digesto econômico nº 461

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Agosto de 2010

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3AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

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Alencar BurtiPresidente da Associação Comercial de

São Paulo e da Federação das AssociaçõesComerciais do Estado de São Paulo

Écom imenso orgulho que apresentamos osexto e último número da série especialPropostas para o Próximo Presidente,

que a revista Digesto Econômicovem publican-do desde o início do ano. Dessa forma, cumpri-mos o compromisso assumido e reunimos 35 es-tudos inéditos, assinados por 38 especialistas derenome, que durante estas seis edições fize-ram, com exclusividade, uma análise profun-da das principais deficiências do País, apre-sentando propostas concretas para o próxi-mo governo. Este trabalho, coordenado peloeconomista Roberto Macedo, será entregue aos candida-tos à Presidência da República, juntamente com um docu-mento contendo as propostas que aAssociação Comer-cial de São Paulo está apoiando, fruto de discussões in-ternas envolvendo seus órgãos consultivos e decisórios. Onosso objetivo é contribuir com o processo eleitoral, levan-do para os debates temas relevantes para o desenvolvi-mento do nosso País.

Neste número, o ex-ministro da Fazenda, do Meio Am-biente e diplomata Rubens Ricupero faz um balanço dapolítica externa do atual governo. Segundo ele, apesar doinegável sucesso internacional do presidente Lula, suapolítica externa está longe de apresentar a mesma apro-vação e consenso. Nas questões cruciais de valores mo-rais e humanísticos – como direitos humanos, democra-cia, a não-proliferação nuclear, o aquecimento global – ogoverno se vê cada vez mais contestado devido às acu-sações de indiferença diante de violações notórias, dadefesa contraditória de regimes opressivos, do pragma-tismo calculista que demonstraria na busca de aliançasduvidosas em detrimento de interesses universais.

O economista Roberto Macedo defende em seu tra-balho a reformulação da política macroeconômica. Pa-ra ele, o Brasil vive uma situação de "subdesempenhosatisfatório", pois o contentamento popular e a euforiademonstrada e difundida pelo Governo Federal nãocondizem com o status pouco vigoroso do País segun-do vários indicadores, tanto em termos absolutos comoem comparações internacionais.

Em seu artigo, o economista Ulisses Ruiz de Gamboafaz uma análise do mercado de crédito e apresenta dezpropostas para reduzir o spread bancário. Para ele, ummercado financeiro mais desenvolvido está associadoa uma maior taxa de crescimento econômico no longoprazo, e o "aprofundamento" do mercado de crédito de-sempenha papel fundamental nesse processo, poispermite que a taxa de juros funcione como sinalizadorpara as decisões de consumo e poupança, possibili-tando um uso mais eficiente dos fundos no financia-mento do investimento produtivo.

Luís Eduardo Schoueri, professor titular de Direito Tri-butário da Faculdade de Direito da USP, professor daUniversidade Presbiteriana Mackenzie e vice-presiden-te da Associação Comercial de São Paulo, aborda os ru-

mos do sistema tributário, apresentando di-versas medidas simples, que independem deuma reforma constitucional, e que poderiamcontribuir muito para o aprimoramento da tri-butação no Brasil. Nesse sentido, são apre-

sentadas propostas referentes à tributaçãosobre o consumo, à redução das obriga-ções acessórias, à definição de responsa-bilidade, ao PIS e à Cofins, à guerra fiscal,aos investimentos brasileiros no exterior eaos preços de transferência.

Em seu trabalho, o economista AndréPortela Souza analisa os programas de transferênciade renda no Brasil. Segundo afirma, as evidências em-píricas dos programas sociais e do Bolsa Família de-monstram que esses programas têm sido efetivos emfocalizar as transferências de renda para as famíliasmais pobres monetariamente, mas não tão efetivo emestimular de maneira significativa a acumulação de ca-pital humano por parte das novas gerações.

A inserção de empresas de pequeno porte em mer-cados externos é objeto do estudo do engenheiro civil eeconomista José Cândido Senna. Ele conta que a preo-cupação com o tema está relacionada ao fato de a in-serção ser considerada elemento-chave para o cresci-mento sustentado das vendas externas, pois à medidaque se aumenta a base exportadora com a participa-ção de pequenos produtores, ampliam-se as perspec-tivas de diversificação, tanto da pauta de produtos ex-portados como de destinos dos mesmos.

Já o advogado Alexandre de Moraes, ex-secretáriomunicipal de Transportes e ex- presidente da CET e daSPTrans, argumenta sobre a necessidade de fortaleci-mento das competências dos estados-membros da fe-deração. Para ele, a manutenção do equilíbrio demo-crático depende do bom entendimento, definição, fixa-ção de funções, deveres e responsabilidades entre ostrês Poderes, bem como a fiel observância da distribui-ção de competências, característica do pacto federa-tivo, consagrado constitucionalmente no Brasil desdea primeira Constituição Republicana, em 1891.

Por fim, gostaríamos de enfatizar aos que se propõem àárdua tarefa de administrar um Brasil cada vez mais im-portante no contexto mundial, que nos seus cem primei-ros dias de governo tivessem pronta em mãos uma pro-posta de reforma política, na qual a voz da sociedade fos-se realmente ouvida e acatada.

Boa leitura!

Pablo de Sousa/LUZ

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4 DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

ÍNDICE

Rua Boa Vista, 51 - PABX: 3244-3030CEP 01014-911 - São Paulo - SP

home page: http://www.acsp.com.bre-mail: [email protected]

Pre s i d e nteAlencar Burti

Superintendente InstitucionalMarcel Domingos Solimeo

Coordenador da Série Especial Eleições 2010Roberto Macedo

ISSN 0101-4218

Diretor-Resp onsávelJoão de Scantimburgo

Diretor de RedaçãoMoisés Rabinovici

Ed i to r - Ch e feJosé Guilherme Rodrigues Ferreira

Ed i to re sCarlos Ossamu e Domingos Zamagna

Chefia de ReportagemJosé Maria dos Santos

Editor de FotografiaAlex Ribeiro

Pesquisa de ImagemMirian Pimentel

Editor de ArteJosé Coelho

Projeto Gráfico e DiagramaçãoEvana Clicia Lisbôa Sutilo

Ilustrações e InfográficosAlfer, Jair Soares e Paulo Zilberman

Gerente Executiva de PublicidadeSonia Oliveira ([email protected]) 3244-3029

Gerente de OperaçõesJosé Gonçalves de Faria Filho ([email protected])

I m p re s s ã oPrintcrom Gráfica e Editora Ltda.

REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PUBLICIDADERua Boa Vista, 51, 6º andar CEP 01014-911

PABX (011) 3244-3030 REDAÇÃO (011) 3244-3055FAX (011) 3244-3046

w w w. d co m e rc i o. co m . b r

Capa impressa em papel Image 150 g/m² da FibriaCelulose S/A e o miolo no papel Kromma Silk 90 g/m²

da Suzano Papel e Celulose S/A. CAPAArte: MAX

6As relaçõesinternacionaispós-governo LulaRubens Ricupero

22Fundamentos para areformulação da políticamacroeconômicaRoberto Macedo

38Mercado de crédito e o novo governo: dezpropostas para reduzir o Spread BancárioUlisses Ruiz de Gamboa

54Considerações sobre osrumos do sistema tributárioLuís Eduardo Schoueri

70Inserção de produtores de pequenoporte em mercados externosJosé Cândido Senna

86A necessidade defortalecimento dascompetências dosEstados-Membrosda FederaçãobrasileiraAlexandre de Moraes

98Políticas Sociais,Bolsa Família eEmprego no BrasilAndré Portela Souza

Bruno Budrovic/Corbis

João Wainer/Folhapress

Dida Sampaio/AE

Zilberman

Divulgação

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5AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

Nas cinco primeiras edições da série especial Propostas para o Próximo Presidente,da revista Digesto Econômico, trinta e um especialistas apontaram problemas do Brasil

e apresentaram suas propostas. Foram eles:

C laud io de Mou ra Cas t ro Hé l io Zy lbe r s ta j nJ o s é Pa s t o r e J oaqu im E l ó i C i r n e de To l edoEthevaldo Siqueira Nelson Marconi Clóvis PanzariniJosé Roberto Afonso José Roberto Mendonça de BarrosGeraldo Biasoto Jr. Patricia Marrone Lídia GoldensteinRenato C. Pavan Josef Barat Car los A. RoccaGustavo Krause Carlos Melo Maria Teresa BustamanteNilton Molina João Manoel P. de Mello ViníciusCarrasco Jairo Saddi José Maria Chapina AlcazarDenis Lerrer Rosenfield Wilson Abrahão RabahyGustavo Maia Gomes José Raimundo de OliveiraVergolino José Vicente da Silva Filho Gunther RudzitV ladimi r Fe rnandes Macie l V i rg in ia Paren te

Acompanhe no site w w w. d c o m e r c i o . c o m . b r

Neste número, mais sete autores de renomefazem suas análises em outros setores e apontam soluções:

Rubens Ricupero Roberto Macedo Ulisses Ruiz deGamboa Luís Eduardo Schoueri José Cândido SennaAlexandre de Moraes André Po r te la Souza

Aos leitores: A sua revista Digesto Econômico (bimestral) será mensal até agosto, dedicada a um profundo balanço doBrasil pós-Lula. Chamada de "Propostas para o Próximo Presidente", esta série especial será posteriormente entregue a todos

os candidatos à Presidência da República, juntamente com um documento-síntese das propostas que a ACSP irá apoiar.

Apoio:

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AS RELAÇÕES INPÓS-GOVE

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Divulgação

Rubens RicuperoFormado em Direito pelaFaculdade de Direito daUSP, seguiu a carreiradiplomática, foiembaixador do Brasil nosEUA, na Itália e junto àONU e ao Acordo Geralde Comércio e Tarifas(GATT) em Genebra.Foi também ministro daFazenda, cabendo-lhe olançamento do Plano Real,em 1/7/1994, e ministrodo Meio Ambiente e daAmazônia. Atualmenteé diretor da Faculdadede Economia e RelaçõesInternacionais daFundação ArmandoÁlvares Penteado (FAAP) epresidente do Conselho doInstituto Fernand Braudelde Economia Mundial.

TERNACIONAISRNO LULA

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Resumo

O artigo busca efetuar um balanço completo, mas sintético,da evolução da política externa do Brasil durante os doismandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), como base analítica para propostas que corrijamsuas deficiências e possibilitem ao futuro governo adotardiplomacia capaz de produzir resultados mais concretose tangíveis para o país.

A primeira parte do estudo constitui uma descrição dascondições políticas e econômicas internacionais que criaramum espaço favorável à afirmação de atores intermediários,assim como da situação propícia em que se encontrava oBrasil para aproveitar tais oportunidades, graças ao esforçocumulativo de vários governos da Nova República,sobretudo desde a estabilização da economia ocorrida apartir dos governos Itamar Franco e Fernando HenriqueCardoso. Após passar em revista os setores principais deatuação do Brasil – Conselho de Segurança da ONU;Rodada Doha da Organização Mundial de Comércio(OMC); novos agrupamentos: G-20, BRICs, IBAS etc.,América do Sul e América Latina – o texto aponta osprincipais defeitos da atual diplomacia: excesso deprotagonismo presidencial; inspiração partidáriae ideológica, erosão do anterior consenso em tornode política externa voltada a objetivos nacionaispermanentes. A projeção do momento positivo daeconomia brasileira permitiu à diplomacia acumularprestígio internacional, que não foi, entretanto,suficiente para ajudar a resolver os problemas maisgraves do setor externo.

Por essa razão, recomendam-se as seguintes propostas deação futura, entre outras: 1) estilo mais sóbrio e construtivo,menos interessado em reuniões de cúpula ou na criação denovos grupos, mas dirigido ao esforço de fazer funcionaros já existentes; 2) concentração nos países mais próximosda América do Sul e da América Latina, em lugar deiniciativas de duvidosos benefícios em áreas afastadas dosinteresses diretos do País, como o Oriente Médio; 3) retornoa uma diplomacia institucional, conduzida pelo Itamaraty,sem interferências indevidas de partidos e ideologias;4) pragmatismo e senso de realidade, revendo a prioridadeexclusiva concedida às negociações multilaterais daRodada Doha e devotando tempo e empenho comparávela intentos menos ambiciosos, mas capazes de produziremefeitos palpáveis, concretos e imediatos: negociações parareduzir e/ou eliminar barreiras fitossanitárias a carnes,frutas, vegetais frescos; negociações de acordos bilateraise regionais; solução definitiva dos constantes atritoscomerciais com a Argentina; superação da passividadeante o permanente declínio do Mercosul.

Introdução

OBrasil se encontra hoje no ponto mais alto de seuprestígio internacional. Essa posição não se de-ve a um só governo ou a um fator único. É resul-tado de uma conjunção excepcional de oportu-

nidades externas favoráveis com uma situação interna de es-tabilidade política e econômica sem precedentes. Foi preciso,para chegar a este nível, o esforço cumulativo desenvolvido aolongo de muitos anos por sucessivos governos. O presidenteLula potencializou e multiplicou essas condições propícias aosimbolizar de certo modo, pela sua história pessoal, o exemplode ascensão do País como um todo. Sua identificação com asgrandes causas sociais de luta contra a fome e a pobreza, o ca-risma de personalidade autoconfiante, a vocação inata à nego-ciação foram elementos adicionais para reforçar a percepção

externa da emergência do Brasil como ator global.Apesar do inegável sucesso internacionaldo presidente, sua política externa está lon-

ge de comandar internamente grau com-parável de aprovação e de consenso

àquele que até recentemente encon-trava no exterior. À medida que o go-verno avança para o fim, é possíveldiscernir tendência a uma intensifi-cação das divergências sobre aorientação diplomática oficial. Cres-cem as críticas, juntamente com a im-

pressão, real ou imaginada, de que alinha internacional se radicaliza, dei-

xando-se contaminar por motivaçõesideológicas e partidárias com objetivos vol-

tados ao jogo interno do poder. Nas questõescruciais de valores morais e humanísticos – os direitos huma-nos, a democracia, a não-proliferação nuclear, o aquecimentoglobal –, o governo se vê cada vez mais contestado devido àsacusações de indiferença diante de violações notórias, da de-fesa contraditória de regimes opressivos, do pragmatismocalculista que demonstraria na busca de alianças duvidosasem detrimento de interesses universais.

O excesso de protagonismo presidencial, a sensação deque a diplomacia se colou de forma tão inseparável ao ca-risma do presidente Lula a ponto de se haver tornado in-transferível, suscita preocupações em relação ao que se afi-guraria para alguns críticos uma política externa persona-lista, de escasso espírito republicano, sem o desejável cará-ter institucional e permanente. Na antevéspera da sucessãopresidencial, o debate sobre a proposta da orientação inter-nacional que mais convém ao Brasil e não apenas a um pro-jeto de poder pessoal ou de uma facção não pode evitar oexame dessas alegações. É a partir delas que se tentará se-parar na linha de ação atualmente seguida aquilo que refleteas realidades e os interesses do País como um todo do que

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9AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

não passaria do efeito real, mas efêmero, dasedução exercida por uma liderança caris-mática desacompanhada de resultados obje-tivos e concretos.

O primeiro passo nesse exercício de análisedeve consistir na captação e exposição dos tra-ços característicos do contexto político e eco-nômico internacional que vêm possibilitandoa países como o Brasil adotar e executar umapolítica externa de crescente afirmação.

O contexto político eeconômico internacional

Ainda não se inventou expressão mais sin-tética e completa das condições da possibilida-de de êxito de um príncipe ou governante, desua política interna e externa do que a resumi-da por Maquiavel na fórmula virtù e fortuna. Avirtù como ideia que abrange o conjunto dasqualidades intrínsecas de um estadista e desua política, a coerência, a lógica, a adequaçãoconceitual à realidade, a proporção entremeios e fins, a clareza e exequibilidade dos ob-jetivos, sua correspondência aos interesses co-letivos, seu senso de equilíbrio e medida.

A fortuna sinaliza a somatória das circuns-tâncias mais ou menos favoráveis do meio in-ternacional envolvente, de um entorno quese beneficia de clima de paz e prosperidadeou se veja negativamente mergulhado emguerras e privações. Igualmente de uma con-juntura doméstica pacificada e estimulanteem razão da estabilidade interna e da coesãoda população ou, ao contrário, prejudicadapela divisão e confronto entre facções. Porfim, as vantagens extraídas de uma economia em expansãoou os obstáculos oriundos de um país em declínio.

Nenhuma política exterior, por melhor concebida que seja, es-capa do peso desses condicionamentos e a história diplomáticabrasileira fornece numerosos exemplos da afirmação. A melhorfase da diplomacia do Império, o momento em que o País final-mente consegue sacudir a tutela humilhante dos tratados desi-guais com o Reino Unido e se converte em força preponderantenos conflitos na região do Rio da Prata, corresponde aos anosapós a proclamação da Maioridade do Imperador D. Pedro II em1848. Desde então, a política de centralização e pacificação quepõe fim às lutas debilitadoras e aos riscos de desagregação da Re-gência proporcionará ao Estado os instrumentos mínimos paraconduzir uma política externa de maior autonomia e eficácia.

O oposto dessas condições prevalecerá na turbulenta déca-da de consolidação do regime republicano, entrecortada pelarebelião e os massacres de Canudos, a Revolta da Armada, aRevolução Federalista no sul, os degolamentos e execuções su-márias do governo de Floriano, o Encilhamento e a desorga-nização da economia. Será preciso esperar pela conclusão daobra de estabilização política e restabelecimento econômico

levada a efeito pelos governos de Prudente de Morais e deCampos Sales para que se reencontrem sob os mandatos de Ro-drigues Alves, de Afonso Pena e parte de seus dois sucessoresas condições de prosperidade e paz que permitirão ao barão doRio Branco realizar uma diplomacia de extraordinário êxito eprojeção, entre 1902 e 1912.

Um contra-exemplo de como a soma de fatores adversos in-ternacionais e internos pode fazer naufragar política inteligen-te e bem concebida é a da chamada Política Externa Indepen-dente. Primeiramente inaugurada pelo presidente Jânio Qua-dros, prosseguida sob João Goulart pelos chanceleres San Tia-go Dantas e Araújo Castro, ela sucumbiria vítima das tensõesexternas da Guerra Fria magnificadas pela crise econômica epela radicalização da política brasileira, que culminariam nogolpe militar de 1964. Uma década depois, muitos de seuspressupostos seriam retomados, quando as circunstâncias setornaram mais propícias, no governo Geisel e inspirariam apolítica conduzida pelo ministro Azeredo da Silveira.

Estendi-me um pouco sobre os antecedentes históricos brasi-leiros para ilustrar uma verdade central em todas as épocas e na-ções: não basta o voluntarismo para assegurar o êxito até mesmo

Reprodução

Reprodução

A política externa independente,inaugurada pelo presidente

Jânio Quadros (acima),prosseguiu sob o governo JoãoGoulart através dos chanceleres

San Tiago Dantas (ao lado) eAraújo Castro, mas viria a

sucumbir vítima das tensõesexternas da Guerra Fria,

magnificadas pela radicalizaçãoda política brasileira.

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da mais inteligente e inspirada das políticas se lhe faltarem mí-nimas condições externas e domésticas para levá-la adiante. Ajusta aquilatação do mérito da diplomacia de um governo nãopode prescindir da consideração do que no êxito ou fracasso daorientação se deve à fortuna ou à virtù dos governantes.

A fim de aplicar esse critério à política externa do governo Lu-la e projetá-lo para os próximos anos, convém principiar poruma reflexão sobre as características que vem diferenciando aprimeira década do século, diferenciando-a da fase anterior.

Em termos políticos globais, assiste-se ao aparecimento deespaço propício à afirmação de um novo policentrismo, isto é,à possibilidade de que atores de poder intermediário (Brasil,Índia, África do Sul, Turquia) tomem iniciativas autônomasem temas globais antes reservados às potências preponderan-tes (os cinco membros permanentes do Conselho de Seguran-ça da ONU: EUA, China, Rússia, Reino Unido, França). O po-licentrismo se viabiliza aos poucos, à medidaque o unilateralismo da estratégia de GeorgeW. Bush na resposta aos atentados de Onze deSetembro, sobretudo a invasão do Iraque, adoutrina do "preemptive attack" e do Eixo doMal, se revelam incapazes de concluir com êxi-to o engajamento militar não apenas no Iraque,mas também no Afeganistão. O consequenteenfraquecimento relativo do poder e do pres-tígio americanos sofrerá o desgaste adicionalda crise econômico-financeira, levando à acei-tação pelo próprio governo Obama dessa alte-ração na realidade internacional.

No domínio econômico, o cenário aparecede início (2003-2008) marcado por fase semprecedentes de expansão da economia mun-dial (preços das commodities, liquidez finan-ceira, juros baixos), seguida por crise financei-ra aguda que desorganizou e debilitou de pre-ferência as economias ocidentais de capitalis-mo avançado, reforçando os efeitos daemergência econômica da China e precipitan-do a aceitação do G-20 como instância substituta do G-7 na co-ordenação da economia global.

Na América Latina, registra-se um vazio de liderança, pro-vocado pela acentuação do desvio da atenção dos EUA paraoutras regiões prioritárias do ponto de vista de segurança, emparticular o Oriente Médio e a Ásia e pelo apagamento tem-porário do México e da Argentina. Ao mesmo tempo, aumen-tam em intensidade as divergências e a heterogeneidade de re-gimes em decorrência das experiências radicais de refundaçãoencarnadas na Venezuela de Chávez, na Bolívia de Morales eno Equador de Correa, complicando as perspectivas de efetivaintegração econômica ou de colaboração político-estratégica.

As duas primeiras tendências se reforçaram uma à outra,abrindo possibilidades inéditas para atores intermediários fa-vorecidos por condições de estabilidade político-econômica edotados de capacidade de formulação e iniciativa diplomáti-cas como o Brasil no começo de 2003. Superados os solavancoseconômicos iniciais, graças ao equilíbrio com que soube res-tabelecer a confiança abalada, o governo Lula foi o afortunado

herdeiro de uma Nova República que havia consolidado a de-mocracia de massas, a coesão social interna e a estabilidade doshorizontes econômicos. Em nada lhe diminui o mérito reco-nhecer que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva desfrutou deexcepcionais vantagens internas e internacionais para viabili-zar uma política exterior de ambiciosa projeção do País.

Os eixos principais dadiplomacia do presidente Lula

Embora a diplomacia de Lula desperte considerável contro-vérsia, não chega a ser mudança radical de paradigma comoocorreu quando a Política Externa Independente substituiu deforma duradoura o paradigma anterior de Rio Branco, Joa-quim Nabuco e Oswaldo Aranha.

Inspirada pelo desejo de aproveitar as oportunidades sur-gidas, sobretudo em âmbito global, a políticaexterna do governo Lula se desdobrou desde oinício ao longo de quatro eixos principais:

1) A obtenção do reconhecimento do Brasilcomo ator político global de primeira ordem nosistema internacional policêntrico em forma-ção, o que normalmente se vem traduzindo pe-la busca de um posto permanente no Conselhode Segurança da ONU, mas pode assumireventualmente outras modalidades de realiza-ção como a participação nos recém-criadosagrupamentos do G-20, BRICs e IBAS; outramodalidade possível de expressão da tendên-cia é a de iniciativas autônomas como a do re-cente acordo com o Irã e a Turquia a respeito doprograma nuclear do primeiro.

2) A consolidação de condições econômicasinternacionais que favoreçam o desenvolvi-mento a partir das vantagens comparativasbrasileiras concentradas na agricultura, objeti-vo que se expressa primordialmente na conclu-são da Rodada Doha da OMC, mas que se es-

tende também aos temas financeiros sob a égide do G-20.3) A dimensão reforçada emprestada às relações Sul-Sul, en-

sejada naturalmente pela forte e visível emergência da China,Índia, África do Sul, pela retomada do crescimento africano eexpressa na proliferação de foros de contactos, alguns super-postos aos gerais (IBAS, BRICs em parte), outros originais,(AFRAS, ASPA, Brasil-CARICOM etc).

4) A edificação de espaço político-estratégico e econômico-comercial de composição exclusiva sul-americana (implicita-mente de preponderância brasileira no resultado, se não na in-tenção), a partir da expansão gradual do Mercosul.

Presentes como objetivos gerais, quase permanentes, aindaque sob forma diversa no passado, os eixos da diplomacia ad-quiriram ênfase maior ou enfoque diferente no governo atual,seja em razão de inovações doutrinárias da política de Lula, sejaem função da alteração das circunstâncias ou do aparecimentode oportunidades. A prioridade dada à candidatura ao Conse-lho de Segurança seria inconcebível se a tentativa de reforma am-biciosa da ONU empreendida por Kofi Annan em 2005 não ti-

Na AméricaLatina, registra-se umvazio de liderança,provocado pelaacentuação do desvioda atenção dos EUApara outras regiõesprioritárias do pontode vista de segurança,em particular o OrienteMédio e a Ásiae pelo apagamentotemporário do Méxicoe da Argentina.

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vesse antes colocado a questão na agenda internacional. De for-ma similar, a centralidade que se conferiu à Rodada Doha se de-veu, em parte, ao calendário: sua conclusão, se tudo corressebem, teria ocorrido dentro do mandato deste governo.

O balanço provisório dos resultados alcançados pela di-plomacia mostra que, dependendo do tema, os avanços va-riam, da mesma forma que varia a distância entre as preten-sões brasileiras e a realidade. Em nenhum dos casos se atin-giram plenamente os objetivos, mas a frustração não se devesempre a culpas ou deficiências de nossa parte. De modosimplificado, não seria exagero dizer que, nos dois primeiroseixos, o governo brasileiro quer, mas não pode; no da Amé-rica do Sul, pode, mas não quer.

Passarei em revista a partir deste ponto as principais inicia-tivas adotadas em cada um dos eixos da política externa, pro-curando, sempre que for o caso, apontar e realçar com grafiadistinta, as críticas que se afigurem justificadas e as propostasou sugestões a respeito dos temas examinados.

Conselho de Segurança daOrganização das Nações Unidas

Trocando em miúdos, na Organização das Nações Unidase na Organização Mundial de Comércio, ainda que o Brasilfaça tudo certo, sua capacidade de influenciar os aconteci-mentos não é suficiente para resolver os impasses da manei-ra que desejamos. Por mais que nos esforcemos, não se lo-grou até agora produzir consenso para reformar o Conselhode Segurança, nem para concluir a Rodada Doha, quantomais para fazê-lo de acordo com os interesses do Brasil. Querdizer: é mais um problema de insuficiência de poder ou von-tade política, não só do Brasil, mas dos demais, que de faltade política apropriada de nossa parte.

Isso não significa que não se haja feito nada. Ao contrário,em ambos os foros a atuação brasileira nos havia posicionadoaté recentemente de maneira favorável a tirar bom partido deeventual retorno de condições propícias a um avanço.

Em termos do Conselho de Segurança, a política do atual go-verno claramente se demarca da do anterior, cuja tendência erade não valorizar tanto a questão ou de conceber a eventual can-didatura brasileira numa espécie de condomínio com a Argen-tina a fim de não prejudicar o relacionamento com o vizinho. Éinegável que o Brasil conquistou neste momento uma situaçãodiferenciada em relação a outros aspirantes latino-america-nos, como o México e a Argentina, distanciando-se como o fa-vorito para ocupar uma cadeira que vier acaso a ser destinadaà América Latina. Reflexo principalmente do próprio cresci-mento econômico e estabilidade brasileiras, a percepção dife-renciada deve ser também creditada ao ativismo e senso deoportunidade da atual política externa.

A surpreendente guinada da atitude brasileira em relação aum regime como o iraniano, objeto de várias sanções do Con-selho de Segurança, inspira dúvidas sobre a lógica e a consis-tência da política que o Brasil vinha perseguindo em relação aoConselho. Ao aceitar a troca de visitas no mais alto nível comnação geralmente acusada de desafiar as sanções, violar a de-mocracia e os direitos humanos, negar o Holocausto e tentaradquirir armas atômicas, contrariando o Tratado de Não-Pro-liferação Nuclear, o País tomou decisão de implicações nega-tivas junto a uma parcela importante e influente da opinião pú-blica mundial que seguramente pesará no momento de even-tual reforma da composição do Conselho de Segurança.

O recente acordo com o Irã, mediado junto com a Turquia,teria sido um passo relevante, talvez até decisivo, para valo-rizar a postura brasileira (e turca), caso tivesse sido coordena-do e harmonizado com o grupo de "Cinco mais Um" (os cinco

Divulgação

Na Organização dasNações Unidas e naOrganização Mundialdo Comércio, aindaque o Brasil faça tudocerto, sua capacidadede influenciar osacontecimentos nãoé suficiente pararesolver os impassesda maneira quedesejamos. Na foto,o presidente Lulaposa ao lado dosecretário-geral daONU, Ban Ki-moon.

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membros permanentes do Conselho de Segurança mais a Ale-manha). Para isso, ele deveria ter sido precedido e acompa-nhado de consultas a esses países, dos quais teria de dependera implementação do acordo no Conselho. Ficou evidente, con-tudo, pela reação dos integrantes do grupo, que o resultadodas tratativas em Teerã apareceu como um fato consumado aser imposto aos demais, já que a solução negociada deixou decobrir pontos vitais para dissipar a desconfiança. Ademais, aprópria atmosfera de triunfo desportivo que cercou a assina-tura na capital do Irã, com os patrocinadores erguendo os bra-ços em sinal de vitória, realçou no gesto os aspectos de desafio,não de conciliação, não contribuindo naturalmente para fazerapreciar o acordo pelos destinatários da manobra.

O episódio revela, ao mesmo tempo, o potencial e os limiteshoje existentes para a afirmação de atores intermediários e alição a extrair do ocorrido é que o potencial terá possibilidadesmaiores de se traduzir em frutos concretos na medida em queas iniciativas assumirem natureza mais construtiva. O méritodo esforço brasileiro permanece, mas amputado do êxito com-pleto que se poderia haver esperado, deixando até rescaldosde ressentimentos que poderão complicar o atendimento dasaspirações nacionais ao Conselho de Segurança.

Os resultados indecisos da empresa não devem igualmentedesencorajar outras iniciativas do Brasil em favor da paz e dasegurança internacionais, até mesmo em regiões onde nossapresença diplomática, capacidade de influência ou conheci-mento da realidade sejam relativamente menos intensas. O im-portante é que o futuro governo saiba escolher com critério cui-dadoso as oportunidades de atuar, buscando medir sem ilusõeso balanço de custos e benefícios potenciais e esforçando-se, sem-pre que as circunstâncias o aconselharem, a agir de maneira co-operativa com outros atores, de modo discreto, sem excessos oujactâncias geradoras de resistências e reações hostis.

Essa, aliás, deve ser a linha de orientação a ser invariavelmen-te seguida nos trabalhos do Conselho de Segurança, no seio doqual o Brasil deve se impor pelos méritos de uma diplomaciaque represente uma força de moderação e equilíbrio, de conci-liação e aproximação de adversários, em consonância com a si-tuação de um país como o nosso, que não é potência nuclear nemmilitar, não possui veleidades hegemônicas nem está compro-metido com rivalidades em conflitos regionais. Sem ansiedadesou ativismos desnecessários, o governo terá então a segurançade que o nome do Brasil há de constituir um consenso crescenteda comunidade internacional como aspirante irrecusável noprocesso de ampliação do Conselho a fim de torná-lo mais re-presentativo das novas realidades internacionais.

Os novos grupos de coordenação diplomática

Os esforços de articular agrupamentos diplomáticos inéditoscom a Rússia, a Índia e a China (BRICs) ou com a Índia e a Áfricado Sul (IBAS) oferecem a vantagem do fato consumado: pelopróprio peso específico, sem qualquer necessidade de delega-ção dos outros, o Brasil tornou-se efetivamente o representanteda América Latina nesses grupos. Não por acaso, eles reúnem osmembros permanentes do Conselho de Segurança (China eRússia) e os aspirantes a essa posição que têm em comum a cir-cunstância de não serem aliados dos Estados Unidos na Orga-nização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Seria uma es-pécie de clube dos "candidatos naturais" ao reconhecimento deum status internacional mais elevado em cada um dos três con-tinentes: Índia (Ásia, a candidatura do Japão ficando por contados norte-americanos), África do Sul (África) e Brasil (AméricaLatina). Os foros Sul-Sul servem para realçar que o Brasil é o atormais "global" entre os latino-americanos, muitos dos quais con-finados a uma diplomacia meramente regional.

Wilson Pedrosa/AE

A surpreendenteguinada da atitude

brasileira em relaçãoa um regime como oiraniano, objeto devárias sanções do

Conselho de Segurança,inspira dúvidas sobre a

lógica e a consistênciada política que o Brasilvinha perseguindo em

relação ao Conselho.Na foto, os presidentes

Lula e MahmoudAhmadinejad (Irã), e o

primeiro-ministro turcoRecep Erdogan.

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13AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

O desafio que o futuro governo brasileiro terá de superar,junto com os demais membros, consistirá em contribuir paraformular uma plataforma de ação conjunta que signifique naprática um verdadeiro valor adicional desses grupos em rela-ção ao que já vem sendo feito pelo G-20. Para isso seria neces-sário unificar o comportamento internacional de países cominteresses tão heterogêneos como os dos dois grupos mencio-nados. Ambos são como o G-20 expressão do mesmo fenôme-no: a procura por instituições e mecanismos de coordenação ede governança global. Diante do bloqueio da possibilidade decriar estruturas globais novas ou de reformar as existentesdentro do processo legitimador por excelência da Carta daONU, como seria ideal e desejável, a emergência de grupos degeometria variável como esses demonstra que existe espaçopara a inventividade diplomática de países como o Brasil, frus-trados pelo impasse onusiano. Até o presente, no entanto, es-ses agrupamentos não se mostraram capazes de ir além de do-cumentos declaratórios genéricos, sem impacto perceptívelnaquilo que seria sua finalidade natural: conseguir que os qua-tro BRICs atuem em uníssono, com uma plataforma de açãocomum, no aprimoramento da governança global.

Essa tarefa tem ficado virtualmente por conta do G-20, cujaemergência como instância política suprema de coordenaçãomacroeconômica foi, sem dúvida, uma das mais impressio-nantes transformações da ordem internacional dos últimosanos. A incorporação súbita de novos atores a um processo de-cisório até então ciumentamente guardado com exclusividadepelas grandes economias avançadas representou, ao mesmotempo, a imposição de uma exigência nascida da crise finan-ceira mundial e o reconhecimento de modificação na correla-ção das forças econômicas que já estava em curso. Para o Brasilo salto foi ainda mais significativo por nos habilitar a aceder aoâmbito das grandes decisões financeiras e monetárias a queantes só comparecíamos como réus relapsos de moratórias eatrasos de pagamento. Tratou-se também da ampliação dapresença e da influência do País em uma área nova, comple-mentar e decisiva em relação à esfera comercial na qual sempreestivemos atuantes.

A coincidência do instante mais agudo da crise de 2008com a presidência rotativa do G-20 pelo ministro GuidoMantega constituiu uma circunstância feliz, que facilitou oesforço brasileiro de evitar que a convocação se limitasse aum episódio de emergência sem continuidade. Tanto o mi-nistro da Fazenda quanto o presidente Lula exerceram in-fluência considerável para que o processo adquirisse muitomais consistência e permanência, convertendo-se no foromais elevado das lideranças mundiais. Em estreita articula-ção com os demais BRICs, o Brasil se empenhou em reformara arquitetura financeira internacional no sentido de propor-cionar aos países emergentes maiores poderes e responsabi-lidades em todas as instâncias deliberativas na área mone-tária e financeira, não só nas instituições de Bretton Woods,mas também em organismos como o Foro de Estabilidade Fi-nanceira (FSF), transformado em Conselho de EstabilidadeFinanceira (FSB) de Basiléia, com a incorporação dos paísesemergentes, assim como em outros foros que congregam su-pervisores e reguladores do sistema financeiro.

Da esquerda para a direita,o presidente russo Dmitri

Medvedev, o presidente Lula, opresidente chinês Hu Jintao eo primeiro ministro indiano

Manmohan Singh. Brasil, Rússia,Índia e China formam o BRIC,bloco dos países emergentes.

Sérgio Lima/Folhapress

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14 DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

Uma iniciativa de implicações relevantes nos anos vindourosfoi a decisão deliberada dos BRICs de conquistarem virtual po-der de veto (blocking minority) ao fazerem um aporte de US$ 92bilhões (US$ 50 bi da China e US$ 14 bi de cada um dos três, Bra-sil, Índia e Rússia), mais de 15% do total, à nova estrutura criadapara socorrer as economias em crise, o chamado New Arrange-ments to Borrow (NAB). O poder desse modo adquirido ganharelevo particular quando se considera que o volume da facilida-de criada (US$ 590 bi) é mais do que o dobro do que os US$ 250 bidas quotas/capital regular do Fundo Monetário Internacional.

A questão que se coloca para o próximo governo é como as-segurar a contínua relevância do G-20 como foro central dasdecisões no momento em que as crises atuais, concentradas naEuropa, tiverem afinal sido superadas. Isso significa que o Bra-sil se deve preparar a contribuir com competência intelectual etécnica à tarefa de edificar uma economia nova, menos sujeitaa crises catastróficas periódicas e evitáveis. Para tal objetivo,não bastará ao País se limitar a uma atitude de vigilância e re-sistência à tendência das maiores economias avançadas nosentido de reverterem os avanços de democra-tização do processo decisório uma vez se retor-ne à normalidade. Será indispensável que,além da atitude vigilante, o governo ganhe efe-tiva capacidade propositiva no debate sobremacroeconomia mundial e instituições de re-gulamentação e supervisão.

Posso atestar com a experiência que tive noMinistério da Fazenda que teremos de reforçarconsideravelmente em número de pessoal tec-nicamente qualificado a área internacional doministério, que dispõe de quadros escassos, em-bora de alta qualidade, como é o caso do atualSecretário de Assuntos Internacionais (SAIN),embaixador Marcos Galvão, que tem sido oprincipal representante brasileiro nas reuniõesdo G-20. Tanto a SAIN como a SPE (Secretaria dePolítica Econômica) necessitam dispor de capa-cidade instalada equivalente à dos ministérios de Finanças dasmaiores economias do mundo, das quais o Brasil hoje se apro-xima. A mesma recomendação tem de ser estendida à área in-ternacional do Banco Central, ao Planejamento (que representa oBrasil nos bancos regionais) e ao setor econômico-financeiro doItamaraty. Em outras palavras, a diplomacia econômico-finan-ceira era, até recentemente, um campo virgem para o governo,que terá de lhe dar atenção à altura de sua importância determi-nante para o futuro de nossa economia.

O futuro presidente deveria igualmente estabelecer, sob aliderança do Ministério da Fazenda, um mecanismo perma-nente de diálogo e consulta com setores da sociedade civil –lideranças parlamentares, empresariais, universitárias – sobretemas da agenda da diplomacia econômico-financeira inter-nacional com implicações para a vida brasileira. Valeria a penatambém propor aos outros membros latino-americanos do G-20, o México e a Argentina, que se crie um processo de diálogoe informação com os países da região não integrantes do grupoa fim de melhor encaminhar suas aspirações e oferecer-lhesum sentimento de participação e envolvimento nas decisões.

As negociações na OrganizaçãoMundial de Comércio (OMC)

Se houve, portanto, diferenças inegáveis em relação ao go-verno anterior na ênfase dada ao Conselho de Segurança, bemcomo nas oportunidades antes inexistentes sobre agrupamen-tos que só surgiram agora como o G-20, os BRICs, e outros, exis-te nas negociações da OMC muito mais continuidade do quemudança na linha negociadora seguida pelos governos brasi-leiros ao longo de muitos anos, primeiro no GATT, mais tardena sua sucessora, a Organização Mundial de Comércio. Mes-mo as eventuais alterações se afiguram quase sempre desdo-bramentos naturais impostos por novas fases da RodadaDoha, originando-se nos governos passados muitas das posi-ções e alianças utilizadas na OMC.

O recurso à abertura de contenciosos exemplares como odos subsídios ao algodão contra os Estados Unidos (poste-riormente contra os subsídios da União Europeia ao açúcar)é uma boa ilustração da continuidade de política de Estado,

pois havia sido iniciado pelo governo do pre-sidente Fernando Henrique Cardoso. É tam-bém raro exemplo entre nós de coordenaçãocom órgãos competentes na substância, comoo Ministério da Agricultura e entidades pri-vadas representativas dos produtores, cujacolaboração, inclusive no financiamento dacausa, se revelou decisiva. Ademais, dataigualmente da administração do ministroCelso Lafer a decisão de estabelecer na estru-tura do Itamaraty um setor especializado emcontencioso, provido dos recursos humanoscapazes de empreender uma ação de extraor-dinária complexidade técnica e jurídica, co-mo foi a dessa indiscutível vitória da diplo-macia comercial brasileira.

Outro exemplo da continuidade básica napolítica do Brasil nas negociações comerciais

multilaterais é o da criação do Grupo dos Vinte da OMC, ino-vação tática que se deveu à iniciativa, acolhida pelo chancelerCelso Amorim, do então embaixador do Brasil na OMC, LuizFelipe de Seixas Corrêa, que havia sido justamente o secretá-rio-geral do Itamaraty na gestão anterior, do ministro Lafer.

Diante do persistente impasse nas negociações da RodadaDoha, o próximo governo não poderá deixar de conduzir umexame criterioso da conveniência de remanejar as prioridades dadiplomacia comercial do Brasil. Não se trata obviamente de re-comendar que se desconheça o valor insubstituível da Organi-zação Mundial de Comércio como o foro por excelência paraavanços em temas sistêmicos, como o dos subsídios agrícolas oupara a solução quase-judicial de contenciosos. Sem esmorecernos esforços e na atenção que temos dedicado à OMC, devemosindagar até que ponto se justifica uma concentração talvez ex-cessiva nas expectativas criadas pela Rodada Doha. A verdade éque a indústria brasileira, que sofre de problemas crônicos decompetitividade, revela escasso entusiasmo pelos ganhos po-tenciais da Rodada, temendo que os benefícios da eventual re-dução nos picos tarifários em produtos sensíveis (têxteis, calça-

Sem esmorecernos esforços e naatenção que temosdedicado à OMC,devemos indagaraté que ponto sejustifica umaconcentração talvezexcessiva nasexpectativas criadaspela Rodada Doha.

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15AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

dos, artigos de couro) sejampraticamente monopolizadospelos chineses e outros asiáti-cos. Receiam ainda que, emdecorrência de tal redução, te-rão o ônus adicional da maiorpenetração asiática no merca-do doméstico brasileiro.

A compensação que espe-ramos receber em agriculturaprecisa também ser submeti-da a um crivo analítico rigoro-so. Os subsídios agrícolas, éclaro, somente serão reduzi-dos de modo apreciável nasnegociações multilaterais,sendo essa a razão principalque aconselha nosso contí-nuo engajamento. Deve-se,contudo, examinar até queponto assiste razão à Confe-deração Nacional da Agricul-tura, para a qual o problemanão viria tanto dos subsídios,mas sim das barreiras de aces-so aos mercados externos.Existem também estudos doBanco Mundial que chega-ram à mesma conclusão: osganhos de acesso seriam maissubstanciais que a diminui-ção dos subsídios. A expe-riência recente indica que, em matéria de conquista de acesso, osacordos bilaterais são geralmente mais eficazes que as negocia-ções longas e complicadas como as da OMC.

Recomenda-se, desse modo, que, paralelamente à conti-nuação do empenho brasileiro na Rodada Doha, se devote aomenos tempo e esforços comparáveis a iniciativas menos am-biciosas, nas quais é possível alcançar resultados mais imedia-tos e tangíveis. Se, por exemplo, nos últimos oito anos, em lu-gar de apostar tudo em Doha, tivéssemos dedicado mais ener-gia e atenção a remover ou reduzir as barreiras fitossanitáriasàs nossas carnes, frutas e vegetais frescos em alguns mercadosespecíficos, talvez tivéssemos agora resultados mais alentado-res. Idêntico raciocínio vale para os acordos bilaterais. Quemsabe se um esforço mais sistemático e intenso de nossa partenão nos teria proporcionado acordos de livre comércio maissignificativos do que a magra colheita atual, reduzida pratica-mente aos acordos com o Peru, o grupo andino e Israel?

Não deve haver ilusões quanto às dificuldades de obteracordos desse gênero com grandes países por razões que serãoexaminadas mais adiante. O que se propugna é apenas umaatitude de realismo em relação às negociações multilaterais naconjuntura difícil pela qual passa o mundo. A conseqüência aretirar dessa constatação é que temos de explorar todos os ca-minhos comerciais possíveis, procurando não concentrar nos-sa diplomacia comercial exclusivamente no âmbito da OMC.

América Latina eAmérica do Sul

Na América do Sul, o Brasilnão pode tudo, mas pode al-go. Em tese, a diplomacia bra-sileira teria tido condições deagir mais ou de agir de mododiferente. Por exemplo, entreo Uruguai e a Argentina, paraajudar, como facilitador, doisvizinhos prioritários e mem-bros do mesmo acordo de in-tegração a superarem o con-flito em torno da instalaçãode empresas de papel em solouruguaio. Antes da sentençada Corte Internacional de Jus-tiça, na Haia, os dois gover-nos atravessaram anos detensões e desentendimentos,com implicações negativaspara outras áreas (por exem-plo, o veto uruguaio a NestorKirchner que paralisou pormeses a escolha do secretário-geral da Unasul).

O Uruguai e a região do Rioda Prata são, incontestavel-mente, as áreas do mundo on-de o Brasil possui mais longatradição de envolvimento,

melhor conhecimento direto das situações e mais numerosas elegítimas razões para desejar um desenvolvimento pacífico.

Agora que o pior passou na crise argentino-uruguaia, o fu-turo governo deveria tentar desempenhar papel construtivode aproximação entre os dois mais íntimos de nossos vizinhos.Sem necessidade de estimular a proliferação de organizações eburocracias redundantes, bastaria reativar o Tratado da Baciado Prata, injustamente esquecido e que possui competência te-mática em problemas de vizinhança como os que ainda opõemo Uruguai à Argentina. Existe um potencial rico de projetos aserem retomados para a revitalização das áreas de fronteira,para a pesquisa comum em agronegócios, para a proteção domeio ambiente e das águas dos rios da bacia. Com o Uruguai,por exemplo, seria interessante retomar o exame da viabilida-de dos projetos de obras comuns para a valorização da zona defronteira da bacia da Lagoa Mirim. São ações que nada têm deespetacular, mas que podem ajudar enormemente a aumentaro sentimento de solidariedade e colaboração com os vizinhos,combatendo o sentimento de frustração que os afeta em rela-ção às promessas não-realizadas do Mercosul.

A mesma abordagem se aplica à necessidade de que o pró-ximo governo brasileiro corrija a parcialidade ocasional e a qua-se permanente omissão do atual em relação a outros conflitossul-americanos. O País teria de começar por uma posição de ri-gorosa equidistância e de estrita não-ingerência em eleições ou

Em matéria de conquista de acesso, os acordos bilateraissão geralmente mais eficazes que as complicadas

negociações na OMC. Na foto, o ministro Celso Amorim.

Jean Pierre Clatot/AFP

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16 DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

processos políticos internos de vizinhos, o que tem sido cada vezmenos frequente nestes tempos de diplomacia de afinidadespartidárias e ideológicas. O corolário da confiança que decorre-ria de tal postura seria a credibilidade para um esforço brasileirode pacificação entre a Venezuela e a Colômbia ou de reconcilia-ção desta última com o Equador, todos vizinhos próximos, comos quais mantemos felizmente relações de colaboração e cordia-lidade. Aqui também existiria um instrumento idôneo para im-pulsionar a colaboração de interesse recíproco, o Tratado de Co-operação Amazônica, cujo potencial tem sido sistematicamentedesaproveitado. O Tratado reúne todos os países da metade se-tentrional da América do Sul, inclusive as duas Guianas inde-pendentes. Representa a única estrutura que possibilita uma co-ordenação dos esforços para melhor proteger os complexos eameaçados biomas dessa gigantesca região e para uma aborda-gem integrada dos rios amazônicos, a maioria dos quais pos-suem suas nascentes nos países vizinhos.

Diplomacia gestual

A contradição entre a busca incessante de resultados deprestígio nos agrupamentos aparecidos em época recentecomo o G-20 e os BRICs contrasta com o desempenho sen-sivelmente mais mitigado no eixo de direta influência bra-sileira, o imediato entorno da América Latina e do Sul. Nãoque tenham faltado aqui os exemplos do talento aparente-mente inesgotável de criar foros novos (o Conselho de De-fesa) ou de rebatizar com nome novo grupos pré-existentes(como a Comunidade de Nações Sul-Americanas ou CASA,transfigurada em União de Nações Sul-Americanas ou Una-sul). Não se deixou até de estabelecer uma "OEA sem Esta-dos Unidos ou Canadá", curiosamente iniciativa do México,o primeiro país latino a se associar no Nafta aos dois gigantesdesenvolvidos do hemisfério norte num acordo de livre co-mércio e talvez por isso preocupado em atenuar seu isola-mento em relação aos ibero-americanos.

Esse tipo de diplomacia (não só do Brasil) merece talvez oqualificativo de "gestual" no sentido de que a ausência de con-dições objetivas ou de resultados palpáveis é menos importan-te do que o gesto em si mesmo. Às vezes se assemelha a umafuite en avant: o aumento da dose de remédio que não está dan-do certo, um pouco como a anotação feita por célebre oradorperuano à margem de parágrafo de um discurso - a rg u m e n t odébil, reforzar el énfasis.

Até pouco tempo atrás, a diferença de estilos e resultadosentre os eixos globais e regionais chegava a alimentar a versãoda existência de uma suposta dualidade de comandos diplo-máticos, correspondendo a uma espécie de divisão de áreas deinfluência entre a Chancelaria e a Assessoria Internacional daPresidência, se não de forma sistemática e permanente, ao me-nos em alguns assuntos ou determinados momentos. Todavia,nesses últimos dez a doze meses, o padrão de tentar ignorar ousuperar a realidade por meio do voluntarismo e da retóricamediática tende a se disseminar do continente para áreas maisdistantes como sugere a busca de cenários improváveis para oexercício do protagonismo diplomático entre israelenses e pa-lestinos ou na explosiva questão nuclear do Irã.

