digesto econômico nº 450

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Edição dupla: Set/Out e Nov/Dez de 2008

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Page 1: Digesto Econômico nº 450
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3SET/OUT E NOV/DEZ 2008 DIGESTO ECONÔMICO

CARTA AO LEITORAgliberto Lima

Há um ano, na edição 445 da revista DigestoEconômico, que circulou em dezembro de2007, escrevi nesta mesma seção que, apesar

do crescimento de 5% no PIB, o Brasil não soubeaproveitar a boa onda da economia mundial paracrescer ainda mais, a exemplo de países como a Chinae a Índia, e que era preocupante a inércia em que nosencontrávamos em relação às reformas necessárias,a começar pelas reformas política e fiscal, com oobjetivo de preparar o País para enfrentar períodos de"vacas magras", que inevitavelmente viriam. Expliquei,na ocasião, que os ajustes das finanças públicas

imporiam menos sacrifícios à sociedade se fossem realizados durante um ciclo de expansãoeconômica, do que se tivermos de fazê-los em uma situação de desaceleração ou recessão.

Pois as minhas previsões ocorreram mais cedo e com mais rigor do que esperávamos.O mundo vive hoje uma crise somente comparável à de 1929, com a quebra da Bolsade Nova York, que teve reflexos perversos em todo o mundo, incluindo o Brasil, cujaeconomia na época era calcada na exportação do café. Como conseqüência, no início dosanos de 1930, muitos cafeicultores foram à falência.

A crise atual estará levando o mundo a uma forte desaceleração, com algumas economiasentrando efetivamente em recessão, como é o caso do Japão, a segunda maior economia domundo, que já anunciou um encolhimento em seu PIB. Nos Estados Unidos, a atividadeeconômica vem caindo e o desemprego aumentando num ritmo muito forte. Notícias similareschegam a toda hora da China, que vinha puxando fortemente o crescimento mundial nosúltimos anos, e também de países europeus.

O presidente Lula e o ministro Guido Mantega, que inicialmente falavam que o "tsunami" dacrise financeira chegaria ao Brasil como uma "marola", já mudaram seus discursos e admitemque os reflexos aqui serão mais graves. As empresas, principalmente as pequenas e médias,já sentem dificuldades em conseguir crédito. Enquanto isso, o governo bate recorde atrás derecorde em arrecadação de impostos.

Diante do panorama atual, o governo e os parlamentares precisam urgentemente tomaratitudes corajosas e eficazes. O governo precisa reduzir os seus gastos, com racionalizaçãoe planejamento. Também se faz urgente aliviar a carga tributária do setor produtivo,diminuir a burocracia para estimular o empreendedorismo e reduzir a taxa de juros paraestimular o consumo. Somente desta forma poderemos enfrentar a crise internacionale sairmos fortalecidos dela.

Alencar BurtiPresidente da Associação Comercial de São Paulo e da

Federação das Associações Comerciais do Estado de São Paulo

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4 DIGESTO ECONÔMICO SET/OUT E NOV/DEZ 2008

Rua Boa Vista, 51 - PABX: 3244-3030CEP 01014-911 - São Paulo - SP

home page: http://www.acsp.com.bre-mail: [email protected]

Pre s i d e nteAlencar Burti

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w w w. d co m e rc i o. co m .

Capa impressa em papel ecoeficiente Lumimaxfosco 150g/m² e o miolo no papel ecoeficiente Starmax

fosco 80g/m² da Votorantim Celulose e Papel - VCP.

CAPAFoto: Agliberto Lima.

Arte: Alfer.

ÍNDICE

10Instabilidade financeira,conflito de interesses edeflação da dívidaUlisses Ruiz de Gamboa

181929: a criseque abalou o mundoRenato Pompeu

261929: Ensaio fotográfico

32Crise financeiraou do sistema?Henrique Rattner

6Reflexões sobre acrise financeira globalRoberto Fendt

Spencer Platt/AFP

ALFER

Reprodução

Lee Jae-Won/Reuters

AFP

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5SET/OUT E NOV/DEZ 2008 DIGESTO ECONÔMICO

36Japão: esgotamento demodelo e necessidade demudanças estratégicasAlcides Domingues Leite Júnior

39Imóvel: uminvestimento seguroFábio Rossi Filho

402008: Ensaio fotográfico

48Em 2009, o futurodo mundo em xequeHeci Regina Candiani

56A economia não menteMarcel Domingos Solimeo

60Fábulas chinesase lições para o BrasilSilvério Zebral

62Tempos de vacas magrasAlmir Pazzianotto Pinto

Leon

ardo

Rod

rigue

s/e-

SIM

64Os índios e a ConstituiçãoIves Gandra da Silva Martins

70O que Obama vai fazer?Olavo de Carvalho

82Campanha de 2008e o culto à presidênciaGene Healy

86Ambiente malassombradoJoão Luiz Mauad

88A importânciada comunicaçãoMarcos Sawaya JankA

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ão

Kim Kyung-Hoom/Reuters

Newton Santos/Hype Sérgio Lima/Folha Imagem

Spencer Platt/AFP Gabriel Bouys/AFP

ALFER Stan Honda/AFP

Bay Ismoyo/AFP

Maurício Lima/AFP

Page 6: Digesto Econômico nº 450

6 DIGESTO ECONÔMICO SET/OUT E NOV/DEZ 2008

Reflexõessobre a

crisefinanceira

global

Spencer Platt/AFP

Divulgação

Roberto FendtEconomista evice-presidente doInstituto Liberal Passados já alguns meses de forte insta-

bilidade nos mercados financeiros ex-terno e interno, talvez já seja possívelfazer algumas reflexões sobre a crise

atual – e sobre suas diferenças com relação àscrises passadas.

