIL 2010 DIGESTO ECONÔMICO

Na edição passada, a primeira da série de seis especiais doDigesto Econômico, cinco especialistas apontaram problemas doBrasil e trouxeram propostas para o próximo presidente. Foram eles:

Claudio de Moura Cast ro Hél ioZylberstajn José Pastore Joaquim ElóiCirne de Toledo Ethevaldo Siqueira

Acompanhe no site w w w. d c o m e r c i o . c o m . b r

Nelson Marconi Clóvis Panzarini JoséRoberto Afonso José Roberto Mendonçad e B a r r o s G e r a l d o B i a s o t o J r .

Aos leitores: A sua revista Digesto Econômico (bimestral) será mensal até agosto, dedicada a um profundo balanço doBrasil pós-Lula. Chamada de "Propostas para o Próximo Presidente", esta série especial será posteriormente entregue a todos

os candidatos à Presidência da República, juntamente com um documento-síntese das propostas que a ACSP irá apoiar.

Apoio:

Próximos temas:

Mercado de Capitais, Programas Sociais,Segurança Pública, Esportes e Turismo,Comércio Exterior, Pacto Federat ivo,Burocracia Antiempresarial, Política Externa

Neste número, mais cinco autores de renome fazemsuas análises em outros setores e apontam soluções:

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Conceitospara uma

Reforma Tributária

ALFER

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7ABRIL 2010 DIGESTO ECONÔMICO

Evandro Monteiro/Hype

Clóvis PanzariniEconomista formado pelaUSP, ex-coordenadortributário da Secretaria daFazenda paulista, é sócio-diretor da CP ConsultoresAssociados. Site:www.cpconsultores.com.br.

Resumo

O objetivo deste artigo é o de examinar as duasprincipais propostas de reforma da legislação federalque trata do Imposto sobre Circulação de Mercadorias ePrestações de Serviços (ICMS), uma do Poder Executivofederal e outra do senador Francisco Dornelles (PP-RJ).

A análise conclui que o núcleo da segunda proposta – acriação, na competência federal, de um IVA amplo,limpo de cumulatividades, incidente sobre todas asbases de consumo hoje tributadas pela União, Estados,Distrito Federal e Municípios – acrescido de algunspontos da primeira e de outros listados ao final, poderiaservir de base a esse modelo conceitual. Essa lista inclui,entre outras propostas, medidas para a viabilização dofim do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI),federal, e do ISS, municipal, a manutenção do Impostosobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA),estadual, critérios para distribuição vertical da receitado novo imposto e para alteração de sua legislação, emparticular de suas alíquotas, e a definição, interpretaçãoe aplicação uniforme das normas do novo imposto emtodo o território nacional.

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8 DIGESTO ECONÔMICO ABRIL 2010

Introdução

Este artigo é focado no exame de duas propostas de re-forma tributária voltadas para o ICMS, naquilo quedepende de legislação federal. A primeira é a que veiodo Poder Executivo, na forma da Proposta de Emenda

Constitucional (PEC) nº 31-A-2007. A segunda foi apresentadapelo senador Francisco Dornelles (PP-RJ), e será referida a se-guir como proposta Dornelles.

O texto que se segue abrange cinco seções. A primeira re-sume alguns princípios que devem servir de base a um sistematributário eficiente. A Seção 2 trata da carga tributária nacio-nal, também de forma sucinta, referindo-se a aspectos quan-titativos e qualitativos. A Seção 3 é a central e trata separada-mente das duas propostas, descrevendo a sua natureza e co-mentando vários de seus aspectos em subseções distintas.A Seção 4 apresenta algumas conclusõesque emergem de uma comparação dasduas propostas. A Seção 5 resumeessas conclusões, e enfatizandodificuldades políticas – talvezinsuperáveis – imagina um mo-delo tributário que representa-ria um avanço rumo à moderni-dade, constituído pelo núcleo daproposta Dornelles, acrescido dealguns pontos da PEC 31-A/2007 e deoutros que enumera, que ampliariamo caráter da reforma, abrangendotambém outros impostos, co-mo o IPI e o ISS.

1. Política Tributária eEficiência Econômica –Princípios Básicos

Um sistema tributário efi-ciente deve obedecer a deter-minados princípios, como oda neutralidade, da equi-dade, da simplicidade e dacapacidade contributiva,que quando não observa-dos corroem a competitivi-dade da economia. O princí-pio da neutralidade, porexemplo, ensina que a tributa-ção deve ser otimizada de for-ma a interferir o mínimo possí-vel na alocação de recursos daeconomia, pois alterações nospreços relativos de bens e servi-ços, decorrentes do fator tributá-rio, quase sempre comprometema eficiência econômica e o bem-es-tar. O princípio da isonomia, com-plementar ao princípio da neutra-

lidade, estabelece que o Estado deve operar de forma neutra paraque concorrentes atuem no mercado em igualdade de condições.Não é por outra razão que a Constituição determina que não seinstitua tratamento desigual entre contribuintes que se encon-trem em situação equivalente. Pelo princípio da simplicidade es-pera-se que o sistema seja suficientemente "amigável" para quenão haja desperdícios de recursos, humanos e financeiros, para aobediência, pelo contribuinte, às suas regras, e para o seu moni-toramento e arrecadação, pelo Fisco. Muitas vezes, o Fisco, nabusca da eficiência arrecadatória, deixa de observar esses prin-cípios, causando graves problemas para a competitividade e pa-ra o equilíbrio financeiro dos contribuintes.

2. Carga tributária e gasto público:magnitude e qualidade

A sabedoria convencional tem concluí-do, erradamente, que a magnitude da car-ga tributária se constitui em grave fator decomprometimento da competitividade

do setor produtivo nacio-nal. Em 2009, a carga tribu-tária brasileira deve ter su-perado o percentual de35% do produto internobruto (PIB), mas, concei-tualmente, poder-se-ia ter

uma carga de 33% ainda maisgravosa, ou uma de 38% menos

ofensiva à competitividade, pois nãoé a sua magnitude que desequilibra

o mercado, mas sim a qualidadedos impostos e a forma como oproduto de sua arrecadação égasto. Um país dotado de um

sistema tributário "limpo", comimpostos que obedeçam aos prin-

cípios da neutralidade, equidade, efi-ciência, transparência e simplicida-

de, gerido por um governo aus-tero no gasto e que produza

bens públicos em quantida-de e com qualidade ade-quadas, certamente nãoterá o fator tributário comoóbice à sua competitivida-

de, qualquer que seja a mag-nitude da carga. Mas há um

clamor nacional por reduçãodo peso dos impostos.. O princi-

pal problema tributário brasileironão é, pois, o tamanho de sua car-

ga, mas a deformação dos im-postos, verdadeiros "fran-kensteins" que agridem todosos preceitos que devem orien-tar um sistema eficiente. O fato

Zilberman

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9ABRIL 2010 DIGESTO ECONÔMICO

é que há generalizado clamor por redução dacarga tributária brasileira, cuja trajetória persis-tentemente ascendente estaria, supostamente,comprometendo a competitividade do setorprodutivo e o poder de compra da população. ATabela 1 mostra a evolução da carga tributáriacomo percentagem do PIB nos últimos anos.

Mais grave do que esse despropositado pesodos impostos é o fato de que o arcabouço fiscalbrasileiro é composto por tributos de péssimaqualidade, que ofendem aqueles princípiosque devem nortear um sistema tributário mo-derno: é ineficiente, complexo, injusto, gera in-segurança jurídica e guerra fiscal, além de per-mitir a extração de uma carga de impostos des-proporcional à capacidade contributiva doscontribuintes. A cumulatividade dos impostoscompromete a competitividade do setor pro-dutivo nacional tanto no mercado externo quanto no domés-tico. De outro lado, o cipoal de normas, complexas e instáveis,aumentam o custo de conformidade das empresas e se cons-tituem em um fator adicional de comprometimento da com-petitividade. Também, a percepção da sociedade de que a car-ga tributária brasileira é elevada decorre do fato de que o go-verno não oferece a ela serviços públicos – saúde, educação,segurança pública etc – em quantidade e qualidade proporcio-nais ao montante de recursos dela extraído compulsoriamentena forma de tributos. Destarte, o contribuinte brasileiro, ape-sar do volume de impostos que apequenam sua renda dispo-nível, tem de alocar parcela importante de seu orçamento do-méstico para pagamento de despesas com serviços que deve-riam ser providos com os recursos do voraz governo.

3. A Reforma Tributária

É consenso que o sistema tributário brasileiro é ineficiente,complexo e injusto. A qualidade dos impostos no Brasil ofendemais a competitividade da economia do que a magnitude dacarga tributária, que é equivocadamente entendida por mui-tos como a principal razão para uma reforma.

A complexidade do sistema faz com que os custos de con-formidade sejam, muitas vezes, mais gravosos do que o pró-prio valor do imposto recolhido. Acrescente-se a isso as de-mais distorções – como as decorrentes da guerra fiscal, que ge-ra insegurança jurídica e violência contra a competição sadia -e da cumulatividade, que existindo mesmo nos insuspeitos

tributos "não-cumulativos", como o ICMS, erodem a compe-titividade das empresas brasileiras.

A elevada carga tributária e a péssima qualidade dos impos-tos que a compõem levam empresários, contribuintes e a po-pulação em geral a clamar por reforma do sistema de impos-tos, pois todos sofrem com os absurdos do quadro fiscal. En-tretanto, não são poucas as dificuldades técnicas e políticasque devem ser superadas para a implantação de um novo mo-delo, mais racional e eficiente. Destarte, as sucessivas propos-tas de reforma tributária não saem do papel porque, agredindoo pacto federativo, são politicamente inviáveis ou porque são

tecnicamente frágeis e acentuam ainda mais as distorções quepretendem mitigar.

A inserção na Constituição de 1988 do comando que prevê asua revisão após cinco anos da data da promulgação, por votode maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional –menor do que o necessário para aprovação de Emenda Cons-titucional, que exige três quintos daqueles votos –, teve pormotivação básica as incertezas da eficácia do sistema tributárioque então se aprovava.

Assim, desde 1993 multiplicam-se propostas de reforma tri-butária. Remédios de toda espécie têm sido oferecidos para acura do modelo doente, quase todos anunciados como pana-ceia, que promete curar desde complexidade até injustiça dis-tributiva. Até a substituição de todos os tributos por uma "su-per CPMF", com alíquota de 7% ou 8% (teria de gerar 20 vezesmais receita do que a CPMF, que rendia R$ 40 bilhões/ano coma alíquota de 0,38%), tem sido defendida por contribuintes de-sesperados com o cipoal tributário ou por economistas de in-suspeita estatura intelectual.

A cumulatividade dos impostos comprometea competitividade do setor produtivo nacional.

Patrícia Cruz/Ag. Luz

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10 DIGESTO ECONÔMICO ABRIL 2010

Contudo, o debate sobre a reforma tributária tem obedecidoa uma trajetória pendular: ora domina as manchetes dos jornaise a preocupação de contribuintes e autoridades públicas, colo-cando-a como fundamental para destravar a economia do País,ora desaparece completamente da agenda, como se todos osproblemas tivessem misteriosamente sido solucionados. O fatoé que, além do contribuinte, sujeito passivo nessa truculenta re-lação, nenhum ente federativo parece estar seriamente dispostoa correr qualquer tipo de risco de uma reforma abrangente, querompa paradigmas, redistribua horizontal e verticalmente ren-das tributárias e, inexoravelmente, poder político.

Os antagonismos federativos e a desconfiança decorrentedos desequilíbrios na correlação de forças no Congresso Na-cional – tanto no que diz respeito à representatividade das uni-dades federadas quanto ao relevante peso da base de susten-tação do governo central – conduzem sempre às calendasqualquer proposição um pouco mais ousada de reforma dosistema fiscal. Não é, pois, tarefa trivial a aprovação, em am-biente democrático, de uma proposta de reforma fiscal que al-meje, ao mesmo tempo, a eficiência do sistema tributário, oequilíbrio da Federação, a qualidade do gasto público e a re-dução das disparidades sociais e regionais. Até porque essesobjetivos são, muitas vezes, conflitantes.

O modelo tributário vigente, consagrado na Constituiçãode 1988, promoveu ampla descentralização de competências ede receitas tributárias, destroçando o Orçamento da União,mas deixou a ela competência para recompô-lo via criação decontribuições sociais cumulativas, que transformaram o siste-ma tributário numa colcha de retalhos de péssimo gosto.

A implementação de um sistema tributário moderno passainexoravelmente por ampla reforma do Imposto sobre Circula-ção de Mercadorias e Serviços (ICMS), hoje o principal vilão dosistema e fator de graves ineficiências. Para dar alguma racio-nalidade a esse tributo, existem dois caminhos, ambos de algu-ma forma conflitantes com equilíbrio federativo: um, mais sim-ples, passa pela adoção do princípio de destino nas operaçõesinterestaduais; o outro, mais radical, seria a sua federalização. Aadoção do princípio de destino, além das dificuldades operacio-nais para a sua implantação, implica importante redistribuiçãode rendas entre as unidades federadas, transferindo receita dosEstados exportadores líquidos, nas operações interestaduais,para os importadores líquidos. O caminho mais ousado, a fede-ralização do ICMS, promoveria redistribuição de poder políticoe, provavelmente, de receita tributária.

3.1. A Proposta de EmendaConstitucional (PEC) nº 31-A/2007

A última proposta de reforma tributária do Governo Federal,a PEC nº 31-A/2007, terceira do governo Lula, promete impor-tantes melhorias no sistema tributário, com ganhos para o Fiscoe contribuintes. Mas além dos conflitos a serem superados, estálonge de trazer modernidade ao sistema de impostos do País.

Esta proposta supostamente simplifica o sistema tributário,elimina as distorções que comprometem a competitividade daeconomia e põe fim à 'guerra fiscal'. Além de alterações estru-turais em alguns tributos, promove importantes mudanças emdispositivos que definem base de cálculo e critérios de rateio defundos constitucionais, como o Fundo de Participação dos Es-tados (FPE), o Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e acota-parte municipal do ICMS.

Na competência federal, prevê a criação de um novo imposto,não cumulativo, o IVA-F, cujos núcleos da hipótese de incidên-cia são as "operações com bens e prestações de serviços". Essenovo imposto deverá ter alíquota que proporcione arrecadaçãoigual à soma da receita da atual COFINS, da CIDE-Combustí-veis, do PIS e da contribuição do Salário-Educação. Além disso,a lei poderá estabelecer adicional do IVA-F para substituir par-cialmente a contribuição sobre folha de pagamento recolhidapelo empregador (art. 195, § 13, CF-88). Já o IRPJ deve absorvera CSLL, inclusive, mediante fixação de alíquotas diferenciadaspor setor de atividade econômica (art. 153, § 2º, III, CF-88). Leifederal definirá redução gradativa, entre o 2º e 7º ano subse-quente à promulgação da Emenda, da alíquota da contribuiçãodo empregador sobre folha de pagamento, pelo que o PoderExecutivo deve remeter projeto de lei nesse sentido, no prazo de90 dias após a referida promulgação. (nota do Relator da Pro-posta, Deputado.Sandro Mabel)

Como a arrecadação das contribuições que serão extintas esubstituídas pelo IVA-F somou, em 2009, R$ 163 bilhões, a alí-

Newton Santo/Hype

Estátua viva segura manifesto da Frente ParlamentarContra a CPMF, que pedia assinaturas contra o imposto.

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11ABRIL 2010 DIGESTO ECONÔMICO

quota do novo tributo, necessária para repor no orçamento daUnião àquele montante, terá de ser algo equivalente a 70% daatual alíquota média do ICMS, que no ano rendeu aos EstadosR$ 225 bilhões. Na esfera federal, a proposta prevê ainda a ex-tinção da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, que seráfundida com o Imposto de Renda Pessoa Jurídica. O setor de ser-viços, cujo índice de valor agregado é elevado, terá expressivoaumento de carga tributária com a criação do IVA-F, caso nãotenha alíquota diferenciada, que incidirá praticamente sobe ofaturamento de vez que o setor praticamente não terá créditos arecuperar, relativos às operações anteriores.

O ICMS é o "calcanhar de Aquiles" da reforma tributária, porenvolver entraves técnicos e políticos ainda longe de solução. Oproblema do ICMS é genético. Esse imposto nasceu com 26 "cro-mossomos" a mais. Impostos do tipo valor agregado, como é ocaso do ICMS, têm natureza nacional, uma vez que a cadeia dedébito e crédito faz com que a decisão de política tributária de umEstado contamine a economia dos demais, com os quais seus con-tribuintes mantêm relação comercial. Impostos dessa naturezadevem, então, ser unos, de competência federal, mas no Brasil,sua competência foi outorgada aos Estados e o imposto foi des-dobrado em 27. Guerra fiscal, insegurança jurídica, acumulaçãode crédito, cobrança do imposto na fronteira, no momento da en-trada da mercadoria no território do Estado, multiplicidade deregras e "passeio" de notas fiscais são exemplos de distorções de-correntes da equivocada outorga. A proposta de reforma tribu-tária ora em pauta – a Proposta de Emenda Constitucional (PEC)31-A/07, recentemente aprovada na Comissão de Reforma Tri-butária da Câmara dos Deputados – supostamente modernizaráo sistema tributário, saneando os seus principais problemas.

COMENTÁRIOS

3.1.1. A questão da transparência.

O ICMS, atualmente, por regra constitucional, com-põe a sua base de cálculo, ou seja, é cobrado "por den-tro", fazendo com que a alíquotanominal de 18% seja, de fato,21,95%, sem que o consumidorperceba. Na Proposta, essa distor-ção é mantida e, mais do que isso,contamina também o novo IVA fe-deral, pois há previsão de que o im-posto possa compor a sua base decálculo. Dizem os defensores des-sa sistemática que a alíquota "porfora", necessária para arrecadar o atualmontante de recursos, teria de ser muito alta, in-duzindo aumento de sonegação. Esse argu-mento não pode prevalecer, pois o con-tribuinte fraudador não sonega alíquo-ta, mas sim dinheiro público. Na vendade um par de sapatos, cujo preço semICMS é de R$ 82, o comerciante sone-gador ganha R$ 18 quando não emitenota fiscal, seja a alíquota de 18%

"por dentro" ou de 21,95% "por fora". A alíquota "por dentro" nãoilude o sonegador, mas o consumidor, que imagina estar pagan-do apenas 18% de ICMS na compra de seus sapatos novos.

3.1.2. A questão da neutralidade

Problemas relativos à eficiência e neutralidade do ICMS tam-bém, ou não estão resolvidos, ou a solução está de tal forma pos-tergada que muitas empresas não sobreviverão para dela usu-fruir. A vedação ao crédito do imposto incidente sobre bens deuso e consumo e o aproveitamento em quatro anos do créditorelativo aos bens de capital, por exemplo, constituem forte ofen-sa ao princípio da não-cumulatividade e, portanto, da neutra-lidade do imposto. Os Estados alegam que tais desoneraçõesconstituir-se-iam em perda de receita insuportável. Ora, o quan-tum de receita desejável é, evidentemente, definido pelas alí-quotas dos impostos, mas está sendo dada preferência a alíquo-tas nominais aparentemente baixas, enquanto o verdadeiroônus tributário está sendo definido por "alíquotas" invisíveis aocidadão consumidor. Aquele mesmo par de sapatos, cuja alí-quota "por fora" já é de 21,95%, tem ônus tributário ainda maior

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12 DIGESTO ECONÔMICO ABRIL 2010

quando se contabiliza, também, a bitributação dos bens de uso econsumo utilizados em sua produção. Caso fosse imposta, di-gamos, a alíquota de 23% sobre aquele par de sapatos, mas sema mágica da cobrança "por dentro" e sem a bitributação dos bensde uso e consumo, a sua carga tributária seria rigorosamente amesma, só que mais inteligente e transparente.

A citada PEC propõe a eliminação da bitributação dos bensde uso e consumo num processo que demorará 19 anos: umdécimo por ano a partir do nono ano subsequente ao da pro-mulgação da emenda constitucional. Deve se ressaltar que ocreditamento do ICMS incidente sobre a conta de energia elé-trica continuará sendo permitido apenas àquela "consumidano processo de industrialização", o que exclui o setor comer-cial de seu aproveitamento. Também o ICMS incidente sobreserviços de comunicação utilizados na cadeia produtiva nãoserá objeto de recuperação. Então, essas importantes fontesde cumulatividade do imposto, que comprometem a sua neu-tralidade, não serão sanadas – ou o serão em prazo insupor-tavelmente longo – pela PEC-31-A/2007.

O segundo problema, a desoneração dos bens de capital, seráfeita via devolução à vista ao investidor – atualmente isso é feitoem 48 meses –, mas o processo de transição do creditamento doICMS do atual período de 48 meses para devolução à vista, deacordo com a proposta, dar-se-á em 8 anos.

Outro fator que agride a neutralidade do ICMS é a guerra fis-cal, que faz com que mercadorias idênticas concorram no mes-mo mercado com cargas tributárias diferentes.

3.1.3. A questão da uniformizaçãohorizontal das alíquotas do ICMS

De acordo com a proposta, as alíquotas do imposto serãoimplementadas por lei complementar federal, que definiráentre elas a alíquota padrão, aplicável a todas as hipótesesnão sujeitas a outra alíquota e resolução do Senado Federal,aprovada pela maioria de seus membros, definirá o enqua-dramento de mercadorias e serviços nas alíquotas diferen-tes da alíquota padrão, exclusivamente mediante aprova-ção ou rejeição de proposição do futuro "CONFAZ" ou deiniciativa de um terço dos governadores de Estado e DistritoFederal ou das Assembleias Legislativas, manifestando-se,cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros, des-de que estejam representadas, em ambos os casos, todas asregiões do País. A unificação das alíquotas do ICMS impli-cará no aumento da carga tributária, pois a padronização,inexoravelmente, se fará pelo teto. O óleo diesel, por exem-plo, é tributado a 12% de ICMS nos Estados de São Paulo,Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Nos demais Es-tados, a alíquota praticada é de 18%. Outros exemplos de di-versidade de alíquota em insumos estratégicos podem serapontados, como a que grava a energia elétrica, as teleco-municações, a gasolina etc. Há o risco concreto de que a car-ga tributária incidente sobre alimentos seja aumentada enão diminuída, pois os Estados, cuja base econômica seja aagricultura, provavelmente não concordarão com a isençãonacional dessas mercadorias, que atualmente são desonera-das apenas nos Estados mais desenvolvidos.

3.1.4. A questão do princípio de destino

3.1.4.1. Aspectos políticos: redistribuiçãohorizontal de receita tributária.

A proposta prevê a adoção do princípio de destino (ou "quasedestino"; no caso, 2%) nas operações interestaduais, transferin-do a quase totalidade da receita do imposto para o Estado ondea mercadoria é consumida. Remanescerá para o Tesouro do Es-tado vendedor apenas 2% do valor da operação interestadual. Oprincípio de destino nas operações interestaduais, que, pondofim à guerra fiscal, daria alguma eficiência ao modelo, desagra-da tanto aos Estados exportadores líquidos, perdedores de re-ceita, quanto aos importadores, que ganham receita tributária,mas perdem o poder de fazer política de desenvolvimento re-gional com o ICMS. Nas recentes discussões sobre a reforma tri-butária, os Estados consumidores, importadores líquidos, ga-nhadores, portanto, de receita com o princípio de destino, têmsido mais resistentes à mudança do que os Estados produtores.Estes perdem receita; aqueles a capacidade de atrair atividadeeconômica para seus territórios.

3.1.4.2. Aspectos operacionais.

A operacionalização do princípio de destino também nãoestá equacionada. Existem duas formas para implantá-lo: amais óbvia, a adoção da alíquota zero na fronteira; a outra,através da cobrança da alíquota "cheia" na origem e repasseda receita ao tesouro do Estado importador. Ambas as alter-nativas apresentam problemas operacionais ainda não solu-cionados. Ademais, qualquer uma das alternativas agrava ojá grave problema de acumulação de crédito do ICMS. A pri-meira – alíquota zero na fronteira – implica aumento de cré-dito acumulado na escrita fiscal dos contribuintes do Estadoexportador: qualquer operação interestadual terá efeitoidêntico ao de uma exportação para o exterior na conta fiscaldo contribuinte remetente da mercadoria. A segunda alter-nativa – cobrança da alíquota "cheia" na origem com repasse

O ICMS é o "calcanhar de Aquiles" da reforma tributária, porenvolver entraves técnicos e políticos ainda longe de solução.

Renato Luiz Ferreira/e-Sim

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da receita ao Estado importador – implica no aumento de cré-dito acumulado no Estado de destino, quando a mercadoriaadquirida em operação interestadual, ou o produto dela re-sultante, for objeto de exportação para o exterior. De fato, sen-do a operação interestadual praticada com a alíquota "cheia"(a interna), o contribuinte destinatário, se exportador, teráagravado seu problema de crédito acumulado. Atualmente,uma siderúrgica capixaba, por exemplo, compra minério emMinas Gerais e se credita de 7% de ICMS, que acaba virando"moeda podre", congelada na sua escrita fiscal. Aprovada es-sa proposta, esse crédito decorrente da operação interesta-dual aumentará em 157%, uma vez que o minério sairá de Mi-nas Gerais tributado com 18% de ICMS. A soja, que sai de Ma-to Grosso para São Paulo com 12% de ICMS, passará a ser tri-butada na fronteira com alíquota de 18%, dando direito aidêntico crédito ao comprador interestadual. É verdade quenesse desenho o Estado destinatário é "ressarcido" pelo con-tribuinte do Estado remetente. Entretanto, nada garante queos Estados destinatários de matérias-primas dispor-se-ão ahonrar créditos acumulados – depois da reforma maiores doque os de hoje – tendo em vista que não há nenhum vínculoentre o seu aumento de arrecadação e a necessidade dele hon-rar tais compromissos. Também, nada garante que os meca-nismos de auditoria, sempre exigidos para a homologação e arespectiva devolução ou autorização de transferência doscréditos para terceiros, sejam mais ágeis que os atuais.

Além do problema do crédito acumulado, ambas as alterna-tivas apresentam outros problemas operacionais que precisamser solucionados.

A imposição da "alíquota zero" (no caso, "quase zero": 2%) nafronteira exigiria a instalação de verdadeiras aduanas interes-taduais para o controle físico das mercadorias, uma vez que oenorme diferencial entre a alíquota interna e a interestadual in-duziria a exacerbação do já existente problema da simulação dedestino da mercadoria. O contribuinte fraudador remete efeti-vamente a mercadoria para destinatário interno, acobertadapor documento fiscal a destinatário interestadual fictício.

De outro lado, a cobrança do imposto na origem, antes da saí-

da da mercadoria, com o repasse da receita ao Estado de destino,opção preferida pelos secretários de fazenda, também apresentaentraves operacionais sérios. Aqui, também se abrem duas pos-sibilidades: ou o contribuinte-remetente recolhe o imposto di-retamente ao Estado da localização do seu cliente ou ao tesourode seu Estado, que o repassa ao Estado destinatário. A primeiraalternativa implicaria enorme aumento na complexidade do jácomplexo ICMS: cada empresa que pratica operações interesta-duais haveria de ser contribuinte inscrito em tantas secretariasde fazenda – e ser por elas fiscalizada – quantos forem os Estadosonde tem clientes. Contribuintes que fornecem para todo o Paísseriam auditados por vinte e sete fiscos! Nessa hipótese, o ob-jetivo da reforma tributária de simplificar o modelo claramentefica frustrado. A segunda alternativa – o recolhimento do ICMSao tesouro de seu Estado, que o repassaria ao Estado destinatá-rio – implicaria em transferências horizontais entre entes fede-rativos de mesmo nível e exigiria confiança mútua entre eles, oque não existe e não haveria como punir o Estado que inadim-plisse ao repasse de receita aos Estados importadores.

3.1.5. A questão da unificação da legislaçãoe a simplificação do sistema

A PEC 31-A/2007 estabelece que o Regulamento do ICMS,que define a forma como as obrigações tributárias devem sercumpridas, será nacional, editado pelo novo 'CONFAZ'. Essaunificação da legislação do ICMS, principal elemento mercado-lógico da proposta – que encanta economistas, políticos e leigosem geral em administração tributária – poderá resultar em enor-me complexidade, pois, o Regulamento Nacional do ICMS, feito"a 54 mãos", pelas 27 representações estaduais no CONFAZ, de-verá tornar-se verdadeira "árvore de Natal", repositório de to-das as exigências descabidas ou anacrônicas, anulando avançose simplificações já conquistados em alguns Estados. Homoge-neizar-se-á nacionalmente as complexidades locais. Para as cor-porações multiestaduais – e só para elas – a troca talvez seja be-néfica. Como a grande maioria das empresas não tem filiais forado Estado, é certo que o Regulamento Nacional do ICMS, na mé-dia, represente mais complexidade do que cada um dos 27 re-gulamentos estaduais do ICMS.

3.1.6. A questão dos fundos compensatórios.

A PEC 31-A/2007 prevê que a base de cálculo dos fundoscompensatórios será mais ampla do que a atual (que consideraapenas o produto da arrecadação de IPI e IR), pois incluirá nela,também, o produto da arrecadação do novo "IVA-F". O Fundode Participação dos Estados (FPE) será abastecido com onze in-teiros e um décimo por cento do produto da arrecadação daque-les impostos e o Fundo de Participação dos Municípios, com on-ze inteiros e seis décimos por cento e mais cinco décimos por cen-to, no primeiro decêndio do mês de dezembro de cada ano.

Cria, ainda, mais dois fundos compensatórios para neutrali-zar eventuais perdas de receita ou de capacidade de fazer po-lítica tributária, ambos alimentados com recursos da União: oFundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR) e o Fun-do de Equalização de Receitas (FER).

Newton Santos/Hype

O principal problema tributário brasileiro não é o tamanhoda carga, mas a deformação dos seus impostos.

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14 DIGESTO ECONÔMICO ABRIL 2010

O primeiro, o Fundo Nacional de Desenvolvimento Regio-nal, será abastecido por:

1. um inteiro e cinco décimos por cento para aplicação emprogramas de financiamento ao setor produtivo das regiõesNorte, Nordeste e Centro-Oeste, por meio de suas instituiçõesfinanceiras de caráter regional, de acordo com os planos regio-nais de desenvolvimento, ficando assegurada ao semi-árido doNordeste a metade dos recursos destinados à região, na formaque a lei estabelecer;

2. cinco décimos por cento paraaplicação em programas de desen-volvimento econômico e social, se-gundo diretrizes estabelecidas pelosorganismos regionais a que se refereo art. 43, § 1º, II, nas regiões ondehouver assegurados, no mínimo, no-venta por cento nas tegiões Norte,Nordeste e Centro-Oeste;

3. onze centésimos por cento paratransferência a fundos estaduais, paraaplicação em investimentos voltadosao desenvolvimento econômico dasáreas menos desenvolvidas do Paísnas regiões Sul e Sudeste;

4. oito décimos por cento paratransferência a fundos estaduais e dis-trital de desenvolvimento das regiõesNorte, Nordeste e Centro-Oeste, paraaplicação em investimentos em in-fraestrutura voltados para a manuten-ção e atração de empreendimentos dosetor produtivo, incluindo subven-ções econômicas e financeiras, na for-ma da lei estadual ou distrital.

O segundo, o Fundo de Equalização de Receitas (FER), queobjetiva compensar as unidades federadas por eventuais per-das de arrecadação decorrentes do novo desenho tributário, en-tregará aos Estados e Municípios nove décimos por cento doproduto da arrecadação daqueles tributos.

Como serão extintos os repasses decorrentes da Lei Kandir e,também, o Fundo de Exportação, alimentado com 10% da ar-recadação do IPI, os Estados exportadores líquidos – perdedo-res de receita com a reforma – entendem que a compensação se-rá feita com moeda que já lhes pertence e começam a impor re-sistência à proposta. Também os Estados 'guerreiros', apesar dacriação do FNDR, relutam em abrir mão do enorme poder po-lítico que representa sua capacidade de atrair indústrias paraseu território com benesses tributárias ilegais.

A PEC 31-A/2007, em suas disposições transitórias, cria re-gras de legitimação dos benefícios fiscais de ICMS concedidos àmargem da legislação tributária no contexto da guerra fiscal, oque eliminará as enormes contingências tributárias que hoje pe-sam sobre a maioria das empresas que adquirem mercadoriasem operações interestaduais. O § 3º do Art. 6º daquela PEC es-tabelece que "os incentivos e benefícios, que tenham sido conce-didos até 5 de julho de 2008, sem observância aos requisitos pre-conizados pela Lei Complementar nº 24, de 1975, têm seus efei-

tos reconhecidos em relação à fruição desde a data de concessãoaté a data da promulgação desta Emenda Constitucional".

3.2. A Proposta Dornelles

O senador Francisco Dornelles (PP-RJ), relator da Subcomis-são Temporária de Reforma Tributária, apresentou relatóriocom sugestões de mudanças no sistema tributário brasileiro. Su-gere a criação do Imposto Nacional sobre Valor Adicionado

(IVA Nacional), nele incluindo o Im-posto sobre Circulação de Mercado-rias e Serviços (ICMS), e o produto daarrecadação seria partilhado entre ostrês níveis de governo.

Segundo ele "as experiências bemsucedidas na repartição das cotas doICMS e IPVA, bem assim do rateio doFUNDEF e FUMDEB, indicam que épossível repartir o produto da arre-cadação já na rede bancária, de modoautomático e em curto período detempo, sem que a receita transite pe-los cofres do governo responsávelpela coleta do imposto".

A inclusão do ICMS na base amplado IVA Nacional é uma das diferen-ças fundamentais entre a propostado senador e a solução proposta pelogoverno em seu modelo de reformatributária encaminhada ao Congres-so. Dornelles explicou que sua inten-ção foi sugerir a construção de umnovo sistema tributário, e não so-mente propor uma reforma. Disse,

ainda, que não teve a pretensão de propor um modelo aca-bado, mas alinhar os pontos mais relevantes para o início dadiscussão. O objetivo central, conforme assinalou, será me-lhorar a qualidade da tributação no País – sobretudo com asimplificação do sistema – para reduzir os custos do cumpri-mento das obrigações fiscais indiretas que recaem sobre asempresas, classificadas de "custos invisíveis".

Para reduzir o custo de conformidade, ele propõe a fusão devários tributos existentes, acompanhada da extinção de diver-sas contribuições sociais. O IVA Nacional passaria a incorporar,entre outros, os seguintes tributos federais: Imposto sobre Pro-dutos Industrializados (IPI), Contribuição de Intervenção noDomínio Econômico (CIDE), Contribuição para o Financia-mento da Seguridade Social (Cofins), o Salário-Educação e oPrograma de Integração Social (PIS).

Ainda no IVA Nacional, entrariam as receitas do Fundo deUniversalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) e oFundo Tecnológico para o Desenvolvimento das Telecomunica-ções (Funttel). O Imposto de Renda (IR), por sua vez, incorporariaa Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). O senadortambém cria um único imposto sobre a propriedade imobiliária,a partir da fusão do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) eo Imposto Territorial Rural (ITR), atribuído aos municípios.

Andrei Bonamin/Luz

O senador Francisco Dornelles(PP-RJ), relator da Subcomissão

Temporária de Reforma Tributária,sugere a criação do IVA Nacional.

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15ABRIL 2010 DIGESTO ECONÔMICO

O desenho de Dornelles traz regras modernizantes ao siste-ma tributário: o imposto deve taxar apenas o consumo, deso-nerando completa e automaticamente todas as exportações e to-dos os investimentos produtivos, via manutenção e aproveita-mento dos créditos dos impostos cobrados ao longo da cadeiade produção dos bens exportados e dos bens de capital adqui-ridos e o IVA deve atingir o mesmo bem ou serviço, indepen-dentemente de onde seja produzido ou se importado, sujeito àmesma forma de apuração, aos mesmos incentivos (se for o ca-so) e às mesmas alíquotas. Sugere, ainda, que o valor adicionadodeve ser apurado pelo regime financeiro ("uma apuração sim-ples, contrapondo todas as saídas a todas as entradas") e nãomais pelo regime físico hoje adotado no ICMS, segundo o qualsomente dão direito ao crédito as aquisições de matérias primas,que se incorporam fisicamente ao bem a que deu origem. Todosos demais itens de custo tributados pelo ICMS não geram cré-dito, sendo, portanto, bitributados na saída subsequente.

Dornelles abre duas alternativas para a divisão federativado IVA: em prevalecendo o entendimento de que o princípioda simplificação do sistema é fundamental, adotar-se-ia umúnico imposto, com a cobrança concentrada nos Estadose a arrecadação compartilhada entre eles e a União;ou, se o princípio da divisão federativa for con-siderado o mais relevante, caberiadefinir competências comple-mentares ou suplementaresem relação ao novo IVA.

No primeiro cenário – apli-cação de um único IVA na-cional – a legislação e a re-gulamentação seriam asmesmas em todo territórionacional e os Estados nãoteriam qualquer poderpara legislar ou re-gulamentar o im-posto de modo dife-renciado – especial-mente, não pode-r i a m c o n c e d e risenções ou benefí-cios, nem financei-ros , para ev i tar aguerra fiscal (que se-ria potencializadapela cobrança inte-gral na origem). Estahipótese coloca a re-partição da receita co-mo a questão crucial donovo imposto. A divisão dareceita entre União e Estadosseria mais fácil de calcular elevaria em conta a situaçãovigente no momento da en-trada em vigor do novo mo-delo, tomando por base a

arrecadação de cada tributo a ser fundido no novo IVA e, em te-se, congelando tal divisão federativa no novo sistema.

O outro caminho envolve o compartilhamento do IVA ou acriação de dois IVAs, modelo que na literatura econômica é cha-mado de "IVA dual". Ao contrário da unificação da arrecadaçãoprevista antes, neste segundo cenário institucional, tanto Esta-dos cobram e fiscalizam o IVA, quanto a União. Mesmo nestahipótese, o IVA estadual teria as alíquotas fixadas em caráter na-cional, pelo Senado Federal, que poderia tomar a iniciativa defixar as classes de alíquotas (cestas vazias) dentro das quais, pordeliberação de um colegiado dos Estados (CONFAZ?) seriamdistribuídos os bens e serviços sujeitos à tributação ou, em pro-cesso inverso, "menos vulnerável a questionamentos judiciais",os Estados tomariam a iniciativa de propor as alíquotas e as ba-ses e, em caráter terminativo, o Senado decidiria sobre elas.

Vislumbra Dornelles a hipótese de que cada Estado possaaplicar uma alíquota diferente da nacional, "mas o acréscimo oua redução, relativos, deverão atingir igualmente todas as cate-gorias de alíquota, porque sua finalidade seria apenas arrecada-dora, de ajustar a receita do imposto ao tamanho pretendido do

orçamento daquela unidade federada, que queira gas-tar mais ou menos que o padrão nacional".