Nesse domínio, creio que o futuro governo deveria preo-cupar-se menos em multiplicar estruturas novas na realida-de ou na aparência e mais em tornar efetivas e operacionaisas estruturas ou processos já existentes, sobretudo quandoestes justificam a existência por razões concretas que perma-neçam válidas em nossos dias. É o que me parece ser o caso daIniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IRSA) do governo passado, que tem avançadosem alardes publicitários e conserva toda sua atualidadeuma vez que o problema da falta de uma integração das redesde transporte na América do Sul continua a ser um dos maio-res obstáculos à efetiva integração das economias. A mesmaafirmação se aplica aos tratados já citados acima, o da Baciado Prata e o de Cooperação Amazônica.

O ingresso daVenezuela no

Mercosul é um dosexemplos de

decisões de gravesimplicações na

AL sobre os quaisaté hoje a opinião

pública temdificuldade emcompreender a

motivaçãobrasileira e o

próprio desenrolardo processo

decisório.

Venezuela e Mercosul

O ingresso da Venezuela no Mercosul é um dos exemplos dedecisões de graves implicações na América Latina sobre os quaisaté hoje a opinião pública tem dificuldade em compreender amotivação brasileira e o próprio desenrolar do processo decisó-rio. A impressão que se colheu no momento do convite formu-lado por Nestor Kirchner, quando a Argentina exercia a presi-dência do bloco, foi de que ele não havia sido precedido de con-sultas entre todos os membros, nem de avaliação cuidadosa dasimplicações. Uma análise criteriosa teria provavelmente de-monstrado a falta de sentido em promover a entrada de país quesó poderia aumentar os problemas agudos de que sofre o grupo,entre eles, a ausência de compatibilidade entre orientações ma-croeconômicas, adicionando um complicador ideológico, o so-

Marcello Casal Jr./ABr

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cialismo do século 21, à economia de mercado dos demais. Se jáexiste impaciência crescente com a pesada máquina decisória daunião aduaneira e as dificuldades, supostas ou reais, que ela criapara a negociação de acordos comerciais com terceiros, a adiçãode governo atritado com inúmeros outros como o venezuelanoapenas dificultaria ainda mais os impasses.

Detentor do maior peso específico no grupo teria sido nor-mal que o Brasil ponderasse que as adesões a acordos comer-ciais de extrema ambição como as uniões aduaneiras deman-dam longo processo prévio de negociação técnico-comercial,como ocorre na Organização Mundial de Comércio até para osimples ingresso na Organização. Não seria necessário anta-gonizar o regime de Chávez, nem invocar argumentos de or-dem ideológica, mas simplesmente lembrar e fazer respeitar

Questões polêmicas

Com efeito, os contornos da controvérsia sobre a orientaçãodiplomática atual coincidem em larga medida com esse domí-nio. As prioridades para a próxima administração terão decoincidir naturalmente com esses problemas e sua efetividadedeverá ser avaliada pela capacidade que revele de encaminharsolução para os seguintes problemas: a) a persistente incapa-cidade de resolver os contínuos atritos e contenciosos com aArgentina em matéria comercial; b)a passividade e falta de ini-ciativa corretiva frente ao descrédito do Mercosul; c) a incom-preensível renúncia a acionar os meios pacíficos do direito in-ternacional em defesa de direitos brasileiros atropelados emincidentes como o da violação boliviana de tratados e contratossobre o gás; d)a imprudente ingerência nas eleições bolivianase paraguaias por motivo de simpatias ideológicas; e) a parcia-lidade na campanha contra o acordo militar entre a Colômbia eos Estados Unidos, em contraste com a omissão diante de ini-ciativas de compra de armamentos de Chávez ou de suas fre-quentes provocações aos colombianos; f) a falta de senso demedida e equilíbrio em relação ao golpe hondurenho, ao mes-mo tempo em que se mantinha incoerente complacência frentea regime controvertido como o cubano, sem falar no iraniano.

Muitas dessas dificuldades nos foram impostas por uma ad-versa evolução na região nestes últimos anos, que se processouem direção oposta à convergência de valores e modelos de or-ganização político-econômicos registrada na Europa e nomundo após o fim do comunismo. Na América do Sul, ao con-trário, a integração e até o bom convívio normal têm sido di-ficultados por processos radicalizados de refundação e lide-ranças polarizadoras de tensões e conflitos, internos e exter-nos. Uma leitura realista da situação exigiria reconhecer os li-mites do que é possível fazer com esses governos. Abririaespaço, por outro lado, nos próximos anos, a uma diplomaciaalternativa mais sintonizada com os países que adotam postu-ras econômicas e políticas centristas mais próximas às nossas.Não por acaso, esses países são aqueles que, pelo tamanho oudesempenho econômico, ofereceriam oportunidades maispromissoras: México, Chile, Colômbia, Peru, Uruguai.

Unasul e Conselho de Defesa

Não obstante a evidente ausência dos requisitos objetivosmínimos, a diplomacia do governo atual insistiu em edificarum espaço político-econômico que utilizasse não o conceitode América Latina, mas apenas o da América do Sul. Em pro-jetos de caráter territorial justifica-se optar por esse gênerode integração exclusiva, como sucede com a referida Inicia-tiva para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Ame-ricana ou IIRSA. É muito mais difícil estender o critério aáreas mais amplas e complexas como as do comércio e da de-fesa, que dependem não da contiguidade territorial, mas dacompatibilidade de visões políticas e econômicas. Em con-texto regional de aumento da divergência de modelos, dedesconfianças e animosidades, projetos como o da Unasul oudo Conselho de Defesa correm risco considerável de passa-rem à história como meras expressões de uma diplomacia

um princípio elementar de negociação comercial. O governopoderia ter feito algo nessa linha, mas preferiu não fazer.

A questão não seria tanto de falta de poder, mas da falta devontade para exercer tal poder da forma mais adequada paradefender os direitos e promover os interesses do Brasil, utili-zando o diferencial em nosso favor. Sendo essa a região domundo onde a influência brasileira, no passado e no presente,sempre se fez sentir de modo mais forte e imediato, o natural éque o governo futuro concentre nela as maiores realizações dadiplomacia. É igualmente nessa área que a diplomacia brasi-leira terá de demonstrar sua capacidade superior para superarobstáculos, persuadir recalcitrâncias, edificar obra concreta.Paradoxalmente, entretanto, até agora, a maioria das diver-gências sobre falhas e equívocos da política exterior se refere aassuntos sul ou latino-americanos.

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gestual cujo potencial se esgota em reuniões que constituemum fim em si mesmo, sem maiores consequências.

O mínimo que se deveria exigir de tais grupos é que lograssemo que a Argentina, o Brasil e o Chile tinham consolidado no Acor-do do A.B.C., há mais de um século, a saber, a reafirmação da maisestrita observância do princípio de não-ingerência nos assuntosinternos dos vizinhos e o compromisso de não permitir a presen-ça ou ações de movimentos armados nas zonas fronteiriças.

Objetivo como esse teria de constituir a pré-condição básica dequalquer união de países, parecendo, entretanto, fora do alcancede uma organização que se intitula com alguma pretensão de"União de Nações Sul-Americanas". Para que serve o Conselhode Defesa se não somos sequer capazes de adotar uma posiçãocomum a respeito das guerrilhas das FARCs? Sem esse mínimodos mínimos, não se concebe que a Colômbia, país que luta hámeio século contra guerrilhas e narcotraficantes, aceitasse abrirmão da assistência militar dos Estados Unidos. Por desejável queseja evitar a presença militar americana no con-tinente não se vê bem que alternativa existiria pa-ra que Bogotá obtivesse os recursos e o know-how de que necessita. O Brasil, impotente diantedo controle exercido pelo narcotráfico em mor-ros do Rio de Janeiro e longe de poder oferecerassistência militar e policial a quem quer que se-ja, dispõe de escassa autoridade para censurar oscolombianos por buscarem quem os ajude.

A questão das preferências comerciais

É presumir demais da própria importânciaquerer exigir de um vizinho ameaçado por pro-blemas de guerrilha e de narcotráfico que esco-lha entre nós e os Estados Unidos em matéria dedefesa contra tais flagelos. Situação idêntica pre-valece no âmbito econômico e comercial no casodaqueles países latinos e sul-americanos – e nãosão poucos – para os quais o mercado norte-americano representa 50% ou mais do destino de suas exporta-ções. O Brasil não tem evidentemente condições de rivalizar comos EUA como mercado importador ou fonte de investimento,uma vez que há décadas acumulamos com quase todos os sul-americanos saldos comerciais crescentes. Nem mesmo dentrodo Mercosul o País conseguiu desempenhar o papel de mercadoimpulsionador do crescimento do Uruguai e do Paraguai.

Não surpreende, assim, que até no âmbito restrito da Américado Sul, três países médios e talvez não por acaso os de melhoresfundamentos e desempenho econômico, o Chile, o Peru e a Co-lômbia, tenham optado pela fórmula dos acordos de livre comér-cio com os EUA. Inviabilizou-se assim a possibilidade de umazona comercial puramente sul-americana, gerando ao mesmotempo para as exportações brasileiras o perigo de tratamentodiscriminatório frente às de procedência americana.

As negociações da ALCA não conseguiram infelizmenteproduzir um terreno de equilíbrio e entendimento entre as ex-pectativas demasiado ambiciosas de Washington e concessõesnorte-americanas, especialmente em agricultura, que aten-dessem aos interesses do Brasil e do Mercosul, proporcionan-

do-nos no mercado americano tratamento preferencial equi-valente ao dos outros. Na ausência do acordo de livre comér-cio, a prioridade de qualquer governo brasileiro futuro deveser a de negociar algum arranjo alternativo que preencha o vá-cuo desvantajoso da falta de preferências em que se encontrampresentemente os produtos brasileiros. Essa prioridade co-mercial vale tanto para o mercado dos EUA, no qual estamossendo discriminados pelas preferências outorgadas aos pro-dutos oriundos de acordos da ALCA quanto para os mercadosdos latinos (como o Chile ou o México), onde enfrentamos aconcorrência favorecida das exportações norte-americanas.

Relações com os EUA

Esse vazio ilustra a persistente incapacidade de alcançarcom os Estados Unidos uma relação madura e construtivada qual um elemento indispensável teria de ser uma base de

crescentes vantagens mútuas no comércio ena complementação de cadeias produtivas eexportadoras. Tentou-se durante a adminis-tração de George W. Bush revitalizar essas re-lações, superando o impasse da ALCA comuma colaboração em torno do etanol. Alémde obviamente estreito demais para funda-mentar uma relação mais vasta, o esforço nãofoi capaz de sobrepujar o protecionismo emrelação ao etanol de milho americano, cujasnotórias insuficiências ambientais até conta-minaram por associação a reputação do eta-nol brasileiro.

É paradoxal que no governo Obama o rela-cionamento com Washington principie a de-nunciar sinais de um alargamento das diver-gências em torno de uma agenda negativa emexpansão: o manejo do golpe de Honduras eagora da situação pós-eleitoral naquele país;o acordo de cooperação militar da Colômbia

com os EUA; as responsabilidades americanas pelo impasseda Rodada Doha e ultimamente o complexo de questões re-lativas ao Irã, a seu programa nuclear e à maneira de tratarcom o regime iraniano.

Independentemente do mérito das posições que o gover-no brasileiro sustenta nesses assuntos, é inegável que osamericanos têm mantido comportamento mais profissionale sóbrio que o dos nossos dirigentes, que não se privaram deexternar críticas gratuitas e pouco construtivas posto quefeitas de público e pela imprensa, fora do contexto do diálo-go diplomático ou dos foros competentes. A tensão oriundada multiplicação de tais desencontros começa a encontrarexpressão na imprensa e no Congresso dos EUA e só tem sidodisfarçada na área oficial pelo reconhecimento do papel mo-derador do Brasil num contexto sul-americano conturbadopor personalidades mais abrasivas e provocadoras que asdos nossos líderes. Pondo de lado o aplauso dos setores hos-tis aos americanos, vale indagar: o que ganha o Brasil comessas atitudes pouco conducentes à solução serena dos espi-nhosos pomos de discórdia evocados?

É presumirdemais da própriaimportância quererexigir de umvizinho ameaçadopor problemas deguerrilha e denarcotráfico queescolha entre nós eos Estados Unidosem matéria de defesacontra tais flagelos.

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19AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

Os problemas do comércio exterior

No momento em que escrevo, o comércio exterior brasileirovive uma aguda crise de competitividade, manifestada no ace-lerado declínio do saldo na balança comercial e no alarmanteagravamento do déficit em conta corrente. A gravidade da si-tuação é acentuada pela tendência aparentemente irreversívelpara a erosão das vantagens competitivas dos produtos ma-nufaturados e a crescente concentração das exportações emnúmero sempre menor de commodities e artigos de baixo ní-vel de elaboração derivados de recursos naturais.

Não é este o lugar apropriado para discutir os desequilíbriosmacroeconômicos que se encontram na raiz do problema, a con-juntura de crescimento puxado quase exclusivamente pelo con-sumo do governo e dos particulares, a baixa poupança, o inves-timento insuficiente e a inelu-tável contrapartida de todoesse quadro, que consiste noaumento da dependência emrelação à poupança externa eaos influxos financeiros de fo-ra. O que não se pode escon-der é que a taxa de câmbio re-presenta papel fundamentalna deterioração das contas ex-ternas, não sendo possível co-gitar de solução duradourapara os problemas do comér-cio exterior em abstração daquestão cambial.

É verdade que, além docâmbio, outras deficiências es-truturais afetam duramente acapacidade brasileira de con-correr nos mercados mundiaiscom os asiáticos e outras estre-las do comércio contemporâneo. O altíssimo custo do capital, asufocante carga de tributos, a burocratização e baixa qualidade daregulamentação governamental, a péssima infraestrutura detransportes e portos, enfim, o conjunto dos fatores que formam o"custo Brasil", responsável pelo alto custo de transação em nossoPaís. Todos esses elementos se situam em área de competênciamuito além do alcance da política exterior, mas é inegável quesem a solução parcial ou completa dessas permanentes causas dabaixa capacidade brasileira de competir não é muito o que a di-plomacia comercial poderá fazer deixada a si mesma.

Existem disseminadas entre nós ilusões desmesuradas so-bre a capacidade que têm as negociações comerciais ou osacordos bilaterais ou regionais de alterar essa ingrata reali-dade competitiva. Não se percebe o bastante que negocia-ções e acordos, mesmo quando bem sucedidos e executados,podem no máximo gerar oportunidades de exportação.Aproveitar essas oportunidades vai depender, como sem-pre, da capacidade de oferta de produtos de qualidade e pre-ço competitivos nos mercados, o que passa por câmbio favo-rável acima de tudo e os demais fatores acima citados.

Por essa razão, o futuro governo terá de primeiramente equa-

cionar e encaminhar os problemas que ora afetam negativamen-te a taxa cambial e os outros componentes da competitividade.Suspeito que a complexidade do desafio e os conflitos de posi-ções inevitáveis nessa matéria exigirão o envolvimento pessoal econstante do Presidente da República a fim de que se possa defato dispor de um mecanismo eficiente de coordenação de todosos órgãos relevantes dos quais depende uma boa condução docomércio exterior. Ainda estamos engatinhando nessa área con-forme prova o espantoso episódio da decisão (felizmente nãoaplicada) em fins de 2007 de impor direitos específicos a calça-dos, têxteis e outros produtos. Como terá sido possível que téc-nicos da Receita Federal tenham obtido a promulgação de tal me-dida sem consultas prévias ao Ministério de Desenvolvimento,Indústria e Comércio (MDIC) e ao Itamaraty, sem falar na CA-MEX, a Câmara de Comércio Exterior? Como a decisão teria pas-

sado pelo filtro da Casa Civil?A nossa patética descoordena-ção e fragilidade institucionalficaram dramaticamente pa-tenteadas naquele instante.

Admitindo otimistica-mente que o próximo gover-no seja competente ao menospara encaminhar soluçõesefetivas para a maioria dessasdeficiências, passaríamos ater condições para levar a efei-to política comercial menosmarcada por uma postura de-fensiva, legítima, aliás, nascircunstâncias correntes, masque nos priva de quase qual-quer espaço de manobra paraconduzir iniciativas ofensi-vas dada a impossibilidadede oferecer compensações.

Em tal caso, seria possível encetar negociações de acordos comatores médios – México, Austrália, Canadá, Egito, sul-africa-nos, países do Golfo – como preparação para voos mais ambi-ciosos em relação aos grandes mercados: União Europeia, Es-tados Unidos, Japão, Índia, Coreia do Sul, ASEAN.

Sem preconceitos, mas atentos ao interesse objetivo nacional,seria aconselhável reexaminar a questão dos temas da "novaagenda" dos acordos de livre comércio: propriedade intelectual,proteção de investimentos, compras governamentais, cláusulasambientais e trabalhistas. Somos geralmente refratários a essestemas e por boas razões, pois quase sempre é essa uma agendaque pouco tem a ver com os interesses brasileiros. Não se deve,contudo, descartar de saída que haja algum espaço para ser fle-xível dentro de certos limites, sobretudo quando o crescimento eo amadurecimento da economia brasileira começam a mudarnossa perspectiva, como ocorre com a proteção dos nossos sem-pre mais vultosos investimentos fora do País graças à transna-cionalização de algumas de nossas empresas.

A questão é, acima de tudo, de equilíbrio. A recusa de prin-cípio a discutir temas desse tipo acaba nos limitando seriamen-te. Não deveríamos em nenhuma circunstância aceitar em pro-

Itamar Miranda/AE

A péssima infraestrutura de transportes e portos faz partede um conjunto de fatores que formam o "custo Brasil",responsável pelo alto custo de transação em nosso País.

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20 DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

priedade intelectual dispositivos que limitem a produção degenéricos. Será, porém, que não haveria espaço e até interessepróprio para proteger certas patentes na área do agronegócioou para combater a pirataria?

No que tange ao futuro do Mercosul, o governo não terá comoevitar um reexame da conveniência de manter ou não a UniãoAduaneira e/ou a Tarifa Externa Comum (TEC). Uma decisão arespeito deve ser embasada em ampla consulta aos setores indus-triais que se beneficiam da TEC (veículos, autopeças, eletroele-trônicos, máquinas, químicos) ou que se beneficiariam potencial-mente de uma TEC sem tantas perfurações (bens de capital, in-formática e telecomunicações), principalmente em razão dasmargens de preferência no mercado argentino. Caso se reconfir-me a percepção corrente de que esses setores dependem das mar-gens de preferência para manter suasexportações diante de concorrentesextra-zona nos mercados dos vizi-nhos, haveria um argumento de pesopara continuar enfrentando os custosde preservar uma política comercialcomum frente a terceiros. Mesmo por-que a impressão generalizada de que,sem os parceiros do Mercosul, o Brasilteria maiores facilidades de negociaracordos bilaterais é provavelmenteequivocada, uma vez que boa partedos obstáculos nessas negociações éproveniente da resistência compreen-sível da indústria brasileira.

Talvez seja viável trabalhar com fór-mula de meio-termo: uma União Tari-fária, formal ou informal (alinhamen-to voluntário como na ASEAN), comflexibilidade para negociações exter-nas em separado, sem a sobrecargaburocrática das exigências para umaefetiva União Aduaneira. Tal situaçãonão seria radicalmente diferente darealidade atual, faltando apenas a fle-xibilidade para negociações externasdentro de critérios a definir.

Qualquer que seja o caminho, pre-cisaremos de liderança política no mais alto nível, pois essestemas não se resolverão sem direto envolvimento presiden-cial. Infelizmente as cúpulas do Mercosul se transformaramem espetáculos vazios de mídia, com a presença indevida deconvidados estrangeiros, longos discursos e virtual ausênciade qualquer discussão real e de substância sobre os assuntosdifíceis da agenda de trabalho.

A crise do consenso em política exterior

Não faltam, por conseguinte, questões de conteúdo na diplo-macia atual capazes de alimentar diferenças honestas de ava-liação e julgamento, dissolvendo o relativo consenso multipar-tidário que prevalecia na véspera de fundação da Nova Repú-blica, a julgar pelo discurso de fins de 1984, no qual Tancredo

Neves declarava: "(...) se há um ponto na política brasileira queencontrou consenso em todas as correntes de pensamento, esseponto é a política externa levada a efeito pelo Itamaraty." Trans-corridos 25 anos dessas palavras, a simples leitura dos jornais ouo acompanhamento dos debates no Congresso são suficientespara indicar que esse consenso deixou de existir.

A crise do consenso brasileiro é produto não só das questõessubstantivas da política externa propriamente dita, mas tambémda "política interna" da diplomacia, isto é, a maneira como ela éformulada e apresentada à opinião pública, a seus formadores,aos políticos e o modo como é percebida por esses últimos. Dessaperspectiva, a responsabilidade maior cabe a comportamentosconcentrados nos seguintes fatores que afetam a possibilidadede edificar consensos em política exterior: a ênfase na ruptura,

em lugar da continuidade; o excessode protagonismo e glorificação da li-derança pessoal de Lula; a autossufi-ciência na formulação e condução; apolitização partidária e ideologiza-ção da política externa.

Ênfase na ruptura

Os dirigentes atuais, destacando-se nisso o presidente, não souberamem geral resistir à tentação de se atri-buir o crédito total pelos eventuaisêxitos que tiveram. Buscaram fazercrer que era novo e sem precedentestudo o que empreendiam. De manei-ra geral, Lula e seus colaboradores noItamaraty tiveram a possibilidade deadmitir e valorizar, nos assuntos queapresentavam autêntica continuida-de com o passado, a parcela maior oumenor que teriam acaso herdado degovernos anteriores, mas preferiramapropriar-se todo o mérito em nomedo governo atual e de seu partido.

Naturalmente é opção sem surpre-sa, mas seguramente não será a me-lhor em termos de construção de con-

sensos. Há, com efeito, nessa matéria uma espécie de "trade off":não é possível monopolizar o crédito para o governo e seu partidoe esperar, ao mesmo tempo, que os injustamente excluídos do re-conhecimento se sintam partes integrantes dessa política.

Excesso de protagonismo

São traços indiscutíveis desta fase política brasileira o abusodo protagonismo e o excesso de glorificação personalista,criando a impressão de que se depende cada vez mais das qua-lidades de desempenho do líder supremo. Aliás, a política ex-terna não constitui exceção no panorama geral de um governo,cujos ministros são quase anônimos. Da maioria deles se igno-ra até o nome, quanto mais o que fazem ou deixam de fazer.

Nenhum desses defeitos costuma facilitar o consenso inter-

Jorge Araújo/Folha Imagem

Para Tancredo Neves, a política externabrasileira era consenso em todas as correntes.

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21AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

no ou externo em diplomacia. Basta pensar num exemplo con-trário, o do presidente Truman, ao lançar o maciço programade ajuda aos europeus não sob seu nome, mas debaixo da tu-tela do ex-chefe do Estado-Maior durante a guerra, o generalMarshall, considerado então "o maior americano vivo".

Autossuficiência

Quanto à autossuficiência, perceptível na exclusão de muitosdos mais talentosos e experientes diplomatas brasileiros, margi-nalizados das decisões importantes e de sua execução, ela se ma-nifesta também no isolamento em relação a setores influentes dasociedade brasileira. O diálogo com lideranças empresariais eeconômicas, no que se refere ao comércio exterior, tem se reveladoinsuficiente. Na questão cru-cial do aquecimento climáti-co, tema onde a diplomaciabrasileira teria tudo para de-sempenhar papel decisivo,caso deixasse de insistir emdiscurso defensivo obsoleto,é flagrante a falta de sintoniacom a comunidade científicae ambientalista nacional.

Em democracias madurassempre se procurou impri-mir à diplomacia um caráteraberto à participação efetivamesmo da oposição. Nos Es-tados Unidos, por exemplo, omodelo ideal de que se temnostalgia até nossos dias é odo "consenso bipartidário"com os republicanos no iní-cio da Guerra Fria. Na Françade Sarkozy, qualquer que tenha sido sua motivação, o presiden-te foi buscar no partido socialista seu ministro de Assuntos Es-trangeiros e numerosas personalidades convidadas a cumpri-rem missões internacionais de relevo. No Brasil de hoje seria di-fícil encontrar algum exemplo dessa tendência salutar.

Interferências partidárias e ideológicas

O discurso de Tancredo deixava claro não ser uma política ex-terna qualquer a que mereceria consenso, mas apenas a "levada aefeito pelo Itamaraty." Não se tratava da política dos militares nopoder, de um determinado governo ou facção, mas de uma po-lítica de Estado, acima das disputas internas e a serviço da nação.Convém recordar que a etimologia da palavra "partido" significafragmentado, rompido, quebrado, parte do todo que é a nação.Quem faz diplomacia de partido mostra indiferença pelo esforçode converter tais ações em causas autenticamente nacionais.

É incompatível com esse objetivo a existência de uma "diplo-macia paralela" do Partido dos Trabalhadores junto a governosou movimentos ideologicamente afins, exercida por meio decontactos fora dos canais diplomáticos e emissários como o as-sessor de política externa da Presidência da República. Tal di-

visão de "esferas de influência" converteu-se em causa de com-plicações, de que foram exemplos as incursões na política inter-na da Venezuela, em momentos de tensões naquele país; a faltade isenção ideológica com que se tem acompanhado a campa-nha eleitoral em países vizinhos; a parcialidade citada antes emrelação ao acordo militar da Colômbia com os EUA; o contrasteentre as reações ao golpe hondurenho e a complacência diantede Cuba ou do Irã e numerosos outros episódios.

Não há evidências de que essas afinidades ou simpatias te-nham demonstrado eficácia ou utilidade perceptível para en-caminhar soluções satisfatórias quando surgem questões espi-nhosas como as que opuseram o Brasil à Bolívia. A diplomaciaparalela do PT parece, assim, servir mais para contaminar des-necessariamente a política exterior com suspeitas ideológicas

de que para qualquer propó-sito prático.

Têm-se mul t ip l i cadotambém, da parte de algunsdos diplomatas de carreiraem postos de comando, ten-dência a engajar a políticaexterna no desígnio políticodo governo, mediante a ten-tação de se comportarem,não como servidores impar-ciais do Estado, mas comomilitantes partidários. Denovo ressalta aqui o con-traste marcante com situa-ções anteriores. O últimochanceler de Goulart, porexemplo, embaixador JoãoAugusto de Araújo Castro,recusava invariavelmenteparticipar de qualquer ato

com sentido ou aparência de política interna.Mais do que um valor perfeito e absoluto, inatingível na prá-

tica, o consenso sobre diplomacia é objetivo desejável sempreque possível de edificar mediante compromissos razoáveiscom a oposição, sem sacrifício de valores mais altos. Um graumaior ou menor de honesta divergência pode ser até saudáveldesde que não derive de uma subordinação instrumental dapolítica externa a ganhos partidários ou ideológicos internos.Nesse caso, renuncia-se à possibilidade de assegurar a conti-nuidade de políticas de Estado que devem, em princípio, fazerapelo não a facções, mas ao conjunto dos cidadãos.

Nesse particular, seria difícil encontrar melhor explicaçãodas vantagens potenciais da busca do consenso do que as pa-lavras com que o barão do Rio Branco explicava porque se afas-tara em definitivo da política interna e não tinha querido apro-veitar sua imensa popularidade para lançar-se candidato apresidente: "(...) seria discutido, atacado, diminuído, desauto-rizado (...) e não teria como Presidente a força que hoje tenho(...) para dirigir as relações exteriores. Ocupando-me de assun-tos ou causas incontestavelmente nacionais, sentir-me-ia maisforte e poderia habilitar-me a merecer o concurso da animaçãode todos os meus concidadãos" (grifado por mim).

Ricardo Stuckert/PR

Quem faz diplomacia de partido mostraindiferença pelo esforço de converter tais ações

em causas autenticamente nacionais.

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Roberto MacedoEconomista (UFMG, USPe Harvard). Na USP,foi professor titular, chefedo departamento deEconomia e diretor daFaculdade de Economia,Administração eContabilidade. Foisecretário de PolíticaEconômica do Ministérioda Economia, presidenteda Eletros (Assoc.Nacional deFabricantes de Prods.Eletroeletrônicos) e doSindigás (Sindicato dasDistribuidoras de GásLiquefeito de Petróleo).É consultor da Faculdadede Economia da FAAP,vice-presidente daAssociação Comercialde São Paulo e sócio dasconsultorias MGSP eWebsetorial. O autoragradece comentários deJoaquim Toledo, MarianoMacedo, PatríciaMarrone, Ulisses Ruiz deGamboa e José RobertoAfonso, bem como acolaboração de CarlosWaack no levantamentode dados e outrasinformações.

Andrei Bonamin/LUZ

Fundamentos parada política macr

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23AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

Resumo

Este artigo examinainicialmente as diferentescircunstâncias que naeconomia marcaram osmandatos do atual presidenteda República e de seuantecessor. Conclui quecircunstâncias mais favoráveis,principalmente as da economiamundial – e não açõesgovernamentais –, foram oelemento predominante domelhor desempenho daeconomia no período maisrecente. Em seguida, constataque o Brasil vive, conforme seargumentará com detalhe, umasituação de "subdesempenhosatisfatório" ou de expectativasnão ampliadas, pois ocontentamento popular e aeuforia demonstrada edifundida pelo GovernoFederal não condizem com ostatus pouco vigoroso do Paíssegundo vários indicadores,tanto em termos absolutoscomo em comparaçõesinternacionais. Na sequência,argumenta-se que essapercepção deve fundamentar aação política para reverter essesubdesempenho, e alcançarbem-estar econômico-socialmaior e solidamente assentadoem seus fundamentos.Para tanto, propõe umareformulação da políticamacroeconômica que deixa delado conceitos ultrapassados,como ajuste fiscal e superávitsprimários, e na qual a aferiçãodo esforço governamentalseja realizada principalmentepelo seu efetivo engajamentoem ampliar a poupança e osinvestimentos públicos, semaumento da carga tributária,ao lado de estimular tambémempenho da sociedade comoum todo em poupar e investir.A ação política deve serholística, incremental e ágil.

a reformulaçãooeconômica

Arte de ALFER sobre foto de Jamil Bittar/Reuters

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24 DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

Introdução

Com o título acima, este artigo assenta-se necessa-riamente numa reflexão sobre o passado, aborda-da na primeira seção, que trata do desempenho daeconomia sob os presidentes da República que o

Brasil teve depois de 1994, Fernando Henrique Cardoso e LuizInácio Lula da Silva, a seguir referidos como FHC e Lula. Aanálise enfatiza diferentes circunstâncias com que se defron-taram, ao contrário de avaliações que predominam no mundopolítico e midiático, que enaltecem mais os sujeitos de ações doque essas circunstâncias.

A segunda seção examina o presente, e daí emerge a per-cepção de que na economia e em outros aspectos o País viveum "subdesempenho satisfatório". Trata-se de disfunção or-ganizacional e institucional cuja percepção deve fundamen-tar e provocar a ação política no sentido de superá-la. Isto, pa-ra alcançar um desempenho econômico bem melhor, e capazde assegurar satisfação econômico-social maior, e solida-mente assentada nos seus fun-damentos. Noutra visão, a satis-fação com o subdesempenhopode ser indicativo de expecta-tivas não ampliadas.

A terceira seção aponta os tra-ços da reformulação preconiza-da para a política macroeconô-mica. É uma reconstrução ou re-estruturação apoiada na políticafiscal, mas bem além de conceitoscomuns em análises desse tipo,como ajuste fiscal e superávitsprimários, vistos comoinadequados e ultrapas-sados, tanto na sua lógi-ca como pela forma comque foram utilizados noBrasil, em particular co-mo eufemismos para o "esforço" fiscal do governo.

Na realidade, esforço mesmo foi o dos contribuintes, quepassaram a arcar com carga tributária crescente a partir de umponto já elevado, sustentando não só superávits primários,mas também uma continuada e distorcida política de maisgastos correntes do Governo Federal, que dispõe de mais re-cursos, e não tem as mesmas limitações ao endividamento deestados e municípios.

Além de uma indispensável contenção desse processo, a po-lítica fiscal deve ser pautada pelo objetivo principal da refor-mulação proposta, o de redirecionar o orçamento público e apolítica macroeconômica em geral para a ampliação da pou-pança nacional e dos investimentos públicos e privados comoproporção do Produto Interno Bruto (PIB), para que este cresçaa taxas maiores e mais sustentáveis.

Na quarta seção, a reformulação proposta se desdobra naforma de ver a inflação e dois preços macroeconômicos, a taxade juros e a taxa de câmbio. Estas taxas têm seus valores há tem-pos distorcidos, a primeira ainda muito alta tanto por si como

em comparações internacionais, numa análise que se estendetambém ao spread bancário. A segunda assumiu valores quecomprometem a competitividade da economia no plano inter-nacional, trazendo sérias, mas pouco enfrentadas, dificulda-des para os exportadores brasileiros. Junto com a inflação, es-pera-se que essas taxas venham a sofrer impactos favoráveisda reorientação fiscal proposta. Contudo, ao lado da inflaçãoessas taxas devem receber atenções adicionais e específicas da-da a multiplicidade de fatores que as afetam.

1. O Passado: a DesprezadaForça das Circunstâncias

Observando-se a economia brasileira nos últimos 16 anos, adiferença principal entre as administrações FHC e Lula foi queencontraram o Brasil em diferentes circunstâncias. Dadosdesse período estão na Tabela 1 que, em cada mandato des-ses presidentes, mostra, salvo exceções registradas em notas àtabela ou neste texto, médias anuais dos valores das variáveisnela listadas, que analisaremos na sequência em que constamdessa tabela. No final, ela inclui o status da economia mundial,

medido pelo valor total de suas ex-portações. Os dados também co-

brem os quatro anos anterio-res a FHC, para situar con-dições iniciais que encon-trou. Circunstâncias e açõesmais importantes são desta-cadas com tarja amarela nosrespectivos dados.

Começando pela infla-ção, a forte queda no primei-ro mandato de FHC resultoude ação que iniciou no go-verno anterior, quando lide-rou o Plano Real. FHC, con-

tudo, não conseguiu levantar as taxas de crescimento do PIB,em larga medida como resultado das difíceis circunstânciasque enfrentou, como a sequência de um plano de estabilização,as dificuldades fiscais e as crises externas. As taxas de cresci-mento aumentaram no governo Lula, mas principalmente emdecorrência das circunstâncias muitíssimo melhores que teveno plano externo, as quais realçaremos mais à frente.

Ambos fracassaram em elevar as taxas de poupança e de in-vestimento de modo a alcançar um crescimento maior e maissustentado. Dadas também as circunstâncias externas, Lula te-ve melhores condições de elevar essas taxas, mas escapou-lhe aoportunidade, que poderia ter assegurado um crescimento nes-sa linha, ao lado de uma queda não tão forte do PIB em 2009.

O volume de crédito cresceu destacadamente no segundomandato de Lula. Aí, houve engenho e arte do seu governo,que merecem destaque, como na expansão do crédito consig-nado, ainda que facilitados por circunstâncias que se consoli-daram ao longo do governo anterior, como a queda da inflaçãoe o saneamento do sistema financeiro. E, cabe notar novamente

MAX

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a melhoria do setor externo, que facilitou a captação de recur-sos e reduziu riscos em geral.

A taxa básica de juros seguiu tendência de queda que acom-panhou a da inflação e aprimoramentos nas políticas fiscal emonetárias, no final ainda permanecendo alta relativamente àinflação, e também em termos internacionais, conforme se es-clarecerá na seção seguinte.

Passando às variáveis fiscais, fica claro porque o superávitprimário é enganoso para medir o esforço fiscal do governo, emais enganoso ainda na forma pela qual costuma ser divulga-do na mídia, que a ele se refere como "a economia que o gover-no faz para pagar os juros da sua dívida". O conceito de resul-tado primário, em geral um superávit, ganhou destaque noprimeiro mandato de FHC, quando houve até déficit desse ti-po em 1997, mostrando então a gravidade do problema fiscal,

e servindo também para justificar aumentos da carga tributá-ria para gerar superávits desse tipo.

Contudo, a partir dos dados anuais que geraram a tabela, no-ta-se que a carga tributária federal aumentou 6,3 pontos percen-tuais (p.p.) do PIB entre 1993 e 2008 (de 17,7% para 24%), en-quanto o superávit primário federal ficou perto de 2% do PIBdepois de superado o período de maior dificuldade. Assim, agrosso modo entraram mais quatro p.p. do PIB de carga tribu-tária adicional usados para mais gastos primários, pois não háredução relevante do déficit nominal. Dentre os gastos, dois me-recem destaque, incluídos nas linhas 14 e 15 da tabela. Primeiro,praticamente nada foi para a formação bruta de capital fixo daUnião, sacrificando assim seus investimentos. Segundo, ocorreforte expansão dos já elevados gastos de previdência e assistên-cia social. Como estes gastos ou transferências cresceram em to-

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do o período, e particularmente nogoverno Lula, as médias quadrienaissubestimam essa evolução. Assim,dados anuais mostram que em 1991esses gastos eram de 4,1% do PIB; em2009, chegaram a 8,9%, um aumentode quase cinco p.p..

Em síntese, quem de fato faz es-forço fiscal é o contribuinte, e onde ogoverno economizou mesmo foi aoconter investimentos, em prejuízodo crescimento da economia. Tam-pouco foi aproveitado para ampliá-los o espaço dado pela menor taxa dejuros sobre a dívida pública.

Quanto a esta, que se concentrano Governo Federal, há longo tem-po sempre foi analisada pela dívidalíquida que, como se percebe pelatabela, atingiu seu ápice no final dogoverno FHC, e depois caiu, espe-cialmente depois da expansão dasreservas internacionais, que a re-duziu. A dívida bruta acompanha-va a líquida chegando, em basesanuais, a ficar aproximadamenteigual a ela em 2002.

Recentemente, entretanto, os eco-nomistas voltaram sua atenção paraa dívida bruta, que cresceu bastanterelativamente à líquida. Também atraiu atenção uma inovaçãodo governo Lula, de aumentar fortemente essa dívida para ge-rar fundos para o BNDES. Como os créditos correspondentesque o Tesouro passa a ter nesse banco são deduzidos da dívidabruta para chegar à líquida, esta não sofre alterações com a ino-vação, ressalvados efeitos do custo da dívida bruta adicionalsobre o déficit nominal que amplia a dívida.

Na tabela, novamente os dados de médias quadrienais sãoinadequados para evidenciar o forte crescimento dessa práti-ca. Assim, com base nos dados anuais originais, e também nosmensais relativos a 2010, constata-se que o aumento foi aindamais forte, pois os créditos ao BNDES tinham o valor de 1% doPIB no final de 2008. Passaram a 4% no final de 2009 e a 6% (!)em maio de 2010. Levando-se em conta um PIB próximo deR$ 3 trilhões, o valor desse financiamento ao BNDES alcançouuma cifra perto de R$ 200 bilhões em menos de dois anos.

A prática é equivalente a um enorme orçamento para-fiscalonde o BNDES aplica recursos sem dar satisfação ao Congres-so Nacional, fazendo apenas relatórios a posteriori, que não re-cebem a divulgação adequada. Ademais, a dívida bruta é aconsiderada internacionalmente mais importante para ava-liar o risco da dívida soberana, e a continuar nessa linha, e nes-sa velocidade de expansão, lá na frente o País poderá ver-se re-baixado nessas avaliações. E, noutro aspecto vulnerável, nãohá transparência quanto ao que faz o BNDES, em particularquanto é aplicado efetivamente em formação bruta de capital equanto vai para fusões e aquisições de empresas (1).

Ressalvados esses aspectos doprocedimento, inclusive seu altíssi-mo valor, deve-se reconhecer que noseu início ele se apoiou na necessida-de de atuação mais contundente doBNDES por ocasião da crise que veioem 2008, o que é defensável. Aindaque esse argumento tenha perdidoforça com a superação da crise, ecom novos suprimentos do mesmotipo ao BNDES, também não se podeignorar que historicamente os ban-cos privados brasileiros têm se reve-lado incapazes de prover recursosde longo prazo para investimentos.Há, assim, a necessidade de buscarsoluções para essa dificuldade, eque não impliquem numa forte de-pendência de recursos externos e doTesouro. Como alternativa, vemos omaior desenvolvimento do merca-do de capitais no sentido lato, in-cluindo o mercado de ações e o de dí-vida privada, e também para ala-vancar a ação do próprio BNDES. Is-to, mediante colocações, nesses doismercados, "... de ações e títulos de dí-vida de empresas que viessem a terseus projetos aprovados..." por essebanco, conforme sugeriu Rocca

(2010), noutro artigo integrante desta série, e que também focana necessidade de aumento da poupança nacional para aco-modar a permanente necessidade de mais financiamentos.

Passando ao setor externo, FHC encontrou inicialmenteuma conjuntura internacional favorável, que permitiu a rene-gociação da dívida externa e favoreceu também a sustentaçãodo real pelo lado de sua âncora cambial. Contudo, a conse-quente e continuada valorização do real adicionou um com-ponente adicional de vulnerabilidade ao setor externo, confor-me evidenciado pelos déficits em conta corrente que se agra-varam fortemente no seu governo, ainda que aliviados por in-vestimentos diretos, em particular os trazidos para seuprograma de privatização.

Em contraste, no seu segundo mandato, a força de circuns-tâncias particularmente desfavoráveis no plano externo cul-minou com as crises de 1997 e 1998, e a tradicional vulnerabi-lidade do País se evidenciou novamente pela queda das reser-vas, que rapidamente voltaram à sua tradição de baixas a ir-risórias, e levando mais uma vez o País ao FMI.

Também em contraste, circunstâncias externas marcaram ebeneficiaram claramente o governo Lula, principalmente apartir de meados do seu primeiro mandato. No início desteainda enfrentou dificuldades no setor externo, criadas inclu-sive por ele mesmo, ao aventar, no período eleitoral, com mu-danças radicais na política econômica, gerando estresse cam-bial em 2002, e que se prolongou em 2003.

Desde então foi favorecido por um longo e intenso ciclo de

A forte queda da inflação no primeiromandato de Fernando Henrique Cardosoresultou de ação que se iniciou no governoanterior, quando ele liderou o Plano Real.

Lula Marques/Folhapress

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crescimento da economiamundial, evidenciado naúltima linha de dados da ta-bela, o qual mudou radical-mente o quadro das contasexternas nacionais. Este,claramente revelado, na li-nha anterior, pelo fortecrescimento das reservasinternacionais.

E não houve ganhos de-rivados apenas do maiorvolume físico de exporta-ções, mas também de pre-ços, em particular de com-modities, cujo volume ex-portado aumentou muito,direcionando a estruturaprodutiva para maior pre-sença de produtos primá-rios. E ganhos não vieramapenas de melhores termosde troca. Como o Brasil ti-nha, e continuou tendo su-perávits comerciais, houveum ganho líquido deriva-do desses preços maiores, eque se manifestaria mesmona presença de termos detroca constantes, dada a ampliação desses superávits. Alémdisso, em que pesem suas distorções, a apreciação cambial,que veio com a melhoria do quadro externo, contribuiu paraampliar os salários reais, e facilitou a manutenção de taxasde inflação relativamente baixas.

Mais recentemente, voltaram os déficits em transações cor-rentes e em volumes consideráveis, acendendo luz amarelaquanto a renovados riscos no setor externo, outro aspecto a jus-tificar nossa ênfase na ampliação da poupança nacional e demais investimentos na estrutura produtiva do País.

Como síntese desta seção, no governo Lula os estímulos àeconomia vieram principalmente da ampliação do crédito, doexpansionismo fiscal – mas não na forma de investimentos –, edo crescimento da economia mundial. Qual o fator mais im-portante? Claramente as circunstâncias externas, pois gera-ram crescimento maior, mais impostos para expandir gastos –inclusive a forte expansão dos programas de transferência derenda, que também trouxeram estímulo –, e em larga medidacontiveram com vigor a instabilidade externa crônica e recor-rente na história econômica do País. Quando sobreveio a criseexterna de 2008, com forte impacto que praticamente zerou ocrescimento do PIB em 2009, esse efeito teria sido muito maiorse encontrasse o País externamente tão vulnerável como no go-verno FHC. A nova situação das contas externas também ga-rantiu recuperação rápida, mas taxas de investimento bemmaiores asseguraram a países como a China e a Ìndia uma ul-trapassagem da crise com danos mínimos às suas taxas de cres-cimento, que permaneceram elevadas.

Aqui, na ausência dessanova situação externa, a con-tinuidade do crédito e sua ex-pansão anticrise não só te-riam sido insuficientes paragarantir o mesmo resultado,como teriam sido prejudica-das por pelo menos duas ra-zões. Primeiro, porque na cri-se a taxa de câmbio teria au-mentado muito mais e a infla-ção teria sido bem maior, oque poderia levar o BancoCentral (BC) a aumentar a ta-xa de juros. Segundo, pormais tempo e com maior in-tensidade, o crédito perma-neceria escasso para o País noexterior, com reflexos contra-cionistas também sobre o cré-dito interno. Recorde-se queas próprias reservas foramutilizadas em socorro ao fi-nanciamento de exportaçõespor bancos privados, que te-ve forte queda na crise.

Em conclusão, as muitomelhores e diferentes cir-cunstâncias externas que

marcaram o governo Lula foram o fator fundamental que lheasseguraram os meios para desenvolver sua política econômi-ca de forte conteúdo populista. Essas circunstâncias, contudo,não são lembradas por ele e seus seguidores, como se tudo debom que veio com essa onda se devesse à sua ação. Somando-se a esse quadro a desinformação e a falta de percepção dos ci-dadãos em geral, isso termina por levar a um culto de perso-nalidade que beira a idolatria, a ponto de seus adversários po-líticos também deixarem de lado as mesmas circunstâncias, equaisquer outros elementos que impliquem em criticá-lo.

2. O presente: Brasil emSubdesempenho Satisfatório

Ghoshal e Tanure (2004) e Tanure (2010) identificam o sub-desempenho satisfatório como doença que internacionalmen-te ataca empresas e outras instituições. Trata-se de patologiaem que condutores de uma organização, muitas vezes toma-dos por ilusões quanto ao sucesso dela, não percebem proble-mas que a acometem, os quais respondem por seu subdesem-penho no presente, e podem levá-la a desastres futuros. Ou, en-tão, são percebidos, mas menosprezados. Esses autores con-centram-se no impacto da doença em empresas, ondeexecutivos freneticamente buscam resultados, e vangloriam-se deles, muitas vezes iludindo-se com números de balanços eoutros indicadores de rentabilidade.

Tanure (2010) se refere especificamente à acomodação aosubdesempenho satisfatório do Brasil, este acometido por

Dida Sampaio/AE

O conceito de resultado primário, em geralum superávit, ganhou destaque no primeiromandato de FHC, quando houve déficit em

1997, mostrando o problema fiscal.

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"profundos problemas", pelos quais as empresas costumammostrar preocupação, mas sem se ocupar, "... efetivamente, da-queles que não receberam a devida atenção...". Nessa linha,aponta uma situação inversa ao chamado "custo Brasil", o "ga-nho Brasil", em que o desempenho acima da média mundial,sobretudo relativamente a competidores de países europeus enorte-americanos, mais afetados pela crise econômico-finan-ceira que veio em 2008, serve para enaltecer apenas "... o papel,o ego dos executivos...", que deixam de colocar esse ganho nassuas contas, sem se preocupar com um crescimento que váalém dele, especialmente via maior produtividade.

Interessados no que diz respeito ao Brasil e ao seu governocentral, entendemos que a análise desses autores aqui tambémse aplica, pois são evidentes os sintomas de um subdesempenhosatisfatório que acomete o País e seu governo federal, onde nos-so presidente se comporta como um desses executivos que nãoreconhece o fortíssimo "ganho Brasil" ensejado pelos ventos fa-voráveis que a economia mundial trouxe aoPaís em quase toda a sua gestão, conforme as-sinalado na seção anterior.

Combinada com o menosprezo dos gravesproblemas nacionais, como alguns já aponta-dos na Tabela 1 e outros que serão objeto dasubseção seguinte, a ilusão de sucesso – cen-trada no conformismo com uma taxa anualde crescimento do PIB próxima de 5% e, nacrise recente, em comparações com os paísesque se saíram pior ainda do que o Brasil –,contamina não apenas seus dirigentes, emparticular o maior. Estende-se também àmaioria da população por meio da dissemi-nação sistemática de análises que exageramsucessos e ignoram fracassos e dificuldades.

Uma afirmação recente do presidente Lularevela até onde alcança esse exagero. Ele assi-nou texto onde, ao falar de sua intenção, noplano internacional, "...de após deixar a presi-dência... concentrar sua atenção em iniciativaspara beneficiar os (grifo nosso) países da Amé-rica Latina e do Caribe e o continente (idem) africano", afir-mou: "Não podemos ser uma ilha de prosperidade cercada porum mar de injustiça social" (2).

O "nunca antes neste País" é emblemático de uma visão que,além de quase nunca comprovada, volta-se para o passado deum país ainda em construção e já carente de reformas. Mas, oque realmente interessa é seu futuro, e comparações com na-ções que de fato foram e são efetivamente bem sucedidas, umgrupo a que não pertencemos.

Uma visão semelhante a essa do subdesempenho satisfató-rio é de Krugman (1994), num livro sobre os EUA, cujo títulotraduzimos como A Era das Expectativas Diminuídas. Ele adefiniu como:

"...uma era em que nossa economia não tem se desempenha-do bem, mas na qual a demanda política para melhorá-la é pe-quena ... procuro explicar porque não estamos realizando umesforço maior para fazer alguma coisa sobre a economia quenos desaponta – o que em grande parte decorre do sacrifício

exigido pelas medidas que deveríamos adotar se fôssemos sé-rios em fazer uma diferença."(3)

As dificuldades que Krugman apontou permaneceram,tanto assim é que o País acabou em crise. Esta não se limita àquestão econômico-financeira, como se pode perceber pelasdificuldades que o presidente Obama encontrou para aprovarum novo plano nacional de saúde, um dos pontos mais impor-tantes de sua plataforma de governo, e assim mesmo tendoque recuar em vários pontos de seu projeto original.