1. A extensão e natureza da crise

"A primeira data é outubro de 1929, o mêsdo desastre da bolsa. Embora os preços dasações tenham atingido o seu pico em 7 de se-tembro, quando o índice Standard and Pooratingiu 254 pontos, a queda nas quatro sema-

nas seguintes se deu de forma ordenada e nãogerou pânico. De fato, depois de cair para 228em 4 de outubro, o índice subiu para 245 em 10de outubro. A queda que se seguiu levou a umpânico em 23 de outubro. No dia seguinte,grandes blocos de ações foram vendidos nomercado e quase 13 milhões de ações foram ne-gociadas. No dia 29 de outubro, quando o ín-dice caiu para 162, cerca de 16,5 milhões deações foram negociadas, comparado com umamédia diária em setembro de pouco mais de 4milhões de ações".

Assim nos relataram Milton Friedman e An-na Schwartz (The Great Contraction, 1929-

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7SET/OUT E NOV/DEZ 2008 DIGESTO ECONÔMICO

1933, p. 20) o impacto inicial da crise de 1929.Em 1929, o índice Dow Industrials DJI (DJI) daBolsa de Valores de Nova York atingiu o picoem 25 de agosto. Nas sete semanas após o iní-cio da queda, o índice perdeu 25%. E conti-nuou caindo até que, 10 semanas após o pico,atingiu o fundo do poço. A queda acumuladafoi de quase 50%.

Na crise de 1987, a perda foi inicialmente si-milar à de 1929, com o índice caindo 25% nasprimeiras sete semanas. Diferentemente dacrise de 1929, contudo, o fundo do poço se deulogo a seguir, com o mercado se recuperando apartir de então. Também diferentemente da

crise de 1929, em 1987 a amplitude foi menor,com uma queda acumulada de 35%.

O Lehman Brothers Holdings, Inc. quebrouno último dia 15 de setembro, precipitando afase mais aguda da atual crise do sistema fi-nanceiro internacional. Na sexta-feira, 19 desetembro, o índice Dow Jones fechou em11.388 pontos; na sexta-feira, 10 de outubro, oíndice fechou em 8.451 pontos. No curto lapsode três semanas o índice caiu 26%.

Na crise atual, os números não são muito di-ferentes. Se tomarmos como pico prévio do ín-dice Dow Jones o dia 8 de outubro de 2007,quando o DJI atingiu 14.043 pontos, a queda

O Lehman BrothersHoldings, Inc. quebrou noúltimo dia 15 desetembro, precipitando afase mais aguda da atualcrise do sistemafinanceiro internacional.Na sexta-feira, 19 desetembro, o índice DowJones fechou em 11.388pontos; na sexta-feira,10 de outubro, o índicefechou em 8.451 pontos.Em 3 semanas caiu 26%.

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8 DIGESTO ECONÔMICO SET/OUT E NOV/DEZ 2008

até o dia 10 de outubro terá sido de 40%. Se to-marmos como pico prévio o índice de dois demaio último (13.058 pontos), a queda acumu-lada foi de 35%.

Pelos padrões das crises de 1929 e 1987, por-tanto, talvez o preço das ações esteja próximodo fundo do poço. A grande questão, obvia-mente, é saber se os padrões passados servemde orientação para o presente, para não falarno futuro. Afinal, todas as instituições finan-ceiras, ao oferecer seus produtos, costumamcolocar uma nota de rodapé nos prospectos di-zendo que "o desempenho passado não é ga-rantia de desempenho futuro". A conferir.

2. A crise atinge o "lado real"da economia

Em 1929, a produção industrial americanajá vinha em leve queda quando se deu o crashda bolsa. "A contração (da atividade econômi-ca) entre 1929 e 1933 foi de longe a mais severana história econômica americana dos 50 anosque antecederam 1929 – e pode ter sido a maissevera de toda a história americana. Emboratenha sido mais aguda e mais prolongada nosEstados Unidos do que na maioria dos demaispaíses, ela teve amplitude mundial e está entreas mais severas contrações internacionais dostempos modernos. O PIB americano, medidoem termos reais, caiu mais de 30% entre 1929 e1933; e os preços no atacado caíram mais de umterço", relatam-nos Friedman e Schwartz, naobra citada anteriormente (pág. 11 do livro).

Em 1987, contudo, embora a queda tenha si-do semelhante à de 1929, a queda no PIB nãoteve a mesma severidade. Até agora, a presen-te crise também não mostrou ainda seu impac-to sobre o "lado real" das economias – emborahaja sinais preocupantes nos mercados deconstrução civil e automobilístico dos EUA.Contudo, o contágio tem características simi-lares à crise de 1929. A Alemanha está, peloscritérios usualmente aceitos, em recessão. OJapão encontra-se em situação semelhante. E omesmo logo poderá estar ocorrendo com aUnião Européia como um todo.