Na proposta Dornelles, ainda que parteimportante da receita do IVA nacionalpertença à União, o Executivo Federalnão teria ingerência no processo de fi-

xação de alíquota – nem para to-mar a iniciativa, nem para vetare, em nenhuma hipótese cabe-ria a edição de medida provi-sória para regular o impostoestadual ou a parcela estadual

do imposto. "Na hipótese domesmo IVA ser compartilhadopela esfera federal e pela esta-dual, caberia ainda examinar ahipótese de uma vinculaçãoentre as duas alíquotas: ouprevendo uma relação au-tomática e direta entreelas, ou ainda fixando umteto para a federal em re-lação à estadual". Com is-so, evitar-se-ia que aUnião aumentasse o im-posto ou a parcela fede-ral do IVA em detrimen-to do imposto estadual

ou de sua parcela.Quanto ao atual Imposto

sobre Serviços (ISS), de com-petência municipal, sua op-ção é por mantê-lo inaltera-do, fora da base ampla doIVA Nacional e de regimenão cumulativo – ideiaque encontra muitosZi

lber

man

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16 DIGESTO ECONÔMICO ABRIL 2010

defensores entre especialistas da área tributária. Segundo Dor-nelles, essa fusão poderá ser adotada no futuro, tendo comocontrapartida a transferência das receitas derivadas do Simples,regime de cobrança simplificada de tributos para as pequenasempresas que ele também preserva em sua proposta.

Dornelles reconhece que para solucionar a questão da com-plexidade e má qualidade da tributação indireta no Brasil, oideal seria "a unificação de todos os impostos num só IVA, comlegislação, regulamentação e alíquotas nacionais, integralmen-te cobrado nas saídas (sem tributação interestadual) e com oproduto da arrecadação compartilhado, automaticamente narede bancária, em termos verticais (uma parcela caberia àUnião) e também em termos horizontais (descontada uma alí-quota mínima que caberia ao Estado fiscalizador, a parcela quecaberia aos Estados também seria rateada entre as 27 unidadesfederadas de modo imediato)".

COMENTÁRIOS

3.2.1. A questão da partilha da receita x esforçofiscal próprio.

Sempre que se discute a adoção do princípio de destino –ou a tributação do consumo – em IVA subnacional, a alocaçãoda receita do ICMS ao Estado consumidor da mercadoria es-barra na dificuldade da tributação de fronteira. O princípiode destino, tanto via adoção da alíquota zero na fronteiraquanto da adoção da alíquota "cheia" na origem com repasseda receita ao tesouro do Estado importador (consumidor)apresenta problemas operacionais até agora longe de seremsolucionados. Sinteticamente, a arrecadação do Estado i,mensurada pelo lado da oferta, admitindo-se desoneraçãoplena dos investimentos e das exportações para o exterior,pode ser especificada da seguinte forma:

ivai = a ["PIB"i – (X –M)i – Ii - (x – m)i ]

Onde :

a = alíquota internaivai = arrecadação do estado i"PIB"i = produção do estado i(X –M)i = balança comercial do estado i com

o exterior do paísIi = vendas de bens de ativo permanente no estado i(x – m)i = balança comercial interestadual do estado i

A questão da balança comercial interestadual (x – m)i é o "cal-canhar de Aquiles" para a implantação do princípio de destinono ICMS, pois esse componente – a "tributação de fronteira" –

representa receita gerada em uma unidade federada maspertencente a outra(s).

O núcleo da proposta Dornelles é a "federaliza-ção" do IVA, com rateio da arrecadação proporcio-nalmente ao consumo (ou de variável que o repre-

sente) e terceirização da fiscalização para os Estados. Pro-põe, pois, medir o consumo para efeito de distribuição doproduto da receita tributária pelo lado do consumidor, con-tribuinte de fato, e não, como sempre se fez, pelo lado doprodutor, contribuinte de direito

O quinhão de cada Estado na arrecadação nacional do ICMSseria, então, medido pela sua participação no consumo nacio-nal, estimado pelo lado da demanda (do consumidor, pessoa fí-sica). A forma de partilha da receita do imposto pode ser assimespecificada:

ivai = (ci/ C ) I VA

Onde:

ivai = receita do estado iIVA = arrecadação nacional do IVAC = consumo totalci = consumo do estado i

A questão fundamental nessa hipótese seria a repartiçãovertical e horizontal da receita do novo imposto, especial-mente esta última. Propõe que o Estado de origem ficariasempre com uma parcela da receita, até para estimular a boafiscalização, que poderia ser equivalente a uma alíquota ar-bitrada de 4% ou uma proporção fixa da cota estadual do IVAnacional (por exemplo, 5% a 10%). Descontada esta parcelado Estado de origem, a cota estadual da arrecadação seria re-distribuída entre as 27 unidades federadas segundo a distri-buição nacional do consumo, calculada anualmente pelo IB-GE, com base em parâmetros pré-fixados em lei e com pon-derações diferenciadas para aproximar o consumo realiza-do em cada unidade – é o caso de variáveis como populaçãoe o consumo de energia elétrica residencial, de telefonia tam-bém residencial e de gasolina e álcool. A exemplo do queocorre com partilhas hoje, seria considerado o consumo rea-lizado em exercícios anteriores e os índices publicados comantecedência para a devida auditoria e questionamento pe-las partes interessadas.

AACSPdefendeque épossíveldiscriminarna NF o valordo imposto.

Newton Santos/Hype

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Nessa proposta, o quinhão de receita de cada Estado nãomais depende do montante arrecadado em seu território, ou doesforço da máquina fiscal do seu Estado, mas sim da arrecada-ção nacional ponderada pelo seu consumo relativo. O peso doesforço de sua máquina fiscal na arrecadação total é medidopela participação do Estado na arrecadação nacional. Assim,determinado Estado que contribua, por exemplo, com 0,2% naarrecadação nacional do ICMS (Acre) terá o resultado de seuesforço fiscal praticamente nulo na definição da magnitude deseu quinhão de receita, pois do acréscimo de arrecadação quepromover no IVA nacional, apenas 0,2% retornará para seuscofres, que dependem, sim, do esforço fiscal dos (n-1) Estados,que contribuem com 99,8% ao IVA nacional. De outro lado, umacréscimo no consumo relativo do Nordeste, por exemplo, iriareduzir a receita orçamentária dos Estados do Sudeste, aindaque o esforço fiscal e o consumo destes permanecessem inal-terados. Perderiam receita porque perderam participação noconsumo nacional.

O interesse de cada Estadona arrecadação do IVA emseu território passaria a serponderado pela sua partici-pação na arrecadação nacio-nal. Não parece razoável des-vincular o esforço da máqui-na fiscal (custo) do benefíciodo aumento de arrecadação,pois a simples frouxidão doFisco poderia ser fator deatração de empresas comcusto próximo de zero para oorçamento do Estado poucointeressado em fiscalizar.

3.2.2. A questãoda centralização decompetência x sistema federativo

Há quem entenda que se poderia arguir a inconstituciona-lidade da proposta Dornelles por ofensiva ao sistema fede-rativo, cláusula pétrea da Constituição, que não poderia sermudada por emenda constitucional. De fato, na medida emque a magnitude da carga tributária dos Estados passa a serfixada pela legislação federal, não mais é dada ao contribuin-te-eleitor estadual a possibilidade de escolha entre uma pla-taforma de governo que prometa, por exemplo, redução dacarga tributária e outra, oposta, que prometa aumentar aoferta de bens públicos. Dornelles vislumbra a possibilidadede cada Estado poder aplicar linearmente em seu territórioum diferencial de alíquota com efeito meramente arrecada-dor, que balizaria o tamanho do seu orçamento. Entretanto,dado o modelo de partilha sugerido, essa medida resultariainócua uma vez que a arrecadação do Estado seria centrali-zada em um fundo nacional a partilhada segundo critériodesvinculado (ou muito pouco vinculado) da arrecadaçãoprópria. O quinhão de cada Estado seria definido, basica-mente, pelo consumo relativo. Afora a questão jurídica, o

problema maior a ser superado é o político. Naturalmente, osgovernos estaduais, mesmo que tivessem a garantia de ma-nutenção de sua receita orçamentária no novo desenho tribu-tário, não se conformariam em perder competência para fa-zer política tributária com seu principal imposto.

4. Conclusões

4.1. PEC- 31 – A/2007

Tanto a PEC- 31 – A/2007 quanto a proposta Dornelles vêmcorroborar a tese de que impostos do tipo valor agregado têmnatureza de tributo nacional e não são adequados à competên-cia subnacional, uma vez que os efeitos da política tributáriaadotada por uma unidade federada extrapolam suas frontei-ras contaminando a economia das demais. Destarte, ambas aspropostas apresentam uma "federalização envergonhada" do

ICMS. A PEC- 31–A/2007mantém o ICMS na compe-tência estadual, mas unifor-miza suas regras – alíquotas,obrigações acessórias etc –em nível nacional. O ICMSserá gerido coletivamentepelo colegiado dos Estados ea resultante será a soma dasirracionalidades indivi-duais. Os Estados, ainda quecoletivamente, continuarãoutilizando o tributo de natu-reza arrecadadora para fa-zer política tributária. Deixaintocados seus problemasoperacionais, como a tribu-tação de fronteira, a acumu-lação de créditos e as fontes

de cumulatividade, que tanto ofendem a neutralidade do im-posto. Centraliza apenas a definição de alíquotas, as normasoperacionais e o regulamento do imposto. Não é improvávelque o novo ICMS, gerido coletivamente, seja mais complexo eineficiente do que o atual. O desenho tributário proposto é sig-nificativamente mais complexo que o já complexo ICMS e osEstados continuarão tendo margem para fazer política tribu-tária. As importantes fontes de cumulatividade do imposto,que comprometem a sua neutralidade, serão sanadas apenasparcialmente e a longo prazo pela PEC-31-A/2007.

O princípio de destino nas operações interestaduais, que po-ria fim à guerra fiscal e daria alguma eficiência ao modelo, de-sagrada tanto aos Estados exportadores líquidos, perdedores dereceita, quanto aos importadores, que ganham receita tributá-ria, mas perdem o poder de fazer política de desenvolvimentoregional com o ICMS. A operacionalização do princípio de des-tino também está longe de ser equacionada. Ademais, essa PEC,que promete pôr fim a essa farra, acaba por incentivá-la – pelomenos até que a alíquota interestadual atinja seu patamar de-finitivo de 2% a partir do 12º ano – ao abrir verdadeira tempo-rada de caça aos investidores, convalidando todas as agressões

Massao Goto Filho/e-Sim

Impostômetro da ACSP: a carga tributária brasileiraequivale a 35% do produto Interno Bruto do País.

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18 DIGESTO ECONÔMICO ABRIL 2010

à lei nacional do ICMS feitas até 5 de julho de 2008 e – o que é pior– incentivando novas concessões ilegais até a data da promul-gação da emenda constitucional, que valerão desde que o Con-selho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ), por maioriaabsoluta de seus membros, não as desconstitua. Inverte-se oprocesso: em vez da unanimidade para concessão do benefício,como é hoje, exige-se maioria absoluta para sua derrubada. Ofato é que essa PEC mal tangencia o principal problema tribu-tário do País, que é a errada alocação do ICMS, imposto de na-tureza nacional, com a competência outorgada aos Estados.

4.2. A Proposta Dornelles

O núcleo da proposta Dornelles é a federalização do ICMS,com manutenção de sua fiscalização e arrecadação na compe-tência estadual, o que resolve o problema de alocação das imen-sas e caras máquinas fiscais estaduais, que de outra forma fica-riam ociosas ou teriam de ser, também, federalizadas. Propõe apartilha da receita por critério desvinculado do esforço fiscal es-tadual (rateio de acordo com o consumo relativo dos Estados).Mais ousada, a proposta parece trazer mais racionalidade ao sis-tema, ainda que sua viabilização política seja muito mais difícil.Dois pontos merecem reflexão e podem ser melhorados na pro-posta: a compatibilização do rateio da arrecadação nacional pe-la ótica do consumo, sem desvincular o esforço arrecadador decada Estado do quinhão que a ele pertence e a manutenção dealguma margem para o Estado fazer política fiscal sem compro-meter as qualidades do novo tributo.

O problema da vinculação do quinhão estadual ao seu esfor-ço arrecadador poderia ser solucionado com a adoção de umafórmula mista, que contemplasse, também, a arrecadação doIVA no território de cada Estado nos períodos 0 e 1, ou seja:

ivai1 = ivai1/ I VA 1 – [(ivai0/ I VA 0 – ci0/C0) I VA 1]

Nessa alternativa, define-se o "saldo da balança comercial in-terestadual" de cada Estado em um período base (período zero)como sendo a diferença entre sua participação na arrecadação na-cional (supostamente, uma medida aproximada de sua participa-ção na produção) e sua participação no consumo nacional(ivai0/ I VA 0 – ci0/C0). O quinhão de cada Estado no período é de-finido apenas pela sua participação no consumo. Então, ceteris pa-ribus, a variação da participação relativa de cada Estado na arre-cadação nacional, corrigido pela medida aproximada do saldo dabalança interestadual, reverterá para o seu quinhão no período se-guinte (ivai1) e irá aumentar ou diminuir na medida em que suaparticipação relativa na arrecadação nacional nesse período(ivai1/ I VA 1) aumente ou diminua. As variáveis do período zero –tanto a participação relativa na arrecadação nacional como noconsumo nacional – poderiam ser atualizadas periodicamente,expurgando-se da arrecadação de cada Estado os efeitos exóge-nos, não decorrentes da produtividade fiscal, como, por exemplo,a variação na participação relativa do PIB estadual e nacional.

As simulações apresentadas nas Tabelas 2 e3mostram quepor esse critério, o aumento absoluto do quinhão de um Estadoconsumidor (importador líquido), ceteris paribus, será maior doque o ganho absoluto de arrecadação em seu território, enquan-to que no Estado produtor (exportador líquido) ocorrerá o con-trário. No exemplo, o Estado exportador, quando promove umaumento de R$ 5bi na arrecadação, tem retorno de R$ 4,5 bi, en-quanto o Estado importador líquido, com o mesmo aumento dearrecadação tem retorno de R$ 5,25 bi. A diferença é o vazamen-to de receita decorrente do déficit/superávit na balança interes-tadual. Estado que tem balança equilibrada fica com a totalida-de do ganho/perda de arrecadação.

Com essa mudança no critério de partilha da arrecadaçãonacional do ICMS (ou novo IVA), o quinhão de receita doIVA de cada Estado dependerá, basicamente, da eficácia desua máquina fiscalizadora.

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Ademais, com esse critério de rateio do novo IVA, faz sentidoa sugestão de Dornelles de que os Estados tenham, além da com-petência de gerir a administração tributária, alguma margempara fazer política fiscal, com a definição de uma banda de alí-quota dentro da qual os Estados possam definir o montante deextração tributária que pretendem fazer de seus cidadãos-elei-tores. Essa banda poderia ser, digamos, de 2 pontos percentuais,aplicáveis linearmente sobre todas as alíquotas incidentes nasoperações internas definidas na lei complementar federal, com aqual os governos estaduais teriam margem para calibrar a cargatributária – e a magnitude de seu orçamento – sem comprometera neutralidade do tributo. Os investimentos e as exportações –tanto para o exterior (imunes) quanto para os outros Estados –não seriam afetados, pois a banda somente incidiria sobre asoperações internas, agravando – ou aliviando – apenas o consu-midor-eleitor do Estado que apratica. Observe-se que 2 pon-tos percentuais aplicados li-nearmente sobre todas as alí-quotas representa algo como10% da arrecadação total defi-nida pela alíquota nacional.Destarte, a proposta Dornelles,ainda que mais difícil de serviabilizada politicamente, po-deria, com as modificações eacréscimos aqui sugeridos, re-presentar avanço muito maissignificativo na melhoria dosistema tributário nacional.

5. Resumo e Conclusão

Abstraindo-se as dificulda-des políticas – talvez insuperá-veis – pode-se imaginar ummodelo tributário que represente avanço rumo à modernidade.O núcleo da proposta Dornelles – a criação, na competência fe-deral, de um IVA amplo, limpo de cumulatividades, incidente so-bre todas as bases de consumo hoje tributadas pela União, Esta-dos, Distrito Federal e Municípios – acrescido de alguns pontosda PEC 31-A/2007 e de outros abaixo anotados, poderia servir debase a esse modelo conceitual.

1. Viabilização do fim do IPI: concessão de crédito presumido(que tem efeito "para frente") do novo imposto de forma a re-produzir os atuais incentivos fiscais das empresas instaladas naZFM, lei de informática etc;

2. Viabilização do fim do ISS: Outorga de competência paramunicípios instituírem, com alíquota limitada, imposto sobreconsumo final de bens e serviços (Retail Sales Tax- RST) e/ouaumento no percentual destinado aos municípios do novo IVArelativamente ao quinhão do ICMS;

3. Manutenção do IPVA na competência estadual. O seu des-locamento, como sugere Dornelles, para a competência muni-cipal acirraria a já existente guerra fiscal promovida com basenesse imposto.

4. Distribuição vertical da receita do novo imposto deve re-

produzir a discriminação atual da receita dos tributos substituí-dos observados no momento da transição.

5. Dentro de uma banda de 2 pontos percentuais, os Estadosterão competência para alterar as alíquotas nacionais do IVA,aplicando o diferencial linearmente ao conjunto de alíquotas de-finidas pelo Senado Federal.

6. IVA será instituído por Lei Complementar Federal, suas alí-quotas implementadas por resolução do Senado Federal e demaisregramentos (prazos de recolhimento, obrigações acessórias etc)por legislação federal; à exceção da competência para modificaras alíquotas dentro da banda prevista no item anterior, os Estadosnão poderão editar qualquer norma relativa ao imposto.

7. Qualquer alteração da legislação do IVA, promovida ouproposta pelo Poder Executivo Federal, que resulte em redu-ção da arrecadação somente produzirá efeitos se acompanha-

da de ressarcimento aos Esta-dos de valor idêntico ao da re-núncia fiscal.

8. Partilha da arrecadaçãoentre os entes federados deveobedecer a critério que leve emconta, também, a arrecadaçãono território do Estado (como asugerida neste trabalho).

9. Definição, interpretação eaplicação das normas unifor-me em todo o território nacio-nal. O Regulamento do IVA, asrespostas à consulta (interpre-tação da legislação) e as deci-sões normativas serão editadospelo Poder Executivo Federal.

10. Jurisprudência da legis-lação tributária uniforme emtodo o território nacional: a de-fesa (primeira instância do

contencioso administrativo) será julgada pelo Tribunal Admi-nistrativo do Estado; o recurso (segunda instância), quandohouver, será julgado pela Conselho Administrativo de RecursosFiscais da Receita Federal do Brasil.

11. Instituto da substituição tributária somente poderáser aplicado em nível nacional, sendo que nas operações in-terestaduais o valor retido por substituição, recolhido aoIVA nacional, será, para efeito de aplicação da fórmula de ra-teio da arrecadação nacional, contabilizado com receita pa-ra o Estado de destino da mercadoria.

12. Criação de um Fundo de Equalização de Receitas, comrecursos do orçamento federal para compensar perdas dearrecadação decorrentes da implantação do novo modelo(PEC 31-A-2007).

13. Criação de um Fundo Nacional de Desenvolvimento Re-gional (FNDR), com recursos do orçamento federal, para suprira perda dos Estados de sua capacidade de fazer política de de-senvolvimento regional (PEC 31-A-2007).

14. Convalidação dos benefícios fiscais de ICMS concedidossem a observância da legislação pertinente (PEC 31-A-2007).

15. Securitização dos créditos acumulados de ICMS.

O núcleo da proposta Dornelles é a federalização do ICMS,com fiscalização e arrecadação na competência estadual.

Leonardo Rodrigues/e-SIM

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José RobertoMendonçade BarrosAlexandreLahózMendonçade BarrosAna LauraMenegattiCesar deCastro AlvesRenataMarconato Ti

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O FUTURO DO

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AGRONEGÓCIO

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A definiçãooriginal do termoagronegóciorefere-se àintegração dacadeia produtivaentre os setoresprodutoresde insumos,a produçãoagrícola e oprocessamentoe distribuiçãode alimentos,energia e fibras.

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José RobertoMendonçade Barrosé economista(USP), doutorem Economiapela mesmauniversidadee pós-doutorado

no Economic Growth Center,da Yale University, EUA. Foiprofessor da Faculdade deEconomia da Universidade deSão Paulo, Secretário de PolíticaEconômica do Ministério daFazenda e Secretário Executivoda Câmara de ComércioExterior da Presidência daRepública. É sócio-diretorda MB Associados, empresade consultoria econômica.

Alexandre Lahóz Mendonça deBarros é engenheiro agrônomoe doutor em Economia Aplicadapela ESALQ/USP. Foi professorda mesma escola, leciona naFGV-SP e atua como membro doComitê de Assessoria Externada Embrapa Pecuária Sudeste.É Sócio-Consultor da MB Agro eda Ruralcon Consultoria emGestão Agropecuária.

Ana Laura Menegattié engenheira agrônoma(ESALQ/USP), com mestradoem Economia Aplicada,pela mesma instituição.Como os demais autoresdeste trabalho, integra ocorpo técnico da MB Agro.

Cesar de Castro Alves éengenheiro agrônomo (UNESP),com mestrado em EconomiaAplicada pela ESALQ/USP.

Renata Marconatoé economista (ESALQ/USP).Foi analista da LafisConsultoria. É pós-graduandaem Informações Espaciais peloDepartamento de Engenhariade Transportes da EscolaPolitécnica da USP.

Resumo

Este artigo desenvolve um quadro analítico da agriculturabrasileira com o objetivo de estabelecer balizas para umapolítica agrícola coesa e consistente. Apresenta oportunidadesno mercado agrícola mundial para o Brasil, as principaiscaracterísticas da agricultura brasileira e lista seus maioresdesafios e vários riscos com que se depara o setor. Ao mesmotempo em que expõe os entraves ao desenvolvimento pleno daagropecuária nacional, o texto sugere propostas para corrigiras distorções e deficiências das políticas atuais.

Entre as diversas propostas que resultam da análise estão odesenvolvimento de um sistema de resseguro para aagricultura, a criação de um fundo de catástrofe para o setor, oestímulo ao mercado de opções, o desenvolvimento de uma"Central de Riscos", que permitiria criar um cadastro positivodos produtores, a promoção do ajuste fiscal como meio pararedução da taxa básica de juros, o desenvolvimento de ummodelo tributário na linha de um Simples Agrícola, a criaçãode regras claras para o desenvolvimento, uso e multiplicaçãodos diferentes produtos e processos da biotecnologia, e aampliação dos investimentos em pesquisa pública no País.

Alex Ribeiro/AR

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23ABRIL 2010 DIGESTO ECONÔMICO

Introdução

O texto que se segue aborda vários aspectos doagronegócio brasileiro e do seu futuro, identifi-cando vários problemas com que se defronta eapresentando propostas que possam solucioná-

los. Procura desenvolver um quadro analítico da agriculturanacional para estabelecer balizas para uma política agrícolacoesa e consistente. Quatro seções constituem o texto. A pri-meira analisa as falsas dicotomias com que se defronta a po-lítica agrícola nacional. A Seção II volta-se para as várias opor-tunidades presentes no mercado agrícola mundial e a seção se-guinte trata de características e desafios da agricultura brasi-leira. A Seção IV concentra-se nos seus principais riscos, numaanálise que alcança a agropecuária como um todo.

I – Falsas Dicotomias

A política agrícola brasileira vem se pautando por falsas di-cotomias. Construiu-se ao longo da última década uma miría-de de intervenções públicas que carecem de consistência estra-tégica e, no mais das vezes, são claramente contraditórias. En-tendemos que muitas das contradições de política econômicase devem a embates ideológicos que se cristalizaram em inte-resses econômicos difusos, o que acaba por prejudicar um pro-jeto de crescimento da agricultura brasileira.

Parte da confusão estratégica deve-se ao mau uso da teoriaeconômica. Criou-se um conflito permanente entre o agronegó-cio e a pequena produção, atribuindo a cada um desses segmen-

tos políticas econômicas específicas, aglutinadas nos ministériosda Agricultura e do Desenvolvimento Agrário. Ora, o conceito deagronegócio não tem relação alguma com escala da produção ouo tipo de produtor. A definição original do termo agronegócio re-fere-se à integração da cadeia produtiva entre os setores produ-tores de insumos, a produção agrícola e o processamento e dis-tribuição de alimentos, energia e fibras (1) . A integração produtivapermite acesso a capital e tecnologia, não obstante os conflitos deinteresses naturais em qualquer cadeia de produção. As integra-ções produtivas nas cadeias de frango e suínos constituem exem-plos claros de benefícios do conceito de agronegócio e se associamfrequentemente à produção em pequena escala.

Outra falsa dicotomia diz respeito ao conflito entre meioambiente e agricultura. É certo que a expansão agrícola brasi-leira, assim como a norte-americana, africana, europeia e asiá-tica, se deu sobre áreas com vegetação natural. É certo, tam-bém, que o desmatamento da Amazônia segue ocorrendo. Éerrado, entretanto, imaginar que não seja possível aumentar aprodução sem ampliar o desmatamento. O Brasil possui cercade 180 milhões hectares de pastos que podem ser convertidosem áreas agrícolas com uso da moderna tecnologia agrícola. Oaumento da produtividade da agricultura é forte aliado da pre-servação do meio ambiente. Mais uma vez, ao tratar essas duasáreas como antagônicas, limita-se o potencial de resolução dosconflitos entre os ministérios do Meio Ambiente e da Agricul-tura. O caso dos transgênicos é emblemático. As novas varie-dades resistentes à seca, por exemplo, ampliariam considera-velmente a área agrícola brasileira em regiões tradicionais, jáhá muito antropizadas.

L. Adolfo/AE

É possívelaumentar aprodução semampliar odesmatamento.O Brasil possui180 milhões dehectares depastos quepodem serconvertidos emáreas agrícolascom uso damodernatecnologiaagrícola.

(1) Atribui-se a definição original do termo agronegócio aoseconomistas norte-americanos Davis, John Herbert e Goldberg,Ray Allan. em A concept of agribusiness. Boston : Division of

Research, Graduate School of Business Administration, HarvardUniversity, 1957.

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24 DIGESTO ECONÔMICO ABRIL 2010

A essas dicotomias somam-se outras: questão indígenaversus agricultura; quilombolas versus agricultura; sem-terra versus grandes agricultores; agricultura versus indús-tria. A ausência de convergência nas políticas públicas vemcriando restrições adicionais àquelas presentes nos merca-dos agrícolas, e que se somam às tradicionais políticas agrí-colas protecionistas existentes em todo o mundo. As limi-tações criadas desnecessariamente pelas políticas públicasbrasileiras precisam ser rapidamente eliminadas para quese possa aproveitar as grandes oportunidades que estãosendo dadas pelo mercado internacional.

II. Da oferta para a demanda: as oportunidadespresentes no mercado agrícola internacional.

A economia internacional vem passando por transforma-ção significativa. O século 20 foi marcado por uma distribuiçãode renda profundamente desigual entre poucos países ricos,de pequena população relativa, e um contingente grande depaíses (com alta densidade populacional), que se caracterizoupelo baixo dinamismo econômico. A má distribuição de rendanão permitiu que a demanda por alimentos e fibras se mani-festasse em todo seu potencial. O baixo dinamismo da deman-da se combinou com a disseminação das modernas tecnolo-gias agrícolas, o que acabou por produzir uma redução con-sistente nos preços reais dos alimentos.

Essa tendência secular parece ter se invertido nos últimosanos. Acumulam-se evidências de que o desenvolvimentoeconômico de regiões tradicionalmente estagnadas vemacelerando a procura por proteína animal e, consequente-mente, a demanda por grãos. A procura por alimentos se so-ma ao desenvolvimento do mercado de biocombustíveis,energia elétrica, bioplástico e outros produtos, constituin-do um cenário promissor para a agricultura brasileira. Pa-rece-nos relevante avaliar mais detidamente os componen-tes da procura por produtos agrícolas.

Crescimento populacional

De acordo com os dados da Organização das Nações Unidas(ONU), a população mundial deve atingir, em 2025, 8 bilhões dehabitantes. Entre 2005 e 2025, o aumento populacional será de 1,8bilhão de pessoas, crescimento equivalente a 1,04% ao ano. En-quanto na Ásia, na África e nas Américas a população cresce a ta-xas superiores a 1%, no continente europeu a população decrescea 0,11% ao ano, com destaque para os países do Leste Europeu,como a Rússia (-0,57%). Outros números do crescimento demo-gráfico previsto para esse período são apresentados no Gráfico1, na forma de um mapa. O crescimento populacional continuasendo maior nas regiões menos desenvolvidas, que deverão che-gar a 6,7 bilhões de pessoas em 2025. Além disso, aumentará ograu de concentração dessas regiões, e se cerca de 75% da popu-lação mundial estava aí localizada em 1975, é esperado que em2025 atinja 85% da distribuição. As regiões menos desenvolvidasapresentam taxa anual de crescimento de 1,22% ao ano, enquantoque a região mais desenvolvida crescerá a modestos 0,18% a.a..

Entre as regiões, a distribuição populacional em 2025 estaráconcentrada principalmente na Ásia e a China não será somen-te o país mais populoso, como também terá concentraçãomaior do que outras regiões, assim como a Índia, que, isolada-mente, terá população maior do que outros continentes. Jun-tas, China e Índia representarão 60% da população asiática emais de um terço da população mundial estará nesses dois paí-ses. O Gráfico 2 mostra outros aspectos dessa evolução.

Outro aspecto que deve ser levado em conta é a distribuiçãodessa população entre rural e urbana. Atualmente, a popula-ção mundial de 6,7 bilhões de pessoas está praticamente dividaao meio entre rural e urbana, e em 2025, cerca de 60% dos pre-vistos 8 bilhões de pessoas estarão nas cidades. O índice de ur-banização nas regiões mais desenvolvidas, já bastante alto(76%), deve chegar a 80% em 2025. O maior incremento da po-pulação urbana virá nas regiões menos desenvolvidas , ondese prevê que ela passará de 43% para 57%.

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À medida que a população se urbaniza, a dieta básica so-fre alterações, que acabam por refletir na demanda final decommodities. Esse aspecto está também diretamente ligadocom a elevação da renda, assunto tratado a seguir, quandotambém é feita uma breve discussão sobre o potencial futu-ro da demanda de carnes e a consequente necessidade degrãos para atender a procura.

Renda

Considerando o plano macroeconômico, um dos princi-pais direcionadores para a evolução da demanda por com-modities agrícolas no mundo é o crescimento econômico, es-p e c i a l m e n t enos países emd e s e n v o l v i-mento, devidoao seu impactona renda e namodificação dadieta da popu-lação. Sem dú-vida alguma oa u m e n t o d arenda mundialn o s ú l t i m o sanos foi um fatoimportante narecente eleva-ção da deman-da por commo-dities agrícolas.

Apesar da crise mundial, iniciada no final de 2008, que cau-sou forte desalavancagem no sistema financeiro e dúvidas aolongo de todo o ano de 2009, a expectativa para 2010 é da voltalenta do crescimento mundial, que começará pelo processo delimpar os excessos de políticas monetária e fiscal dos últimosanos. O último relatório do Fundo Monetário Internacional jáaponta um crescimento mundial de 4% para este ano. Na maio-ria das economias avançadas, a recuperação deverá ser lenta,enquanto que em muitos países emergentes, especificamentena China, e economias em desenvolvimento, a retomada daatividade deverá ser relativamente vigorosa, e fortemente im-pulsionada pela demanda interna.

Para os próximos anos, essa tendência deve ser mantida. Asprojeções do FMIpara 2014, sinteti-zadas no Gráfi -co 3, são de cres-cimento mundialao redor de 4,5%,enquanto quenos países avan-ç a d o s s e r á d e2,4% e nas econo-mias emergentes,6,7%. A Ásia con-tinuará sendo ocont inente demaior crescimen-to da renda, pu-xados pelas eco-nomias chinesase indianas.

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26 DIGESTO ECONÔMICO ABRIL 2010

Biocombustível

Parte significativa dos expressivos aumentos do preço dopetróleo ao longo de 2007 e até julho de 2008 é resultado doaquecido processo de crescimento econômico que o mundo vi-nha apresentando até então. A recente queda das cotações dopetróleo no mercado internacional reflete exatamente a inver-são desse comportamento, trazendo incertezas de curto prazoquanto à continuidade da demanda vis-à-vis o desaquecimen-to da economia global e da necessidade de utilização de petró-leo e seus derivados. A queda do preço do petróleo afeta di-retamente o setor agrícola, seja através do custo de produçãoou através da demanda de energia renovável.

O petróleo mais barato pressiona a margem da indústrianorte-americana de biocombustível, que tenta se equilibrarpara continuar no mercado, espremida entre o custo de aqui-sição dos insumos (grãos) e o preço de venda do produto final,o qual tem seu teto dado pelo preço do petróleo, uma vez quenão deixa de ser um substituto energético.

A indústria de biocombustível dos EUA enfrentou recenteprocesso de ajuste, dada a aquisição de matérias primas a umpreço muito elevado e a consequente redução do preço do pe-tróleo, que torna a gasolina mais barata do que o etanol. De acor-do com a Renewable Fuels Association, a capacidade instaladanos EUA é de 12,5 bilhões de galões, dos quais apenas 10 bilhõesforam utilizados para produção em 2008. Há ociosidade de 2 bi-lhões de galões, sem considerar os projetos que estavam emconstrução e foram paralisados. Apesar dos contratempos, nos-

sa pressuposição básica é que o preço do petróleo volte a subir nolongo prazo, dando fôlego novo para a expansão da indústria debiocombustível nos EUA, com o milho sendo o insumo base daprodução desse país. Nesse contexto, o esmagamento de milhopara etanol projetado pelo próprio governo norte-americano éde 142 milhões de toneladas em 2022. O Gráfico 4 mostra essaprojeção e outros aspectos dos volumes de biocombustíveis pre-vistos até essa data no mesmo país.

Em relação à política protecionista do setor, consideramosque a tarifa de importação de US$ 0,54 por galão será mantida,uma vez que o país está num esforço conjunto de aquecimentoda economia interna para sair da crise em que se encontra. Des-se modo, também esperamos que o crédito para o misturadorseja mantido em US$ 0,45/bu.

Do ponto de vista da produção brasileira de etanol e das ex-portações de álcool para os Estados Unidos, a hipótese básicasuportada por nosso trabalho é que no curto prazo haverá umaredução das exportações de álcool para os EUA em decorrênciada crise por que passa o setor produtor de etanol naquele país.

Entretanto, no médio prazo deve haver um incremento no con-sumo de etanol nos EUA, e com ele, a volta das importações seráessencial para equilibrar a demanda norte-americana, dado quehá clara limitação quanto ao volume máximo de milho a ser pro-duzido naquele país, conforme indicado no gráfico anterior.

No início de fevereiro de 2010, a Agência de Proteção Am-biental dos EUA – a EPA, em seu relatório de regulamentaçãode uma nova versão da Renewable Fuel Standard (RFS2), po-sicionou o etanol de cana-de-açúcar como um biocombustível

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renovável de baixo carbono que pode contribuir com a redu-ção das emissões de gases do efeito estufa. A Renewable FuelStandard é a legislação que define a produção e uso de biocom-bustíveis nos Estados Unidos e estipula as metas de segurançaenergética e de redução de gases de efeito estufa.

Segundo essa agência, o etanol de cana pode ser classifi-cado como um biocombustível avançado, com capacidadede reduzir as emissões de gases de efeito estufa em até 61%em relação à gasolina.

Esta classificação abre dois fortes precedentes para o etanol:o de posicionar o combustível no mercado internacional comoum produto regulamentado a ponto de obter o status de com-modity, e o de suprir uma futura demanda específica do mer-cado norte-americano de uso de combustíveis renováveis.

Segundo o RFS2, os EUA deverão alcançar o consumo de 21bilhões de galões (quase 280 bilhões de litros) de biocombus-tíveis "avançados", ou seja, os que reduzem em 50% ou mais asemissões de gases de efeito estufa. Destes 21 bilhões, 16 bilhõesdevem advir de biocombustíveis produzidos a partir da celu-lose e o restante, 5 bilhões (aproximadamente 20 bilhões de li-tros), são de biocombustíveis de origem indeterminada, quereduzam em mais de 50% as emissões.

Este nível de redução de emissões não é alcançado pelo etanol

de milho produzido no país. Portanto, considerando a tecnologiavigente, o etanol de cana deverá ser o produto que suprirá estademanda da lei de redução de poluentes dos Estados Unidos.

Novos usos para o etanol estão sendo desenvolvidos e pos-tos em prática no País. O Brasil está na vanguarda da produçãode plásticos de fontes renováveis. O bioplástico, ou plásticoverde, além de reduzir o uso de matérias-primas fósseis, redu-zindo as emissões de efeito estufa, é reciclável, impactando po-sitivamente no volume de lixo produzido nas áreas urbanas.

Ele é produzido com 100% de matéria-prima renovável, co-mo o álcool de origem vegetal, tem as mesmas especificaçõesdos plásticos petroquímicos e é 100% reciclável. Ao contráriodos plásticos petroquímicos, que emitem CO2 – para produzir1 kg de plástico verde de álcool de cana-de-açúcar, são elimi-nados de 2,1 a 2,5 kg de CO2 na atmosfera, a partir da fotos-síntese da planta.

A produção anual de plástico verde, de acordo com estima-tivas, deve aumentar para cerca de um milhão de toneladasmétricas até 2011, o que representa 0,7% de todo o plástico uti-lizado atualmente. O consumo de plástico no mundo alcançaum volume de 150 milhões de toneladas.

No campo do biodiesel, o Brasil, a Argentina e a Europa con-tinuam sendo os principais atores. A União Europeia pretende

Novos usos para o etanol estão sendo desenvolvidos e postos em práticas no País, como o plástico de fontes renováveis.

Nelson Almeida/AFP

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28 DIGESTO ECONÔMICO ABRIL 2010

cortar em 20% a emissão de gases causadores do efeito estufaaté 2020, além de elevar em 20% o consumo de energia reno-vável e reduzir em 20% o consumo de energia através da ele-vação da eficiência energética. Além disso, 10% da energiaconsumida no setor de transporte devem ser renováveis, sejapor biocombustível, elétrica ou a base de hidrogênio. De acor-do com o Instituto de Pesquisa Política em Agricultura e Ali-mentação (FAPRI), o bloco demandará 2,9 bilhões de galões debiodiesel em 2018 e a importação será de 291 milhões de galões,suprida principalmente pela Argentina e pelo Brasil.

Os programas internos de consumo de biodiesel, tanto noBrasil como na Argentina, devem passar para a mistura B5 em2010, aumentando a demanda interna e reduzindo o potencialexportador. Para 2018, a produção argentina de biodiesel saide 269 milhões de galões e alcança 500 milhões em 2018, deacordo com projeções da FAPRI. Com consumo crescente apóso programa B2, o Brasil deve produzir, em 2018, 857 milhões degalões e a demanda, que foi de cerca de 300 milhões galões em2008, deve atingir 178 milhões daqui a 10 anos.