Há alguma similaridade entre o que Krugman aponta e oque se passa no Brasil, e também diferenças, em particular ofato de os EUA serem um país rico, sendo assim compreen-sível certa acomodação. Esse autor fala também de expecta-tivas diminuídas, enquanto que aqui entendemos ser um ca-so de não ampliadas. Em outras palavras, no Brasil, em médiaainda pobre, talvez elas venham de uma condição de pobrezaque inegavelmente foi aliviada para parcela importante da

população, com outras também tendo ga-nhos de renda, fazendo com que as pessoas sesintam, como se diz popularmente, "no lu-cro", mas sem avançar além disso em suas ex-pectativas. O tema mereceria um livro no ca-so brasileiro. Sem essa pretensão, seguiremosKrugman no seu entendimento de que "... ocomeço de ação está, entretanto, em entendero que se passa." (4) Cabe assim mostrar a ver-dadeira situação em que o País se encontra. Éo que faremos a seguir, numa contribuiçãopara acordá-lo da letargia que o domina, am-pliar suas expectativas na direção de um me-lhor desempenho, e cobrar isto de seus gover-nantes, presentes e futuros, num contexto emque cabe o ditado de que "quem não sabe on-de está não tem condições de definir a direçãoque seguirá." É o que faremos a seguir.

2.1. A Realidade do Subdesempenho

Começaremos por uma referência ao sub-desempenho da economia na sequência da crise econômico-financeira internacional que eclodiu em 2008. Em seguida, re-correremos a indicadores que examinam o País sob vários as-pectos quando comparado a outras nações.

Na seção anterior vimos que tanto FHC como Lula não con-seguiram acelerar significativamente a taxa de crescimento noque poderia ter crescido pela expansão dos investimentos pú-blicos e em geral. Além de bem assentada na teoria econômicae na experiência internacional, a relevância da taxa de inves-timentos para ampliar o crescimento do PIB encontra respaldona história econômica do País, com destaque para o período1968-1973, marcado por taxas de crescimento do PIB próximasde 10% ao ano e taxas de investimento como proporção do PIBbem acima dos valores registrados na Tabela 1.

Quanto a comparações internacionais a esse respeito, umperíodo particularmente interessante foi o da referida crise,com seu maior impacto em 2009. Nesse ano, conforme já vi-mos, dois países se destacaram na manutenção de taxas ainda

Tanure se refereespecificamenteà acomodação aosubdesempenhosatisfatório do Brasil,este acometido por'profundos problemas',pelos quais as empresascostumam mostrarpreocupação, mas sem seocupar, '... efetivamente,daqueles que nãoreceberam adevida atenção...'.

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bem elevadas de crescimen-to. Mais precisamente, a Chi-na, cuja taxa caiu de cerca de10% em 2008 para perto de8% em 2009, e a Índia, ondeessa taxa caiu de cerca de 8%para um valor próximo de6% no mesmo período.

Se olhada as taxas de in-vestimento desses dois paí-ses, elas mostram valorespróximos de 40% do PIB, noprimeiro caso, e 30% no se-gundo, e durante a crise elesfizeram um grande esforçopara sustentar taxas próxi-mas a esses valores. Umexemplo flagrante do esfor-ço da China e da sua preocu-pação com a infraestrutura,veio em recente manchete dejornal: "China constrói mais2.000 km de metrô até 2015"( 5) . Enquanto isso, no Brasil,São Paulo tem 66 km de li-nhas e o Rio tem 47 km, con-forme a mesma matéria.

Em porcentagem do PIB, ataxa de investimentos doBrasil, que chegou a ridícu-los 15,3% em 2003, cresceuaté 18,7% em 2008, mas caiupara 16,7% em 2009. Com ta-xas tão pequenas como es-sas, o País foi fortemente afe-tado pela crise, e sua taxa de crescimento caiu de 5,5% em 2008– um ano já parcialmente afetado, pois nele a crise veio em se-tembro –, para -0,2% em 2009. Quando surgiu esse número ogoverno, em mais uma demonstração de contágio pelo subde-sempenho satisfatório, em lugar de comparar o Brasil com paí-ses como os citados, enveredou pelo caminho de fazê-lo com osque tiveram desempenho ainda pior que o nosso.

Para diagnosticar o subdesempenho nacional, recorrere-mos a uma análise tradicional, mas que, de tanto repetida apartir de indicadores isolados costuma cair na trivialidade. Es-sa análise se desenvolveu depois da 2ª Guerra com a percepçãodo problema do subdesenvolvimento e com o surgimento devários indicadores nacionais de desempenho elaborados porinstituições criadas com a finalidade de produzi-los. Para fugirà trivialidade, recorreremos a um amplo conjunto de indica-dores, tanto de natureza econômica como de outros tipos.

Assim, a Tabela 2 apresenta a posição internacional doBrasil sob vários critérios. Entre economistas e cientistas so-ciais em geral, a maioria deles é conhecida em análises emgeral voltadas para um ou outro do conjunto. A ideia aquifoi apresentar esse conjunto abrangente a um público maisamplo para disseminar a percepção de que há muitíssimo

que fazer para o País alcan-çar desempenho efetiva-mente satisfatório.

A lista começa com indi-cadores de tamanho, quecolocam o Brasil como umpaís grande. Contudo, essetamanho só é documentopara finalidades específi-cas, que muitas vezes nãoalcançam sua população,como a influência regionale internacional, o poder deajudar países como o Haitie vários africanos, diminu-tos e paupérrimos. Uma ex-ceção está no que esses in-dicadores significam emtermos de tamanho do mer-cado nacional, e o que issoenseja de economias de es-cala e atratividade para in-vestimentos, favorecendotambém o desenvolvimen-to científico e tecnológico.

Em seguida, há um con-junto em que a posição doBrasil vem de listagens queordenam os países dos me-lhores para os piores, e osindicadores apresentadoscomeçam com o PIB "percapita", e terminam com osde educação e saúde. Deum modo geral, revelam

que na sua média os brasileiros estão na segunda divisão dojogo mundial de bem-estar. Sabe-se, ademais, que essa mé-dia esconde muita miséria.

Ao final da tabela há indicadores concebidos de tal forma quesua ordenação coloca nos primeiros lugares os países em pior si-tuação. De um modo geral, aí o Brasil aparece nas primeiras po-sições, e alguns dos indicadores tratam de condições particular-mente detestáveis, como taxas de homicídios.

De todos os indicadores listados e olhando como econo-mista, os que mais se destacam são as reduzidas taxas de in-vestimento, tanto a total como a da administração pública,nas quais, e particularmente na última, o Brasil está clara-mente no final da fila. A ênfase na necessidade de elevá-lasnão é, contudo, uma visão economicista. Tem alcance abran-gente, senão o mais abrangente de todos esses indicadores.Sem mais investimentos não haverá como resolver ou ali-viar problemas de um PIB "per capita" ainda baixo, de saú-de, de educação, de segurança, institucionais e de gestão,sendo que os dois últimos também permeiam estes e os de-mais problemas apontados

Na contramão dessa percepção, o Brasil, particularmenteno período mais recente, optou por um modelo de (sub)de-

Marri Nogueira/Folhapress

O (bordão) "nunca antes nestePaís" é emblemático de uma

visão que, além de quasenunca comprovada, volta-separa o passado de um país

ainda em construçãoe já carente de reformas.

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senvolvimento em que o atendimento de necessidades cru-ciais é postergado pelo apego ao consumo imediato. Isto,sem perceber que uma das lições básicas de Economia vemdo seu próprio nome, ou seja, é preciso economizar ou pou-par, pois esta é a chave da prosperidade, desde que inves-tido o que foi poupado.

3. A Política Macroeconômica e sua Reformulação:um enfoque holístico, incremental e ágil

Holístico é termo pouco usado, inclusive na análise econô-mica usual, onde seu equivalente seriam as visões de equilí-brio geral, muito abstratas para não-economistas. Mas, é mui-

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to adequado para problemas como os apontados, pois umaabordagem holística é a que "...no campo das ciências huma-nas e naturais, ... prioriza o entendimento integral dos fenôme-nos, em oposição ao procedimento analítico em que seus com-ponentes são tomados isoladamente"(6).

Ilustrativa desse procedimento isolacionista é, por exemplo,a política de metas de inflação, praticada pelo BC sem o apoiocoerente da política fiscal e da política de crédito, entre outrosaspectos. Com isso, a taxa Selic se apresenta como a única armautilizada no combate à inflação e o BC, o único combatente.

Quanto ao caráter incrementalista, a lógica está no instintodos políticos e dos eleitores, explicável entre outros fatores poruma predominante aversão ao risco, e também pela necessi-dade de respeitar contratos e direitos adquiridos. Segundo re-cente editorial da revista The Economist,

"Os políticos são por instinto incrementalistas.Abraçam a retórica do radicalismo, mas na rea-lidade tendem a cortar um pedacinho da he-rança de seus antecessores aqui, e adicio-nar um pedacinho ali; arrastam-se pa-ra a direita ou andam vagarosamen-te para a esquerda. Tanto eles comoseus eleitores evitam mudançaradical quando possível (7)."

Finalmente, à reformulaçãoda política econômica cabe adi-cionar o imperativo da agilida-de. As duas características ante-riores não devem ser tomadascomo formas de contemporizar.São tantos os problemas a resol-ver, e muitos se agravando com opassar do tempo, que a agilidade éindispensável, sem o que a eficáciada ação governamental permanecerácomprometida. Na linguagem dos eco-nomistas, o PIB é produto por unidade detempo; pode ser ampliado nessa unidade, oubuscando-se o mesmo PIB ou um maior num menor es-paço de tempo. A agilidade leva assim à produtividade am-pliada e também favorece o crescimento econômico.

3.1. O crescimento econômico como objetivo central

Até hoje não se inventou outra maneira de aprimorar o bem-estar de uma nação. Atualmente, é moda falar de crescimentosustentável, em particular com respeito a questões ambientais.Tudo bem, mas novamente é preciso ter em mente o estágio desubdesempenho do Brasil, cuja superação trará inevitáveis da-nos ambientais. A solução não está em dificultar obras como hi-drelétricas e estradas, mas em fazê-las compensando-se os ine-vitáveis danos com correspondentes reparações ambientais. Etudo decidido de forma rápida, como já argumentado.

Antes de prosseguir faremos aqui uma breve digressão arespeito das forças capazes de induzir o crescimento econômi-co, apresentadas de forma descomplicada, para alcançar no-vamente um público mais amplo.

Suponhamos uma família envolvida na produção de um úni-co cereal, o milho, e que esteja interessada em aumentar a pro-dução, seu PIB. A mais importante força, porque dependente desua decisão e com resultados imediatos, seria aumentar suapoupança e investimento, consumindo menos milho para termais sementes para ampliar a colheita. Essas sementes consti-tuem um bem de capital, pois atuam como máquinas de produ-zir milho. Quanto mais sementes, maior a produção adicional.

Outra força importante seria o desenvolvimento tecnológi-co, se essa família conseguisse, por exemplo, selecionar ou bus-car sementes mais produtivas, com o que a produção tambémaumentaria. Na mesma linha, se fossem encontradas formasde tornar mais rápida a atividade produtiva, isso também re-percutiria sobre a produção ou sobre a disponibilidade de tem-po para outras atividades, entre elas a educação.

Esta merece destaque como um terceiro fator. As-sim, se os membros dessa família se tornas-

sem mais educados, e isso permitisse oacesso a maiores conhecimentos liga-

dos à produção de milho, esta au-mentaria pelo domínio de novastécnicas de produção, tanto no

Hélvio Romero/AE

Atualmente, é moda falar decrescimento sustentável, emparticular com respeito aquestões ambientais. Mas épreciso ter em mente o estágiode subdesempenho do Brasil,cuja superação traráinevitáveis danos ambientais.

que diz respeito às sementes, mastambém se estendendo a espaçamen-

to, época de plantio, cuidados adequadose tudo mais.

Uma quarta força dependeria da estrutura demo-gráfica da família. Se tivesse uma proporção alta de criançase de idosos, a força de trabalho engajada no processo produ-tivo seria menor, além de ter que arcar com a manutençãodessas pessoas e dificultar o esforço de poupança e de inves-timento da família.

Passando à comercialização da produção, para alcançarbons resultados seria indispensável o acesso a um bom sis-tema de transporte e de infraestrutura em geral (energia etelecomunicações, entre outros itens). E, ainda, um ambien-te de negócios em que estes pudessem prosperar sem obs-táculos capazes de comprometê-los como, por exemplo,uma alta taxa de tributação e dificuldades institucionais nasustentação de contratos. Nesse ambiente também seria ne-cessário que a inflação estivesse sob controle, pois caso con-trário os preços do milho poderiam ficar defasados, os cál-culos econômico-financeiros ficariam prejudicados e toma-riam mais tempo, com a inflação acrescentando incertezasao processo decisório.

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Essa família também teria problemas se pretendesse re-correr a financiamentos e seu custo fosse alto relativamentea seu benefício. Além disso, se seu produto fosse exportável,variações da taxa de câmbio poderiam beneficiar ou preju-dicar a atividade produtiva.

Dado esse quadro, fica claro que a promoção do desenvol-vimento exige um enfoque holístico. Transpondo esse mi-crocosmo familiar para a economia como um todo, dadas asrestrições de espaço limitaremos a análise que se segue à es-trutura demográfica, à carga tributária, e aos investimentospúblicos e privados. A inflação e as taxas de câmbio ficarãopara a seção seguinte.

3.2. A estrutura demográfica e o bônusque (ainda) oferece

Quanto à natalidade, essa estrutura depende de decisõespessoais, tomadas no âmbito familiar ou mesmo fora dele.Nas últimas quatro décadas, brasileiros e bra-sileiras agiram de tal forma que a taxa de fe-cundidade feminina, medida pelo número defilhos que em média as mulheres têm na suaidade fértil, se reduziu consideravelmente,com o que vem caindo a proporção de crian-ças na população. Ao mesmo tempo, há a ten-dência de envelhecimento, mas a fecundida-de ainda cai mais do que aumenta a longevi-dade, pois esta depende de avanços na medi-cina e nas condições de vida, como naqualidade da alimentação e no saneamentobásico, que evoluem com menor velocidade.Como resultado, a proporção de pessoas emidade ativa (entre 15 e 65 anos de idade) vemcrescendo relativamente aos dois outros gru-pos que se situam no extremos da estruturaetária (0-14 e 65 ou mais).

Dado esse quadro, considera-se como bô-nus demográfico o ensejado pelo momentoem que a estrutura etária da população atua no sentido de fa-cilitar o crescimento da produção, e também da escolaridadede seus jovens, entre outros aspectos. Isso acontece neste mo-mento por que passa o Brasil, em que há um grande contin-gente da população em idade produtiva, cai o percentual dosmais jovens no total da população e o sobe o dos idosos, maseste ainda sem constituir um grande peso.

Segundo o demógrafo Diniz Alves, o Brasil tem ainda en-tre 10 a 20 anos, ou seja, até perto de 2025 para ampliar a qua-lidade de vida da população aproveitando este momento, edemonstrando que não está condenado a envelhecer antes de"enriquecer". Se não fizer isso, depois ficará mais difícil, poiscomeçará a ser atropelado, como no Japão e na Europa, poruma grande e crescente proporção de idosos na população,com todos os custos correspondentes(8).

Para aproveitar esse bônus, contudo, o Brasil precisará am-pliar a proporção ocupada – e bem ocupada –, de sua populaçãoem idade produtiva. Essa ampliação depende essencialmenteda taxa de investimentos ou das sementes ou máquinas que fo-

rem colocadas para expandir a produção, ao lado de investi-mentos em educação geral e profissional, em saúde, em inova-ção e progresso tecnológico. E também criar um ambiente favo-rável aos negócios ligados à atividade produtiva.

É também fundamental impedir que o envelhecimentoda população se torne um ônus muito grande, de difícil sus-tentação, com esquemas de aposentadorias e pensões malassentados na sua lógica atuarial. Para tanto, cabe uma re-forma das regras da previdência oficial, a do funcionalismoe do INSS, mas esta é medida que também exige enfoque in-crementalista, afetando apenas os novos ingressantes nomercado de trabalho, para que a reforma não sucumba aosinteresses e direitos dos já integrados no sistema atual (9).

3.3. Do lado da carga tributária

Usualmente a carga tributária no Brasil é criticada pelo seutamanho global e, microeconomicamente, pelo seu impacto

no chamado "custo Brasil". Também aqui pro-curaremos dar um enfoque holístico, no casochamando a atenção para um aspecto da aná-lise microeconômica do impacto dos tributos.Esse aspecto é trivial na literatura econômica,mas, até só ocasionalmente mencionado nodebate no Brasil.

Trata-se de olhar a chamada perda de "pe-so morto" da carga tributária brasileira. É sa-bido que esta se sustenta principalmente emimpostos indiretos que gravam o valor dosbens e serviços com alíquotas distintas. Ora,a uma tributação baseada em impostos dessetipo corresponde uma perda dada pelo quese sacrifica de produção e consumo comoefeito desses impostos que incidem sobreambos. Ou seja, se não existissem esses im-postos, haveria maior produção e consumo,o que também poderia ocorrer caso as alíquo-tas não fossem diferenciadas, com o que o im-

posto indireto equivaleria a um imposto direto e neutroquanto a efeitos desse tipo.

Não precisamos ir longe para buscar evidências desse "pe-so morto" tributário. Com a crise econômico-financeira de-sencadeada em 2008, o governo tomou medidas de incentivoà economia, entre elas a redução da carga tributária incidentesobre bens duráveis de consumo, como automóveis e gela-deiras. E o que aconteceu? Como amplamente noticiado, aprodução e as vendas responderam positivamente aliviandoassim a perda de "peso morto". É possível que tenha havidoapenas antecipação do consumo em face do caráter transitó-rio da medida, mas se ela fosse permanente os efeitos teriam amesma direção (10). Outra evidência está no fato de que a per-da aqui costuma levar a ganhos em países onde turistas bra-sileiros gastam seu dinheiro ( 11 ) .

Para reduzir o conjunto dessa perda, não é viável, contudo,uma redução forte e imediata dos impostos que a produzem, aítambém cabendo o enfoque incremental. Há evidentes exage-ros a prejudicar o desempenho da economia como na forte tri-

É fundamentalimpedir que oenvelhecimento dapopulação se torneum ônus muitogrande, de difícilsustentação, comesquemas deaposentadoriase pensões malassentados na sualógica atuarial.

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butação de alimentos, de bens de capital, de bens de consumodurável, de telecomunicações e de energia. Portanto impõe-se,com o enfoque proposto, que em primeiro lugar o governo eviteo crescimento da carga tributária, pois ela tende a aumentar como crescimento da economia, dado o forte gravame de produtos eserviços que se destacam nesse crescimento, como os acima ci-tados, exceto os alimentos. Na mesma linha, caberia, em segui-da ou ao mesmo tempo, reduzir alíquotas de impostos come-çando pelos produtos e serviços citados, e sem essa exceção.

3.4. Do Lado das Despesas: mais Investimentos

Desse lado, dado o que já foi argumentado ao longo do texto,pode-se ser sucinto quanto ao que a reformulação deve incluir,ao lado de algumas s considerações adicionais, como segue:� a baixa taxa de investimentos como proporção do PIB,

particularmente a da administração pública, é o "calca-nhar de Aquiles" da economia brasileira, respondendopor taxas de crescimento menores do que as que pode-riam ser alcançadas;

� ela também responde pelo resultado ruim, no caso brasilei-ro, de vários indicadores apresentados na Seção 2, pois seualívio depende crucialmente da ampliação dos investimen-tos, em particular os da administração pública;

�dada a inconveniência de ampliar a carga tributária com esseobjetivo, é indispensável a contenção das despesas corren-tes da máquina governamental;

� quanto a estas cabe também o enfoque analítico proposto,pois há que examiná-las no seu todo e perseguir esse obje-tivo de forma incremental;

� como exemplo, há as despesas de pessoal, que não ofere-cem margem para compressão em termos absolutos, maspodem ser incrementalmente reduzidas como proporçãodo PIB contendo-se reajustes salariais e o quadro funcional,dado que foram muito liberalmente ampliados nos anos re-centes (12); o mesmo vale para os gastos a título de previdên-cia e assistência social;

� um espaço também identificado, ainda que não na sua di-mensão, é o dado por um reexame minucioso várias outrasdespesas de custeio, reexaminando-se a sua relevância, osprocedimentos de licitação e os termos de seus contratos; di-versos estados e municípios, inclusive com recurso a consul-torias especializadas, vêm obtendo consideráveis resulta-dos com essa política de "pente-fino", não se tendo notícia deprocedimento semelhante no Governo Federal, em razão doque aí se pode esperar resultados relativamente maiores emtermos absolutos e relativos; mesmo que não seja preenchi-da essa expectativa, será um passo importante na direção deuma administração pública mais eficaz e eficiente;

�a política de "funding" e de empréstimos do BNDES deve serreformulada, conforme as linhas sugeridas anteriormente;

�na reformulação fiscal, o governo deve optar por esse ou ou-tro nome que demonstre um rompimento com conceitos ul-trapassados, como ajuste fiscal e superávit primário, enfa-tizando particularmente a sua taxa de investimentos, o dé-ficit nominal e também a dívida bruta do setor público;

� do ponto de vista financeiro, a divulgação mensal de umsuperávit primário que se revela abaixo do valor dos jurosda dívida pública adiciona a esta um elemento de risco;ademais, as sucessivas divulgações desses superávits,

Masao Goto Filho/e-SIM

Com a crise econômico-financeira desencadeadaem 2008, o governotomou medidas deincentivo à economia,entre elas a redução dacarga tributária incidentesobre bens duráveisde consumo, comoautomóveis e geladeiras.Como amplamentenoticiado, a produção eas vendas responderampositivamente, aliviandoassim a perda de "pesomorto", que se sustentacom impostos indiretos.

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com o noticiário às vezes omitindo que se tratam de pri-mários, e negligenciando os recorrentes déficits nominais,contribui para transmitir uma falsa imagem de contas pú-blicas superavitárias;

� assim, uma nova forma de avaliar a eficácia da ação gover-namental deveria ser pela sua taxa de investimentos, junta-mente com a regra de que o déficit nominal não poderá sermaior que ela, e também contido por seu próprio limite, emprincípio numa faixa de 2 a 3% do PIB;

� com isso, a visão dada pelas finanças públicas seria umaem que se passaria a cobrir integralmente os juros da dí-vida em lugar de, como hoje, mostrá-los como separte deles fosse a causa do déficit nominal, o qualpassaria a ser relacionado com os investimentosdo governo, adicionando assim um elementode confiança na sua saúde financeira, dimi-nuindo a percepção de seu risco e abrindotambém espaço para uma redução da taxade juros que paga;

� quanto aos investimentos, como perma-necerá a carência de recursos públicos,cabe contemplar com muito maior ênfa-se as parcerias público-privadas e a par-ticipação também isolada do setor priva-do via concessão de serviços públicos,bem como o fortalecimento dos mecanis-mos de financiamento dos investimentosdo setor privado em geral, na linhaapontada quando discutido o papeldo BNDES, na Seção 1;

� ainda quanto aos investimentos, étambém imperioso que sejamcriteriosamente definidos, eainda recentemente houvedois casos claros em que a ne-cessidade e a prioridade fo-ram atropeladas no processode escolha, o do trem-bala li-gando os estados de São Pau-lo e Rio de Janeiro, com custoestimado em R$ 33 bilhões, eo de uma uma estatal de seguros, com capital de R$ 18 bi-lhões, sendo que no primeiro caso há claramente projetosde muito maior prioridade, como outras ferrovias, ou ro-dovias e metrôs, e no segundo não foi demonstrada a ne-cessidade de uma estatal para essa finalidade.

4. Inflação, câmbio e juros

A política macroeconômica brasileira tem como base umtripé em tese apoiado na política de metas de inflação, as-sentada na taxa Selic, numa gestão fiscal condizente com es-sa política e no câmbio flutuante. O problema não está no tri-pé em si, mas na sua administração que no Brasil apresentavárias distorções.

Em particular, há uma administração fiscal de alto risco ede contribuição até deletéria para o controle inflacionário, fa-

zendo com que a primeira perna tenha que recorrer a uma Se-lic maior para esse controle. Ademais, o governo atua combancos oficiais, e vem desenvolvendo uma política de créditotambém não condizente com a política monetária, principal-mente no BNDES, em face do tamanho de suas operações. As-sim, seria necessário harmonizar esses componentes da po-lítica macroeconômica, de modo a garantir a eficácia do con-junto e, em particular, retomar o caminho de uma Selic menor.Isto ocorrendo, poderiam ser esperados efeitos favoráveissobre a taxa de câmbio, pois essa queda atuaria no sentido dedesestimular ou pelo menos não atrair tanto os capitais que

jubilosamente vêm ao Brasil para sebeneficiar dos altos juros que paga.

Outro aspecto interessante do re-ferido tripé diz respeito ao papel es-pecífico de cada um de seus apoios. Apolítica monetária tem o propósitode controlar a inflação, em particularbaixando-a quando foge à trajetóriada meta perseguida pelo BC. Quantoaos juros, o BC em tese concorda queidealmente a Selic deveria ser menor.Na prática, atua de forma concentra-da nas oscilações dessa variável,pouco se preocupando com o seu altovalor em termos absolutos. Além dis-so, retoricamente também toca nosaltos spreads cobrados no Brasil, maspouco faz no sentido de reduzi-los,um dos casos sendo quando acompa-nham um movimento de mesma na-tureza da Selic (13).

No tripé, a taxa de câmbio tem umaspecto peculiar, e também proble-mas de gestão, como nas duas outraspernas do tripé. Conceitualmente, oBC se aferra à noção de uma taxa flu-tuante. Assim, ao contrário da infla-ção onde o objetivo é mantê-la con-forme a meta perseguida pelo BC, eda Selic, que oscila conforme a a infla-

ção se comporta diante dessa meta, como regra o câmbio édeixado a flutuar sem nenhum propósito de direção.

Contudo, tais flutuações trazem problemas para a econo-mia, tanto quando a taxa de câmbio em reais por dólar sobe eimpacta a inflação, como quando cai, acentuando uma sobre-valorização do real e causando problemas ao setor produtivo,o que tem sido o movimento predominante. Reconhecendo oproblema da inflação, o BC atua indiretamente sobre a taxa decâmbio quando ela sobe, e leva consigo a inflação, fazendo issovia taxa de juros, e também algumas vezes quando a taxa cai,neste caso num movimento típico da chamada flutuação "su-ja". Sem a grande acumulação de reservas, feita inclusive comintervenções ocasionais, a valorização do real seria muito maisgrave do que a verificada.

Há, assim, vários problemas específicos à gestão das po-líticas de juros em geral e da taxa de câmbio, que continua-

O BC em tese concorda queidealmente a Selic deveria ser menor.Na prática, pouco se preocupa com oseu alto valor em termos absolutos.

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35AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

remos a abordar nas duas subse-ções seguintes.

4.1. As taxas de juros

Quanto ao que se pode fazer nes-sa área, já foi assinalado que umagestão fiscal conservadora e umapolítica de crédito coerente com amonetária repercutiriam favora-velmente sobre a Selic, de modo atrazê-la para valores mais baixos.

Mas, é preciso voltar decisiva-mente a atenção para os altíssimosníveis do spread bancário. Para amaioria que não tem acesso ao cré-dito subsidiado e direcionadobancado pelo governo, como estefaz no setor agrícola e, principal-mente, no BNDES, as taxas de ju-ros no Brasil constituem uma cala-midade, sobretudo para as micro,pequenas e médias empresas. Es-sas taxas ou oneram excessiva-mente os tomadores de crédito ouexcluem do acesso a ele muitosdos interessados.

Quanto ao que fazer para redu-zir o spread, dois artigos desta co-leção se debruçaram sobre o as-sunto, Toledo (2010) e Ruiz deGamboa (2010). Ambos tambémenfatizam a necessidade de umapolítica fiscal que contribua para osucesso da política monetária nasua atuação sobre a Selic, e tam-bém têm propostas comuns parareduzir o spread bancário, como aimplantação de sistemas de ca-dastro positivo, a agilização deprocessos judiciais relacionados acréditos inadimplentes, e medi-das para assegurar maior grau de concorrência dentro dosistema financeiro.

Também sugerem várias medidas que vão além do quenormalmente se discute sobre o assunto. Ruiz de Gamboa(2010), por exemplo, após constatar forte correlação positi-va entre a taxa Selic e a taxa de spread bancário pré-fixado,propõe ação específica com potencial de reduzir a primeirataxa e repercutir sobre a segunda, mediante "eliminação dasubvalorização e alongamento de passivos públicos inter-nos e externos e reconhecimento de 'esqueletos fiscais' exis-tentes (14)." Toledo (2010) menciona a "imposição de limites(razoáveis) para taxas de juros para consumidores", referin-do-se à sua existência no caso dos EUA para cartões de cré-dito, por exemplo (15), e " a ação do BC para coibir (através depersuasão) spreads excessivos".

O leitor interessado deve consultar es-ses autores, pois são muitas as idéias queapresentam. A complexidade do assun-to e o fato de que análises como essaschegam a tantas propostas, mostramnovamente a necessidade de um enfo-que holístico. Demonstram tambémque se trata de assunto cujo tratamentoextrapola a esfera do BC, seja no caso daSelic, seja no caso do spread.

4.2. A taxa de câmbio

Como já assinalado, um aspecto pe-culiar dessa taxa é que ao contrário dassuas duas companheiras no tripé quecompõe, ela é deixada a flutuar semnenhum critério a balizar essa flutua-ção. Entretanto, pratica-se esporadi-camente a flutuação "suja", mas o BCfaz isso com envergonhada discri-ção, sempre se dizendo apegado aocâmbio flutuante, ao lado de não re-conhecer explicitamente as distor-ções que um real valorizado trazpara a economia, particularmenteao afetar seu setor produtivo.

A propósito, vale lembrar que ocâmbio flutuante foi adotado em1999 na esteira de grave crise ex-terna, na qual o Brasil era o epi-

centro, quando a flutuação abriu espaço para uma inevitáveldesvalorização do real, que se mantinha fortemente aprecia-do. Há tempos o contexto internacional é radicalmente dife-rente, mas a política cambial foi mantida essencialmente amesma, inclusive no que diz respeito à sua dimensão mone-tária, com juros altos que no início do flutuante tinham tam-bém o papel de atrair recursos externos. E aqui esse câmbiovirou sinônimo de real apreciado.

Entendemos que como tudo que é deixado a flutuar en-quanto não traz problemas, de barcos a banhistas, quando ataxa cambial se afunda, deve receber resgate ou suporte, pa-ra aliviar as distorções que implica para a economia do País,mas sem que isso implique em sustentar atividades nãocompetitivas por si mesmas.

Em outras palavras, não há nenhuma heresia em que a po-

O câmbio flutuante foi adotadoem 1999 na esteira de gravecrise externa, na qual o Brasilera o epicentro, quando aflutuação abriu espaço parauma inevitável desvalorizaçãodo real, que se mantinhafortemente apreciado.

Div

ulga

ção

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lítica econômica tenha essa preocupação, desde que nãoavance para uma intervenção "imunda".

Quanto à "suja", usual, um exemplo inte-ressante vem do Reserve Bank of Australia(RBA), o banco central daquele país, cujosproblemas e políticas o Brasil deveria acom-panhar mais de perto, pois é também umgrande exportador de produtos primários, al-guns dos quais também típicos de nossa pautanessa atividade, como minério de ferro e car-nes. O RBA optou também pelo câmbio dito flu-tuante, mas pratica e sem volteios uma políticade intervenção, ainda recentemente objeto deum extenso artigo publicado no seu portal, queexplica com detalhes seu papel no mercado decâmbio (16). Desse artigo, há esta síntese dos fun-damentos da intervenção:

"A decisão de flutuar o dólar Australiano permitiu que forças demercado determinassem o valor da moeda. Entretanto, isto não sig-nificou que o RBA ficasse indiferente tanto quanto ao nível ou ao mo-vimento da taxa de câmbio, dado que podem ter influência poderosasobre aspectos importantes da economia, particularmente o cresci-mento econômico e a inflação. Por esta razão, o RBA ocasionalmenteintervém no mercado de câmbio. Este enfoque quanto à intervençãoveio da constatação, pelo Comitê Campbell, de que uma flutuação'limpa" era irrealista, e que intervenções ocasionais pelas autorida-des podem ser desejáveis."(17)

Como se percebe, o assunto é encarado com naturalidade, e nomesmo portal podem ser encontrados vários outros textos tratan-

do explícita e transparentemente da questão cambial, enquantoque para o nosso BC ela é quase uma maldição. Assim, é precisoassim adotar explicitamente uma política de intervenção que cla-ramente dê ao mercado a percepção de sua presença, e ao BC per-mita praticar e aprender no processo, pois sua visão atual preju-dica inclusive esse aprendizado.

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O Banco Central Australiano optoupelo câmbio dito flutuante, mas

pratica uma política de intervenção.

Reprodução

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37AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

Quanto ao que mais que se pode fazer, é já pensando em me-didas claramente contra a valorização do real, Toledo (2010)também apresenta várias alternativas, como um aumento davolatilidade da taxa no processo de intervenção – para ampliaro risco de passivos externos –, a tributação de entradas de ca-pitais pelo Imposto de Operações Financeiras (IOF), "comatenção para as formas em que essa entrada pode ser disfar-çada de modo a contornar a tributação", períodos de quaren-tena para o ingresso de recursos externos, sem remuneração,incidência do Imposto de Renda (IR) sobre toda e qualquer re-muneração, inclusive e particularmente ganhos de capital,maior liberalização das regras cambiais viabilizando maioresinvestimentos de brasileiros no exterior, e várias outras quepodem ser consultadas no seu texto.

Quanto à tributação pelo IOF cabe acrescentar que foi re-forçada recentemente no Brasil pelo decreto federal nº 6.983,que passou a vigorar em 20/10/2009, à taxa de 2%, "...nas li-quidações de operações de câmbio para ingresso de recursosno País, realizada por investidor estrangeiro, para aplicaçãono mercado financeiro e de capitais." Na ocasião houve pro-testos de muitos analistas do mercado financeiro, inclusivecom referência ao caráter inócuo da medida. Tudo indica queela foi assimilada, pois não se fala mais do assunto, inclusiveporque o próprio FMI, que abominava medidas desse tipo,passou a admiti-las (18).

Adicionaríamos, na linha de também ver esse assunto comomultifacetado e a exigir um enfoque holístico, que além de in-

tervenções do BC para evitar o "afundamento" da taxa, estatambém pode ser apoiada por medidas raramente trazidas àdiscussão do assunto. Por exemplo, dada uma taxa de câmbio,um produtor de soja mato-grossense terá melhores condiçõesde enfrentá-la se dispuser de melhor infraestrutura de logís-tica, da fronteira de sua fazenda ao porto e também nele. Ino-vações tecnológicas que aumentassem sua produtividadetambém teriam efeito similar.

Concluímos com uma lição de quem extrai muito minériono Brasil, vende sua produção a dezenas de países, e conseguelucrar com isso, mesmo em situações de câmbio adversas. Re-centemente, Roger Agnelli, presidente da Vale, assim se ex-pressou sobre o papel da taxa de câmbio:

"O nome do jogo não é desvalorização cambial, é inova-ção... cada mina ... é um ser diferente ... tem que ter um pro-cesso específico ... e bilhões de dólares para investir em logís-tica também. O sucesso da Vale está nos portos mais eficientesdo mundo ..."(19)

Para muitos exportadores, jogo é também a questão cam-bial. A Vale é enorme e diferenciada. De qualquer forma,muitos exportadores brasileiros devem ter superado as di-ficuldades cambiais com procedimentos semelhantes, mes-mo operando com menor escala e em outros mercados. E po-deriam ser muitos mais se houvesse maior e significativoempenho governamental em dar a todos melhores condi-ções de logística e estímulos à inovação e ao aprimoramentotecnológico.

Notas(1) Em artigos recentes, Mendonça de Barros (2010) e Nóbrega(2010) criticaram esse relacionamento entre o Tesouro e oBNDES, afirmando que o mesmo traz a má lembrança dafinada "conta de movimento" que envolvia o Banco Central e oBanco do Brasil.(2) Financial Times, 28/6/10, em caderno especial sobre o Brasil.(3) Tradução livre de Krugman (2004), pp. xi-xii.(4) Idem, p. xii.(5) Folha de S. Paulo, 4/7/10, p. B10.(6) Dicionário Houaiss da língua portuguesa, edição de 2005.(7) The Economist, 19/6/10, p. 14.(8) Diniz Alves (2010) e esclarecimentos pessoais.(9) Sobre o assunto, veja-se a proposta de Zylberstajn (2010).(10) Uma análise mais abrangente deveria se estender, entreoutros aspectos, à maneira pela qual o governo gasta osrecursos arrecadados, em particular na produção de bens comoa saúde pública, produzindo externalidades que ampliam ovalor do que produz, e acima de alternativas oferecidas pelosetor privado.(11) A evidência está no fato de que nos EUA, um país onde osimpostos indiretos são menores que no Brasil nas suas alíquotas ena sua arrecadação relativamente aos impostos diretos, turistasbrasileiros declararam ter como atividade mais importante ascompras, numa porcentagem de respostas próxima do dobro das

atribuídas a parques temáticos, e do triplo das recebidas por visitasa museus e frequência a concertos e shows. Trata-se de outro tipo deparaíso fiscal, ao qual se leva a renda menos tributada aqui paragastar lá em bens e serviços menos tributados lá. Conformepesquisa Market Profile, de 2008, do Office of Travel and TourismIndustries (OTTI), citada pelo Diário do Comércio, 21/5/10, p. 5,seção de Economia.(12) Sobre o assunto e outras propostas nessa área, veja-seMarconi (2010), também integrante desta série especial.(13) Sobre a correlação entre a Selic e o spread bancário, veja-seRuiz de Gamboa (2010).(14) O artigo de Ruiz de Gamboa (2010) está neste mesmonúmero da Digesto Econômico.(15) No Brasil, há limites desse tipo no crédito direcionado, e oestabelecido para operações de crédito consignado.(16) RBA (2009). Ver especialmente a Seção 6, que explica asrazões da intervenção, e a Seção 7, sobre como ela é realizada.(17) Idem, tradução primeiro parágrafo da Seção 6.(18) Valor Econômico, 15/4/10, quanto à posição do FMI. E amedida citada não foi inócua no sentido de existir espaço paraescapar a ela. Teve algum efeito, a julgar pelo forte crescimentoda arrecadação do IOF sobre as referidas operações cambiais,conforme o jornal Valor Econômico, de 16/7/2010.(19) Folha de S. Paulo, 6/7/10.

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Ulisses Ruiz de GamboaDoutor em Economia pela FEA-USP, economista da AssociaçãoComercial de São Paulo e professor da FIA-USP e da FIPEUSP.Ex-consultor do Banco Mundial e pós-doutorando em HistóriaEconômica, Universidade da California, Los Angeles. Visiting Scholarda mesma universidade. O autor agradece os comentários esugestões de Marcel Solimeo e Nicola Tingas a versões anterioresdeste estudo, e o excelente trabalho de assistência de pesquisa deGiuliana Boccalato, responsabilizando-se por qualquer erro ouomissão cometidos. [email protected]

Resumo

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Mercado de crédito e onovo governo: dez

propostas para reduziro Spread Bancário

Mercado de crédito e onovo governo: dez

propostas para reduziro Spread Bancário

O presente trabalho tem por objetivo propor para o próximogoverno um conjunto de medidas capazes de provocar umadiminuição permanente dos elevados spreads bancáriosbrasileiros, a partir de um diagnóstico prévio dos fatoreseconômicos e institucionais que o determinam. As dezmedidas propostas são as seguintes: 1) aplicação de umapolítica fiscal menos expansionista; 2) eliminação dasubvalorização e alongamento de passivos públicosinternos e externos e reconhecimento dos "esqueletosfiscais" existentes; 3) aumento da independência da políticamonetária; 4) estabelecimento de um programa de

conversibilidade plena do real; 5) redução da duração deprocessos judiciais relacionados a créditos inadimplentese implementação de modificações no sistema judicialque simplifiquem e barateiem a recuperação de garantias;6) criação de um cadastro positivo de crédito; 7) diminuiçãogradual do direcionamento obrigatório de recursos;8) redução gradual dos recolhimentos compulsórios eeliminação da remuneração das reservas e da exigibilidadede manter títulos públicos; 9) desoneração tributária dastransações financeiras; e 10) aumento das condiçõescompetitivas do mercado bancário.

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Bruno Budrovic/Corbis

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Introdução

Aeconomia brasileira passou nas últimas duas déca-das por transformações estruturais, que hoje lhe ga-rantem posição de destaque entre as economiasemergentes mais promissoras do planeta. O fim da

era inflacionária possibilitou a expansão do setor financeiro,resgatando sua natural vocação de intermediação de recursosentre os que poupam e aqueles que demandam crédito.

Existe farta evidência de que um mercado financeiro maisdesenvolvido está associado a uma maior taxa de crescimen-to econômico no longo prazo. Levine (1997), em um dos es-tudos clássicos sobre o tema, mostra que um aumento do cré-dito privado equivalente a 30% do PIB significaria elevar em1% a taxa anual de expansão da atividade econômica, além deaumentar a produtividade e o incremento anual do estoquede bens de capital em 0,75%.

O "aprofundamento" do mercado de crédito desempenhapapel fundamental nesse processo, pois permite que a taxa dejuros funcione como sinalizador para as decisões de consumoe poupança, possibilitando um uso mais eficiente dos fundosno financiamento do investimento produtivo.

Além desses efeitos positivos, o crédito também pode de-sempenhar o papel de indutor do desenvolvimento econômi-co, ao reduzir as desigualdades distributivas. Em pesquisamais recente, Beck, Demirgüç-Kunt e Levine (2007) concluemque a expansão do crédito está associada à redução nas desi-gualdades sociais, pois permite financiar a aquisição de edu-cação e capacitação porparte das classes de baixarenda e a realização de pe-quenos negócios que, naprática, num contexto derestrição de liquidez, ten-dem a utilizar crédito pes-soal. O acesso a esse tipode financiamento é crucialpara retirar de forma defi-nitiva a população carentedo chamado "círculo vi-cioso da pobreza".

No caso brasileiro, aexpansão do crédito temse convertido em um dosfatores fundamentais pa-ra o crescimento econô-mico, ao financiar tanto oconsumo das famíliasquanto a aquisição debens de capital por partedas empresas. De fato, talc o m o s e p o d e v e r n oGráfico 1, a tendênciacrescente da concessãototal de crédito ao setorprivado (pessoa física ejurídica) coincide com a

trajetória ascendente do PIB durante o período 2001-2009.Também é interessante notar que a redução da atividadeeconômica observada durante o ano passado ocorreu emparalelo à contração da concessão de crédito.

É comum afirmar que, comparado a outras economiasemergentes, o Brasil ainda apresenta um mercado de créditoreduzido, o que é mostrado no Gráfico 2, que contrasta arelação crédito-PIB medida para o caso brasileiro com ou-tros países emergentes. Como pode ser notado, em termosdesse indicador, durante 2008, nosso país ocupava a últimaposição do ranking.

Contudo, tal como sugere um extenso estudo do BancoMundial (2006), se tomamos a proporção do saldo total deempréstimos em relação à renda por habitante (1), levandoem consideração, assim, o grau de desenvolvimento de cadapaís, nosso mercado de crédito, embora continue sendo demenor tamanho em relação às nações desenvolvidas, nãodifere dos outros países com renda semelhante, situando-se, inclusive, acima da média geral (Gráfico 3). De qual-quer forma, as restrições de liquidez ainda são uma realida-de para um contingente importante de famílias e empresas,principalmente nos casos de lares de baixa renda e para asfirmas de pequeno e médio porte.

Onde o mercado de crédito brasileiro realmente apresentacomportamento anômalo é nos níveis de taxas de juros cobra-dos pelo sistema financeiro. Assim, em termos de spread ban-cário (diferença entre a taxa de juros cobrada ao tomador decrédito e a taxa de juros paga pelas aplicações) e de taxas de ju-

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ros reais, o Brasil se situano primeiro lugar do ran-king mundial, conformepode ser apreciado nosGráficos 4 e 5.

T a x a s d e j u r o s espreads elevados geral-mente estão vinculados aaltas taxas de inflação, on-de a taxa de juros nominaldeve embutir, além da ta-xa real, a taxa de inflaçãoesperada. Além disso, osjuros altos podem ser o re-sultado de políticas mo-netárias que busquem re-duzir a própria inflação,ao restringir a expansãoda demanda agregada, ousimplesmente uma formade manter, com o mesmoobjetivo, uma certa pari-dade com o dólar, frente àmaior volatilidade dosfluxos externos.

Nosso país teve umalonga tradição de altas ta-xas de inflação, o que ex-plicaria a existência de ta-xas historicamente eleva-das, num contexto em queos depósitos de curtíssimoprazo (overnight) ser-viam de escape para a con-tínua deterioração do po-der de compra da moeda.Entretanto, após o PlanoReal, que promoveu umasignificativa redução dainflação, parece parado-xal que a economia brasi-leira continue apresentan-do spreads bancários tãoelevados. O "enigma" dosjuros altos brasileiros temmotivado muitas análises e estudos de especialistas nacionaise internacionais. De qualquer forma, o maior custo de capitaldas empresas, reduz o investimento produtivo e, portanto, di-minui nossas possibilidades de crescimento sustentável doproduto, único caminho para que o Brasil futuramente passe afazer parte das nações desenvolvidas.

De fato, estima-se que a capacidade máxima de expansãode nossa economia, sem criar graves desequilíbrios inflacio-nários ou nas contas externas (crescimento potencial) situa-se ao redor de 4,5%. Para que nos tornássemos um país de-senvolvido nas próximas duas décadas deveríamos ser ca-pazes de crescer, em média, acima de 7% (2), o que demanda-

ria uma importante elevação do investimento produtivo dosquase 17% do PIB atuais para o patamar de 25 a 30% do PIB.Essa elevação, entre outras reformas estruturais, demanda-ria uma drástica redução do custo de capital das empresas,além do aumento do acesso ao crédito por parte das peque-nas e médias empresas.

O presente trabalho, na mesma linha do citado estudo doBanco Mundial (op. cit.) e do recente artigo de Loyola (2009),pretende identificar as causas que explicariam os elevadosspreads bancários e, a partir disso, propor um conjunto demedidas que viabilizariam sua redução. Assim, na próximaseção identificaremos e analisaremos os fatores microeconô-

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micos que determinam os spreads; na Seção 3 serão aponta-dos seus determinantes macroeconômicos e institucionais, ena Seção 4 exporemos as dez medidas sugeridas para reduziras taxas de juros. A Seção 5 conclui o texto.

2. Fatores Microeconômicos

Desde 1999, o Banco Central tem estimado a importânciade vários fatores relativos às operações de crédito com recur-sos livres e taxas prefixadas, que ao afetar o custo de fundingdos bancos e instituições financeiras, terminam por determi-nar o spread bancário. De acordo com o último relatório doBanco Central (2008), os fatores microeconômicos que influi-riam na determinação do spread seriam: i) custos adminis-trativos dos bancos; ii) inadimplência; iii) custos dos direcio-namentos de recursos (créditos direcionados e recolhimen-tos compulsórios); iv) encargos fiscais (impostos e FundoGarantidor do Crédito - FGC) e v) margem de lucro (bruta elíquida) das instituições financeiras.

O referido estudo doBanco Mundial tambémrealiza decomposição si-milar, embora apresenteuma diferença metodoló-gica importante: ao contrá-rio do Banco Central, utili-za as taxas de juros efetiva-mente praticadas pelomercado financeiro, o quepermite considerar de for-ma explícita a importânciado custo de financiamentoe dos lucros das institui-ções financeiras. Essa dife-rença metodológica se re-veste de maior importân-cia ainda, se considerar-mos que existe uma grandedispersão entre as taxasefetivamente cobradas pe-los bancos para diferentestipos de clientes e linhas decrédito. De qualquer for-ma, as duas abordagens secomplementam em indi-car os caminhos que de-vem ser trilhados para re-duzir o spread bancário.

Como pode ser visua-lizado na Tabela 1, em-bora as estimativas daimportância dos fatoresanteriormente mencio-nados variem de acordocom cada enfoque meto-dológico, coincidem naimportância da taxação,

dos compulsórios, dos créditos direcionados, dos custos ad-ministrativos e da inadimplência como explicações para onível elevado das taxas de juros cobradas (3).

i) Custos Administrativos do Setor Bancário

Os custos administrativos correspondem às despesas rela-cionadas à operação de intermediação financeira, inclusivecustos da mão de obra (salários, honorários, treinamentos, en-cargos e benefícios) e operacionais (água, energia, comunica-ções, material de escritório, processamento de dados, propa-ganda e publicidade, seguro, vigilância, transporte, entre ou-tros). Maiores custos administrativos seriam, claramente, re-passados, em alguma medida, para as taxas de juros cobradasdos tomadores de crédito. O sistema bancário brasileiro, per-feitamente comparável com aqueles de países desenvolvidos,apresenta custos administrativos bem acima da média inter-nacional, situando-se como a sétima maior razão custos admi-nistrativos/ativos totais do mundo (Gráfico 6).

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O ci tado es tudo doBanco Mundial sugereduas hipóteses para ex-plicar essa situação. Aprimeira hipótese está re-lacionada com o menorgrau de concorrência nosistema bancário, que le-varia os bancos privados,com maior participaçãode mercado, a seguir asmargens elevadas que osbancos públicos cobram,devido a que são mais ine-ficientes e mais prejudi-cados por exigências go-vernamentais, tais comoo crédito direcionado, en-tre outras. A segunda hi-pótese relaciona os altoscustos administrativoscom o custo da interme-diação no Brasil, que apresenta custos contratuais mais ele-vados que a média mundial, particularmente no que diz res-peito à recuperação do crédito inadimplente.

Com relação à primeira hipótese, elevadas participações demercado não necessariamente implicam em poder monopó-lico, frente a um contexto de ganhos de escala e de rede, carac-terístico do setor financeiro. Além disso, Staub, Souza e Tabak(2009) concluem que os bancos públicos foram mais eficientesque seus pares privados durante o período 2000-2007, possi-velmente devido ao efeito de programas governamentais queinjetaram liquidez ou liquidaram instituições públicas comproblemas de carteira (PROES e PROEF), e ao fato de que estespodem obter vantagens no financiamento de suas operações,ao contar com depósitos de baixo custo de administração(FGTS, FAT, depósitos judiciais).