3. A crise nos mundos desenvolvido eemergente

Há um erro conceitual daqueles que, miran-do o que está acontecendo nos Estados Unidose na Europa, acham que devemos macaquearaqui as políticas postas em prática no mundodesenvolvido.

Nos Estados Unidos, Inglaterra e nos países

da União Européia, o problema é o da solvênciado sistema financeiro. Quando estamos diantede uma crise de solvência, a medicação adequa-da é capitalizar as instituições e simultanea-mente reduzir a sua alavancagem, de múltiplosentre 20 e 40, para múltiplos mais consistentescom os prescritos pelos Acordos de Basiléia. Poresse caminho, longo e tortuoso, vai se restau-rando progressivamente a confiança, cuja que-bra deu origem à própria crise.

Nesse quadro, é indispensável que o bancocentral americano, o Federal Reserve, e o Te-souro dos EUA expandam os gastos para res-taurar a saúde do sistema financeiro. Não paraproteger os banqueiros, mas para proteger osdepositantes e preservar os meios de paga-mentos e o crédito do país – absolutamente in-dispensáveis em uma economia desenvolvidaque levou a divisão do trabalho a níveis nuncaantes vistos na história.

O ponto central a enfatizar, portanto, é que oprincipal problema dos países desenvolvidosé de solvência de seu sistema financeiro. A so-lução é reduzir a alavancagem do sistema fi-nanceiro, de um lado, pelo aumento do capitaldas instituições e, de outro, pela redução gra-dual dos ativos criados. Para isso é necessárioexpandir os gastos, retirando-se o excesso des-ses gastos posteriormente com a colocação detítulos do Tesouro junto às instituições finan-ceiras e ao público.

O problema do Brasil e dos demais paísesemergentes é diferente. Aqui o problema é deliquidez das instituições. A firme aderênciadas autoridades monetárias brasileiras às re-gras dos Acordos de Basiléia evitou que a ala-vancagem se expandisse aqui nos padrões dospaíses desenvolvidos. Mas sofremos de um"empoçamento" da liquidez e de dificuldadesde captação de linhas externas de financia-mento, especialmente pelos bancos de peque-no e médio portes. Daí para a redução do ca-pital de giro das empresas no lado "real" daeconomia, foi um passo.

4. O que fazer?

Para minimizar os efeitos da crise é necessáriorestabelecer a liquidez, desvalorizar o câmbio ereduzir o excesso de demanda na economia.

Boa parte do que fazer quanto à liquidez, jáfoi feito. O Banco Central reduziu o compulsó-rio e reativou o redesconto. O câmbio flutuoupara cima, mudando do patamar de R$ 1,60para R$ 2,20. O ajuste foi automático, já que noregime de câmbio flutuante, por definição, eleflutua e se desvaloriza quando há um refluxo

Há um erroconceitual daqueles que,mirando o que estáacontecendo nosEstados Unidos e naEuropa, acham quedevemos macaquearaqui as políticas postasem prática no mundodesenvolvido.

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9SET/OUT E NOV/DEZ 2008 DIGESTO ECONÔMICO

líquido de recursos externos, como está atual-mente ocorrendo. É bem verdade que o BC temprocurado minimizar as flutuações do câm-bio, mas a direção está correta, já que se tornanecessário reduzir as importações e incenti-var, via câmbio, as exportações.

O grande nó está na dificuldade de reduzi-rem-se os gastos na economia. Primeiro, por-que sequer há consenso entre as autoridades aesse respeito. O BC é favorável à redução, atéporque com menores gastos seria possível secomeçar a reduzir as taxas de juros, e o Minis-tério da Fazenda é contra.

É surpreendente que aqui alguns sugiramque deveríamos imitar os países desenvolvidose também praticar políticas "keynesianas" deexpansão do gasto público para contra-restar acrise. Essa alternativa, contudo, confunde osdois tipos de crise – e quem a defende tem suacabeça no mundo desenvolvido, não no nosso.

No nosso mundo, no Brasil real, a demandainterna está crescendo a 8% ao ano, muito aci-ma do crescimento da capacidade de produ-ção da economia. Até aqui, com o câmbio ba-

rato, foi possível complementar a oferta do-méstica com importações correspondentes auma parcela expressiva do PIB. Por essa razão,as pressões inflacionárias se mantiveram con-tidas em um patamar consistente com as metasde inflação estabelecidas.

Um quadro completamente diferente co-meça a se desenhar à nossa frente. O índice depreços da Commodity Research Bureau vol-tou aos níveis de 2002, quando se iniciou agrande escalada dos preços desses produtos.Com a queda dos preços das commodities ine-vitavelmente cairão nossas exportações e coma desvalorização do real, cairão também as im-portações. Se a demanda interna não se ajustarao crescimento da oferta interna, é inevitáveltrazermos de volta a inflação.

Em vista desse quadro, seria oportuno ajus-tar o orçamento de 2009 à nova realidade, cor-tando despesas de custeio e aumentando a efi-ciência do gasto público. O que não podemoster, em nenhuma circunstância, é um aumentoda despesa pública, como alguns, inadvertida-mente, estão sugerindo.