Em se tratando de biocombustível, é importante ter emmente que foi o desaquecimento da economia que levou o pe-tróleo de US$ 136,9 o barril para US$ 43 no auge da crise, emdezembro de 2008. Assim que a economia iniciar sua retoma-da, a trajetória normal – a de longo prazo – do preço do petróleodeve reagir instantaneamente. O retorno a patamares eleva-dos e seu efeito sobre as economias cada vez mais dependentesdeste insumo, associados à preocupação mundial com relaçãoaos problemas ambientais causados pela queima de combus-tíveis fósseis, continuarão sendo o pano de fundo para o de-senvolvimento do setor de biocombustível.

III. Características e desafiosda agricultura brasileira

Após quatro décadas de mudanças parece que a agriculturabrasileira começa a delinear um padrão agrícola único nomundo: moderno, de larga escala, intensivo em tecnologia eessencialmente tropical. Não é fácil antever todos os aspectosdesse modelo ainda em construção, mas é possível levantarsuas principais características, bem como delinear alguns de-safios a serem superados a fim de que o processo de expansãodo agronegócio brasileiro seja sustentável no tempo.

Trata-se de um sistema complexo. O País apresenta diver-sas cadeias completas de produção. Todo o segmento de in-sumos (máquinas agrícolas e tratores, fertilizantes, defen-sivos, sementes etc), junto com a produção agrícola (quecontempla as principais culturas e animais produzidos nomundo), e toda a cadeia processadora e de distribuição, e deoutros serviços associados ao agronegócio, constituem umamplo sistema produtivo.

Ao comparar a agricultura brasileira com os maiores siste-mas produtivos do mundo desenvolvido (América do Norte eEuropa), é possível dar conta de dois aspectos que caracterizamo sistema nacional: em primeiro lugar, pode-se afirmar que amoderna agricultura brasileira é um sistema relativamente no-vo do ponto de vista histórico; em segundo lugar, não há outragrande agricultura tropical de larga escala no mundo. Assim,

fica evidente que este sistema exigiu desenvolvimento tecnoló-gico específico, e que foi essencialmente construído no decorrerdos últimos 40 anos. Ademais, pode-se dizer que as novas tec-nologias permitiram assegurar ao País elevado grau de compe-titividade frente às principais agriculturas do mundo.

O evento tecnológico mais relevante ocorrido na agriculturabrasileira nos últimos 40 anos foi, sem dúvida, o Sistema dePlantio Direto. Esse sistema foi decisivo para viabilizar o desen-volvimento da agricultura nas áreas de cerrado. Clima tropicalrequer proteção do solo, e o sistema de cultivo tradicional e o demecanização a ele atrelado mostraram-se inadequados a esseregime climático. O plantio direto, juntamente com a nutriçãode plantas e o desenvolvimento genético, garantiu expressivoaumento da produtividade da agricultura na região central doPaís. Foi necessário desenvolver conhecimento nas áreas de ma-nejo de plantas, de máquinas e equipamentos, de novos defen-sivos e dessecantes, de nutrição de plantas, e de manejo de solopara que o plantio direto se viabilizasse.

O domínio tecnológico da agricultura em ambiente tropicalpermitiu que a natural abundância de solo, luminosidade,temperatura e água pudessem ser utilizadas a fim de elevar aprodutividade da agricultura. Em poucas palavras, o desen-volvimento tecnológico permitiu ao País fazer uso de suasvantagens comparativas na agricultura.

A possibilidade de produzir duas safras em um único anotambém tornou-se maior graças ao desenvolvimento do siste-

O domíniotecnológico daagricultura emambiente tropicalpermitiu aoPaís elevar aprodutividade .

Dirceu Portugal/AE

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29ABRIL 2010 DIGESTO ECONÔMICO

ma de plantio direto. A realização de duas safras por ano é hojeusual no Mato Grosso, em Goiás e no Paraná, embora nesse úl-timo Estado, em decorrência da elevada precipitação por qua-se todo o ano, o sistema de safra de verão e de inverno já fosseutilizado, no passado, com maior frequência (2). A técnica deplantio direto reduz o tempo gasto com mecanização, permi-tindo a execução de duas safras com menor risco climático.

O País possui um volume expressivo de área potencialmenteagricultável. Há diferentes estudos referentes à disponibilidadede terra que, em geral, tendem a convergir para uma área po-tencial superior a 100 milhões de hectares na região do cerrado.Há, ainda, uma enorme área de pastagem caracterizada por bai-xa produtividade das forragens, e que atualmente começa a serintegrada ao sistema de grãos, configurando um inovador sis-tema de rotação. Em trabalho recente, Brandão et alli (2005) (3) ,concluem que cerca de 80% do aumento da área cultivada comlavouras nos últimos 15 anos no Brasil deu-se em antigas áreasde pasto. A área total de pastagem situa-se ao redor de 170 a 180milhões de hectares. A área agrícola atualmente cultivada noBrasil está num patamar de 60 milhões de hectares, o que per-mite dar dimensão do enorme potencial produtivo do País.

Ao longo da última década iniciou-se um sistema de pro-dução que procura interagir a produção de culturas anuais(grãos e algodão) com a pecuária bovina. Este sistema passou aser conhecido como integração lavoura-pecuária. Existe umleque de variações dos tipos de integração, mas o princípio ge-

ral é a rotação de pastagem com grão, entre anos ou em um úni-co ano (inverno e verão). O sistema de plantio direto requer pa-lhada para proteger o solo. Ao final do período de chuvas, éusual o cultivo de alguma lavoura para garantir a proteção dosolo com palha quando do plantio da safra em setembro/no-vembro. Ocorre que o pasto pode perfeitamente ser utilizadopara esse propósito, conferindo excelente proteção ao solo.Além disso, com a rotação com lavoura há melhoria da ferti-lidade do solo, elevando a produtividade das pastagens. A ro-tação com pasto permite, por sua vez, reduzir a infestação dedoenças, o que reduz as pulverizações necessárias às lavourasanuais. O sistema de integração lavoura-pecuária é uma novi-dade que não é frequente em nenhuma outra grande agricul-tura do mundo. Este sistema traz vantagens agronômicas de-correntes da rotação, reduzindo a incidência de pragas e doen-ças, especialmente na lavoura de soja. Entretanto, é importanteressaltar que esses sistemas de produção inovadores requerempermanente desenvolvimento tecnológico, em especial dos se-tores produtores de insumos agrícolas.

A presença da agricultura nas regiões tradicionais de pecuá-ria permite ampliar a qualidade da nutrição dos bovinos. O pro-cessamento da safra colhida acaba por gerar subprodutos quepodem ser utilizados em rações de confinamento, semiconfina-mento ou suplementação a pasto a um custo reduzido, o queamplia consideravelmente a produtividade da pecuária. É in-teressante notar a presença de estruturas de confinamento dis-seminadas por todo País, até em regiões do cerrado que nuncafizeram uso dessa tecnologia por razões de custos de produção.Além disso, a presença de uma dieta de melhor qualidade am-plia consideravelmente o benefício advindo do melhoramentogenético, estimulando a adoção dessa tecnologia. É notório queao longo dos últimos anos o uso de técnicas de melhoramentogenético (touros provados, inseminação artificial, transferênciade embrião e fertilização in vitro) cresceu muito no País.

Note-se, portanto, que há forte sinergia entre a produção degrãos e a pecuária bovina. Afora as vantagens tecnológicas, adiluição de risco decorrente da diversificação configura outroganho do sistema de integração.

O sistema agrícola brasileiro dependeu e continuará depen-dendo pesadamente de seu sistema de pesquisa. O sistema depesquisa federal, liderado pela Embrapa, desenvolve pesquisasem todo País, englobando diferentes condições edafo-climáti-cas e distintos produtos. Há, ainda, um conjunto de centros depesquisas estaduais, notadamente no Estado de São Paulo, quedesenvolvem tecnologia adaptada às condições locais. Alémdisso, diversas associações privadas foram criadas por produ-tores rurais a fim de desenvolver pesquisa nas áreas de nutriçãode plantas e de seu melhoramento genético. Existe amplo nú-

(2) O sistema de plantio direto foi inicialmente desenvolvido poragricultores paranaenses em meados dos anos 70. Após essasexperiências iniciais a tecnologia de plantio direto foi sendodesenvolvida, disseminada e adotada na região do cerrado.(3) Brandão et alii (2005), Crescimento agrícola no período 1999-2004, explosão da área plantada com soja e meio-ambiente noBrasil. Texto para discussão 1062, IPEA/DIMAC.

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mero de empresas privadas que adapta e desenvolve materialgenético, novos equipamentos e técnicas de pulverização e me-canização, nutrição de plantas etc. A maior parte das multina-cionais produtoras de insumos tem longa tradição no País.

No decorrer das últimas décadas, diversas escolas de enge-nharia agronômica e florestal, medicina veterinária, zootecnia ebiologia foram criadas, multiplicando consideravelmente o nú-mero de profissionais em ciências agrárias. Número igualmentesignificativo de programas de pós-graduação foi fundado, ele-vando a qualidade dos profissionais que atuam na área. Atual-mente, o Ministério da Educação requer que as universidadesmantenham em seus quadros professores e pesquisadores comum mínimo padrão de formação. A maior parte das universida-des públicas, e parcela crescente das privadas, em seus quadrostêm profissionais com mestrado e doutorado. Parte desses pro-fissionais obteve sua pós-graduação em instituições internacio-nais, elevando o padrão de conhecimento do País.

Os profissionais de ciências agrárias atuam em empresas pri-vadas de insumos, nos centros de pesquisas, públicos e privados,nas empresas agrícolas, nas cooperativas, em empresas de con-sultoria etc. É interessante notar que as propriedades mais mo-dernas contam com consultoria especializada nas diversas eta-pas do processo produtivo: nutrição, pulverização e mecaniza-ção, caracterizando forte especialização do conhecimento, o queacaba por elevar a produtividade do sistema. É importante men-cionar que todas as empresas de insumos possuem em seus qua-dros um corpo de profissionais para aplicar e disseminar tecno-logia. No passado, esse processo foi essencialmente feito pelo Es-tado, mas em decorrência tanto do crescimento do setor, quantoda crise fiscal dos anos 80 e 90, as empresas privadas assumirama liderança na disseminação do conhecimento como uma estra-tégia de marketing. Atualmente, muitos encontros tecnológicossão organizados pelas empresas privadas e cooperativas.

A inovação é o elemento central do agronegócio brasileiro.Dadas as especificidades do meio ambiente não há como ga-rantir a continuidade do desenvolvimento do agronegóciosem um fluxo permanente de inovação. É necessário, portan-to, assegurar um marco institucional que garanta e estimule oprocesso de geração e incorporação de novas tecnologias, quepermitam às empresas produtoras de insumos agropecuáriospoderem seguir expandindo, ganhando dimensão e escala in-ternacional. É fundamental que o País se consolide como gran-de exportador de tecnologia agropecuária, o que inclui todosos segmentos produtores de insumos: biotecnologia, agroquí-mica, máquinas e equipamentos, equipamentos industriais,genética de plantas e animal.

IV. Principais riscos e desafiosda agropecuária brasileira

A despeito de diversas características positivas da agricultu-ra brasileira, é forçoso reconhecer que o sistema produtivo con-vive com um conjunto não desprezível de elementos de risco.Destacam-se os riscos de produtividade, de preços dos produ-tos, de preços dos insumos, de volatilidade da taxa de câmbio,risco sanitário, de riscos institucionais, de volatilidade na ofertade crédito privado e ambientais. A manutenção da trajetória de

sucesso da agricultura brasileira passa pela organização de umconjunto consistente de políticas públicas que busquem mitigarcada um dos elementos de risco supracitados.

IV.1. Risco de produtividade

O risco de redução de produtividade por razões climáticasou biológicas é intrínse-co à produção agrícola.Diversas regiões doPaís padecem de climainstável. Em decorrên-cia, o risco da atividadeagrícola é relativamen-te elevado, o que requeralgum tipo de proteção.Por essa razão, diversospaíses, inclusive o Bra-sil, procuraram desen-volver sistemas de se-guro, que permitammanter a estabilidadedo setor produtivo aoassegurar uma prote-ção à quebra de safra. Asexperiências interna-cionais sugerem que aparticipação do setorpúblico no mercado deseguro agrícola é quaseindispensável. Entre-tanto, não existe no Bra-sil um sistema de segu-ro agrícola compatívelcom as necessidades doPaís. No mundo todo oseguro agrícola contacom participação do Es-tado. Ocorre que o setorprivado tem dificulda-des em entrar no seguroagrícola por três razõesprincipais: 1) é difícilprecificar o seguro agrícola em decorrência das especificida-des e nuances da produção agropecuária; 2) alto custo de ad-ministração do seguro; e 3) risco de catástrofe.

A despeito das dificuldades, é preciso avançar no desenvol-vimento de um moderno sistema de seguro agrícola para ga-rantir maior estabilidade de renda aos produtores, evitandoassim as recorrentes crises de endividamento do setor. O go-verno aprovou recentemente a lei que permite a atuação de res-seguradoras nacionais e estrangeiras no País. Outro passo im-portante será a regulamentação do Fundo de Catástrofe. As-sim, faz-se necessário desenvolver alguns elementos para queo risco de produtividade seja mitigado:

1. Criar um fundo de catástrofe;2. Desenvolver sistema de resseguro;

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3. Desenvolver amplo estudo técnico para normatização doseguro agrícola no Brasil;

4. Estimular a adesão ao seguro através de subsídios aop rê m i o ;

5. Envolver empresas do setor privado a fim de reduzir cus-tos administrativos;

6. Selecionar culturas com maiores problemas (grãos).

Sobra ao agricultor a estratégia de diversificação de cultura,que, dependendo do tamanho da propriedade em questão, po-de limitar os ganhos em escala decorrentes da especialização.

O risco de variação nos preços do produto e dos insumos é es-pecialmente relevante nas regiões de pior logística. Ocorre que,quanto mais distante dos portos, mais alto é o preço dos insumose mais baixo o do produto. O custo do frete reduz a margem de

rentabilidade e, assim, para uma mesma variação nopreço do produto e/ou dos insumos, o efeito sobre arentabilidade será tanto mais severo quanto pior fora logística da região.

As sucessivas crises por que passou a agrope-cuária brasileira que marcaram os anos 90 e 2000tornou claro que há um grande risco de oscilaçãodos preços pagos e recebidos pelos agricultores.As oscilações dos preços no mercado internacio-nal (inerente aos ciclos agrícolas) se somaram àsoscilações na taxa de câmbio, que se tornaram fre-quentes após adoção do regime de câmbio flexível.A volatilidade conjunta desses dois vetores de pre-ços impôs à agropecuária brasileira um risco ele-vado. A continuidade do crescimento do setor re-quer que sejam desenvolvidos mecanismos deproteção ao risco de preços. Entendemos que é pre-ciso alinhar os seguintes elementos a fim de tentarreduzir os riscos de preço da atividade:

1. O elemento de defesa de risco mais adequa-do ao uso pelos agricultores é o mercado deopções, pois neste mercado não há ajuste dem a rg e m ;

2. É preciso desenvolver e estimular o mercadode opções no Brasil;

3. A Conab tem larga experiência no uso dessesinstrumentos. O Banco do Brasil vem fazendo usocrescente das opções em suas operações de crédito. Épreciso alinhar os diferentes órgãos do governo e,junto ao setor privado, estimular a adoção dessa fer-ramenta pelos produtores, cooperativas e empresasligadas ao setor;

4.A expansão do mercado de opções dependeráda redução da taxa básica de juro, posto que os cus-tos atuais dificultam o lançamento de opções porparte do setor privado;

5. Deve ser dado estímulo ao mercado futuro, desenvolven-do linhas de crédito para o financiamento de margens.

IV.3. Risco de variaçãoda taxa de câmbio

A partir do final de 1998, a taxa de câmbio brasileira pas-sou a flutuar livremente. A abertura na conta de capital, as-sociada à alta liquidez nos mercados internacionais, sugereque a volatilidade da taxa de câmbio será a regra na econo-mia brasileira. A integração ao mercado internacional porparte da agricultura brasileira faz com que todo sistema depreços no País tenha como referência básica a taxa de câmbio.As mudanças na taxa de câmbio foram expressivas, expli-

No decorrer dasúltimas décadas,diversas escolasde engenhariaagronômica eflorestal, medicinaveterinária,zootecnia ebiologia foramcriadas,multiplicandoconsideravelmenteo número deprofissionais emciências agrárias.

IV.2. Risco de variação nos preçosdos produtos e dos insumos

A volatilidade nos preços dos produtos agrícolas, bem co-mo dos principais insumos consumidos pelo setor, é uma rea-lidade inerente ao setor agropecuário. A forma de defesa dessavolatilidade encontra-se tradicionalmente associada às opera-ções de mercado futuro e de opções.

Fora das economias agrícolas desenvolvidas, como há faltade políticas de garantia de renda ao produtor, as oscilações naoferta internacional de qualquer produto são corrigidas namargem pelo produtor nacional (redução de renda seguida dediminuição de área plantada). Os ajustes na estrutura produ-tiva são muito mais severos.

Divulgação

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cando boa parte da expansão e da cri-se na última década no País.

Frente a este risco, o agricultor sótem duas alternativas: travar a taxano mercado futuro ou transferir o ris-co para uma empresa (esmagadoraou trading).

IV.4. Volatilidade na ofertade crédito privado eas limitações do SistemaNacional de Crédito Rural (4)

Após uma rodada de medidas emer-genciais para elevar a disponibilidadede crédito para o produtor rural, nummomento de restrição frente à crisemundial e viabilizar a safra 2008/09, oPlano Safra 2009/10 apresentou desdeseu início maior quantidade de recur-sos voltados a atender a necessidade definanciamento do setor. Porém, mesmosendo superior a quantidade disponi-bilizada, esses recursos foram suficien-tes para atender a demanda do setor?Em outras palavras, o modo com que oprograma de crédito rural está estrutu-rado atende as necessidades dos pro-dutores rurais? Procuramos nessa par-te do texto discutir alguns pontos per-tinentes ao financiamento do setoragropecuário brasileiro.

A disponibilização de recursos ofi-ciais para o setor vem crescendo ano aano. De 2005 para cá, o aumento foi de90%, sendo que entre 2008 e 2009 cres-ceu 38%. Dividido entre recursos desti-nados à agricultura familiar e à empre-sarial, esta corresponde a 86% do totaldisponibilizado no último plano safra(R$ 93 bilhões). O Gráfico 5 mostra aevolução anual desses recursos.

Dentro da estrutura do crédito ofi-cial, o montante voltado para a agricul-tura empresarial – ou comercial comofoi referida no último Plano de Safra – foi dividido em três li-nhas de financiamento: Custeio e Comercialização (a juros li-vres e controlados), Investimento e Linhas Especiais, confor-me esclarece o Gráfico 6.

Os volumes supracitados são significativos e seriam sufi-cientes para financiar parcela representativa da agriculturabrasileira. Não obstante, o sistema vem sendo fortemente li-mitado por duas características essenciais. Em primeiro lugar,existe um estoque de dívida elevado, que impede que muitosprodutores não tenham acesso à linha de crédito oficial, umavez que estão inadimplentes (em alguns casos há muitosanos). O segundo elemento de limitação diz respeito ao mon-

tante de capital que é possível ser tomado por CPF ou CNPJ.Em se tratando de capital para girar a safra, é o crédito para cus-teio a principal fonte oficial disponível ao produtor. Desse to-tal, cada produtor está apto a tomar empréstimos dentro decerto limite estipulado, de acordo com a cultura em questão,conforme esclarece a Tabela 1.

Os limites do Sistema Nacional de Crédito Rural tornam-seevidentes para aqueles grupos que operam em larga escala. Ora,

(4) Agradecemos a contribuição dada pelo professor Guilherme Leiteda Silva Dias para a elaboração deste tema.

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para a maior parte das culturas, os limites atuais permitem oplantio de área de no máximo 400 a 500 hectares, como é o casoda soja, uma das lavouras de mais baixo custo operacional. As-sim, dado que o limite de empréstimo é fixo para todos inde-pendentemente do modelo do produtor em que a propriedadeestá inserida, acaba sendo mais favorável para aqueles que pos-suem menor área cultivada, estrutura característica da regiãoSul do País, do que àqueles que produzem em grandes exten-sões, escala produtiva típica da região Centro-Oeste.

Em números gerais, estima-se que cerca de um terço do fi-nanciamento do produtor rural ocorra através do crédito ofi-cial, e que o restante fica a cargo do crédito próprio, tradings,empresas de insumos, bancos privados e fundos de investi-mento, parcela essa que vem crescendo nas últimas safras. En-tre os anos as participações podem mudar como ocorreu na sa-fra 2008/09 quando a época da instalação da safra coincidiucom o estouro da crise de liquidez mundial, mas o fato é que égrande a dependência de fontes não oficiais de financiamentopara viabilizar uma safra brasileira.

Grande também é a dívida agrícola. Iniciada geralmente a par-tir de financiamento para custeio e investimentos, as sucessivascrises pelas quais o agronegócio passou (sendo a de 2005 a pior,principalmente no Centro-Oeste) dificultam bastante qualqueração voltada para elevar o ingresso de dinheiro novo no setor.

As fontes privadas de financiamento, ao verem a situaçãoda dívida e a ausência de informação em relação aos ativos queforam dados como garantia em empréstimos anteriores, clas-sificam o produtor como de alto risco, cobrando elevadas taxasde empréstimos e, quando há alguma crise no campo, acabampor sofrer os efeitos da própria taxa cobrada, pois aumenta oíndice de inadimplência.

Nesta última crise, aliás, muitos agentes privados percebe-ram que não adianta cobrar taxas exorbitantes, pois os produ-tores partem para a estratégia da inadimplência, o que resultaem longos processos judiciais para a recuperação dos ativos,que nem sempre trazem a mesma remuneração esperada nocomeço da operação. Além de não resolver o problema da dí-

vida completamente, é estancado o processo de entrada de no-vos recursos privados no setor, pois os financiadores preferemaplicar os recursos disponíveis em mercados mais estrutura-dos, e quando decidem investir novamente no setor, procuramselecionar os melhores pagadores. Embora ainda seja bastanteimpreciso esse processo de seleção, dada a falta de informação,o resultado é que o ingresso de capital se reduz.

A solução dessa questão passa em parte pela reorganização daestrutura tributária do produtor rural e do setor agrícola como umtodo. Criar um ambiente transparente para as empresas agrope-cuárias é essencial, dada a elevada quantidade de contratos queexistem ao longo da cadeia produtiva do agronegócio, que come-çam na aquisição dos insumos e seguem até a fase final de comer-cialização. Algumas propostas estão em discussão e entre elas aideia do Simples Rural tem ganho força.

Nesse caso, o produtor rural passaria de pessoa física parajurídica e aderiria ao pagamento de uma única alíquota de im-posto, que agrega todas as existentes, aumentando indireta-mente a organização do processo financeiro das empresasagrícolas. Além disso, a criação conjunta de um cadastro po-sitivo e de uma central de riscos que agregaria as informaçõesde todos os produtores agrícolas que tenham algum tipo de fi-nanciamento facilitaria o processo de empréstimo, reduziria orisco de inadimplência dos bancos e do setor privado e conse-quentemente viabilizaria crédito, não só em maior quantida-de, quanto à menor taxa de juros.

Por parte dos produtores, embora já haja aqueles que concor-dam com a criação do Simples Rural, a "pejotização" é vista comoelemento de risco na medida em que se poderia imaginar, dada ahistória recente da evolução dos impostos no Brasil, que os tribu-tos seriam aumentados conforme a base de arrecadação estiverestruturada pelo Governo. Em outras palavras, com o tempo oSimples Rural poderia ser abandonado e a trajetória de elevaçãodos impostos penalizaria os agricultores.

Outro elemento de limitação da aceitação do Simples Ruraldiz respeito ao acesso ao crédito rural oficial, uma vez que éprática comum a tomada de financiamentos por mais de uma

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pessoa física dentro da mesma família, por meio de pedidospor CPF´s diferentes para conseguir maior recurso do créditooficial a taxas de juros inferiores àquelas praticadas no livremercado, uma vez que geralmente o limite liberado por pro-dutor fica aquém do solicitado. A pessoa jurídica permitiriaum único financiamento por empresa agrícola.

No Governo, a discussão do Simples Rural e a revisão da es-trutura tributária geram polêmica. Para que a proposta doSimples Rural siga adiante, é necessário que se tenha uma car-ga tributária inferior ao pago pelo produtor na pessoa física.Esse item não é dos mais simples a ser definido, pois possuiampla interface com a Receita Federal e fortes empenhos, tantona esfera jurídica quanto na política, são necessários para efe-tivar essa categoria de contribuição com sucesso.

É preciso contrapor os riscos da mudança de política tribu-tária aos benefícios advindos dessa mudança. É certo que o Sis-tema de Crédito Rural está saturado e a alternativa da trans-formação da atividade agrícola em pessoa jurídica, se por umlado há redução da flexibilidade, de outra parte eleva o ganhoem decorrência do acesso ao crédito privado.

Entre as propostas para a criação do Simples Rural que estãoem discussão, a principal diz respeito ao PIS/COFINS. A ideiainicial proposta seria o Governo eliminar esse tributo federal,pois se espera que ao abrir mão dessa arrecadação, o volumelevantado com o processo de formalização das empresas ru-rais, através da oficialização do trabalho e contribuição previ-denciária, mais que compensaria a arrecadação perdida com aeliminação dos PIS/COFINS. Soma-se a isso, o fato de que osefeitos dessa medida seriam também estendidos para toda acadeia do agronegócio, visto que a informalidade ocorre emtodos os elos, resultando em um processo global de elevaçãoda arrecadação. Muitos empreendimentos agrícolas já se or-ganizam na forma de pessoa jurídica, alguns dos quais sob aforma de empresas abertas, sendo claro que essas empresastêm mais acesso ao crédito.

Porém, somente a formalização do setor não é suficiente pa-ra organizar o ambiente institucional. É preciso também abor-dar a renegociação e regularização da dívida rural para que ha-ja consistência no projeto do Simples Rural. Logo, com a cria-ção da pessoa jurídica e da Central de Riscos, que teria o ca-dastro de todos os produtores, as empresas teriam certoperíodo para colocar suas contas em ordem, e a partir de certadata, somente empresas que estejam organizadas sob essa no-va ordem tributária, e pertencentes ao cadastro único dessacentral, teriam acesso ao crédito rural. A questão da transiçãonão é, entretanto, trivial.

Na proposta de reformulação da política de crédito rural, aatuação do Governo seria através do Fundo de Alavancagem,que é um fundo constituído para dar parte do suporte finan-ceiro necessário para as carteiras de crédito dos bancos. Logo,a formação e a responsabilidade pelas carteiras de clientes fi-caria a cargo dos bancos, tradings, cooperativas de crédito eagentes do setor, que junto com o capital próprio do produtor,continua compondo cerca de dois terços do necessário para fi-nanciamento para custeio e comercialização. A diferença é quea liberação do dinheiro, ou parte dele, pelo Fundo de Alavan-cagem levaria em conta o risco da carteira apresentada pelo

banco, sendo uma opção para evitar novas crises da dívida.O fato marcante da atual agricultura brasileira é que não há

aporte novo de capital no setor devido à dívida e à falta detransparência que existe no setor, mas não se resolve essasquestões porque o setor não cresce devido à falta de capital pa-ra investimento e pela limitação da estrutura tributária inci-dente na empresa rural. Essa dicotomia deve ser encarada, e defrente, para permitir a continuidade do crescimento do agro-negócio brasileiro. Caso contrário, continuará estagnado, poisquem não quer correr risco, tomando crédito de bancos e fun-dos de investimento que cobram altas taxas de juros, fica an-corado no capital próprio e no que existe de financiamento ofi-cial, e acaba limitado pela escassez de recursos.

É crescente a participação do setor privado no financiamen-to da agropecuária brasileira. Nos últimos dez anos foram cria-dos mecanismos financeiros bastante modernos e adequadosao financiamento privado. Entretanto, o alto custo imposto pe-las taxas de juros existentes no País faz com que a adoção dessespapéis seja diminuta. A redução da taxa básica de juro permi-tirá que o mercado privado se desenvolva e garanta parcelasignificativa do financiamento agrícola.

Assim, julgamos interessante desenvolver os seguintes ele-mentos no que diz respeito ao crédito à agropecuária brasileira:

1. Promover ajuste fiscal como forma de reduzir a taxa bá-sica de juro;

2. Estimular e divulgar os mecanismos de financiamento daagricultura;

3. Estimular o Banco do Brasil a divulgar os mecanismos definanciamento;

4. Estimular a adesão dos produtores ao regime de pessoajurídica;

5. Para tanto, é interessante desenvolver um modelo tribu-tário como o Simples Agrícola;

6. É preciso desenvolver uma "Central de Riscos" que per-mitiria criar um cadastro positivo dos produtores.

IV.5. Risco sanitário

O aumento no tamanho do agronegócio brasileiro elevará orisco sanitário envolvido na produção. Além disso, a expansãodo comércio internacional traz consigo o risco de contamina-ção com doenças existentes no exterior. Em outras palavras, aprobabilidade de problemas sanitários se eleva conforme a in-tegração internacional aumenta.

O Brasil tem um histórico recente relacionado à sanidadeanimal que não pode ser esquecido quando se trata de po-líticas futuras para geração de divisas do setor agropecuá-rio, dado o aprendizado que ficou de episódios de negocia-ções mal conduzidas e de falhas no sistema de vigilância sa-nitária do rebanho bovino.

Com o crescimento da participação do Brasil no comérciomundial de carne bovina, ocorreu um aumento das pressõesprotecionistas dos países importadores da carne brasileira,principalmente aqueles que também são produtores. Nestesentido, a implantação de um sistema de controle sanitário e derastreabilidade eficiente e que atenda às necessidades dos di-versos mercados consumidores é essencial para que o País con-

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tinue disputando os melhores nichos de mercado, além de am-pliar sua representatividade global e a capacidade de geraçãode receita para todo o setor de pecuária.

Após o aumento dos surtos do mal da vaca louca (BSE - En-cefalopatia Espongiforme Bovina), na década de 90, em diversospaíses europeus, foi criado um sistema de controle em que os ani-mais são identificados individualmente, logo após o nascimento,sendo acompanhados até o abate. Controla-se todo o processoprodutivo, dieta, condições de criação, movimentação de ani-mais, medicamentos utilizados etc. Como na Europa as proprie-dades são pequenas, apesar de numerosas, e os rebanhos por pro-priedade são menores, a identificação individual dos animais foipossível de ser implementada. Este criterioso modelo de rastrea-bilidade foi estabelecido em função do risco associado ao mal davaca louca, enfermidade que ocorre em rebanhos alimentadosexclusivamente à base de ração. Apesar de a região Sul brasileiradepender de alimentação suplementar no inverno, dada a ausên-cia de pastagens adequadas, devido à rigorosa época de seca, e osconfinamentos terem crescido nos últimos anos como estratégiade abastecimento dos frigoríficos na entressafra, a maior parte dosistema de produção no Brasil é a pasto durante o ano todo, sendoa dieta a base de capim, o que torna o rebanho brasileiro livre domal da vaca louca. Apesar de livre desta enfermidade, o Brasilainda não conseguiu erradicar a febre aftosa, embora tenha di-minuído de 589 casos em 1995 para nenhum caso em 2002. Em2004 foram registrados 5 focos e, em 2005, 34 focos.

A partir de outubro de 2005, o Brasil sofreu embargos de inú-meros mercados externos imediatamente após a notificação à Or-ganização Internacional de Epizootias (OIE) dos focos de aftosarelatados no Mato Grosso do Sul e Paraná. Além desses dois Es-tados, São Paulo também sofreu embargo total por fazer fronteiracom os Estados onde foram descobertos os focos, mesmo não ten-do sido relatado nenhum caso em território paulista há uma dé-

cada. A carne suína também foi embargada por muitos países, in-clusive pela Rússia, principal cliente do produto brasileiro, quereduziu em 22,5% o volume importado de carne suína do Brasilem 2006, contribuindo para uma queda de 12% no total exportadopelo País naquele ano. Outro mercado que se fechou para a carnesuína no final de 2005, e que até hoje ainda não se abriu, é a Áfricado Sul, para onde o País enviou quase 18 mil toneladas em 2005.

Dada a escala comercial que o Brasil desenvolveu ao longo dosanos, esses embargos foram bastante nocivos ao setor, pois os blo-queios dos mercados compradores mais exigentes foram acom-panhados da mesma atitude por muitos outros países compra-dores, em tese menos exigentes. Naquela ocasião, apesar de osgrandes frigoríficos terem sido menos prejudicados (pois conse-guiram realocar a produção dos Estados bloqueados para outrosdestinos, principalmente o mercado interno, enquanto a produ-ção dos Estados não embargados alimentou o restante da deman-da externa) os produtores sofreram diretamente as consequên-cias, uma vez que houve retração imediata no preço da arroba doboi gordo diante do menor interesse de compras por parte dos fri-goríficos. As mais relevantes reduções da quantidade exportadade carne in natura entre janeiro e setembro de 2006 e em relação aoigual período de 2005 (que precedeu os embargos), ocorreram noChile (-96,2%), na Rússia (-20,5%) e na União Europeia (-5,4%).

Após o surto da vaca louca na Europa, com a consequentecriação do sistema europeu de rastreabilidade, foi pedido aoBrasil o estabelecimento de um processo similar, de modo a ga-rantir a origem do produto destinado ao bloco. Em 2002, foi cria-do o Serviço de Rastreabilidade de Bovinos (Sisbov), com umambicioso projeto de identificação individual de animais e con-trole da produção ao abate, para a carne destinada àquele mer-cado. Na prática, o Sisbov nunca funcionou em perfeita confor-midade, dadas as dificuldades de manejo, despreparo e/ou máfé de algumas certificadoras e produtores, além dos elevados

Com o crescimentoda participação doBrasil no comérciomundial de carnebovina, ocorreuum aumentodas pressõesprotecionistasdos paísesimportadores,principalmenteaqueles quesão produtores.

Paulo Liebert/AE

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custos e baixos prêmios para se produzir o boi rastreado. Diver-sas missões técnicas europeias de auditoria visitaram estabele-cimentos frigoríficos, fazendas e certificadoras desde sua cria-ção, sempre seguidas de relatórios negativos e com sugestões deaprimoramento. Com o tempo, o tom dos relatórios foi pioran-do e ameaças de embargo sendo sinalizadas, enquanto o Paísmanteve a postura de negociar com promessas de reparos aosistema, que permaneceu sem total credibilidade por parte des-ses compradores. Depois de ter anunciado embargo total à car-ne in natura procedente do Brasil, em 31 de janeiro de 2008, aUnião Europeia reabriu seu mercado um mês após ficar total-mente fechado, porém o bloco definiu um critério bastante ri-goroso de autorização individual de fazendas, que por sua vezsão auditadas pelo Ministério da Agricultura brasileiro.

Como as exigências de controle da produção são de difícilexecução e os prêmios pagos pelo animal com destino à Euro-pa são insuficientes, houve pouco estímulo aos produtores eenorme dificuldade operacional nas auditorias, com falta depessoal e demora nas checagens individuaisnas fazendas. Com isso, a lista das proprieda-des autorizadas dois anos após o embargo so-mou pouco mais de 1.800 fazendas, ante cercade dez mil propriedades aptas até 2007.

Em janeiro de 2008, a União Europeia eraresponsável por 59% do total de carne frescaexportado pelo Brasil. Já em 2009, em média,esse percentual foi de apenas 23%. Como esseproduto é o mais caro dentre os que o setor ex-porta, essa perda implicou em forte redução dereceita às empresas exportadoras, e em retra-ção no preço médio das exportações.

A OIE devolveu somente em julho de 2008 ostatus de livre de febre aftosa, com vacinaçãopara o Estado do Mato Grosso do Sul, devido ànotificação dos casos em setembro de 2005, oque implicou em praticamente três anos de prejuízos econômi-cos para aquele importante Estado produtor. Os demais Esta-dos que também tiveram status suspenso – São Paulo, Paraná,Goiás, Mato Grosso, Distrito Federal, Minas Gerais, Tocantins,Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia e Sergipe – recuperaram ostatus de livre com vacinação um pouco antes. Acre, Rio Grandedo Sul, Rondônia e o Sul Paraense também são áreas livres defebre aftosa com vacinação, e apenas Santa Catarina tem o me-lhor status, o de livre da doença sem vacinação.

O fato de alguns Estados, como Mato Grosso, Mato Grossodo Sul e Paraná fazerem divisa com países onde o controle éprecário, torna o objetivo da erradicação definitiva da doençauma tarefa difícil. O Brasil evoluiu bastante na vacinação pre-ventiva à febre aftosa nos últimos anos, porém, a falta de re-cursos do governo e a precária vigilância das fronteiras aindamantêm o País em condição de risco de ressurgência do vírus.Apesar do crivo da OIE para as áreas livres da febre aftosa, hápaíses que não reconhecem tal classificação (caso da China) eoutros que exigem que todo território seja livre de aftosa semvacinação. O Brasil não acessa alguns mercados consumidoresexternos de grande relevância, caso dos Estados Unidos, Ja-pão, Canadá, México e Coreia do Sul e a própria China, prin

cipalmente devido ao risco de sanidade (febre aftosa), à desa-creditada rastreabilidade e/ou por questões protecionistas.

Portanto, apesar do aumento expressivo das exportações decarne bovina nos últimos anos, o setor tem enfrentado enorme di-ficuldade em garantir a rastreabilidade e sanidade do rebanhonacional. É tendência mundial a preocupação do consumidor fi-nal com a origem dos alimentos e o rigor tem aumentado cada vezmais nos mercados consumidores externos. Segundo a Associa-ção Brasileira da Indústria Produtora e Exportadora de CarneSuína (Abipecs), caso o País conseguisse erradicar a febre aftosa, oaumento potencial das exportações somente de carne suína seriade 1 milhão de toneladas, o equivalente a dez vezes o ganho po-tencial que o Brasil pleiteou na Rodada Doha.

O Brasil é hoje o maior exportador mundial de carne vermelhae de carne de frango. A inserção internacional do País requer queos seus padrões sanitários sejam compatíveis àqueles dos paísesdesenvolvidos. É preciso construir um sistema moderno e efi-ciente de vigilância sanitária. O tema "defesa sanitária" deve ser

eleito como prioritário no novo governo.Nesse sentido, julgamos relevantes os se-

guintes aspectos:1. É preciso resgatar o orçamento da defesa

sanitária;2. É preciso renovar o quadro de técnicos da

vigilância sanitária, ampliá-lo e capacitá-lo demoderna tecnologia;

3. É preciso desenvolver um trabalho con-junto com as vigilâncias sanitárias estaduais, afim de maximizar os resultados das estruturasexistentes;

4. É preciso envolver o setor privado no con-trole. Diversas entidades, associações de classes ede criadores etc, contam com estrutura que podeauxiliar no controle e combate às doenças;

5. É preciso desenvolver um trabalho de har-monização dos sistemas de vigilância do Brasil com os demaispaíses da região.