Dessa forma, a segunda hipótese parece cobrar mais impor-tância. De fato, outra publicação do Banco Mundial ("DoingBusiness", 2010) mostra que nosso país se situa muito abaixonum ranking que inclui 183 países em termos de custos e pro-cedimentos de obtenção de crédito (107º lugar) e no cumpri-mento dos contratos (101º lugar). Para explicar os maiores cus-tos administrativos do mercado financeiro brasileiro, tambémdevem ser considerados os elevados encargos trabalhistas queo setor enfrenta, além das maiores despesas operacionais ine-rentes ao varejo (grandes requerimentos de infra-estrutura deT.I., sistema de compensação fragmentado, uso predominantede dinheiro e cheques como meios de pagamento).

ii) Inadimplência

Os custos decorrentes da inadimplência do crédito sãoapontados pela decomposição do Banco Central (op. cit.)como o determinante microeconômico mais importante dospread bancário brasileiro. O trabalho de Bignotto e Rodri-guez (2006) também ressalta a importância do default sobre

as margens financeiras cobradas, enquanto Staub, Souza eTabak (op. cit.) encontram que um aumento deste reduz aeficiência operacional dos bancos.

Apesar da diminuição observada ao longo dos últimosanos, pode-se dizer que a taxa de inadimplência do crédito noBrasil continua elevada para os padrões mundiais, devido, co-mo lembra Loyola (op. cit.), à proteção deficiente dos direitosdos credores e à existência de assimetrias de informação nomercado do crédito.

No primeiro caso, e apesar das importantes reformas efetua-das nos últimos anos, o processo judicial de recuperação de ga-rantias ainda apresenta elevada lentidão, incrementando asperdas e incentivando comportamentos oportunistas, que po-dem se utilizar dessa morosidade e do viés pró-devedor do ju-diciário para protelar o pagamento das dívidas. Além disso, emmuitos casos, o custo associado à cobrança e à recuperação dasgarantias supera seu valor de mercado, o que, na prática, elimi-na a possibilidade de reaver, de forma efetiva, o bem alienado.Nessa mesma linha, segundo o Banco Mundial (op. cit.), os as-pectos contratuais associadas às diferentes linhas de crédito po-deriam explicar a apreciável dispersão de spreads, via variaçãodo risco de inadimplência, observada no caso brasileiro.

A assimetria de informação é uma falha de mercado, onde ovendedor possui mais informação sobre a qualidade de umproduto ou serviço do que o consumidor, ou, alternativamen-te, esse último sabe melhor do que o primeiro sobre sua realqualidade como cliente. No caso do mercado do crédito, tipi-camente é o tomador que detém mais informação sobre sua ca-pacidade e vontade de pagar as dívidas. Sendo assim, se osbancos e instituições financeiras têm dificuldade em diferen-ciar os "bons" dos "maus" pagadores, subirão a taxa de juroscomo forma de compensar o maior risco de default (4).

Por sua vez, taxas de juros mais altas tenderão a atrair de-vedores com perfil de alto risco, deteriorando a qualidade dacarteira de clientes das instituições financeiras, configuran-

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do uma situação denominada seleção adversa: os clientes"bons" vão sendo "expulsos" do mercado pelos clientes"ruins". Tudo isso, evidentemente, aumentaria a taxa de ina-dimplência, realimentando todo o processo (5). Um exemploprático desse fenômeno pode ser visualizado no Gráfico 7,que apresenta as taxas de juros e de inadimplência (acima de90 dias) médias em 2009 do cartão de crédito, cheque espe-cial, crédito pessoal e financiamento de veículos. Pode-seperceber que justamente aquelas operações que cobram asmaiores taxas de juros são, ao mesmo tempo, as que apresen-tam o maior percentual de carteira com atraso. Em geral, es-tima-se que, no caso brasileiro, a seleção adversa deva estarrelativamente mais concentrada nos segmentos de créditosdestinados ao varejo e ao setor coorporativo médio.

Outro problema que pode derivar-se da presença de infor-mação assimétrica no mercado de crédito é o comportamentooportunista (moral hazard) onde, ao amparo da inexistênciade informação consolidada de crédito, os tomadores possamendividar-se simultaneamente em várias instituições finan-ceiras. Pesquisas internas realizadas no Serviço Central deProteção ao Crédito (SCPC) da Associação Comercial de SãoPaulo, parecem indicar que o grau de inadimplência aumentaconjuntamente com o número de consultas de CPF para a con-cessão de crédito (Gráfico 8) (6). Estima-se que esse tipo decomportamento poderia ser mais freqüentemente encontradonos segmentos médios do mercado de crédito brasileiro.

iii) Custos dos Direcionamentos de Recursos

Outra característica que faz do mercado de crédito brasi-leiro "um ponto fora da curva" na comparação internacionalé a elevada presença de direcionamentos de recursos, tanto

na forma de créditos obri-gatoriamente destinadosaos financiamentos delongo prazo (BNDES), ru-ral e habitacional, comona forma de recolhimen-tos compulsórios.

Com relação aos crédi-tos direcionados, trata-sede uma intervenção dire-ta do governo no setorbancário, que regula suaconcessão e fixa as taxasde juros cobradas abaixodos valores de mercado,beneficiando a grupos esetores específicos, o que,evidentemente, gera umadistorção na distribuiçãodos recursos financeiros.Apesar de praticamentehaver sido abandonadopelos outros países lati-no-americanos, e de ha-ver mostrado tendência

decrescente de sua participação a partir de 2004, essa moda-lidade ainda representa cerca de 32,5% das operações de cré-dito totais (Gráfico 9).

A incidência desse tipo de operações no spread se expli-caria pela necessidade dos bancos aumentarem o valor dosjuros cobrados na concessão de créditos com recursos livrespara compensar as perdas geradas pelas operações direcio-nadas. Apesar do mencionado estudo do Banco Mundial(op. cit.) questionar a validade dessa hipótese, devido à di-ficuldade em separar os custos de cada tipo de operação, epelo fato de grande parte do funding do direcionamento po-der ser obtido a taxas também abaixo do mercado (PIS, CO-FINS, FGTS, FAT e caderneta de poupança), reconhece que,de qualquer forma, esse esquema de financiamento impõeum custo para o setor bancário, que perde a oportunidade decolocar esses recursos à taxa de mercado. De fato, esse estu-do encontra evidência de que o custo de direcionamento éuma das causas do elevado tamanho do spread no caso bra-sileiro, fato também comprovado pela decomposição reali-zada pelo Banco Central (op. cit.).

O sistema de recolhimentos compulsórios praticado noBrasil também é um dos elementos que fazem do mercadofinanceiro brasileiro uma peça única no mundo. Tradicio-nalmente, o requerimento de reservas obrigatórias costumaser um instrumento da política monetária, utilizado paraafetar a quantidade de dinheiro existente na economia, e,com isso, a inflação. Quando o Banco Central, com a finali-dade de combater os aumentos de preços, visava reduzir aquantidade de moeda, ordenava um aumento da proporçãode reservas mínimas que os bancos deveriam guardar, dimi-nuindo assim o crédito, o que aumentava a taxa de juros, re-duzindo consumo e investimento.

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Contudo, esse tipo deinstrumento de políticamonetária passou a serpraticamente abandona-do na medida em que osmercados financeiros sedesenvolveram mundoafora, e os bancos cen-trais passaram a utilizara taxa de juros como fer-ramenta principal da po-lítica monetária. Atual-mente, vários países, einclusive o Brasil, ado-tam o sistema de metasde inflação, que é opera-cionalizado a partir dadefinição de uma taxa bá-sica de juros. Efet iva-mente, como lembra Gar-cia (1995), as economiasavançadas têm mostradouma tendência de redu-ção de suas reservas com-pulsórias, que para vá-rios países, tais como Mé-xico, Canadá, Austrália eNova Zelândia foram eli-minadas completamen-te. Recentemente, BenBernanke (2010), o presi-dente do Banco CentralAmericano, propôs a eli-minação completa dasreservas compulsórias,que "impõem custos edistorções ao s istemabancário" (7).

O caso brasileiro se di-ferencia dos demais, emprimeiro lugar pelo níveldo compulsório que, co-m o p o d e s e r v i s t o n oGráfico 10, supera am-plamente as taxas de re-servas obrigatórias im-postas pelos Bancos Cen-trais de vários paísesemergentes e desenvol-vidos. Historicamente,como lembra Loyola (op.cit.), o elevado nível de recolhimentos obrigatórios era umarealidade condizente com uma economia altamente infla-cionária como a nossa, servindo para extrair ganhos infla-cionários dos depósitos bancários, e também como forma decriar um mercado cativo para a dívida pública.

Em outras palavras, na prática, tal como reconhecem Car-

valho e Azevedo (2008) em um documento de trabalho dopróprio Banco Central, "...(as) considerações fiscais aindatêm influenciado as decisões de requerimento de reservas,mesmo sob um regime de metas de inflação" (8 ), transfor-mando o compulsório em instrumento de rolagem artificialda dívida pública brasileira.

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Também chama a atenção o fato de que, de acordo com da-dos do Banco Central, 75% dos recolhimentos totais sejam re-munerados à taxa SELIC, o que não é prática usual dos Ban-cos Centrais, que, segundo Borio e Disyatat (2009) remune-ram unicamente o excesso de reservas a uma taxa igual ouinferior à taxa de juros utilizada para implementar a políticamonetária (9). Além disso, no caso brasileiro, essa taxa é, aomesmo tempo, a principal taxa que remunera os títulos dadívida pública, havendo, inclusive, regras de exigibilidadeque obrigam os bancos a manter parte das reservas direta-mente em papéis do governo.

Na decomposição do spread realizada pelo Banco Cen-tral (op. cit.), a incidência do compulsório e do direciona-mento de crédito é bas-tante reduzida (1,86%),a f i r m a n d o - s e q u e"...(como) a maior partedos recolhimentos com-pulsórios é remunerada,portanto, ao contráriodo que aparentementeprevalece em muitasanálises, não se deve es-perar contribuição ex-press iva dos recolhi-mentos obrigatórios naf o r m a ç ã o d o s p re a dbancário..." (10).

Entretanto, essas esti-mativas tratam o dire-cionamento de créditocomo uma espécie deimposto implícito à in-termediação financeira,não considerando, por-tanto, o efeito dos eleva-dos requerimentos dereserva sobre a oferta de crédito, e, portanto, sobre o própriospread cobrado. Se os bancos estão obrigados a manter re-colhimentos mínimos muito altos, tendem a reduzir o riscode encontrar-se com reservas efetivas abaixo desse limite, oque os levaria a endividar-se com outros pares à taxa inter-bancária, diminuindo a quantidade de crédito. Esse efeito épotencializado pelo fato da maior parte dessas reservas se-rem remuneradas a uma taxa tão elevada quanto a SELIC, oque desincentiva ainda mais a concessão de empréstimos. Amenor liquidez resultante, portanto, deverá provocar au-mentos nas taxas de juros de mercado.

Com efeito, o referido estudo do Banco Mundial (op. cit.)mostra que o impacto do compulsório e do direcionamentodo crédito na determinação do spread brasileiro está longe deser trivial. Do mesmo modo, Souza-Sobrinho (2009) concluique cerca de um terço do spread pode ser atribuído a essesdois fatores de direcionamento de recursos, enquanto Rodri-gues e Takeda (2005), além de chegarem a resultados simila-res, ressaltam a influência do compulsório sobre a dispersãode taxas de juros entre os bancos de menor porte.

É fato que a existência de níveis tão elevados de compul-sório possibilitou que em 2008 o Banco Central injetasse deforma rápida grande liquidez na economia, a partir de redu-ções das exigências de recolhimento obrigatório sobre os de-pósitos e do adiamento de sua aplicação sobre as operaçõesde leasing, o que se constituiu em um dos fatores que per-mitiram minimizar os impactos da crise financeira interna-cional no Brasil. Entretanto, o fato de que essas reservas pos-sam funcionar como uma espécie de "colchão" de liquidezpronto a amenizar volatilidades do sistema financeiro, o"seguro prudencial" na visão do Banco Central, não implicaque seu nível deva ser tantas vezes superior ao padrão mun-dial, reduzindo as possibilidades de "aprofundamento" do

mercado financeiro e decrescimento sustentávelda economia.

iv) Encargos Fiscais

O mercado financeiro é,sem dúvida, um dos seto-res mais taxados da eco-nomia brasileira, tanto doponto de vista dos impos-tos diretos, tais como o Im-posto de Renda (IR) e aContribuição Social sobreo Lucro Líquido (CSLL),como também dos impos-tos indiretos, com desta-que para a Contribuiçãopara o Financiamento daSeguridade Social (CO-FINS), o Programa de In-tegração Social (PIS) e oImposto Sobre as Opera-ções Financeiras (IOF).

Como foi visto, em sua decomposição, o Banco Central estimaque a participação dos impostos diretos e indiretos, incluindoo FGC, no spread bancário alcança a 23,3%.

Como lembra Loyola (op. cit.), a cobrança de IOF sobre asoperações de crédito, que inicialmente foi instituída parafins eminentemente regulatórios, tem sido utilizada comoinstrumento de arrecadação, substituindo a extinta Contri-buição Provisória sobre a Movimentação Financeira(CPMF). Esse tipo de tributação, além de cumulativa, adqui-re caráter regressivo, ao significar maior carga tributária re-lativa para pequenas e médias empresas e famílias de menorrenda, que dispõem de um número menor de alternativas definanciamento. O mesmo ocorre com a cobrança do PIS/CO-FINS, que taxa as receitas do setor financeiro.

A carga tributária que incide sobre o setor financeiro brasi-leiro, relativamente alta, de acordo com padrões internacio-nais, também contribui para aumentar o custo do crédito, alémde incentivar a maior informalidade em sua concessão. De fa-to, vários estudos mostram a importância dos impostos na de-terminação do tamanho médio dos spreads bancários ( 11 ) .

Jim Young/Reuters

Recentemente,Ben Bernanke,presidente doBanco Centralamericano,propôs aeliminaçãocompleta dasreservascompulsórias.

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v) Margem de Lucro (Bruta e Líquida) dasInstituições Financeiras

Nas estimativas do Banco Central, a margem de lucro dasinstituições financeiras é um dos determinantes mais impor-tantes do spread bancário, alcançando o segundo lugar em re-levância no caso da margem líquida, e o primeiro lugar no casoda bruta. Essa importância relativa da margem de lucro pode-ria ser indicativa da existência de elevado poder monopólicopor parte dos principais players do setor financeiro.

Com efeito, durante os últimos anos, as fusões e aquisiçõesocorridas no mercado bancário brasileiro tem aumentado seugrau de concentração. No ano passado, frente à maior dificul-dade de obtenção de funding dos bancos pequenos e médios, oBanco Central autorizou a compra de suas carteiras por partede instituições de maior porte com recursos oriundos de suasreservas compulsórias, o que aumentou ainda mais a concen-tração no setor. Dados do Banco Central para junho de 2009 in-dicam que os cinco maiores bancos detinham aproximada-mente 77,4% dos ativos totais do setor, com mais da metadedesse total representada pelos bancos estatais. Se incluirmos oBNDES como o sexto maior banco, a participação anterior seeleva a 87,9%, mantendo-se a importância relativa das institui-ções financeiras governamentais.

Contudo, dados de Beck e Demirgüç-Kunt (op. cit.) para2008 mostram que o grau de concentração do sistema bancáriobrasileiro, medido pela participação dos três maiores bancosnos ativos totais, é inferior ao encontrado em vários países de-senvolvidos e emergentes, muitos dos quais não vinculam es-se fato à existência de elevado poder de mercado por parte das

instituições financeiras (Gráfico 11) (12).Além disso, Urdapilleta e Stephanou (2009) concluem que,

no caso do Brasil, o grau de concorrência no setor bancário va-ria de acordo com o segmento, sendo bastante competitivo nocrédito corporativo (principalmente no caso das grandes em-presas) e menos disputável no caso do varejo.

Em síntese, aparentemente, a concentração do setor bancá-rio brasileiro não estaria associada ao exercício de poder mo-nopólico, e, portanto, à geração de significativas margens delucro para seus principais players, seguindo a tendência mun-dial de um setor caracterizado por economias de escala e de re-de. Com efeito, recente apresentação da FEBRABAN (2010)mostra que, durante 2008, a rentabilidade sobre o patrimôniodos bancos brasileiros se situa dentro da média internacional,incluindo alguns países latino-americanos (Gráfico 12).

Por último, mas não menos importante, convém lembrarque na estimativa do Banco Central, os itens margem bruta emargem líquida de lucro das instituições financeiras tambémincorporam o resíduo do modelo, ou seja, eventuais erros deestimação e mensuração. Em todo caso, não existe nenhumaindicação da importância relativa desse resíduo na porcenta-gem total desses dois últimos itens.

3. Fatores Macroeconômicos e Institucionais

i) Taxa SELIC

O sempre citado estudo do Banco Mundial (op. cit.) e um tra-balho do próprio Banco Central, de autoria de Bignotto e Rodri-gues (op. cit.), trazem evidência estatística da relação estreita en-

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tre o spread bancário e a taxa SELIC, como é mostrado no Grá -fico 13, que considera dados relativos a operações de créditoprefixadas entre julho de 1994 e maio de 2010. Essa forte relaçãose explica pelo fato de que a SELIC, além de ser o principal ins-trumento da política monetária desde que o sistema de metas de

inflação foi implementado, constitui a verdadeira taxa básica, o"piso" que determina o custo do funding bancário.

Os autores do trabalho, inclusive, vão mais além, e postulamque a taxa de juros básica seria o principal determinante dosaltos custos de intermediação bancária no nosso país, ficando o

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conjunto de fatores microeconômicos anteriores em segundoplano, aumentando sua importância relativa, à medida que se-ja possível reduzir de forma significativa a taxa SELIC.

Sendo essa taxa de juros básica tão importante para a deter-minação dos spreads, a questão relevante é porque, num con-texto de redução e normalização das taxas de inflação, seu ní-vel ainda continua tão elevado, colocando-a, em termos reais,como a mais alta do mundo.

Podemos enumerar hipóteses, não necessariamente exclu-dentes, que se propõem a explicar essa anomalia. A primeira é a"hipótese da vulnerabilidade fiscal", segundo a qual a SELIC é al-ta devido à existência de uma elevada dívida pública, muito con-centrada no curto prazo, combinada com uma política fiscal pou-co flexível em termos de gastos. Nesse sentido, os spreads eleva-dos refletiriam, entre outros fatores, o risco da dívida pública.

Outra causa de vulnerabilidade fiscal é a composição da dí-vida pública, onde a maior parte dos títulos está remuneradapela taxa SELIC. Assim, quando, frente a choques externos, oBanco Central aplica política monetáriacontracionista, incrementando a taxa bási-ca, automaticamente provoca crescimentoda dívida pública, deteriorando seu perfil.A maior percepção de risco-país exerceria,desse modo, pressão adicional sobre o câm-bio, obrigando a autoridade monetária aaumentar ainda mais os juros, realimentan-do todo o processo. Esse "círculo vicioso"restringe a capacidade do Banco Central derealizar política monetária, gerando umcontexto em que taxas de inflação reduzi-das convivem com taxas básicas despropor-cionais, o chamado "equilíbrio ruim" da se-gunda hipótese, que postula a existência de"equilíbrios múltiplos". De acordo com essavisão, a única possibilidade de sair dessa"armadilha" de juros altos seria uma drásti-ca redução da taxa básica por um ato volun-tarista do Banco Central.

A terceira hipótese, denominada "incerteza jurisdicional",elaborada por Arida, Bacha e Lara-Rezende (2003), está rela-cionada com fatores institucionais, que dizem respeito à incer-teza sobre a estabilidade e a segurança dos contratos financei-ros, que podem ter seu valor alterado por intervenções arbi-trárias das autoridades, sempre prejudicando os credores. Emoutras palavras, a incerteza sobre a estabilidade e a segurançado contrato financeiro firmado sob jurisdição brasileira redun-da tanto em juros mais altos no curto prazo como em ausênciade financiamento de longo prazo. Assim, toda essa instabili-dade político-legal, além de afetar a inadimplência, tal comofoi mencionado, pode ser transferida para os papéis do gover-no, resultando em maiores taxas SELIC e na relutância dos in-vestidores privados em manter ativos financeiros de longoprazo, públicos ou privados.

Outro fator que contribuiria para elevar o spread bancário éo reduzido produto potencial da economia brasileira, que im-plica em menor capacidade dos produtores de responder aosaumentos da demanda, o que obriga o Banco Central a manter

uma taxa SELIC relativamente alta para assegurar o cumpri-mento da meta de inflação.

Por último, está a hipótese da reduzida eficácia da políticamonetária, devido à excessiva importância dos preços admi-nistrados no IPCA (cerca de 33%), imunes às taxas de juros, cu-jos aumentos exigiriam um represamento maior dos preços li-vres para poder cumprir com a meta de inflação. Sendo assim,o Banco Central se veria obrigado a manter taxas básicas maio-res do que seriam necessários em uma economia menos inde-xada. A falta de acesso ao crédito por grande parte das famíliasbrasileiras também implicaria em enfraquecimento do canalde transmissão da política monetária, pois os movimentos dastaxas de juros não produziriam efeitos sobre seu consumo.

ii) Outros Fatores

Além dos efeitos diretos da taxa SELIC, outros fatores ma-croeconômicos podem ser identificados como causadores

dos elevados spreads bancários. A utiliza-ção das reservas compulsórias como ins-trumento de alongamento artificial da dí-vida pública, além de reduzir a oferta decrédito, conforme descrito anteriormen-te, aumenta a percepção de risco dos in-vestidores externos, que passam a reque-rer altas taxas de juros de curto prazo.

Outro elemento que contribui para au-mentar o risco-país é a insistência porparte do governo em alongar e subvalo-rizar artificialmente uma série de passi-vos externos e internos, que se convertemem "esqueletos fiscais". No caso dos pri-meiros, destacam-se os títulos da dívidaexterna emitidos em libras por estados,municípios e pelo governo brasileiro en-tre 1883 e 1931, federalizados e renego-ciados em 1943 por Getúlio Vargas, a par-tir do Decreto-Lei 6019/43, que ainda

não foram pagos. O site do Tesouro Nacional apresenta umalista dos títulos reconhecidos como vigentes pelo governobrasileiro, que se propõe a pagar unicamente o valor de facedas apólices, sem nenhum ajuste por conceito de juros e cor-reção monetária. Com relação à dívida interna, podem-se ci-tar como exemplos os precatórios, que representam dívidasda União, estados e municípios referentes a desapropria-ções, salários e indenizações, com casos de atraso de até 25anos, cuja recente modificação legal implica em alongamen-tos ainda maiores e elevados deságios.

4. Recomendações de Política

Frente ao diagnóstico anterior, a seguir sugerem-se um con-junto de medidas a serem aplicadas a partir do próximo gover-no, cujo objetivo é reduzir o spread bancário, e, portanto, o cus-to de financiamento da economia brasileira. As medidas indi-cadas podem incidir sobre mais de um dos fatores que deter-minam o nível de juros cobrados pelo setor bancário:

A falta de acesso aocrédito por grandeparte das famílias

implicaria emenfraquecimento docanal de transmissão

da políticamonetária, pois osmovimentos das

taxas de juros nãoproduziriam efeitossobre seu consumo.

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1) Aplicação de uma política fiscal menos expansionista, oque contribuiria para diminuir o endividamento público, orisco de solvência fiscal, e o risco-país, reduzindo a taxa SE-LIC, e, em geral, as taxas de juros de curto prazo. A maior aus-teridade fiscal também implicaria na menor necessidade deaplicação de políticas monetárias contracionistas por partedo Banco Central, frente a uma demanda agregada maisaquecida. Evitar-se-iam, assim, incoerências da política eco-nômica atual, tais como, por exemplo, financiar as operaçõesdo BNDES com endividamento público, o que possivelmenteobrigará o Banco Central a uma elevação da SELIC além donecessário, para compensar a expansão de liquidez. DelfimNetto e Fábio Giambiagi propuseram, inclusive, que a obten-ção de um déficit fiscal nominal zero seria a pré-condição bá-sica para diminuir a taxa SELIC.

2) Eliminação das práticas de subvalorização e alonga-mento de passivos públicos internos e externos e reconheci-mento de todos os "esqueletos fiscais". Essa medida produ-ziria um verdadeiro "choque de credibilidade", viabilizandoa redução do prêmio de risco dos papéis de governo, dimi-nuindo o nível da taxa SELIC, sem comprometer a capacida-de de rolagem da dívida pública. No caso dos títulos de dí-vida externa do DL 6019/43, Ruiz de Gamboa e Summerhill(2009) estimam que seu valor atualizado alcançaria a aproxi-madamente R$ 152,1 bilhões, enquanto o valor dos precató-rios em circulação chegaria a R$ 100 bilhões. O reconheci-mento desses "esqueletos" não significaria uma diminuição

da solvência do governo, podendo, inclusive, a partir da re-dução dos juros dos títulos públicos, decorrente do "choquede credibilidade", contribuir para a obtenção de uma menorrazão dívida pública-PIB, além de melhorar seu perfil, em ter-mos de prazo e duration.

3) Aumento da independência da política monetária, apartir da atribuição de autonomia formal do Banco Central emandato fixo a seus diretores, além da proibição de emissãode títulos públicos indexados à taxa SELIC. Essas medidaspermitiriam desvincular definitivamente a política fiscal da po-lítica monetária, eliminando a atual situação de "dominância fis-cal", o que diminuiria as expectativas de inflação e o risco-país,possibilitando a saída do "equilíbrio ruim" de altas taxas de juros,minimizando, ao mesmo tempo, a incerteza jurisdicional.

4) Estabelecimento de um programa de conversibilidadeplena do real, eliminando-se gradualmente os controlescambiais, o que serviria para reduzir significativamente a in-cidência da incerteza jurisdicional sobre o risco soberano, pormeio da eliminação do componente de conversão de moeda,obtendo-se taxas de juros domésticas mais baixas.

5) Redução do tempo necessário para conclusão de proces-sos judiciais relacionados a créditos inadimplentes e imple-mentação de modificações no sistema judicial que simplifi-quem e barateiem a recuperação de garantias. Nesse sentido,tal como sugerem Arida, Bacha e Lara-Rezende (op. cit.), po-deria ser recomendável a integração com uma jurisdição dequalidade superior, como ocorreu com os novos membros da

No caso brasileiro, a expansão do crédito tem se convertido em um dos fatores fundamentais para o crescimento econômico.

Eduardo Knapp/Folha Imagem

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Comunidade Europeia, ou com o México, ao ingressar ao Naf-ta. Essas mudanças possibilitariam reduzir os custos adminis-trativos dos bancos, aumentar os custos do comportamentoinadimplente e diminuir a "incerteza jurisdicional".

6) Criação de um cadastro positivo de crédito, que incluainformação sobre comportamento de pagamento de com-promissos não bancários (luz, gás, telefone, etc), consolidan-do, ao mesmo tempo, as informações de crédito dos partici-pantes do sistema. Essa medida possibilitaria reduzir os pro-blemas de assimetria de informação do mercado de crédito,melhorando a qualidade da carteira de clientes e reduzindo ocomportamento oportunista de endividamento simultâneo.Estudo de Powell, Mylenko, Miller e Majnoni (2004) para omercado de crédito brasileiro conclui que a inclusão de infor-mação positiva diminuiria o risco de inadimplência e aumen-taria o acesso ao crédito.

7) Diminuição gradual do direcionamento obrigatório derecursos, o que reduziria a necessidade de compensar as per-das bancárias decorrentes, a partir da elevação das taxas de ju-ros cobradas em operações de crédito com recursos livres. Essamedida afetaria principalmente as instituições privadas, quenão dispõem dos recursos provenientes das poupanças com-pulsórias, cujo custo de captação é relativamente inferior.

8) Redução gradual dos recolhimentos compulsórios,aproximando-os a níveis mais condizentes com os padrõesinternacionais e com as preocupações prudenciais, e elimi-nação da remuneração das reservas e da exigibilidade demanter títulos públicos. A ideia seria aumentar a oferta dis-ponível de crédito, sem descuidar da possibilidade de utilizar

as reservas obrigatórias em casos de maior volatilidade nomercado financeiro, mas, evitando-se transformá-las em ins-trumentos de alongamento artificial da dívida pública. Evi-dentemente, para evitar um aumento de liquidez excessivo,incompatível com a manutenção de uma inflação baixa, essaredução deveria ser gradual, e, em muitos casos, direcionada aoperações ligadas ao setor produtivo, tais como financiamentode exportações, de empresas pequenas e médias e de aquisiçãode máquinas e equipamentos, entre outros.

9) Desoneração tributária das transações financeiras, apartir da eliminação das alíquotas do IOF sobre operações fi-nanceiras e diminuição das alíquotas do PIS/COFINS sobreas receitas dos intermediários financeiros. Essa medida redu-ziria a cunha fiscal que termina por elevar o custo da interme-diação financeira, tanto para famílias como para empresas.Nesse sentido, também seria importante evitar a "tentação" decriar novos tributos indiretos de baixo custo de arrecadação,tais como aqueles que incidem sobre as operações financeiras,cuja extinta CPMF representa um exemplo.

10) Aumento das condições competitivas do mercado ban-cári o, principalmente no segmento do varejo, onde pareceexistir um menor grau de concorrência. Nesse sentido, a regu-lação poderia atuar no sentido de permitir a livre escolha deintermediário financeiro por parte do trabalhador, aprofun-dando os resultados positivos alcançados pela criação da con-ta-salário. Além disso, a implementação do cadastro positivodeverá atuar no sentido de aumentar a portabilidade cadastraldos tomadores de crédito, facilitando sua migração para as ins-tituições financeiras que ofereçam melhores condições.

Notas(1) Utilizou-se a renda per capita de cada país ajustada pordiferenças no custo de vida e na taxa de câmbio para cada caso(paridade do poder de compra). O índice foi obtido a partir docálculo da razão entre o logaritmo natural das operações totais decrédito e o logaritmo natural da renda por habitante.(2) Essa estimativa tomou por base a comparação entre a rendapor habitante atual da economia brasileira e a renda per capitamédia de países europeus desenvolvidos, ajustando-se pordiferenças do poder de compra e pelas flutuações das moedaslocais em relação ao dólar (paridade do poder de compra).(3) No caso da decomposição do Banco Mundial, a margemlíquida obtida pelas instituições financeiras corresponde aoretorno sobre o patrimônio. Além disso, na comparação não seincluiu o custo de funding, que é o principal determinante dosspreads, segundo essa abordagem.(4) Como a maior parte do crédito no Brasil é concedido a taxas dejuros prefixadas, a maior incerteza associada à informaçãoassimétrica deverá aumentar o custo do financiamento dos novoscontratos de crédito.(5) Os trabalhos de Nakane (2003) e de Blum e Costa (2007)parecem refutar o argumento de que as taxas de juros mais altasimplicarão em maior taxa de inadimplência, clara evidência daexistência de seleção adversa no mercado de crédito. Contudo, os

resultados preliminares de um recente artigo de Ruiz de Gamboae Fava (2010), parecem sugerir a existência de uma relação decausalidade entre as taxas de juros e a taxa de inadimplênciabruta, medida pelo número total de CPFs que ingressam comoinadimplentes no banco de dados do SCPC.(6) O Gráfico 8 mostra a taxa de inadimplência observadaaté seis meses à frente da data de consulta. Assim, com relaçãoà primeira variável, registraram-se os dados observados atéfevereiro de 2010, e com relação à segunda a amostra terminaem agosto de 2009.(7) Nota de rodapé, página 10. A tradução é nossa.(8) Pág. 9. A tradução é nossa.(9) A remuneração de reservas compulsórias dentro dos limitesmínimos também é aplicada pelos Bancos Centrais dos EstadosUnidos e da Colômbia, ainda que a taxas muito inferiores àsrespectivas taxas básicas de política monetária, que também sãobastante menores que a SELIC .(10) Pág. 27.(11) Veja-se Banco Central (1999), Cardoso (2002), Afanasief(2002), Rodrigues e Takeda (Op. Cit.) e Demirgüç-Kunt eHuizinga (1999), entre outros.(12) No caso brasileiro, os dados foram extraídos do Banco Centralna data-base de junho de 2009.

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53AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

5. Conclusões

Como pode ser visto, a existência de elevados spreads decrédito bancário se deve a um conjunto de fatores, de natu-reza econômica e institucional, e por isso sua convergênciapara patamares condizentes com os novos fundamentos daeconomia brasileira não será tarefa fácil para o próximo go-verno. A preocupação com a manutenção dos equilíbriosmacroeconômicos, em todo caso, deverá estar sempre pre-sente, e as medidas sugeridas nesse trabalho vão dirigidas afortalecer a coerência entre as políticas monetária e a fiscal,

além de mitigar as inúmeras falhas de mercado do sistemafinanceiro brasileiro.

Evidentemente, contar com um custo de capital mais bai-xo seria condição necessária, embora não suficiente para um"aprofundamento" real do mercado de crédito no Brasil.Nesse sentido, o desenvolvimento de um mercado de capi-tais de longo prazo também seria crucial para aumentar aspossibilidades de crescimento econômico de longo prazo ereduzir de forma permanente e consistente as desigualda-des sociais, transformando em realidade a eterna promessade um país desenvolvido.

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54 DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

Luís EduardoSchoueriPofessor titular deDireito Tributárioda Faculdadede Direito daUniversidadede São Paulo,professor daUniversidadePresbiterianaMackenzie evice-presidenteda AssociaçãoComercialde São Paulo.

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cia

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Considerações sobre os

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55AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

rumos do sistema tributário

Resumo

A necessidade de reformado sistema tributáriobrasileiro é praticamenteum consenso, mas não sepode dizer o mesmo comrelação ao conteúdo detal reforma. Muitasemendas à Constituiçãoforam elaboradas com talfinalidade, mas aindapermanecem problemasestruturais no sistematributário, dificultando acompetitividade do Paísno cenário econômicointernacional.

No presente estudo, sãoapontadas diversasmedidas simples, queindependem de umareforma constitucional, eque poderiam contribuirmuito para oaprimoramento datributação no Brasil.Nesse sentido, sãoapresentadas aquisugestões de propostasreferentes à tributaçãosobre o consumo, àredução das obrigaçõesacessórias, à definição deresponsabilidade, ao PISe à Cofins, à guerra fiscal,aos investimentosbrasileiros no exterior eaos preços detransferência.

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56 DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

Introdução

Adiscussão acerca dos rumos do sistema tributáriobrasileiro costuma centrar-se na questão da cargatributária, muitas vezes comparada com a de ou-tros países, quando se põe em relevo o alto custo

da máquina estatal brasileira e sua ineficiência. O tema é detodo pertinente e merece, sem dúvida atenção da sociedade.O fato, porém, é que desde o último quarto do século passadoo País experimentou um agigantamento do Estado, primei-ramente comprometido com ideais desenvolvimentistas e,após 1988, com a opção pelo Estado Social de Direito, queabriu espaço para políticas redistributivas de renda que,conquanto não tenham iniciado no governo Lula, sem dúvi-da tiveram neste um papel de destaque.

Mesmo que se admitisse que das eleições do final do anoviesse a ser eleito governo com metas diversas, não é possí-vel contemplar, mesmo a médio prazo, que os comprometi-mentos da receita pública venham a ser drasticamente redu-zidos. Qualquer estudo sobre o sistema tributário deve, des-tarte, partir de um cenário no qual o Estado necessita de re-cursos vultosos. Realisticamente, a atual carga tributárianão deve ser reduzida nos próximos anos. Se parar de cres-cer, já será um ganho.

Esta realidade não impede que se discutam alternativas pa-ra o sistema tributário. Este estudo propõe-se a rever a evolu-ção desse sistema, identificando medidas possíveis para seuaprimoramento, no plano infraconstitucional. Com este obje-tivo, o texto a seguir foi organizado em quatro seções. A Seção1 discute a função alocativa da norma tributária e a seção se-guinte a reforma tributária e seus objetivos. A Seção 3 volta-separa o que pode ser feito em termos de medidas infraconsti-tucionais e a seção seguinte resume a conclusão do texto.

1. A função alocativa da norma tributária

Afastados os temas concernentes à arrecadação, resta verque a norma tributária, ao lado de sua função arrecadadora,apresenta papel alocativo, estabilizador e simplificador (1).

Acentuar a função alocativa da norma tributária é rejeitar omito do tributo neutro. Há muito foi superado o mito da neu-tralidade da tributação (2): na medida em que já não se admite atributação indistinta ("per capita"), qualquer que seja a hipó-tese de incidência tributária, haverá a possibilidade de contri-buintes verem-se motivados a enquadrarem-se, ou não, nomodelo concebido pelo legislador. O tributo, noutras pala-vras, será um fator que influenciará o comportamento dosagentes econômicos.

O Estado intervencionista afasta-se da neutralidade axioló-gica que caracterizara a intervenção na fase liberal, veiculandovalores, permeável a conteúdos socioeconômicos (3 ). Nessesentido, o Estado preconizado pelo constituinte de 1988 não éneutro. O texto constitucional revela um legislador inconfor-mado com a ordem social e econômica que encontrara, enu-merando uma série de valores sobre os quais se deveria firmaro Estado, o qual, ao mesmo tempo, se dotaria de ferramentashábeis a concretizar a ordem desejada.

No lugar de se ter um ordenamento dado, que deve ser ape-nas mantido ou adaptado, o Constituinte preconizou uma rea-lidade social nova, ainda inexistente, cuja concretização, pormedidas legais, passa a ser de interesse público.

Em termos gerais, esta nova realidade se traduz no desenvol-vimento econômico, prestigiado pela Constituição de 1988, queinclui, no artigo 3º, entre os "objetivos fundamentais da Repú-blica", o da garantia do "desenvolvimento nacional", o que, en-tretanto, não se compreende isoladamente de outros objetivos,como o da construção de uma "sociedade livre, justa e solidária",onde se erradicarão "a pobreza e a marginalização" e se redu-zirão "as desigualdades sociais e regionais", promovendo, en-fim, "o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação".

O artigo 170 indica uma finalidade para a ordem econômica:"assegurar a todos existência digna, conforme os ditames dajustiça social". Este objetivo maior, entretanto, não se há de fa-zer a qualquer custo, já que deverá alicerçar-se "na valorizaçãodo trabalho e na livre iniciativa". Eis um elemento relevante pa-ra a compreensão do papel da tributação.

Afinal, conforme o que se venha a entender por "existênciadigna", enquanto finalidade, será diversa a forma como pode-rá ser alcançada. Mesmo o tributo poderia ser um instrumentorelevante, enquanto ferramenta para a redistribuição de rique-

Em novembro de 1988, Ulysses Guimarães, presidente daAssembleia Nacional Constituinte, exibiu a nova Constituição.

Arquivo/AE

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zas. Poder-se-ia, mesmo, adotar um discurso de ponderaçãoentre meios e fins para justificar a tributação como forma degerar uma igualdade, no sentido da Floresta de Sherwood: ti-rar de quem tem, dando a quem não tem.

Esta ideia se desfaz, entretanto, quando se retoma o textoconstitucional e se vê que o constituinte não limitou a ideia dedignidade da pessoa humana ao mero aspecto financeiro: va-lorizando o trabalho e a livre iniciativa, o texto do artigo 170não deixou dúvidas sobre o que se há de entender, no ordena-mento jurídico brasileiro, por "existência digna". Não tem"existência digna" aquele que vive de favor. Ao contrário, adignidade é o resultado de uma atuação (trabalho e livre ini-ciativa) socialmente valorizada.

Trata-se de modelo que supera a visão que preponderou noinício do século 20, na qual o Estado do bem-estar social de-

permitindo que aquela construa, por meios próprios (con-quanto sob a supervisão do último), a sociedade justa, objetivoprestigiado pelo artigo 3º do texto constitucional (6).

O tributo exerce, no presente, como sempre o fez, o papel de"preço da liberdade", mas se esta se compreende com novas co-res, também a ideia da tributação exige nova postura. Afinal,nem sempre a arrecadação justificará a tributação. O "bom tri-buto" não é mais aquele que melhor arrecada, se o enxugamen-to de recursos da sociedade pode impedi-la de exercer seu pa-pel na construção da liberdade coletiva.

Sintomáticos, neste sentido, os movimentos da sociedadecontrários ao aumento da tributação. Seja o episódio do levan-te cívico contrário à aprovação da Medida Provisória 232, sejaa mais recente rejeição à prorrogação da CPMF, tem-se em co-mum a afirmação, sustentada por lideranças empresariais e re-

Luludi/Luz

Ato público no Vale do Anhangabaú, centro de São Paulo, reuniu manifestantes contra a cobrança da CPMF.

veria ser o provedor do bem comum. O final do século 20 re-velou uma estrutura estatal de proporções gigantescas a qual,justamente em virtude de seu tamanho, já não mais era hábilpara atingir seu desiderato. O Estado, no lugar de utilizar osrecursos captados de modo a assegurar o bem comum, passa avaler-se deles para sua própria manutenção.

Tem-se, assim, como síntese um texto constitucional quenão se finca nem no liberalismo do século 19, nem no modelointerventor próprio de boa parte do século 20. O resultado éque "em nossa mentalidade vigora um 'sincretismo' bem à bra-sileira: encontramos liberais intervencionistas e intervencio-nistas liberais com mais frequência do que puros liberais oupuros intervencionistas" (4).

A sociedade do século 21(5) mantém a busca de uma liber-dade coletiva, já que não se pode considerar uma sociedade li-vre quando elevada parcela de seus integrantes não tem con-dições de dela gozar. Entretanto, a busca da liberdade não maisé papel confiado exclusivamente ao Estado. Dada a incapaci-dade deste, passa a sociedade a clamar por seu afastamento,

percutida pela imprensa, de que o aumento da carga tributáriaimplicaria prejuízo aos empregos oferecidos pelo setor priva-do. Por trás de tal discurso, tem-se a ideia de que recursos man-tidos nas mãos da iniciativa privada geram "empregos produ-tivos", enquanto os mesmos valores, quando transferidos àsmãos públicas, implicam indesejado desperdício.

De igual modo, o efeito confiscatório (7) do tributo (artigo150, IV da Constituição Federal) ganha nova perspectiva, deíndole econômica, sendo adequada a expressão germânica"imposto sufocante" (Erdrosselungssteuer) quando a ameaçada tributação torna, de fato, impossível incorrer no fato gera-dor (8). Esse conceito corresponde ao que a jurisprudência suíçadefiniu como um imposto proibitivo: este surge quando se vêanulada, em geral, a possibilidade de obtenção de um "lucrorazoável" num determinado ramo, em virtude da alta carga tri-butária(9). Impõe-se, pois, que o tributo seja limitado, já que seprestigia a atividade empresarial como caminho para a cons-trução da "sociedade livre, justa e solidária" a que se refere adicção do artigo 3º da Constituição Federal.

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58 DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

É desse modo que aOrdem Econômica há deser pautada na "valoriza-ção do trabalho humanoe na l ivre inic iat iva" .Ademais, o mesmo arti-go 170 cuida de arrolarcritérios ("princípios")para a ordem econômica:esta haverá de ser guiadapela busca da soberaniaeconômica, pela prote-ção à propriedade priva-da, nos contornos de suafunção social, num am-biente de livre concor-rência com a defesa doconsumidor e do meioambiente, sempre tendoem vista a busca da redu-ção de desigualdades re-gionais e sociais, a buscado pleno emprego e o tra-tamento favorecido paraas empresas de pequenoporte. Cada um dessesprincípios, vale lembrar,será influenciado pelosdemais, em interessantedinâmica de pondera-ção, gravitando em tornoda f inalidade comumacima acentuada: a dignidade humana, fundada na valori-zação do trabalho e na livre iniciativa.

A partir daí, decorre a ideia de que a norma tributária, porinduzir comportamentos dos agentes econômicos, deve terem conta seus efeitos. Não tem mais lugar, pois, a análise tri-butária que se limite a considerar o "bom" ou "mau" efeito ar-recadatório. Meritória não será a tributação exclusivamentepor seus excelentes reflexos nas burras governamentais.

Destarte, não há que se tolerar que os objetivos de arreca-dação e indução econômica sejam postos em contraposição,numa situação de "ou um, ou outro". Ao contrário, do confron-to entre ambas é que surgirá o equilíbrio esperado da normatributária. Cai bem a propósito, no caso, o raciocínio próprioda ponderação, quando se impõe que valores igualmenteprestigiados pelo ordenamento jurídico sejam contrapostosde modo a se construir a norma jurídica: qual corpo movidopor forças com vetores e intensidades diversos, a tributaçãodar-se-á atendendo, de maneira ótima, ambos os objetivos.

2. A reforma tributária e seus objetivos

É voz corrente a necessidade de uma reforma tributária. Aela se referem políticos de todas as matizes. Concretamente, oque se verifica é que são dados passos tímidos, muito aquémdaquilo que se esperaria de um sistema tributário moderno.

2.1. A construção do sistema tributário brasileiro

A Constituição de 1946 foi uma síntese do seu próprio mo-mento político, não só no Brasil, mas no mundo ocidental in-teiro. Por ter sido elaborada depois de uma ditadura e signi-ficando o retorno à normalidade institucional, a Constituiçãode 1946 foi encarada como uma conquista, o que, consequen-temente, reduziu a quantidade de poder (político, econômico esocial) do governo federal.

Este arranjo político explica o sistema tributário que entãose desenhou, com natureza centrípeta (vários tributos atribuí-dos a Estados e Municípios) e liberal (com um conjunto de imu-nidades tributárias).

Não se pode dizer que a tributação tenha sido uma questãodecisiva na Constituição de 1946. Havia poucos artigos sobre oassunto em seu texto. Seu maior foco foi a discriminação dacompetência tributária, bem como as redistribuições de recei-tas tributárias entre União, Estados e Municípios.

A Constituição de 1946 criou três sistemas de tributação se-parados e praticamente desligados: um para a União, outro pa-ra os Estados e um terceiro para os Municípios. Seu artigo 5º, noentanto, trouxe uma ferramenta concebida para a coordenaçãodos sistemas tributários, que seria uma lei federal que trarianormas gerais em matéria de legislação tributária, a ser apli-cadas por todos os poderes tributários. Com base nisso, Ru-

Como o regime de 1964via no governo federalo principal responsávelpelo desenvolvimentodo País, uma políticatributária uniformeparecia estar em

conformidade com essafinalidade. Na foto àesquerda, o generalHumberto de AlencarCastelo Branco (com a

mão ao peito), primeiropresidente do regimemilitar (1964 a 1967).

Na foto à direita,Castelo Branco ao lado

do marechal Arthurda Costa e Silva (de

binóculo), que assumiu aPresidência da República

entre 1967 e 1969.

AE

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59AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

bens Gomes de Sousa, professor da Universidade de São Pau-lo, elaborou um projeto para um Código Tributário, em nívelnacional, que, entretanto, não chegou a ser votado pelo Con-gresso durante o regime da Constituição de 1946, uma vez quetal Código Tributário representava um risco para a autonomiados Estados e Municípios.

Quanto aos Municípios, a Constituição de 1946 deu-lhesuma quantidade de autonomia que eles nunca tiveram antes,tanto no sentido fiscal quanto no sentido político (10).

Críticas razoáveis podem ser introduzidas no sistema fiscalda Constituição de 1946. Os impostos foram distribuídos entreas subdivisões federais com base em razões históricas e con-siderando algumas distinções jurídicas. Impostos equivalen-tes economicamente foram cometidos a diferentes poderes tri-butários, com base em peculiaridades jurídicas. Em resumo, osimpostos não foram concebidos e distribuídos com base empreocupações lógicas ou econômicas.

No entanto, a principal crítica que se pode fazer ao texto de1946, que o condenou à extinção depois de apenas vinte anos, éque, em vez de ser um projeto que olhasse para o futuro, ele virou-se para o passado ( 11 ) . O incentivo à poupança e à capitalização, anecessidade de planejamento econômico e muitas outras carên-cias sociais e políticas da época exigiam um sistema mais centra-lizado e unificado do que o concebido pela Constituição.

Com o movimento militar de 1964, o País viveu uma mu-dança de paradigma, já que o novo regime acreditava que o de-senvolvimento poderia ser alcançado por meio de uma forteintervenção do Estado.

Refletindo a crença do governo federal em seu papel central nodesenvolvimento do País, logo entrou em vigor a Emenda Cons-titucional 18/1965, pela qual o sistema tributário foi todo revisto.Devido às peculiaridades desse período, foi possível alcançar umsistema fiscal que se acreditava ser racional, com tributos come-

tidos à União, Estados eMunicípios, segundo umalógica econômica. Emboraisto possa ser visto comouma garantia para os go-vernos locais, um breveexame do rol dos tributos jáaponta que foi concedida àUnião a maior parte dascompetências tributárias,seguida dos Estados.

A reforma tributária de1965 foi aprovada logoapós a assunção do poderpelos militares. Foi este ocenário da já refer idaEmenda 18 à Constituiçãode 1946, que correspon-deu a uma alteração subs-tancial no regime tributá-rio anterior. Este, essen-cialmente, repetia a políti-ca tributária já existente naConstituição de 1891.

Alterando a lógica do sistema antigo, a Emenda 18 projetouuma nova discriminação de competência fiscal entre os entesfederais, preocupando-se em desenhar uma discriminação decompetências fundada em critérios econômicos.

Como já foi mencionado, desde 1946 havia um dispositivoconstitucional prevendo um Código Tributário a ser aprovadopela União. Tal Código não chegou a ser votado no regime de1946, por seu caráter centralizador, incompatível com o regimedescentralizado então vigente.

Como o regime de 1964 via no Governo Federal o principal res-ponsável pelo desenvolvimento do País, uma política tributáriauniforme parecia estar em conformidade com essa finalidade.

O Professor Rubens Gomes de Sousa, que tinha elaboradoum projeto para um Código Tributário Nacional, foi chamadopara ser relator da Comissão Especial de Reforma Tributária.Segundo suas palavras, a premissa principal da mudança a serfeita era conceber um sistema tributário integrado, do ponto devista econômico e jurídico, em substituição ao histórico, essen-cialmente histórico, até então existente.

A reforma fiscal 1965 introduziu no Brasil o Imposto sobreOperações Relativas à Circulação de Mercadorias, ICM, umpioneiro imposto não cumulativo sobre vendas. Isso é sufi-ciente para mostrar quão audacioso o projeto foi concebido.Deve-se considerar que por essa altura, os impostos de valoracrescentado eram muito raros. No entanto, devido ao fato deque o seu antecessor fora o Imposto sobre Vendas e Consigna-ções, na jurisdição dos Estados, a Reforma Tributária de 1965decidiu manter o novo imposto não-cumulativo de vendasdentro da mesma jurisdição, enquanto os serviços eram tribu-tados pelos municípios.