Escritório decompra e venda

de ações nadécada de

1920, em queos negócios

eram fechadospor telefone.

Reprodução

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Instabilidadefinanceira,

conflitode interesses e

deflaçãoda dívida

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11SET/OUT E NOV/DEZ 2008 DIGESTO ECONÔMICO

Asabordagensde Minsky,Simons e

Fishere a crise

financeiraglobal atual

Paulo Pompolin/Hype

Ulisses Ruiz deGamboa

Economista do InstitutoGastão Vidigal,

Associação Comercialde São Paulo.

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12 DIGESTO ECONÔMICO SET/OUT E NOV/DEZ 2008

A crise financeira internacionalatual, iniciada a partir do estouroda "bolha financeira" dos subpri-mes na economia norte-americana,

trouxe novamente ao debate as idéias de umdos mais ilustres seguidores do pensamentode John Maynard Keynes (1883-1946), HymanMinsky (1919-1996).

No presente trabalho, analisaremos a cha-mada hipótese da instabilidade financeirade Minsky e sua aplicabilidade para explicar

a origem da crise financei-ra internacional atual.Também discutiremos asabordagens de dois eco-nomistas neoclássicoscontemporâneos de Key-nes, que, escrevendo emmeio à Grande Depres-são, geraram contribui-ções essencia is para acompreensão das crisesf inanceiras : Henry Si-mons (1899-1946) e IrvingFisher (1867-1947).

2. A Hipótese daInstabilidadeFinanceira de Minsky

Ao contrário da teoriaeconômica tradicional, quepostula que os mercados, in-cluindo o mercado financei-ro, apresentam invariavel-mente uma tendência aoequilíbrio, Minsky (1992)parte da premissa de que a

economia capitalista possui uma tendência ine-rente ao desequilíbrio, que culminaria com osurgimento cíclico de severas crises econômicas.O canal transmissor dessa instabilidade, tal co-mo postula Keynes (1936), é o investimento pro-dutivo, embora para Minsky seja crucial a formade financiamento desse investimento.

Em sua hipótese da instabilidade financei-ra, o autor parte da premissa de que o inves-timento somente será realizado se o risco decrédito do investidor for menor que o risco dainstituição financeira que oferta esse crédito,incluindo juros adicionais, a título de "mar-gem de segurança".

Essa última variável é afetada diretamentepelas expectativas sobre resultados futuros, eassim, no começo de uma recuperação econô-

1. Introdução

(1) De fato, é bem interessante notar que Minskynum artigo escrito em 1987, denominado"Securitization" (republicado em 2008) anteviu aexplosão da securitização no mercado financeiromundial.

Para Minsky, aeconomiacapitalista possuiuma tendência aodesequilíbrio,com o surgimentocíclico de criseseconômicas.

mica, após uma severa recessão, a "margem" égrande, pois as expectativas são pessimistas.Por outro lado, se uma expansão gera retornoseconômicos acima das projeções, então os in-termediários financeiros tendem a diminuirdita "margem", na medida em que os riscospercebidos diminuem, possibilitando maiorfinanciamento externo para as empresas, oque redundará em aumento do investimentoe, como conseqüência, maior PIB, menor de-semprego e maiores lucros efetivos. Essesmaiores lucros atrairão outros empreendedo-res, o que implicará maior alavancagem, ou se-ja, maior nível de endividamento das empre-sas. Do ponto de vista dos intermediários fi-nanceiros, a expansão econômica e a sólida si-tuação financeira do sistema produtivoreduzirão a aversão ao risco, aumentando o"apetite" por oferecer crédito aos produtores epor transpassar essa dívida a outros investido-res. Assim, durante a fase expansiva, interme-diários financeiros (que Minsky denominoude "mercadores de crédito") tentam convenceros investidores a comprar a dívida dos produ-tores a partir de inovações sofisticadas, levan-do ao investimento em "pacotes financeiros"de pouco lastro e altas taxas de retorno (1).

Com o passar do tempo, a taxa de acumu-lação de dívida começa a crescer a maior ve-locidade do que a capacidade de pagamentodos tomadores, gerando-se a partir desse es-tágio as condições para o surgimento de umanova crise financeira e econômica, repetindo-se todo o ciclo anterior.

Dentro desse modelo, Minsky realizou umataxonomia das unidades produtivas que de-mandam crédito para viabilizar investimentosprodutivos: as "unidades cobertas", que podemcumprir com seus compromissos a partir da ge-ração do seu próprio fluxo de caixa; as "unida-des especulativas", que podem pagar os encar-gos financeiros da dívida, embora necessitemsempre "rolar" o principal, a partir de emissão denova dívida; e as "unidades Ponzi" (2), que nãoconseguem gerar recursos suficientes nem parapagar os juros, nem para cumprir com o princi-pal da dívida, dependendo exclusivamente davalorização dos seus ativos para financiar-se.Ainda, de acordo com o autor, durante o ciclo deprosperidade, a economia capitalista torna-se

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13SET/OUT E NOV/DEZ 2008 DIGESTO ECONÔMICO

cada vez mais frágil, pois, "...tende a se afastar deuma estrutura financeira dominada por unida-des financeiras de "unidades cobertas" parauma estrutura na qual grande proporção dasunidades está empenhada em financiamentoespeculativo ou de tipo Ponzi (3)."