Mais especificamente, seria relevante à pecuária nacional:1. Erradicar a febre aftosa sem distinção de região.2. Priorizar a erradicação e controle de zoonoses: tubercu-

lose, raiva, brucelose, clostidiose.3. É preciso desenvolver a educação sanitária dos produtores.4. O Programa Nacional de Controle de Resíduos deve ser

objeto de priorização.5. É preciso dotar o País com laboratórios com nível adequa-

do de biossegurança;6. É fundamental ter representantes permanentes em orga-

nismos técnicos, como OIE e CODEX.7. No caso de aves, é fundamental a prevenção à Influenza

Aviária, bem como a continuidade do controle das doenças deNew Castle e Marek, principalmente.

8. No caso de aves e suínos, a regionalização é fundamentalpara a segurança sanitária.

A garantia de uma agricultura de qualidade requer práticasprodutivas que assegurem ao produto final um padrão elevado,compatível com os níveis de exigências das economias desenvol-vidas. Para tanto, faz-se necessário que os produtos apresentem

Apesar doaumento expressivodas exportações decarne bovina nosúltimos anos, o setortem enfrentadoenorme dificuldadeem garantir arastreabilidade esanidade dorebanho nacional.

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37ABRIL 2010 DIGESTO ECONÔMICO

rastreabilidade (ou seja, procedência) e que um sistema de cer-tificação garanta que o alimento atenda aos padrões de qualidadeexigidos pelo consumidor. Assim, torna-se fundamental:

1. Estimular a adoção voluntária de certificação.2. Organizar e divulgar aos produtores os diferentes siste-

mas de certificação.3. Exigir rastreabilidade em produtos de maior risco sa-

nitário.

IV. 6. Riscos institucionais: titulação daspropriedades e legislação ambiental

São grandes os riscos institucionais na agricultura brasilei-ra. Elemento de incerteza relevante diz respeito à precária ti-tulação em parcela significativa do País. O investimento no se-tor agrícola requer a garantia de posse da propriedade. Essefato representa uma séria barreira ao investimento privado naagricultura. Nesse sentido, torna-se fundamental regularizara titulação de todas as propriedades brasileiras. Para tanto,faz-se necessário unificar os cadastros estaduais e federais noque diz respeito à titulação das propriedades, estabelecendoum cadastro único de terras.

Existem ainda outras ameaças que geram incertezas, espe-cialmente a contínua demanda de novas áreas para entrega apopulações indígenas e quilombolas, geralmente baseadasem esparsa evidência. Mais recentemente, a legalização de fa-to das invasões de terras contidas na proposta da Política deDireitos Humanos coloca-se como a última das ameaças ao di-reito de propriedade.

Outro elemento de incerteza refere-se às leis ambientais queforam criadas nas últimas décadas. A nova legislação trouxegrandes incertezas quanto a adequação das propriedadesagrícolas ao novo Código Florestal. A questão central residenos direitos adquiridos, uma vez que boa parte da área plan-

tada no Brasil seguiu os princípios da antiga legislação. Re-giões produtoras consolidadas, como o Rio Grande do Sul,Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Espírito Santo e Minas Ge-rais, que dependem da agricultura de pequena escala e que, nomais das vezes, são conduzidas em áreas de relevo ondulado afortemente ondulado, deveriam interromper o ciclo de produ-ção à luz da nova legislação ambiental, o que acarretaria danoseconômicos e sociais não desprezíveis. Ademais, há grandediscricionariedade na questão ambiental quando se consideraque tanto os órgãos ambientais federais, quanto os estaduais emunicipais, acabam por interferir na produção agrícola. Háexemplos de municípios que criaram leis limitando a áreaplantada de cana-de-açúcar, por exemplo, o que gera umaquestão relevante quanto à escolha dos eleitos que estariamautorizados a plantar essa cultura. Nota-se, portanto, que hágrande confusão nas questões ambientais, o que acaba por ge-rar um passivo não desprezível para a agricultura brasileira.

É realmente difícil ao consumidor perceber que o alimentoque chega à sua mesa é resultado da combinação entre água,solo, nutrientes orgânicos e minerais, sol e derivados de petró-leo. Mas essa dificuldade não deveria ser comum a quem for-mula, tanto a política agrícola, como a ambiental.

Algumas discussões, embates e entraves que paralisam in-vestimentos ou penalizam alguns setores produtores da socie-dade poderiam e deveriam ser evitados, por meio da integra-ção das pautas do setor agropecuário e de defesa ambiental.

Muitas vezes, a descentralização dos debates e o conteúdo po-lítico velado nas propostas, acabam por causar prejuízos à ima-gem de um dos países que possui a maior disponibilidade de re-cursos naturais para promover a expansão da produção de ali-mentos, sem provocar graves decréscimos ao meio ambiente.

A evolução da produção agrícola no País mostra que os ga-nhos de produtividade alcançados nos últimos 30 anos sãoum fenômeno que poucas nações do mundo experimenta-

Rivaldo Gomes/Folha Imagem

Outro elemento deincerteza refere-seàs leis ambientaisque foram criadasnas últimas décadas.A nova legislaçãotrouxe grandesincertezas quanto aadequação daspropriedadesagrícolas ao novoCódigo Florestal.

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38 DIGESTO ECONÔMICO ABRIL 2010

ram. Entre 1980 e 2009, a produção de grãos cresceu 176%, en-quanto a área plantada com estas culturas cresceu 19%, deacordo com dados históricos da Companhia Nacional deAbastecimento (Conab).

O aumento da produtividade agrícola, fruto do investimen-to em pesquisas, aumento do uso de novas tecnologias e daprofissionalização do setor, é mais do que uma prova que há apossibilidade de expansão agrícola paralela ao uso sustentá-vel dos recursos naturais.

A pauta das discussões ambientais que envolvem direta-mente a produção agrícola é grande e muitas delas serão de-batidas em 2010, como as modificações no Código Florestal, oZoneamento-ecológico-econômico da Amazônia e a explora-ção dos recursos hídricos.

O Código Florestal brasileiro foi instituído em 1965. Em2009, a Câmara dos Deputados instalou uma Comissão Espe-cial para analisar propostas de alteração do Código (Projeto PL6424/05). Algumas organizações da sociedade brasileira clas-sificaram as propostas como um ataque à legislação ambien-tal. Outras, como um avanço, já que o primeiro código foi ins-tituído, segundo elas, sem nenhum critério científico e comabrangência em todo território nacional.

A aprovação ou não das alterações no Código Florestal de-

verão ter fortes repercussões, principalmente na comunidadeinternacional, já que há uma mobilização mundial a respeitodos problemas ambientais, especialmente com relação às mu-danças climáticas. Talvez esta seja a questão mais importante aser discutida neste ano, já que seus resultados podem interferirnas relações comerciais do Brasil com seus parceiros. (5)

Isto porque, uma forma usual de estabelecer restrições ao co-mércio internacional de commodities tem sido as alegaçõesquanto os impactos ambientais causados pela produção destesbens. Um exemplo disso foi a discussão gerada pela expansão daprodução de etanol de cana-de-açúcar. O etanol brasileiro, umdos combustíveis mais eficientes no balanço energético da pro-dução, foi apedrejado por indagações a respeito de sua relaçãocom o desmatamento por países que pretendiam proteger seusmercados de um combustível verde e competitivo.

Ainda falta a consciência nos formuladores das políticasambientais e agropecuárias de que a continuidade do descom-passo na resolução destas questões abre precedentes para queo País sofra embargos que afetam ambos os setores.

Na área de comércio internacional (6), várias exigências vêmaumentando, incluindo, por exemplo, questões trabalhistas,sanitárias e ambientais. Muitas vezes são utilizadas como me-canismos inaceitáveis de proteção e barreiras ao comércio. Te-mos que separar o que é razoável daquilo que é maliciosamen-te utilizado. As autoridades do Itamaraty têm um papel fun-damental neste quesito.

Uma grande discussão que permeia a sociedade, e é de fun-damental importância para o estabelecimento de diversas di-retrizes, como o próprio Código Florestal ou o zoneamento daAmazônia, reside na estimação do volume real de terras dis-poníveis para o uso agrícola.

Um estudo publicado por pesquisadores da Embrapa ava-liou e estimou as terras legalmente disponíveis para ativida-des agrícolas intensivas e outras formas de uso (urbanização,sistemas energético-mineradores, industriais e de infra-estru-tura) (7) . De acordo com o estudo, aproximadamente 70% doterritório está legalmente destinado a minorias, à proteção epreservação ambiental ou indisponível para uso e ocupaçãointensivos, dada a existência de outros mecanismos, restriçõese condicionamentos ambientais (planos diretores, conselhos,planos de manejo, comitês gestores etc).

Em resumo, descontando-se toda a região sob unidades deconservação, terras indígenas, áreas de preservação perma-nente e áreas de reserva legal, o estudo chegou à conclusão queexiste uma área disponível correspondente a 29% do Brasil, oequivalente a 245 milhões de hectares.

Pela conclusão do estudo, e consideradas todas as demandasde ambientalistas, índios, quilombolas, agricultores e do Incra,para reforma agrária, não haveria terra suficiente no País.

O estudo, criticado em parte por sua metodologia, apresen-

(5) e (6) Não tratamos de política comercial externa não porjulgá-la sem importância, mas porque optamos em focar áreasem que há novas informações.(7) Esse estudo pode ser consultado emh t t p : / / w w w. a l c a n c e . c n p m . e m b r a p a . b r / i n d e x . h t m .

Há uma mobilização mundial a respeito dos problemasambientais, especialmente mudanças climáticas.

Henry Milleo/Gazeta do Povo

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ta uma utilidade indiscutível: mostra o nível de complexidadeímpar que existe em se atender de forma plena as questões am-bientais e sociais e a necessidade de produção de alimentos noPaís. Ele mostra como a legislação ambiental vigente cumpreapenas um papel teórico, é ineficaz e colocaria diversos setoresda sociedade sob total ilegalidade, como produtores de frutasnas margens do Rio São Francisco, produtores de leite em Mi-nas Gerais, a população ribeirinha no Acre e no Pará, arroz noRio Grande do Sul, produtores de café em São Paulo, MinasGerais e Espírito Santo, entre outros casos.

No que concerne à reserva legal, parece bastante razoável aproposta de se aceitar nas regiões antigas as áreas de preserva-ção das matas ciliares como parte integrante da reserva legal.

Outra questão que deixa clara a dissonância entre os di-versos departamentos governamentais, reside no fato queos inúmeros projetos desenhados pelos diversos órgãos go-vernamentais não possuem o alinhamento necessário quan-to à política de conservação. No início de2009, um documento examinado pelo jornalO Globo revelou, em um artigo publicado em23 de março, que o desmatamento nos assen-tamentos do INCRA, no Mato Grosso, era18% superior ao apresentado nas autuaçõessofridas pela entidade. O Ibama descobriuque o desmatamento foi de 330.290 hectaresda Floresta Amazônica, 57.890 hectares amais que o calculado antes.

Segundo o Ibama, os assentamentos des-mataram sem autorização de órgãos ambien-tais, impedindo a regeneração de floresta pri-mária e não tinham licença ambiental. A au-ditoria apontou que os 330.290 hectares des-matados representaram 59% do total dos seteassentamentos autuados e identificou outroscrimes, como desmatamento e ocupação deáreas de preservação permanente. Um relatório encomenda-do pelo Ministério do Meio Ambiente a uma consultoria ex-terna para avaliar a evolução do projeto, indicou, em umaamostragem de 170 assentamentos criados até 2002, que me-tade foi erguida em áreas com 50% ou mais de cobertura flo-restal nativa. Depois de cinco anos, 45% deles tinham menosde 20% de floresta primária. Outra amostragem, com 207 as-sentamentos criados entre 2003 e 2006, revelou a tendência deaumento no desmatamento.

O estudo mostra apenas uma característica da complexidadedo problema fundiário no País. Afora os problemas ambientaisrelacionados aos assentamentos oficiais promovidos pelo IN-CRA, existem, distribuídas por todo o território, ocupações depropriedades por membros de movimentos de reforma agrária, oMovimento dos Sem Terra (MST) e outros, que causam grandeinsegurança institucional a investimentos na área agropecuária.

Além da necessidade de todo um enquadramento das po-líticas nacionais para agricultura e meio ambiente, há ainda oenquadramento na conjuntura global de redução das emis-sões de carbono, com vistas a minimizar os efeitos do aqueci-mento global. Um ponto passa ao largo das discussões agro-pecuário versus meio ambiente: o fato de que a atividade agrí-

cola e a produção pecuária também desempenham um papelmitigador de gases de efeito estufa.

Um artigo apresentado pelo Embrapa Meio Ambiente (Prá-ticas Agropecuárias e Mitigação das Emissões de Gases deEfeito Estufa), mostra que algumas práticas já consolidadas, eoutras de grande potencial de implantação, contribuem para amitigação de gases desse efeito, principalmente o CO2. Entreelas estão a fixação biológica do nitrogênio, a redução da quei-mada de cana-de-açúcar, o uso de resíduos vegetais como bio-combustíveis, a recuperação de áreas de floresta, a integraçãolavoura-pecuária, o rotacionamento de pastagens, o plantiodireto e cultivo mínimo, a melhoria da nutrição animal.

Na área agroindustrial, também o progresso tecnológicoproduz, a cada dia, novas formas mais eficientes de produção.Exemplo disso, são novos modelos de usinas de produção deaçúcar e álcool que, além de reduzir o uso de água, recuperama água utilizada e produzem biofertilizantes.

O alinhamento das questões ambientais e dacontinuidade do crescimento da produção agrí-cola passa por um modelo único, que trate nãosomente de punições, mas também de compen-sações, como a definição e normatização do me-canismo de Pagamento por Serviços Ambien-tais (PSA). Essa ferramenta estabelece o ressar-cimento aos produtores em relação a áreas pre-servadas. Este seria, por exemplo, um primeiropasso em direção à convergência de políticas noPaís. Expostas estas questões a respeito dos ris-cos institucionais no agronegócio, são indicadasalgumas propostas para o setor:

1) a regularização da titulação de todas aspropriedades brasileiras;

2) uma unificação dos cadastros estaduais efederais;

3) o estímulo à pesquisa científica para esta-belecer novas diretrizes e legislações;

4) o respeito às diferenças regionais para elaboração das nor-mas de reserva florestal e de preservação;

5) a introdução de inclusão de áreas de mata ciliar e deproteção de nascentes na reserva legal no Novo CódigoF l o re s t a l ;

6) um maior esforço para dar consistência às legislações mu-nicipais, estaduais e federal; e

7) a exigência do cumprimento da garantia de proprieda-de da terra, em resposta a ocupações realizadas pelo MST, re-jeitando todas as propostas (por exemplo, a do Programa Na-cional de Direitos Humanos) que relativizem o direito dep ro p r i e d a d e .

IV.7. Desenvolvimento tecnológico einstabilidade de regras.

A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio),cuja finalidade é prestar apoio técnico e assessoramento ao Go-verno Federal na formulação, atualização e implementação daPolítica Nacional de Biossegurança relativa a Organismos Ge-neticamente Modificados (OGM), aprovou em 2009 a libera-

A legislaçãoambiental vigentecumpre apenas umpapel teórico, éineficaz e colocariadiversos setores dasociedade sob totalilegalidade, como osprodutores de frutasnas margens do RioSão Francisco.

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40 DIGESTO ECONÔMICO ABRIL 2010

ção comercial de nove variedades de sementes geneticamentemodificadas, sendo três de algodão, cinco de milho e uma desoja. Essas variedades conferem resistência a insetos ou são to-lerantes a certos tipos de herbicidas, podendo ainda, combinarambas as características simultaneamente, como é o caso do al-godão Widestrike, da empresa Dow Agrosciences, que é resis-tente a insetos e também possui tolerância ao herbicida glufo-sinato de amônia ou do algodão MON 531 da Monsanto, comresistência a insetos e tolerância ao herbicida glifosato.

Data de 1998 o primeiro parecer técnico favorável concedidopela CTNBio para um produto transgênico no Brasil, caso da so-ja Roundup Ready, da empresa Monsanto, tolerante ao herbi-cida glifosato, porém seu plantio em escala comercial somentefoi legalizado em 2003, devido a ações judiciais de ONGs am-bientalistas e de direitos do consumidor contra a empresa. Já asegunda aprovação no País ocorreu em 2005 para o algodão 531,resistente a insetos, porém oritmo das autorizações cres-ceu a partir de 2007. Em janei-ro de 2010, o Brasil dispunhade 19 autorizações, sendoduas de soja, onze de milho eseis de algodão. Apesar dasonze variedades de milho te-rem sido aprovadas desde2007, o plantio de milhotransgênico em larga escalase deu pela primeira vez nasafra 2008/09, e mesmo as-sim, somente a Monsanto te-ve sementes disponíveis aomercado. Ainda assim, a áreaocupada com milho transgê-nico representou 9% do totalcultivado, segundo a Abramilho, citando dados da consultoriaCéleres. Para a safra 2009/10, estima-se que o percentual de uti-lização de sementes transgênicas de milho passará de 50% dototal cultivado. Para a soja, a Céleres estima que o percentual doproduto transgênico chegue a 71% na safra 2009/10 ante os 65%da safra 2008/09. A adesão ao cultivo da soja transgênica émaior no Rio Grande do Sul, chegando a quase 100%, onde oproblema com plantas daninhas é mais grave. Já no Mato Gros-so, a soja convencional ainda é a mais plantada, devido à falta devariedades adaptadas ao clima do Estado, altos índices de pro-dutividade da soja convencional, mas também devido à estra-tégia de explorar nichos específicos de mercado da Europa. Co-mo tanto os EUA quanto a Argentina produzem principalmen-te a soja transgênica, o mercado para a oleaginosa convencionaltem sido cada vez mais demandante.

O menor uso de defensivos, o aumento da produtividade, econsequentemente da rentabilidade dos produtores quandose utiliza tal tecnologia, explica a rápida adoção das sementesmodificadas no Brasil. Apesar disso, há um intenso debate mo-tivado principalmente por ONGs ambientalistas e grupos deconsumidores, juntamente com a comunidade técnico-cientí-fica acerca da segurança alimentar dos produtos transgênicos,da rotulagem dos mesmos no mercado, da coexistência entre

variedades transgênicas e não-transgênicas no campo, bemcomo da possibilidade de riscos em longo prazo derivados doconsumo desses produtos e também para o meio ambiente, co-mo o surgimento de resistência nos insetos.

A lei brasileira exige que alimentos que contenham mais de1% de ingredientes de origem transgênica sejam rotulados coma letra "T" dentro de um triângulo amarelo, acompanhado dafrase "transgênico". Os primeiros alimentos rotulados no Paísforam os óleos de soja, no final de 2007, e já há também produtosrotulados derivados de milho. Para a Associação das IndústriasBrasileiras de Alimentação (ABIA), a rotulagem com o triânguloamarelo é exagerada, pois passa a mensagem de "perigo" para oconsumidor devido à associação com o sinal de alerta. Outrapreocupação das indústrias é referente às carnes suína e de fran-go, maiores consumidores da produção nacional de milho. A leiexige que a carne de animais alimentados com grãos transgêni-

cos também seja rotulada.Do lado da demanda pelos

produtos transgênicos, há te-mor de que uma eventual di-minuição da tolerância àtransgenia implique em bar-reiras comerciais ou até mes-mo num embargo por parteda União Europeia, onde apressão de grupos contra osalimentos transgênicos é bas-tante expressiva. Apesar dis-so, os europeus são impor-tantes importadores tanto desoja quanto de milho, inclusi-ve transgênico dos EUA, daArgentina e do Brasil, paraalimentação dos rebanhos e

produção de carne local. Diferentemente do Brasil, em que aCTNBio dá a palavra final, sendo responsável pela avaliação derisco e pelas permissões de plantio e comercialização dos produ-tos transgênicos, de acordo com a legislação comunitária, a Au-toridade Europeia para Segurança dos Alimentos (EFSA), umacomissão científica independente, dá seu parecer aos estados-membros, que podem ou não acatar a decisão. As autorizaçõesda EFSA para alimentos transgênicos podem ser de três tipos: 1)para alimentação humana e animal, 2) para importação e proces-samento e 3) para cultivo. Em janeiro de 2010 havia autorizaçãoda Comissão Europeia para o consumo (humano e animal) dequatro variedades de milho transgênico e para importação e con-sumo de outras oito variedades. No caso da soja, duas varieda-des estão autorizadas para importação e consumo, além de umavariedade de algodão. Há ainda uma autorização para beterraba(alimentação), três para canola (sendo duas para importação eprocessamento e uma para importação, processamento e consu-mo) além de autorização para importação de uma variedade deflor. Não há atualmente nenhuma autorização para cultivo devariedades transgênicas, embora haja relatos de plantios emPortugal e principalmente na Espanha.

Mesmo com as autorizações da Comissão Europeia para todosos estados-membros, os países podem utilizar a chamada cláu-

Transgênicos: o Governo liberou três variedade de algodão.

Paulo Liebert/AE

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41ABRIL 2010 DIGESTO ECONÔMICO

sula de salvaguarda para blo-quear a entrada e a comercia-lização de transgênicos. Deacordo com a cláusula, se umestado-membro tiver razõesválidas para considerar queum OGM que tenha recebidoautorização para colocaçãono mercado constitui um ris-co para a saúde humana e pa-ra o ambiente, pode restringirou proibir provisoriamente autilização e/ou venda desseproduto no seu território. Paí-ses como França, Áustria, Lu-xemburgo, Alemanha, Gréciae Reino Unido já utilizaramda cláusula, sendo o mais re-cente caso o bloqueio do mi-lho MON 810, da Monsantopela Alemanha em abril de2009. Ou seja, ainda que a Co-missão Europeia tenha umcritério de permissões co-mum para o bloco, cada paísas usa conforme seus pró-prios interesses.

Outro importante país pro-dutor que vêm avançando nouso de variedades transgêni-cas é a China. O governo da-quele país iniciou em 2008 umprograma de investimentos em pesquisas com alimentos trans-gênicos e orientação aos consumidores da ordem de US$ 3,5 bi-lhões. De acordo com o site europeu de informações sobre trans-genia GMO-Compass, 64 variedades transgênicas de algodão –resistente a insetos – são cultivadas em larga escala no país, ocu-pando 3,7 milhões de hectares ou aproximadamente 70% da áreatotal de algodão do país, evitando o uso de 650 mil toneladas depesticidas. Até recentemente a China vinha resistindo em comer-cializar sementes GM de alimentos, como arroz, milho e soja, po-rém esse princípio tem mudado na medida em que as liderançaschinesas têm aceitado cada vez mais que o avanço deste tipo detecnologia será fundamental para o país lidar com a necessidadede alimentar tamanha população. Já no final de novembro de2009, a China aprovou sua primeira variedade de arroz Bt (resis-tente a insetos), desenvolvido localmente, porém a produçãocom fins comerciais ainda demanda autorizações extra. Estima-se que a produção em larga escala se iniciará em dois ou três anos,de acordo com o Comitê de Biossegurança do Ministério da Agri-cultura da China. A China é o maior produtor de arroz do mundo,com 60 milhões de toneladas, e consome quase tudo localmente.Tamanha demanda vem se traduzindo cada vez mais em preo-cupação com a oferta de alimentos face aos enormes desafios dadegradação dos solos, da escassez de água, da falta de áreas aptaspara as lavouras e do aumento populacional.

Da avaliação acima, torna-se evidente que é preciso ter mais

clareza institucional quantoà questão da biotecnologia.Em todo o mundo avança alegislação relativa a plantas eanimais geneticamente mo-dificados e é preciso dar umalinhamento de médio e lon-go prazo às empresas ligadasa pesquisa e desenvolvimen-to de genética vegetal e ani-mal. A agricultura brasileiradepende e seguirá depen-dendo do progresso tecnoló-gico e não é possível existirdesenvolvimento tecnológi-co em um ambiente de insta-bilidade de regras.

Assim, julgamos de vitalimportância que:

1 . É preciso criar regrasclaras para o desenvolvi-mento, uso e multiplicaçãodos diferentes produtos eprocessos da biotecnolo-gia. A falta de clareza dasregras vem desestimulan-do o investimento privado,comp rometendo ser i a-mente o surgimento de no-vas tecnologias.

2. É preciso resgatar o pa-pel central da CTNbio. As

decisões acerca de biotecnologia devem ser tomadas por espe-cialistas, pois são necessários diversos estudos científicos queexigem conhecimento específico e profundo no que diz respei-to aos processos e produtos da biotecnologia. Seriedade e agi-lidade são os elementos-chave para que novas tecnologias per-mitam o contínuo desenvolvimento da agricultura brasileira.

3. É preciso ampliar os investimentos em pesquisa públi-ca no País.

4. É fundamental integrar na forma de redes de trabalho ossistemas federais e estaduais de pesquisa.

5 . É preciso estimular e fortalecer os centros estaduais depesquisa (a Embrapa não consegue sozinha atender toda a de-manda e complexidade da agropecuária brasileira).

6. A rede de desenvolvimento tecnológico deve envolver asuniversidades de ciências agrárias e biológicas. Há um enormepotencial de pesquisa subaproveitado nas universidades. É pre-ciso estimular nas universidades públicas o desenvolvimentode novas tecnologias em conjunto com o setor privado.

7.É preciso assegurar proteção jurídica e policial aos centrosde pesquisa do País (sejam eles públicos ou privados).

8.É preciso melhorar o sistema brasileiro de patentes, dandomais agilidade ao mesmo.

9. É fundamental garantir o respeito ao direito de proprie-dade sobre a patente, reprimindo o uso indevido dos diferen-tes produtos e processos (pirateamento).

Divulgação

Sérgio Castro/AE

A agricultura brasileira depende do progresso tecnológico,cujo desenvolvimento depende de regras claras.

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Geraldo Biasoto Jr. éeconomista forma-do na Unicamp,com mestrado ed o u t o r a d o n amesma universi-dade, da qualtambém é pro-fessor. É diretor-execu t ivo daFundação doD e s e n v o l v i-mento Adminis-t r a t i v o ( F u n-dap), do Estadode São Paulo, efoi coordena-dor de PolíticaFiscal do Ministé-rio da Fazenda,Secretário de Fi-nanças de Campi-nas (SP) e Secretá-rio de Gestão de In-vestimentos do Mi-nistério da Saúde.

Ricardo Oliva é médi-co, com pós-graduçãoem Saúde Pública, e as-sessor das presidênciasda Fundap e da FundaçãoButantan. Foi diretor daAgência Nacional de Vigi-lância Sanitária, secretário-adjunto de Saúde de São Pau-lo e superintendente da Funda-ção do Remédio Popular da Se-cretaria de Saúde, do Estado deSão Paulo.

Zé C

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e

Alex Ribeiro/DC

Page 43: Digesto Econômico nº 457

A SaúdeBrasileiraem Tempos

de Renovaro SUS

Resumo

O artigo aborda as origens do Sistema Úni-co de Saúde (SUS), uma série de caracte-

rísticas suas e várias questões a ele re-lacionadas: as implicações do cresci-

mento populacional, da transiçãoda estrutura etária e da transição

epidemiológica, o financiamen-to desse sistema público, a as-sistência que presta à popula-ção, o Sistema Suplementar,a assistência farmacêutica,vacinas, assistência hos-pitalar e equipamentosmédicos, e o complexoindustrial da Saúde.

Defende uma renova-ção do SUS com pro-postas voltadas, en-tre outros aspectos,para associar o di-reito à saúde a res-ponsabilidades in-d iv idua is com aprópr ia saúde ecom a saúde coleti-va; ampliar o in-vestimento públicoe privado em capa-cidade instaladapara o atendimen-to; recorrer à aten-ção básica como por-ta de entrada no SUS;estabelecer serviçosde regulação associa-

dos a um modelo queviabilize a hierarquiza-

ção de complexidadedentro do sistema e nos

diferentes níveis de gover-no, com recurso à tecnologia

de informação, como a umcartão inteligente com infor-

mações pessoais de saúde; criarnovos produtos e serviços; am-

pliar a competitividade no comple-xo industrial da Saúde; aumentar a

produção nacional em todos os setoresdesse complexo – destacando a sua im-

portância como grande gerador de empre-gos –; e garantir maior articulação entre o SUS

e o sistema de saúde suplementar, entendendoser possível também ampliar este último, sem ônus

significativo para o consumidor.

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44 DIGESTO ECONÔMICO ABRIL 2010

Introdução

(1) Apesar de não existir uma organização formal esteconjunto de pessoas estabelecia discussões organizadas e,portanto, esta é a razão do nome.

O texto deste artigo foi organizado em 11 seções. Aprimeira abrange aspectos históricos e a Seção 2aborda implicações do crescimento populacio-nal, da transição da estrutura etária e da transição

epidemiológica. A Seção 3 volta-se para o financiamento doSUS e a seguinte para a assistência prestada por este sistema. ASeção 5 trata do Sistema Suplementar e a assistência farmacêu-tica é analisada na Seção 6. As Seções 7 a 9 têm como temas asvacinas, a assistência hospitalar e os equipamentos médicos, e ocomplexo industrial da Saúde , respectivamente. A Seção 10, in-titulada Tempos de Renovar o SUS, apresenta uma série de pro-postas com esse objetivo, já referidas no resumo deste artigo. Aseção final sintetiza a conclusão da análise.

1. Aspectos Históricos

Durante a maior parte do século 20, a política brasileira desaúde foi pautada em dois grandes eixos. Um de assistência àsaúde dos trabalhadores com carteira assinada, como instru-mento de seguridade social, através dos Institutos de Assis-tência e Previdência (IAPs), constituídos com base nos gruposespecíficos de trabalhadores da indústria, comércio, serviçosbancários etc. O outro, voltado para a saúde coletiva ou saúdepública, era responsável pela atenção às doenças endêmicas(febre amarela, tuberculose, malária, hanseníase, esquistosso-mose etc.), ao controle de vetores, à internação de doentesmentais, e à realização de pré-natal e atividades de puericul-tura e vacinação, em áreas urbanas e industriais. (Gerschman eBorges dos Santos, 2006).

Esse modelo excluía a maior parte da população brasileira dequalquer garantia formal de assistência à saúde, com o que ficavadependendo da limitada rede de hospitais públicos e da beneme-rência das Santas Casas, dos hospitais filantrópicos e dos hospi-tais universitários para todo o atendimento médico necessário.

A transformação desse modelo se consolida na Constitui-ção de 1988 com a definição dos direitos constitucionais à saú-de e o estabelecimento do SUS de caráter universal, financiadopelo Estado – mediante a contribuição de empregadores, em-pregados e de toda a sociedade através de impostos. A criaçãodo SUS constituiu uma das maiores políticas de inclusão socialno Brasil, em especial para o trabalhador rural e para aquelesnão vinculados ao mercado formal de trabalho, sendo ummarco histórico de reconhecimento internacional.

A criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1988, ocor-reu em meio ao intenso processo de discussão e construção dasbases de redemocratização do País depois de mais de 20 anosde ditadura militar, mas é importante ter em conta que essemomento foi fruto de um longo trabalho na discussão de po-líticas de saúde pública e de assistência à saúde individual porprofissionais de diferentes organizações, em todo o País, queestabeleceu as raízes desse processo de mudança. Um impor-tante conjunto de atores constituiu o que se chamou de "Par-tido Sanitário", composto por profissionais de diferentes cam-pos do conhecimento e inseridos em diferentes órgãos públi-cos, em especial no Ministério da Saúde, secretarias estaduais

de saúde e em órgãos da previdência social (1 ). É importanteressaltar que esta discussão de mudança, por ocorrer durante aditadura militar, limita de maneira significativa a participaçãoformal das organizações representativas dos trabalhadores.

O processo de unificação das ações públicas de saúde se ini-cia, em algumas regiões, mediante acordos entre governos es-taduais e o Ministério da Previdência Social, através do Insti-tuto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social(INAMPS), no que se chamou, a princípio, de Ações Integra-das de Saúde (AIS) e a seguir de SUDS (Sistema Unificado eDescentralizado de Saúde), mas se torna efetivo, a partir de1990, com a Lei Federal 8080/90. Chamada de Lei Orgânica daSaúde, ela define as responsabilidades gerais das três esferasde governo e estabelece os modelos operacionais da universa-lização, descentralização e municipalização, e se complemen-ta com a Lei Federal 8142/90, que estabelece o modelo de fi-nanciamento, com participação da União, Estados e municí-pios. A mesma lei instituiu em seus artigos 2º e 3º o Fundo Na-cional de Saúde e a forma pela qual os recursos federais, para agestão do SUS, são administrados através do Fundo Nacionalde Saúde, mediante a transferência de recursos federais paraEstados, municípios e o Distrito Federal.

Durante quase todo oséculo 20, a política

brasileira de saúde foipautada em dois

grandes eixos: um deassistência à saúde dos

trabalhadores comcarteira assinada,

como instrumento deseguridade social, e

outro voltado à saúdepública, responsável

pela atenção àsdoenças endêmicas,como febre amarela,

tuberculose etc.

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45ABRIL 2010 DIGESTO ECONÔMICO

Desde então, o SUS vem se desenvolvendo e passando porimportantes transformações e mudanças. O aspecto mais mar-cante é o significativo avanço obtido na universalização doacesso à assistência a saúde, principalmente em decorrênciada descentralização de responsabilidades, atribuições e recur-sos da esfera federal para Estados e municípios, com a amplia-ção da base de financiamento, em especial pela inclusão de re-cursos municipais, antes praticamente inexistentes.

Os principais instrumentos de gestão do SUS são normas in-fra legais, denominadas Normas Operacionais Básicas do SUS(NOB), instituídas por meio de portarias ministeriais. As NOBsdefinem as competências de cada esfera de governo e as regraspara que Estados e municípios assumam novas responsabili-dades e atribuições para a efetiva implantação e ampliação daassistência do SUS. As NOBs representam a formalização dosacordos estabelecidos entre as três esferas de governo, que seprocessam na Comissão Gestora Tripartite (chamada simples-mente de Tripartite), na qual se reúnem representações formaisdo Ministério da Saúde, das Secretarias Estaduais de Saúde –estas representadas no por meio do Conselho Nacional dos Se-cretários Estaduais de Saúde (CONASS), e das Secretarias Mu-nicipais de Saúde, que têm como órgão representativo o Con-selho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (CONA-SEMS). As discussões e propostas se consolidam e operaciona-lizam por meio das Comissões Bipartites nos Estados comrepresentação das Secretarias Estaduais de Saúde e dos Muni-cípios, estes com representação nos Conselhos Estaduais de Se-

cretários Municipais de Saúde (COSEM). (Sousa, 2002).Nestes 20 anos de construção, apesar de todos os avanços e

conquistas e da ampliação da base de financiamento, o SUS vi-ve constante crise de financiamento, inicialmente pela perdade fontes financiadoras oriundas da Previdência Social, e quese acentuou no longo período de recessão econômica da déca-da de noventa. Essa crise levou, no ano 2000, à aprovação daEmenda Constitucional nº 29, que estabelece o mínimo percen-tual que cada esfera de governo deve aplicar em ações e ser-viços públicos de saúde, assim como as regras de aplicação derecursos para o período de 2000 a 2004. O Artigo 198 da Cons-tituição Federal diz que a Emenda deve ser regulamentada porLei Complementar, ainda não aprovada, que deverá ser reava-liada a cada cinco anos. Caso esta lei não seja aprovada, como éo caso atual, permanecem válidos os critérios da própriaEmenda Constitucional. Assim, a EC 29/2000 representou umavanço para ampliar o financiamento, sendo uma vitória dasociedade na vinculação orçamentária enquanto instrumentoda redução dessa instabilidade.

Arquivo AE Arquivo AE

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46 DIGESTO ECONÔMICO ABRIL 2010

(2) Carga de doença é um índice que define as condições de saúde deuma determinada população, e que leva em conta variáveis tais comoprevalência de doenças, a esperança de vida, tempo de vida perdidopor incapacidade e perdido por morte prematura, entre outras.

2. Crescimento populacional, transiçãoda estrutura etária e transição epidemiológica

A transição demográfica é uma característica comum aospaíses em desenvolvimento, em especial naqueles em que oprocesso de industrialização acelerada estabeleceu forte urba-nização com deslocamento de grandes contingentes popula-cionais de áreas rurais para as cidades. O Brasil, a partir dosanos sessenta do século passado, vem apresentando uma re-dução, ainda que lenta e com grande disparidade regional eem diferentes classes sociais, da taxa de fecundidade, da mor-talidade infantil e geral, com aumento da esperança de vidaem todas as classes sociais e em todas as regiões. Estas carac-terísticas causaram impacto significativo na diminuição davelocidade do crescimento populacional e profunda transfor-mação da pirâmide etária, com redução progressiva da pro-porção entre jovens e idosos. Todavia, ainda que mantidas es-tas características de redução de crescimento populacional, oBrasil somente alcançará uma posição estacionária por voltade 2063. (Oliveira, Albuquerque e Lins, 2004).

Assim, ainda é esperado um aumento significativo da popu-lação brasileira nas próximas décadas, parte pelos efeitos da fe-cundidade passada sobre a pirâmide etária da população, ca-racterizada pela grande proporção de mulheres em idade re-produtiva, o que viabiliza o aumento da população, apesar dosbaixos níveis de fecundidade atualmente existentes. As proje-ções mostram que em 2050 a população brasileira será de cercade 250 milhões de habitantes, a quinta maior do planeta, sendosomente menor que a da Índia, China, EUA e Indonésia. Oacréscimo previsto seria, portanto, de cerca de 60 milhões de ha-bitantes à atual população nos próximos 40 anos, ou seja, o equi-valente a 15 milhões de habitantes a cada dez anos, em média.Ainda que não seja uma explosão demográfica, é um crescimen-to populacional expressivo, principalmente quando se tem emconta que a rigidez estrutural da sociedade brasileira não é fa-vorável à mobilidade social, sendo possível afirmar que existegrande probabilidade de que a maioria dos nascimentos ocorrana população mais pobre. Esses resultados remetem a enormeresponsabilidade dos governantes na formulação de políticaspúblicas abrangentes de inclusão e acesso, em especial no setorsaúde, e que possam ir além da política de transferência de ren-da como principal instrumento de desenvolvimento social.

Com essas profundas transformações demográficas, desdeos anos 50 do século 20 elas levam o Brasil a situar-se numa si-tuação de "transição epidemiológica" – que é caracterizada pe-la mudança, em longo prazo, dos padrões de morbidade emortalidade da população brasileira. A transição epidemioló-gica é caracterizada por três modificações fundamentais: (i) asdoenças não transmissíveis (doenças crônicas, degenerativase causas externas, entre outras) substituem as doenças trans-missíveis (doenças infecciosas) como principais causa de mor-bidade e mortalidade; (ii) o grupo de indivíduos mais velhospassa a ser responsável pela maior carga de doenças e mortes(a mortalidade infantil deixa de ser um indicador sensível dascondições de saúde desta população) (2); e existe predominân-cia de doenças, em especial as crônicas, sobre a mortalidade,como principal carga de doenças desta população.