Deve-se dizer que manter a tributação das vendas na com-petência dos Estados foi provavelmente o maior erro da refor-ma. Considerando o ambiente político da época, esta teria sido

Domicio Pinheiro/AE

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60 DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

uma grande oportunidade de ter em escala nacional impostode vendas não-cumulativo de caráter abrangente.

Como o ICM foi mantido na competência estadual, fazia-senecessário criar medidas para o referido imposto funcionarem uma forma não-cumulativa. Isto implicaria que os impos-tos pagos a um Estado deveriam ser reconhecidos por outrosEstados para fins de compensação de tais impostos contra odevido ao primeiro.

Posteriormente, o Decreto 34, no regime constitucional de1967, e a Emenda 1 de 1969 previram a obrigatoriedade de cele-bração de convênios entre Estados que pertencem à mesma re-gião geoeconômica, a fim de adotar a mesma alíquota do ICM,bem como para estabelecer políticas comuns relacionadas com aisenção do imposto. Apesar desta proibição, isenções eram dadasde forma unilateral por muitos Estados, mesmo sendo tolerada.

A Emenda 18/1965, em síntese, buscou conceber um sistematributário nacional, no sentido de que tributosfederais, estaduais e municipais teriam algumacoerência. Isso exigiu uma revisão completa tri-butos já existentes: não só a discriminação decompetências foi revista, mas todo o SistemaTributário Nacional foi redesenhado.

Considerando a preocupação com uma clas-sificação econômica, como dito, os impostos fo-ram nomeados por seu respectivo fundamentoeconômico, com a finalidade de eliminar a mul-tiplicidade e a cumulatividade dos tributos queoneravam a produção e indústria.

Não obstante, a tentativa de eliminar a duplacarga sobre o mesmo substrato econômico foiem vão, uma vez que qualquer que seja a apa-rência que um tributo possa assumir, sua essên-cia será sempre sobre uma incidência econômi-ca sobre a renda auferida, poupada ou consumi-da. Na Emenda 18, pode-se observar a incidên-cia cumulativa, se observa que, emborahouvesse um imposto federal sobre produtosindustrializados (IPI), os Estados foram agra-ciados com o ICM: em caso de venda de produtos industriais, osimpostos eram devidos simultaneamente. Além disso, enquan-to as vendas de mercadorias estavam dentro da competência es-tadual, os Municípios podiam tributar os serviços. Assim, osserviços prestados à indústria eram tributados pelos Municí-pios e o imposto não seria considerado pela União como créditocontra o IPI ou pelos Estados, para abater o ICM.

A ideia principal da Emenda 18 foi trazer uma análise racional,que considerasse a natureza do imposto e sua relação com cadasubdivisão federal e suas respectivas atribuições constitucionais.A competência tributária foi repartida entre os Municípios, Es-tados e União e, idealmente, deve prevalecer a centralização dosimpostos nacionais na competência da União e impostos locaisseriam devidos localmente. O ICM foi a maior exceção a essa fi-nalidade, cujas consequências são sofridas até hoje. Apesar dogrande número de impostos federais, as receitas não seriam con-centradas em mãos da União, uma vez que os mecanismos de re-partição foram muito flexíveis e a União figurou como a principalperdedora em termos de competência tributária.

O sinal mais evidente da centralização foi a promulgação doCódigo Tributário, pouco depois da Emenda 18, segundo oqual não apenas as regras gerais sobre legislação tributária,mas também fatos geradores, bases de cálculo e contribuintesde todos os impostos (Federal, Estado e os Municípios) foramdefinidos. O Código Tributário Nacional é datado de 1966 eainda está em vigor. Como já foi explicado, o Código foi ela-borado durante a Constituição de 1946, mas não foi aprovado,devido ao seu caráter centralizador (12).

Os primórdios do Código podem ser encontrados já na con-vocação de uma Comissão Especial, efetuada pelo Ministro daFazenda, em agosto de 1953. O professor Rubens Gomes deSousa já tinha preparado um projeto que, naturalmente, seria abase para esse trabalho. Não é de estranhar que o professorSousa tenha participado da Comissão. A Comissão reuniu-sesetenta vezes em um período de oito meses de trabalho. Como

foi anos antes da Emenda 18, um dos principaisproblemas enfrentados pela Comissão foi abusca de um fundamento constitucional para ocódigo que poderia dar-lhe um caráter obriga-tório. A Constituição de 1946 previra a compe-tência da União para legislar sobre normas ge-rais de finanças públicas e essa foi a base cons-titucional então encontrada para o Código queentão se projetava.

Em vez de olhar para um conceito de "normageral", a Comissão adotou como seu método detrabalho do processo de uma análise indivi-dual de cada situação concreta, a fim de veri-ficar a possibilidade da sua regulamentaçãopor uma norma que fosse aplicável aos três ní-veis de governo (13).

A Comissão de Reforma sempre procurouobservar a legislação fiscal em vigor, a fim decombinar seu trabalho com "sentimento tri-butário" do País, bem como para fazer o mí-nimo impacto possível. O Código seria umalei ordinária e, como tal, poderia ser modifi-

cado por qualquer outra lei ordinária. Então, visando à pre-servação de sua integridade, a Comissão trabalhou de formaa refletir o máximo possível com as disposições do direito tri-butário então vigentes (14).

Inseriram-se no Código a definição dos institutos jurídicostributários e dos principais aspectos impostos federais, esta-duais e municipais. Considerou-se que, apesar da improprie-dade da inclusão de conceitos doutrinários no texto da lei, a fi-xação de determinados conceitos básicos seria essencial paragarantir a eficácia do Código.

Como já foi dito, o projeto não foi aprovado pelo Congres-so. Apesar de concluído em 1954, não havia condições po-líticas para uma tal centralização. Isso só aconteceria após areforma de 1965.

Visando a dar uma aparência legal aos atos arbitrários toma-dos desde 1964, o governo militar elaborou uma nova Consti-tuição em 1967. Apesar de ter sido votada pelo Congresso Na-cional (que foi convertido em Assembleia Nacional Constituin-te, quando a Constituição foi elaborada por juristas encarrega-

A reforma fiscalde 1965 introduziuno Brasil o Impostosobre OperaçõesRelativas àCirculação deMercadorias, ICM,um pioneiro impostonão cumulativosobre vendas. Issoé suficiente paramostrar quãoaudacioso o projetofoi concebido.

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dos pelo regime), muitasdas propostas legislativasforam ignoradas pelo go-verno e, além disso, em1967, a maioria dos mem-bros da oposição havia si-do banida do Congresso.

Visando a dar continui-dade às reformas do siste-ma tributário feitas em1965, os militares incorpo-raram as disposições daEmenda 18 à Constituiçãode 1967. O sistema tributá-rio na Constituição de1967 refletia, quase inte-gralmente, o que fora defi-n i d o p e l a E m e n d a18/1965. A discriminaçãode competências foi man-tida, bem como a centrali-zação da competência –que era do interesse dopróprio governo militar.

A única diferença éque, embora a Emenda 18pretendesse ter criadoum sistema de competên-cias exaustivo, a Consti-tuição de 1967 reconhe-ceu que os novos impostos poderiam ser criados pela União,criando a competência residual.

A Constituição de 1967, em seu texto original, durou apenasdois anos. Em 1969, a junta militar no comando do governo ela-borou um projeto de Emenda à Constituição, a Emenda1/1969. Desta vez, não havia mais o Congresso para votar oudiscutir o assunto, visto que o Senado e a Câmara dos Depu-tados haviam sido fechados, juntamente com o banimento demuitos direitos civis.

Devido às alterações que procedeu, a Emenda 1/1969 éconsiderada por muitos como uma Constituição nova e im-portante, sendo sua peculiaridade, o mecanismo pelo qualele foi elaborado. A atribuição do Poder Executivo foi am-pliada, sendo a duração do mandato presidencial prorroga-do e as eleições para governador do Estado se fizeram indi-reta, juntamente com a extinção das imunidades dadas aoslegisladores como privilégio de sua posição.

No que diz respeito ao sistema fiscal, aconteceu exatamente omesmo que com a Constituição de 1967. Interessados em pre-servar as reformas adotadas em 1965 e acreditando em sua efi-cácia e adequação ao seu projeto político para a nação, o governomanteve quase todas as disposições da Emenda 18 à Constitui-ção de 1946. Nenhuma alteração substancial foi feita.

Na década de 1980, os efeitos da reforma tributária, que tevelugar em 1965 e foi seguida pelos textos posteriores já podiamser visto. Foi como foi dito, o primeiro sistema tributário ver-dadeiramente nacional, integrado nos três níveis de governo e

tendo nascido de uma re-forma racional, que per-mitiu ao governo a sua uti-lização como instrumentopara a implementação dosplanos econômicos e polí-ticos. Além disso, aumen-tou a receita fiscal para aUnião. Por outro lado, acentralização menciona-da de impostos de compe-tência da União deixou Es-tados e Municípios semrecursos para enfrentarsuas próprias despesas,fato que foi agravado pelafalha no sistema de parti-lha causado pelo atraso daUnião em dar a outrassubdivisões sua parte nobolo arrecadado.

Concebido para o seupróprio tempo e contexto,o sistema fiscal de 1965 foisofrendo muitas críticasna década de 1980. O siste-ma desenhado décadasantes, apesar de ter a suaimportância e pioneirismoreconhecidos, não mais re-

fletia o desenvolvimento social e econômico brasileiro.A política econômica do governo militar mostrava sinais

indubitáveis de esgotamento, e, com isso, a repressão polí-tica foi se enfraquecendo. As eleições diretas para Governa-dor do Estado voltaram em 1982, assim como se autorizaramnovos partidos de oposição. Emergia uma profunda criseeconômica, com uma inflação galopante e taxas de desem-prego elevadas, com o que Governadores de oposição forameleitos nos principais Estados, iniciando-se uma pressão po-pular pela democratização.

Visando a aumentar a receita e melhorar o sistema tributário, ogoverno elaborou emendas à Constituição 23 de 1984 e 27 de1985, lidando com a questão centralização das receitas, as quotasdos Estados e Municípios, além de dar aos Estados a competênciasobre o imposto sobre veículos. No entanto, a fase de desenvol-vimento do Brasil e do clima político e social da época estavampedindo uma melhora mais profunda no sistema tributário.

Apesar da pressão popular e da campanha feita para as elei-ções presidenciais diretas, a eleição permaneceu indireta, feitapor um colégio eleitoral composto pelos congressistas. No en-tanto, o destino do regime militar já estava selado. Assim, naeleição presidencial de 1985, o candidato da oposição, TancredoNeves, venceu sem surpresa. Este seria o primeiro civil a ocupara presidência desde o golpe militar de 1964. O presidente Tan-credo Neves morreu e seu vice-presidente, José Sarney foi no-meado. Coube ao presidente Sarney, por conseguinte, tomar asmedidas que dariam um ponto final à ditadura militar e insti-

Jorge Araoejo/Folha Imagem

Tancredo Neves, no Congresso Nacional, após ser proclamadoPresidente da República pelo Colégio Eleitoral em 1985.

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tucionalizar a democracia. Entre outras medidas, ele convocou,em 1985 por meio da promulgação da Emenda 26, uma Assem-bleia Constituinte para redigir uma nova Constituição para oPaís. Havia a sensação de que a Constituição em vigor fora ela-borada de forma autoritária e não poderia ser compatibilizadacom o regime democrático. Enquanto a Assembleia estava tra-balhando, a crise econômica foi ficando mais profunda e a in-flação aumentava dia a dia, fato que foi seguido pelo desapa-recimento dos investidores internacionais.

2.2. O sistema tributário de 1988

A Assembleia Constituinte, instalada em fevereiro de 1987,não tinha dúvidas sobre a adequação e a importância da refor-ma fiscal de 1965 seu tempo, mas também ficou clara para ela anecessidade da sua adaptação a fim de ser coerente com as ne-cessidades da realidade atual e suas expectativas.

Assim, a Constituição de 1988 é muito diferente das ante-riores, mas não é isenta de críticas. Costuma-se dizer que nãoreflete um projeto político uniforme, além de possuir diversascontradições em termos de princípios e normas. Ademais, apresença de apenas alguns juristas na Assembleia se reflete nafalta de um sentido técnico em seu texto. A Constituição diz-seestar longe do jurídico e muito próximo da política, o que tornaa prolixa e extensa na abordagem de vários assuntos. A com-paração com o texto alemão de Weimar é inevitável.

No que diz respeito aos tributos, a Constituição de 1988 de-dicou-lhes o primeiro capítulo inteiro do seu quinto título.Diante das alterações feitas no sistema tributário, a Constitui-ção não pode ser considerada uma reforma ao projeto elabo-rado pela Emenda 18/1965. Houve um acerto estrutural nosistema, com a melhoria na configuração de alguns impostos erespectivas bases de cálculo.

A Constituição de 1988 tentou enfrentar a questão da cen-tralização fiscal. Não obstante, a competência tributária man-teve-se centralizada nas mãos da União, mesmo com a supres-são de cinco de seus impostos. A competência residual daUnião foi mantida.

Impostos foram criados e outros foram redesenhados pelaConstituição de 1988. O Imposto sobre grandes fortunas, porexemplo, mostra que a Constituição não se preocupou com oaspecto econômico na definição do imposto. A própria expres-são "grandes fortunas" evidencia a falta de uma concepçãoorientada economicamente. O ICM foi substituído pelo ICMS,incluindo-se nele a seletividade.

Uma questão relevante no sistema fiscal de 1988 é o papel dascontribuições sociais: estes tributos, destinados a financiar a se-guridade social no Brasil, não estão dentro do capítulo relativoao sistema tributário. De um ponto de vista prático, entretanto,podem ser considerados impostos sobre os lucros e receitas dasempresas, salários e outras bases. Essas contribuições, no entan-to, não estão sujeitas a partição com Estados e Municípios: umavez que a seguridade social é uma questão federal, a União podeprever, recolher e guardar esses fundos. Como resultado, desde1988, o número e a importância das contribuições sociais têmaumentado significativamente, enquanto os impostos normais(sujeitos a partição) se mantiveram estáveis.

2.3. As reformas do sistema tributário desde 1988

Assim que entrou em vigor o sistema tributário de 1988, come-çaram suas críticas. Logo se viu que ele era complexo e, por terquase dois terços dos seus impostos indiretos, injustos para com ocontribuinte. A configuração do ICMS, principal imposto decompetência dos Estados, permitiu o recrudescimento da "guer-ra fiscal" entre os Estados. Como a descentralização fiscal foi o es-pírito dos debates relacionados com o sistema fiscal durante a As-sembléia Constituinte, a guerra fiscal tornou-se uma questão re-levante nas discussões de reforma tributária pós-1988, uma vezque vários Estados decidiram atrair investimentos através de be-nefícios no ICMS, em vez de adotar políticas de longo prazo.

Como um sinal da complexidade do sistema fiscal brasileiro,o Brasil foi classificado pelo Banco Mundial e pela Price Wa-terhouse Coopers, como o país onde as empresas gastam maistempo para cumprir suas obrigações fiscais. O sistema tributá-rio do Brasil não é neutro, e há uma multiplicidade indesejáveldos impostos sobre bens e serviços. É o reflexo da discriminaçãode competências tributárias: União tem o IPI, PIS e COFINS; osEstados, o ICMS e os municípios, o ISS. Estes impostos sobre oconsumo são cumulativos entre si e, portanto, não geram cré-

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ditos recíprocos. Esta questão da cumulatividade dificilmentepode ser resolvida no sistema tributário brasileiro, devido, co-mo dito, à necessidade da distribuição de competência tributá-ria entre os três níveis de governo. Além da cumulatividade dosimpostos de consumo, o sistema tributário brasileiro enfrenta oproblema da sua elevada carga fiscal, que corre lado a lado comos gastos ineficientes do governo.

Já em 1995, o governo do presidente Fernando HenriqueCardoso apresentou a PEC 175, que tentou lidar com a questãodos impostos de consumo, bem como pretendia cessar a guer-ra fiscal. A extinção do imposto da União sobre produtos in-dustrializados foi sugerida, que seria incorporado pelo ICMS,no IVA estadual. Por sua vez, o IVA teria sua alíquota deter-minada de maneira uniforme pela legislação federal. Depoisde ter sido discutida há anos no Congresso, foi retirada em2003 por iniciativa do governo.

Em 2003, houve a Emenda 42 à Constituição, que introduziualterações no sistema tributário. Foi estendida a anterioridadenonagesimal à generalidade dos tributos.

No entanto, a Emenda 42 não enfrentou a guerra fiscal dosEstados. O tema da cumulatividade dos impostos sobre con-sumo também foi deixado para uma reforma posterior. A dis-

cussão que gira em torno destas questões é muito delicada,uma vez que toca à repartição de competências entre os níveisde governo em que se materializa a federação brasileira. A esterespeito, uma reforma tributária ideal deve apaziguar os con-flitos de interesse vertical entre União, Estados e Municípios,bem como o conflito horizontal de interesse entre as subdivi-sões no mesmo nível de governo. A reforma tributária não vaireduzir a carga fiscal, mas deve procurar reduzir a complexi-dade do sistema, a multiplicidade de impostos sobre bens eserviços (consumo), e também os custos de cumprimento.

2.4. Os recentes debates sobre a reforma tributária

As mudanças no sistema tributário não ousaram tocar noponto mais delicado, fruto do trabalho de 1965: a tributação doconsumo em âmbito estadual.

Em 2008, o governo elaborou a PEC 233. De acordo com opróprio governo, a reforma tributária proposta visava ao fimda guerra fiscal, juntamente com a simplificação do sistema eredução equitativa da carga fiscal. Ele também tentava melho-rar a política de desenvolvimento regional, bem como a qua-lidade das relações federativas entre as subdivisões.

Prefeitos participam da Marcha de Mobilização Nacional deDefesa dos Municípios, em 2003, contra a reforma tributária(esq.). Acima, André Spinola (Sebrae) e Marcel Solimeo (dir.),economista da Associação Comercial de São Paulo.

Andrei Bonamin/LuzDida Sampaio/AE

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Além da guerra fiscal, por meio da qual os Estados procuramreduzir a alíquota de ICMS para trazer investimentos para seuterritório, há a questão das exportações. A Constituição prevê oreembolso dos impostos pagos em etapas anteriores da produ-ção, ou seja, os impostos pagos na aquisição de matérias-pri-mas, por exemplo, são reembolsados ao exportador de produ-tos acabados. Se a matéria-prima é adquirida de outro Estado, oimposto terá sido pago ao Estado produtor. Não é surpreenden-te que os Estados consumidores não queiram reembolsar os cré-ditos acumulados pelos exportadores, uma vez que esses im-postos nunca foram coletados por eles, mas sim os Estados ondea matéria-prima foi originalmente produzida.

Além disso, o fato de que, no caso da produção inter-estatais,parte do imposto é devida ao Estado de produção, os Estadosconsumidores tendem a preferir que seus contribuintes impor-tem produtos do exterior, em vez de comprar de outros Estados.Assim, no caso de importação o Estado consumidor não tem departilhar os seus impostos com qualquer outro Estado.

Preocupada com todas essas repercussões negativas, aPEC 233 apresenta um novo perfil para o ICMS. Em vez deser regulamentado por 27 leis diferentes do Estado, o novoimposto seria regido por uma única lei federal, não obstantea sua imposição e receitas permanecessem na jurisdição dosEstados. As alíquotas do ICMS seriam nacionalmente uni-formes, o que traria, supostamente, a guerra fiscal ao fim.Isenções ou benefícios seriam decididos pelo Conselho Na-cional de Política Fiscal.

Apesar das mudanças que foram propostas para o ICMS, oIPI e o ISS continuariam da mesma forma como são hoje.

A manutenção do imposto da União sobre os bens indus-trializados e do imposto municipal sobre serviços pode serconsiderada uma fragilidade da reforma tributária previstapela PEC 233. Também é enfraquecida pelo fato de que umaparte considerável da reforma não será feita na Constituição,mas vai ser deixada nas mãos do legislador ordinário. Os

conceitos vagos e indeterminados também são perniciosospara o contribuinte, uma vez que causam incerteza e insegu-rança. A reforma a ser apoiada deve realizar uma verdadeirasimplificação do sistema.

Além da PEC 233, apoiada pelo governo e que ainda estápendente no Congresso Nacional, há uma outra proposta dereforma tributária, na forma de um relatório preliminar, de au-toria do senador Francisco Dornelles, vice-repórter da Comis-são Temporária de Reforma Tributária. Dornelles, como ex-ministro da Economia e ex-presidente da Receita Federal doBrasil, tem bastante experiência para que se leve a sério suatentativa de reformar o sistema tributário.

A Constituição, no projeto Dornelles, deverá conter uma no-va distribuição da competência tributária entre as subdivisõesfederais, bem como a partição de novas receitas entre elas.

Na proposta do senador Dornelles, a maior parte dos im-postos da União seria reunida em um Imposto sobre o ValorAcrescentado, regido por lei federal, apesar de que seria co-brado pelos Estados e sua receita seria partilhada entre os Es-tados e União.

O ICMS estadual seria extinto e substituído pelo referidoimposto federal. Segundo o senador, este novo regime elimi-naria a guerra fiscal, bem como que favoreceria as exportaçõese os investimentos na produção. No entanto, a extinção doICMS é apontada como o principal obstáculo político enfren-tado pela proposta do senador Dornelles, uma vez que reduzsubstancialmente a competência tributária dos Estados.

2.5. A reforma tributária: uma visão crítica

Conhecidos os debates acerca da reforma tributária e suasprincipais propostas, o que se nota é que por trás de um con-senso acerca da necessidade de uma reforma (não há quemouse opor-se a uma reforma), encontra-se um dissenso quan-to a seu conteúdo.

Na proposta doSenador Dornelles,a maior parte dosimpostos da Uniãoseria reunida emum Imposto sobre oValor Acrescentado,regido por leifederal, apesar deque seria cobradopelos Estados esua receita seriapartilhada entre osEstados e União.

Alan Marques/Folhapress

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De um lado, é notório o conflito entre as esferas pública eparticular: enquanto esta espera da reforma uma redução emsua carga tributária, os crescentes gastos estatais revelam quenão há qualquer movimento que possa indicar, mesmo que nomédio prazo, menor tributação.

Dentro da esfera pública tampouco se encontra algum tipode consenso, já que todos os entes estatais apenas aceitam dis-cutir uma reforma se ficar assegurado que não terão qualquerredução em sua arrecadação atual. Ora, é óbvio que se houveruma mudança, sem que haja redução, i.e., se cada agente in-gressa na negociação colocando seu atual nível de receitas co-mo piso para a negociação, o resultado, fatalmente, será umaumento da carga tributária total.

Apenas essas circunstâncias são suficientes para que vejaque a esperada reforma tributária não tem condições de pros-perar. Afinal, se o Estado depende de suas receitas tributárias,não há como cogitar de sua redução, sem que antes se discuta otamanho do Estado. Em 1988, a nação brasileira fez a opção porum Estado Democrático Social, o que implica um agiganta-mento de gastos. Some-se a isso a decisão por um Estado fe-deral, com 27 Estados e 5.565 Municípios e logo se torna evi-dente que uma reforma tributária que possa levar a uma redu-

ção de tributos exige que antes a nação discuta o Estado quedeseja ter. Importa que os brasileiros estejam dispostos a ques-tionar se o País, de proporções continentais, deve adotar solu-ções idênticas em todas as suas regiões. Afinal, se uma fede-ração implica custos, por outro lado pode ser um excelentemeio para permitir que se tomem decisões segundo as realida-des locais. O que não faz sentido é assumir-se o custo de umafederação e manter-se uma aspiração de tratamento idêntico asituações díspares. Se o País continuar confiando à União a ta-refa de homogeneizar realidades diferentes, então cabe ques-tionar para que serve a federação.

Mesmo a divisão da federação em três esferas acaba porincluir na mesma categoria verdadeiras metrópoles, de umlado e, de outro, municípios que mal passam de distritos.Não é a toa que enquanto para alguns municípios, o ISS é im-portante fonte de receita, outros municípios sequer possuemestrutura para cobrar o imposto. Para estes, não faria diferen-ça se o imposto fosse cobrado pelos Estados-Membros, des-de que se lhes assegurasse uma participação na arrecadaçãoos impostos estaduais.

Também importa enfrentar o tema da qualidade dos tribu-tos: o sistema tributário brasileiro atual é altamente regressivo,

Patrícia Cruz/Luz

Em 1988, a nação brasileira fez a opção por umEstado Democrático Social, o que implica um

agigantamento de gastos. Some-se a isso a decisãopor um Estado federal, com 27 estados.

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já que baseado em tributos sobre o consumo. Não se defende aprogressividade dos impostos, mas tampouco se pode aceitara sejam eles regressivos. O tributo sobre consumo tende a serregressivo, já que atinge mais fortemente aqueles que têm pe-quena capacidade de poupança.

3. Medidas infraconstitucionais: o que pode ser feito

As dificuldades acima expostas são suficientes para tor-nar improvável uma reforma tributária. As propostas deemenda constitucional não chegam a enfrentar os proble-mas mais relevantes e aquelas que se aproximam logo são ta-xadas de inviáveis.

Esta constatação é suficiente para tornar premente a iden-tificação de medidas que, se não suficientes para atingir oideal, podem pontualmente levar a um aprimoramento do sis-tema tributário. Têm elas em comum a característica de inde-penderem de uma reforma constitucional, tornando-se, por-tanto, de adoção relativamente simples para um governo eminício de mandato, com maioria parlamentar.

3.1. Melhora da tributação do consumo

Tanto para o IPI (obrigatoriamente) quanto para o ICMS(opcionalmente) é prevista a adoção do princípio da seletivi-dade: esses impostos devem (ou podem) ter alíquotas varia-das, conforme a essencialidade do produto.

Basta uma mera leitura da Tabela do Imposto sobre Pro-dutos Industrializados para se constatar (i) a alta complexi-dade e (ii) a falta de transparência com relação aos critériosadotados.

A complexidade surge pelas múltiplas posições e subposi-ções, cada qual com sua alíquota; abre-se espaço para enormesdivergências com relação às classificações, não sendo raro queprodutos concorrentes tenham tributação diversa decorrentede divergência nas classificações.

A falta de transparência dá-se porque as alíquotas do IPI sefixam por ato do Poder Executivo, sem qualquer intervençãodo Congresso Nacional. Desaparecido o processo político,abre-se espaço para os grupos de interesse, em discussões aportas fechadas. A jurisprudência jamais cobrou alguma mo-tivação, por parte do Chefe do Poder Executivo, com relação àsalíquotas adotadas. Basta dar o exemplo que até há pouco, opapel higiênico era tributado a 12%, enquanto o creme "rinse"tinha alíquota de 6%; mais grave, encontravam-se pedras pre-ciosas lapidadas com alíquota zero.

Ambos os problemas poderiam ser facilmente resolvidos sea tributação pelo IPI se tornasse a exceção, não a regra: em no-me da seletividade, selecionar-se-iam (com o perdão da redun-dância) os produtos a serem tributados. Ou seja: via de regra, oimposto teria alíquota zero; apenas seriam tributados algunsprodutos – estes sim menos essenciais. Segundo dados da Re-ceita Federal do Brasil (15), dos US$ 19.798 milhões arrecadadoscom o IPI em 2002, fumo, bebidas e automóveis responderam

Patrícia Cruz/Luz

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por US$ 6.382 milhões; este é um indicativo suficiente para queo IPI passe a cumprir a função de um excise tax, incidindo ape-nas sobre aqueles três produtos.

No que concerne ao ICMS, a situação é igualmente gritan-te, já que a possibilidade de adoção de alíquotas diversasnão se baseia na essencialidade do produto para o contri-buinte, mas para o ente arrecadador: basta citar a alíquotade 25% que cada consumidor encontra em suas contas deenergia elétrica.

Não deixa de merecer nota que combustíveis, telecomu-nicações e energia elétrica são, exatamente, os setores que,até 1988, eram tributados pelos "impostos únicos" da União eque passaram a ser alvo do ICMS. São setores altamente or-ganizados e de facílima arrecadação. Ao que se vê, a seleti-vidade pregada pelo constituinte foi substituída pela conve-niência arrecadatória.

Outro elemento relevanteacerca do ICMS é a questãodo crédito financeiro, queadmitirá, sem restrições, oaproveitamento do impostoincidente sobre ativo per-manente. Trata-se de aspec-to que já era relevante quan-do da edição da Lei Comple-mentar 87/1991 e que até omomento vem sendo adiadopelos Estados. Veja-se quenão se faz reforma constitu-cional para correção de tald i s t o rç ã o .

Problema que igualmentese resolveria por mera leicomplementar é o do efeitocumulativo no meio da ca-deia produtiva: quando seconcede uma isenção mas seveda o crédito do montantepago em etapas anteriores,perde-se o imposto anterior e novas incidências não podemconsiderar o montante já pago. O resultado é uma tributa-ção excessiva e a isenção, pensada como favor, torna-se pe-sado ônus contra o contribuinte.

Ainda, deve ser revisto o sistema de substituição tributá-ria: criado como regime excepcional, vem se tornando regra,de modo que o ICMS, de imposto que deveria incidir sobretoda a cadeia de consumo, acaba se tornando mero impostosobre a produção, à semelhança do IPI. O efeito é que se temum mesmo montante cobrado, independentemente do pre-ço final ao consumidor. Se o imposto é sobre o consumo, so-bressai o efeito regressivo da substituição tributária, já quequanto maior o preço pago pelo consumidor, menor será opercentual do imposto sobre tal preço. Ou seja: inverte-se oprincípio da capacidade contributiva, já que há menor cargatributária sobre aqueles de maior poder relativo. Melhor se-ria se retornasse ao sistema original, com poucos tributos su-jeitos ao regime de substituição tributária.

3.2. Redução das "obrigações acessórias"

Fruto indireto da informatização do conhecimento, boa par-te das atividades da fiscalização foram transferidas para in-cumbências dos contribuintes, que se vêem ao redor do cum-primento de "agendas tributárias". De instrumento essencialpara o controle da atividade do contribuinte, as "obrigaçõesacessórias" tornaram-se hoje encargo equivalente ao própriotributo. As pesadas multas por seu descumprimento assustamos contribuintes, que se vêem forçados a contratar consultoriasespecializadas, apenas para dar tais informações ao fisco.

A cumulação de tais informações tem, por certo, a seu favor,a possibilidade de maior controle, por meio do cruzamento deinformações. Por outro lado, seu excesso exige que se questio-ne acerca de sua necessidade, principalmente tendo em vista

que, afinal, em caso de suspei-ta, poderiam as autoridades -aí sim - solicitar as informa-ções necessárias.

Por trás de tal exigência es-conde-se um problema defundo, que há de ser enfren-tado: o da falta de confiança.O relacionamento entre fiscoe contribuinte é baseado emdesconfiança mútua, impli-cando o apelo a formalida-des, para regozijo dos buro-cratas. Embora se possa crerque haja resultados positivosem termos de arrecadação -algo que não se comprova -afastam-se investimentosprodutivos, contribuindopara o atraso da nação.

3.3. Definição deresponsabilidade

O Código Tributário Nacional é bastante restritivo com re-lação ao tema da responsabilidade; a jurisprudência tambémvem reafirmando que é necessária a existência de culpa paraque se possa tornar o administrador ou o sócio responsáveispelos débitos da empresa; a mera insolvência da empresa não érazão suficiente para que se possa cobrar daqueles o valor de-vido pela última. Não obstante, as autoridades fazendáriascontinuam a inserir seus nomes entre os devedores, inclusivepromovendo execuções fiscais fadadas ao insucesso mas su-ficientes para gerar altos custos para os envolvidos.

Os abusos muitas vezes se abrigam sob a alegação de quenão há clareza quanto à responsabilidade: diante do risco deverem prescritos créditos tributários, preferem as autorida-des inserir no procedimento fiscal e nas execuções todos osnomes que possam de qualquer modo ser contemplados, dei-xando para o Judiciário a tarefa de excluir os inocentes. Inver-te-se, com isso, a presunção de inocência, tão cara aos orde-namentos jurídicos civilizados.

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A ACSP defende a proposta deque a nota fiscal informe ao

consumidor o quanto de impostoele paga por cada produto.

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68 DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

Não é necessária qualquer reforma tributária nem ao menosalteração na lei para que se modifique tal quadro: basta umaordem dos superiores hierárquicos a seus subordinados (merainstrução Normativa), disciplinando com clareza quem deveser incluído no procedimento administrativo e nas execuçõesfiscais. O tema já foi suficientemente explorado pela doutrinae pela jurisprudência, não havendo mais justificativa para quenão se tome tal medida.

3.4. PIS/Cofins

É hora de reconhecer que a inserção da não cumulatividadena legislação das contribuições PIS/Cofins foi um desastre.Aclamada pelo empresariado, logo se viu alvo de uma série deexceções e privilégios, de modo que já não há um mínimo desistematização possível em suas regras. Formou-se um ema-ranhado, no qual uma mesma empresa pode ter parte de suasatividades sujeitas ao regime cumulativo e outras no não-cu-mulativo, sem contar com as si-tuações de isenção ou de inci-dência monofásica.

Tamanha diversidade de re-gimes abre, de um lado, inse-gurança para o contribuinte e,de outro, evidente espaço parao planejamento tributário. Acapacidade contributiva, coro-lário da igualdade, não se vêatendida, não servindo dealento sequer a praticidade esimplicidade. Ou seja: abre-semão de um direito básico emmatéria tributária sem que, pa-ra tanto, se tenha pelo menos acompensação de maior efi-ciência na arrecadação.

Cabe decidir se as contribuições devem ser sobre o consumoou sobre a renda das empresas; feita tal decisão e caso sejam sobreo consumo, importa decidir se serão cumulativas ou não; dando-se preferência pela primeira hipótese, devem ser simples o su-ficiente para justificar suas distorções; sendo não cumulativas, acomplexidade que surgirá há de ser compensada pela igualdadede tratamento, afastando, daí, privilégios odiosos.

3.5. Guerra fiscal

A adoção do regime de destino é apontada como solução pa-ra a guerra fiscal. Havendo consenso para tanto, não se explicaque se espere uma reforma constitucional para sua adoção. AConstituição Federal reserva ao Senado Federal a incumbên-cia de definir as alíquotas do ICMS em operações interesta-duais (artigo 155, § 2º, IV). Assim, basta o Senado fixar uma alí-quota baixíssima para tais operações (apenas suficiente pararemunerar a fiscalização), e o regime de destino estará imple-mentado, sem qualquer reforma.

A medida teria ainda o efeito de dar um fim no drama dosexportadores, que vêm suas matérias primas tributadas nos

Estados de origem e não conseguem recuperar o valor do im-posto perante seus Estados, quando das exportações.

3.6. Investimentos brasileiros no exterior

Por meio do artigo 74 da Medida Provisória 2.158-35, o Paíspassou a tributar os lucros auferidos por empresas brasileiraspor meio de suas subsidiárias, controladas ou coligadas, no ex-terior. É a tributação em bases mundiais.

Independentemente do mérito de tal tributação, é criticável ofato de que a tributação brasileira se dá mesmo nos casos em quenão ocorre qualquer distribuição dos lucros; portanto, a empresabrasileira paga o imposto no País mesmo que não tenha direito aqualquer centavo, porque os lucros não foram distribuídos. Ain-da que ocorra a capitalização dos lucros na empresa no exterior(e, portanto esteja afastada sua distribuição), a tributação auto-mática no Brasil ocorre.

Tal regime de transparência fiscal apenas encontra paralelo naNova Zelândia. No restante domundo, excetuados os casos deabusos (paraísos fiscais, porexemplo), lucros só se tributamse distribuídos (em muitos paí-ses europeus, não se tributam lu-cros auferidos no exterior). Estacircunstância é suficiente parademonstrar como a legislaçãobrasileira pouco contribui para acompetitividade das empresasbrasileiras com atuação no exte-rior: são elas as únicas que pa-gam o imposto em seu Estado deorigem, mesmo competindo noexterior com outras empresasque não têm tal ônus.

A constitucionalidade de taltributação é discutível e está sendo examinada pelo Supremo Tri-bunal Federal. Independentemente do resultado de tal julgamen-to, é hora de se revogar tal aberração jurídica, adotando-se, noPaís, o padrão seguido pelos países onde se situam as empresasque concorrem com as brasileiras, dando às últimas o mínimo decondições de concorrência.

3.7. Preços de transferência

A Lei 9.430/1996, ao introduzir no País normas de preçosde transferência, adotou um padrão que diverge daquele se-guido por outros países. Este posicionamento brasileirovem trazendo enormes dificuldades ao setor privado, já queda divergência de legislações de preços de transferência re-sulta a impossibilidade de se fixar um preço aceitável tantopara o país exportador quanto ao importador. Quanto maisa legislação brasileira se aproximar das práticas comuns in-ternacionais, tanto mais fácil se torna a inserção do País nocomércio exterior.

Conquanto as peculiaridades do Brasil, enquanto país emdesenvolvimento, expliquem não se possam simplesmente

Moacyr Lopes Jr./Folha Imagem

Diversas medidas independem de emendasconstitucionais para o aprimoramento da tributação.

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69AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

copiar as práticas internacionais, não é aceitável, tampouco,que o País desconsidere o que se faz noutras praias. Lá e cá, oprincípio arm's length há de ser o denominador comum.

Especialmente, não parece aceitável que por conta da (ne-cessária) adoção de margens predeterminadas de lucros, o le-gislador brasileiro imponha que uma empresa que se dispo-nha a industrializar um produto no País tenha um lucro de150% sobre seus custos. Tal margem, irreal, acaba por afastarinvestimentos produtivos no País. Mais sensato é o empresá-rio que importa produtos acabados já que, nesse caso, a mar-gem que se exigirá é substancialmente menor. O efeito desas-troso de tal medida é notório.

Curiosamente, a referida margem de lucro é fruto de umainterpretação canhestra da Lei 9.430/1996, por meio da Instru-ção Normativa 243/2002. Antes dela, a Instrução Normativa32/2001 interpretara a mesma lei, de modo muito mais razoá-vel, incentivando a produção local. Dado que se trata de merainterpretação administrativa, é urgente a revogação da referi-da Instrução Normativa 243/2002, retomando-se a interpreta-ção primeiramente adotada.

4. Conclusão

O sistema tributário contribui decisivamente para o pro-gresso do País. Afastada a neutralidade da tributação, a qua-lidade do sistema tributário deve ser examinada criticamente,já que muito do atraso ou desenvolvimento de uma nação seexplica por tal fator.

Ao longo da história, constata-se a busca do aprimora-mento do sistema tributário brasileiro. A expressão "refor-ma tributária" ganhou, no País, um apelo político, tornan-do-se sinônima de emendas constitucionais. Muitas emen-das se fizeram com tal mote, mas ainda permanecem proble-mas estruturais no sistema tributário, dificultando acompetitividade do País.

Este estudo aponta diversas medidas que independem deemendas constitucionais as quais, posto que simples, pode-riam contribuir muito para o aprimoramento da tributaçãono País. É urgente que se desfaça o mito da reforma constitu-cional e que se tomem medidas que contribuam para o efetivoprogresso do País.

Notas(1) Cf. Roberto Quiroga Mosquera, "Tributação e PolíticaFiscal", in SANTI, Eurico Marcos Diniz de (coord.), SegurançaJurídica na Tributação e Estado de Direito. II CongressoNacional de Estudos Tributários, São Paulo, Noeses, 2005,pp. 557-579 (576-578).(2) Sobre a utopia da neutralidade (Neutralitätsutopie), cf.Konrad Littmann, "Ein Valet dem Leistungsfähigkeitsprinzip",in HALLER, Heinz; KULLMER, L.; SHOUP, Carl S.; TIMM,Herbert (orgs.), Theorie und Praxis des finanzpolitischenInterventionismus, Tübingen, J.C. B. Moohr (Paul Siebeck),1970, pp. 113-134 (128). Cf. tb. Fernando Aurelio Zilveti,"Variações sobre o Princípio da Neutralidade no DireitoTributário Internacional", in Direito Tributário Atual, v. 19,2005, pp. 24-40 (25-30).(3) Cf. Luís S. Cabral de Moncada, Direito Econômico, 3ª ed.,Coimbra, Coimbra, 2000, pp. 27-28.(4) Cf. Roberto Catalano Ferraz, "Intervenção do Estado naEconomia por Meio da Tributação - a Necessária Motivação dosTextos Legais", in Revista Direito Tributário Atual, v. 20, 2006,pp. 238-252 (240).(5) Sobre o assunto, cf. Luís Eduardo Schoueri, "Tributação eLiberdade", in PIRES, Adilson Rodrigues; TÔRRES, HelenoTaveira (orgs.), Princípios de Direito Financeiro e Tributário.Estudos em homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres,Rio de Janeiro, Renovar, 2006, pp. 431-471 (463 e ss.).(6) Em tal sentido, é próprio da sociedade do século XXI omovimento que fortalece as privatizações, conferindo ao Estadoo papel de regulador. Daí a proliferação das agências reguladorasque passam a supervisionar áreas outrora ocupadas pelaintervenção direta do Estado. Também marca este início doséculo XXI a multiplicação de organizações não governamentais(ONGs), igualmente meio de construção, pela sociedade, da

liberdade coletiva. Ao Estado, resta o dever de não imporbarreiras a seu desenvolvimento, o que se reflete, na órbitatributária, na garantia constitucional da imunidade a impostose contribuições sociais.(7) Cf. Fernando Aurelio Zilveti e Mônica Pereira Coelho,"Ensaio sobre o Princípio do Não-Confisco", in Revista DireitoTributário Atual, v. 20, 2006, pp. 45-57.(8) Cf. Erik Gawel, "Steuerinterventionismus und Fiskalzweckder Besteuerung. Lenkung und Finanzierung als ProblemLenkender (umwelt-)Steuern", in Steuer und Wirtschaft, n. 1,fevereiro de 2001, pp. 26-41 (29).(9) Cf. Peter Böckli, Indirekte Steuern und Lenkungssteuern,Basel/Stuttgart, Helbing & Lichtenhahn, 1975, p. 108.(10) Cf. Alcides Jorge Costa, "História da Tributação no Brasil",in FERRAZ, Roberto (coord.), Princípios e limites datributação, São Paulo, Quartier Latin, 2005, pp. 78-79.(11) Cf. Antônio Roberto Sampaio Dória, Discriminação deRendas Tributárias, São Paulo, José Bushatsky, 1972, p. 103.(12) Cf. Trabalhos da Comissão Especial do Código TributárioNacional, Rio de Janeiro, Ministério da Fazenda, 1954, p. 4.(13) Cf. Trabalhos da Comissão Especial do Código TributárioNacional, op. cit. (nota 12), p. 8(14) Em seu trabalho, Comissão Especial do Código considerounão apenas a legislação tributária interna, mas também foiinspirada na experiência internacional em matéria decodificação. A maior influência foi da Reichsabgabenordnungalemã de 1919, o seu texto original. Também foram consideradospela Comissão o Código Tributário Mexicano de 1938 e CódigoTributário de 1948, da Província de Buenos Aires.(15) Cf. <http://www.receita.fazenda.gov.br/Historico/Arrecadacao/Historico85a2001.htm>. Acesso emjunho de 2010.

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70 DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

José Cândido SennaEngenheiro civil e pós-graduadoem Engenharia Industrial pela PUC-RJ, economista pela UERJ e mestreem Administração Pública pelaKennedy School of Governmentda Harvard University.Foi coordenador de projetosportuários e de marinha mercante

para o Ministério dos Transportes/GEIPOT e coordenadordo Programa de Transporte Intermodal de Carga, focadonos "Corredores de Exportação", supervisionados pelo

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Inserção de produtoresde pequeno porte

em mercados externos

mesmo ministério. Desenvolve negócios e projetos decomércio internacional pela ConTrader ComércioExterior, destacando-se, entre outros, o Programa deInternacionalização da Empresa Brasileira - Caminhospara os Anos 2000, criado, em 1994, pela AssociaçãoComercial de São Paulo. Desde 1993, coordena, naentidade, as atividades do Comitê de Usuários dosPortos e Aeroportos do Estado de São Paulo - COMUSe desde 2004 o Projeto EXPORTA, SÃO PAULO pelaFACESP e São Paulo Chamber of Commerce da ACSP.É Conselheiro da ACSP e sócio-fundador do InstitutoBrasileiro de Governança Corporativa - IBGC.

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Conforme dados doSECEX/MDIC elaboradospela ConTrader ComércioExterior, de 2007 a 2008,as vendas externas totais

brasileiras cresceram23,2% e as industriais

evoluíram 22,0%.

Resumo

Este trabalho discute condicionantes da competitividade de micro, pequenos e médiosprodutores, genericamente considerados de "pequeno porte", com destaque para osindustriais, e apresenta propostas para a inserção competitiva dos mesmos emmercados externos, com o suporte de trading companies e empresas comerciaisimportadoras e exportadoras.

Entre as sugestões, destacam-se a ampliação para outros estados do escopo do Sistemade Informações de Apoio às Exportações do Estado de São Paulo - SIAEXP, emdesenvolvimento pelo Projeto Exporta, São Paulo, com o intuito de fomentar ganhos deescala daqueles produtores, explorando-se o compartilhamento de atividades deprodução, comercialização externa e logística internacional. Com maior abrangência,

o SIAEXP será um forte indutor de Arranjos Produtivos Virtuais - APVs, cujos negócios deimportação e exportação serão explorados e gerenciados por aquelas empresas.

O trabalho também propõe o fortalecimento do papel de trading companies eempresas comerciais importadoras e exportadoras, para que possam promoverreduções de custos de acesso a mercados para produtores de pequeno porte,reconhecidos como um dos fatores mais inibidores de suas vendas ao exterior.

Nesse contexto e com o objetivo de melhorar a imagem daquelas empresas, sugere-sea criação de uma categoria especial das mesmas, denominada Export DevelopmentCompany - EDC, cuja certificação será outorgada pelo Conselho Brasileiro deEmpresas Comerciais Importadoras e Exportadoras - CECIEx.

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72 DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

Introdução

Questões referentes à inserção competitiva de pe-quenos produtores em mercados externos têmmerecido a atenção de instituições governa-mentais e entidades empresariais. Entre as pri-

meiras, destacam-se o Ministério do Desenvolvimento, Indús-tria e Comércio Exterior (MDIC), o Ministério das Relações Ex-teriores (MRE), o Banco Nacional de Desenvolvimento Econô-mico e Social (BNDES), o Instituto de Pesquisa EconômicaAplicada (IPEA) e a Agência de Promoção de Exportações e In-vestimentos (APEX), vinculada ao MDIC.

No segundo grupo, a Associação de Comércio Exterior doBrasil (AEB), a Confederação Nacional da Indústria (CNI), a Fe-deração das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), a Fede-ração das Associações Comerciais do Estado de São Paulo (Fa-cesp) e a Associação Comercial de São Paulo (ACSP) são enti-dades que têm dado importantes contribuições à almejada in-serção. O Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e PequenasEmpresas (Sebrae), em nível nacional e através de suas unida-des estaduais, e a Fundação Centro de Estudos do Comércio Ex-terior (Funcex) vêm, também, colaborando nesse sentido.

A preocupação com o tema está relacionada ao fato de a in-serção ser considerada elemento-chave para o crescimentosustentado das vendas externas, pois à medida que se aumen-ta a base exportadora com a participação de pequenos produ-tores (denominação genérica para, neste trabalho, designar osde micro, pequeno e médio portes), ampliam-se as perspecti-vas de diversificação tanto da pauta de produtos exportadoscomo de destinos dos mesmos. As condições de mercado paracertos produtos não sendo favoráveis em determinados paí-ses, poderão ser compensadas por outras em diferentes locais,criando-se, assim, ambiente para o tão desejado crescimentosustentado das exportações brasileiras.

Na ACSP, a mencionada inserção recebe atenção há muitosanos, pelos chamados órgãos de consulta da entidade, como aantiga CIOI (Câmara Interssetorial de Operações Internacio-nais), a antiga Comissão de Empresas Comerciais Exportadorase o Comitê de Usuários de Portos e Aeroportos do Estado de SãoPaulo (COMUS). As alterações recentemente introduzidas naestrutura desses órgãos, com a criação do Conselho de Comér-cio Exterior (CCOMEx) e do Conselho Brasileiro de EmpresasComerciais Importadoras e Exportadoras (CECIEx), mantive-ram o foco na inserção competitiva de pequenos produtores nocomércio internacional, analisando e debatendo, essencialmen-te, questões de natureza institucional-normativa.

No que concerne a serviços de apoio a produtores, expor-tadores e importadores, a experiência acumulada da ACSP,concentrada na recepção de missões e empresários estrangei-ros, foi reforçada e ampliada com o lançamento do Programade Internacionalização da Empresa Brasileira - Caminhos paraos anos 2000, que facilitou o intercâmbio da Associação cominstituições congêneres e profissionais estrangeiros. Em 1999,após o encerramento do Programa, a ACSP passou a emitirCertificados de Origem, consolidando, assim, o papel de pres-tador de serviços aos exportadores do Estado de São Paulo.

As trading companies e comerciais importadoras e expor-

tadoras, como se sabe, prestam serviços a produtores e comer-ciantes interessados em adquirir produtos estrangeiros e emvender bens ao exterior. Atuam, também, de maneira pura-mente mercantilista comprando e revendendo produtos noBrasil e em outros países. As mais especializadas e de maiorporte oferecem serviços de engenharia financeira (trade finan-ce) e de logística, com o intuito de aumentar a competitividadedos produtos com os quais fazem negócios.

Em setembro de 2004, com a instituição do Projeto Exporta,São Paulo, fruto de acordo de cooperação entre o Governo doEstado, através da então Secretaria de Ciência, Tecnologia e De-senvolvimento Econômico, a Facesp e a São Paulo Chamber ofCommerce (SP-Chamber)/ACSP, os trabalhos com vistas àque-la inserção foram, formalmente, estruturados e organizados. Àépoca, a recém criada SP-Chamber, abrigada na ACSP com amissão de constituir o braço de desenvolvimento de negóciosinternacionais de Associações Comerciais paulistas, aportou aoprojeto um banco de dados com registros de cerca de 17.500 mi-cro, pequenas e médias empresas do Estado, notadamente in-dustriais, que passaram a cons-tituir o foco e o público-alvo dostrabalhos dessas entidades.