À medida que a economia começa a desace-lerar, os intermediários financeiros reduzem aoferta de crédito e os demandantes de crédito,sem conseguir renovar suas linhas de crédito,começam a falir, instalando-se uma crise fi-nanceira, que pode dar passo a uma severa cri-se econômica, tal como ocorreu na Grande De-pressão ou como estaria ocorrendo agora.

Assim, para Minsky, à diferença de Keynes,que acreditava nos efeitos de uma política fis-cal contracíclica, a única forma de estabilizar aeconomia capitalista seria aumentar de formapermanente a interferência do Governo e doBanco Central na economia, construindo ochamado "capitalismo amigável".

3. Avaliação Crítica da Hipótese deInstabilidade Financeira

Apesar de aparentemente adequada para ex-plicar as origens da atual crise financeira inter-nacional, a hipótese de instabilidade financeiramerece algumas apreciações. Em primeiro lu-gar, como é assinalado por Shostak (2007), a pre-missa básica de tendência à instabilidade do ca-pitalismo encampada por Minsky não é sujeitaa nenhum método de verificação, incorporan-do a hipótese Kaleckiana, tampouco nunca ve-rificada e bastante discutível, de que os lucrosda empresa dependem inteiramente da decisãodiscricionária de outros agentes (!) (4).

Ainda segundo o mesmo Shostak (op. cit.), aexplicação de Minsky negligencia o papel fun-damental do Banco Central na gênese das crisesfinanceiras. Justamente como o mercado finan-ceiro se caracteriza por possuir assimetria de in-formação, ou seja, uma das partes detém mais

informação que a outra, a autoridade monetárianão é capaz de monitorar totalmente o compor-tamento dos bancos comerciais e instituições fi-nanceiras. Sendo assim, à medida que o BancoCentral emita sinais de que continuaria sendo o"emprestador de última instância" na ocorrênciade uma crise, indiretamente estaria alentando ocomportamento especulativo e até Ponzi dos in-termediários financeiros, que passam a vê-lo co-mo um "sócio oculto", que pode compartilhar osriscos. Esse é o fenômeno chamado de "risco mo-ral", que invariavelmente está presente na gesta-ção de crises financeiras. Além disso, tambémdevemos considerar o papel dos possíveis errosde política monetária. Assim, na crise atual, amanutenção por parte do ex-presidente do Ban-co Central americano, Alan Greenspan, de umataxa básica de juros excessivamente baixa entredezembro de 2000 e junho de 2004 (1%) é apon-tada como uma das causas básicas da crise finan-ceira americana atual. Como posteriormentehouve uma reversão da política monetária, au-mentando a taxa básica a 5,25% a partir de então,atividades não produtivas, associadas às "bo-lhas", provavelmente começaram a enfrentar di-ficuldades, deflagrando a crise.

Por outro lado, a análise de Minsky não con-sidera a existência de outro efeito da informa-ção assimétrica no mercado financeiro, o cha-mado "problema da agência", ou seja, o conflitode interesses entre acionistas e executivos do

A manutençãode uma taxa

básica de jurosexcessivamente

baixa entredezembro de 2000

e junho de 2004(1%) é uma dascausas da crise

financeira.

(2) O termo faz referência ao financista italianoCharles Ponzi, que criou em 1919 nos EstadosUnidos um sistema de venda de notaspromissórias, que garantia ao comprador juros de40% em 90 dias. Ponzi usava o que captava comcada novo investidor para pagar os juros devidos,ficando com o restante da aplicação. Apesar dosucesso inicial, o sistema ruiu com a intervençãodas autoridades e com a falta de adesõessuficientes que garantissem seu funcionamento.(3) Minsky (Op. Cit.), p. 8. A tradução é nossa.(4) Kalecki (1971: 78-79).

Vivek Prakash/Reuters

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mercado financeiro, que também esteve pre-sente na gestação da crise econômica atual.Kashyap, Rajan e Stein (2008) argumentam queexistiu uma separação entre o desempenho dosexecutivos e funcionários dos bancos e os siste-mas de controle de risco. Nesse sentido, como aremuneração dos altos executivos estava atre-lada a seu desempenho relativo a outros execu-tivos do mesmo setor, a superação das metasimplicou na tomada de posições excessiva-mente arriscadas, sem que os acionistas dosbancos fossem capazes de monitorar essa situa-ção. Além disso, devido à complexidade dasoperações com novos instrumentos de securi-tização, esses altos executivos enfrentaram di-ficuldades em controlar as ações de seus subor-dinados, pois não eram capazes de diferenciarse os maiores retornos eram fruto de sua maiorhabilidade ou se consistiam apenas numa com-pensação pelo maior risco assumido.

Ainda segundo os autores anteriores, esse du-

plo conflito de interesses terminou reduzindo oincentivo para que os bancos financiassem suasoperações com emissão de ações, posto que o au-mento do número de acionistas era associado auma dificuldade ainda maior de monitorar ocomportamento dos executivos. Sendo assim, oendividamento de curto prazo, geralmente asse-gurado por algum ativo, foi a alternativa de fi-nanciamento privilegiada pelos bancos.