Ou seja, existe uma relação direta entre a transição demo-gráfica e a transição epidemiológica. Ao tempo em que a quedainicial da mortalidade concentra-se principalmente entre asdoenças infecciosas, beneficiando as faixas etárias mais jovensda população, que por viverem mais longamente, passam aconstituir um grupo mais suscetível ao risco de doenças crô-nicas e degenerativas, que implicam em longo tempo de uti-lização de serviços de saúde, em geral mais caros e dispendio-sos em termos de assistência.

É importante salientar que a transição epidemiológica tam-bém se expressa de maneira distinta entre as diferentes re-giões, pois as modificações nos padrões ocorrem ao mesmotempo em que persistem as doenças típicas dos países em de-senvolvimento, tais como a malária, a hanseníase, a leishma-niose, entre outras, e que apresentam padrões diferenciadosde ocorrência em diferentes regiões, atingindo, em geral, as po-pulações mais pobres.

Nestes 20 anos, apesar de todos os avanços, o SUS (SistemaÚnico de Saúde) vive constantes crises de financiamento.

Luiz Prado/Luz

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47ABRIL 2010 DIGESTO ECONÔMICO

3. O financiamentodo SUS

A Constituição de 1988introduziu o conceito deSeguridade Social com oespírito de consolidaruma base de financia-mento para todas asações previstas para a se-guridade, tendo comofonte de recursos as con-tribuições sociais fede-rais, recolhidas pelas em-presas sobre o lucro líqui-do (Fonte 151), sobre o fa-turamento (Fonte 153) esobre a folha de salários

(Fonte 154). É importante salientar que, apesar de recolhidas nafonte pelas empresas, todas essas contribuições e impostos são,de fato, pagos pelo consumidor, pois compõem as planilhas decustos sendo, portanto, parte do preço final.

Apesar de não existir vinculação no texto constitucionalaprovado em 1988, o artigo 55 das disposições transitórias es-tabelecia que até que fosse aprovada a Lei de Diretrizes Orça-mentárias (LDO), 30% (trinta por cento), no mínimo, do orça-mento da Seguridade Social deveria ser aplicado em ações vol-tadas para a saúde.

Durante o início da década de 90, apesar de as sucessivasLDOs estabelecerem a destinação de recursos para a saúde se-guindo as determinações desse dispositivo constitucional, aexecução orçamentária nunca chegava a atender ao volume derecursos previsto, sendo que a partir de 1994 foram suspensostodos os repasses do Ministério da Previdência Social para oMinistério da Saúde. Esta situação determinou não somente acriação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Fi-nanceira (CPMF), a partir de 1994, como levou à aprovação, em2000, da referida Emenda Constitucional 29, que vincula re-cursos de cada esfera de governo para a saúde, na proporçãoapresentada na Tabela 1.

Para o governo federal, a Emenda Constitucional 29, em seuartigo 77, previu que: (a) no ano 2000, o montante empenhadoem ações e serviços públicos de saúde no exercício financeirode 1999 acrescido de, no mínimo, cinco por cento; (b) do ano2001 ao ano 2004, o valor apurado no ano anterior, corrigidopela variação nominal do Produto Interno Bruto ( PIB). Apesarda determinação legal, o Ministério da Saúde, em que pese dis-por de recursos crescentes, não vem cumprindo essa determi-nação, conforme se observa na Tabela 2.

Após a edição da mesma Emenda Constitucional, houvesignificativa mudança na participação das diferentes esferasde governo no financiamento do SUS, com redução percen-tual do gasto federal sobre o gasto total e aumento propor-cional na participação de Estados e municípios, conforme seobserva na Figura 1, em função do quantitativo de recursosestaduais e municipais que passaram a compor o gasto total apartir dessa emenda.

Luiz Prado/Luz

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48 DIGESTO ECONÔMICO ABRIL 2010

Finalmente, quando se comparam as despesas do Brasil emsaúde com outros países, verifica-se que o quantitativo de re-cursos é significativamente mais baixo que os países desenvol-vidos, existindo, portanto, enorme dificuldade no atendimen-to à universalidade e integralidade prevista na norma consti-tucional, conforme se demonstra na Tabela 3.

Os números demonstram que o Brasil possui, dentre os paí-ses apresentados, o menor percentual do PIB em saúde e a me-nor despesa per capita, com percentual público frente ao totaldas despesas em saúde igual aos dos Estados Unidos, aondeainda prevalece o modelo liberal de mercado para acesso e fi-nanciamento, conquanto mudanças recentemente acontece-ram por iniciativa do governo de Barack Obama.

No que tange às despesas públicas totais, é possível incluircomo despesa pública a renúncia fiscal referente ao descontointegral do Imposto de Renda das despesas privadas com saú-de, que representaram cerca 4, 7 bilhões em 2008, mas aindaassim, o percentual público estaria ao redor de 50%.

Estes números demonstram o quanto é necessário, não so-mente o crescimento econômico, como também uma profundarevisão das políticas de financiamento da saúde de forma aampliar os gastos de forma significativa.

4. A assistência à saúde

No campo da atenção direta à saúde prestada pelo setor pú-blico ao cidadão, o avanço é absolutamente indiscutível quan-do se consideram os números apresentados na Tabela 4.Aliás, é possível afirmar que, apesar das filas e das dificulda-des, o acesso universal a diferentes níveis de complexidade daassistência tem sido atingidos, ainda que com diferenças con-sideráveis entre as regiões e unidades federadas.

Todavia, ao herdar do INAMPS o modelo de atenção, oSUS herdou também sua lógica de financiamento. Dessaforma, o SUS atua na área da assistência à saúde em caráteruniversal, utilizando-se essencialmente de um modelo deatenção criado e organizado para prestar assistência a umaparcela limitada da população.

Esse modelo inclui o pagamento de serviços a hospitaisconveniados filantrópicos ou privados pela unidade de ser-viços prestados, o que determina grande distorção no quan-titativo de recursos alocados em diferentes regiões, commaior concentração de recursos nos locais de maior concen-tração da complexidade da assistência. Esta herança vemsendo progressivamente superada pela implantação de mo-delo assistencial focado na atenção básica, através do Progra-ma de Saúde da Família, e pelo repasse direto de recursos aosmunicípios com base na população e em alguns indicadoresde saúde, de maneira a fortalecer a redistribuição de recursospara áreas mais carentes.

5. A Saúde Suplementar

A Constituição definiu que o Sistema de Saúde no Brasil éaberto para as atividades privadas, em caráter suplementar.O significado do caráter suplementar é extremamente discu-tido, pois na verdade as atividades do setor privado, em

grande parte, conformam um subsistema complementar aoSUS, e não um totalmente à parte.

A atividade privada de assistência à saúde pode ser divididaem dois grandes grupos: (a) a assistência à saúde, prestada pelosplanos ou seguros de saúde e pagas pelas empresas ou famílias;e (b) a atividade exclusivamente de atenção, prestada de formaliberal no mercado e paga diretamente pelos usuários.

Os planos de saúde surgiram na década de 60 do século 20,nos grandes centros urbanos de rápida industrialização, comoinstrumento alternativa aos IAPs para ampliar a cobertura equalidade da assistência ao trabalhador e sua família. Mesmo

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49ABRIL 2010 DIGESTO ECONÔMICO

depois da criação do SUS, de forma mais ampla permanecemcomo alternativa, ainda que com grandes disparidades no cus-to, na dimensão e na qualidade da assistência prestada aos as-sociados ou segurados.

Para estabelecer mecanismos de regulação das atividadesdos planos de saúde, foi criada em 2000 a Agência Nacional deSaúde Suplementar (ANS), que estabelece as normas e fisca-liza sua aplicação para a operação e sustentabilidade dos pla-nos de saúde em todo o País.

Dados da ANS, apresentados na Tabela 5mostram que noBrasil mais de 39 milhões de pessoas têm acesso a planos pri-vados, o que representa cerca de 20% da população. Desses,quase 80% dos beneficiários é parte de planos coletivos e 20%pertencentes a planos individuais, o que determina uma con-centração de cobertura nas pessoas com idade até 50 anos, ouseja, pessoas em fase produtivas empregadas e com filhos.

Estas características determinam uma relação direta com o de-

senvolvimento econômico das localidades onde se concentram oprocesso industrial e de serviços, evidenciando uma maior cober-tura nas áreas metropolitanas das regiões Sudeste e Sul, com baixacobertura em áreas rurais e do Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

Existe, portanto uma dupla concentração de serviços desaúde nas áreas de maior desenvolvimento econômico, os ser-viços do SUS e os do sistema suplementar, em detrimento dasáreas rurais do Norte e Nordeste e Centro-Oeste, com tendên-cia de perpetuação destas diferenças.

Vale ressaltar que a contribuição privada, ainda que isentada incidência de Imposto de Renda, não isenta os contribuin-tes, sejam pessoa física ou jurídica, das contribuições e taxaspara a seguridade social, tornado-os iguais a todos os outroscidadãos no acesso ao serviço assistencial público universal.

6. Assistência Farmacêutica

A mesma herança do passado que praticamente condicio-na o modelo assistencial é também determinante das polí-ticas de assistência farmacêutica do SUS. Até a criação doSUS, o acesso a medicamentos era possível de três formas:(a) os trabalhadores do mercado formal de trabalho, com al-gum financiamento pelos IAPS e pelo antigo INAMPS,quando internados; (b) a população em geral que tinha aces-so aos medicamentos fornecidos pelo Ministério da Saúdepara o tratamento das moléstias endêmicas e, portanto de"interesse estratégico" (tuberculose, hanseníase, maláriasetc.), para alguns medicamentos utilizados nos postos depuericultura para atendimento de gestantes e crianças, e aassistência farmacêutica nos hospitais especializados (saú-de mental, tuberculose, hanseníase etc.); (c) aquisição diretapelo consumidor em farmácias.

Somente no final de década de setenta, após a criação daCentral de Medicamentos (CEME), é que se iniciou um pro-

Todos os sistemasde saúdeapresentam umcrescimento dedespesas commedicamentosacima docrescimento dequalquer indicadoreconômico, comoo PIB, não sendodiferente no Brasil.

Moacyr Lopes Jr./Folha Imagem

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50 DIGESTO ECONÔMICO ABRIL 2010

cesso de ampliação da as-sistência farmacêutica,a inda que lento , paraatendimento de moléstiasrelacionadas à atençãobásica em saúde.

Hoje, o SUS, para a ges-tão da assistência farma-cêutica, incluindo o fi-nanciamento, divide asações em três grupos: (a)medicamentos da Aten-ção Básica – financiadoscom recursos da União,Estados e municípios, pa-ra o atendimento da gran-de maioria das doençasagudas e das doenças crô-nicas mais frequentes eprevalentes; (b) medica-mentos estratégicos, ad-quiridos e distribuídospelo Ministério da Saúdepara tratamento de mo-léstias endêmicas de altaprevalência e de interessepúblico – tuberculose,hanseníase, AIDS, hepa-tites, diabetes, planeja-mento familiar, entre ou-tras; e (c) medicamentosexcepcionais, um nomeh e r d a d o d o a n t i g oINAMPS, que o utilizavapara o fornecimento demedicamentos ambula-toriais não padroniza-dos, para moléstias debaixa prevalência, em ge-r a l c rô n icas e para asquais o tratamento é com-plexo e de a l to cus to .(CONASS, 2007).

O custo crescente dad e s p e s a c o m m e d i c a-mentos é preocupação de caráter mundial. Todos os siste-mas de saúde apresentam um crescimento de despesas commedicamentos acima do crescimento de qualquer indica-dor econômico, como o PIB, não sendo diferente no Brasil.Os gráficos das Figuras 2 e3apresentam o crescimento dasdespesas totais de medicamentos ambulatoriais (os utiliza-dos nos hospitais são cobertos pelo pagamento da Autori-zação de Internação Hospitalar) e a taxa de crescimento des-sas despesas por parte do Ministério da Saúde, nos últimosanos (Vieira e Mendes, 2007) .

O mesmo crescimento se observa nas despesas estaduais emunicipais, sendo, portanto, uma preocupação de todos os

gestores em todos os níveis. Apesar deste crescimento, 70% daprodução nacional de medicamentos é vendida em farmácias,sendo o principal item de despesa, com recursos próprios, dascamadas mais pobres da população.

Finalmente, na questão dos medicamentos, assume caráterrelevante a ação da Justiça na concessão de direito de acesso,mediante fornecimento pelo SUS por força de decisão judicial,a cidadãos em geral portadores de doenças graves e devasta-doras. O fornecimento desses medicamentos novos, muitasvezes sem comprovação de eficácia superior quando compa-rados com similares já existentes, representam hoje custo sig-nificativo para secretarias estaduais e municipais de Saúde.

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51ABRIL 2010 DIGESTO ECONÔMICO

O Instituto Butantan ea Biomanguinhos/FIOCRUZ produzem

75% das vacinasutilizadas no País.

Essa produção, alémde garantir as vacinas

necessárias paraatender a população,exerce forte poder deregulação de preços

de mercado, gerandoeconomia para o

Ministério da Saúde.

Diomício Gomes/O Popular1

7. Vacinas

As vacinas, de forma diferente dos medicamentos, a partir dosanos 80 e em função de crise de abastecimento provocada pelasaída do mercado de produtores privados existentes no Brasil,são objeto de política específica de acesso e produção. A institui-ção do Programa Nacional de Imunização (PNI), em 1973, ummodelo internacional de ação pública na gestão da prevenção eerradicação de doenças passíveis de prevenção por vacinas, e doPrograma Nacional de Auto-suficiência em Imunobiológicos, nadécada de 80, houve grande expansão da pesquisa e produçãopor intermédio de instituições públicas, em especial o InstitutoButantan, do governo do Estado de São Paulo, e da Biomangui-nhos/FIOCRUZ, do governo federal, permitindo que 75% dasvacinas utilizadas sejam produzidas por estas instituições. Valeressaltar que essa produção, além de garantir vacinas necessárias

ao programa, também exerce forte poder de regulação de preçosde mercado, gerando economias significativas para o Ministérioda Saúde na compra de vacinas no mercado privado nacional.

8. Assistência Hospitalar e Equipamentos Médicos

A tendência progressiva de especialização das atividadesprofissionais no campo da saúde, seja no âmbito das atividadesmédicas diagnósticas e assistenciais ou das equipes multiprofis-sionais de saúde, tem provocado permanente aumento no custoda assistência, com impacto tanto para o setor público quanto pa-ra o privado, principalmente no que diz respeito à disponibili-dade de recursos de investimento. Os instrumentos de tecnolo-gia da informação para a gestão e assistência, incluindo a tele-medicina (por exemplo, o prontuário médico eletrônico, prescri-ção online, controles estatísticos de processos e procedimentos,diagnósticos a distância, entre outros) poderão, em médio prazo,ser instrumentos de melhoria da qualidade e de redução de cus-tos, mas no curto prazo exigem grande volume de investimen-tos. Para tratar desta questão, o Ministério da Saúde constituiu aComissão para Incorporação de Tecnologias, composta por or-ganismos do próprio ministério e associada a uma Rede Nacio-nal de Avaliação Tecnológica (RENAST), composta por gruposacadêmicos e de institutos de pesquisa em saúde de todo o País,

Thiago Bernardes/LuzArquivo AE

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52 DIGESTO ECONÔMICO ABRIL 2010

para realizar avaliação das diferentes tecnologias passíveis deincorporação, tanto pelo setor público, quanto pelo privado. Aavaliação tecnológica é hoje um instrumento utilizado em mui-tos países para, com base em estudos de custo de efetividade, in-dicar o uso racional de processos e equipamentos para melhoriada qualidade com custos adequados da assistência.

9. O Complexo Industrial da Saúde

Todos os componentes acima descritos conformam conjuntodo que conceitualmente se denomina Complexo Industrial daSaúde. Assim, ele abrange um conjunto de atividades produ-tivas, de compra e venda de bens e serviços e de gestão da ciênciae tecnologia, associada ao desenvolvimento do setor. Mais ain-da, dentro da lógica de mercado, é um grupo de atividades queconforma um mercado peculiar, dadas suas características in-trínsecas, como a distribuição desigual de informação com in-capacidade de escolha do consumidor final, entre outras.

O Ministério da Saúde afirma que o déficit de balança co-mercial desses produtos é de cerca de US$ 5 bilhões ao ano, emespecial pela importação de produtos e equipamentos degrande valor tecnológico agregado, tais como os imunobioló-gicos, fármacos e medicamentos e equipamentos médicos dediagnóstico por imagem. (Gadelha, 2006) .

Considerando a relevância social da assistência à saúde e arepercussão econômica que ela tem tanto para as instituiçõespúblicas e privadas quanto para o cidadão, é necessário a de-finição de políticas estratégicas de longo prazo, que permitamassociar uma política de saúde a um modelo assistencial e a umprocesso de regulação de oferta e acesso. Essa política deve tam-bém garantir qualidade e disponibilidade em sintonia com o de-senvolvimento e produção de novas tecnologias em saúde, con-siderando ainda que o complexo industrial da Saúde é um im-portante gerador de desenvolvimento, renda e emprego.

10. Tempo de Renovar o SUS

Cada um dos aspectos anteriormente abordados deve ser ob-jeto de estudos aprofundados com vista ao estabelecimento depolíticas públicas, apoio ao desenvolvimento econômico demercado e gestão de ciência de tecnologia e informação, entreoutras políticas. Contudo, é possível, de maneira sucinta, apon-tar aspectos capazes de serem instrumentos de renovação.

10.1. Direitos e Deveres

O primeiro é o preceito constitucional de ser a saúde um "De-ver de Estado e um Direito do Cidadão". Não resta dúvida de queos direitos individuais e coletivos de direito à saúde são um dosinstrumentos fundamentais da cidadania e de que é dever do Es-tado propiciar, por todos os meios disponíveis, a possibilidadedo exercício desse direito de forma equânime. Por outro lado, odesenvolvimento do conhecimento sobre os determinantes econdicionantes de saúde demonstra que esse direito deve estarassociado a algumas responsabilidades individuais com a pró-pria saúde e com a saúde coletiva. Em especial, com relação aoambiente, para que a saúde seja um bem comum de direito de

todos. Esta não é uma questão simples, em função dos direitosindividuais de escolha e de comportamento, mas o processo deredução do tabagismo tem mostrado que é importante a ação doEstado no fornecimento de todas as informações possíveis paraque cada um possa escolher entre fumar e não fumar. Mas, aindaque faça a escolha individual, não é direito de alguns prejudicara saúde de terceiros por força de sua escolha. Assim, é preciso dis-cutir de forma ampla e coletiva os limites do dever do Estado e aamplitude das responsabilidades de todos e de cada um.

10.2. Ampliação do Financiamento e o Investimento

Mesmo que se questione a qualidade e a dificuldade de acesso,não resta dúvida de que o SUS faz muito com poucos recursos. Ocrescimento da economia é fator fundamental para que o finan-ciamento do setor saúde possa ser ampliando de forma signifi-cativa, mas é importante que seja regulamentada e cumprida anorma constitucional de vinculação de recursos para o setor e queseja cobrada a responsabilidade dos gestores, nos três níveis degoverno, pela aplicação devida e correta dos recursos disponíveispara a saúde. Soma-se a isto a necessidade de serem estabelecidosmecanismos mais equitativos de redistribuição de recursos deforma a não aprofundar as diferenças regionais nos indicadoresde saúde em função da injusta redistribuição de recursos. É muitoimportante que seja estabelecida uma estratégia para a definiçãodos montantes a serem gastos nos próximos anos e sua distribui-ção regional. Essa distribuição deve ser realizada como um pro-cesso de redistribuição da capacidade de atendimento, de formaa conseguir uma efetiva descentralização do sistema.

Se a manutenção das atividades atuais da rede ambulatorial ehospitalar é uma questão que está longe de ser trivial, mais com-plexa ainda é a questão do investimento em capacidade insta-lada para o atendimento. Isto envolve tanto as áreas físicas dehospitais e ambulatórios quanto os equipamentos necessáriospara o seu funcionamento. O último grande movimento de in-vestimento massivo em capacidade de atendimento ocorreu en-tre 1998 e 2002. Como resposta à forte crise vivida em meados dadécada de noventa, foi obtido um grande financiamento inter-nacional, com recursos do Banco Mundial e do Banco Interame-ricano de Desenvolvimento. Somando-se a esse financiamentorecursos próprios do Ministério da Saúde, os investimentos su-peraram R$ 1 bilhão, a preços da época. Atualmente, a monta-gem de outro pacote de investimentos no setor se faz crucial.Não há outra maneira de modernizar o sistema como um todo.As novas tecnologias e os equipamentos com grau de sofistica-ção indicam que cerca de R$ 2 bilhões seriam necessários pararepor a capacidade de atendimento de forma a atualizá-la dospontos de vista quantitativo e tecnológico.

10.3. Atenção Básica comoPorta de Entrada do Sistema

O Brasil apostou no programa Saúde da Família, por algunsanos, para garantir uma aproximação entre o sistema de saúde ea população. Nos últimos anos, essa opção entrou em compassode estagnação: nem ganhou existência sistêmica, nem experi-mentou reversão. É fundamental que o Saúde da Família seja

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adequada às realidades regionais e municipais, e encontre arti-culação com o conjunto do sistema. Os ganhos envolvidos nasgrandes cidades para o conjunto da assistência são expressivos,tanto no tocante à chegada do paciente à rede ambulatorial e hos-pitalar, quanto no monitoramento do paciente no período de tra-tamento. Mas é fundamental dar poder, dentro do sistema, aomédico de família, para que ele seja a garantia de acesso do pa-ciente aos diferentes níveis hierárquicos do sistema, como ins-trumento de garantia da integralidade de assistência à saúde.

Nas regiões não metropolitanas o papel do Saúde da Famíliaé outro, mas não menos importante. As equipes de saúde são areferência exclusiva para populações que não têm a possibili-dade de chegar rapidamente a uma unidade de emergência ouambulatório. A equipe cumpre a função, sempre, do primeiroatendimento, e é responsável pelo acesso do paciente a outrossistemas de saúde (municipais ou estaduais). Logicamente, istoé algo mais eficiente e de menor risco à saúde do que tentar cons-

truir um hospital (sem condições para funcionar) em cada cida-de, mas exige que a equipe tenha condições de responder e ar-ticular atendimentos complexos com os outros sistemas.

Vale frisar, também, a grande importância da articulação en-tre as equipes do Saúde da Família e as unidades de atendi-mento ambulatorial de especialidades e média complexidade.A forte expansão destas, que vem ocorrendo em diversas rea-lidades urbanas, agora com apoio federal, não terá o efeito de-sejado se não houver a necessária conexão com a atenção bá-sica, uma função a ser desempenhada pelos médicos de famí-lia, em articulação com as unidades ambulatoriais.

10.4. Regulação, Modelo de Assistênciae o Cartão SUS

É impossível que seja ofertado tudo para todos em todos oslugares a qualquer momento e, portanto, a racionalidade daaplicação dos recursos somente será alcançada se o SUS pu-der garantir o acesso aos serviços para aqueles que mais pre-cisam no momento em que dele necessitam. Para isto é obri-gatória a implantação de serviços de regulação associados aum modelo de assistência que viabilize a hierarquização decomplexidade dentro do sistema e nos diferentes níveis degoverno. A tecnologia de informação dispõe de instrumentospara que isso seja possível, ainda que com investimentos sig-nificativos. O cartão inteligente com informações pessoais desaúde, a utilização de Registro Pessoal de Informações deSaúde em plataformas da Web, a utilização de marcação econfirmação de consultas por meio telefônico e "torpedos", ouso intensivo de instrumentos de tele diagnóstico e de segun-da opinião a distância em plataformas de vídeos via Web, oacompanhamento da adesão aos tratamentos medicamento-sos de doenças crônicas, capacitação técnica a distância, e a

O atual estágiodo conhecimentono campo dosfármacos eda biotecnologiaaponta para que,em muito poucotempo, sejapossível aexistência deprodutosespecíficos parapopulaçõesespecíficas.

Renato Stockler/Folha Imagem

Fábio Motta/AE

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educação do cidadão, entre outras, são exemplos das possi-bilidades de regulação e de estabelecimentos de modelos deatenção de acordo com as especificidades de cada região. Va-le notar que o Brasil tem uma capacidade instalada de aten-dimento (recursos humanos e materiais) bastante expressi-va. A grande questão é reduzir a sua ociosidade e esta é umaquestão intrinsecamente gerencial.

Considerando as dimensões geográficas continentais, anecessidade de padronização nacional, a capacitação técni-ca e o volume de recursos de investimento e custeio que sãoexigidos para implantação e operação deste tipo de serviçoem âmbito nacional, é possível que estes serviços possam serobjeto de parcerias público-privadas em estratégias de pres-tação de serviços de longo prazo. Há que se compreenderque o serviço público não é necessariamente estatal, e há for-mas de contratualização com entidades privadas ou sem finslucrativos, que podem representar grande melhoria geren-cial e em expansão da capacidade de atendimento sem gran-de incremento de recursos.

Importante lembrar que o sistema de saúde brasileiro aindacarece de instrumentos para coleta e utilização das informa-ções de forma estratégica, especialmente na vigilância em saú-de. O Cartão Nacional de Saúde, o Cartão SUS, já conta commais de 150 milhões de cidadãos cadastrados sem que as in-formações sejam utilizadas para o monitoramento das condi-ções de saúde da população e para a melhoria de gestão. In-felizmente, o Ministério da Saúde naufraga em questões me-nores, e não realizou a difusão dos sistemas abertos, como odesenvolvido pela Prefeitura de São Paulo. Os ganhos em mo-nitoramento e as condições que seriam abertas para o aparatoregulador em nível local e regional poderiam ampliar em mui-to a capacidade de atendimento da rede hoje instalada.

10.5. Novos Produtos e Serviços

Os instrumentos disponíveis de avaliação de novos pro-

dutos e processos com a utilização de avaliação do custo efe-tividade, associados à ampla capacitação profissional paracompreensão e prática da Medicina baseada em evidências,são os principais instrumentos para a regulação da incorpo-ração de novas tecnologias. Mas é importante ressaltar que osetor produtivo já reconhece o esgotamento do modelo de"Blockbuster" – em que produtos únicos são consumidos emcaráter extensivo e intensivo em âmbito mundial –, em fun-ção não somente dos problemas recentes com novos produ-tos que tiveram que ser retirados do mercado, como tambémpela demanda de governos, de planos de saúde, da sociedadee das agências de regulação, de produtos eficazes, seguros esustentáveis. Sustentabilidade neste caso significa a utiliza-ção de produtos financiados pelos sistemas públicos nacio-nais, tanto em países desenvolvidos quanto em países em de-senvolvimento. A pandemia do vírus influenza A H1N1 é umexemplo da necessidade de viabilidade econômica de usopor todos, a preços acessíveis, e da possibilidade de ganhossustentáveis pelos produtores.

O atual estágio do conhecimento no campo dos fármacos eda biotecnologia aponta para que em muito pouco tempo sejapossível a existência de produtos específicos para popula-ções específicas. Isto obriga a que os Sistemas de Apoio ao de-senvolvimento de ciência e tecnologia no Brasil (CNPq, FI-NEP, fundações estaduais, fundos setoriais etc.), estejamatentos para incentivar e apoiar o desenvolvimento de pro-jetos nacionais que permitam nossa independência tecnoló-gica. Este não é um projeto somente de governo, e demanda aexistência de um parque produtivo disposto ao investimentode capital de risco de médio prazo. A Lei de Inovação é umpoderoso auxiliar para a relação público-privado na gestãode tecnologia, mas ainda existem barreiras burocráticas e deinterpretações legais que permitam uma circulação mais li-vre e efetiva de conhecimento, de pessoas, recursos e produ-tos entre a academia produtora de conhecimento (predomi-nantemente pública) e o setor produtivo.

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10.6. O Complexo Industrial da Saúde,o Emprego e a Qualificação Profissional

Como já foi dito, o déficit da balança comercial neste setor éenorme e crescente. O governo federal estabeleceu um progra-ma intersetorial (o PAC-Saúde) para estimular a competitivi-dade e ampliar a produção nacional em todos os setores docomplexo, com vistas à redução do déficit e alcance da auto-suficiência. Todavia, como tantos outros exemplos do PAC, aspropostas são muito mais retóricas do que práticas. Muitopouco avanço (incluindo aplicação de recursos) ocorreu tantono setor público quanto no apoio ao setor privado.

É necessário que a sociedade, e em especial o setor produ-tivo, estejam atentos para cobrar transparência e eficácia nodesenvolvimento de projetos que definam o futuro de médio elongo prazo, mais ainda porque eles transcendem o tempo deum governo, sendo, portanto projetos de Estado.

A importância do setor Saúde não decorre unicamente do seugrande poderio indutor sobre a atividade econômica e de seuimpacto nas contas comerciais com o resto do mundo. O empre-go gerado pelo setor saúde é crucial no que toca aos índices ge-rais de emprego e desemprego, além de cobrir um amplo espec-tro de profissões e níveis de escolaridade e de rendimento. Con-forme mostra a Tabela 6, no final de 2007, o setor Saúde comoum todo era responsável por nada menos que 10,5% da força detrabalho formal do Brasil, segundo a RAIS. Seus serviços res-pondiam por 3,25 milhões de empregos, enquanto o comérciovarejista e atacadista de produtos de saúde era responsável por500 mil empregos. A indústria (com destaque para medicamen-tos e equipamentos), os operadores de planos e seguros, a edu-cação e os profissionais de saúde envolvidos em outros segmen-tos da atividade econômica, completavam os 3,95 milhões deempregos formais gerados pelo complexo da saúde.

Não há dúvida de que o setor Saúde pode ser um polo gera-dor de emprego de grande relevância para os próximos anos. Deum lado, empregos para profissionais de alta qualificação de-

vem continuar em crescimento exponencial, alavancados pelacontínua introdução de novos medicamentos, equipamentos emateriais e pelos novos serviços envolvidos no cuidado à saúde.De outro lado, as posições para trabalhadores de nível de qua-lificação menor serão significativamente impulsionadas pelasnovas exigências em termos de capacitação e pelas políticas pú-blicas, que apostam na ampliação da prevenção e da vigilânciaem saúde. Estas tendências deverão reforçar as estratégias desaúde da família, com ênfase para a equipes de saúde, e na qua-lificação dos profissionais da área ambulatorial e hospitalar, no-tadamente os técnicos em enfermagem e nas atividades de ope-ração de equipamentos de diagnóstico.

A possibilidade que se abre para a expansão de emprego nosetor terá, no entanto, que ser seguida de maior capacidadedo aparelho formador. Isto, em três dimensões: a quantidade,a necessidade de novos programas de capacitação, relaciona-dos às inovações, e o incremento da qualidade de cursos e en-tidades formadoras. Tradicionalmente, o setor Saúde aco-lheu trabalhadores com baixíssimo nível de formação, dosmais baixos ao superior. O exemplo mais agudo foi dado pe-los atendentes de enfermagem, cuja participação era domi-nante nos hospitais até meados dos anos noventa. Foi precisoque o Ministério da Saúde lançasse um programa de forma-ção em larga escala, com recursos financiados pelo Banco In-teramericano de Desenvolvimento e pelo Fundo de Amparoao Trabalhador, para que a qualificação, ainda de nível de es-colarização fundamental, fosse estendida a quase 300 milprofissionais de saúde.

Vale dizer, a montagem de estratégias governamentais queconsigam articular recursos públicos, entidades públicas e oaparelho formador em geral é crucial para que a qualificaçãonecessária seja levada aos profissionais de saúde. É a única for-ma de transformar oportunidades de emprego em empregoefetivo. Ao mesmo tempo, é a forma de viabilizar um sistemade saúde com força de trabalho qualificada, em condições deenfrentar as inovações em todos os campos da atenção.

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10.7. Saúde Suplementar:articular o público e o privado

A busca da eficiência na aplicação de recursos, públicos e pri-vados, para atendimento das necessidades sociais, é o papel maisrelevante que um governo tem a realizar. No caso da saúde, em-bora os recursos públicos e privados sejam de magnitudes seme-lhantes, há que se considerar a absoluta falta de composição entreambos. A o sistema público sempre procurou desconhecer a exis-tência de um privado, enquanto este último procurou viver deforma autônoma e desregulada e, mais ainda, tirando benefíciosdo princípio constitucional da universalidade do acesso, empur-rando pacientes onerosos para oatendimento do SUS.

A ANS tem exercido seu poderde regulação como instrumentode ampliação e atualização dosplanos, no que tange à coberturade novos procedimentos diag-nósticos e terapêuticos disponí-veis. Todavia, é possível ampliar a saúde suplemen-tar sem ônus significativo para o consumidor.

Uma solução economicamente mais eficienteestá por vir e ela depende de propostas regu-latórias e assistenciais que renovem a rela-ção entre o público e o privado. Um deli-neamento possível seria a segregaçãodo alto risco e da transferência de pa-cientes dos planos e seguros desaúde para o setor público. Osplanos deveriam tomar, mês amês, os recursos atuarialmen-te indicados (e cobrados) paracasos de alto custo, e realizar o depósito dosmesmos numa entidade pública de resseguro. Identificada a ne-cessidade de tratamento, a operadora de saúde poderia fazer osaque dos recursos ou manter acordo com prestadores de ser-viço do SUS para viabilizar o atendimento. O custeio estaria pre-viamente garantido e o risco estaria repassado à entidade de res-seguro. Para o SUS, o ganho seria sair da polêmica do ressarci-mento e garantir seu financiamento prévio.

Um efeito fundamental para as operadoras de planos e segu-ros seria a redução de risco relativo a eventos de alto custo, tor-nando possível um rebaixamento dos prêmios de seguro atuais,o que possibilitaria a expansão dos segurados e, o que é maisimportante, uma nova redução de risco, dada a ampliação dapopulação atingida. Em verdade, é um circuito virtuoso, onde asaúde suplementar ganha condições de expansão a níveis infe-riores de renda, relativamente aos atuais. Note-se que não se tra-ta de algo novo, pois a existência do Medicare nos EUA é jus-tamente a forma que aquele país encontrou para reduzir os ris-cos e custos do sistema privado de saúde americano (3).

O sistema privado de saúde padece de outro problema espe-cialmente relevante para o beneficiário. A competição entreoperadoras é restrita por barreiras derivadas do aparato regu-latório e das práticas empresariais. Enquanto os segurados pa-gam mensalidades que entendem como uma espécie de pou-

pança, na ótica do conjunto de sua vida, as operadoras têm umalógica de curto prazo. Para elas, importa o desempenho correnteentre os gastos com o conjunto dos segurados e suas receitas ge-rais. A solvência de longo prazo da operadora vai depender, afo-ra o alto risco, da manutenção de um perfil etário de seguradoscompatível com despesas estáveis. Mas esta manutenção, nolongo prazo, dependerá de uma série de fatores.

O estabelecimento da obrigatoriedade de manutenção de re-servas individuais, correlacionadas aos pagamentos efetuadosna trajetória de vida do segurado, seria uma forma de garantir aaproximação entre a expectativa de este último estar realizandouma poupança e a forma de gerir os recursos da operadora de

saúde. Um fundo de solvên-cia gerido pela ANS poderiaser a forma institucional paraeste arranjo. Com isto, pode-ria ser viabilizada a possibili-dade de migração entre pla-nos – a portabilidade –, elimi-nando as travas relativas aocumprimento de períodos decarências. Esse instrumentode reforço à competitividadeem preços e qualidade gera-

ria credibilidade no sistema eavanços na gestão. No que tan-

ge à ampliação dos planos, éoportuna a discussão da renúncia

fiscal para os planos de benefício far-macêutico, da mesma forma que para

os planos de saúde, em especial para ofornecimento de medicamentos para

doenças crônicas (hipertensão, diabetes,asma etc.), como instrumento de redução da

demanda pública por estes serviços e para re-duzir as complicações destas doenças a longo prazo.

De toda forma, um segmento privado fortalecido e com capa-cidade de aperfeiçoar a aplicação de seus recursos deve implicarem melhoria no segmento público. De um lado, mais recursos se-riam liberados para ampliar o acesso às populações mais caren-tes, especialmente pela melhoria da atenção básica. De outro, oordenamento do acesso aos cuidados de alto custo, com o com-promisso efetivo de recursos do sistema privado, traria mais con-dições à viabilização de um acesso melhor por parte de pessoasque têm acesso à porta de entrada do sistema, mas que se perdemem intermináveis filas de acesso aos serviços mais complexos.

Não há dúvida de que a dinamização da saúde ofertada porentidades privadas depende de proposições novas que consi-gam adequar a capacidade de assumir riscos de estruturas pri-vadas aos custos envolvidos nos chamados eventos catastró-ficos. Não há como deixar de inserir o Estado na regulação des-

(3) O Medicare transfere dos planos ao governo americano aresponsabilidade pelo atendimento dos idosos. Ou seja, o customais pesado, em geral, não é arcado pelos seguros de saúde,mas é transferido ao governo.

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ses custos e na gestão dos riscos. Aliás, isso já ocorre, na maisinformal das operações, por exemplo, quando um seguradode operadora privada, diagnosticado como soro positivo paraAIDS, vai exercer seu legitimo direito de buscar os medica-mentos necessários junto ao serviço público mais próximo.

A Figura 4 ilustra uma forma de distribuição dos recur-sos arrecadados junto aos atuais segurados. A parte de cimada figura seria carreada ao resseguro para alto risco. A par-cela intermediária das contribuições em fase superavitáriaseria direcionada ao fundo de solvência. A parte mais im-portante das contribuições ficaria de posse da operadorapara sua atividade corrente de assistência.

11. Conclusão

Depois de duas décadas de construção do SUS, muitos su-cessos podem ser contabilizados. Talvez o mais emblemáticoseja o fato de que uma pessoa qualquer, mesmo que dos estra-tos inferiores de renda, tem chances reais de receber um tra-tamento de alto custo e grande complexidade, como é o caso daAIDS ou dos transplantes. Em poucos países no mundo essarealidade pode ser verificada. Logicamente, a gestão do siste-ma, sua cobertura e as formas de relacionamento entre os ges-tores ainda merecem grande aperfeiçoamento.

Embora o avanço do setor público tenha sido o grande feitodo setor saúde nos últimos anos, o desenho de novas formas deconvivência entre o público e o privado pode significar um no-vo salto de qualidade para ambos. A capacidade do Estado emidentificar os formatos mais favoráveis, e que potencializem aracionalidade da aplicação de recursos e de uso do sistema, de-cidirá como ele poderá avançar no atendimento ao conjunto dapopulação. Do mesmo modo, essa capacidade de articulaçãoserá crucial para definir o ritmo de avanço de um setor essen-cial para o desenvolvimento econômico.