Conquanto não se tenha apretensão de afirmar que es-ses trabalhos tenham sido de-terminantes na conversão, atémeados de 2009, de 134 pro-dutores em novos exportado-res do Estado, admite-se quecontribuíram bastante para aconsecução desse objetivo,uma vez que esses produto-res, além de terem tido a opor-tunidade de participar deeventos Exportar para Cres-cer e oficinas técnicas de capa-citação, puderam, também, seaproximar de empresas comerciais importadoras e exporta-doras. Estas, por sua vez, vêm desenvolvendo as suas expor-tações com o apoio, inclusive, da SP-Chamber que, em 2008 e2009, realizou importantes missões empresariais ao exterior,respectivamente, a Angola e à África do Sul, numa iniciaticaconjunta com a APEX, sob os auspícios do Projeto Tradings,lançado pela Agência em maio de 2008. A propósito da úl-tima missão, é importante ressaltar que cada comercial ex-portadora participante da comitiva representou, em média,12 produtores brasileiros, reafirmando o papel dessas em-presas como agentes multiplicadores de esforços para a pre-tendida inserção.

Para prosseguir na análise do tema proposto, o texto a seguirfoi organizado em cinco seções. A Seção 1 analisa o desempenhoexportador por porte de empresa e a Seção 2 aborda os aspectosbásicos de competitividade, tanto os gerais como os relativos aprodutores de pequeno porte. A Seção 3 ocupa-se da experiên-cia do projeto "Exporta São Paulo". A Seção 4 analisa o papel detrading companies e empresas comerciais importadoras e ex-portadoras. A Seção 5 apresenta conclusões e recomendações.

De 2007 a 2008,as exportações

industriais realizadaspor microempresas

brasileirasaumentaram 0,3%,

enquanto as depequenas e médias

empresas declinaram,respectivamente,

3,6% e 0,4%, segundodados do SECEX/MDIC.

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73AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

1. Desempenho ExportadorPor Porte de Empresa

Conforme dados do SECEX/MDIC elaborados pela Con-Trader Comércio Exterior, de 2007 a 2008, as vendas externastotais brasileiras cresceram 23,2% e as industriais evoluíram22,0%. O crescimento das exportações totais foi fortemente in-fluenciado pelo aumento das vendas de grandes empresas, de26,3%, cabendo observar que as vendas ao exterior de micro,pequenas e médias empresas diminuíram no período.

No caso das exportações industriais, as realizadas por gran-des empresas cresceram 23,8% contribuindo para o incremen-to de 22,0% das vendas totais. As realizadas por micro empre-

De 2007 a 2008, de acordo com a SECEX, as vendas ao exte-rior de comerciais exportadoras e trading companies cresce-ram, respectivamente, 27,0% e 19,7%. Embora os dados de de-sempenho refiram-se apenas a dois anos, a situação por eles re-velada é, certamente, indicativa de maior dinamismo expor-tador dessas empresas comparativamente ao de exportadorasde micro, pequeno e médio portes..

Quanto ao desempenho exportador e aos principais destinosdas vendas externas, por porte de empresa, observados em 2008,um ponto importante a destacar é a concentração de 94,4% dasexportações brasileiras em 5.508 empresas, representando poucomenos de 25% da base exportadora do País. Os restantes 75%,compostos por exportadores de micro, pequeno e médio portes,

sas aumentaram 0,3%, enquanto as de pequenas e médias em-presas declinaram, respectivamente, 3,6% e 0,4%.

Outro aspecto importante a ser realçado refere-se ao valormédio exportado por empresas industriais de cada porte nesseano. O da micro foi de US$ 68,1 mil/empresa, o da pequena foide US$ 363,0 mil/empresa, o da média foi de US$ 1,5 mi-lhões/empresa e o da grande foi de 34,8 milhões/empresa. Em2008, as comerciais exportadoras e as trading companies ven-deram ao exterior um montante médio, respectivamente, deUS$ 3,4 milhões e US$ 8,0 milhões, valores estes muito supe-riores aos médios exportados por indústrias de micro, peque-no e médio portes.

totalizando 16.913 empresas, responderam por 5,6 % do montan-te exportado no mesmo ano. A enorme concentração de expor-tações em poucas empresas é uma fortíssima restrição ao tão al-mejado crescimento sustentado das vendas externas do País.

No tocante aos destinos das vendas ao exterior, os EUA e a Ar-gentina absorveram pouco mais de 23% do valor das exportaçõesdas empresas brasileiras de todos os portes, cabendo destacar que23,6% das micro, 27,4% das pequenas, 32,6% das médias e 42,7%das grandes empresas venderam para os EUA em 2008.

A ampliação da base exportadora brasileira é fundamental pa-ra a consecução do objetivo de crescimento sustentado das ven-das externas. O trabalho do IPEA (1) "Perfil das Exportações, Pro-

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74 DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

dutividade e Tamanho das Firmas no Brasil", de autoria de VictorGomes e Roberto Ellery Jr., divulgado em 2005, deu importantescontribuições para a formulação de políticas públicas voltadas aofomento das exportações, com o aumento da quantidade de ex-portadores. Entre as suas conclusões, cabe ressaltar:� O número de empresas exportadoras é pequeno em relação

ao total de empresas estabelecidas no País, observando-seque a quantidade de firmas que exportam para vários mer-cados decresce com o número de mercados. Esse padrão nãodepende do setor em que a empresa atua;

�O aumento da participação brasileira em mercados externosestá muito mais associado ao crescimento do número de em-presas que exportam para determinado mercado do que aoaumento das vendas médias das firmas exportadoras;

�Empresas exportadoras possuem produtividade do trabalhomaior do que as não-exportadoras, devendo-se observar quefirmas que vendem para muitos mercados externos são maisprodutivas do que as que vendem para poucos mercados;

� Empresas exportadoras são maiores do que as não-expor-tadoras, cabendo ressaltar que quanto maior a empresa amais mercados ela atende.

2. Aspectos Básicos de Competitividade - gerais erelativos a produtores de pequeno porte

Os aspectos de competitividade, relacionados, sobretudo, aprodutores de pequeno porte, dizem respeito ao ambiente com-petitivo em que eles atuam, à estrutura interna das suas empre-sas, bem como às condições de acesso a mercados no exterior.Quando avaliados em conjunto, revelam a capacidade de o pro-dutor ganhar mercados no exterior e de suplantar a concorrênciade produtos importados no mercado doméstico em que atua.

2.1. Aspectos relacionadosao ambiente competitivo

Resultados da pesquisa feita pela CNI (2) "Os Problemas daEmpresa Exportadora Brasileira 2008" com 855 empresas ex-portadoras de todos os portes, destacaram a taxa de câmbio, ainfraestrutura de transportes e a logística entre os principais en-traves à expansão das exportações brasileiras. Questões relacio-nadas à carga tributária, compensação ou ressarcimento de cré-ditos tributários, encargos sociais, facilidades e custos de finan-ciamentos, por serem objeto de análises e discussões para a for-mulação de outras Propostas para o Próximo Presidente, serãodesconsideradas neste trabalho. Ressalte-se, no entando, quetodos esses fatores diminuem a rentabilidade média das vendasexternas, reduzindo-lhes a competitividade.

No que concerne ao câmbio, a taxa efetiva, de acordo com asavaliações daquela entidade, indicou uma valorização do real de22%, entre 1995, logo após a criação da nova moeda, e 2007. Nafase mais aguda da crise econômica global, em 2008, o real perdeu25% do seu valor em relação ao dólar. Entretanto, entre março edezembro de 2009, o real se valorizou 33%, devolvendo, pratica-mente, a desvalorização anteriormente observada.

O estado da infraestrutura de transportes, em especial a ro-doviária, de suporte ao escoamento de produtos básicos e in-

dustrializados, é precário, acarretando elevados custos a ex-portadores e importadores. Deve-se ressaltar as exceções noEstado de São Paulo, onde as rodovias Anhanguera, Bandei-rantes, Castelo Branco e Washington Luís, operando com ele-vados níveis de serviço, não representam maiores ônus à com-petitividade desses 'atores".

No caso de produtos comercializados em contêineres ma-rítimos, tratados nos portos como "carga geral" e envolvendo,entre outros, a quase totalidade de manufaturados, de maiorvalor agregado, as ineficiências logísticas são bastante acen-tuadas, estando, fortemente, associadas aos tempos de trânsi-to dos mesmos, componentes dos lead times e formadores decustos de estoques de exportadores e importadores. A frágilarticulação das suas relações com transportadores rodoviá-rios, operadores de depots de contêineres vazios, permissio-nários de recintos alfandegados, operadores portuários decontêineres e armadores, entre outros prestadores de serviços,é uma das razões dos elevados tempos de trânsito atualmenteobservados, principalmente no Porto de Santos (ver (3) "THE24-HOUR PROJECT FOR THESANTOS PORT COMPLEX -Improving the Productivity atthe Largest Container Port inSouth America").

Outra causa das ineficên-cias diz respeito à atuação dediversos órgãos públ icosanuentes de despachos de ex-portação e importação, tais co-mo a Agência Nacional de Vi-gilância Sanitária - Anvisa, oMinistério da Agricultura, Pe-cuária e Abastecimento - MA-PA, a Polícia Federal e a SRF,entre outros Além da falta decoordenação de suas ativida-des, essas instituições man-têm horários de funcionamento incompatíveis com a dinâmi-ca do comércio internacional, alegando, freqüentemente, quetêm falta de pessoal qualificado para os processos de despa-chos e trânsitos aduaneiros de mercadorias.

Os tempos de operações em sistemas logísticos constituemelemento fundamental na formação de estoques de matérias-primas, insumos e produtos acabados e, por conseguinte, noscustos logísticos totais. Vale notar que, para uma mesma tone-lagem de carga deslocada num determinado período, há umatendência de os embarques tornarem-se mais frequentes, comlotes menores. Nos fluxos de contêineres, observa-se, também,um fracionamento de cargas, com a migração de unidades dotipo FCL (full container load), com carga de um embarcadorpara um único consignatário, para unidades LCL (less thancontainer load), com carga de um ou mais embarcadores paramais de um consignatário.

À medida que os tempos totais (lead times) de entrega deprodutos aos consumidores diminuem, estes podem trabalharcom menores níveis de estoques de reserva ou segurança, oque significa menores exigências de capital de giro e menores

A redução doinvestimento privadofoi uma das principais

causas da perda deritmo de ganhos

de produtividade daindústria brasileira,

observada,principalmente, no

período 1997/2004,de acordo com apesquisa da CNI.

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75AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

custos de estoques (administração, juros, armazenagem e ou-tros). Nessa situação, abrem-se oportunidades para vendedo-res cobrarem mais pelos produtos, tornando-os, assim, maiscompetitivos. Quando os tempos totais aumentam, os custoslogísticos crescem e os produtos ficam menos competitivos.

Acresça-se a esses fatores a imprevisibilidade de entregasde mercadorias por via marítima, em virtude da frágil articu-lação já mencionada, tanto em nível de atores privados comopúblicos, fazendo com que os exportadores trabalhem com es-toques de segurança maiores, subtraindo-lhes parte da com-balida competitividade em mercados externos.

Empresas comerciais importadoras e exportadoras podemdar contribuições efetivas para a superação de condicionantes

geralmente, reunidos para completar, pelo menos, um con-têiner de 20', operam como agentes consolidadores de car-gas, cujos fretes marítimos são menores do que os que se-riam observados na situação em que cada lote fosse trans-portado como carga solta (break bulk), exigindo do armadora sua consolidação com cargas de outros embarcadores(ship's convenience). Admitindo-se um valor médio de US$56 mil por TEU (twenty foot equivalent unit) movimentadono Porto de Santos, com oito lotes de cargas, chega-se a umvalor médio de US$ 7 mil por lote consolidado e transpor-tado em contêiner.

Por atuarem nas vertentes tanto de importação como deexportação, aquelas empresas podem, portanto, contribuir

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externos de competitividade. O fator "câmbio" que influenciaa receita de exportações é o mesmo que define os custos de im-portações. Parcela expressiva de exportadores de manufatu-rados, em situações de valorização do real frente à cesta demoedas de países com os quais comercializam seus produtos,busca diminuir os custos de insumos e componentes adquirin-do-os no exterior, reduzindo os custos médios de produção etornando-se, assim, mais competitivos.

Na racionalização da logística de importações e exporta-ções por via marítima, em especial as realizadas com o usode contêineres, as comerciais importadoras e exportadoras,por trabalharem com famílias de produtos, cujos lotes são,

para o fortalecimento da competitividade de fornecedorescom os quais trabalham, facilitando-lhes, também, o acessoa mercados no exterior.

2.2. Aspectos relacionados àestrutura interna das empresas

A redução do investimento privado foi uma das principaiscausas da perda de ritmo de ganhos de produtividade da in-dústria brasileira, observada, principalmente, no período1997/2004, de acordo com a citada pesquisa da CNI (2). Entre ascausas da redução do investimento, destacam-se as altas taxas

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de juros e as incertezas associadas a crescimento econômico depadrão stop and go, a elevados gastos de custeio do governo ea baixos investimentos públicos, indispensáveis para a viabi-lidade econômico-financeira de empreendimentos privados.

Outros entraves à expansão das exportações, referentes àestrutura interna da empresa exportadora, notadamente a depequeno porte, envolvem:� O baixo nível de qualificação da mão-de-obra;� A falta de profissional qualificado para cuidar exclusiva-

mente de exportações;� Produto não atende a especificações técnicas exigidas no

exterior;� Tecnologia inadequada;� Os custos de produção elevados formam preços não com-

petitivos.

Os fatores relacionados à formação e à qualificação demão-de-obra são objeto de análises e discussões específicasnas Propostas para o Próximo Presidente. Vale, no entanto,ressaltar as experiências recentes do Projeto Exporta, SãoPaulo, adiante discutidas, no trato dessas deficiências, cujostrabalhos são, também, desenvolvidos com a participaçãode empresas comerciais importadoras e exportadoras. Es-tas, por terem um estoque de capital humano com experiên-cia comprovada em negócios de importação e exportação,constituem, em diversas situações, opção para a superaçãodas deficiências.

O cumprimento de normas e especificações técnicas exigi-das no exterior, há mais de dez anos, vem sendo competente-mente tratado pelo Programa de Apoio Tecnológico à Expor-tação (Progex), desenvolvido no Instituto de Pesquisas Tecno-lógicas (IPT). A divulgação das linhas de ação do Programa,focadas na adequação de produtos a mercados externos, é umadas atividades mais importantes do referido Projeto, integran-do o conjunto de oficinas técnicas, desenvolvidas na forma deworkshops, para a capacitação de produtores interessados emexportar, em expandir as suas vendas ao exterior e em subs-tituir produtos importados.

Questões atinentes à inovação tecnológica e ao comparti-lhamento de atividades produtivas voltadas a ganhos de es-cala, proporcionando, por conseguinte, reduções de custosmédios de produção, são examinadas a seguir.

2.2.1. Inovação tecnológica

Por inovação tecnológica entende-se toda a novidade im-plantada pela empresa, por meio de pesquisas ou investi-mentos, que aumenta a eficiência do processo produtivo ouque resulta em um novo ou aprimorado produto. Trata-sede um conceito amplo, envolvendo produtos e processos,cujo entendimento pode ser melhor percebido com os se-guintes exemplos:�A implantação de códigos de barras em empresas que não os

usavam contribui para o melhor gerenciamento de estoquese para a racionalização da logística das empresas;

� A introdução de um determinado insumo ou componenteque otimiza ou barateia a produção, no todo ou em parte;

� A adequação de produtos a exigências de leis e outras nor-mas reguladoras, consideradas barreiras não-tarifárias paraacesso a mercados no exterior,

�A aplicação de novos softwares que demande, também, mu-danças no hardware pode contribuir para a otimização deimportantes fases do processo produtivo;

� Numa indústria alimentícia, o lançamento de uma versãolight ou diet pode significar a introdução de novo produto àvariação de outro já existente;

� A criação de uma linha voltada para um segmento de mer-cado não explorado anteriormente. Por exemplo, uma in-dústria têxtil de artigos infantis lança uma linha de roupaspara adolescentes.

O trabalho do IPEA (4) "Inovação, via internacionalização,faz bem para as exportações brasileiras", de autoria de Glau-co Arbix, Mário Sérgio Salerno e João Alberto De Nigri, di-vulgado em 2004, encontrou evidências de que inovação tec-nológica e eficiência de escala são, entre outros, fatores de-terminantes do desempenhoexportador de empresas in-dustriais brasileiras.

Entre os resultados do estu-do (4), destaca-se a constataçãode que o aumento na eficiên-cia de escala média das firmasda indústria brasileira am-pliaria a probabilidade deuma firma tornar-se exporta-dora. Outro aspecto impor-tante relacionado à inovação eao aumento de exportaçõesdiz respeito à internacionali-zação de empresas, por meio,por exemplo, da abertura desubsidiária no exterior. Estapode ser a fonte principal deinformação para a inovação tecnológica, contribuindo paramelhor desempenho exportador da empresa-mãe, em virtu-de de maiores facilidades para:� Acessar canais de comercialização;� Adaptar produtos a demandas de mercados específicos;� Criar mercados,;� Ter acesso a recursos financeiros mais baratos; e� Apropriar tecnologias não disponíveis no mercado

doméstico.

A análise desenvolvida revelou que existem diversos bene-fícios associados à internacionalização de firma com foco nainovação tecnológica. Entre eles, cabe destacar:�Melhor remuneração da mão-de-obra, com emprego de pes-

soal de maior escolaridade;� Maior percentual de dispêndio em treinamento em relação

ao faturamento total da empresa, o que impulsionaria, de al-guma maneira, a qualificação da mão-de-obra doméstica;

� Maior volume de exportações de empresas internacionaliza-das com foco em inovação do que as não-internacionalizadas.

Se a escolarização daforça de trabalho por si

só não vai induzirautomaticamente as

empresas à inovação eà internacionalização,os dados indicam que

as empresas que seinternacionalizaram

com foco na inovaçãoempregam mão de obra

mais escolarizada.

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77AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

O mesmo estudo (4) concluiu, ainda, que o aumento de com-petitividade das empresas é influenciado positivamente pelasinovações tecnológicas resultantes do processo de internacio-nalização e que tal competitividade auxilia nas exportações."A abertura de mercados externos ocasionaria maior potencialde expansão e crescimento da firma e, também, a própria in-ternacionalização geraria mecanismos de retroalimentação dasua capacitação tecnológica".

Os resultados da análise chamam a atenção para a impor-tância da qualificação da mão de obra nas chances de a firmainovar. "Das quatro variáveis que afetam a probabilidade de a

ração é relevante, há espaço para ações compartilhadas entregrupos empresariais, voltadas à busca de informações sobreoportunidades de negócios associados à internacionalizaçãocom foco na inovação.

Em face da importância crescente de trading companies ecomerciais importadoras e exportadoras na inserção compe-titiva em mercados externos de produtores interessados emexportar e exportadores com experiência em alguns deles e le-vando-se em conta a ação multiplicadora de negócios dessasempresas, estas podem ter o seu papel valorizado na medidaem que operem como fomentadoras de internacionalização

firma ser inovadora, duas delas estão diretamente vinculadasà mão de obra: treinamento e escolaridade. Nesse aspecto, háum parâmetro importante para a política pública de longo pra-zo. Se a escolarização da força de trabalho por si só não vai in-duzir automaticamente as empresas à inovação e à internacio-nalização, os dados indicam que as empresas que se interna-cionalizaram com foco na inovação empregam mão de obramais escolarizada. Assim, uma política de incentivo à inova-ção na indústria passa por políticas de aumento da escolarida-de da população."

O referido estudo ressalta, também, a evidência de que a co-operação é, possivelmente, um elemento importante para asfirmas realizarem inovações, havendo, para tanto, interesse nabusca conjunta de indicações sobre as mesmas. Se tal coope-

com foco na inovação tecnológica. Os seus fornecedores ouclientes seriam, dessa forma, amplamente beneficiados com oacesso a informações e a padrões de inovação tecnológica.

2.2.2. Compartilhamento de atividades e operações

A motivação fundamental para o compartilhamento deatividades e operações desenvolvidas por produtores depequeno porte é a realização contínua de ganhos de escala,trazendo, em consequência, reduções permanentes de cus-tos médios de produção, tornando mais competitivos osparticipantes de grupos com interesses afins. Entre eles, ca-be destacar os formadores de Arranjos Produtivos Locais -APLs e de cooperativas, cujas vendas ao exterior são, geral-

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mente, viabilizadas por empresas comerciais importadorase exportadoras.

2.2.2.1. Arranjos Produtivos Locais - APLs

Os Arranjos Produtivos Locais - APLs se caracterizam poruma concentração geográfica ou territorial de um número sig-nificativo de empresas, notadamente de micro, pequeno e mé-dio portes, de um mesmo setor ou mesma cadeia produtiva,que mantêm algum vínculo de cooperação entre si e com ou-tros agentes públicos e privados.

Os estímulos e a orientação para a formação de APLs fo-ram promovidos pelo Governo Federal, através do MDIC, noinício dos anos 2000, no contexto da Política Industrial, com oobjetivo de fomentar a modernização e a competitividade demicro, pequenas e médias empresas. Mapeamento recente-mente concluído pelo BNDES revela que existem 806 APLsativos no País, dos quais 756 já foram objeto de políticas pú-blicas ou privadas, sendo, por isso, considerados "prioriza-dos". Destes, 287 estão na agropecuária, 114 no comércio eserviços e 355 em indústrias.

O MDIC criou um programa específico para apoiar as ex-portações de Arranjos, denominado Projeto Extensão Indus-trial Exportadora (PEIEx), que é um sistema de resolução deproblemas técnico-gerenciais e tecnológicos voltado ao incre-mento da competitividade e à promoção de cultura exporta-dora empresarial e estrutural em APLs selecionados.

Os resultados do Programa de Desenvolvimento de Dis-tritos Industriais, executado pelo Sebrae no período2002/2007, no contexto de Projetos de Integração Produtiva,apoiados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento(BID), revelaram que houve experiências exitosas de vendaspara novos mercados da Ásia, Europa e EUA de móveis deParagominas (PA), confecções de Nova Friburgo (RJ), calça-dos de Campina Grande (PB), artesanato e confecções de To-bias Barreto (SE).

Há, também, registros importantes de exportações do PoloMoveleiro catarinense, cujos integrantes estão reunidos na As-sociação dos Madeireiros e Moveleiros do Oeste de Santa Ca-tarina (Amoesc). A quantidade de exportadores na região pas-sou de seis empresas, em 1998, para 47 em 2009. Deste total,96% são micro e pequenas empresas. De 2002 a 2008, as expor-tações evoluíram 637%, passando de US$ 3,4 milhões para US$25,0 milhões do início ao fim do período.

2.2.2.2. Cooperativas

De acordo com a SECEX/MDIC, existem, atualmente, 217cooperativas exportadoras em todo o País, cujas vendas ao ex-terior cresceram 21,5% de 2007 a 2008, passando de US$ 3,3 bi-lhões para US$ 4,0 bilhões do início ao fim do período. Elasvendem produtos das mais diversas naturezas, como as com-modities açúcar, café, milho e soja. Exportam calçados, mel, ca-misetas, geleias, cachaças, entre inúmeros itens. É importantedestacar que as cooperativas exportadoras reúnem produto-res de todos os portes.

No meio rural, a formação de cooperatrivas e associações

de produtores de pequeno porte transforma a atuação indi-vidual e familiar em atuação grupal e comunitária, acrescen-tando capacidade produtiva e comercial aos associados, con-tribuindo, assim, para a viabilidade econômico-financeirade seus negócios. A troca de experiências e a utilização deuma estrutura comum são ingredientes básicos para o suces-so dos grupos, que se unem para adquirir insumos e equipa-mentos com menores preços e melhores prazos de financia-mentos. O uso comum de tratores, colheitadeiras, caminhõespara transporte, entre outros itens, proporciona a realizaçãode atividades produtivas e de comercialização a custos maisbaixos do que os observados na atuação individual de cadaassociado ou cooperativado. Há, ainda, o compartilhamentoda asssitência técnica de agrônomo e veterinário, de tecno-logias e de capacitação profissional.

2.3. Aspectos relacionadosa acessos a mercados externos

Os aspectos relacionados aacessos a mercados no exteriorque condicionam a competiti-vidade de produtores brasilei-ros, notadamente os de peque-no porte, dizem respeito a:� Dificuldade de encontrar

um parceiro para apoiar asvendas nos países;

� Exigências burocráticas;� Dificuldade de obter infor-

mações sobre as necessida-des e as preferências dosc o m p r a d o re s ;

� Elevadas tarifas de importa-ções;

� Dificuldade de obter infor-mações sobre as exigênciastécnicas e burocráticas nos países;

� Desconhecimento do mercado de destino;� Dificuldade de fornecer assistência técnica pós-venda;� Barreiras técnicas;� Barreiras sanitárias.

Esses aspectos determinam os chamados "custos de acesso amercados", considerados grandes barreiras à entrada de pe-quenos produtores em mercados externos e à diversificação demercados de exportadores com experiência consolidada emalguns deles. As dificuldades para a absorção desses custos fi-cam evidentes quando se organizam ações de promoção co-mercial no exterior, envolvendo eventos internacionais, comofeiras, seminários e encontros de negócios, para os quais se exi-ge a elaboração de material promocional de produtos no idio-ma do país-alvo das vendas externas. Após a realização dosmesmos, o envio e o reenvio de amostras a potenciais compra-dores; a seleção de agentes, representantes ou distribuidores ea formalização jurídica da relação com eles representam des-pesas frequentemente insuportáveis por aqueles produtores.

Em face da experiênciade negócios acumuladapor trading companies e

comerciais importadorase exportadoras em

canais de distribuição depaíses estrangeiros,

essas empresasrepresentam opções

para a redução de custosde acesso a mercados,

facilitando e agilizandoas vendas externas depequenos produtores.

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79AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

O Sebrae, em nível nacional e por meio de suas unidades es-taduais, e a APEX, através de Projetos Setoriais Integrados -PSIs, têm trabalhado para a superação dessas barreiras,apoiando a participação de produtores e exportadores em fei-ras internacionais e missões empresariais ao exterior, com en-contros de negócios pré-agendados com potenciais importa-dores. No Brasil, a Agência tem promovido "projetos compra-dores", trazendo empresários estrangeiros potencialmente in-teressados em produtos de determinados setores, durantefeiras e outros eventos realizados em diferentes estados.

Em face da experiência de negócios acumulada por trading

valor ao produto exportado. O efeito combinado das mesmasproporcionam o aumento da rentabilidade média das exporta-ções, conferindo-lhes ganhos de competitividade. Equivalem aum "câmbio adicional" para o exportador.

3.1. Sistema de Informações de Apoio àsExportações do Estado de São Paulo - SIAEXP

O SIAEXP é o sistema de informações do Projeto Exporta,São Paulo, elaborado a partir do Perfil do Produtor Paulista,com o objetivo de dar visibilidade aos produtores industriais e

companies e comerciais importadoras e exportadoras em ca-nais de distribuição de países estrangeiros, essas empresas re-presentam opções para a redução de custos de acesso a mer-cados, facilitando e agilizando as vendas externas de peque-nos produtores e exportadores.

3. A Experiência do "Exporta, São Paulo"

A experiência do Projeto Exporta São Paulo envolve açõesque induzem ganhos de escala aos processos produtivos e decomercialização externa de pequenos produtores interessadosem exportar e de exportadores com experiência de negóciosconsolidada em determinados mercados. As atividades visam areduzir os seus custos médios de vendas ao exterior e a agregar

rurais de pequeno porte (pessoas jurídica e física), que lidamcom itens exportáveis ou potencialmente exportáveis. O Sis-tema é um instrumento para trabalhos associativos, exploran-do-se opções de compartilhamento de contratos de manufatu-ra, de exportação, de compras, de logística, entre outras ope-rações. O Sistema é, também, de grande utilidade para opera-dores logísticos e empresas comerciais importadoras eexportadoras, interessados em montar ou diversificar as suas"cestas" de produtores e produtos com os quais trabalham.

O SIAEXP, por permitir a busca de produtos a partir de suasespecificações técnicas, com base na classificação fiscal da No-menclatura Comum do Mercosul (NCM), é um forte indutorda formação de Arranjos Produtivos Virtuais (APVs), que vêmsendo discutidos nos eventos Exportar para Crescer, caracte-

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rizados a seguir. Eles flexibilizam os conceitos de APLs, clus-ters e distritos industriais, caracterizados pela proximidade fí-sica de seus integrantes em determinado espaço ou territórioprodutivo, permitindo que empresas comerciais importado-ras e exportadoras desenvolvam agrupamentos de produto-res da maneira que lhes seja conveniente para a viabilidade denegócios no exterior.

No caso de produtos industriais que envolvem monta-gens, o SIAEXP é um instrumento útil para viabilizá-las, in-clusive com insumos e componentes importados. Essas ope-rações podem ser realizadas em portos, aeroportos e portossecos industriais, de acordo com a legislação aduaneira emvigor. As comerciais importadoras e exportadoras, por atua-rem nas pontas de importação e exportação, têm condiçõesde desenvolver a "engenharia comercial" para viabilizar es-sas operações. As consultas ao SIAEXP são feitas através doswebsites da SP-Chamber e de algumas associações comer-ciais vinculadas à Facesp.

3.2. Eventos Exportar para Crescer

Trata-se da principal atividade de mobilização e sensibiliza-ção de produtores paulistas de pequeno porte para negócios deexportação, desenvolvida pelo Projeto Exporta, São Paulo. Oseventos, itinerantes por todo o Estado, são compostos de semi-nário, encontros de negócios e despachos executivos (ver (5) "Ex -portar para crescer, Diário do Comércio, 3 de abril de 2003).

No seminário, são apresentadas as linhas de ação do Pro-jeto e debatidas questões relativas a duas áreas-problemadas exportações brasileiras, quais sejam logística e financia-mentos. Em seguida, discutem-se aspectos da adequação deprodutos a mercados externos e da formação de consórciosde exportação. Os depoimentos, prestados por empresáriosde pequeno porte, acerca de experiências e negócios envol-vendo vendas ao exterior, finalizam o roteiro de conceitos einformações básicas necessários à sensibilização do produ-tor para a exportação,

Os encontros de negócios visam a dar ao evento um cará-ter prático, ressaltando o compromisso do projeto com a rea-lização efetiva de novos negócios de comércio internacionale a ampliação da base exportadora paulista. Com base noPerfil do Produtor Paulista, elaborado com antecedência aoevento, cruzam-se as informações do respectivo formuláriocom as que estão cadastradas na SP-Chamber, no banco dedados de traders, empresas comerciais importadoras e ex-portadoras e outros prestadores de serviços de importação eexportação, para que os profissionais que lidam com os mes-mos produtos identificados no Perfil possam ser convoca-dos a participar dos encontros com produtores e exportado-res com experiência de negócios consolidada em determina-dos mercados. A partir de 2008, com o lançamento do ProjetoTradings, da APEX, o cruzamento passou a ser feito, tam-bém, com as informações e dados disponíveis no DiretórioTradings do Brasil (DTB).

Os encontros têm-se mostrado efetivos para a consecuçãodos objetivos do Projeto, pois as empresas e profissionais es-pecializados, por já terem experiência comprovada em negó-

cios de exportação e, freqüentemente, estarem com canais dedistribuição abertos em diversos países, podem agilizar a con-cretização de novas vendas externas, contribuindo, também,para a redução de custos de prospecção de negócios e de acessoa mercados no exterior.

Por outro lado, os despachos executivos têm o propósito deapresentar os potenciais exportadores e os que estão iniciandosuas vendas externas a entidades e empresas com interessescomuns aos do Projeto, cujas atividades integram importantesetapas do processo de exportação e importação.

Bancos que atuam no comércio exterior, com linhas de fi-nanciamento a exportadores e importadores têm, também,participado dos Despachos Executivos.

3.3. Inteligência comercial

Os trabalhos de inteligência comercial do Projeto são elabo-rados pela equipe da SP-Chamber, sendo caracterizados porum conjunto de informações e análises necessárias à formaçãode competidores globais. Noseventos Exportar para Cescer,cada produtor recebe o seu re-latório preliminar "Ameaças eOportunidades no MercadoGlobal", fortalecendo-se, as-sim, a interação com o projeto.

Com base nas classificaçõesfiscais de produtos pela No-menclatura Comum do Mer-cosul (NCM) indicadas peloprodutor, ao fazer sua inscri-ção no evento, informam-sedados recentes de importa-ções, ilustrativas das "amea-ças" que ele está sofrendo coma concorrência de produtosimportados, em especial osprovenientes da China. Por outro lado, os dados sobre expor-tações visam a chamar a atenção do produtor para as "opor-tunidades" existentes no exterior, em particular nos EUA eem países da América Latina. O relatório é complementadopor uma relação de potenciais importadores, estabelecidosem diversos países.

Durante a fase mais aguda da crise econômica global, deagosto de 2008 a abril de 2009, com o intuito de verificar pos-síveis regiões para a expansão das vendas externas brasilei-ras, foram introduzidas análises sobre as desvalorizaçõescambiais em relação ao dólar em diversos países. Na medidaem que o real seja mais desvalorizado do que outras moe-das, abre-se espaço para o produto brasileiro ganhar fatiasde mercados com preços na moeda local menores do que ospraticados antes da crise. Apesar da queda do ritmo de ati-vidade econômica desses países, com a consequente dimi-nuição do volume de importações, a prática de menores pre-ços poderá ser exitosa na medida em que os concorrentes es-trangeiros de exportadores brasileiros não tenham margempara redução de preços.

A experiência do ProjetoExporta, São Pauloenvolve ações que

induzem ganhos deescala aos processos

produtivos e decomercialização externade pequenos produtores

interessados emexportar e de

exportadores comexperiência de negócios

consolidada emdeterminados mercados.

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81AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

3.4. Workshops sobre temas específicos

Na sequência dos eventos Exportar para Crescer, o Pro-jeto promove uma série de workshops em áreas do comérciointernacional onde existe potencial para a racionalizaçãode procedimentos, com perspectivas de reduções de cus-tos ou aumentos de receitas. O somatório dos resultadosdesses trabalhos deverá representar um vetor resultanteequivalente a um "câmbio adicional" para o produtor inte-ressado em exportar e o exportador com experiência de ne-gócios em determinados mercados, tornando-os, assim,mais competitivos.

pectivamente, em 2008 e 2009, pela entidade em conjunto coma APEX, sob os auspícios do Projeto Tradings.

Considerando-se que cada comercial exportadora parti-cipante das missões representou, em média, 12 produtores eque boa parte destes se aproximou de dirigentes e represen-tantes de comerciais exportadoras em encontros de negó-cios dos eventos Exportar para Crescer, o Exporta, São Pau-lo, com as ações de promoção comercial no exterior desen-volvidas pela SP-Chamber, pode tratar o produtor paulistade pequeno porte interessado em exportar numa perspec-tiva sistêmica, em que se desenvolve todo o ciclo de negó-cios de exportação.

Os workshops, além de manterem aquecida a mobilizaçãoproporcionada pelos Exportar para Crescer, visam a capacitaros produtores para os desafios da competição global.

3.5. Ações de promoção comercial (São PauloChamber of Commerce)

As ações de promoção comercial do Exporta, São Paulo es-tão fortemente associadas às desenvolvidas pela área de Re-lações Internacionais da SP-Chamber e pelo CECIEx para asempresas comerciais importadoras e exportadoras.

Nesse contexto, é importante ressaltar os promissores resul-tados das missões a Angola e à África do Sul, realizadas, res-

3.6. Prêmio Exporta, São Paulo

A outorga do Prêmio Exporta, São Paulo a empresários emunicípios do Estado foi instituída, em 2005, com o propó-sito de estimular produtores paulistas de pequeno porte a seengajarem em operações de exportação e de reconhecer o es-forço de muitos, cujas vendas externas estão com tendênciade crescimento.

A partir de avaliações do desempenho exportador das 18Regionais Administrativas da Facesp, obtem-se a relação deempresas elegíveis, ou seja, em condições de serem agracia-das. Os critérios de seleção das mesmas valorizam as quemais ampliaram a pauta de produtos e os destinos das suas

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82 DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

exportações. Para essa análise, a Comissão Organizadora doPrêmio conta com o valiosíssimo apoio da Coordenação deEstatística do Departamento de Planejamento e Desenvolvi-mento do Comércio Exterior, da Secretaria de Comércio Ex-terior, do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Co-mércio Exterior (DEPLA/SECEX/MDIC).

As indicações finais das empresas premiadas são feitaspelos vice-presidentes regionais da Facesp, com base, tam-bém, em critérios de responsabilidade social demonstradapor elas. As entidades promotoras do Prêmio objetivam,com essa iniciativa, dar mais uma contribuição ao processode mobilização e sensibilização de produtores de pequenoporte para o enorme esforço que o País e o Estado de São Pau-lo deverão fazer nos próximos anos, de expandir vigorosa econtinuamente suas vendas ao exterior, propiciando, as-sim, o aumento da renda e a geração de no-vos empregos, objetivo maior do Projeto Ex-porta, São Paulo.

4. O Papel de Trading Companiese Empresas ComerciaisImportadoras e Exportadoras

As trading companies e empresas comer-ciais importadoras e exportadoras estão ap-tas a desenvolver, praticamente, os mesmosnegócios de comércio internacional. As pri-meiras são constituídas sob a forma de socie-dades por ações, com capital mínimo supe-rior a pouco mais de 700 mil UFIRs, possuin-do Certificados Especiais emitidos pela SRFe pela SECEX/MDIC.

Não há requisitos específicos para a aber-tura e funcionamento das comerciais impor-tadoras e exportadoras, cabendo destacarque os benefícios da Lei 87/96 ("Lei Kandir")foram estendidos a essas empresas, emboratenham sido, de início, concedidos apenas àstrading companies.

Ambas as categorias de empresas usufruem de benefíciosfiscais na aquisição de bens no mercado interno com ofim específico de exportação, envolvendo a suspensão deIPI, não-incidência de ICMS, isenção de PIS e Cofins e ma-nutenção de créditos fiscais de IPI e ICMS, originários decompras de matérias-primas , produtos intermediários emateriais de embalagem. Vendas de produtos a essas em-presas são equiparadas a exportações diretas para todos osfins (ver (6) "Dobrando a exportação", Diário do Comércio,14 de março de 2003).

Em termos operacionais, a principal diferença entre as tra-dings e as comerciais importadoras e exportadoras é a exigên-cia feita a estas para que recebam em recintos alfandegados osprodutos que compram no mercado doméstico para fins de ex-portação. As tradings podem recebê-los e mantê-los por pra-zos não superiores a 90 dias no seu próprio domicílio. As nor-mas para a operacionalização do Siscomex (Radar) devem serobservadas por ambas as categorias.

4.1. Características de trading companies eempresas comerciais importadoras e exportadoras

Os resultados do trabalho (7)"Estudo da evolução do setor detradings no Brasil - Diagnóstico da situação atual e proposi-ções para o seu desenvolvimento", realizado pela FundaçãoGetúlio Vargas (FGV), em 2009, revelaram:� As comercias exportadoras e as trading companies não são

mais apenas intermediários comerciais, atuando, também,como consultorias de exportação, atividade na qual podemsupervisionar o processo de exportação de uma empresa.Garantia de qualidade, entrega no prazo, adequação do pro-duto a demandas específicas do cliente são fatores determi-nantes da competitividade que nem sempre as pequenas emédias empresas estão cientes da sua importância;

� Do lado da oferta de bens por produtores depequeno porte, há problemas envolvendooperações de crédito, requisitos para a habi-litação no Siscomex, exigência de consolida-ção de cargas em armazéns alfandegados, di-ficuldades de os produtores manterem ade-quadamente o fluxo de fornecimento de pro-dutos e a dificuldade de os produtoresatenderem corretamente os padrões de qua-lidade exigidos pelos importadores;

� Do lado da demanda, existem a falta de cul-tura exportadora de produtores de pequenoporte, poucas informações sobre comerciaisexportadoras e a visão negativa que eles têmdessas empresas, consideradas mais atra-vessadoras do que parceiras."

Os problemas apontados pelo trabalho daFGV poderão ser contornados com a intensifi-cação de encontros de negócios de produtoresinteressados em exportar e exportadores comexperiência em determinados mercados comtradings e comerciais e importadoras e exporta-doras, no padrão dos que têm sido organizados

nos eventos Exportar para Crescer, já mencionados.Em nível institucional, o CECIEx, citado anteriormente, tem

um papel extraordinariamente relevante a desempenhar juntoa órgãos de governo, como o MDIC, a SRF e a Câmara de Co-mércio Exterior (CAMEX), na remoção de obstáculos para aampliação da oferta de produtos por aquelas empresas, em es-treita articulação com o Projeto Tradings da APEX.

A superação de dificuldades existentes em nível da oferta eda demanda de produtos por comerciais exportadoras passa,também, pelo desenvolvimento de um amplo programa de ca-pacitação de produtores, exportadores e e das próprias tra-dings e comerciais importadoras e exportadoras. Os temas po-derão ser os abordados em workshops específicos promovi-dos pelo Exporta, São Paulo e outros que proporcionem aosprodutores uma visão dessas empresas como parceiras de ne-gócios, tendo como referência (benchmarking) as Export De-velopment Companies (EDCs), cujas características estãoapresentadas a seguir.

Em termosoperacionais, aprincipal diferençaentre as tradings eas comerciaisimportadoras eexportadoras é aexigência feitaa estas para querecebam em recintosalfandegadosos produtos quecompram nomercado domésticopara fins deexportação.

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4.2. Funções de uma ExportDevelopment Company - EDC

A ideia de incluir as Export Development Companies -EDCs na estrutura deste trabalho, conceituando-as como "em-presas de desenvolvimento de exportações", está associada ànecessidade de mudança da imagem das tradings e comerciaisimportadoras e exportadoras e de atualização do papel queelas devem desempenhar, de inserir competitivamente pe-quenos produtores em mercados externos. Na trabalho reali-zado pela FGV (7), essas empresas foram consideradas "maisatravessadoras do que parceiras" por alguns produtores entre-vistados, conceito totalmente incompatível com o importantee nobre papel a elas reservado.

Para os objetivos deste trabalho, de formulação de Propos-tas para o próximo Presidente, as EDCs serão consideradasuma classe especial de tradings e comerciais importadoras eexportadoras para as quais serão definidos papéis específicosno contexto daquela inserção. As EDCs serão empresas espe-cializadas em desenvolvimento de negócios de longo prazo deexportações, importações e operações com terceiros países,envolvendo produtos e serviços.

Essas empresas comprarão itens localmente e para vendê-losinternacionalmente. Elas adquirirão produtos internacional-mente para vendê-los localmente e elas comprarão e venderãointernacionalmente. Negócios internacionais serão o escopodas EDCs. Elas terão flexibilidade e agilidade para atuar em vá-rios mercados com diversos produtos ao mesmo tempo.

Elas serão intermediários comerciais entre fornecedores ecompradores estabelecidos em diferentes países, envolven-do-se profundamente em comercialização de produtos ecom serviços que lhes agregam valor. As EDCs serão cata-lisadoras da competitividade de produtores de pequenoporte, contribuindo para a formação de grupos com interes-ses afins, como APLs e APVs. Serão, também, responsáveispor fluxos de informações e outras ações voltadas à inova-ção tecnológica desses produtores, valendo-se, para tanto,

das suas subsidiárias, filiais ou coligadas no exterior.No Brasil, as EDCs deverão ser certificadas pelo CECIEx,

com o apoio do Projeto Tradings da APEX, que ratificará o pa-pel a ser desempenhado por essas empresas e avaliará o de-sempenho das mesmas.

Dadas as características de atuação de trading companies eempresas comerciais importadoras e exportadoras no Brasil,comprando e revendendo produtos e prestando serviços aprodutores interessados em exportar e a exportadores dispos-tos a diversificar canais de distribuição no exterior, uma típicaEDC oferecerá a seus potenciais clientes os serviços descritosna Tabela acima.

5. Conclusões e Recomendações

O aumento da base exportadora, com maior participação deprodutores de micro, pequeno e médio portes, consideradosgenericamente de "pequeno porte" neste trabalho, contribuirápara a consecução do tão almejado crescimento sustentado dasvendas externas brasileiras, ensejando a geração de renda eempregos, objetivos maiores de políticas públicas de desen-volvimento econômico do País.

Para tanto, é fundamental que as mesmas estejam voltadas,precipuamente, ao fomento de ganhos contínuos de competi-tividade desses produtores em mercados externos e no merca-do doméstico, onde a concorrência com fornecedores estran-geiros é, cada vez, mais acirrada.

Nesse contexto, as diretrizes de políticas públicas deverãoestimular a inovação tecnológica, a capacitação e ganhos de es-cala daqueles produtores, por meio de ações associativistasque envolvam o compartilhamento de atividades produtivas,de comercialização externa e de logística internacional. A aqui-sição de matérias-primas e insumos, a divisão de contratos demanufatura referentes a pedidos maiores do que os produto-res são capazes de atender isoladamente, a prospecção de ca-nais de distribuição no exterior e o acesso aos mesmos sãoexemplos de atividades a serem compartilhadas.

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84 DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

As trading companies e empresas comerciais importadorase exportadoras operarão como catalisadoras do associativis-mo. Em face do enorme efeito multiplicador de negócios in-ternacionais por elas proporcionado, o papel dessas empresasdeve ser intensamente reforçado, inclusive com a eliminaçãode entraves de natureza burocrática, tributária e alfandegária,notadamente os que estão associados a normas da SRF .

Essas empresas deverão merecer forte e permanente aten-ção por parte da SRF e dos demais órgãos anuentes de despa-chos de importação e exportação, tais como a Anavisa e o MA-PA, no sentido da racionalização e simplificação de processose procedimentos, para que elas possam atuar com mais liber-dade e desenvoltura. As compras externas realizadas por tra-ding companies e comerciais importadoras e exportadorascom movimento anual mínimo de US$ 5 milhões de importa-ções deverão ter tratamento alfandegário prioritário equiva-lente ao que é, atualmente, oferecido a grandes exportadores eimportadores no regime denominado de "Linha Azul", desdeque tragam do exterior insumos e componentes destinados afluxos produtivos de pequenos produtores envolvidos em ne-gócios de exportação.

O cruzamento de dados e informações que circulam por sis-temas totalmente informatizados gerenciados por instituiçõespúblicas federais, como a própria SRF, a SECEX, o Banco Cen-tral do Brasil, o INSS e o Serpro, permite o monitoramento per-manente de negócios e atividades daquelas empresas. A inten-sificação do uso de técnicas de amostragem para avaliá-los de-verá ter preferência em relação a análises elaboradas antes darealização dos mesmos, prevendo-se a punição exemplar deempresas e seus dirigentes que transgredirem as normas e osregulamentos em vigor.

No campo da inovação tecnológica de pequenos produto-res, as trading companies e empresas comerciais importado-ras e exportadoras deverão, também, ter um papel de funda-mental importância no fluxo de informações e de ações de ino-vação para pequenos produtores que façam parte da sua "cestade fornecedores". A criação de filiais, subsidiárias ou coliga-das dessas empresas no exterior, fortalecendo o processo de in-ternacionalização das mesmas, deverá ser incentivada com li-nhas de financiamento de projetos pela Finep e de operaçõespelo BNDES. O processo deverá focar, prioritariamente, osmercados dos EUA, UE e da China, aproveitando-se as estru-turas de embaixadas e consulados brasileiros, bem como deCentros de Negócios da APEX.

Dado o caráter totalmente inovador dessa proposta, ela po-derá, inicialmente, contemplar, apenas, aquelas empresas queatingirem a certificação de Export Development Company -EDC, a ser outorgada pelo CECIEx. A primeira lista de empre-sas com o selo "EDC" poderá ser elaborada a partir das relaçõesde agraciadas com o Prêmio Exporta, São Paulo, no período2006/2009, que mostraram forte dinamismo exportador com adiversificação tanto da pauta de produtos exportados como depaíses de destino dos mesmos.

Na área de capacitação de pequenos produtores para apro-veitar as oportunidades e enfrentar as ameaças associadas àcontínua globalização da economia, dever-se-á desenvolvermódulos de treinamento presencial e virtual voltados, entre

outros, a temas específicos de inovação tecnológica, exporta-ções, importações e internacionalização de negócios, desta-cando-se as perspectivas de permanente racionalização deprocessos e procedimentos, que se traduzam por reduçõescontínuas de custos, bem como de agregação de valor a pro-dutos de tal forma que o vetor resultante desses esforços repre-sente um "câmbio adicional" ao exportador.

Nesse contexto, as experiências do Projeto Exporta, SãoPaulo, tratando de temas como consórcios de exportação,adequação de produtos a mercados externos, mecanismosde financiamento a exportações e importações, logística deexportações e importações e design, deverão ser estendidasa outros estados sob os auspícios do próprio CECIEx. Paratanto, propõe-se a instituiçãodo Projeto Exporta, Brasil,com atividades em diversasunidades da Federação.

A capacitação profissionalde equipes de trading compa-nies e empresas comerciaisimportadoras e exportadorasdeverá, também, ser reforça-da não apenas com os módu-los já discutidos como, tam-bém, com temas relacionadosà plena operação de EDCs,que passarão a ser o bench-marking do setor. A partici-pação do International TradeCenter, ligado à Unctad e àOMC, deverá ser requisitadapelo CECIEx, para que as experiênias internacionais maisrecentes sejam conhecidas, analisadas e disseminadas juntoàquelas empresas.

No que concerne aos ganhos de escala, deve-se fomentaros agrupamentos de produtores na forma de Arranjos Pro-dutivos Locais (APLs) e de Arranjos Produtivos Virtuais(APVs), com o suporte do SIAEXP, cujo escopo deve ser es-tendido a todo o território nacional. A expansão desse sis-tema de informações deverá incorporar dados de todos osprodutores participantes dos APLs "priorizados" no País,dando visibilidade aos mesmos por meio de "vitrines vir-tuais" de seus produtos, a serem classificados por arranjo,por cadeia produtiva, por Unidade da Federação, entre ou-tras categorias. Tal iniciativa deverá facilitar o trabalho detrading companies e empresas comerciais importadoras eexportadoras na montagem das suas "cestas de fornecedo-res", a partir das NCMs dos bens com os quais elas traba-lham. Dessa forma, essas empresas serão catalisadoras doprocesso de ganhos contínuos de competitividade de pro-dutores de pequeno porte, participando, também, da inser-ção dos mesmos em negócios internacionais, pelas verten-tes tanto de importação como de exportação.