Também é importante notar que a abordagemdesenvolvida por Minsky se distancia do pró-prio modelo keynesiano original, pois em sua"Teoria Geral" Keynes (Op. Cit.) nunca vaticinounenhuma tendência auto-destrutiva do capita-lismo, sendo a recessão apenas uma possibilida-de e não um resultado inexorável. Nesse sentido,a intervenção do Estado na economia a partir dapolítica fiscal se realizaria de acordo com o con-texto: aumento de gastos públicos durante a re-cessão e redução de gastos públicos (ou aumentode impostos) se, ao contrário, a economia estiveroperando próxima a sua capacidade instalada epersistirem pressões inflacionárias. De fato, numlivro praticamente ignorado, escrito durante aSegunda Guerra Mundial, Keynes (1940) acon-selha uma política fiscal contracionista via au-mento de impostos para conter a acelaração docrescimento da demanda agregada na Inglater-ra, devido ao esforço de guerra, que implicavaem vultosas despesas por parte do governo.

Sendo assim, uma análise mais detalhadado Modelo de Minsky nos revela várias omis-sões importantes, sendo necessária a consi-deração de modelos alternativos para expli-car mais adequadamente a crise financeiraglobal atual, e, ao mesmo tempo, concebermedidas e políticas econômicas que permi-tam mitigar seus efeitos.

4. De Volta ao Modelo Neoclássico: asContribuições de Fisher e Simons

A "Teoria Geral" de Keynes não foi o únicomodelo surgido durante a Grande Depressãoque buscava dar uma explicação para as origensda crise econômica que se vivia. De fato, à dife-rença do modelo keynesiano, que baseava suaexplicação na volatilidade das expectativas dosempresários, as abordagens surgidas a partir daobra de dois economistas neoclássicos contem-porâneos do próprio Keynes colocaram o pró-prio mercado financeiro no centro da origemdas flutuações econômicas, sem necessidade desupor nenhuma tendência auto-destrutiva.

Uma dessas abordagens surgiu a partir daobra de Henry Simons, professor da Universi-dade de Chicago durante a Grande Depressão,

A remuneração dosaltos executivosestava atrelada

a seu desempenhorelativo a outros

executivos, asuperação das metasimplicou na tomadade posições muito

arriscadas (...)

Scott Olson/AFP

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15SET/OUT E NOV/DEZ 2008 DIGESTO ECONÔMICO

que publica no mesmo ano da "Teoria Geral" oartigo "Rules Versus Authorities in MonetaryPolicy" (5). Nesse artigo seminal, que, ademais,foi o precursor da idéia da conveniência do es-tabelecimento de regras na condução da políti-ca monetária, pedra angular do sistema de me-tas de inflação, Simons já chamava a atençãopara os problemas que uma estrutura de ativose passivos bancários concentrados no curtoprazo pode gerar. Segundo ele, o fato do siste-ma bancário funcionar com reservas que sãouma fração dos depósitos enseja uma instabili-dade intrínseca: o banco possui passivos (os de-pósitos), não sujeitos a contingências, e ativos(as aplicações e os papéis financeiros), sujeitos acontingências. Desse modo, uma redução ini-cial do valor dos papéis financeiros, ao reduziros ativos bancários, aumentaria o risco de insol-

não depender da discricionariedade dos ocu-pantes de turno do Banco Central:

"...Uma regra monetária baseada na estabili-dade de algum índice de preços, preferivelmenteum índice de preços de commodities produzidasde forma competitiva, parece oferecer a única pro-messa de solução para o presente caos monetário eas incertezas..." (6).

Em termos da crise financeira mundial atual,a abordagem de Simons torna-se bastante ade-quada se atentarmos para o fato de que um nú-mero importante de bancos de investimentonos Estados Unidos e na Europa durante o pe-ríodo do boom econômico optaram por finan-ciar suas operações a curto prazo, enquanto rea-lizaram investimentos em setores, tais como oimobiliário entre outros, cujo retorno é natural-mente de longo prazo. Esse desbalanço patri-monial se agravou com o conflito de interessesentre acionistas das instituições financeiras,executivos financeiros e seus subordinados, co-mo foi mencionado anteriormente.

Além disso, provavelmente, as mudanças naregulação financeira que se seguirão à primeiraetapa da atual crise deverão caminhar na dire-ção proposta pelo referido autor, limitando-seas possibilidades de uma excessiva alavanca-gem das instituições financeiras no curto prazo,sem que se abandone a preocupação com a ma-nutenção de reduzidas taxas de inflação a partirdo começo da recuperação econômica.

Por sua vez, a abordagem de Irving Fisher(1933), um dos maiores expoentes do pensa-mento neoclássico, chamada de teoria da de-flação da dívida, anterior à própria "TeoriaGeral" identifica as raízes da crise econômicanuma situação que mistura excesso de endi-

vência bancária, provocando novas reduçõesna medida em que os proprietários desses pa-péis começam a liquidá-los no mercado, o quenovamente reduz o valor dos ativos bancários,realimentando o processo.