Embora o avançodo setor públicotenha sido ogrande feito dosetor saúdenos últimos anos,o desenho denovas formasde convivênciaentre o públicoe o privadopode significarum novo saltode qualidadepara ambos.

Ricardo Padue/AFG

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Newton Santos/Digna Imagem

José RobertoAfonsoEconomista decarreira do BancoNacional deDesenvolvimentoEconômico eSocial (BNDES),mestre pela UFRJ(UniversidadeFederal do Rio

de Janeiro) e doutorando do Institutode Economia da Unicamp (UniversidadeEstadual de Campinas). Atualmente estácedido ao Senado Federal. Muito destetrabalho decorre de outros desenvolvidosem parceria com os economistas SérgioGobetti, Geraldo Biasoto Jr., GabrielJunqueira e Kleber Castro. As opiniõesaqui expressas são de exclusivaresponsabilidade do autor e não dasinstituições a que está vinculado.Elaborado com base em informaçõesdisponíveis até 31/03/2010.

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O Nó dosInvestimentos

Públicos

Resumo:

Esta análise objetiva traçar umdiagnóstico atualizado doinvestimento público no Brasil e propormedidas e políticas para sua elevação.Mesmo com a teoria recomendando aelevação dos investimentos comoinstrumento de combate à crise econômica e àdepressão do ciclo, e apesar da prioridade e doaumento registrado nos últimos anos, os governosbrasileiros estão entre os que menos investem emproporção do PIB em todo o mundo. Tal gasto no País émuito descentralizado e, em período recente, reflete umesforço fiscal por parte dos principais governos estaduaise municipais das capitais (em relação à receita própria),bem superior ao central (apesar da expansão recente, aindadestina parcela pequena de sua receita para tal fim). Sãolevantadas alternativas para mudar esse quadro, sem a pretensãode esgotar uma questão tão difícil e controversa, que vai desdeo fomento ao maior investimento privado, via tributos e créditos,a um novo desenho de parcerias deste setor com o público emtorno de grandes projetos de investimentos rentáveis, até reformasinstitucionais que abram espaço para a adequada priorização econtinuidade dos investimentos no âmbito dos orçamentos públicos.

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I - Introdução

Q u a n d oco mpa ra-do o pesodo Estado

na economia, o Brasil sesobressai em relação àsdemais economias emer-gentes ao menos em duasvariáveis: poucos gover-nos arrecadam tantos tri-butos e, pior, mais rarosainda são os governos queinvestem tão pouco. Esteartigo trata do segundotema, o nó que amarra osinvestimentos do gover-no federal, e procura mos-trar o porquê dessa situa-ção e apresentar propos-tas para desatá-lo.

Seja qual for a escola depensamento, seja qual fora ideologia, não há quemdeixe de apontar a necessi-dade de elevar o investi-mento público como um dos maiores desafios, se não o primei-ro, para o País crescer de forma sustentada, e alçar um maior es-tágio de desenvolvimento. A taxa de investimentos da econo-mia como um todo, em proporção do Produto Interno Bruto(PIB), também é muito baixa. A infraestrutura básica é o seg-mento que mais se ressente dessa distorção estrutural, especial-mente pelo reduzido esforço do governo federal, que tem com-petências naturais e legais relativamente aos grandes ramos dalogística (como transportes, energia e comunicações).

Nos últimos anos, o governo federal defendeu firmementea ampliação dos investimentos, seja para atender um planopolítico de aceleração do crescimento, seja como uma políticaanticíclica ou de combate à crise financeira global. Porém, dapromessa à realidade, há uma enorme distância. Por mais quetal categoria de gasto tenha crescido nos últimos anos, aindaestá muito longe do patamar em que já chegou no passado e damédia das economias emergentes, bem como do recomenda-do pela teoria e pelas experiências internacionais recentes.

No texto a seguir, como ponto de partida, na Seção II, seráfeito um breve apanhado teórico sobre a questão, e na Seção IIIserá destacada a peculiar posição brasileira em matéria de in-vestimentos, públicos e em geral, numa comparação com ou-tras economias emergentes. A evolução histórica de tais gastosno Brasil será apresentada na Seção IV, enquanto que a sua di-mensão e estrutura recente serão objeto de análise da Seção V.A Seção VI apresenta alternativas para mudar radicalmenteesse quadro, sem a pretensão de acreditar que há respostas fá-ceis para tantas e complexas questões. Esta análise é, antes detudo, uma contribuição para fomentar o debate no País, quesegue pálido neste e noutros assuntos, seja no âmbito acadê-

mico, seja nos fóruns públicos. A Seção VII apresenta algumasconsiderações adicionais.

II- Breve Referência Teóricaquanto ao Investimento Público

A ideia-chave de ampliar os gastos públicos a partir dos in-vestimentos públicos, especialmente em infraestrutura e capi-tal humano, encontra suporte teórico tanto na escola Keyne-siana quanto em modelos ditos neoclássicos. Para Keynes, amanutenção de um elevado nível de investimento público se-ria uma estratégia que qualquer governo deveria seguir parareduzir as flutuações da economia, dada a tendência dos em-presários em preferirem ativos mais líquidos (como moeda outítulos públicos) em momentos de maior incertezas. Ou seja, oinvestimento público se faria necessário como forma de ame-nizar os solavancos que a economia sofreria se totalmente de-pendente das iniciativas do investidor privado.

Não se trata aqui apenas de um papel anticíclico de curto pra-zo, que pode ser cumprido por outros gastos públicos, mas deuma política de longo prazo, que objetiva "assegurar uma situa-ção aproximada de pleno emprego" (Keynes, 1982, p.288). Porisso, Keynes sugeria no pós-guerra que o governo sustentassede forma direta ou indireta (por meio de semi-public bodies) atédois terços da formação bruta de capital fixo total da economia,mesmo que tivesse de se endividar para isso, o que deveria sercompensado com equilíbrio ou até superávits no orçamento dedespesas correntes. Esse endividamento seria também aliviadocom o adicional de receita tributária obtido com a recuperaçãoda economia ensejada pelos investimentos.

Malcolm Fife/Folhapress

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Em outras palavras, Keynes propugnava poupança públicapositiva ou no mínimo nula, mas não via problemas em o go-verno se endividar para investir, porque os investimentoseram vistos como gastos "capazes de se pagar a si próprios"(Keynes, 1980, v.27, p.319). Assim, seriam gastos que desloca-riam a economia para um patamar superior, gerando um re-torno em termos de receita, que pagaria seus custos iniciais.

Apesar de os modelos neoclássicos originais rejeitarem for-malmente qualquer papel da política fiscal ou de qualquer ou-tro fator que não seja exógeno (derivado da produtividade dosfatores de produção) na determinação do crescimento de lon-

go prazo, a maioria dos principais economistas dessa vertenteteórica reconhece hoje que alguns gastos públicos (especial-mente em infraestrutura e educação) podem ampliar o capital(físico e humano) da economia como um todo e contribuir tam-bém para a expansão dos investimentos privados. A modernateoria neoclássica abre uma janela pela qual o gasto públiconão é mais visto necessariamente como concorrente do gastoprivado e como fator de pressão sobre a taxa de juros. Em de-terminadas circunstâncias, o gasto público pode complemen-tar os privados e melhorar a sua produtividade, gerandomaior crescimento de longo prazo.

Para a escolaKeynesiana, amanutenção de umelevado nível deinvestimento públicoseria uma estratégiaque qualquergoverno deveriaseguir para reduziras flutuações daeconomia, dada atendência dosempresários empreferirem ativosmais líquidos (comomoeda ou títulospúblicos) nosmomentos de maiorincerteza.

Paulo Pampolin/Hype

Patrícia Santos/AE

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Observe-se, mais uma vez, que não se está discutindo aqui acapacidade da política fiscal de gerar efeitos de curto prazo so-bre o crescimento, como na recente crise. O ponto é outro: alémdos efeitos transitórios, quais são os efeitos permanentes daelevação dos gastos (e dos investimentos) públicos? Apesar demuita controvérsia empírica sobre essa questão, com algumasopiniões mais incrédulas e outras mais otimistas, a síntese pa-rece ser de que "o que realmente importa não é o nível, mas aestrutura do gasto público" (Tanzi e Zee, 1996).

Por estrutura do gasto público, entende-se não apenas a dis-tinção entre gastos correntes e de capital, mas a identificação dequais podem ser considerados produtivos ou improdutivos. Nocaso dos investimentos, poderíamos dizer que projetos em in-fraestrutura são produtivos, enquanto a construção de prédiospúblicos poderá ser supérflua ou improdutiva, dependendo desua utilização e de suas características, como a suntuosidade.

De todo modo, é importante reiterar que parece existir al-guma convergência (não exatamente teórica) em torno da pro-

posição de que o investimento público deve ser ampliado. Tan-to pelo lado da demanda, quanto pelo lado da oferta da eco-nomia, o incremento da infraestrutura pública (principalmen-te em países carentes dela, como o Brasil) é um importantefator para sustentar taxas de crescimento mais elevadas.

Tal entendimento está nitidamente por trás da aceitação re-cente do Fundo Monetário Internacional (FMI) de que algunsinvestimentos "produtivos" recebam tratamento fiscal dife-renciado, como ocorreu no Brasil a partir do Plano Plurianualde Investimentos (PPI), e mais especificamente do Plano deAceleração do Crescimento (PAC).

III- Baixo Investimento Públicono Contexto Internacional

O processo de significativa redução dos investimentos pú-blicos no Brasil, especialmente aqueles destinados a obras deinfraestrutura, não é uma questão nova. (1) Diversos trabalhos

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já trataram desse movimento, que começa com a crise da dí-vida externa, no início da década de oitenta, e se estende até aatualidade. O que mais chama a atenção do País relativamentea outros países é sua reduzida taxa de investimento governa-mental a despeito do importante e notório peso relativo que oEstado tem na economia nacional.

Para atualizar e aprofundar essas comparações internacio-nais, vale recorrer a uma extração especial de estatísticas levan-tas pelo FMI para o seu World Economic Outlook (WEO)de 2008.(2)

Foram levantadas informações para duas variáveis: o produtointerno bruto (PIB) e a formação bruta de capital fixo realizadapelas administrações públicas (FBK Pública) (3), ambas extraí-das das contas nacionais.(4) Chama-se a atenção que o conceitode FBK contempla três itens: a formação de capital fixo (FBKF),ou seja, construção mais máquinas e equipamentos; as varia-ções de estoques; e o efeito líquido da compra e venda de ativos.Em princípio, em condi-ções de normalidade eco-nômica e organização ins-t i tucional comum, namaioria dos países não ha-veria porque ser importan-te a diferença entre capitale capital fixo no âmbito dasadministrações públicas,porque seus estoques nãoseriam expressivos comonas empresas privadas eraros governos têm umacontabilidade tão moder-na que avalie os ativos. Lo-go, para fins desta análise,considera-se que a razãoentre FBK pública e PIB, apartir da base estatística doWEO/FMI, constitui umretrato da taxa de investi-mento pelas administra-ções públicas de cada País.A grande vantagem dessa base estatística é sua ampla cobertu-ra, pois foram considerados 135 países em desenvolvimento esubdesenvolvidos no período 2000-2007.(5)

Classificados os países em ordem decrescente segundo essataxa em cada um dos oito anos analisados, o Brasil ficou em pe-núltimo lugar entre os 135 países considerados, à frente apenasdo Turcomenistão – a única exceção foi para 2003, quando o Paísficou em último lugar, invertendo a posição com esse país asiá-tico. O Brasil sempre esteve muito longe da média aritméticasimples para o conjunto de 135 países, que cresceu de 6,5% para7,6% do PIB entre 2000 e 2007. Enquanto a nossa taxa, no melhordos anos, em 2002, mal chegou a 2% do PIB. Para fins de resumira comparação, foi selecionada uma amostra com 28 economiasemergentes – as maiores e aquelas que mais competem direta-mente com o Brasil –, como demonstrado na Tabela 1. O índicebrasileiro (1,7% do PIB) também continua muito distante da mé-dia simples de 6,4% do PIB dessa amostra menor.

No topo do ranking das maiores taxas aparecem países com

regimes especiais, como a meio comunista China (6), as econo-mias petroleiras e algumas pequenas economias africanas oucaribenhas. À parte casos atípicos, ainda assim os governos bra-sileiros investiram muito menos do que a média e a maioria daseconomias menos desenvolvidas. Excluídos 15 países, entre osque excepcionalmente muito investem (como Afeganistão eChina), ou os petroleiros (dos grandes produtores do OrienteMédio até Rússia, Venezuela, México e Nigéria), a média sim-ples das taxas de investimento governamental dos 120 paísesrestantes cairia para 7,23% do PIB em 2007, ainda assim 4,2 vezessuperior à taxa brasileira no mesmo ano. Índia e Tailândia apre-sentam taxas na casa de 8% do PIB. A despeito do petróleo, aRússia e o México, ambas as federações continentais de grandepopulação como o Brasil, também aparecem com FBK públicaem torno de 5% do PIB. Até mesmo na América do Sul, as taxasse situam no intervalo de 4% a 5%, muito acima da brasileira.

IV- Breve Trajetória Histórica

As atuais taxas de investimento das administrações públi-cas do Brasil são baixas não apenas em comparações interna-cionais, mas também na comparação com o próprio passadodo País, pelo menos desde a década de 50, quando os dados sãomais confiáveis. Durante a década de 60, os investimentos go-vernamentais chegaram a atingir a media de 4,22% do PIB, nadécada de 70 foram de 3,71% do PIB e, a partir daí, passaram acair sensivelmente, com leve tendência de recuperação no pe-ríodo recente, conforme o Gráficos 1 e a Tabela 2.

Na comparação dos investimentos da administração públicacom a FBKF total da economia, também verificamos que a dé-cada de 60 foi quando o peso relativo dos projetos governamen-tais atingiu seu pico (26,30% do total). Mas isso se deve ao fato deque, nesse período, os investimentos do setor empresarial daeconomia (incluindo estatais) ainda era muito baixo, de modoque a FBKF dependia em grande escala das ações do governo.

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Na década de 70, comomencionado, o investi-mento estrito da adminis-tração pública chega a cairum pouco em proporçãodo PIB, mas os investi-mentos do setor empresa-rial (puxados principal-mente pelas estatais) cres-cem significativamente,passando em média de11,88% para 17,10% doPIB. Ou seja, o perfil de in-tervenção governamentalnos investimentos se des-loca da administração pú-blica para o setor empresa-rial sob seu controle, ala-vancando e impulsionan-d o o i n v e s t i m e n t oestritamente privado.

OGráfico 2 apresenta aevolução dos investimen-tos da administração pú-blica, das estatais federais edas outras empresas do se-tor privado (obtido por re-síduo da FBKF total) desde1970. Verifica-se que existealgum efeito substituiçãoentre os gastos da adminis-tração pública e das esta-tais, dada a limitação depoupança do setor público.O mesmo não se pode di-zer, entretanto, dos investi-mentos do setor públicoconsiderados em conjunto(somando administraçãopública e suas estatais) vis-

à-vis os investimentos privados (ver Gráfico 3). Excetuando operíodo de 1975 a 1979, as duas séries parecem ser mais com-plementares do que substitutas, o que é um bom sinal (já que nãohaveria o chamado c ro w d i n g - o u t ).

De todo modo, é importante salientar que a diferença entre opassado e o presente é significativamente maior se incluirmosno conceito de FBKF do setor público os investimentos das es-tatais federais. Isso porque a contribuição das estatais, apesardo destacado peso na recente conjuntura (1,9% do PIB), foi ain-da maior na década de 70, chegando a representar 6,5% do PIBem 1976. Nesse conceito amplo, o investimento público foi emmédia de 7,88% do PIB nos anos 70, ante 3,05% nos 10 últimosanos iniciados em 2000.

Sobre os números dos anos 80, entretanto, é importante sa-lientar que não se sabe até que ponto as taxas de investimento

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público não estão superestimadas pelo efeito da inflação. Issoporque os gastos de investimento público geralmente estãoconcentrados ao final do ano, o que faz muita diferença em si-tuações de alta inflação, mesmo quando comparamos os va-lores nominais com o PIB. O que é certo é que a taxa global deinvestimento da economia brasileira foi menor, em termosreais, do que sugere a razão FBKF/PIB nominal, que chega a26,86% em 1989. Isso porque os preços dos bens de capital cres-ceram acima do deflator do PIB na maior parte do período.(7)

V - Traços Marcantes e Recentesdos Investimentos no País

Pior do que a lanterna e mais que a curiosidade em torno daposição brasileira em classificações de países, o baixíssimo in-vestimento governamental comparado ao resto do mundo de-veria chamar a atenção para o fato de que o País não gasta nemo suficiente para repor a depreciação do estoque de capital jáexistente. (8) Essa deterioração pode ser visualizada pela par-ticipação do estoque de capital das administrações públicas noestoque de capital bruto do País, conforme divulgado pelasContas Nacionais do IBGE. Evidencia-se, no Gráfico 4, quenunca foi tão baixo o peso relativo do governo no capital total,inclusive naquele da construção, o que reflete a retração dasobras públicas nas últimas décadas.

Havia uma expectativa de que esse quadro fosse alterado,primeiro por uma mudança na postura do governo, segundopelo enfrentamento da crise. Assim, antes mesmo de irrompera crise financeira global, o governo federal prometeu ao iníciode 2007 priorizar dentre os seus gastos aqueles dedicados aosinvestimentos, especialmente em infraestrutura, no âmbito dochamado Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

Contudo, no âmbito federal, a expansão desta categoria de gas-to foi tímida relativamente aos outros grupos e as Contas Na-cionais reportam que a taxa de investimento, computadas astrês esferas de governo, cresceram, mas para 2,29% do PIB em2008. Na comparação internacional anterior, admitindo a hi-pótese simplória que os demais países repetissem a mesma ta-xa de 2007 em 2008 e só o Brasil a ampliasse, isso seria suficientepara ultrapassar apenas 5 entre 135 países e subiria para o 128ºlugar (empatado com a República Tcheca).

O aumento mais expressivo dos investimentos no País sóveio a ocorrer no último ano, embalado pelo discurso oficial deadoção de medidas anticíclicas para combate à crise financeiraglobal. Como o IBGE ainda não divulgou o detalhamento dasContas Nacionais que mostrem a FBKF dos governos em 2009,

Jonne Roriz/AE

O governo federal prometeu investimentos em infraestruturano âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

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vale recorrer à apuração do economista Sérgio Gobetti, queadota metodologia um pouco diferente, mas com maior pre-cisão na coleta de dados primários.(9) A tabulação a seguir (Ta-bela 3) reproduz as últimas estimativas até 2009.

É inegável a ação anticíclica fiscal, se avaliada pelo incre-mento das taxas de investimento entre 2008 e 2009 (+0,17 pon-tos do produto, no caso dos governos, subindo para +0,62 pon-tos, depois de contadas também as empresas estatais federais),

porém, como a dimensão na economia era muito baixa, isso foiinsuficiente para atenuar a brutal queda da mesma taxa no se-tor privado (recuo de 2,55 pontos no mesmo período) conside-rado a estimativa preliminar do IBGE de que a taxa global fe-chou o último ano em 16,73% do PIB.

Esses movimentos também podem ser visualizados noGráfico 5, que retroage a 1990, computando os dados dascontas nacionais, que, como no resto desta análise, se restrin-

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girá às administrações públicas. À parte, registre-se que, pelocritério de taxa de investimento, as empresas estatais federais(basicamente, o Grupo Petrobras) fizeram um esforço muitosuperior aos dos governos no combate à crise, tanto que a taxade 1,86% do PIB em 2009 é a melhor desde 1995 da série, quecomputava nos primeiros anos muitas outras grandes empre-sas, posteriormente privatizadas (mas, apesar de todo o esfor-ço, compensaram apenas um quarto da queda do investimen-to empresarial privado no último ano).

Voltando apenas às administrações públicas, não se nega oesforço fiscal por elevar o investimento, afinal, a taxa estimadapor Gobetti (2010) de 2,47% do PIB em 2009 foi a mais alta re-gistrada numa séria anual desde 1995, e chegou a responderpor quase 15% da FBKF nacional. Mais destaque cabe ao go-verno federal, que conseguiu elevar sua taxa para 0,63% doproduto (nunca tinha chegado nem a 0,5 pontos na mesma sé-

nais, porém, quanto esse gasto é expresso em proporção da re-ceita própria de cada governo, é enorme a distância entre eles.

O ponto de partida para a análise comparativa pode ser opróprio resultado primário.(12) Como se vê na mesma tabela,praticamente todos os governos da amostra mantiveram osuperávit em 2009 (à exceção de Pernambuco e Amazonas),mas, sob os efeitos da crise, como era de se esperar, o governofederal e os governos estaduais sofreram forte deterioração,enquanto os municipais trilharam o caminho inverso, comelevação do superávit – que só não surpreende pela históriados governos locais de seguir um nítido ciclo em que oscilamentre a formação de poupança no início dos mandatos dosprefeitos (e 2009 foi o primeiro do atual) e o seu gasto ao final(assim, a capital carioca e a paulistana aumentam fortementeseu primário, enquanto a mineira ficou estável).

A deterioração fiscal das contas da União fica mais visívelquando expressa em funçãoda receita corrente líquida(RCL), a "unidade de conta"básica para fins de aplicaçãoda LRF, haja vista que inde-pendente do tamanho daeconomia (PIB), a receita efe-tivamente arrecadada é quedita a capacidade de finan-ciamento das despesas dosgovernos. No caso da União,a despesa com pessoal saltoude 30,5% para 34,7% da RCLentre o exercício de 2008 e de2009, um incremento de 4,2pontos da receita anual. Já osuperávit primário caiu de16,7% para 9% da RCL e, co-mo consequência, a dívidaconsolidada líquida ao finaldos respectivos anos puloude 1,77 para 2,22 vezes a re-ceita anual (ultrapassando olimite de 2 vezes a RCL fixa-

do pelo Senado para os Estados). Tão acelerado endividamen-to em tão pouco tempo só foi possível porque a União não estásujeita a qualquer limite de endividamento.

Ainda que previstos na Constituição e na LRF, tais limitesnunca foram regulamentados pelo Congresso. Embora sejaum conceito pouco utilizado no Brasil em detrimento do con-ceito de dívida líquida, a dívida consolidada (ou bruta) atingiuníveis preocupantes. Superou a barreira dos R$ 2,1 trilhões efechou o ano com um aumento real de 21,8% em relação ao fe-chamento de 2008, representando, em estoque, quase cinco ve-zes o fluxo da receita corrente líquida de 2009. O montante émais que o dobro da dívida consolidada líquida e, comparadasas variações reais, o valor do incremento da dívida bruta foiquase 120% maior que o incremento da dívida consolidada lí-quida, que já foi altíssimo – cerca de R$ 180 bilhões.

A piora das contas federais contrasta radicalmente com ocomportamento das contas de São Paulo (13), que se encontra

rie); porém, como sua base era baixa, os próprios Estados de-ram uma contribuição maior para a FBKF (aumento de 0,2pontos) e superaram a casa de 1% do PIB.

Tal diferenciação remete a outra característica marcante do in-vestimento governamental no País: a profunda descentralização.Basta dizer que, em 2009, no ano em que o governo federal maisconseguiu investir depois de uma década e meia (e com toda prio-ridade do PAC), subiu sua participação para apenas um quartodo total da FBKF das administrações públicas – o orçamento mu-nicipal consolidado foi 1,3 vezes maior em investimentos que ofederal (os movimentos são ilustrados no Gráfico 6).(10)

Analisados os primeiros relatórios da execução orçamentáriade 2009 divulgados pelos maiores governos do País para atenderà Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF),( 11 ) em comparação aosresultados de 2008, apresentados na Tabela 4, fica evidenciadaa tendência de que o governo federal até conseguiu elevar os in-vestimentos em ritmo superior ao de alguns governos subnacio-

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em melhor situação dentre os nove Estados selecionados paraeste estudo. Apesar da forte recessão que afetou o setor indus-trial no País, e consequentemente a economia paulista, a recei-ta desse Estado passou incólume pela crise, apresentando pe-queno crescimento (+0,5%) entre 2008 e 2009. Como a despesacom pessoal também cresceu pouco (+1,4%), o que pratica-mente manteve o mesmo patamar deste indicador em relaçãoà RCL, a explicação básica para a queda de quase um terço dosuperávit primário pode ser atribuída à forte expansão de in-vestimentos promovida pelo Estado em 2009 (+37%). Portan-to, a política anticíclica do tipo Keynesiana – que sugere que ocombate à crise deve ser feito com aumento dos gastos, espe-cialmente gastos de investimentos – foi feita pelo Estado deSão Paulo e não pelo governo federal.

O que mais chama a atenção é que, mesmo com as restriçõesgeradas pela crise financeira, São Paulo conseguiu uma expres-siva redução de 6,7% da dívida líquida estadual, que fechou2009 em 1,5 vezes a receita corrente contra 1,63 no final de 2008.O mesmo movimento ocorreu com a dívida consolidada, quefechou o ano com queda real de 4,1%, representando quase 1,86vezes a receita corrente líquida de 2009, muito distante do re-sultado da União no mesmo indicador, que chegou próximo acinco vezes a receita corrente líquida em 2009. Os comporta-mentos das dívidas bruta e líquida de São Paulo e sua evoluçãona participação na receita corrente líquida são diametralmente

opostos ao observado no governo federal. O mesmo ocorre comos demais estados e com os municípios, que em termos agrega-dos reduziram sua dívida consolidada líquida em 7,1% e 2,2%,respectivamente, do fechamento de 2008 para o final de 2009.

Quanto aos municípios, todos da amostra guardaram fortesemelhança e, mais do que efeitos da crise, refletiram o já tra-dicional ajuste de orçamento que marca o início de mandatodos prefeitos brasileiros, iniciado no ano passado (14).

As observações anteriores podem ser reforçadas pela compa-ração das despesas com pessoal e de investimentos em relação àreceita corrente líquida, o que dá uma noção da prioridade fiscalde cada governo (Tabela 5). Apesar de todas as promessas doPAC e das medidas de resposta à crise, o esforço por investir dogoverno federal em 2009 foi de apenas 3,4% de sua receita, con-tra o mesmo índice de 9,1% dos maiores estados e 7,3% dosmaiores municípios das capitais, selecionados em uma amostra,conforme ilustrado na mesma tabela .(15) Em relação a 2005, hou-ve um recuo da razão investimento/receita na União, enquantocrescia a da amostra de estados e de prefeituras.

Outro aspecto que merece destaque na análise do investimen-to diz respeito à diferença entre os valores empenhados e os efe-tivamente liquidados (executados) no período, com a Tabela 6evidenciando a situação ao final de 2009. Esta diferença é conhe-cida como restos a pagar não processados e, como o próprio no-me já diz, espera-se que seja apenas um resíduo do empenhado

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no ano que deve ser liquidado e pago no período seguinte.Como visto na mesma tabela, a União aparece novamente

numa situação amplamente desconfortável e diferenciada emrelação aos demais governos: os restos a pagar não processa-dos de investimentos ao final de 2009 chegaram a mais de R$ 30bilhões, pouco mais que o dobro do valor efetivamente empre-gado no ano. Isso revela um problema claro da gestão dos in-vestimentos e, mais do que isso, uma incapacidade da máqui-na federal de absorver e aplicar os recursos autorizados. O go-verno poderia ter investido pouco mais de R$ 45 bilhões em2009, valor mais condizente com o porte e as responsabilida-des do governo central, porém, o dobro do valor investido sim-plesmente foi deixado de lado para ser executado e pago noano seguinte, ou seguintes, em que, dado o histórico recente,boa parte não se concretizará.

Governos subnacionais são muitos mais fiéis ao conceito bá-sico de restos a pagar. No resultado agregado dos Estados, o ín-dice de restos a pagar em relação ao valor liquidado ficou em18,5% no ano passado. Nos municípios, a relação entre restos apagar e liquidações dos investimentos segue um padrão seme-lhante com a dos Estados. Considerando todos os municípios daamostra, a média dos restos a pagar como relação da liquidaçãode investimentos ficou em 33,6% em 2009, resultado absoluta-

mente inferior aos quase 206% apresentados pela União.Voltando às dificuldades do governo federal para deslanchar

de forma mais contundente os investimentos, vale mencionarpesquisa realizada por Almeida (2009). Ela concluiu que háenorme distância entre o volume da dotação orçamentária e odos pagamentos no mesmo ano das despesas realizadas em talorçamento. Ao relacionar os problemas que mais dificultam arealização dos investimentos na visão dos responsáveis, o mes-mo autor concluiu que não é um ou dois problemas que expli-cam a frustração, mas sim a um conjunto deles. Ao contrário doapontado por muitas autoridades e na mídia, a questão ambien-tal e as exigências da lei de licitações não seriam os principaisgargalos, mas sim, segundo Almeida (2009), os problemas re-lacionados às questões administrativas, daí porque defendemelhor capacitação dos funcionários públicos e coordenação damáquina pública, incluindo uma gestão mais eficiente dos con-vênios com órgãos estaduais e municipais.

Antes de se sugerir uma estratégia para uma transformaçãoestrutural da taxa de investimento pública no País, vale men-cionar rapidamente os dilemas que vem surgindo no ralo ouparco debate em torno da política fiscal.

Não há dúvida que despesas correntes cresceram e supera-ram por larga margem as de capital, especificamente no caso

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do governo central. A Tabela 7 reproduz a evolução das des-pesas primárias da União publicadas pelo Tesouro Nacional,na chamada apuração acima da linha, a mais comumente vistapelos analistas no País. Entre 2000 e 2009, a despesa primáriacorrente federal aumentou em 3 pontos do PIB (dos quais 2,6pontos decorrentes de maiores pagamentos de benefícios so-ciais) contra míseros 0,4 pontos do produto de incremento emoutros gastos de capital primários, que incluem investimentosfixos e inversões financeiras (principalmente aquisição deimóveis para reforma agrária).

Um levantamento alternativo, realizado pelo economistaSérgio Gobetti, parte da metodologia das Contas Nacionais eprocede a ajustes metodológicos – para levantar os gastos deexecução direta do governo federal (reporta transferências pa-ra outros governos em bloco a parte), e para expressar os gastospelo regime de caixa (conceito mais utilizado pelos analistas).Como se pode ver na Tabela 8, os gastos correntes se expan-dem muito mais aceleradamente do que os investimentos fi-xos, puxados basicamente pelos benefícios sociais. Pela clas-sificação do IBGE, a despesa do governo federal chegou a22,21% do PIB em 2009 (exclusive os juros e serviço da dívida),dos quais 15,32% na categoria corrente,(16) 0,67% na de capital e6,23% em transferências para outros governos ou setores ins-titucionais (o que inclui tanto transferências correntes quantode capital para estados e municípios.(17)

Na última década, o gasto corrente da União (sem trans-ferências) aumentou em 1,65 pontos, enquanto o de capital(também sem transferências), irrisório 0,11 ponto do PIB. Setomado o período mais largo, aquele diferencial fica aindamais marcante: a despesa corrente é 3,35 pontos do PIB

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maior em 2009 do que foi em 1991, enquanto a de capital éinferior em 0,09 pontos do produto.

Merece uma análise à parte a decomposição do gasto cor-rente, com três movimentos surpreendentes. Primeiro, pode-se dizer que, nessa apuração da chamada conta das adminis-trações públicas, a expansão é toda determinada pelos bene-fícios previdenciários e assistenciais (a ponto de ter crescidomais que toda despesa corrente se tomados os últimos seteanos – isto é, respectivamente, 2,24 pontos contra 1,65 pontosdo PIB, entre 2002 e 2009). Nesse grupo de gasto, estão com-putados desde aposentadorias e pensões do regime geral deprevidência, até o seguro-desemprego e o bolsa-família.

Segundo, o gasto corrente relativo ao consumo de bens eserviços, que poderia ser associado ao custeio no sentido maisclaro, também surpreende ao recuar até 2009 em todos os cor-tes temporais da tabulação seguir: desde 1991, 1995, 2000 ou2002 – em geral, quanto mais longo o período, maior seria aqueda do custeio do governo federal, contrariando o senso co-mum que esperaria exatamente o inverso, afinal foram criadosinúmeros órgãos e entidades no governo federal nos últimosanos, que também ampliou o raio de atuação. (18)

Terceiro, não deixa de ser outra grande surpresa a variaçãobem reduzida nas despesas com pessoal do governo federal(na década, cresceram apenas 0,13 pontos do produto), aindamais levando em conta que estatísticas sobre o seu quantita-tivo de pessoal mostram um vigoroso incremento no período,tanto de concursados, quanto de cargos de confiança.

A leitura da evolução dos gastos federais, seja no conceitodo resultado primário, seja no conceito de Contas Nacio-nais, é de que não teria havido um crescimento do tamanhoestatal, mas apenas sua maior presença com transferidor derenda para a sociedade, especialmente em favor dos maispobres e dos inativos. Em consequência, se deduz que, paraassegurar o ajuste fiscal e expandir os investimentos públi-cos, restariam tão somente duas alternativas – novo aumen-to da carga tributária (o que sempre traz à mente a propostade recriação da CPMF) ou corte dos benefícios sociais.(19)

Dispensável dizer quão indigestas politicamente são asduas soluções.

Cabe registrar um contraponto a essas estatísticas e argu-mentos, sem a pretensão de querer esgotar a polêmica. Afinal,não é proposta e nem há espaço neste trabalho para aprofun-

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dar as diferentes questõese dúvidas que cercam osnúmeros sobre o gasto pú-blico no Brasil.

Uma primeira ressalvaseria a favor de se investi-gar mais porque a mesmavariável fiscal, do mesmogoverno, aparece commagnitude e evolução ra-zoavelmente discrepan-tes conforme a fonte pri-mária de informação. Di-ferenças surgem quantoobservamos o conjunto degastos primários ou cor-rentes, tanto no caso espe-cífico dos gastos com pes-soal. É bem provável queos restos a pagar expli-quem boa parte dessasdiscrepâncias entre fontesestatísticas, seja pelas mu-danças processadas noseu tratamento ao longo dos últimos anos, seja pelo recurso dogoverno federal cada vez mais extenso a tal figura, que permi-te, na prática, montar e gerir um orçamento paralelo ao oficial,com reduzidíssimo controle e transparência.

No caso do gasto federal agregado, a título de ilustração va-le uma observação simples das despesas reportadas no Balan-ço da União, comparando os valores de 2002 com os de 2009,depois de sua conversão em proporção do PIB, para se deduzirvariações diferentes das que são apurados a partir de levan-tamentos junto ao sistema integrado do mesmo Tesouro Na-cional (SIAFI). Focando nas outras despesas correntes (já ex-cluídas transferências intergovernamentais constitucionais elegais), é constatada uma evolução diferente dos quadros an-teriores: cresceram de 3,22% para 3,58% do PIB, com incremen-to de 0,36 pontos, conforme mostra a Tabela 9.

No caso dos gastos federais com pessoal, se for adotada outrafonte, as estatísticas gerenciais de recursos humanos reportadaspelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, tambémse pode chegar a magnitude e desempenho algo diferentes dasantes demonstradas (que tinham por base o Sistema Integrado deAdministração Financeira do Governo Federal – SIAFI da Secre-taria do Tesouro Nacional – STN), conforme resumidos no Grá -fico 7, extraído de Mendes (2010). A título de ilustração, entre2002 e 2009, esse autor apurou um incremento do total gasto coma folha salarial de 5,08% para 5,47% do PIB (computado tambémas contribuições patronais para regime próprio de servidores), ouseja, de 0,39 pontos do PIB.

Ainda que a tendência em relação ao gasto federal com pes-soal seja a mesma (crescente), as estatísticas gerenciais do Mi-nistério do Planejamento, Orçamento e Gestão indicam que oaumento teria sido o triplo do apurado a partir de estatísticasfinanceiras da STN. Como são duas fontes oficiais e do mesmogoverno, e certamente os economistas responsáveis pelos di-

ferentes levantamentos não erraram nos cálculos, as discre-pâncias indicam que está sendo necessário um debate maisprofundo e amplo para compreender a natureza desses levan-tamentos e discrepâncias de resultados que deles decorrem. Seé natural que leituras e opiniões sejam divergentes, é preciso aomenos harmonizar conceitos e fontes estatísticas.

À parte essa possível polêmica estatística, vale opinar é quepreciso algum cuidado com a ideia de que o gasto tido comofixo ou como um dado, o de custeio e aquele fruto de uma vin-culação, seriam imunes a uma atuação estatal visando melho-rar sua eficiência e eficácia, que, neste caso, só poderia ser apli-cada à pequena parcela de recursos destinados a investimen-tos, como outros raros gastos de livre aplicação.

Ainda que inegavelmente seja mais limitado o raio de mano-bra em relação ao gasto com o pessoal já contratado, isso não jus-tifica a falta de critério e de avaliação em relação às novas con-tratações de servidores federais e a fixação de seus salários, in-clusive em relação ao enorme e crescente contingente de funçõescomissionadas e às folhas dos outros Poderes, dito independen-tes. Também transferências para governos estaduais e munici-pais deveriam merecer mais atenção, desde a repartição cons-titucional, no qual há espaço para se atuar na legislação para me-lhorar os critérios de rateio (aliás, o Supremo Tribunal Federalacabou de condenar o atual rateio do Fundo de Participação dosEstados justamente pela falta de critérios), quanto mais no casodos demais repasses, especialmente via convênios, em que sepoderia adotar estratégias mais explícitas de descentralizaçãode atribuições (como no caso do ensino básico e da saúde), e co-brança de esforço fiscal dos receptores.

Se é inegável que houve forte expansão dos gastos com be-nefícios sociais, por outro lado isso não deveria ser tomado co-mo justificativa para uma acomodação, quando não uma totalinépcia em relação aos demais gastos públicos. Como se não

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são feitos. Por outro lado, estudos que tratem de estimativas delongo prazo e tenham uma abordagem neoclássica (modelosde equivalência ricardiana), mesmo que aceitem que no curtoprazo os gastos públicos podem estimular o crescimento, in-ferem que no longo prazo desestimulam, porque implicammaior carga tributária no presente ou no futuro.

Em princípio, é preferido responder ao dilema da políticafiscal brasileira mudando o foco ou o peso da resposta da óticada quantidade (como a receita ou o gasto expressos em porcen-tagem do PIB) para a ótica da qualidade. Ou seja, muito mais aestrutura (e menos a evolução), tanto da receita (demasiadocarregada em tributos indiretos), quanto do gasto das admi-nistrações públicas brasileiras (com baixíssimo investimentopúblico), constitui a principal restrição ao crescimento. É ine-gável, porém, que, diante de uma carga tributária elevada, aci-ma da média dos emergentes, essa falta de prioridade dos go-vernos para investimentos é contrapartida da elevada propor-ção, absoluta e relativa, dos gastos públicos com consumo (20) emesmo transferências de renda.