Nas questões atinentes à racionalização de sistemas logís-ticos, em especial os que envolvem agrupamentos de cargaspor empresas comerciais importadoras e exportadoras, pro-põe-se a eliminação da exigência de recinto alfandegado para

Na área de capacitaçãode pequenos produtores,

para aproveitar asoportunidades e

enfrentar as ameaçasassociadas à contínua

globalização daeconomia, dever-se-á

desenvolver módulos detreinamento presencial e

virtual voltados, entreoutros, a temas

específicos de inovaçãotecnológica (...)

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os mesmos serem organizados, equiparando-se essas empre-sas, dessa forma, às trading companies. Em face da predomi-nância do uso de contêineres na exportação de produtos ma-nufaturados e de fortes ineficiências logísticas associadas adeslocamentos de unidades vazias, é fundamental que aque-las empresas tenham liberdade operacional para serem mais

competitivas, ficando os seus recintos de estocagem e os pro-dutos por elas adquiridos no mercado doméstico para revendano exterior sujeitos à fiscalização pela SRF e à comprovação deembarques. Tais procedimentos assegurarão as condições deequiparação de vendas diretas às feitas a trading companies eempresas comerciais importadoras e exportadoras.

Referências Bibliográficas(1) "Perfil das exportações, produtividade e tamanho das firmas noBrasil", Victor Gomes e Roberto Ellery Jr., IPEA, Texto para discussãoNo. 1.087, abril de 2005.

(2) "Os problemas da empresa exportadora brasileira", CNI, 2008.

(3) "THE 24-HOUR PROJECT FOR THE SANTOS PORT COMPLEX -Improving the Productivity at the Largest Container Port in SouthAmerica", José Cândido Senna, 2nd. Annual Harris CountyInternational Trade & Transportation Conference, Houston, USA,janeiro de 2010.

(4) "Inovação, via internacionalização, faz bem para as exportaçõesbrasileiras", Glauco Arbix, Mário Sérgio Salerno e João Alberto DeNigri, IPEA, Texto para Discussão No. 1.023, junho de 2004.

(5) "Exportar para crescer", José Cândido Senna, Diário do Comércio,3 de abril de 2003.

(6) "Dobrando a exportação", José Cândido Senna, Diário doComércio, 14 de março de 2003.

(7) "Estudo da evolução do setor de tradings no Brasil - Diagnósticoda situação atual e proposições para o seu desenvolvimento",Fundação Getúlio Vargas - FGV, 2009.

(8) "DOBRANDO AS VENDAS EXTERNAS COM AS COMERCIAISEXPORTADORAS - Como conseguir US$ 100 bilhões deexportações", FACESP/ACSP, Diretrizes elaboradas pela ConTraderComércio Exterior, Março de 2.000.

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Patrícia Cruz/Luz

Alexandrede MoraesÉ Professor Doutor eLivre-docente naFaculdade de Direitoda Universidade deSão Paulo (USP) eProfessor Titular daFaculdade de Direitoda UniversidadePresbiterianaMackenzie. Advogadoe Consultor Jurídico.Foi Promotor de Justiçaem São Paulo (1991-2002), Secretário deEstado da Justiça eDefesa da Cidadania(2002-2005) emembro da primeiracomposição doConselho Nacionalde Justiça (biênio2005-2007). De 2007a 2010 foi secretáriomunicipal deTransportes, presidenteda CET (Companhiade Engenharia deTráfego) e da SPTrans(São Paulo Transportes -Companhia deGerenciamento eFiscalização doTransporte Público naCapital), e tambémsecretário municipalde Serviços. Este artigoconstitui versãoreformulada e ampliadade outro publicadonesta mesmarevista (nº 455,setembro/outubrode 2009).

Resumo

O texto argumenta que um dos principais pilares de sustentação do EstadoFederal é o exercício autônomo, pelos entes federativos, das competênciaslegislativas e administrativas constitucionalmente distribuídas. Para atingiressa finalidade, é imprescindível a recuperação do exercício decompetências legislativas pelos Estados-membros em matérias importantese adequadas às peculiaridades locais.

Muitos mecanismos políticos, sociais e jurídicos podem ser apontados paraalcançar esses resultados. No breve espaço desse estudo, foram destacadosos seguintes: (1) alterações constitucionais; (2) real exercício dascompetências delegadas (parágrafo único, do art. 22 da CF); (3) efetivoexercício das competências concorrentes (artigo 24 da CF) entre União eEstados-membros; (4) maior atuação perante o Supremo Tribunal Federal nosentido de evolução jurisprudencial que valorize os poderes remanescentesdos Estados-membros e reequilibre os entes-federativos; (5) utilização doprincípio da subsidiariedade, em prática na União Europeia.

Introdução

Amanutenção do equilíbrio democrático depende do bom entendi-mento, definição, fixação de funções, deveres e responsabilida-des entre os três Poderes, bem como a fiel observância da distri-buição de competências, característica do pacto federativo, con-

sagrado constitucionalmente no Brasil, desde a primeira Constituição Re-publicana, em 1891.

A luta pela concretização democrática na América Latina, e, especialmenteno Brasil, que seguiu os modelos federalista e presidencialista norte-america-nos, tem gerado grandes debates sobre as difíceis escolhas sobre os modelos ins-titucionais a serem implantados, os poderes e funções presidenciais, os con t ro -les e a fiscalização; bem como a divisão de competências entre União, Estadose Municípios.

No processo dinâmico da História, o Estado Federal e presidencialista apre-senta mudanças, inicialmente caracterizadas por um modelo idealizado fraco(Rei sem Coroa), que nunca chegou a existir ou ser aplicado na prática, logo setornando, por um processo político autoritário e centralizador, em torno da fi-gura da União e do presidente; e mais modernamente, em uma tentativa deampliação dos poderes de controles parlamentares e judiciais em relação aoExecutivo e à divisão constitucional de competências, para garantia de maiorestabilidade democrática e força aos Estados-membros.

Para tanto, é necessária a plasticidade indispensável ao mecanismo go-vernamental que acabou por gerar, em todas as organizações políticas mo-dernas, regras de centralização de competências na União e que tornaramforte o Presidente da República e o Congresso Nacional, ao mesmo tempoque se tentou prever controles que não o fizessem absorvente, mas uma forçamotriz do Estado que não degenerasse para uma verdadeira tirania, res-guardando-se, dessa forma, o ideal democrático, a separação de poderes e aautonomia dos Estados-membros (1).

Para argumentar pela distribuição de competências da União, este artigo foiorganizado em quatro seções. A Seção 1 faz uma breve retrospectiva históricado desenvolvimento do federalismo. A Seção 2 aborda o federalismo brasileiroe sua distribuição de competências e a seção seguinte ocupa-se da repartição decompetências e o princípio da predominância do interesse. A Seção 4 é voltadapara problemas no exercício da distribuição constitucional de competências daConstituição Brasileira. A Seção 5 apresenta conclusões da análise realizada.

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1. Histórico e desenvolvimento do Federalismo

A história do federalismo inicia-se com a Constituição nor-te-americana de 1787; a análise de suas características, bem co-mo do desenvolvimento de seus institutos vem sendo realiza-da desde os escritos de Jay, Madison e Hamilton, nos artigosfederalistas, publicados sob o codinome Publius, durante osanos de 1787-1788, até os dias de hoje, e mostra que se trata deum sistema baseado principalmente na manutenção de au-tonomia dos Estados-membros, com a consagração de divi-são constitucional de competências (2).

Em 1887, em seu centenário, o estadista inglês WilliamGladstone afirmou que a Constituição dos Estados Unidos"era a mais maravilhosa obra jamais concebida num momentodado pelo cérebro e o propósito do homem".

É importante salientar, dentro dessa perspectiva da "maismaravilhosa obra jamais concebida", que as questões do fede-ralismo e do regime presi-dencialista foram duas dasmais discutidas durante aConvenção norte-america-na. Assim, a Constituiçãodos Estados Unidos da Amé-rica foi aprovada por estreitamargem de convencionais.Nas convenções de ratifica-ção nos Estados, poucos vo-tos separaram as forças pró-Constituição (os federalistas,como eram chamados) e osopositores derrotados daConstituição (conhecidoscomo antifederalistas).

Luca Levi lembra que, "afederação constitui, portan-to, a realização mais alta dosprincípios do constituciona-lismo. Com efeito, a ideia do Estado de direito, o Estado quesubmete todos os poderes à lei constitucional, parece que podeencontrar sua plena realização somente quando, na fase deuma distribuição substancial das competências, o Executivoe o Judiciário assumem as características e as funções que têmno Estado Federal." (3)

A Federação americana, portanto, nasceu adotando a neces-sidade de um poder central com competências suficientes paramanter a união e coesão das antigas colônias, garantindo-lhes,como afirmado por Hamilton, a oportunidade máxima para aconsecução da paz e liberdade contra o facciosismo e a insur-reição (The Federalist papers, nº IX) e permitindo à União rea-lizar seu papel aglutinador dos diversos Estados-membros ede equilíbrio no exercício das diversas funções constitucio-nais delegadas aos três poderes de Estado.

Como bem descreve Malbin, "a intenção dos elaboradoresda Carta Constitucional Americana foi justamente estimular eincentivar a diversidade, transcendendo as facções e traba-lhando pelo bem comum". (4)

A Carta norte-americana consagrou, ainda, a pluralidade de

centros locais de poder, com autonomia de autogoverno e auto-administração, coordenado pelo poder central, cujas compe-tências seriam indicadas expressamente pela Constituição Fede-ral. A ideia de preservação da liberdade na elaboração do fede-ralismo não deixou de ser salientada por Alexis de Tocqueville,ao comentar a formação da nação americana. (5)

O regime presidencialista e o federalismo dualista nasce-ram em um mesmo momento, sob o prisma da necessidade de,ao mesmo tempo, garantir as autonomias locais e preservar aunião e a coesão de todas as antigas colônias. Carl Friedrichsalienta com enorme clareza a ligação do Estado Federal com opresidencialismo, ao colocar como um dos três elementos bá-sicos do federalismo a existência de um órgão executivo quepossa aplicar as leis aprovadas pelo Legislativo. (6)

Note-se, porém, que a evolução do federalismo dual, paraum modelo de federalismo centrípeto e cooperativo, possibi-litou maior centralização de poderes na União, seja no Presi-

dente da República, seja noCongresso Nacional.

A característica básica dofederalismo dualista, presen-te nos Estados Unidos nos sé-culos 18, 19 e início do 20, era aexistência de duas esferas depoderes estanques, em que adivisão de poder entre aUnião e os governos esta-duais era prevista diretamen-te no texto constitucional; ba -seava-se na ideia de doiscampos de poder mutua-mente exclusivos e recipro-camente limitadores, peloqual os Estados e a União te-riam suas áreas exclusivas deautoridade.(7)

Após esse primeiro mo-mento do federalismo, as condições da conjuntura política e eco-nômica, principalmente depois da crise econômica dos anos de1930 e a partir das medidas adotadas no New Deal, trouxeramgrandes alterações ao federalismo norte-americano e acabarampor gerar um novo modelo federal americano (8), mais centrípetoe cooperativo, e caracterizado, principalmente, como salientadopor Karl Loewestein, pelo aumento do poder político do Presi-dente da República, aumentando sua característica centraliza-dora e de personificação dos interesses do país. (9)

O federalismo clássico, como concebido inicialmente pelosfundadores norte-americanos, foi muito abalado, principal-mente, pelas questões econômicas, que exigiram do PoderCentral maior unidade decisória e comando. Consequente-mente, gerou aumento gradativo de poder político ao Con-gresso Nacional, em detrimento das Assembleias locais (10).Dessa forma, à evolução centralizadora do federalismo corres-pondeu um maior fortalecimento do regime presidencialistade governo e do Legislativo Nacional.

A evolução do federalismo e o fortalecimento do presidencia-lismo, portanto, caminharam conjuntamente, como concorda

Reprodução

A história do federalismo inicia-se com aConstituição norte-americana de 1787.

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Bernard Schwartz, ao analisar o fortalecimento do Governo Na-cional, ensinando ser o atual federalismo americano caracteriza-do pelo predomínio da autoridade federal, para concluir que "osistema social e econômico americano tem estado sujeito cada vezmais à regulamentação e ao controle por Washington. O poder doGoverno Nacional sobre o comércio é interpretado de modo a su-jeitar até mesmo empreendimentos com somente efeito remotosobre a economia nacional a minuciosas normas federais. E, à me-dida que a autoridade da Nação a este respeito cresceu, a dos es-tados sofreu correspondente decréscimo, pois a ação estadual, nosistema americano, é barrada quando é validamente exercido opoder federal incompatível com ela" ( 11 ) .

Prevaleceu, portanto, no federalismo norte-americano, aideia de fortalecimento do Congresso Nacional e hipertrofiana criação do presidencialismo e da figura central do Presi-dente da República, tendo salientado Isaac Kramnic, que hápoucos símbolos mais importantes da Revolução de 1787 queo espantoso poder que a Constituição deu ao novo primeiro-magistrado, encarnação do ideal de autoridade, governo e po-der. O presidente dos Estados Unidos era um legislador quecom uma penada estava autorizado a vetar leis congressuais,só podendo ser vencido nesses casos por dois terços do Con-gresso. Era um líder militar no comando total das forças arma-das. Era o supremo magistrado que podia perdoar crimes con-tra a nação, podia nomear todos os juízes federais, podia fazertodos os tratados, com o conselho e a aprovação do Senado. Sereeleito, podia governar sem limites: a exigida rotatividade nocargo seria apenas uma das vítimas de 1787. Para EdmundRandolph, isso era demais: ali estava o feto da monarquia. Nagrande discussão nacional que se seguiu, os antifederalistasproclamavam que o executivo delineado no artigo 2 da Cons-tituição era presidente-general, ou, mais propriamente, nossorei, que tinha poderes que excediam os dos mais despóticosmonarcas de que temos notícia nos tempos modernos (12).

Obviamente, essa evolução gerou reflexos importantís-simos na distribuição de competências administrativas elegislativas entre a União e os Estados Membros em todosos países que seguiram o modelo norte-americano, inclusi-ve, no Brasil.

Aqui, apesar dos diversos constituintes, desde 1891 até1988, terem criado e mantido o modelo de Estado Federal, comunião indissolúvel dos entes, que possuem auto-organização,autogoverno e auto-administração, no modelo proposto pelosnorte-americanos, não resta dúvidas de que houve gradual re-dução nas competências legislativas dos Estados-membros.

A Constituição Republicana de 1891 previu importante sis-tema de repartição de competências, com matérias taxativas enão tão abrangentes à União e conferindo aos Estados-membros"em geral, todo e qualquer outro poder ou direito, que lhes nãofor negado por cláusula expressa ou implicitamente contida nascláusulas expressas da Constituição" (art. 65, §2º). Tal texto bas-tou para que alguns Estados se declarassem soberanos (Bahia,Goiás, Mato Grosso e Piauí), outros autônomos e soberanos (Pa-raná) e, ainda, independente e soberano (Rio de Janeiro).

A ideia de ampla autonomia dos Estados-membros na Fe-deração foi detalhada por João Barbalho, ao afirmar que "istoindica que as Constituições dos Estados não estão obrigadas asegui-la (Constituição Federal) inteiramente à risca, a mode-larem-se completamente por ela, sem divergir em alguns pon-tos, contanto que não sejam fundamentais. E bem o compre-enderem eles no organizarem seus governos apartando-se emalguma cousa do modelo federal" (13).

Igual ideia de autonomia federativa teve seus reflexos po-líticos no Brasil, com o fortalecimento das estruturas políticasoligárquicas, que contribuíram para a Reforma Constitucionalde 1926, com claro fortalecimento e centralização na União.

A Constituição de 1934 tentou reequilibrar o sistema, trazendo- pela primeira vez no direito constitucional brasileiro - o modelo

Alan Schein/Folhapress

O federalismoclássico, como

concebidoinicialmente pelos

fundadoresnorte-americanos,foi muito abalado,

principalmente,pelas questões

econômicas, queexigiram do

Poder Central maiorunidade decisória

e comando.

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da Constituição alemã de 1919, das competências concorrentes.Na Constituição de 1937, houve referência à delegação da Uniãoaos Estados-membros da faculdade de legislar.

A ruptura democrática e institucional até 1945, fez com queo modelo federativo da Constituição de 1946 se situasse comotema central, principalmente a autonomia dos Estados-mem-bros, porém não houve acentuação da centralização de com-petências legislativas na União; o mesmo, ocorrendo com aConstituição de 1967.

A tradição de centralização das competências legislativasna União corrobora as críticas feitas por Castro Nunes ao ana-lisar as competências legislativas do Estado-membro, caracte-rizando-o como "mutilado em suas atribuições, sem atençãoao regimen de poderes separados que é da essência das insti-tuições democrático-republicanas"(14).

2. Federalismo brasileiro edistribuição de competências

A Constituição de 1988 manteve a tradiçãorepublicana, adotando o federalismo, formade Estado que gravita em torno do princípioda autonomia e da participação política epressupõe a consagração de certas regrasconstitucionais, tendentes não somente à suaconfiguração, mas também à sua manuten-ção e indissolubilidade.

Como ressaltado por Geraldo Ataliba, "ex-surge a Federação como a associação de Es-tados (foedus, foederis) para formação de no-vo Estado (o federal) com repartição rígida deatributos da soberania entre eles. Informa-seseu relacionamento pela 'autonomia recípro-ca da União e dos Estados, sob a égide daConstituição Federal' (Sampaio Dória), ca-racterizadora dessa igualdade jurídica (RuyBarbosa), dado que ambos extraem suas competências da mes-ma norma (Kelsen). Daí cada qual ser supremo em sua esfera,tal como disposto no Pacto Federal (Victor Nunes)"(15).

O mínimo necessário para a caracterização da organizaçãoconstitucional federalista exige, inicialmente, a decisão do le-gislador constituinte, por meio da edição de uma constituição,em criar o Estado Federal e suas partes indissociáveis, a Fede-ração ou União, e os Estados-membros, pois a criação de umgoverno geral supõe a renúncia e o abandono de certas porçõesde competências administrativas, legislativas e tributárias porparte dos governos locais (16).

Além disso, a Constituição deve estabelecer os seguintesprincípios: os cidadãos dos diversos Estados-membros ade-rentes à Federação devem possuir a nacionalidade únicadessa; repartição constitucional de competências entre aUnião, Estados-membros, Distrito Federal e município;necessidade de que cada ente federativo possua uma es-fera de competência tributária que lhe garanta renda pró-pria; poder de auto-organização dos Estados-membros,Distrito Federal e municípios, atribuindo-lhes autonomiaconstitucional; possibilidade constitucional excepcional e

taxativa de intervenção federal, para manutenção do equi-líbrio federativo; participação dos Estados no Poder Legis-lativo Federal, de forma a permitir-se a ingerência de suavontade na formação da legislação federal; possibilidade decriação de novo Estado ou modificação territorial de Estadoexistente dependendo da aquiescência da população do Es-tado afetado; a existência de um órgão de cúpula do PoderJudiciário para interpretação e proteção da Constituição Fe-deral. Note-se que, expressamente, o legislador constituintedeterminou a impossibilidade de qualquer proposta deemenda constitucional tendente a abolir a Federação (CF,art. 60, § 4o, I).

Assim, a autonomia dos Estados-membros caracteriza-se pela denominada tríplice capacidade de auto-organiza-

ção e normatização própria, autogovernoe auto-administração.

Os Estados-membros se auto-organizampor meio do exercício de seu poder constituin-te derivado-decorrente, consubstanciando-sena edição das respectivas Constituições Esta-duais e, posteriormente, através de sua pró-pria legislação (CF, art. 25, caput), sempre, po-rém, respeitando os princípios constitucio-nais sensíveis, princípios federais extensíveise princípios constitucionais estabelecidos (17).

Como já decidiu o Supremo TribunalFederal, "se é certo que a nova Carta Polí-tica contempla um elenco menos abran-gente de princípios constitucionais sensí-veis, a denotar, com isso, a expansão de po-deres jurídicos na esfera das coletivida-des autônomas locais, o mesmo não sepode afirmar quanto aos princípios fede-rais extensíveis e aos princípios constitu-cionais estabelecidos, os quais, emboradisseminados pelo texto constitucional,

posto que não é tópica a sua localização, configuram acervoexpressivo de limitações dessa autonomia local, cuja iden-tificação - até mesmo pelos efeitos restritivos que deles de-correm - impõe-se realizar" (18) .

Os princípios constitucionais sensíveis são assim deno-minados, pois a sua inobservância pelos Estados-mem-bros no exercício de suas competências legislativas, admi-nistrativas ou tributárias, pode acarretar a sanção politica-mente mais grave existente em um Estado Federal, a inter-venção na autonomia política. Estão previstos no art. 34,VII, da Constituição Federal: forma republicana, sistema re-presentativo e regime democrático; direitos da pessoa hu-mana; autonomia municipal; prestação de contas da admi-nistração pública, direta e indireta; aplicação do mínimoexigido da receita resultante de impostos estaduais, com-preendida a proveniente de transferências, na manutençãoe no desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços pú-blicos de saúde.

Os princípios federais extensíveis são as normas centraiscomuns à União, Estados, Distrito Federal e municípios,portanto, de observância obrigatória no poder de organi-

Reprodução

No Brasil, a ConstituiçãoRepublicana de 1891

previu ampla autonomiaaos Estados-membros.

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92 DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

zação do Estado. Poder-se-iam colocar nessa classificação oschamados por Raul Machado Horta de "Princípios destaConstituição" (19).

Por fim, os princípios constitucionais estabelecidos consis-tem em determinadas normas que se encontram espalhadaspelo texto da Constituição, e, além de organizarem a própriafederação, estabelecem preceitos centrais de observânciaobrigatória aos Estados-membros em sua auto-organização.Subdividem-se em normas de competência (20).

A autonomia estadual também se caracteriza pelo auto-governo, uma vez que é o próprio povo do Estado quem es-colhe diretamente seus representantes nos Poderes Legisla-tivo e Executivo locais, sem que haja qualquer vínculo de su-bordinação ou tutela por parte da União. A Constituição Fe-deral prevê expressamente a existência dos PoderesLegislativo (CF, art. 27), Executivo (CF, art. 28) e Judiciário(CF, art. 125) estaduais(21).

A própria Constituição Federal (art. 27) estabelece regras nacomposição do Poder Legislativo Estadual, determinando suaunicameralidade, sua denominação - Assembléia Legislativa -, a duração do mandato dos deputados (quatro anos - STF, Ple-no, ADI ³825, Rel. Min. Carmen Lúcia) as regras sobre sistemaeleitoral, inviolabilidade, imunidades (STF,"Pleno, RE456679/DF- rel. Min. Sepúlveda Pertence), remuneração, per-da de mandato, licença, impedimentos e incorporação às For-ças Armadas; as regras sobre remuneração e previsão sobreiniciativa popular de lei, bem como duas regras para fixaçãodo número de deputados estaduais.

Em relação ao Poder Executivo estadual, o art. 28 da Cons-tituição Federal com a nova redação dada (pela Emenda cons-titucional no 16, de 4-6-1997, estabelece que á0elåição do Go-vernador e do Vice-governador de Estado, pira mandato dequatro anos, permitindo-se a reeleição para um único períodosubseqüente, realizar-se-á no primeiro domingo de outubro,em primeiro turno, e"no último domingo de outubro, em se-gundo turno, se houver, do ano anterior ao do término do man-dato de seus antecessores, e a posse ocorrerá em primeiro dejaneiro do ano subseqüente. Além disso, expressamente deter-mina a aplicação das regras previstas pare a eleição e posse doPresidente da República (CF, art. 77).

Determina, também, que perderá o mandato o governadorque assumir outro cargo ou função na administração públicadireta ou indireta, ressalvada a posse em virtude de concursopúblico e observado o disposto no art. 38, I, IV e V da própriaConstituição Federal. Além disso, a Constituição Federal pre-vê que os subsídios do Governador, do Vice-governador e dosSecretários de Estado serão fixados por lei de iniciativa da As-sembléia Legislativa, observando o que dispõem os arts. 37,XI, 39, § 4o, 150, II, 153, III, e 153, § 2o, I.

Por fim, completando a tríplice capacidade garantidora daautonomia dos entes federados, os Estados-membros se auto-administram no exercício de suas competências administra-tivas, legislativas e tributárias definidas constitucionalmen-te. Saliente-se que, está implícita, no exercício da competên-cia tributária, a existência de um mínimo de recursos finan-ceiros, obtidos diretamente através de sua própria compe-tência tributária.

3. Repartição de competências e oprincípio da predominância do interesse

A autonomia das entidades federativas pressupõe reparti-ção de competências legislativas, administrativas e tributá-riassendo, pois um dos pontos caracterizadores e assegurado-res do convívio no Estado Federal.

A própria Constituição Federal estabelecerá as matériaspróprias de cada um dos entes federativos, União, Estados-membros, Distrito Federal e municípios, e a partir disso pode-rá acentuar a centralização de poder, ora na própria Federação,ora nos Estados-membros.

O princípio geral que norteia a repartição de competênciaentre as entidades componentes do Estado Federal é o da pre-dominância do interesse.

Assim, pelo princípio da predominância do interesse, àUnião caberá aquelas matérias e questões de predominânciado interesse geral, ao passo que aos Estados referem-se asmatérias de predominante interesse regional e aos municí-pios concernem os assuntos de interesse local. Em relação aoDistrito Federal, por expressa disposição constitucional (CF,

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93AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

art. 32, § 1o), acumulam-se, em regra, as competências esta-duais e municipais, com a exceção prevista no art. 22, XVII,da Constituição.

O legislador constituinte, adotando o referido princípio,estabeleceu quatro pontos básicos no regramento consti-tucional para a divisão de competências administrativas elegislativas:

(1) Reserva de campos específicos de competência adminis-trativa e legislativa (União - Poderes enumerados, CF, arts. 21 e22; Estados - Poderes remanescentes, CF, art. 27 §1º, Município- Poderes enumerados, CF, art. 30; Distrito Federal - Estados +Municípios, CF, art. 32. § 1o);

(2) Possibilidade de delegação (CF, art. 22, parágrafo único;Lei complementar federal poderá autorizar os Estados a legis-lar sobre questões específicas das matérias de competênciaprivativa da União);

(3) Áreas comuns de atuação administrativa paralela(CF, art. 23);

(4) Áreas de atuação legislativa concorrente (CF, art. 24)

À União, a Constituição Federal enumerou competências

administrativas e legislativas. Aos Estados-membros são re-servadas as competências administrativas que não lhes se-jam vedadas pela Constituição, ou seja, cabem na área admi-nistrativa privativamente ao Estado todas as competênciasque não forem da União (CF< art. 21), dos municípios (CF, art.30) e comuns (CF, art. 23).

É a chamada competência remanescente dos Estados-membros, técnica clássica adotada originariamente pelaConstituição norte-americana e por todas as Constituiçõesbrasileiras, desde a República, e que presumia o benefício ea preservação de autonomia destes em relação à União, umavez que a regra é o governo dos Estados, a exceção o GovernoFederal, pois o poder reservado ao governo local é mais ex-tenso, por ser indefinido e decorrer da soberania do povo,enquanto o poder geral é limitado e se compõe de certo mo-do de exceções taxativas. Em seu art. 30, o texto constitucio-nal determina competir aos municípios os assuntos de inte-resse local.

Não poucas vezes, a aplicação do princípio da predominân-cia do interesse é esquecida no Brasil, em detrimento dos Es-tados-membros e, em benefício da centralização na União.

A Constituição de 1988manteve a tradiçãorepublicana, adotandoo federalismo, formade Estado que gravitaem torno do princípioda autonomia e daparticipação política epressupõe aconsagração de certasregras constitucionais,tendentes não somenteà sua configuração,mas também à suamanutenção eindissolubilidade.

Luiz Novaes/Folhapress

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94 DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

4. Problemas no exercício dadistribuição constitucionalde competências da Constituição Brasileira

Se teoricamente, a Constituição Republicana de 1988 adotoua clássica repartição de competências federativas, prevendoum rol taxativo de competências legislativas para a União e,dessa forma, mantendo os poderes remanescentes dos Esta-dos-membros; na prática não se verifica tal equilíbrio, exata-mente, pelas matérias descritas no artigo 22 do texto constitu-cional e pela interpretação política e jurídica que, tradicional-mente, se dá ao seu artigo 24.

Ao verificarmos as matérias do extenso rol de 69 incisos eum parágrafo do artigo 22 da CF/88, é facilmente perceptívelo desequilíbrio federativo no tocante à competência legisla-tiva entre União e Estados-membros, uma vez que, há a pre-visão de quase a totalidade das matérias legislativas demaior importância para a União (direito civil,comercial, penal, processual, eleitoral, agrá-rio, marítimo, aeronáutico, espacial e do tra-balho, desapropriação, águas, energia, infor-mática, telecomunicações, radiodifusão, ser-viço posta, comércio exterior e interestadual,diretrizes da política nacional de transportes,regime de portos, navegação lacustre, fluvial,marítima, aérea e aeroespacial, trânsito etransporte, diretrizes e bases da educação na-cional, registros públicos etc.).

Além disso, a tradicional interpretação polí-tica e jurídica que vem sendo dada ao artigo 24do texto constitucional, no sentido de que nasdiversas matérias de competência concorrenteentre União e Estados, a União pode discipliná-las quase integralmente, temos o resultado dadiminuta competência legislativa dos Estados-membros; gerando a excessiva centralizaçãonos poderes legislativos na União, o que carac-teriza um grave desequilíbrio federativo.

O reequilíbrio na distribuição das compe-tências federativas pode ser realizado em cinco campos: (1) Al-terações constitucionais; (2) Real exercício das competênciasdelegadas (parágrafo único, do art. 22 da CF); (3) Efetivo exer-cício das competências concorrentes (artigo 24 da CF) entreUnião e Estados-membros; (4) Maior atuação perante o Supre-mo Tribunal Federal no sentido de evolução jurisprudencialque valorize os poderes remanescentes dos Estados-membrose reequilibre os entes-federativos e (5) Adoção do princípio dasubsidiariedade, em prática na União Europeia.

No tocante as ALTERAÇÕES CONSTITUCIONAIS, há apossibilidade, dentro de um grande acordo político que pre-serve a autonomia dos entes federativos, da edição de emendaconstitucional com a migração de algumas competências de-finidas atualmente como privativas da União para o rol decompetências remanescentes dos Estados-membros e outraspara as competências concorrentes entre União e Estados-membros, para que nesses assuntos, as peculiaridades regio-nais sejam consideradas. Essa alteração constitucional não es-

taria a ferir a cláusula pétrea prevista no inciso I, do artigo 60,do texto magno ("Não será objeto de deliberação a proposta deemenda tendente a abolir a forma federativa de Estado"), umavez que, essa proposta estaria plenamente de acordo com osobjetivos fundamentais da República, entre eles, o de reduziras desigualdades sociais e regionais (CF, art. 3º, III).

Sem qualquer necessidade de alteração constitucional, oREAL EXERCÍCIO DAS COMPETÊNCIAS DELEGADAS(PARÁGRAFO ÚNICO, DO ART. 22 DA CF)poderia encontrarum ponto de equilíbrio federativo entre UNIÃO e ESTADOS.

Em seu parágrafo único, o artigo 22 do texto constitucio-nal prevê que lei complementar poderá autorizar os Estadosa legislar sobre questões específicas das matérias relaciona-das neste artigo.

Dessa forma, todas as importantes matérias de competênciada União descritas no artigo 22 do texto constitucional podemser delegadas aos Estados-membros, desde que: (a) seja apro-

vada lei complementar pelo Congresso Nacio-nal; (b) sejam indicados os pontos delegados;(c) a delegação não gere discriminação entre osE s t a d o s - m e m b ro s .

Esse instrumento seria importantíssimo,por exemplo, para que cada Estado-membro,atento às suas peculiaridades, pudesse disci-plinar pontos específicos das diversas maté-rias (2 2 ) , como por exemplo, relações comer-ciais, ou ainda, do direito agrário – cuja reali-dade é diferente no Estado do Amazonas e emSão Paulo –, no direito trabalhista, igualmentede realidades diversas; e, mesmo, no tocante aodireito processual civil e penal.

Como exemplo do exercício dessa delegaçãoespecífica, o Estado de São Paulo editou as leis or-dinárias nºs 12.640/07 e 12.967/08 (instituição depisos salariais para os trabalhadores que especi-ficou), nos termos da delegação contida na Leicomplementar nº 103, de 14 de julho de 2000.

Ainda, no campo das competências concor-rentes, especificamente ao Direito Agrário, em

conjunto com a possibilidade de delegação administrativa, épossível por intermédio de convênios uma maior atuação dosEstados-Membros em assunto de vital importância para oPaís, como a reforma agrária.

A Constituição Federal concedeu à União a competência pri-vativa para desapropriar por interesse social, para fins de reformaagrária, o imóvel rural, entendendo-se reforma agrária como oconjunto de notas e planejamentos estatais mediante intervençãodo Poder Público na economia agrícola com a finalidade de pro-mover a repartição da propriedade e renda fundiária.

O Governo do Estado de São Paulo, porém, durante os úl-timos 10 anos, vem realizando, em convênio com o INCRA, amaior programa de reforma agrária já visto nesse Estado, ten-do entregado mais de 10.000 títulos referentes à regularizaçãofundiária; bem como encaminhado à Procuradoria-Geral doEstado o correspondente a mais de 400.000 hectares para o ajui-zamento de ações discriminatórias (discussão de áreas devo-lutas), para a realização de futuros assentamentos.

Em seuparágrafo único, oartigo 22 do textoconstitucionalprevê que leicomplementarpoderá autorizaros Estados alegislar sobrequestõesespecíficas dasmatériasrelacionadasneste artigo.

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95AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

O Estado atua mediante a Fundação Instituto de Terras do Es-tado de São Paulo (ITESP), cuja função precípua é propiciar a de-mocratização do acesso a terra, planejando e executando as po-líticas agrárias e fundiárias no âmbito do Estado de São Paulo.

A Fundação ITESP, que resulta da fusão de vários órgãos es-tatais cuja atuação nas questões agrárias e fundiárias existedesde a década de 60 do século passado, mantém mais de 700profissionais (entre técnicos agrícolas, engenheiros agrôno-mos, assistentes sociais, veterinários, zootecnistas e apoio ad-ministrativo) para o atendimento direto a mais de 10.000 famí-lias assentadas no Estado.

O Estado de São Paulo vem cumprindo, dentro de seu rol deatribuições, a missão constitucional de promoção e repartiçãoda propriedade e renda fundiária, mediante os requisitosconstitucionais previstos, demonstrando a importância dadescentralização em atividades de tamanha importância e avalorização da atuação dos Estados-membros.

Apesar do tímido exercício desse mecanismo, tramitam noCongresso Nacional projetos de lei complementar visando aconcessão de delegações (PLP n. 272/90; PLP 33/03; PLP 47/03;PLP 136/07 - na Câmara dos Deputados, que autorizam os Es-tados a legislar sobre a mobilidade urbana, a partir das diretri-zes nacional que estabelece; e PLS n. 21/2005; PLS 52/2007 - noSenado Federal, que autorizam os Estados a legislar sobre di-reito penal em questões específicas que define).

Para o efetivo exercício das competências concorrentes(artigo 24 da CF) entre União e Estados-membros, o art. 24 daConstituição Federal prevê as regras de competência concor-rente entre União, Estados e Distrito Federal, estabelecendoquais matérias deverão ser regulamentadas de forma geral poraquela e específica por esses.

No âmbito da legislação concorrente, a Constituição brasi-leira estabeleceu a legislação concorrente não cumulativa, ouseja, a chamada repartição vertical, pois, dentro de um mesmo

campo material (concorrência material de competência), re-serva-se um nível superior ao ente federativo União, que devesomente fixar os princípios e normas gerais, deixando-se aoEstado-membro a complementação, com a edição de regrascomplementares e específicas.

Como apontou Raul Machado Horta, "a legislação federal éreveladora das linhas essenciais, enquanto a legislação localbuscará preencher o claro que lhe ficou, afeiçoando a matéria re-velada na legislação de normas gerais às peculiaridades e às exi-gências estaduais. A Lei Fundamental ou de princípios serviráde molde à legislação local. É a Rahmengesetz, dos alemães; aLegge-cornice, dos italianos; a Loi de cadre, dos franceses; são asnormas gerais do Direito Constitucional Brasileiro (23).

Assim, ao adotar a competência concorrente não-cumulati-va ou vertical, de forma que a competência da União está ads-trita ao estabelecimento de normas gerais, devendo os Estadose o Distrito Federal especificá-las, através de suas respectivasleis, o texto constitucional seguiu orientação da Constituiçãode Weimar (art. 10), que consiste em permitir ao governo fede-ral a fixação das normas gerais, sem descer a pormenores, ca-bendo aos Estados-membros a adequação da legislação às pe-culiaridades locais.

Para exemplificar a importância desse mecanismo, é impor-tante lembrar que o Supremo Tribunal Federal entendeu no to-cante à acessibilidade de pessoas portadoras de necessidadesespeciais no transporte coletivo intermunicipal, existir compe-tência concorrente, cabendo aos Estados-membros a compe-tência legislativa plena para normas específicas, como porexemplo, exigência de adaptação de veículos (24).

Ocorre, entretanto, que os Estados-membros são extrema-mente tímidos na edição da legislação complementar, aceitan-do sem qualquer contestação a legislação federal que - em ma-téria concorrente - acaba por disciplinar tanto os princípios eregras gerais, quanto as normas específicas.

Sergio Lima/Folhapress

A legislação federal éreveladora das linhasessenciais, enquantoa legislação localbuscará preencher oclaro que lhe ficou,afeiçoando a matériarevelada na legislaçãode normas gerais àspeculiaridades e àsexigências estaduais.A Lei Fundamentalou de princípiosservirá de moldeà legislação local.

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Medida de reflexos imediatos, a MAIOR ATUAÇÃO PE-RANTE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO SENTIDODE EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL QUE VALORIZE OSPODERES REMANESCENTES DOS ESTADOS-MEMBROSpoderia, em pouco tempo, garantir um maior equilíbrio entreos entes-federativos.

A doutrina aponta a tendência do Supremo Tribunal Fede-ral, principalmente na esfera das competências concorrentes,em dirimir eventuais dúvidas a favor da União (25). Porém, éperceptível que a atual composição do Supremo Tribunal Fe-deral vem repensando esse modelo centralizador fixado pré-constituição de 1988, o que demonstra a necessidade de umtrabalho de conscientização dos Ministros da Corte Supremanos julgamentos mais importantes.

A título de exemplo, demonstrando a flexibilização de po-sicionamento até então arraigado no STF, sobre a necessidadedos Estados-mem-bros observarem ri-gorosamente princí-pios estruturais ins-t i t u c i o n a i s d aUnião , dec id iu aCorte, em relação àinvestidura ao cargode Procurador-Ge-ral do Estado de SãoPaulo, a possibilida-de de a ConstituiçãoEstadual prever aobrigatoriedade daescolha ser realizadaentre integrantes dacarreira, mesmo sen-do diferente do mo-delo federal de esco-lha do Advogado-Geral da União (26).

Por fim, o textoconstitucional ofe-rece mecanismos para que, com a edição de leis complemen-tares em importantes matérias, passe a ser adotado no Brasil,com as devidas adaptações, o princípio da subsidiarieda-de, já em prática na União Européia, por meio de protocolodatado de outubro de 1992.

Nessa data, o Conselho Europeu de Birminghan reafirmouque as decisões da União Europeia deveriam ser tomadas omais próximo possível do cidadão. Sob essa ótica, o ConselhoEuropeu de Edimburgo, em Dezembro de 1992, definiu umaabordagem global para a aplicação do princípio da subsidia-riedade, prevendo princípios fundamentais, diretrizes e pro-cedimentos; sempre com a finalidade de prestigiar as comu-nidades regionais.

Dessa forma, as propostas legislativas da União Européiadevem analisar se os objetivos da ação proposta podem ser su-ficientemente realizados pelos Estados-membros, bem comoquais serão seus reflexos e efeitos.

A ideia aplicada à federação brasileira– principalmente, no

exercício das competências legislativas concorrentes e nascompetências administrativas comuns – , seja prestigiar aatuação preponderante do ente federativo em sua esfera de po-der na proporção de sua maior capacidade para solucionar amatéria de interesse do cidadão.

Exemplificativamente, há no Congresso Nacional, o PLP388/07, de iniciativa presidencial (MSC 37/2007), que prevê aedição de lei complementar que fixará, nos termos do parágra-fo único do artigo 23 da CF, normas para a cooperação entreUnião, Estados-membros e Municípios nas ações administra-tivas decorrentes do exercício da competência comum.

5. Conclusões

O texto pretendeu demonstrar a inexistência de dúvidas so-bre a intensa ligação entre separação de poderes, autonomias,

liberdades e federa-l ismo, pr incipal-mente, levando-see m c o n t a q u e amaior autonomialocal para legislar,em importantes ma-térias, significa ummaior controle so-bre o centralismo earbítrio estatal (27).

Um dos princi-pais pilares de sus-tentação do EstadoFederal é o exercí-cio autônomo, pe-los entes federati-vos, das competên-cias legislativas ea d m i n i s t r a t i v a sc o n s t i t u c i o n a l-mente distribuídas.Para atingir essa fi-

nalidade, é imprescindível a recuperação do exercício decompetências legislativas pelos Estados-membros em ma-térias importantes e adequadas às peculiaridades locais.Logicamente, muitos mecanismos políticos, sociais e jurídi-cos podem ser apontados para a obtenção desses resultados;porém, no breve espaço desse estudo, foram destacadas asseguintes possibilidades:

(1) Alterações constitucionais;(2) Real exercício das competências delegadas (parágrafo

único, do art. 22 da CF);(3) Efetivo exercício das competências concorrentes (artigo

24 da CF) entre União e Estados-membros;(4) Maior atuação perante o Supremo Tribunal Federal no

sentido de evolução jurisprudencial que valorize os poderesremanescentes dos Estados-membros e reequilibre os entes-federativos;

(5) Utilização do princípio da subsidiariedade, em práticana União Europeia.

Sergio Lima/Folha Imagem

É perceptível que a atual composição do Supremo Tribunal Federal vemrepensando esse modelo centralizador fixado pré-constituição de 1988.

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97AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

Notas(1) Conferir a esse respeito: MARCH, James G., OLSEN, Johan p.O novo institucionalismo: fatores organizacionais na vidapolítica. Revisão de Ciência política Americana nº 78, set. 1984 -p. 738; RAE, Douglas. A conseqüência política de leis eleitorais.New Heaven: Imprensa da Universidade de Yale, 1967. p. 30 ss;SHUGART, Mathew Soberg, CAREY, John. Presidentes eAssembléias. Cambridge: Imprensa da Universidade deCambridge, 1992, p. 11 ss; MCCUB- BIN, Mathew, SULLIVAN,Terry. Congresso: estrutura e política. Cambridge: Imprensa daUniversidade de Cambridge, 1987, p. 13 ss.(2) COOLEY, Thomas McIntyre. The general principles ofconstitutional law in the United States of America. 3ª ed. Boston:Little, Brown and Company, 1898. p. 52; ROBISON, Donald L.To the best of my ability: the presidency the constitution. NewYork: W. W. Norton & Company, 1987. p. 18-19.(3) BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola, PASQUINO,Gianfranco (Coord.) Dicionário de política. v. I, p. 482. Conferir,ainda: DUVERGER, Maurice. Droit constitutionnel et institutionspolitiques. Paris: Presses Universitaires de France, 1955. p. 265.(4) MALBIN, J. Michel. A ordem constitucional americana. Riode Janeiro: Forense Universitária, 1987, p. 144.(5) TOCQUEVILLE, Alexis de. Democracia na América: leis ecostumes. São Paulo : Martins Fontes, 1988. p. 37 ss.(6) FRIEDRICH, Carl J. Gobierno constitucional y democracia.Madri: Instituto de Estudios Políticos, 1975. p. 405.(7) SCHWARTZ, Bernard. O federalismo norte-americano. Rio deJaneiro: Forense Universitária, 1984. p. 26-27. Conferir ainda:FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso...Op. cit. p. 52.(8) Conferir, nesse sentido, diversas decisões da Corte SupremaNorte-Ame- ricana: Shechter, Sunshine v. Adkins, JuntaNacional de Relações trabalhistas v. Jones & Lauglin Steel Corp,ambas de 1940, Kirschbaum v. Walling (1946), Martino v.Michigan Window Cleaning Co. (1946), Mabee v. White PlainsPub. Co. (1946), entre outros.(9) LOEWESTEIN, Karl. Teoria de la constitución. Barcelona:Ariel, 1962. p. 362.(10) BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria geral dofederalismo. Rio de Janeiro: Forense, 1986. p. 317.(11) SCHWARTZ, Bernard. O federalismo norte-americano. Riode Janeiro: Forense Universitária, 1984. p. 74.(12) Comentários de Isaac Kramnic, na apresentação da obra.MADISON, James, HAMILTON, Alexander, JAY, John. TheFederalist papers 1787 - 1788. Edição integral. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1999. p. 27.(13) BARBALHO, João. Constituição Federal Brasileira (1891).Ed. fac-similar. Brasília: Senado Federal: Conselho Editorial,2002. p. 267.(14) NUNES, José de Castro. As constituições estaduaes no Brasil.Rio de Janeiro: Edit. Leite Ribeiro, 1922, t. 1, p. 68.(15) ATALIBA, Geraldo. República e constituição. São Paulo:Revista dos Tribunais, 1985. p. 10.(16) BADIA, Juan Fernando. El estado unitário: El federal y Elestado reginal. Madri: Tecnos, 1978, p. 77). Essa decisão estáconsubstanciada nos arts. 1o e 18 da Constituição de 1988 (conferir,a respeito: (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O Estado

federal brasileiro na Constituição de 1988. Revista de DireitoAdministrativo, no 179, p. 1; HORTA, Raul Machado. Tendênciasatuais da federação brasileira. Cadernos de direito constitucional eciência política, no 16, p. 17; e, do mesmo autor: Estruturação dafederação. Revista de Direito Público, no 81, p. 53; VELLOSO, CaioMário. Estado federal e estados federados na Constituição brasileirade 1988: do equilíbrio federativo. Revista de DireitoAdministrativo, no 187, p. 1; MARINHO, Josaphat. Rui Barbosa ea federação. Revista de Informação Legislativa, no 130, p. 40;FAGUNDES, Seabra. Novas perspectivas do federalismo brasileiro.Revista de Direito Administrativo, no 99, p. 1.(17) SILVA, José Afonso. O Estado-membro na ConstituiçãoFederal. RDP 16/15.(18) STF, Pleno, ADI 216/PB, Rel. Min. Celso de Mello; RTJ146/388.(19) Por exemplo, arts. 1o, I a V; 3o, I a IV; 4o, I a X; 2o; 5o, I, II, III,VI, VIII, IX, XI, XII, XX, XXII, XXIII, XXXVI, LIV e LVII; 6o a11; 93, I a XI; 95, I, II e III. In: MACHADO, Horta. Estudos dedireito constitucional. p. 391-392.(20) Por exemplo: arts. 23; 24; 25, 27, § 3o; 75; 96, I, a-f; 96, II, a-d,III; 98, I e II; 125, § 4o; 144, § 4o, 5o e 6o; 145, I, II e III; 155, I, a,b,c, II. In: MACHADO, Horta. Op. cit., p. 392-393) e normas depreordenação (por exemplo: arts. 27; 28; 37, I a XXI, §§ 1o a 6o;39 a 41; 42, §§ 1o a 11; 75; 95, I,II e III; 95, parágrafo; 235, I a XI.In: MACHADO, Horta. Op. cit. p. 393.(21) Conferir: CLÉVE, Clèmerson Merlin. Temas de direitoconstitucional. São Paulo: Acadêmica, 1993. p. 62-63; SILVA, JoséAfonso. O estado-membro na constituição federal; RDP, 16/15. Navigência da Constituição anterior, Paulo Lopo Saraiva, analisandoa correlação entre autonomia dos Estados-membros e Federação,advertia que "a indicação dos governadores dos Estados, anomeação de um Senador - CF, art. 41, § 2o, alterado pela EC no15, de 19-11-1980-, e a designação dos prefeitos das Capitais e deoutras cidades brasileiras atestam a falência do nosso Federalismo ea ascensão de um Unitarismo, despido de qualquer formulaçãojurídica", in Federalismo regional. Op. cit. p. 55.(22) Conferir a respeito: ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes.Competências na Constituição de 1988I. São Paulo: Atlas, 1991.(23) MACHADO HORTA, Raul. Estudos de direitoconstitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1995. p. 366.(24) STF, Pleno, ADI 903/6, Rel. Min. Celso de Mello.25) CF. a respeito: FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Temasde Direito Constitucional Estadual e questões sobre o pactofederativo. São Paulo: Assembléia Legislativa de São Paulo, 2004.p. 160; TAVARES, André Ramos. Temas de DireitoConstitucional estadual e questões sobre o Pacto Federativo. SãoPaulo: Assembléia Legislativa de São Paulo, 2004, p. 166.(26) STF, Pleno, ADI 2581/SP, Rel. Min. Maurício Correa.(27) Em relação a esse tema, consultar importante artigo que analisadetalhadamente a posição dos Juízes da Suprema Corte norte-americana O'Connor e Scalia, em defesa da maior autonomia local -GELFAND, M. David, WERHAN, Keith. Federalism andseparation of powers on a 'conservation' Court: currents and cross-currents from justices O'connor and Scalla. Tulane Law Review.New Orleans, ano 2, v. 64, jun. 1990, p. 1443.

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Andrea Felizolla/Luz

O Bolsa Família foi criado em2003 pelo Governo Federal

como resultado da fusão dosprogramas Auxílio Gás, Bolsa

Escola, Bolsa Alimentação eCartão Alimentação.

Page 99: Digesto Econômico nº 461

99AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

Políticas Sociais,Bolsa Família e

Emprego no BrasilD

ivul

gaçã

o

André Portela SouzaDoutor em Economia pelaUniversidade de Cornell(EUA) e professor da Escolade Economia de São Paulo,da Fundação Getúlio Vargas(EESP/FGV). O autoragradece os excelentescomentários e sugestões deRoberto Macedo.