Como forma de solucionar a instabilidadegerada pela estrutura patrimonial dos inter-mediários financeiros, o autor recomendauma reforma no sistema financeiro, que mini-mize o endividamento de curto prazo, deixan-do nas mãos da autoridade monetária a capa-cidade de aumentar ou diminuir a liquidez decurto prazo. Contudo, a política monetária de-veria ser realizada de acordo com uma regra e

A elevação da dívidaem termos reais,

associada à perdade valor dos

ativos, reduziria alucratividade das

empresas e gerariauma situação de

falências crescentes.

(5) Simons (1936).(6) Simons (Op. Cit.), p. 30. A tradução é nossa.

Philippe Desmazes/AFP

Michael Dalter/Reuters

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vidamento e deflação. Ainda que Minskytambém tenha adotado em desenvolvimen-tos posteriores a teoria da deflação da dívida,o que faz com que erroneamente alguns au-tores lhe atribuam a autoria, ele a insere emseu arcabouço de instabilidade intrínseca docapitalismo, que como se verá, é muito dife-rente da exposição original de Fisher.

Segundo esse autor, o "dinheiro fácil" é agrande causa do excesso de endividamento, epode decorrer de novas oportunidades de in-vestimento com grandes perspectivas de ga-nho, destacando-se as invenções e os avançostecnológicos, dívidas de guerra, política mo-netária demasiado expansionista, sem descar-tar a existência de fraudes.

Como pode ser notado, o paralelismo com aatual crise é muito grande, especialmente seconsideramos, tanto a política monetária nor-te-americana praticada durante o período2000-2004 mencionada anteriormente, quantoa política fiscal excessivamente expansionistada administração Bush, gerada a partir daGuerra do Iraque. A necessidade de financia-mento dessa guerra e da permanência do exér-cito norte-americano em solo iraquiano pro-duziu um endividamento público sem prece-dentes, que contribuiu para o aumento da li-quidez financeira mundial, na medida em queo resto do mundo – especialmente a China –funcionou como financiador indireto, a partirda aplicação de reservas internacionais em dí-vidas do Tesouro Norte-Americano. Além dis-so, na gênese de toda a crise financeira atualtambém não poderia ser descartado o papeldas fraudes financeiras e da falta de ética, quecomeçam recém a aparecer, na excessiva ala-vancagem do sistema financeiro.

A análise de Fisher prossegue a partir doexcesso de endividamento, onde um choquede confiança poderia gerar uma liquidaçãode dívidas em cadeia, que implicaria na ven-da acelerada de ativos (financeiros e reais), re-duzindo seu valor. Essa liquidação de dívi-das em cadeia reduziria a liquidez do sistemafinanceiro, diminuindo o consumo e, portan-to, provocando queda dos preços. A deflaçãoprovocada realimentaria a crise, pois aumen-taria a taxa de juros real, elevando paradoxal-mente o endividamento, enquanto os agenteseconômicos continuariam na tentativa de re-duzi-lo. Essa elevação da dívida em termosreais, associada à perda de valor dos ativos,reduziria a lucratividade das empresas e ge-raria uma situação de falências crescentes, oque terminaria redundando em redução daprodução, da renda e do emprego. Tudo isso,

ainda segundo o autor, geraria pessimismo eperda de confiança na sociedade, o que pro-vocaria nova queda no consumo, iniciandotodo o processo novamente.

Fisher acreditava que num contexto assimcaberia ao governo, via Banco Central ou Se-cretaria do Tesouro, produzir uma "reflação"da economia, ou seja, injetar liquidez na eco-nomia, contrabalançando, assim, essa tendên-cia deflacionária:

"... sempre é possível, do ponto de vista econô-mico, parar ou prevenir uma situação de depres-são como essa simplesmente a partir da reflaçãodo nível de preços, levando-os ao nível existenteno momento da contratação das dívidas existen-tes... (Sendo assim), as autoridades econômicas –O Comitê do Banco Central e o Secretário do Te-souro ou, esperemos, uma Comissão Especial deEstabilização..." (7).

Com relação à crise atual, vários analistas, to-mando por base a abordagem de Fisher, alerta-ram para os perigos de um processo de deflaçãonos Estados Unidos e na Europa, que se mate-rializaria após a instauração da recessão, conse-qüência natural da contração de crédito e do re-conhecimento das importantes perdas patri-moniais ocorridas. Além disso, toda a políticade injeção de liquidez e de recapitalização dasinstituições financeiras levadas a cabo pelosBanco Centrais e Secretarias do Tesouro nos Es-tados Unidos e Europa guardam uma relaçãomuito estreita com a abordagem e "terapêutica"propostas por Fisher. O próprio presidente doBanco Central norte-americano, Ben Bernanke,em vários discursos e artigos acadêmicos, temse referido à teoria da deflação da dívida deFisher, inclusive estendendo-a para o caso degrandes choques macroeconômicos (8).

5. Conclusões

Uma análise mais detalhada da crise finan-ceira atual, tanto em termos de suas causas,quanto em relação às medidas e políticas eco-nômicas já realizadas pelos governos dos Es-tados Unidos e da Europa, permitirá concluirque a hipótese da fragilidade financeira deMinsky não é a abordagem mais adequada. Is-so é assim, posto que tal hipótese se baseia napremissa não verificada de instabilidade in-trínseca do capitalismo, contra a qual pouco ouquase nada pode fazer uma política econômi-

(7) Fisher (Op. Cit.), p. 346 e 347. A tradução énossa.(8) Bernanke (1983).