VI - Uma Estratégia Pró-Investimento Público

Em caráter preliminar, podem ser apontadas várias medi-das e políticas para tentar reverter esse quadro. Antes de tudo,como há um predomínio do setor privado na geração do inves-timento nacional, cabe adotar medidas que o estimulem. O cré-dito, tendo à frente os bancos públicos, é um fator chave. Emprincípio, poderia se dizer que o forte crescimento dos emprés-

timos, inclusive à custa decaptações junto ao Tesou-ro Nacional, já teria equa-cionado a questão. Porém,é preciso ressalvar queuma parcela muito impor-tante dessa expansão este-ve voltada para as chama-das reestruturações em-presariais, que, atende-r i a m a o p r i n c í p i o d epreservar emprego, pro-dução e propriedade noPaís, porém, não consti-tuem uma contribuiçãodireta para a formação decapital. Aliás, não foi poracaso que tiveram movi-m e n t o s , e m d i re ç õ e sopostas, a expansão docrédito pelos bancos pú-blicos e a taxa de investi-mento nacional. Agora, épreciso avaliar o retornodas operações realizadasno campo empresarial, in-clusive visando a even-tual saída das citadas em-presas desses créditos, de

houvesse uma extensa agenda de melhorias possíveis naquantidade e, sobretudo, na qualidade do gasto público, a co-meçar justamente por aquelas categorias de gastos (pessoal) efunções de governo (como saúde e educação) de maior mag-nitude, e alcançando também a transparência e a supervisão(inclusive com reformas nas instituições de controle, interno eexterno), no qual a LRF constituiu um avanço inegável, masnão uma panacéia ou a última solução.

De qualquer forma, é forçoso reconhecer que a leitura do de-sempenho do gasto público pode ensejar leituras as mais di-ferentes, desde a ótica contábil até a econômica e mesmo a po-lítica, para não dizer ideológica.

Se a literatura nacional só agora começa a reunir trabalhosem torno das causas e consequências da expansão do gasto oumesmo do Estado, a externa é farta em avaliações sobre a re-lação entre a carga tributária e/ou gasto público e o crescimen-to ou o desenvolvimento. Partindo por vezes das mesmas ba-ses estatísticas, ainda que recorrendo a instrumentais analíti-cos diversos, autores já chegaram a conclusões completamen-te antagônicas. Exercícios econométricos e teses tantoabsolvem quanto condenam a atuação estatal, ainda maisquando o foco está no curto prazo.

Menciona-se que as estimativas de multiplicador dos inves-timentos públicos varia de valores próximos de zero para +4,0,enquanto a dos gastos correntes oscila entre algo como 0,5 e 2,0.Por que tanta variação? Justamente por causa da distinta qua-lidade e capacidade de interagir, ou estimular o investimentoprivado nos distintos contextos e países em que tais estudos

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modo a liberar recursos para serem focalizados na expansãode novos investimentos produtivos

Também urge melhorar a transparência e avaliar os efeitos dossubsídios concedidos pelo Tesouro Nacional às operações de cré-dito de bancos estatais, notadamente o BNDES, que as expandiufortemente no auge da crise financeira global. Esse é um assuntopouco abordado, por ora mais restrito a um debate em jornais es-pecializados e que facilmente pode descambar para um debateideológico. Ao comparar com o fomento creditício realizado nosanos 70 e 80, o senso comum é que os beneficiários dos subsídiosseriam sempre as empresas tomadoras de crédito nos bancos es-tatais. Porém, a situação agora é um pouco diferente. Como o Te-souro optou por perseguir taxas de juros pré-estabelecidas, porvezes o subsídio acaba beneficiando o banco ou bancos (no casode agentes financeiros) que concedem e/ou intermedeiam a ope-ração, e não necessariamente para a empresa que a toma.

A medida central a defender aqui é que o volume de crédito,que por uma ou outra forma teve por origem o Tesouro Nacional,ao ser recuperado deve ser destinado integralmente ao fomentode investimentos novos (e não para reestruturação empresarial),que tenham impacto direto na formação bruta de capital, e que osubsídio também beneficie as empresas e não os intermediáriosfinanceiros. Em relação ao que já foi concedido em desacordo aeste princípio, uma sugestão é que, quando do vencimento dasoperações realizadas (se não for possível contratualmente ante-cipar sua liquidação), o retorno seja reaplicado em novas ope-rações aí vinculadas a novo investimento fixo.

O tributo é outro campo crucial e grave para deprimir os in-vestimentos. O Brasil é dos raros países do mundo que tributama produção e a importação de máquinas, por mais que isençõestenham sido dadas. Teoria e experiência recomendam que oideal é focar o benefício no investidor – ou seja, em quem realizao investimento (até para evitar que a isenção ou redução do im-posto não vire aumento da margem de lucro do produtor). In-felizmente, o governo federal continua preferindo propor incen-tivos localizados (para programas especiais, com exigências re-gulamentares que por vezes excluem todos ou quase todos po-tenciais beneficiários), limitados no tempo (ainda que prorroguevez por outra depois de negociações políticas). E, pior, baseadosna redução de alíquota ou na isenção (cujo benefício pode acabarlimitado ao produtor de bens de capital e que nem sempre é ple-no, se tiver sido tributada a cadeia de produção).

À parte o enfrentamento estrutural da questão, que exige umareforma tributária (como já foi proposto pelo governo federal,mais de uma vez), ou a construção de um novo sistema (hipóteselevantada no Senado Federal), é preciso mudar a legislação in-fraconstitucional para assegurar, primeiro, o crédito imediato,pleno e automático de todos os tributos embutidos nos preçosdos bens de capital (seja maquinário, sejam obras) adquiridospelo contribuinte, e, segundo, agilizar a devolução de eventuaissaldos credores acumulados (uma das hipóteses é permitir o pa-gamento de contribuições previdenciárias com tais créditos). Es-ta nova situação, que seria o chamado regime de crédito finan-ceiro, pode ser adotada para o IPI e as contribuições do CO-FINS/PIS por projeto de lei ordinária (aliás, o Senado já o apro-vou ao final de 2009 e agora está sob exame da Câmara). Já nocaso do ICMS, será necessário aprovar uma lei complementar

A expansão do investimentopúblico depende de

mudanças mais profundas.A começar por impor à

esfera central de governoa mesma austeridade eresponsabilidade que

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depois da edição da Lei deResponsabilidade Fiscal.

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que restaure as regras que originalmente estavam previstas nachamada Lei Kandir (o crédito era à vista mas, posteriormente, apedido das Fazendas estaduais foi parcelado em quatro anos).

A expansão do investimento público depende de mudan-ças mais profundas. A começar por impor à esfera central degoverno a mesma austeridade e responsabilidade que passoua ser exigida das esferas subnacionais depois da edição da LRF.Antes de tudo, é inadiável a fixação dos limites à dívida fede-ral, seja à consolidada (que depende de Resolução do Senado),seja à mobiliária (que passa por lei), cujas propostas estão pa-ralisadas no Congresso Nacional desde 2000 (não por acaso,quase sempre relatadas por líderes do próprio governo). Maisdo que a União, que responde por mais de 90% a dívida públicanacional, passar a se submeter a algum limite de endividamen-to, uma hipótese seria fixar limites razoavelmente próximos

ou até mesmo inferiores ao nível atual de suas dívidas com re-lação à receita, traçando uma trajetória para sua redução aolongo dos próximos anos, da mesma forma que no início da dé-cada foi imposta, e cumprida com relativo sucesso, a trajetóriapara estados e municípios que renegociaram suas dívidas jun-to ao Tesouro Nacional antes da edição da LRF.

A proposição é que, ao limitar a capacidade de financiamen-to da União, lhe seja imposta uma restrição orçamentária, domesmo modo que governos estaduais e municipais já preci-sam obedecer há mais de uma década, e de uma forma muitomais efetiva e eficiente do que a aplicação de limites a despesascorrentes (verificação se dá ex-post à assunção de compromis-sos, quando fica estreito o espaço para ajuste). Ao contrário doque parece à primeira vista, tal limitação pode contribuir parapriorizar investimentos no âmbito federal: indiretamente, se

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conseguir conter o ímpeto recente de expansão do gasto cor-rente federal (sem ter que escolher o que é mais prioritário den-tre tais gastos); e, diretamente, se eventuais exceções foremabertas para financiar projetos prioritários de investimentos.Mais especificamente, seria o caso de valorizar a chamada "re-gra de ouro", já prevista até no próprio corpo da ConstituiçãoBrasileira e adotada no exterior (como nos controles euro-peus), que aceita a contratação de crédito, com moderação,desde que vinculado diretamente a investimentos.

À parte mudanças expressivas na política e nas práticas fiscaisdo governo central, é forçoso dar atenção especial aos investi-mentos executados pelos governos estaduais e municipais por-que, como já foi demonstrado, é muito descentralizada no Brasila formação de capital fixo por suas administrações públicas. Res-gatar e valorizar o princípio da "regra de ouro" na análise do po-tencial de endividamento estadual e municipal pode abrir opor-tunidade para o financiamento de grandes projetos, até mesmojunto a organismos internacionais e bancos públicos nacionais,tendo em vista que o nível de dívida da grandemaioria desses governos está abaixo do limitemáximo fixado pelo Senado em atenção à LRF, edevem conseguir comprovar boa capacidade depagamento do serviço futuro de novas dívidas.Hoje, o que impede o acesso da maioria dessesgovernos ao crédito não são restrições fiscais esim as creditícias, impostas pelas autoridadesmonetárias, muito mais visando a assegurar quegerem superávit primário elevado, o que objeti-va contrarrestar o mau desempenho do mesmoresultado no âmbito federal.

Uma alternativa direta e radical para rom-per com tal círculo vicioso seria permitir a es-tados e municípios com dívidas renegociadasjunto ao Tesouro Nacional que pudessem uti-lizar como uma espécie de nova "moeda de pa-gamento" do serviço dessas dívidas os inves-timentos que realizarem em projetos conside-rados prioritários e monitorados pelo mesmogoverno federal (como poderia ser o caso dosaneamento). Essa conexão direta permitiriaeconomizar custos burocráticos e agilizar as ações, que hojeexigem uma longa e burocrática tramitação de convênios e em-préstimos – para não falar na triagem política.

Ainda no campo dos gastos governamentais, é premente arealização de uma profunda reforma dos instrumentos e doprocesso de orçamento público no País.

Para começar tal reforma, é preciso acabar com a distorçãoque assola os chamados restos a pagar, que de mero instru-mento normal de pagamento, se transformaram numa fontede financiamento indireto e, especialmente, numa forma deocultar um orçamento paralelo para alocar, contratar e pagargastos, notadamente no governo federal. É inaceitável que ovolume de tais restos possa ser o dobro ou o triplo do que foiexecutado e pago no exercício financeiro que lhe deu origem. Asolução é simples: cancelar os restos que não forem pagos nosmeses seguintes ao encerramento de um exercício financeiro,de maneira que, passado um semestre, por exemplo, tudo que

não foi pago tenha sido automaticamente cancelado.Sem o recurso da figura distorcida dos restos a orçar, a con-

tratar e a pagar, o próprio Executivo Federal terá que apoiar ese empenhar na reforma do processo orçamentário. Para tanto,já existe um projeto em tramitação no Senado, de iniciativa doSenador Tasso Jereissati e atualmente relatado pelo SenadorFrancisco Dornelles na Comissão de Assuntos Econômicos,que propõe mudar radicalmente toda a sistemática vigente, in-clusive de apreciação parlamentar (que significa limitar o es-paço para emendas parlamentares).

Para fins do fomento aos investimentos, o debate chave deveser o de buscar soluções mais adequadas para a definição dosprojetos de investimentos prioritários, para procurar sua viabi-lidade técnica, ambiental e financeira antes da inclusão no or-çamento e, o principal, para assegurar a continuidade das do-tações e das obras nos casos dos investimentos que envolvammais de um exercício financeiro. Ainda que seja um tema polê-mico, já existem propostas (inclusive no projeto antes citado) pa-

ra assegurar o caráter plurianual da prioridade eda continuidade de investimentos classificadoscomo estratégicos por um governo, o que exigi-rá uma reforma coordenada e ampla, desde oplano plurianual e as diretrizes orçamentárias,até o orçamento anual. Aí caberá construir umaespécie de rede de proteção para aqueles proje-tos que forem classificados como prioritários, eque precisarão ter orçamento e financeiro asse-gurado por um período de vários anos.

No campo das empresas estatais, outras po-deriam receber o mesmo tratamento já dispen-sado à Petrobras, que foi excluída do controledas metas de necessidades de financiamento edívida líquida porque é uma empresa inde-pendente do Tesouro – aliás, conceito já previs-to e observado pela LRF há 10 anos. Isso tam-bém abriria espaço para terem mais acesso acrédito e mesmo ao mercado de capitais, inclu-sive para financiar grandes projetos de infra-estrutura. A grande contrapartida seria me-lhorar a governança corporativa dessas em-

presas, o que poderia ser obtido se o Congresso bem formu-lasse e aprovasse o chamado Estatuto das Empresas Estatais,previsto na Constituição e até hoje não votado.

Para unir todos os segmentos antes citados, uma boa alter-nativa poderia ser a construção de nova forma de parceria, emque grandes projetos de investimentos em infraestrutura, depropriedade estatal, pudessem ser financiados e geridos porempreendedores privados – conforme sugestão levantada porAfonso e Biasoto (2009).

VII - Observações Finais

A eclosão da crise financeira global e a resposta dada em2009 pelo governo federal, com redução significativa da metade resultado primário, forçou a eliminação de um dos obstá-culos que, em tese, estariam emperrando o avanço dos inves-timentos públicos. Na realidade, formalmente as restrições fis-

Para fins dofomento aosinvestimentos, o debatechave deve ser o debuscar soluções maisadequadas para adefinição dos projetosde investimentosprioritários, paraprocurar suaviabilidade técnica,ambiental e financeiraantes da inclusão noorçamento (...)

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cais para a elevação dos gastos do governo em infraestruturacomeçaram a ser eliminados desde que o governo lançou oProjeto Piloto de Investimentos (PPI) em 2005 e o Programa deAceleração do Crescimento (PAC) em 2007.

Na prática, entretanto, os investimentos não cresceram namagnitude esperada (e permitida fiscalmente) depois do PPI-PAC, nem depois da crise internacional. Inegavelmente os in-vestimentos cresceram em 2009, vimos anteriormente, mas emmagnitude muito inferior ao verificado na maioria das econo-mias emergentes. Ou seja, não assistimos em resposta à crise atão esperada redenção do investimento governamental noBrasil, mas apenas um aumento tímido em valores absolutos,decorrente de projetos em amadurecimento.

A maior expansão dos investimentos públicos, adotandoaqui um conceito amplo de "setor público", vieram em 2009das empresas estatais, notadamente a Petrobras, demons-trando uma certa incapacidade da burocracia do governocentral federal para reagir à crise de forma rápida, mesmodepois de três anos de PAC. Inúmeros obstáculos de natu-reza legal ou regulatória (como o problema do licenciamen-to ambiental e a ação do Tribunal de Contas da União) têmsido elencados como fatores que estariam por trás da lenti-dão das obras públicas, mas a principal razão talvez seja deque o governo federal desaprendeu a investir.

Além disso, a evolução dos desembolsos do governo federalrealizados em 2009 não evidencia maiores mudanças na estru-tura anterior. O incremento dos investimentos federais (0,2% doPIB) respondeu por parcela ínfima do aumento de despesas fe-derais. A maior parte do aumento do gasto federal constatadoem 2009 foi explicada por despesas de pessoal (0,5% do PIB) ecom benefícios previdenciários e assistenciais (0,9% do PIB), queapenas parcialmente atuam como estabilizadores automáticos.

A maior expansão dosinvestimentos públicos,adotando aqui umconceito amplo de "setorpúblico", vieram em 2009das empresas estatais,notadamente aPetrobras, demonstrandouma certa incapacidadeda burocracia do governofederal para reagir à crisede forma rápida.

Sem mudanças reais na estrutura da despesa pública e na taxade investimento na economia brasileira, é preciso retomar e re-forçar o diagnóstico sobre a real situação brasileira atual e suadistância da ideal. Isto é, os avanços do investimento público nosúltimos anos foram inegáveis, mas o patamar a que chegaramainda muito longe de constituir uma mudança estrutural, con-forme evidenciado pelas mais recentes estatísticas e estimativasgovernamentais e da Contabilidade Nacional. Nem a prioridadeanunciada pela política econômica para os investimentos acele-rados do crescimento, nem o enfrentamento da crise financeiraglobal, foram suficientes para mudar de forma significa o baixopadrão de investimento governamental observado na economiabrasileira nos últimos anos. O governo federal não adotou uma

estratégia descentralizadora de suas ações (PAC), ignorandouma característica histórica dos investimentos, em que as admi-nistrações estaduais e municipais tendem a se mostrar mais ca-pazes e ágeis na realização, especialmente de obras.

Passado o pior da crise, especialmente no Brasil, é consen-sual a necessidade de reverter muitas das medidas fiscais ado-tadas no seu auge e aí surge o dilema: se nem com toda justi-ficativa e prioridade imposta pela crise foi possível mudar sig-nificativamente o papel das administrações públicas e o pró-prio tamanho da taxa de investimento na economia brasileira,como evoluirá esse tipo de gasto?

Enfim, um nó que certamente precisa ser desatado na econo-mia brasileira é o da baixa taxa de investimento, tanto a geral,quanto a pública em especial. É preciso promover um redesenhoinstitucional que abra caminho na direção de maior desenvolvi-mento econômico e social. Seja qual for esse arranjo institucional,seja qual for a matriz de pensamento econômico, com ou pós-cri-se, não há muitas dúvidas de que o Brasil precisa enfrentar de vezo desafio de retomar os investimentos governamentais.

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(1) Muitos são comentados em Afonso, Araújo e BiasotoJr.(2005). Mas, em particular, chama-se a atenção para Afonso,Schuknecht e Tanzi (2006) que traçam uma análisecomparativa da importância relativa dos investimentosgovernamentais em economias ao redor do mundo.Comparando a despesa total e o investimento, o Brasil semostrou um caso singular, no qual o alto nível de gasto doEstado em relação ao PIB não é acompanhado por uma taxa deinvestimento governamental significativa – inclusive quandocomparado aos países desenvolvidos, que, por princípio,necessitam de um menor esforço relativo para formar capitalfixo do que os países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos.(2) A base de dados do WEO/IMF reproduz e consolida os dadosfornecidos diretamente junto aos países. As informaçõesprestadas por cada País em unidades monetárias locais foramextraídas da sua contabilidade nacional e segue a metodologiada ONU de 1993. Os dados não são auditados ou revistos peloFMI, ao contrário do que ocorrem com outras estatísticas desteorganismo quando elabora um estudo ou promove umacompanhamento da política econômica de um país.(3)Ver o detalhamento metodológico desse agregado dasContas Nacionais no portal das Nações Unidas: http://u n s t a t s . u n . o rg / u n s d / s n a 1 9 9 3 / t o c L e v 8 . a s p ? L 1 = 1 0 & L 2 = 3 .(4) Note-se que a variável extraída da base do FMI, naconceituação original, é Gross public capital formation,current prices. Segundo a metodologia citada na nota derodapé anterior, a definição é a seguinte: "Gross capitalformation is measured by the total value of the gross fixedcapital formation, changes in inventories and acquisitionsless disposals of valuables." Sobre este ultimo conceito, menoscitado na literatura, é dito: "Valuables are assets that are notused primarily for production or consumption, that do notdeteriorate over time under normal conditions and that areacquired and held primarily as stores of value."(5) Os dados de 2008 são projeções e, portanto, precisariam deautorização dos respectivos países. Como se trata de umlevantamento com mais de 100 países, é inviável dispordessas permissões em período de tempo tão curto. À parte,menciona-se que, em 2008, se as projeções de todos os paísesforem confirmadas como apresentadas no primeirolevantamento: o Turcomenistão sairia do último lugar edispararia na classificação (sua razão FBK pública/PIBsaltaria para 4,26%) mas o Brasil (1,88%) ultrapassariatambém as Repúblicas Dominicana (1,71% do PIB) eEslovaca (1,86%), ou seja, iria para o antepenúltimo lugar noranking de investimentos governamentais.(6) Análises específicas da China apontam taxas de FBK públicadiferentes e menores – possivelmente, o levantamento aquiutilizado inclua as empresas estatais ou seja afetado pela formacomo foram mensurados os estoques naquele país. SegundoBarnett e Brooks (2006) e Kuijs (2005), a taxa de FBKF totalchinesa em meados desta década estava na casa de 40% do PIB.e crescia cerca de três vezes mais rápido do que o resto daeconomia. A estrutura da FBKF não revelava um pesodesproporcionalmente elevado das administrações públicas –

cerca de 4% do PIB em 2005. O dominante era o investimentodas empresas, em torno de 31% do PIB (contra uma poupançade 20% do PIB), no qual atuam tanto estatais "puras" quantomuitas joint ventures com empresas multinacionais.(7) IPEADATA apresenta uma série ajustada da razãoFBKF/PIB.(8) Esta situação crítica é destacada por Frischtak (2008). Elefaz estimativas dos investimentos em infraestrutura no Brasilentre 2001 e 2007, contemplando tanto os gastos públicoscomo privados. Conclui que: "... No total, os entes públicosforam responsáveis por 1,06% do PIB, muito abaixo dopatamar mínimo necessário para evitar sua degradação(estimado em 3% do PIB)" (p.312).(9) Recomenda-se uma importante discussão metodológica emGobetti (2010).(10) Para mais detalhes, ver Afonso e Junqueira (2009).(11) Para maiores detalhes, ver Afonso, Carvalho e Castro (2010).(12) Para fins de comparação resultado primário entre governos,é preciso fazer ajustes nos dados dos governos subnacionaispara serem cotejados com os da União, que não segue aapuração prevista em manual da própria Secretaria do TesouroNacional (STN). Como a União divulga nos relatórios da Leide Responsabilidade Fiscal um superávit primário igual ao quedivulga no boletim da STN, e este não leva em conta a evoluçãodos restos a pagar, cabe excluir dos resultados dos outrosgovernos as inscrições não-processadas na mesma categoria,que eles passaram a reportar em separado no quadro doresultado primário anual, para uma mínima harmonização (oideal seria recuperar todo histórico de restos a pagar).(13) Recentemente, uma avaliação equivocada, depoiscorrigida, sobre as contas de São Paulo decorreu de mudançana contabilização dos gastos com a previdência dos servidoresque, sem ajuste, superestimaria a folha salarial do Estado –ver Schwartsman (2010).(14) Dentre as maiores capitais do país, São Paulo chamaatenção especial porque, no ano passado, a despesa com pessoalcaiu 0,4%, a receita permaneceu praticamente estável (+0,3%)e os investimentos recuaram em 19,4%, o que proporcionouum aumento do resultado primário de mais de 30%. Istopermitiu que a sua dívida consolidada líquida permanecessepraticamente estável de 2008 para 2009, com pequenocrescimento de 2,5%. Embora tenha conseguido um equilíbriofiscal invejável, ao contrário dos estados o Município de SãoPaulo diminuiu o investimento, confirmando o ciclo político-fiscal já comentado. Outra capital a merecer destaque é PortoAlegre. Curiosamente, com movimentos de aumento dedespesa (a despesa de pessoal cresceu 0,9% e os investimentos7,1%) e de queda da receita (receita corrente líquida caiu0,2%), a dívida consolidada líquida recuou quase 57% de 2008para 2009 – o maior recuo dentre os municípios da amostra.(15) Na mesma linha, comenta-se que Mendes (2010) tambémapurou que a evolução das despesas com pessoal do agregadode estados e municípios (tomando por base a consolidação dosseus balanços, publicada pela STN até 2008) seguiu trajetóriainversa à do governo federal:

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"É interessante observar que, em contraposição à forteexpansão da folha de pagamento federal, os estados e os grandesmunicípios (com mais de um milhão de habitantes)promoveram significativas contrações de suas despesas depessoal.... Não fosse esse movimento compensatório, o consumodo governo do Brasil seria ainda mais elevado que aqueleapresentado na seção anterior... " (em que o autor compara opeso do gasto público relativamente a outros países).(16) Chama-se a atenção para alguns detalhes da apuração dogasto federal no formato da Tabela 8. A folha de inativos estácomputada no grupo de gastos com pessoal, seguindo oformato usado em quadros da execução financeira (aocontrário das Contas Nacionais e da própria contabilidadepública, que contam apenas os ativos na despesa de pessoal).As transferências intergovernamentais compreendem umvolume expressivo, não apenas pela repartição constitucionalde tributos (como no caso dos fundos de participação), mastambém por repasses regulares como no caso da educação(FUMDEB) e da saúde (SUS) – este último computado comose fosse custeio nas tabelas da STN.(17) No resultado publicado pela STN, as transferênciasconstitucionais e legais para estados e municípios não sãocontabilizadas como despesa primária, motivo pelo qual ototal da Tabela 7 é menor do que o da Tabela 8. Já astransferências voluntárias entram no grupo Outros Gastosde Custeio ou Capital, da STN.(18) Gobetti e Orair (2010) atribuem a redução do custeio àdescentralização da saúde e das despesas na área de educação,que tiveram como contrapartida o aumento das transferênciaspara estados e municípios. Ou seja, a contrapartida da queda docusteio é o aumento das transferências para outros governos.(19) Essa visão é bem sintetizada por Almeida e Pessoa (2010):"A conclusão é que não há muito espaço para redução dogasto público com o combate ao desperdício. Mesmo asmedidas de gestão, por mais importantes e desejáveis quesejam, quase sempre demandam alteração constitucional oulegislativa para sua implementação. Finalmente, o gasto comjuros não é tão elevado como se pensa. A manutenção docontrato social da democracia brasileira exigirá novasrodadas de elevação de carga tributária. Ou será que échegado o momento no qual a sociedade demandará alteraçãodo contrato social? Certamente esse será um tema que deveriaser tratado na próxima campanha eleitoral, pois a soluçãopara esse dilema cabe ao eleitor."(20) O consumo das administrações públicas no Brasil emrelação ao Produto Nacinal Bruto (PNB) foi comparado com omesmo gasto realizado em outros 154 países por Mendes(2010). Sua conclusão é forte: "... O Brasil aparece em 28ºlugar: ou seja, estamos entre os 20% com maior consumo dogoverno, o que indica um elevado gasto com pessoal, dada anossa hipótese de que o consumo do governo é uma boa proxypara medir o gasto com pessoal.... Ou seja, o Brasil é o únicodesses países que não constitui uma economia européiadesenvolvida, de elevado índice de desenvolvimento humano ecom serviços públicos de alto padrão de qualidade... "

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ALFER

A Gestão de Recursos Hum

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81ABRIL 2010 DIGESTO ECONÔMICO

Marcos Mendes/e-SIM

Nelson MarconiMestre e Doutor em

Economia pelaFundação Getúlio

Vargas, de São Paulo,professor da mesma

escola e da PontifíciaUniversidade Católica

de São Paulo,ex-diretor de Carreiras

e Remuneraçãodo Ministério da

AdministraçãoFederal e Reforma doEstado (1996-99), e

ex-assessor doMinistro da Ciência e

Tecnologia (1999).

Diagnóstico e Propostaanos no Governo Federal

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Resumo

Este artigo discute as características da gestão de recursoshumanos no governo federal, analisando o período entre1995 e 2009, e sugere nessa área uma política que possacontribuir para o alcance do perfil desejado para a força detrabalho no setor público federal.

O diagnóstico revela uma ampliação significativa dasdespesas com pessoal, e também dos salários médios,principalmente no Poder Executivo. A diferença entre o salárioinicial e final das carreiras foi estreitada, reduzindo incentivospara o desenvolvimento profissional. A elevação do númerode servidores ocorreu tanto em áreas primordiais (educação)como em áreas de suporte administrativo, tradicionalmentesuperdimensionadas. O grau de qualificação dos servidores ébastante elevado, e há um descompasso entre este último e onível de escolaridade requerido para o exercício de algumasocupações. O desafio futuro reside na definição de incentivosao desempenho e ao desenvolvimento profissional e de ummaior controle da evolução das despesas.

As propostas incluem um planejamento da força detrabalho que oriente as ações da política de recursoshumanos; uma estratégia de recrutamento permanente quepossibilite contratar o número efetivamente necessário deservidores com o perfil adequado; a definição de carreirascom atribuições amplas e regras de promoção associadasà aquisição de competências; o alargamento da amplitudesalarial; adoção de critérios técnicos para o acesso aoscargos em comissão; a instituição de mecanismos deavaliação de desempenho por resultados, associados aopagamento de bônus; a definição de grandes grupos deações de capacitação; reajustes salariais pontuais,somente nos casos em que for notado um desequilíbrio emrelação aos valores praticados no mercado privado;simplificação da estrutura remuneratória; regulamentaçãoadequada do estágio probatório e da possibilidade dedemissão por insuficiência de desempenho, e oequacionamento do problema do financiamento daPrevidência do Servidor Público.

Carlos Humberto/Ag. Pixel

A elevação do número de servidores ocorreutanto em áreas primordiais (educação)

como em áreas de suporte administrativo,tradicionalmente superdimensionadas.

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Introdução

(1) As informações de 2009 referem-se ao período entrenovembro/2008 e outubro /2009, no caso das despesas eremunerações (último dado disponível) e a outubro/2009, no casodos quantitativos de pessoal. Os dados comentados, salvo quandoexpressamente indicado, são oriundos do Boletim Estatístico dePessoal, do Ministério do Planejamento, e não incluem asinformações relativas às empresas estatais.

Este trabalho discute a evolução das características dagestão de recursos humanos no governo federal, ana-lisando o período entre 1995 e 2009(1), o qual possibi-lita comparar as diretrizes do atual governo sobre o

tema com as implementadas pelo anterior, além de ser o inter-valo para o qual se dispõe de um volume maior de informa-ções. Com base no diagnóstico, é sugerida uma política de re-cursos humanos que possa contribuir, através de uma gestãomais eficiente, para o alcance do perfil desejado para a força detrabalho no setor público federal.

O diagnóstico demonstra que houve uma mudança consi-derável na política de recursos humanos do atual governo, queem alguns aspectos resultou positiva, mas também gerou umasérie de distorções que, dada a rigidez desse tipo de despesas,demorarão a ser corrigidas, principalmente quanto à evoluçãodos salários e despesas.

Sendo assim, na Seção 1 este estudo analisará a evolução dasdespesas com pessoal do governo federal (desagregando ativose inativos), e a do emprego e das remunerações praticadas no

período supra citado, discutindo conjuntamente característicasda atual política de recursos humanos. Na Seção 2 são apresen-tadas sugestões para uma política de recursos humanos com en-foque estratégico. A seção final inclui comentários adicionais.

1. Diagnóstico da evolução das despesas e doperfil da força de trabalho no governo federal

A evolução das despesas com pessoal no governo federal foibem superior à inflação desde 1995, tendo se intensificado noperíodo do governo atual, conforme já é bastante conhecido. ATabela 1 mostra estes dados e também apresenta outros re-sultados importantes que devem ser analisados. Primeira-mente, o mais relevante é que as despesas com o Poder Execu-tivo evoluíram mais no período entre 2002 e 2009 (doravanteperíodo 2) que entre 1995 e 2002 (doravante período 1), ao con-trário dos demais Poderes, cujo crescimento foi maior no pe-ríodo 1. Assim, o Poder Executivo parece ter adotado uma es-tratégia de elevação dos salários, como veremos mais adiante,buscando aproximá-los dos patamares praticados nos demaisPoderes, ainda que a variação das despesas no Judiciário e noMinistério Público ainda seja superior à observada no Execu-tivo. Quando comparada a despesa anual em 2009 em relação àobservada em 2002, 72% do crescimento é oriundo do PoderExecutivo, e 39% de seus ativos.

Na Tabela 2, é possível observar de que forma evoluiu adespesa dentro do Poder Executivo. Para os civis ativos, osgastos aumentaram o dobro (137%) do que haviam aumen-tado no período 1 (65%). A variação é ainda maior se consi-derarmos apenas os ativos da administração direta (57% no

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período 1 e 156% no período 2). Assim, parece claro que o go-verno federal optou por privilegiar o Poder Executivo nosaumentos concedidos.

Para confirmar o argumento de que o governo buscou re-cuperar o nível salarial praticado no Poder Executivo, pode-mos observar a diferença entre os salários praticados paraalgumas carreiras ao final de 2002 e em outubro de 2009 na

Tabela 3. O aumento é muito expressivo. Algumas carrei-ras conseguiram melhorar sua posição relativa na hierar-quia salarial do Poder Executivo, como professores de 3ºgrau e advogados, sendo que esta alteração, no caso dos pro-fessores, é extremamente bem-vinda. Mas o nível salarialpraticado, em geral, não guarda nenhuma relação com os ob-servados no setor privado. Não há nenhuma justificativa de

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ordem econômica para a adoção de tais patamares, confor-me demonstrado mais abaixo. O fato de outros Poderes pos-suírem, até poucos anos atrás, uma grande autonomia parafixar suas remunerações, não justifica uma estratégia que fa-ça com que o Poder Executivo se espelhe em outros Poderesque foram irresponsáveis do ponto de vista fiscal.

A remuneração média (despesa mensal dividida pelo nú-mero de servidores) elevou-se mais entre os servidores civisativos do Poder Executivo (excluídos deste cálculo o Bacen e asempresas públicas e sociedades de economia mista) que entreos militares, servidores do Legislativo e do Ministério Público,conforme mostra a Tabela 4. Só não se elevou proporcional-mente mais que a dos servidores do Judiciário.

É possível argumentar que os salários dos servidores fede-rais são bastante elevados porque eles possuem mais anos deestudo ou de experiência (neste último caso, em suas ativida-des atuais) e, por consequência, são mais qualificados. Isto é, adiferença de salários observada entre o setor público federal eoutros setores pode ser decorrente de distintas características,chamadas de pessoais ou produtivas e não de práticas salariaisdiversas. Com o intuito de analisar este argumento, foram rea-lizados testes econométricos em que se buscou isolar o efeitodestas características para reconhecer se há diferenciação en-tre as políticas salariais adotadas nos dois setores que resulteem remunerações distintas em cada um deles para pessoascom as mesmas características.

Os testes calculam qual seria o salário, no setor privado,de uma pessoa que trabalha no setor público e possui deter-minadas características e vice-versa. Assim, é considerada adiferente valoração que cada setor atribui às característicaspessoais (por exemplo, o setor público pode valorizar maisintensamente o nível de escolaridade que o setor privado).Se uma vez controladas estas diferenças, os cálculos de-monstrarem que o salário que um servidor receberia no se-tor privado é distinto daquele que ele efetivamente recebeno setor público, então é possível afirmar que os mercadosde trabalho referentes a estes dois setores adotam práticassalariais díspares. Fatores não associados às características

pessoais (que podem vir a gerar discriminação) ou produ-tivas, podendo ser inclusive de cunho político, explicariamos diferenciais de salários.

A técnica descrita acima e utilizada nos testes econométri-cos foi desenvolvida por Oaxaca (1973) e detalhada em Benn(2008). As variáveis consideradas no cálculo são, além do sa-lário ajustado a uma jornada de trabalho de 40 horas (para tor-nar as remunerações comparáveis), o gênero da pessoa e a cor,(características pessoais), com o intuito de isolar o impacto depráticas discriminatórias que porventura possam estar sen-do praticadas em cada um dos setores; idade, experiência eanos de estudo como variáveis que refletem a qualificaçãodas pessoas (as chamadas características produtivas) e umavez controladas também isolam o efeito que a distinta valo-ração das mesmas, em cada setor, provoca sobre os salários; afiliação aos sindicatos (que pode influir sobre o nível dos sa-lários, dado o impacto sobre o poder de barganha dos traba-lhadores) e o Estado em que a pessoa atua, cujas caracterís-ticas econômicas e mesmo políticas, conforme já observadoneste estudo, impactam o emprego público e podem tambémterminar influindo as remunerações.

Os dados utilizados são oriundos da PNAD (Pesquisa Na-cional por Amostra de Domicílios), realizada anualmente pe-lo IBGE, e a comparação se inicia em 1993 por ser um ano queantecede as mais recentes mudanças observadas na políticade recursos humanos em todos os níveis de governo e por se-rem oriundos do levantamento em um ano cuja metodologiajá se encontrava compatível com os padrões adotados atual-mente pelo IBGE nesta pesquisa, e se encerram em 2008 porser o último ano para o qual existem informações disponíveis.Foram consideradas apenas as informações referentes ao tra-balho principal, dado que a ocupação secundária possui ca-racterísticas específicas, por ser muitas vezes associada àcomplementação de remuneração, e poderia distorcer os re-sultados. A amostra inclui somente os empregados do setorpúblico e privado (exclui os chamados "conta própria" e em-pregadores, além dos domésticos cujas ocupações tambémpossuem características específicas quanto a, por exemplo, a

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jornada de trabalho). Estão considerados funcionários dosmercados de trabalho formal e informal, porque a magnitudedeste último não é desprezível e existe mesmo no setor pú-blico (o chamado grupo dos "não-estatutários sem carteira").Foram excluídos aqueles que trabalham no setor agrícola,pessoas com idade inferior a 18 ou superior a 70 anos e aque-les que possuem jornada de trabalho inferior a 10 ou superiora 72 horas semanais. Estas exclusões referem-se a caracterís-ticas muito peculiares de parcela do mercado de trabalho quepodem alterar substancialmente os resultados.

Os dados incluídos na Tabela 5 indicam qual é a diferen-ça, em termos percentuais, entre os salários praticados nasdiversas subdivisões do setor público e os observados no se-tor privado, já controlados os possíveis efeitos das diferentesvalorações que cada setor atribui às características incluídasnos testes econométricos. Assim, os percentuais da tabela re-fletem distintas políticas salariais praticadas nos setores pú-blico e privado, que podem inclusive ser consequência daatribuição de diferentes valorações às ocupações (mas não àscaracterísticas pessoais ou produtivas, já controladas). Fo-ram incluídas outras esferas de governo, além da federal, nacomparação para demonstrar que o comportamento destaúltima se distingue inclusive do observado nos governos es-taduais e municipais.

O diferencial de salários entre o setor público federal e oprivado é crescente ao longo de todo o período considerado,tendo aumentado 55% (controladas as características lista-das acima) entre 1993 e 2007, sendo que para os federais es-tatutários o aumento foi praticamente de 100% no mesmo pe-ríodo. Além disso, os últimos dados disponíveis demons-tram que um servidor federal estatutário recebe hoje o dobrodo que receberia se desenvolvesse suas atividades como em-pregado do setor privado. Os resultados são superiores aos

observados na comparação entre as remunerações pratica-das em qualquer esfera de governo ou tipo de vínculo e os sa-lários praticados no setor privado, adicionados os controlesmencionados anteriormente.