Resumo

Este artigo analisa os programas de transferência derenda no Brasil, e ao seu final aborda também a questãodo emprego, esta de forma sucinta. As evidênciasempíricas dos programas sociais e do Bolsa Famíliademonstram que esses programas têm sido efetivos emfocalizar as transferências de renda para as famílias maispobres monetariamente, mas não tão efetivo em estimularde maneira significativa a acumulação de capital humanopor parte das novas gerações. De alguma maneira criou-se no Brasil uma tecnologia de políticas públicas dealcance aos mais pobres. O desafio está em aproveitar

essa tecnologia para aumentar a eficácia e a eficiênciadas políticas sociais de modo a eliminar consistentementea pobreza no Brasil. Idealmente, o que se deve buscar épromover as pessoas da condição de beneficiários dosprogramas para sua inserção no mercado de trabalho ecom rendimentos bem maiores, sejam como empregadas,trabalhadoras por conta própria ou empresárias.

Para isso, propõe-se uma série de medidas gerenciaise de desenhos dos programas para atender aeste objetivo, listadas nas duas seções finais do texto.

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100 DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

Introdução

OBrasil possui sistema de política social bastanteamplo e complexo, que envolve diversos atores,instituições e programas. Estabelecido em largamedida a partir da Constituição de 1988 com a

pretensão de atendimento universal às necessidades e aspira-ções da população, esse sistema se coloca em constante tensãocom as limitações orçamentárias, gerenciais e legais do setor pú-blico. Os sistemas públicos previdenciários, de saúde, de edu-cação e de políticas de proteção social alcançaram níveis deatendimento quase universais da população de interesse nas úl-timas duas décadas, mas convivem com baixos níveis de qua-lidade dos serviços e com baixa efi-ciência e produtividade nas provi-sões desses serviços. Ou seja, de algu-ma maneira criou-se no Brasil umatecnologia de políticas públicas de al-cance à maioria da população brasi-leira e, em particular, aos mais pobres,mas que ainda deixa a desejar em suaqualidade e eficiência. O desafio estáem aproveitar essa tecnologia paraaumentar a eficácia e a eficiência daspolíticas sociais de modo a eliminarconsistentemente as múltiplas di-mensões de pobreza no Brasil.

Sem a pretensão de abarcar todasas políticas sociais, este estudo dis-cute as políticas assistenciais de dis-tribuições de renda no Brasil, e tecealgumas considerações sobre polí-ticas de emprego. Para tanto, alémdesta introdução, ele se divide emquatro seções. A Seção 1 apresentaos programas assistenciais no Bra-sil, os seus custos, cobertura e im-pactos distributivos. A Seção 2 ana-lisa mais detidamente o Bolsa Famí-lia (BF) com ênfase em suas capaci-dades de redução de pobreza edesigualdade de renda no curtoprazo e de estímulo à acumulação de capital humano no lon-go prazo. A Seção 3 apresenta propostas de políticas públicasvoltadas para o aprimoramento das políticas assistenciais. Otrabalho conclui com a Seção 4, que apresenta uma breve dis-cussão sobre o emprego no Brasil e propostas de associar po-líticas de redução de pobreza com melhorias de condições deempregabilidade do trabalhador brasileiro.

1. Os Programas Assistenciais deDistribuição de Renda no Brasil

Entende-se por programas assistenciais de distribuição derenda aqueles programas de transferências de renda em que obeneficiário recebe um valor monetário em forma de transfe-rências diretas governamentais sem ter contribuído direta-

mente para financiá-lo ou sem alguma forma de contrapartida.No Brasil, os maiores programas assistenciais de transferênciade renda são o Benefício de Prestação Continuada da lei orgâ-nica da Assistência Social (BPC-LOAS), o benefício da aposen-tadoria rural e o BF.

O BPC é uma transferência de renda sem condicionalidades,direcionadas aos indivíduos inválidos ou idosos de 65 anos deidade ou mais, cuja renda per capita familiar seja inferior a ¼ dosalário mínimo vigente no País. O benefício corresponde aopagamento mensal de um salário mínimo. Antes do BPC haviao programa Renda Mensal Vitalícia (RMV) para idosos e invá-lidos. O BPC foi um direito garantido na Constituição de 1988e implementado a partir de 1995, incorporando o RMV. Hoje a

sua gestão, acompanhamento e ava-liação estão a cargo do Ministério doDesenvolvimento Social (MDS), en-quanto a sua operacionalizaçãocompete ao Instituto Nacional do Se-guro Social (INSS).

A aposentadoria rural é umatransferência de renda para traba-lhadores rurais idosos, instituídadentro da legislação da seguridadesocial brasileira. Anterior à Consti-tuição de 1988, a legislação garantiao pagamento de meio salário míni-mo ao trabalhador rural idoso quefosse chefe de família. A Constitui-ção de 1988 e as Leis Ordinárias8212 e 8213, de 1991, estenderam obenefício para outros membros dafamília, reduziram a idade mínimarequerida de 65 para 60 anos parahomens e de 60 para 55 anos para asmulheres, e aumentaram o valor dobenefício para um salário mínimomensal. Para ter direito a tal bene-fício, basta o indivíduo comprovarque exerceu atividade rural por pe-lo menos 15 anos. Embora o termoseja aposentadoria rural, ela é umbenefício assistencial, pois não se

exige do beneficiário nenhuma contribuição ao sistema deseguridade para ter direito ao benefício. A sua gestão e ope-racionalização também estão a cargo do INSS.

O BF foi criado em 2003 pelo Governo Federal como resul-tado da fusão de quatro programas até então existentes: Au-xílio Gás, Bolsa Escola (BE), Bolsa Alimentação e Cartão Ali-mentação. Diferentemente dos dois anteriores, ele é um pro-grama de transferência direta de renda com condicionalida-des, que beneficia famílias em situação de pobreza (comrenda mensal por pessoa de R$ 70 a R$ 140) e extrema pobreza(com renda mensal por pessoa de até R$ 70). Qualquer famíliana extrema pobreza pode participar do programa, enquantoas famílias em situação de pobreza somente participam doprograma caso tenham algum filho na idade de zero a 17anos. Os valores dos benefícios variam com a condição de po-

Luludi/Luz

O BPC é uma transferência de rendadirecionada aos indivíduos inválidos ou

idosos, cuja renda per capita familiarseja inferior a ¼ do salário mínimo.

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breza e a composição fa-miliar. Desde 2003 o pro-grama passou por mu-danças nos critérios deelegibilidade e de transfe-rência. A Tabela 1 a p re-senta os valores estabele-cidos para estes critériosao longo dos anos.

Atualmente, as famí-lias em extrema pobrezarecebem um valor mensalde R$ 68,00 na forma debenefício básico. Alémdeste benefício básico, asfamílias extremamentepobres têm direito a umbenefício variável no va-lor mensal de R$ 22,00 porcriança ou adolescenteaté 15 anos de idade, pagono máximo até três crian-ças e adolescentes. Porfim, existe também variá-vel vinculada ao adoles-cente, que corresponde aopagamento mensal de R$33,00 por pessoa de idadeentre 16 e 17 anos até duaspessoas. As famílias po-bres (com renda mensalpor pessoa de R$ 70 a R$140), não recebem o bene-fício básico, mas apenasos benefícios variáveis.Todas devem cumprir asseguintes condicionali-dades: manter as criançase adolescentes em idadeescolar frequentando aescola, e cumprir os cui-dados básicos em saúde, que é seguir o calendário de vacina-ção para as crianças entre 0 e 6 anos, e a agenda pré e pós-natalpara as gestantes e mães em amamentação.

1.1. Custos, Cobertura eFocalização dos Programas

Os três programas de transferências de renda envolvemum número grande de beneficiários e utilizam volume con-siderável de recursos. O BPC com o antigo RMV cobrem hojecerca de 3,5 milhões de beneficiários. O valor dos gastos embenefícios no ano de 2009 foi de R$ 18,7 bilhões, o que corres-ponde a 0,6% do PIB de 2009. O programa de aposentadoriarural tinha cerca de 8,1 milhões de beneficiários em dezembrode 2009, e o valor total dos benefícios era de cerca da R$ 3,5bilhões, o que corresponde a 0,1% do PIB de 2009. Por fim, o

BF envolve cerca de 13 milhões de famílias beneficiadas, cujosvalores de benefícios ultrapassam os R$ 10 bilhões por ano, oque corresponde a cerca de 0,4% do PIB.

Dados os critérios de elegibilidade dos programas, elesatingem relativamente mais os mais pobres com um razoá-vel grau de focalização. Por exemplo, o estudo de Medeiroset al. (2007), com base na PNAD de 2006 estimou as incidên-cias dos programas BPC e BF por decis de renda per capitafamiliar, conforme o Gráfico 1. Ele mostra o percentual acu-mulado de indivíduos beneficiários dos programas BPC e BFpor decis dessa renda. Assim, do total dos beneficiários, maisde 80% daqueles dos programas BPC e BF estão nos primei-ros quatro decis da distribuição de renda per capita familiarno Brasil. Em outras palavras, entre todos os beneficiáriosdesses programas, a grande maioria deles se encontra entreos relativamente mais pobres.

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1.2. Impactos Distributivos dos Programas

Muitos estudos apontam para a importância dos progra-mas de transferência de renda para a redução da pobreza comoinsuficiência de renda no Brasil. De fato, se eles têm algumgrau de focalização nos mais pobres e se baseiam em transfe-rências de renda, o impacto sobre a redução da pobreza não de-ve ser desprezível. Por exemplo, estudo de Assunção e Chein(2007) estima que cerca de 300 mil famílias saíram da pobrezaentre 1991 e 1995 devido ao programa de aposentadoria rural,um total equivalente a cerca de 40% das famílias potencial-mente beneficiadas pelo programa.

Outros estudos apontam resultados semelhantes para osdemais programas. A questão aqui não é apenas a de capa-cidade de redução da pobreza via transferência de renda aosmais pobres. É também de eficiência destas políticas para al-cançar o resultado pretendido. Dos três programas de trans-ferências de renda, dois, o BPC e a aposentadoria rural, têmcomo critério de elegibilidade a idade mais avançada dosbeneficiários, envolvem um relativamente menor númerode beneficiários e um valor médio maior dos benefícios. Osvalores dos benefícios desses programas estão vinculadosao salário mínimo e, por conseguinte, aumento deste temimpacto direto nos benefícios dos programas. Por outro la-do, o BF alcança um número maior de beneficiários, tem co-mo um dos critérios de elegibilidade a presença de criançase adolescentes na família, mas transfere um valor médio me-nor por benefício. Como existem relativamente mais crian-ças entre as famílias pobres e relativamente mais pessoasidosas entre as famílias não pobres, do ponto de vista de efi-ciência de um real gasto, o BF parece ser a forma mais indi-cada para políticas de transferência de renda com o intuitode reduzir a pobreza.

2. O Programa Bolsa Família

2.1. O Custo Fiscal do Bolsa Família

A seção anterior apresentou os números para os valores to-tais gastos em benefícios e o total de famílias beneficiárias.Contudo, o custo fiscal de uma política social envolve, alémdos valores das transferências diretas, dois outros tipos de gas-tos. Primeiro, os diretos utilizados para a implementação doprograma (estrutura burocrática, funcionários, equipamen-tos, custeio em geral etc.).

Segundo, a forma de financiamento pode gerar custos adi-cionais. Os programas assistenciais são financiados, em parte,por impostos indiretos, seja através da incidência sobre o custodo trabalho (impostos e contribuições sobre a folha salarial),seja através de impostos indiretos sobre bens de consumo. No-toriamente sabe-se que impostos indiretos provocam inefi-ciência na alocação de recursos, no caso fazendo com que a pro-dução e o consumo fiquem abaixo do que ocorreria na ausênciados impostos. Em particular, emprego e produto deixam de sergerados por conta disso. Este fenômeno é conhecido na litera-tura como perda de peso morto. Ela pode ser de tal magnitudeque mais que compense negativamente o ganho direto de bemestar das transferências mesmas.

Mensurar com precisão a perda de peso morto é muito di-fícil e seu exercício requer uma série de hipóteses sobre ofuncionamento dos mercados. No caso do BF, cerca de 80%do valor do programa é financiado por recursos do PIS/CO-FINS e da CSLL.

Cury et al. (2009) simularam o impacto da expansão do BFentre 2003 e 2005 sobre a pobreza e desigualdade, levando emconta impactos devidos à perda de peso morto gerados pelofinanciamento desta expansão. Entre 2003 e 2005 houve um in-

Andrea Felizolla/Luz

Muitos estudos apontampara a importânciados programas de

transferência de rendapara a redução

da pobreza no Brasil.De fato, se eles

têm algum grau defocalização

nos mais pobres ese baseiam em

transferências de renda,o impacto sobre a

redução da pobreza nãodeve ser desprezível.

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cremento de R$ 6,3 bilhões no programa, dos quais cerca de60% foram financiados por impostos indiretos. Nas simula-ções destes autores, esta expansão do programa na forma co-mo foi financiada acarretou uma queda do PIB de 0,46% (tendocomo base o ano de 2003) e um declínio do nível de emprego de0,48%. Em consequência disso, a queda do nível de pobreza noperíodo seria de 0,84% e não haveria impacto sobre o nível deextrema pobreza. Por outro lado, ainda assim haveria umaqueda da desigualdade em 0,48%.

Embora os resultados de Cury et al. possam ser sensíveis àsespecificações do modelo adotado, eles levantam um pontoimportante na discussão dos custos e benefícios do BF. Progra-mas assistenciais precisam ser financiados, e a forma de fazê-lopode gerar impactos negativos que mitigam os efeitos sobreresultados que são objetivos dos programas.

2.2. Impactos de Curto PrazoSobre Pobreza e Desigualdade

O primeiro objetivo dos programas condicionais detransferências de renda é reduzir a incidência da pobrezacomo insuficiência de renda. Dado o alto grau de focaliza-ção do BF entre os mais pobres, este objetivo parece estar ra-zoavelmente alcançado. De fato, embora difiram em suasmagnitudes, muitos estudos mostram os impactos positi-vos que o programa tem sobre as reduções de pobreza e de-sigualdade. Por exemplo, Barros et al. (2006a, 2006b) anali-saram o impacto do BF sobre a redução da desigualdade derenda observada entre 2001 e 2005. Neste período, o coefi-ciente de desigualdade de Gini aplicado à renda per capitafamiliar, decresceu 4,5%. Deste total, metade da queda foidevida às mudanças observadas na distribuição da rendanão trabalho. Destes, as aposentadorias e pensões contri-

buíram 26% com a queda, o BF com 12% e o BPC com 11%.Assim, o fator preponderante foi a expansão destes progra-mas. Como o BF foi o que mais se expandiu focalizadamenteentre o mais pobres, este parece ter sido o programa mais efi-ciente para a redução da desigualdade.

Por sua vez, Soares e Sátyro (2009) calculam que BF con-tribuiu para reduzir a proporção de pobres e a intensidadeda pobreza. Por intensidade ou hiato da pobreza se entendea diferença em termos percentuais da renda média dos po-bres em relação ao valor da linha de pobreza. Através deexercícios de simulação com dados de pesquisas domicilia-res de 2006 esses autores concluem que a presença do BF re-duz a proporção de pobres de 21,7% para 20%, uma reduçãode 8% de pobres. Já a intensidade da pobreza passa de 9,4%para 7,8%. Ou seja, a renda média dos pobres passa a ser92,2% da linha da pobreza, o que corresponde a uma redu-ção de 18% do hiato. O fato de o BF ter um impacto relativa-mente maior sobre a intensidade da pobreza do que sobre aproporção dos pobres se deve à combinação de uma boa fo-calização entre os pobres com um valor da transferênciamais baixo que outros programas.

2.3. Impactos de Longo Prazo na Formaçãodo Capital Humano: Educação e Saúde

O segundo objetivo dos programas de transferências con-dicionais de renda, e a sua novidade, é impactar a formaçãodo capital humano das futuras gerações através de condi-cionalidades impostas sobre o comportamento das famílias.No caso do BF, a transferência é condicional à frequência re-gular à escola das crianças e jovens de 6 a 17 anos de idade eàs visitas das crianças de 0 a 5 anos de idade a postos de saú-de e vacinação.

Jarbas Oliveira/Folhapress

Embora os primeirosprogramas detransferências

condicionais no País, oBolsa Escola e o RendaMínima, existam desde

1995, não háinformações disponíveis

para saber o estadoatual dos beneficiados

nos primeiros anosdo programa e assim

avaliar impactosde longo prazo

sobre alguma dimensãode capital.

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104 DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

Embora os primeiros programas de transferências condi-cionais no País, o Bolsa Escola e o Renda Mínima, existamdesde 1995, não há informações disponíveis para saber o es-tado atual dos beneficiados nos primeiros anos do progra-ma e assim avaliar impactos de longo prazo sobre algumadimensão de capital. Desta maneira, os estudos se baseiamem informações contemporâneas que indiquem de algumaforma trajetórias de melhorias potenciais na formação docapital humano e/ou fazem simulações que extrapolem es-tas trajetórias. Uma série de estudos de impacto dos progra-mas de transferências condicionais no Brasil conclui que asevidências sobre o efeito na acumulação de capital são mui-to tênues ou de pouca magnitude.

2.3.1. Educação

Os estudos sobre o impacto do BF sobre a educação apresen-tam em geral efeitos positivos, embora marginais. Por exem-plo, Souza (2006) utiliza os dados do Censo 2000 para medir osimpactos das transferências do antigo BE, então atuante, sobrea probabilidade de o indivíduo frequentar a escola e a proba-bilidade de estar defasado na relação idade-série. Já naquelaépoca se observava que os beneficiários do BE tinham umaprobabilidade maior de frequentar a escola em comparaçãoaos não beneficiários, bem como uma menor probabilidade deestarem atrasados (ao menos entre os mais jovens). Embora es-tas diferenças fossem favoráveis aos recipientes do programa,o efeito era marginalmente superior, pois mesmo entre ascrianças em famílias pobres a probabilidade de frequentar aescola é alta, sendo em média 95% entre os indivíduos de 7 a 14anos de idade. O mesmo vale para atraso escolar.

Tomando estes resultados como parâmetros estáveis, Souza(2006) faz a seguinte simulação: caso uma criança recebesse a

transferência mensal do BE nos valores do ano 2000 por oitoanos consecutivos conforme a regra da época (7 a 14 anos),quantos anos de escolaridade o indivíduo teria a mais em com-paração a um não recipiente? Aos 15 anos de idade o benefi-ciário teria 0,2 anos de escolaridade a mais. Um resultado po-sitivo mas de pequena magnitude.

Outros trabalhos mais recentes apresentam resultados emrelação à freqüência e atraso escolar (p.ex., Ferro e Kassouf(2003); Ferro e Nicolella (2007)). Inexistem para o Brasil estu-dos sobre o impacto no aprendizado do aluno.

2.3.2. Saúde

O outro conjunto de variáveis que estão associados à acu-mulação do capital humano dos adultos são os indicadores an-tropométricos das crianças e jovens. Em geral, maiores valoresnas relações altura/idade, peso/altura e altura/ peso quandocriança estão associados a maiores valores destes indicadoresquando adultos e a maiores salários. Intervenções realizadasmais cedo na vida das pessoas podem ter efeitos duradouros,principalmente no que se refere a condições gerais de saúde enutrição. Tanto o aumento da renda familiar via transferênciasquanto a imposição das condicionalidades de visitas aos pos-tos de saúde e vacinação regular podem impactar positiva-mente os indicadores de saúde das crianças. Contudo, as ava-liações existentes tanto do BE quanto do BF não encontramefeitos positivos sobre esses indicadores. Por exemplo, Macha-do e Souza (2008) estimam o impacto do BE sobre indicadoresantropométricos de crianças e adolescentes para o Brasil e paraa região nordeste. Em geral, os efeitos não são significativos.Andrade, Chein e Ribas (2006a e 2006b), utilizando as informa-ções dos cadastros do BF encontram resultados semelhantespara nutrição e imunização.

Celso Pupo/Folhapress

Inexistem para o Brasilestudos sobre o impacto

dos programas detransferências de renda

no aprendizado doaluno. Na foto, o

presidente Lula participada cerimônia de

formatura dos alunosdo Plano Setorial

de Qualificação dosBeneficiários

do Bolsa Família, emsetembro de 2009,no Maracanãzinho,

Rio de Janeiro.

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105AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

2.4. Impactos de Segunda Ordem: Trabalho Infantil,Fecundidade e Oferta de Trabalho

Embora o BF tenha como objetivos o combate a pobreza nocurto prazo via transferências de renda aos mais pobres e o in-centivo à acumulação de capital humano das gerações adultasfuturas via condicionalidades de frequência a escola e visitas apostos de saúde, o programa pode ter impactos sobre outrosresultados que estão relacionados com a renda familiar e a alo-cação do tempo das crianças e jovens. Esta seção apresenta osresultados das pesquisas que tratam dos impactos dos progra-mas de transferências de renda no Brasil sobre a incidência dotrabalho infantil, a fecundidade das mulheres e a oferta de tra-balho dos adultos.

2.4.1. Trabalho Infantil

Os estudos que avaliam o impacto dos programas de trans-ferências condicionais de renda no Brasil sobre o trabalho in-fantil concluem, em geral, que eles têm pouco ou mesmo ne-nhum efeito sobre a incidência do trabalho infantil. Em umdos primeiros estudos sobre o tema, Cardoso e Souza (2009)analisam o efeito do BE sobre o trabalho infantil dos indiví-duos de 10 a 15 anos de idade. Eles constataram que embora oBE aumente a probabilidade de o indivíduo frequentar a es-cola, ele não afeta a probabilidade dele trabalhar no mercadode trabalho. Na verdade, o BE provoca uma realocação detempo dos jovens entre diversas atividades. O estudo mostraque de um lado ocorre um aumento na proporção dos indi-víduos que estudam e trabalham e diminuem a proporçãodos indivíduos que somente trabalham ou que não estudamnem trabalham. Este efeito é mais acentuado entre as meni-nas. Os resultados parecem indicar que o programa faz com

que meninos e meninas que somente trabalham ou não estãona escola nem no mercado de trabalho (possivelmente dedi-cam seu tempo em atividades de produção doméstica), pas-sam a frequentar a escola e trabalhar. É por isso que em médiaa incidência do trabalho infantil permanece inalterada. Istoocorre porque o tempo na escola é de apenas 4 horas diárias, oque permite a conciliação das duas atividades. Estudos maisrecentes apontam efeitos semelhantes ou algum impacto ne-gativo, mas pequeno, sobre o trabalho infantil, p.ex. Ferro eKassouf (2003); Ferro e Nicolella (2007)).

2.4.2. Fecundidade

Um dos critérios para definir o valor da transferência doBF é o número de filhos que a família elegível tem. O valor datransferência aumenta em conformidade com o número defilhos até o máximo de três filhos. Este desenho pode gerarincentivos para que a família elegível e com menos de trêsfilhos queira ter mais filhos. Obviamente que para estar noprograma ela tem que levá-los à escola, o que aumenta o cus-to do investimento nos filhos o que, portanto, pode estimu-lar as famílias a não terem mais filhos. Assim, o desenho doBF cria incentivos favoráveis e desfavoráveis para o aumen-to do tamanho da família.

Rocha (2009) apresenta estimativas do impacto do BF sobrea fecundidade das mães em famílias do programa. Comparafamílias potencialmente elegíveis com dois filhos e famíliaspotencialmente elegíveis com três filhos em períodos antes edepois da implementação do BF. A ideia é que famílias com trêsfilhos não têm incentivos monetários adicionais do programapara ter mais filhos enquanto famílias com dois filhos teriamesse incentivo. Assim se tivesse efeitos significativos, haveriamaior probabilidade de as famílias de dois filhos terem um ter-

Sergio Pedreira/AE

Os estudos que avaliam oimpacto dos programas

de transferênciascondicionais de renda noBrasil sobre o trabalho

infantil concluem,em geral, que eles têm

pouco ou mesmo nenhumefeito sobre a incidência

do trabalho infantil.Embora o BE aumentea probabilidade de oindivíduo frequentar

a escola, ele nãoafeta a probabilidade

dele trabalhar.

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ceiro filho depois do advento do Bolsa Família em comparaçãoàs famílias com três filhos. O autor não encontrou qualquer di-ferença nas mudanças das probabilidades dos dois tipos de fa-mílias terem um filho adicional, o que sugere que, ao menospara essas famílias e nesse período, o BF não induz as famíliasa terem mais filhos.

2.4.3. Oferta de Trabalho dos Adultos

Os programas de transferências condicionais de renda ge-ram incentivos em diferentes direções no que concerne aoferta de trabalho dos adultos em famílias beneficiárias. Deum lado, a transferência de renda em si gera um efeito rendaque, se lazer for um bem normal, induz os indivíduos a re-duzir a oferta de trabalho. Por outro lado, a imposição dacondicionalidade de frequência a escola dos filhos pode fa-zer com que os adultos tenham que substituir as tarefas dosfilhos em casa ou no mercado de trabalho. Caso adultos e fi-lhos sejam substitutos na produção doméstica, a condicio-nalidade induz a uma redução da oferta de trabalho dosadultos. Por outro lado, caso eles sejam substitutos no mer-cado de trabalho, a condicionalidade pode induzir a umamaior oferta de trabalho dos adultos. Dessa maneira o resul-tado líquido é uma questão empírica.

Já existem alguns trabalhos no Brasil sobre o impacto do BFsobre a oferta de trabalho dos adultos. Os resultados são va-riados, mas em geral não existem impactos significativos ousão levemente negativos.

Os resultados da avaliação de impacto do BF mostraram umefeito positivo do programa sobre a taxa de participação nomercado de trabalho para ambos os gêneros, sobretudo para asmulheres. Já Ferro e Nicollela (2007) estimaram que o efeito deprogramas de transferência vinculados à educação dos filhos

teve impacto insignificante na taxa de participação dos adul-tos e um efeito negativo e significativo nas horas trabalhadasdas mulheres domiciliadas em áreas rurais.

Teixeira (2008), por outro lado, mostrou que o BF provoca re-dução de pequena magnitude, embora significativa em termosestatísticos, nas horas trabalhadas. Tal reação, contudo, apresen-ta impactos variados entre os diversos grupos demográficos,sendo que as mulheres são as mais sensíveis ao incremento derenda proporcionado pelo BF. Tavares (2008) analisou a oferta detrabalho das mães pertencentes às famílias beneficiadas pelo BFe obteve um resultado negativo para o efeito renda, ou seja, háuma redução das horas de trabalho em razão do aumento da ren-da. No entanto, tal efeito é superado por um efeito substituiçãopositivo, ou seja, há aumento das horas trabalhadas das mães pa-ra compensar a redução da oferta de trabalho dos filhos.

Fogel e Barros (2008) não obtiveram efeitos significativosdos programas de transferência condicional de renda sobre ataxa de participação dos adultos, tanto estatisticamente quan-to em termos de magnitude. Em relação à oferta de horas, osautores encontram um pequeno efeito negativo, porém nãosignificante estatisticamente, para as mulheres pertencentesaos estratos mais baixos de renda familiar per capita.

Pedrozo (2010) encontrou algum efeito negativo sobre aoferta de trabalho dos adultos, principalmente das mulheres.O autor compara famílias logo abaixo da linha de corte da ren-da per capita familiar que define a participação do programacom famílias logo acima dela. Ele mostra que as famílias, prin-cipalmente as mulheres, logo abaixo da linha de corte do BF em2006 trabalham menos que os adultos em famílias logo acimada linha de corte. O autor também apresenta resultados eco-nométricos onde demais variáveis de controle são utilizadas eencontram um efeito negativo da participação do BF sobre aoferta de trabalho dos adultos.

Tavares (2008)analisou a oferta detrabalho das mãespertencentes às famíliasbeneficiadas peloBolsa Família e obteveum resultado negativopara o efeito renda, ouseja, há uma reduçãodas horas de trabalhoem razão do aumentoda renda.

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107AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

Em síntese, as evidências sugerem que o BF reduz a oferta detrabalho dos adultos, principalmente entre as mulheres. Comoparte delas são as mães de filhos em primeira infância, esseefeito pode ser positivo para o desenvolvimento saudável dacriança. Mais problemático é o impacto sobre a oferta de tra-balho dos demais adultos do domicílio. Isto pode ter repercus-sões negativas sobre o funcionamento do mercado de trabalhoe bem estar de longo prazo das e famílias.

3. Os Programas Sociais em Geral e oBolsa Família daqui Para Frente – Propostas

Com base nessas evidências empíricas dos programas so-ciais e do BF, pode-se concluir que o programa tem sido efe-tivo em focalizar as transferências de renda para as famíliasmais pobres monetariamente mas, por outro lado, não tãoefetivo em estimular de maneira significativa a acumulaçãode capital humano das novas gerações. Talvez o maior mé-rito do programa até agora tenha sido fazer com que as po-líticas sociais de transferências cheguem aos mais pobres.De alguma maneira criou-se no Brasil uma tecnologia de po-

líticas públicas de alcance aos mais pobres embora, obvia-mente, com variações regionais. O desafio está em aprovei-tar esta tecnologia para aumentar a eficácia e a eficiência daspolíticas sociais de modo a eliminar consistentemente a po-breza no Brasil.

Para isso, antes de tudo é importante reconhecer que a po-breza é um fenômeno multidimensional. Em uma perspecti-va mais abrangente, pobreza pode ser definida como priva-ção de capacidades. A privação de capacidades envolve umasérie de restrições que podem significar não ter renda mone-tária suficiente para obter bens e serviços desejados, não tercapacidade física para desenvolver certas atividades, não teracesso à educação e saúde, não ter livre acesso à troca de bense serviços, não ter direitos civis e políticos respeitados etc.Vista sob o ângulo de privação de capacidades, a pobreza pas-sa a envolver múltiplas dimensões além da simples carênciade renda monetária (Sen, 1981; 1984).

Tendo isto em mente, propõem-se dois conjuntos de ações.O primeiro, voltado para os aspectos de implementação e ges-tão das políticas sociais, e o segundo para o aprimoramento eaperfeiçoamento do desenho dos programas atuais.

Criou-se no Brasil uma tecnologia de políticas públicas de alcanceaos mais pobres embora, obviamente, com variações regionais.

O desafio está em aproveitar esta tecnologia para aumentar a eficáciae a eficiência das políticas sociais, de modo a eliminar a pobreza.

Leonardo Wen/Folhapress

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108 DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

Jefferson Coppola/Folhapress

Para haver um sistemaunificado de proteção

social é necessárioestabelecer quais são

os seus objetivos emetas, como tambémquais os instrumentosde políticas públicasa serem utilizados.

A formulação de metasimplica, de saída, a

criação de um conjuntode indicadores sociaiscapazes de mensurar

estas metas.

Ações de Implementação e Gestão

Além dos programas de transferências de renda como o BF eo BPC, existem programas sociais nos estados e municípios,bem como de programas em diversos ministérios como Educa-ção, Saúde e Trabalho que atuam diretamente no combate a al-guma dimensão da pobreza. Esses programas são descentrali-zados e descoordenados e em muitos casos envolvem sobrepo-sições. Talvez não seja mais o caso de criar novos programas oureformular inteiramente programas existentes. Talvez seja maisimportante saber que programas de fato alcançam seus objeti-vos, quais não são efetivos e organizá-los e geri-los de maneiracoordenada a fim de aumentar sua efetividade e eficácia. Pode-se buscar um sistema coordenado de proteção social aos moldesdo Sistema Chile Solidário onde se institucionalizou a interse-torialidade e integralidade dos programas sociais. Seu progra-ma de transferências de renda, o Puente, é a porta de entrada aosistema mais geral de proteção social (Draibe, 2010).

Para haver um sistema unificado de proteção social é neces-sário estabelecer quais são os seus objetivos e metas como tam-bém quais os instrumentos de políticas públicas a serem utiliza-dos. A formulação de metas implica de saída a criação de um con-junto de indicadores sociais capazes de mensurar quantitativa-mente estas metas, daí a primeira proposta de política pública.

Proposta Um: Formulação deMetas de Redução da Pobreza

A formulação de políticas de redução de pobreza deve terobjetivos claros e estratégias de implementação que devem serconstantemente avaliadas e revistas e, para isso, a construçãode indicadores sociais é fundamental.

A fim de se formular uma política de redução da pobreza, é

possível selecionar e construir um conjunto de indicadores so-ciais que servem tanto como metas como instrumento de aferiçãoe avaliação das políticas adotadas. Muitos indicadores já são ela-borados por diversos institutos brasileiros e outros poderiam sercriados, dependendo das necessidades e dos objetivos. O impor-tante é criar um conjunto de metas de redução de pobreza que tor-nem as políticas nacionais e locais consistentes. Obviamente osindicadores selecionados devem atender a alguns princípios quesão aceitos e compartilhados por todos.

Atkinson et al. (2002) propõem os seguintes critérios e prin-cípios para a construção de indicadores de inclusão social naComunidade Europeia (Atkinson et al., 2002, p. 190), os quaisparecem ser uma boa lista para organizar o debate brasileiro.

Para o conjunto dos indicadores sociais, os autores estabe-lecem três princípios: (i) o conjunto de indicadores deve ser ba-lanceado pelas diferentes dimensões; (ii) os indicadores de-vem ser mutuamente consistentes e o peso de um indicadorparticular no conjunto deve respeitar alguma proporcionali-dade; (iii) o conjunto de indicadores deve ser transparente eacessível a todos os cidadãos.

Os princípios para cada indicador são: (i) um indicador de-ve representar a essência do problema e ter uma interpretaçãonormativa clara e reconhecida por todos; (ii) deve ser robusto eestatisticamente válido; (iii) deve ser sensível para captar in-tervenções de políticas públicas, mas não sujeito à manipula-ção; (iv) deve ser mensurável e comparável entre as diferentesregiões e, na medida do possível, comparável com os padrõesinternacionais das Nações Unidas; (v) deve ser suscetível derevisão; (vi) a mensuração de um indicador não deve impormuito custo sobre os cidadãos e os estados e municípios.

Ademais, os autores recomendam uma estrutura de indica-dores sociais em três níveis. O primeiro consiste num númerorestrito de indicadores líderes e amplos que reflitam os elemen-

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sileiros, das quais 15 milhões têm renda per capita familiar mensaldeclarada inferior a R$ 120. Para se ter uma ideia do alcance destecadastro, estima-se pela PNAD (2006) que cerca de 10 milhões defamílias tenham renda per capita inferior a R$ 120.

Os municípios são responsáveis pelo cadastramento, peloacompanhamento das famílias e pela manutenção da base dedados. Eles devem planejar e organizar a coleta de dados, com-pilar e atualizar as informações e remetê-las ao Governo Fede-ral. Compete ao Governo Federal a organização e supervisãodo sistema, bem como o pagamento direto das transferênciasparas as famílias via a Caixa Econômica Federal.

O Cadastro Único levanta várias informações sobre as con-dições de vida destas famílias pobres. Coletam-se informaçõessobre diversas dimensões, tais como: (i) vulnerabilidade (com-posição demográfica, presença de mulheres gestantes e ama-mentado, presença de indivíduos com necessidades especiais);(ii) educação (analfabetismo e escolaridade); (iii) mercado detrabalho (participação no mercado de trabalho, rendimento dotrabalho, formalização); (iv) disponibilidade de recursos (ren-dimento e despesa familiar per capita); (v) bem estar infantil(trabalho infantil, frequência e progressão escolar); e (vi) condi-ções habitacionais (acesso à água, esgoto e energia elétrica).

Como demonstra Barros et al. (2009), dado o alcance do Ca-dastro Único que praticamente o torna um censo demográficodas famílias pobres brasileiras e dada a abrangência das infor-mações obtidas, ele pode ser utilizado de várias maneiras demodo a potencializar o combate à pobreza no Brasil. Pode ser-vir não somente para a seleção de famílias beneficiadas peloBF, como também pode servir para selecionar beneficiários pa-ra outros programas sociais, para definir cotas e graus de fo-calização de programas sociais, para elaboração de diagnósti-cos e adequação de intervenções sociais sejam a níveis locais,estaduais ou nacionais, entre outros.

tos considerados mais importantes no combate à exclusão social.O segundo compreende indicadores que descrevam outras di-mensões do problema e que sirvam de apoio aos indicadores lí-deres. O terceiro nível, por fim, consiste em indicadores consi-derados relevantes pelos estados, regiões ou municípios que en-fatizem aspectos regionais específicos e que ajudem a interpretaros indicadores dos níveis superiores.

Assim, seria possível pensar numa política de combate à po-breza na qual os diversos aspectos do problema seriam refletidosnesse conjunto de indicadores. A política social estabeleceria me-tas abertas a serem perseguidas e conhecidas por todos. Tais me-tas seriam diferenciadas por esses três níveis e refletiriam as es-pecificidades e heterogeneidades regionais. Essa política seriaperiodicamente avaliada num processo público.

Obviamente a construção de um sistema público de metascom indicadores sociais requer bases de informações capazes degerar estes indicadores. Por sorte, já existem. Além dos órgãos tra-dicionais de coletas de informações como o IBGE e SEADE, ospróprios ministérios e órgãos públicos levantam informações so-bre seus beneficiários e famílias. Em particular, o Cadastro Únicopara Programas Sociais do Ministério do Desenvolvimento So-cial é uma fonte valiosa de informações para tais objetivos.

Proposta Dois: Utilização do Cadastro Único eUnificação com Demais Cadastros de ProgramasSociais para Elaboração de Indicadores Sociais,Permitir a Integração de Políticas Sociais e aAvaliação do seu Impacto

O Cadastro Único para Programas Sociais do MDS cadastra eatualiza informações das famílias pobres brasileiras com o obje-tivo de selecionar os beneficiários do BF. Ele conta atualmentecom cerca de 16 milhões de famílias em todos os municípios bra-

Os municípiossão responsáveispelo cadastramento,acompanhamentodas famílias e pelamanutenção da basede dados. Elesdevem planejar eorganizar a coletade dados, compilar eatualizar asinformações eremetê-las aoGoverno Federal.

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Se se conseguir a unificação do Cadastro Único entre os ní-veis federais, estaduais e municipais, bem como com outrasbases de dados de programas de políticas públicas como, porexemplo, as informações por crianças e jovens dos censos es-colares do Ministério da Educação, dos programas de treina-mento e qualificação do Ministério do Trabalho etc., obtem-secom isto o primeiro passo indispensável para uma verdadeiraintegração das políticas sociais do país. Com estas informa-ções, podem-se construir os indicadores sociais em seus trêsníveis de abrangência e com base neles estabelecer metas deredução de pobreza em suas diferentes dimensões.

Uma das vantagens desta unificação e ampliação do Cadas-tro Único é que se tem com ele um diagnóstico localizado dasdemandas e carências sociais e a possibilidade de avaliar as in-tervenções sociais e o desempenho das administrações locais.É importante enfatizar aqui o papel das avaliações. Antes dejulgar normativamente uma política, a avaliação busca anali-sar sua efetividade (ela alcança o resultado desejado?) e a suaeficiência (poder-se-ia obter o mesmo resultado com menorcusto?). Em outras palavras, a avaliação significa aprendercom os próprios erros e acertos. A fim de organizar o cadastroúnico e elaborar avaliações dos programas socais com base nasinformações cadastrais numa escala grande como essa, é im-portante haver alguma instituição capaz de gerir tudo isso demaneira transparente e eficaz.

Proposta Três: Instituição de AgênciaIndependente de Gestão do Cadastro Únicoe de Avaliação dos Programas Sociais

Existem ainda poucas avaliações de políticas públicas noBrasil. Muitos programas são implementados nacional oulocalmente sem que se saiba de seu verdadeiro alcance e im-pacto. A unificação do Cadastro Único permite que muitosprogramas sociais sejam factíveis de avaliação. Obviamen-te quem implementa uma política não deve avaliá-la por na-turais conflitos de interesse. Propõe-se aqui a instituciona-lização de uma gestão dos programas sociais aos moldes das

agências reguladoras onde quem avalia as políticas não asimplementa. Esta agência seria responsável pela gestão econfiabilidade do Cadastro Único e avaliações dos progra-mas implementados pelos formuladores de políticas públi-cas nacionais, estaduais ou locais.

Proposta Quatro: Redução ou Eliminaçãode Impostos sobre Alimentos e outros Bense Serviços de Primeira Necessidade

A forma de financiamento dos programas sociais se ba-seia em recursos tributários sobre a folha salarial ou impos-tos indiretos que têm importantes consequências sobre aperda de produto e emprego e geração de informalidade. Sepor um lado fazem-se programas de proteção social para re-duzir as desigualdades, por outro esses mesmos programassão financiados de maneira que afetam negativamente osobjetivos dos programas. Um maior cuidado na elaboraçãodesses programas levaria em conta formas de financiamen-to que não produzam efeitos indiretos negativos muito sig-nificativos. Em vez de expansão dos programas via aumen-to dos benefícios, talvez mais efetivo fosse estabelecer umprograma de eliminação ou redução dos impostos sobre osbens alimentares e de primeiras necessidades. Não somenteesses bens ficariam mais baratos como também aumenta-riam as quantidades produzidas e consumidas.

Ações de Aprimoramento dos Programas Atuais

Estando bem informado com as avaliações dos programassociais, pode-se estabelecer novos desenhos e reformulaçõesde programas específicos. No caso do nosso programa socialde maior alcance, o BF, as avaliações existentes sugerem queele não parece cumprir o objetivo maior de ampliação do in-vestimento em capital humano das crianças e jovens pobres.Existem espaços e dimensões no desenho do programa que po-dem potencializar estes efeitos. Esta seção trata de algumaspropostas para isso. A primeira proposta trata de criação denovos incentivos para o aluno estudar.

Proposta Cinco: Adicional por Ano de EstudoCompletado em Forma de Poupança Acumulada

Sabe-se que a maioria dos alunos de 6 a 15 anos de idade fre-quenta a escola. Mesmo entre as crianças e jovens em famíliasmais vulneráveis, cerca de 95% deles tem acesso à escola. Por-tanto, a condicionalidade de frequência à escola imposta peloBF hoje é redundante. Os problemas da educação básica atual-mente são dois: a baixa qualidade da educação e a relativa bai-xa frequência ao ensino médio. Para criar incentivos aos estu-dantes de famílias vulneráveis para estudar e completar o en-sino médio propõe-se aqui criar um adicional no valor datransferência paga ao aluno em função da aprovação por anode estudo. Contudo esta transferência não seria paga imedia-tamente. Criar-se-ia uma conta poupança para este aluno (a ri-gor um crédito) cujo valor se acumularia ao longo dos anos es-colares do aluno e que somente tenha direito a retirada do valor

Leonardo Rodrigues/Hype

A redução dos impostos sobre alimentosde primeiras necessidades talvez fosse mais

efetivo do que programas sociais.

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quando completar o ensino médio. Desenho semelhante existeno México com o Programa Oportunidades com resultadosbastante satisfatórios.

Proposta Seis: Maiores Recursos aosMunicípios que Apresentarem MaioresGanhos nos Desempenhos Médiosdos Alunos Menos Favorecidos

A seleção e monitoramento das famílias beneficiárias do BFsão feitos pelos municípios mas a elaboração do programa,gestão e transferência de recursos são feitas diretamente peloGoverno Federal. A fim de incentivar os municípios a desem-penharem bem as suas atribuições na gestão do BF, o governofederal criou em 2006 o IGD (Índice de Gestão Descentraliza-da) que mede o desempenho dos municípios na gestão do pro-grama e do Cadastro Único, levando em conta a qualidade dosregistros cadastrais (validade e atualização) e acompanha-mento das condicionalidades de educação e saúde. Com baseneste indicador, os municípios que apresentam bom desempe-nho recebem mensalmente recursos para investir em ativida-des voltadas à gestão do BF. Propõe-se aqui a utilização de re-cursos por parte dos municípios para a melhoria da qualidadeda educação pública municipal onde o critério de distribuiçãodos recursos dependa dos ganhos médios do aprendizado dosalunos beneficiários do BF. A idéia é atrelar os incentivos dosalunos aos incentivos dos gestores municipais em melhorar aqualidade da educação municipal. Assim, não somente os mu-nicípios ganham mais recursos se estão gerindo melhor a im-

plementação do BF, mas também se os resultados finais dos be-neficiários apresentam maiores mudanças positivas.

4. A Questão do Emprego e outras Propostas

Idealmente, o que se deve buscar é promover as pessoas dacondição de beneficiários do BF para sua inserção no mercadode trabalho e com rendimentos bem maiores, sejam como em-pregadas, trabalhadoras por conta-própria ou empresárias. Es-ta seção trata dos caminhos dessa promoção, dentro da temáticageral do emprego e cobrindo tanto esses bolsistas como outroscarentes de oportunidades de trabalho. Na questão do emprego,as propostas cinco e seis elencadas acima se referem a políticasque potencializem a melhor inserção no mercado de trabalho defuturos trabalhadores emergentes de famílias beneficiadas como BF. Esta seção trata de políticas de emprego em geral.

Taxa de investimento e emprego

Do ponto de vista macroeconômico, o que mais contribui pa-ra a geração de empregos é a aceleração da taxa de crescimentoda economia. Quanto ao que eleva essa taxa, o fator mais impor-tante é o investimento, cujo efeito sobre o emprego e o cresci-mento também depende do aumento de produtividade.

Os Gráficos 2.1 e 2.2, cedidos por Roberto Macedo, mos-tram que há uma nítida correlação inversa entre investimentoe desemprego, apesar de todas as oscilações que a economiateve no período 1992-2009. Esses gráficos abrangem os perío-dos 1991-2002 e 2002-2009 e foram separados porque a taxa de

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desemprego passou a ser medida de modo diferente em 2002.Por conta dessa data, a separação acaba distinguindo os perío-dos de outra forma: no primeiro o investimento cai e o desem-prego aumenta; no segundo, ocorre o contrário.

Ou seja, no atacado a questão do emprego precisa ser tra-tada com a ampliação da taxa de investimentos da economia,cabendo assim uma proposta nesse sentido.

Proposta Sete: Ampliar sensivelmentea taxa de investimento da economia,com o objetivo de acelerar o crescimentodo PIB e a criação de empregos.

Fatos Estilizados: A evolução dos indicadoresdo mercado de trabalho

Taxa de Participação

A oferta de trabalho no Brasil sofreu uma mudança quali-tativa ao longo dos últimos anos. Desde o início dos anos 90 ataxa de participação da população em idade ativa (15 anos oumais) tem crescido ao longo dos anos alcançando cerca de 63%nos anos recentes. Este movimento se deveu principalmente àmaior inserção das mulheres no mercado de trabalho. Adicio-nalmente, acompanhando as mudanças demográficas da po-pulação brasileira, a PEA tem ficado mais adulta (Gr á f i c o s3.1 e 3.2), e mais escolarizada.

Desemprego

Por sua vez, a taxa de desemprego no Brasil cresceu nosanos 90 e caiu nos anos 2000. Em 1992, era de cerca de 8% dototal da população economicamente ativa. Em 2001 atingiu12%, e em 2007 voltou ao nível do início dos anos 90, cerca de

7%. A maior incidência do desemprego ocorre entre os in-divíduos de escolaridade mediana (nível médio) e entre osmais jovens (Gráficos 4.1 e 4.2).

Embora estes fatos correspondam a um período recente,ocorreu uma acentuação deles ainda mais recentemente. Ouseja, um aumento do desemprego entre os indivíduos de es-colaridade média e os mais jovens. Estes movimentos não es-tão dissociados. São exatamente os mais jovens que se tornammais escolarizados. Cruzando estas variáveis em outros es-tudos percebe-se que o desemprego se deve mais ao fato dapessoa ser jovem do que ser mais escolarizada.

Ocupação e Salários Relativos

Embora o nível da taxa de ocupação tenha voltado àquele doinício dos anos 90, ocorreu uma mudança qualitativa na suacomposição. Os ocupados se tornaram relativamente mais es-colarizados. Entre 1992 e 2008 ocorreu uma redução da parti-cipação relativa dos menos escolarizados e um aumento daparticipação relativa dos mais escolarizados. Concomitante-mente, ocorreu um aumento do salário relativo dos mais es-colarizados (Gráficos 5.1 e 5.2).

Uma Interpretação

Que sentido dar a estes movimentos conjuntamente? Se le-varmos em conta o que vem ocorrendo nos países mais indus-trializados e os resultados de estudos para o Brasil, esses mo-vimentos podem ser explicados por mudanças estruturais daeconomia. Devido a mudanças tecnológicas na produção querequerem cada vez mais trabalhadores mais qualificados,ocorreu no Brasil e no mundo um aumento da demanda re-lativa por trabalhadores desse tipo. O Brasil respondeu a istocom um aumento da oferta relativa desses trabalhadores

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(mesmo os mais jovens). Contudo, esse aumento não é sufi-ciente para acompanhar o aumento da demanda, refletindoeste descompasso no aumento do salário relativo dos maisqualificados. Assim como nos EUA Claudia Goldin eLawrence Katz (2008) explicam as mudanças no mercado detrabalho de lá como uma corrida entre educação e tecnologia,esta imagem cabe razoavelmente bem no nosso caso, com osdevidos ajustes às nossas particularidades. Entre elas se des-tacam as distorções geradas pelo alto custo da folha salarial e

pela política de subsídios ao capital. Assim, para atacar aomesmo tempo os problemas dos desincentivos ao trabalho eda baixa qualificação da mão de obra propõe-se associar aoBF programas de qualificação.

Proposta Oito: Extensão e Manutençãodo Benefício a Trabalhadores FormaisCondicionadas a Programas de Educaçãoe de Treinamento

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Da maneira com está desenhado o programa atualmente, nãooferece incentivo para trabalhador se formalizar como empre-gado. Como o programa utiliza a informação da carteira assina-da para fazer o monitoramento sobre os elegíveis do programa,não ter a carteira de trabalho passa a ser um elemento importan-te para a sua elegibilidade. Se de um lado o programa conseguechegar aos mais pobres, por outro ainda não tem elementos defazê-lo entrar no sistema mais geral de proteção social que vemcom a carteira de trabalho assinada. Dessa maneira, propõe-seque trabalhadores com carteira assinada também sejam elegí-

veis ao BF e, caso aumentem a sua renda de modo a ultrapassara linha de corte do programa, mesmo assim continuam a recebero benefício com a contrapartida de fazer parte de programas deeducação (p.ex., alfabetização de adultos) ou programas de trei-namento de mão de obra, com o objetivo de solidificar sua po-sição como trabalhadores desse mercado. Isto ocorreria por umperíodo de tempo a ser definido, e seria necessário acumular ex-periência em verificar se a conseqüente suspensão do BF levariaà opção pelo abandono do emprego formal, com o objetivo deavaliar o resultado dessa política.

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