Assim, podemos afirmar com segurança que o nível dasremunerações praticadas no setor público federal estão, emmédia, bastante elevadas e superiores às observadas no setorprivado e nas demais esferas de governo, mesmo conside-rando as diferentes características dos funcionários de cadasetor. Certamente existirão situações localizadas em que es-se diferencial não será positivo, mas os cálculos apresenta-dos reforçam o argumento de que a questão remuneratórianão é um problema para a política de recursos humanos nosetor público em geral, menos ainda no governo federal; pelocontrário, os governos em alguns casos têm sido até muitocondescendentes na concessão de reajustes.

O nível de remunerações praticadas no governo federalparece ter mais explicações em questões políticas. Como re-sultado, os próximos governos terão sérias restrições parareorganizar a hierarquia salarial quando necessário, pois arecente evolução das despesas com pessoal foi muito signi-ficativa e ainda será maior, visto que uma parcela dos rea-justes concedidos foram escalonados e ainda serão incorpo-rados aos salários.

Os atuais aumentos não estão gerando uma restrição fiscalmais significativa, porque a receita do setor público aumen-tou muito nos últimos anos, inclusive mais que as despesascom pessoal. Dados do Tesouro Nacional mostram que em1998 (não há informações desta série anteriores a esta data) arelação entre despesas com pessoal e receita se situava no pa-tamar de 25%, em 2002 em 22% e em 2008 em 18%. São recur-sos que poderiam, em parte, estar sendo alocados em outrasdespesas que gerariam maior crescimento econômico. Rocha

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O nível das remuneraçõespraticadas no setor público

federal estão, em média,bastante elevadas e

superiores às observadasno setor privado.

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(2) O precursor destes estudos e do papel relevante do investimentoé Keynes (1936) que em sua obra visava, dentre outros objetivos,analisar políticas que pudessem estimular a demanda agregadapara recuperar o nível de atividade econômica de um ciclo recessivo.(3) Existem pequenas diferenças na composição dos civis do PoderExecutivo para o cálculo da despesa média e do quantitativo (quenão incluem o BACEN, as empresas públicas e sociedades deeconomia mista e os instituidores de pensão no primeiro caso), masque não são significativas a ponto de alterar de forma substancialos resultados apresentados.

(2006), por exemplo, realiza uma abrangente resenha sobretrabalhos empíricos nos quais se demonstra que as variaçõesdos gastos com investimentos públicos geram um impactomaior sobre a demanda agregada que as variações nas des-pesas correntes do setor público, dentre estas, os gastos compessoal (2) . Além destes estudos, é importante ressaltar que aestabilidade do emprego público, da forma como é dissemi-nada no Brasil, mesmo entre aqueles que são contratados ini-cialmente como temporários, impossibilita a criação de pos-tos de trabalho transitórios para amenizar os efeitos de umacontração do nível de atividade. Logo, não parece ser razoá-vel considerar a expansão dos gastos com pessoal como umindutor consistente do crescimento da demanda agregada;na verdade, o aumento destas despesas reduz a poupançapública e a capacidade para investir do setor público, fazen-do com que o efeito final seja contrário ao esperado.

Há um problema adicional na estratégia adotada pelo go-verno federal. Os aumentos concedidos tiveram como ca-racterística a melhoria dos salários iniciais, para atrair maiscandidatos. O aumento dos salários dos níveis finais de car-reira normalmente provoca um crescimento muito signifi-cativo das despesas, pois impacta nas despesas com inati-vos, uma vez que os aumentos dos ativos são repassados aeles. Logo, os aumentos nos valores dos níveis finais de car-reira foram menores. Enquanto os aumentos no salário ini-cial variaram entre 71% e 427%, os aumentos nos salários fi-nais oscilaram entre 52% e 326%, conforme pode se observarna tabela 3. Como resultado, a amplitude salarial – a di-ferença percentual entre o salário inicial e final de carreira –diminuiu (vide Tabela 6). Este é uma distorção grave dapolítica de recursos humanos, pois provoca um estímulopara o ingresso e poucos estímulos ao desenvolvimentoprofissional ao longo da carreira, dada a reduzida diferençaentre o salário inicial e final. O governo anterior buscou re-verter tal distorção, visto o alargamento da amplitude entre1998 e 2002, e o atual retrocedeu nas melhorias obtidas an-teriormente. Os próximos governos terão que, novamente,se preocupar com esta questão, fato cuja solução implicarácertamente em aumento das despesas.

Ressalta-se que a evolução das despesas com inativos noperíodo pós 2002 foi menor que a observada no período an-terior (vide Tabelas 1 e 2). As mudanças nos requisitos pa-ra a aposentadoria, derivadas das emendas constitucionaisda Previdência de 1999 e 2003, bem como o arrefecimentodas expectativas quanto a novas mudanças em tais requisi-

tos, parecem ter contribuído para evitar uma evolução maiordeste grupo de despesas.

Este argumento se baseia no fato de que, enquanto a despesamédia com inativos evoluiu de forma próxima à observada pa-ra os ativos, o quantitativo de inativos evoluiu bem menos queo de ativos (por exemplo, entre os civis do Poder Executivo, oquantitativo de ativos aumentou 12% e o de inativos cresceu2%; já a despesa média com ativos aumentou 140% e a com ina-tivos em percentual bem próximo, 146%) (3) . Por consequência,a participação das despesas com inativos nas despesas totaiscom pessoal declinou de 42% em 2002 para 39% em 2009, comodemonstra a Tabela 7. De qualquer forma, o aumento veri-ficado nas despesas com inativos é bem superior à inflação epoderá gerar sérias restrições às políticas de recursos humanosno futuro, quando o impacto inicial do alongamento do prazode permanência em serviço tiver se dissipado.

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Outro fato a ser ressaltado no tocante às recentes diretri-zes da política de recursos humanos do governo federal é asignificativa evolução do quantitativo de servidores nos úl-timos anos. Há uma grande discussão sobre o número de ser-vidores necessários no Brasil mas, na verdade, os fatores fun-damentais para definir o tamanho do setor público em ter-mos de servidores (e o correspondente perfil necessário) sãoo papel desempenhado pelo Estado (que varia entre países,regiões e esferas de governo), os serviços prestados em fun-ção desta definição e a forma como presta estes serviços – oseu modelo de gestão. Ademais, as questões quantitativas equalitativas referentes à força de trabalho no setor públicosão ainda mais relevantes, especialmente em contexto de re-forma administrativa e de redefinição das atribuições do Es-tado, como o que o Brasil e outras democracias ocidentaispassaram nas décadas recentes.

O processo correto para definir o número de funcionários eo correspondente perfil necessários de acordo com as funçõese o modelo de gestão adotado é chamado de planejamento daforça de trabalho e pouquíssimos governos o adotam para di-mensionar seu número adequado de servidores. Sua realiza-ção requer levantamentos de informações sobre os objetivos eprocessos de trabalho em cada setor, o que a torna bastantecomplexa e inviável no âmbito deste estudo.

Assim, não é fácil definir o número ideal de empregados

públicos no serviço público federal. O que chama a atençãonos dados, na verdade, é a acentuada mudança que ocorreunas diretrizes em relação às contratações de servidores no Po-der Executivo. Enquanto no período 1 houve uma queda, nes-se Poder, de 142.000 servidores ativos (-15%), no período 2 ocrescimento foi de 105.000 servidores (+13%). Entre os civisdo Executivo, o aumento foi de 64.000 servidores (queda an-terior de 101.000 servidores), e entre os militares, de 41.000(para estes, equivalente à queda que havia ocorrido no perío-do anterior). O governo federal não poderia ter contratadoum número tão elevado de servidores sem saber, com base emum critério técnico bem definido, se este contingente é real-mente necessário. A redução anterior não foi fruto de demis-sões, mas de desligamentos que não implicaram em reposi-ção de pessoas nas vagas deixadas em aberto.

Aproximadamente metade (44%) da variação observadano quantitativo de servidores civis ativos do Poder Execu-tivo (cerca de 28.000 servidores) corresponde a acréscimosna área de educação. A expansão das universidades e doscentros federais de ensino explica uma parcela razoável des-te aumento. Entretanto, os dados mostram que também nes-te cenário há uma distorção significativa: aproximadamen-te 38% deste aumento foi destinado às áreas administrativasda Educação, sendo que o total de servidores das carreirasadministrativos de tais organizações é maior (104.000 pes-

O governo federal não poderia ter contratado um número tão elevado de servidores sem saber se este contingente é necessário.

Sérgio Lima/Folha Imagem

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soas) que o de professores (90.000). Aqui reside uma dasmaiores distorções do quadro de servidores da administra-ção pública federal, que se repete nas outras áreas do gover-no e vem sendo transmitida de governo para governo: não érazoável que exista um número maior de servidores admi-nistrativos que de professores no governo federal. Esta éuma característica que se repete nas demais áreas, isto é, nãosomente na Educação. A Tabela 8 mostra, baseada em da-dos da PNAD, qual é a participação dos grandes gruposocupacionais nessa esfera de governo. Como a PNAD é umapesquisa domiciliar baseada em questionário, cuja amostraé expandida para estimar o universo que abrange, os núme-ros não coincidem com os apresentados pelo Boletim Esta-tístico de Pessoal; a PNAD foi aqui adotada porque o Bole-tim não possibilita fazer a classificação que se segue. Alémdisso, é importante ressaltar que neste quadro também es-tão incluídos os funcionários de empresas estatais custea-dos com recursos próprios, que não integram o Boletim Es-tatístico de Pessoal.

ATabela 8 revela que há mais servidores nas áreas de apoioadministrativo em geral que nas atividades finalísticas de saúdee educação (e que em qualquer outro grupo ocupacional), semconsiderar que algumas pessoas que declaram ser profissionaisde carreiras ligadas às áreas finalísticas também podem estaratuando em atividades meio. Esse é o problema mais significa-tivo da composição da força de trabalho no setor público, maisrelevante que o montante de servidores existente.

Se considerarmos a contribuição para a variação (que cor-responde à participação na variação absoluta), o grupo quemais aumentou também é o dos servidores de apoio adminis-trativo. Logo, além de serem o maior grupo, também corres-pondem ao que registrou o maior número de contratações en-tre 2002 e 2008. Esta constatação reforça a hipótese de distorçãona composição da força de trabalho.

A política remuneratória adotada, apesar de pressionar for-temente as despesas, parece ter contribuído para a melhoria doperfil da força de trabalho. Podemos observar na Tabela 9 queo número de servidores com escolaridade de nível superior (oumais que superior) aumentou bastante nos últimos anos. Umaparcela desta elevação pode ser derivada de atualizações cadas-trais, mas mesmo assim é inegável a melhoria observada no per-fil. Em relação ao nível de escolaridade do cargo (isto é, nível deescolaridade requerido para ingresso no cargo), porém, obser-vamos que a evolução não foi a mesma: entre 1997 e 2002, a par-ticipação de cargos de nível superior aumentou, e posterior-mente se estabilizou (Tabela 10).

Se observarmos os ingressos, por sua vez, houve uma redu-ção, na participação relativa, dos cargos de nível superior e umaumento dos cargos de nível intermediário (que demandamescolaridade de nível médio para ingresso). Este dado confir-ma os comentários sobre a Tabela 8 (evolução dos quantita-tivos nos grupos ocupacionais): uma parcela das contrataçõesrealizadas nos últimos anos agravou distorções previamenteexistentes, e que vinham sendo corrigidas, na composição daforça de trabalho do governo federal.

Dado os elevados níveis salariais praticados, há uma ele-vada oferta de pessoas querendo ingressar no serviço públi-co, acirrando a disputa pelos cargos, o que leva o governo aconseguir atrair pessoas muito qualificadas até para os car-gos que demandam apenas escolaridade de nível médio. Po-rém, como os ingressantes podem estar sobre-qualificados(vide a defasagem entre o perfil de escolaridade das pessoas eo exigido para o exercício dos cargos), há uma demanda porparte dos mesmos em progredir para posições de nível supe-rior, fato impossibilitado pela Constituição, que gera um de-sestímulo significativo à sua atuação, pois eles tendem a ava-liar que as suas atividades são muito operacionais e incom-patíveis com o seu nível de conhecimento.

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(4) Uma discussão mais detalhada sobre os possíveis instrumentosda política de recursos humanos no setor público encontra-se emMarconi (2005).

Em relação aos cargos em comissão, também nota-se umamudança insatisfatória nas características dos postos de dire-ção mais elevados (DAS-6), que correspondem aos secretáriose presidentes de autarquias. Houve uma redução no percen-tual de ocupantes com escolaridade de nível superior oumaior. Se em 2002 esse percentual atingia 99%, em 2009 foi re-duzido para 92%. Não é razoável nomear, para cargos em co-missão que demandam um nível de formação e conhecimentoespecíficos tão elevados, pessoas com escolaridade inferior aoensino superior. A redução deste percentual indica que crité-rios não técnicos podem ter sido utilizados para a nomeação depessoas para estes cargos.

Podemos resumir este diagnóstico afirmando que: a) asdespesas com pessoal evoluíram significativamente nos úl-timos anos, e que parcela significativa da mesma resulta deaumentos salariais concedidos aos servidores do Poder Exe-cutivo, provavelmente visando alcançar os padrões remu-neratórios praticados nos demais Poderes; ainda que a recei-ta pública tenha aumentado mais que as despesas com pes-soal, estes recursos poderiam estar sendo utilizados paraelevar o investimento do governo, cujo efeito multiplicadorseria mais significativo para o crescimento econômico; b) asdespesas com inativos variaram menos, talvez pela dilata-ção dos prazos de aposentadoria definidos nas últimas re-formas constitucionais sobre o tema, ainda que permaneçamum problema a ser solucionado para evitar desequilíbriosmaiores no futuro; c) houve uma grande expansão do núme-ro de funcionários, em parte destinada a atender a expansãodos serviços de educação, mas em outra parte pouco vincu-lada a estudos mais pormenorizados das necessidades efe-tivas de servidores para a força de trabalho e associada par-

cialmente a atividades de suporte administrativo, às quais jáexistem muito servidores associados; d) as contratações paracargos que demandam conhecimentos de nível médio au-mentaram e há um descompasso entre a escolaridade reque-rida para o cargo e a possuída pelo servidor, fato que certa-mente resultará em desestímulo futuro para ele realizar suasatividades; e) o perfil dos ocupantes dos cargos em comissãode mais alto nível tem se deteriorado; f) a amplitude salarialdas carreiras foi reduzida, o que resulta em menor incentivoà progressão para os servidores.

Em suma, foram criados incentivos remuneratórios para o in-gresso no serviço público, fato que pode ser comprovado pelaconcorrência nos concursos; entretanto, não há uma estruturaadequada de incentivos para o servidor se desenvolver e desem-penhar de forma eficiente suas atividades. O recrutamento depessoas qualificadas é uma realidade no setor público; a políticade recursos humanos já atingiu este objetivo. O desafio agora écontrolar as despesas, melhorar a composição dos cargos quecompõem a força de trabalho e criar estímulos aos servidores pa-ra o seu desempenho. Estas devem ser as preocupações princi-pais da política de recursos humanos do governo federal, cujassugestões de diretrizes serão apresentadas a seguir.

2. Sugestões de uma política de Recursos Humanoscom enfoque estratégico para o governo federal

Nesta seção, será discutido o desenho de uma política estra-tégica de recursos humanos – isto é, alinhada com os objetivosdas organizações – que possibilite a solução das distorçõesapresentadas acima. Como o emprego público e as despesascom pessoal são rígidas, algumas das sugestões aqui relacio-nadas somente surtirão efeitos no longo prazo. Mas é possíveldistinguir aquelas que são mais imediatas das que demora-riam mais para serem aplicadas em sua plenitude.

Os instrumentos adotados no âmbito desta política devemser consistentes e interdependentes, garantindo a atratividadee a permanência dos bons servidores, devem visar o desenvol-vimento profissional e incluir os incentivos adequados, tantono que concerne aos estímulos ao desempenho como à cobran-ça de resultados. Os componentes principais de tal política se-riam o recrutamento, as regras de desenvolvimento profissio-nal (promoção e progressão), a estrutura de remuneração, aavaliação de desempenho e a política de capacitação, os quaisdevem ser desenhados de forma a possibilitar o alcance dos ob-jetivos apresentados acima.

A seguir serão apresentadas as principais características decada um destes componentes, começando por um instrumen-to que auxilia consideravelmente a formulação da política derecursos humanos, o planejamento da força de trabalho, cujaaplicação seria muito importante no caso do governo federal,dadas as distorções na composição de seu quadro de pessoalapontadas no diagnóstico (4).

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2.1. O planejamento da força de trabalho

O planejamento da força de trabalho é um processo sistemá-tico e contínuo de avaliação das necessidades futuras de recur-sos humanos, no tocante ao quantitativo, composição e perfil,e de definição das estratégias e ações relevantes para viabilizaro alcance de tais necessidades. Estas variam ao longo do tem-po, de acordo com as mudanças na missão da organização, nosprocessos de trabalho e nos governos, os quais podem rede-finir as prioridades políticas.

A composição da força de trabalho no governo federal,apresentada na seção anterior, indica que predominam as ocu-pações associadas ao desempenho de atividades de suporteadministrativo e operacional, o que representa uma distorçãoa ser corrigida. A aplicação do planejamento da força de tra-balho possibilitaria a sua solução e a resposta a outras questõescomo: o número de profissionais de um determinado grupo ésuficiente, dadas as funções de governo e as demandas da so-ciedade? Que tipo de contrato é mais adequado em determi-nada situação, o temporário ou permanente? A qualificaçãodos servidores que desempenham determinada atribuição ésatisfatória? Qual estratégia adotar em relação a este grandecontingente de servidores contratados de forma precária,principalmente aqueles que já estão vinculados à administra-ção pública há muito tempo e que, na verdade, são funcioná-rios permanentes?

Sua elaboração envolve as seguintes etapas: a) reconhe-cimento da missão, objetivos, metas da organização e estra-tégias adotadas para alcançá-las; b) avaliação das potenciaismudanças futuras em relação ao ambiente externo e internopara determinar o cenário de atividades mais provável parao período considerado; c) estimativa das necessidades de re-cursos humanos, sob o ponto de vista quantitativo e do per-fil, condizentes com os objetivos da organização e o cenárioesperado para o futuro; d) levantamento da situação atualdo quadro de pessoal sob o ponto de vista quantitativo e deseu perfil; e) identificação das diferenças entre as necessida-des futuras e a oferta atual de recursos humanos; f) desen-volvimento de estratégias para eliminar tais diferenças e as-segurar que a força de trabalho atual se desenvolva de formaa contribuir para o atendimento das demandas futuras, es-timadas a partir dos objetivos organizacionais e do cenárioesperado, levando em consideração os custos de implemen-tação e as restrições orçamentárias. Estas estratégias in-cluem processos seletivos, ações de capacitação ou redistri-buição dos atuais servidores, considerando os desligamen-tos que virão a ocorrer, e a criação de condições para reter ostalentos já existentes. Assim, é fácil notar que o planejamen-to da força de trabalho (PFT) é um insumo fundamental parao desenho das ações a serem adotadas no âmbito de uma po-lítica de recursos humanos.

2.2. Recrutamento e seleção

O quantitativo e o perfil dos servidores a serem contratadosdevem ser definidos pelo PFT e a política de concursos devepossibilitar o ingresso constante e planejado de servidores na

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Sérgio Marques/Ag. O Globo

O planejamento da força de trabalho é umprocesso sistemático e contínuo de avaliação dasnecessidades futuras de recursos humanos, no

tocante ao quantitativo, composição e perfil, e dedefinição das estratégias e ações relevantes para

viabilizar o alcance de tais necessidades.

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to, uma estratégia de desenvolvimento profissional para osservidores se faz fundamental.

As atribuições de uma carreira devem ser suficientementeamplas para permitir a movimentação de servidores e o de-sempenho de gama maior de atividades, o que constitui umganho de competências para o servidor. As carreiras cujas atri-buições sejam semelhantes em diversos órgãos, como as admi-nistrativas e operacionais, devem ser unificadas (intituladashorizontais). Nas situações em que as atividades previstasabrangem graus de complexidade maiores e demandam co-nhecimentos técnicos distintos, é importante definir carreirase atribuições mais específicas.

administração pública, incluindo a publicação de um crono-grama com o número de vagas ofertadas a cada ano por cargo,sem a permanência de uma lista aberta para chamadas poste-riores (as exceções podem ser apenas cargos em que se observamuita rotatividade, tais como professor e médico). A sistemá-tica sugerida é semelhante à de um vestibular.

Uma política de concursos que adota as características se-melhantes à de um vestibular permite a renovação de quadros,possibilita às pessoas planejarem a sua participação em con-cursos, tornando esta prática comum e reconhecida pela socie-dade, cria um estímulo ao ingresso no serviço público e inibe aformação de grupos herméticos de servidores.

O diagnóstico construí-do na seção anterior de-monstrou que o empregocresceu significativamen-te no governo federal nosúltimos anos. Se o PoderExecutivo tivesse optadopela adoção das sistemáti-cas de planejamento daforça de trabalho e de re-crutamento descritas aci-ma, certamente a evolu-ção do número de servi-dores teria sido mais equi-l i b r a d a e a j u d a r i a acorrigir as distorções nacomposição do quadro depessoal da administraçãopública federal.

Quanto às modalida-des de recrutamento, éimportante possuir umleque de alternativas quepossam ser adotadas deacordo com o perfil dese-jado: prova escrita, práti-ca, entrevistas abertas(com lista de questões pa-dronizadas) e examespsicotécnicos. O curso de formação, essencial para que apessoa se adapte às atividades da carreira e do setor público,deve permanecer constituindo uma etapa do concurso parao ingresso nas diversas carreiras. Deve-se também conside-rar que uma parcela das contratações continuará ocorrendode forma temporária e, neste caso, os processos seletivos de-vem ser mais simplificados (não no tocante ao conteúdo,mas em relação aos procedimentos).

2.3. Estrutura de carreirae desenvolvimento profissional

A estabilidade, as regras de aposentadorias e os níveis sa-lariais praticados terminam atraindo muitas pessoas qualifi-cadas para o governo federal e que permanecerão por um pe-ríodo considerável nos quadros de suas organizações. Portan-

(5) Este texto não adotará nenhuma distinção entre os critérios deprogressão e promoção, usual na administração pública; ambaspalavras serão utilizadas como sinônimos.

O governo federal criou, nos últimos anos, muitas carreiraspara órgãos específicos e reverter este quadro não é simplesnem rápido, pois envolve muitas negociações e reorganiza-ções salariais. Talvez tenhamos que conviver com esta rigidezadicional, assim caracterizada por inibir a mobilidade entreórgãos, por um período considerável.

As regras de promoção(5) devem estar associadas à aqui-sição de competências por parte do servidor. A estrutura dacarreira deve possibilitar que o servidor atinja seus níveis fi-nais em um prazo não muito distante de sua aposentadoria eque ele visualize a progressão como uma efetiva oportuni-

O governo federal criou muitas carreiras para órgãos específicos e reverter este quadronão é simples e nem rápido, pois envolve muitas negociações e reorganizações salariais.

Aurélio Martins/Ag. A Tarde

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dade de melhoria financeira (o que constitui um importanteincentivo). A diferença entre a sua remuneração inicial e fi-nal deve se situar no intervalo entre 100% e 200%, observa-das as restrições fiscais.

Como o governo atual reduziu consideravelmente a am-plitude salarial de diversas carreiras, conforme discutidoanteriormente, o seu alargamento terá de ocorrer aos pou-cos e combinar uma redução do salário de ingresso para osfuturos servidores com um aumento proporcionalmentemenor dos salários das posições de final de carreira, dadasas pressões de custos que poderiam resultar do aumentoacentuado destes últimos. É uma medida politicamente di-

em comissão que o governo considera estratégicos e cuja no-meação é muito suscetível a pressões políticas, como porexemplo, os de ordenadores de grandes despesas. Este pro-cesso envolve a definição das competências necessárias parao exercício de determinadas atribuições e a realização de exa-mes (escritos e práticos) para auferir se os candidatos pos-suem tais competências. Somente os aprovados ou certifica-dos no processo estariam aptos a concorrer a esta posiçãoquando houvesse uma vaga disponível; d) a criação de umbanco de talentos na administração pública.

O crescimento da participação de técnicos e auxiliares (car-gos que demandam nível médio de escolaridade) na compo-

sição do emprego públicono governo federal, alia-do ao número proporcio-nalmente maior de servi-dores com escolaridadede nível superior, indicaque há um descompassoentre os requisitos doscargos e a escolaridadedos funcionários, que fo-ram se tornando sobre-qualificados ao longo dotempo. Para amenizar es-te desincentivo, sugere-se que o governo retome odesenho de carreiras quepossuam dois cargos, umcom requisitos de escola-ridade de nível médio eoutro superior, e que pos-sibilite a progressão deum a outro cargo. Devehaver uma negociaçãocom o Poder Judiciárioem torno do tema para en-contrar uma solução queviabilize este importanteincentivo aos servidores.

Nesta proposta, toda aestrutura de desenvolvimento profissional está privilegiandoe premiando a aquisição de competências. Este é o critério bá-sico que deveria nortear a trajetória de carreira do servidor. Aseguir serão discutidos os critérios desejáveis para um impor-tante instrumento da política, a avaliação de desempenho.

2.4. Avaliação de desempenho

A prática disseminada de altos salários, conforme pode seobservar na análise inicial deste estudo, constitui um impor-tante estímulo para o ingresso no setor público, mas não ne-cessariamente para o desempenho dos servidores, principal-mente se os mecanismos associados à evolução profissionalnão estiverem associados à sua performance. Contratar pes-soas qualificadas e pagar bons salários, prática que vem sendoadotada, mas não utilizar mecanismos que estimulem o servi-

fícil e terá que ser amplamente negociada, provavelmenteenvolvendo outros incentivos compensatórios para o de-senvolvimento profissional.

Um importante incentivo para o servidor constitui-se napossibilidade de ocupação de um cargo de chefia em função deseu desempenho, e um dos maiores desestímulos, hoje, é a per-cepção que a indicação para estes cargos segue critérios me-ramente políticos, como parece, por exemplo, ter ocorrido emrelação aos DAS-6, conforme analisado anteriormente. Assim,a disseminação de critérios técnicos e competências necessá-rias para a ocupação dos cargos em comissão, hoje existenteem alguns órgãos, é salutar.

Quatro instrumentos podem contribuir neste processo: a)a definição de comitês de busca de candidatos para cargos dealta gerência; b) um processo de recrutamento aberto; c) umprocesso de certificação de competências para alguns cargos

Um importante incentivo para o servidor constitui-se na possibilidadede ocupação de um cargo de chefia em função de seu desempenho (...)

Newton Santos/Hype

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dor a aproveitar seu potencial e melhorar sua performance,pode caracterizar um grande desperdício de recursos.

A avaliação de desempenho baseada no alcance de resul-tados é um dos instrumentos mais relevantes na gestão estra-tégica de recursos humanos, pois possibilita alinhar as metasda organização, os objetivos das equipes, o envolvimento(por se sentirem co-responsáveis) e a performance dos servi-dores, contribuindo para disseminar uma cultura voltadapara o alcance de resultados. Uma política consistente deavaliação de desempenho leva os funcionários e gerentes adefinirem e priorizarem em conjunto as metas e objetivos, es-tabelece a contribuição das equipes para o alcance dos obje-tivos da organização e reconhece e premia a busca do aumen-to da produtividade. A performance é definida pelo percen-tual cumprido das metas pré-estabelecidas. Tais metas sãoderivadas do planejamento estratégico (cujaexistência é um pressuposto fundamental detodo o modelo). Ademais, os processos deavaliação precisam ser percebidos como jus-tos pelos participantes (6).

Modelos de avaliação de desempenho in-dividual não possuem a mesma eficácia. Háuma série de problemas em sua implementa-ção e as experiências recentes não têm apre-sentado bons resultados (7). A avaliação indi-vidual envolve chefe e subordinado e esta re-lação direta termina inibindo um processoefetivo de avaliação, pois a afinidade entreambos pode impedir a realização de uma aná-lise isenta; adicionalmente, é difícil definirmetas individuais objetivas e os critérios ado-tados neste tipo de avaliação terminam sendosubjetivos. A avaliação de desempenho indi-vidual deve, na verdade, corresponder a umaentrevista anual que possibilite identificarpontos fortes e fracos da performance dos ser-vidores, suas habilidades, deficiências e rea-lizações, o que auxiliará na definição dasoportunidades de capacitação aos profissionais nas áreas emque forem identificadas as dificuldades.

No modelo aqui proposto adotaremos a avaliação de de-sempenho como um instrumento destinado a definir o valorde um bônus por resultados, citado abaixo, enquanto a ava-liação individual será um insumo importante para a defini-ção de ações de capacitação, as quais se constituirão no prin-cipal critério para a definição dos servidores que progredi-rão na carreira. Desta forma, o vínculo entre avaliação, ca-pacitação e progressão é fortalecido e vai constituir um dosprincipais alicerces da política aqui proposta. Passemos en-tão à discussão sobre as diretrizes da política de capacitaçãopara os servidores.

2.5. Política de capacitação

A política de capacitação deve ser desenhada de forma a ga-rantir o desenvolvimento profissional dos servidores baseadono perfil necessário para o alcance dos resultados desejados

pela organização e inclui a concepção de planos anuais de ca-pacitação em cada organização, de forma a possibilitar o pla-nejamento das ações de treinamento.

O diagnóstico do emprego público federal demonstrou queos servidores possuem, em média, um nível de escolaridadebastante elevado e, assim, as ações de capacitação direciona-das aos mesmos têm que envolver um maior grau de comple-xidade. Além disso, como existe um grupo numeroso de ser-vidores nas áreas de suporte e operacional, parcela considerá-vel das ações de capacitação deve ser orientada para a melho-ria dos processos de trabalho nestas atividades, incorporandoas mudanças decorrentes da evolução tecnológica, o que tam-bém contribuiria para, a médio prazo, ajustar a magnitude dogrupo de servidores associados a estas ocupações. Por outrolado, os gestores da política de capacitação também precisam

evitar a oferta indiscriminada de cursos depós-graduação, que poderia constituir diretrizfácil em virtude da elevada qualificação dosservidores; tornar os servidores sobre-qualifi-cados em relação à função que desempenhampode provocar efeito contrário ao esperado,gerando desestímulo aos mesmos.

Os grandes grupos de ações de capacita-ção na administração pública devem ser osseguintes:

a) as ações vinculadas à disseminação damissão, objetivos, metas gerais e específicas dogrupo e da estratégia adotada pela organiza-ção (extensíveis a todos os seus servidores); b)as ações destinadas ao aprimoramento dascompetências necessárias para exercer as ativi-dades de uma determinada carreira (extensí-veis a todos os seus integrantes); c) as açõesdestinadas a aprimorar as competências indi-viduais, desenhadas com base nas informa-ções advindas das avaliações individuais; d) asações voltadas ao aprimoramento do conheci-mento sobre as alterações na tecnologia e pro-

cessos de trabalho; e) as ações orientadas para a mudança cul-tural dos gerentes; f) as ações necessárias à implementaçãodesse novo modelo de gestão de recursos humanos.

Os gerentes constituem-se em um conjunto de atores fun-damental para o processo de reforma da gestão pública e damudança cultural orientada para a busca de resultados. Es-pecificamente em relação à gestão de recursos humanos, éimportante que eles entendam sua função como gestores dodesenvolvimento profissional de seus subordinados, prin-cipalmente nos aspectos relacionados à avaliação, progres-são e capacitação. A ENAP, a ESAF e as demais escolas degoverno já vêm desempenhando há alguns anos um papelimportante nesse processo.

O diagnóstico doemprego públicofederal demonstrouque os servidorespossuem, emmédia, um nível deescolaridadebastante elevado e,assim, as açõesde capacitaçãodirecionadasaos mesmos têmque envolverum maior grau decomplexidade.

(6) Sobre o tema da avaliação de desempenho associada àperformance e principalmente sua relação com o pagamento desalários e bônus, ver OECD (2005).(7) Sobre esta questão, ver Barbosa (1996).

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2.6. Política de remuneração

A política de remuneração é aspecto muito sensível da ges-tão de recursos humanos, pois é o maior incentivo pecuniárioentre todos os existentes na relação entre a organização e seusfuncionários. Para que a política remuneratória seja vista co-mo justa e estimule a atuação dos servidores, a hierarquia sa-larial (o ordenamento dos salários a partir do maior para o me-nor) de uma organização deve ser consistente. Do contrário, épossível que o governo possa estar gastando uma quantidadesignificativa de recursos, e mesmo assim os servidores se en-contrarem insatisfeitos, enquanto o retorno desta despesa pa-ra a sociedade seria ínfimo.

A consistência da hierarquia salarial de uma organização égarantida pela observância dos seguintes critérios: a comple-xidade das atribuições desempenhadas, as competências re-queridas para tal, as responsabilidades envolvidas em sua exe-cução e o desempenho do servidor. A definição desta hierar-quia é trabalhosa e cara. Assim, um parâmetro mais simplespara avaliar a adequação dos salários praticados é a compa-ração com os valores observados no mercado privado que, por

ser mais ágil e dinâmico, promove o ajuste na hierarquia sa-larial de forma mais rápida e eficiente. Também é importantecomparar com as remunerações praticadas nas demais orga-nizações públicas que disputam a mesma força de trabalho. Oreequilíbrio da hierarquia salarial, caso sua necessidade sejadetectada, é fundamental para resgatar o caráter de incentivodos salários, o que implica em correções setoriais e diferencia-das para as carreiras que apresentarem as maiores defasagenssob este critério de comparação.

Outras variáveis que influem sobre o processo de definiçãodos salários no setor público são: a) a disponibilidade de recur-sos fiscais; b) a participação das receitas oriundas de transfe-rências na receita total da localidade (se esta participação forelevada, o ônus da tributação não recai sobre o contribuinte doEstado e por isso o governo se torna mais suscetível a concederaumentos) (8) e, c) as pressões políticas dos grupos mais nume-rosos (portanto associados a um grande número de eleitores),daqueles cujas atividades sejam essenciais ao Estado e dosmais próximos ao processo decisório (que podem influir for-temente sobre o mesmo). As duas primeiras afetam as remu-nerações de modo geral, enquanto a última influi sobre a es-trutura de salários relativos.

A análise dos salários praticados na administração públicafederal realizada na primeira parte deste trabalho demons-

A política de remuneração é aspecto muito sensível da gestão de RH, pois é o maior incentivo pecuniário entre todos os existentesna relação entre a organização e seus funcionários. Na foto, fila para inscrição em concurso público em Paulínia (SP).

(8) Ver Arvate et alli (2009).

Tiago Queiroz/AE

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ReferênciasbibliográficaArvate, Paulo R.; Marconi,Nelson; Moura N., J. S. ePalombo, Paulo E. (2009)."Vertical transfers and theappropriation of resources bythe bureaucracy: the case ofBrazilian state governments",in Public Choice. v. 141,Springer Netherlands.

Barbosa, Lívia (1996)."Meritocracia à Brasileira: Oque é Desempenho no Brasil",Revista do Serviço Público,v. 47(3), Brasília.

Benn, Jan (2008)."The Blinder–Oaxacadecomposition for linearregression models",in The Stata Journal, 8(4).

Keynes, J.Maynard (1936).A teoria geral do emprego,do juro e da moeda, Ed. Atlas,São Paulo, versão emportuguês, 1982.

Marconi, Nelson (2005)."Políticas integradas derecursos humanos para o setorpúblico", in Levy, Evelyn eDrago, Pedro A., orgs.,Gestão Pública no BrasilContemporâneo. EdiçõesFundap. São Paulo, Brasil.

Oaxaca, R. (1973). Male-femalewage differentials in urbanlabor markets. InternationalEconomic Review, Universityof Pennsylvania and OsakaUniversity Institute of Socialand Economic ResearchAssociation, vol. 14(3).

OECD (2005). "Performance-related pay policies forgovernment employees".OECD. Paris, França.

Rocha, Fabiana (2006). "Ajustefiscal, composição do gastopúblico e crescimentoeconômico", in Mendes,Marcos (org.), Gasto PúblicoEficiente. Ed. Topbooks.

trou que os níveis remuneratórios são bastante elevados. As-sim, o governo federal não precisa concentrar esforços e re-cursos no sentido de recuperá-los ainda mais; pelo contrário,terá de se preocupar em conter avanços posteriores. Deveráaplicar reajustes apenas pontuais, visando manter a consis-tência da hierarquia salarial. É importante também reduzir(através da agregação) o número de parcelas remuneratóriaspara tornar a hierarquia salarial mais transparente, tanto pa-ra os servidores como para os gerentes e a própria sociedade.Isto o governo atual vem fazendo; entretanto, ao transformaros salários de algumas categorias em subsídio (parcela úni-ca), impossibilita a existência de um mecanismo com as ca-racterísticas descritas a seguir.

Seria muito importante para a política de recursos humanosque o governo federal adotasse um instrumento que se cons-tituísse em um incentivo para os servidores e possibilitasse aomesmo tempo cobrar resultados. Neste sentido, a criação deum bônus vinculado aos resultados obtidos na orga-nização e pelas equipes, de forma a recompensar aperformance e estimular o trabalho em grupo e o en-volvimento de todos os servidores no alcance dasmetas definidas para a organização, seria bem-vin-da. Este mecanismo de remuneração variável é total-mente compatível com um modelo de gestão orien-tado para resultados e, mais especificamente, fun-damental para complementar a consistência de ummodelo de gestão de recursos humanos baseado naavaliação de desempenho e na aquisição de compe-tências. A Constituição Federal, em seu artigo 39, pa-rágrafo 7º, cria esta possibilidade.

3. Comentários finais

Além destes aspectos, outros devem ser conside-rados na construção de um modelo bem sucedido depolítica de recursos humanos. Destacam-se os seguintes: a) aredefinição das atividades que o Estado vai exercer diretamen-te e daquelas que pretende contratar, o que constitui um insu-mo relevante para a elaboração do planejamento da força detrabalho; b) a regulamentação adequada do estágio probatórioe da possibilidade de demissão por insuficiência de desempe-nho; c) o cálculo do impacto das medidas a serem implemen-tadas; d) o equacionamento do problema do financiamento daPrevidência do Servidor Público; e) a definição de uma estra-tégia de gestão e comunicação das mudanças.

Neste artigo, foram discutidos estratégias e instrumentosque possibilitem atenuar as distorções da atual política de re-cursos humanos do governo federal, bem como do perfil desua força de trabalho, e potencializar as vantagens já existen-tes, tais como o elevado grau de escolaridade dos servidores eos níveis salariais satisfatórios. A proposta aqui apresentadavisa melhorar o desempenho do setor público e contribuir pa-ra o aprimoramento da qualificação e da atuação de seu qua-dro de pessoal. Por fim é fundamental ressaltar que a sua im-plementação deve resultar em maior envolvimento dos servi-dores no processo decisório, o que significa importante estí-mulo à sua dedicação e desempenho.

Seria muitoimportante para apolítica de recursoshumanos que ogoverno federaladotasse um instrumentoque se constituísseem um incentivopara os servidores epossibilitasse ao mesmotempo cobrar resultados.

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