Win McNamee/AFP

O própriopresidente do BancoCentral norte-americano,Ben Bernanke, em váriosdiscursos e artigosacadêmicos, tem sereferido à teoria dadeflação da dívida deFisher, inclusiveestendendo-a para ocaso de choquesmacroeconômicos.

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ca mais ativa, inclusive uma de tipo keynesia-na. Além disso, segundo essa abordagem oBanco Central não teria nenhum papel na gê-nese da crise, o que contraria as evidênciasexistentes com relação à crise atual. Por últi-mo, outro problema com o modelo de Minskyé a não consideração dos possíveis conflitos deinteresses ao interior das instituições financei-ras que, na prática, contribuíram para uma ex-posição excessiva ao risco.

Por outro lado, as abordagens de dois proe-minentes economistas neoclássicos contem-porâneos do próprio Keynes, Fisher e Simonsparecem ser muito mais adequadas para rea-lizar uma análise da crise financeira atual, tan-to em termos de suas origens, como tambémde seus possíveis desdobramentos e ações depolítica econômica recomendadas. Sua maioradequação se deve à ênfase do mercado finan-ceiro como motor gerador da atual crise, semnecessidade de realizar nenhuma premissa ar-bitrária sobre instabilidade intrínseca do siste-ma. Além disso, os dois autores colocam na gê-nese da "bolha financeira" uma mistura de er-ros de política econômica, falta de ética e con-flitos de interesses decorrentes da assimetriade informação natural dos mercados financei-ros, fatores que reconhecidamente estiverampresentes na atual crise financeira global.

No caso do Brasil, à diferença dos EstadosUnidos e Europa, que parecem seguir na prá-tica as abordagens de Fisher e Simons na aná-lise da crise e no desenho de medidas e políti-cas para mitigá-la, nossas autoridades pare-cem comportar-se mais de acordo com Mins-ky, vendo na solução de seus efeitos internos oaumento permanente da participação do Esta-do no mercado financeiro.

Referências�Bernanke, B. (1983): "Non-Monetary Effects of the FinancialCrisis in Propagation of the Great Depression", American Eco-nomic Review (73), p. 257-76, junho.

� Fisher, I. (1933): "The Debt-Deflation Theory of Great De-pressions", Econometrica nº 1, outubro.

� Kalecki, M. (1971): "The determinants of Profits", in M. Ka-lecki (org.) Selected Essays on the Dynamics of the CapitalistEconomy, Cambridge University Press.

�Kashyap, A., R. Rajan e J. Stein (2008): "Rethinking CapitalRegulation", Jackson Hole Conference, agosto.

� Keynes, J. M. (1936): The General Theory of Employment,Interest and Money, McMillan and Co., Londres.

�Keynes, J. M. (1940): How to Pay for the War: A Radical Plan forthe Chancellor of the Exchequer, McMillan and Co., Londres.

� Minsky, H (1992): "The Financial Instability Hypothesis",Working Paper nº 74, The Jeromy Levy Economics Institute ofBard College, maio.

� Minsky, H (2008): "Securitization", Policy Note, The JeromyLevy Economics Institute of Bard College, fevereiro.

� Shostak, F. (2007): "Does the Current Financial Crisis Vindi-cate the Economics of Hyman Minsky?", Daily Article, Ludwigvon Mises Institute.

� Simons, H. (1936): "Rules versus Authorities in Monetary Poli-cy", The Journal of Political Economy n º 1, Vol. 44, fevereiro.

Brendan McDermid/Reuters

Na gênese da crise estão erros de política econômica e falta de ética.

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1929

Reprodução

A crise que abalou

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Por Renato Pompeu

o mundo

Das várias obras disponíveis nas livra-rias que se referem à crise econômicamundial desencadeada em 1929,apenas duas têm essa crise como te-

ma específico; as demais, como veremos ao lon-go deste artigo, inserem a crise num contextomais amplo, ou a referem de passagem. O pri-meiro trabalho a ser considerado pode ser vistocomo uma interessante introdução ao assuntopara quem não tem maiores informações a res-peito de 1929, já que é um livreto paradidático:"1929: A crise que mudou o mundo", do jorna-lista, sociólogo e professor paulista Jayme Bre-ner (Editora Ática). A segunda obra específicasobre 1929, que será discutida em seguida ao li-vro de Brener, também é um livreto, "24 de Ou-tubro de 1929 – a quebra da Bolsa de Nova York ea Grande Depressão", do historiador Wagner Pi-nheiro Pereira, pesquisador da Universidade deSão Paulo e de universidades dos Estados Uni-dos e da Europa, publicado pela CompanhiaEditora Nacional e que teve a primeira edição es-

gotada em outubro último. Curiosamente, o li-vro do sociólogo Brener é mais histórico e fac-tual, enquanto o trabalho do historiador Pereiraé mais analítico e mais teorizante.

Numa obra bem ilustrada com fotos da épo-ca e gráficos, Brener começa descrevendo amanhã de terça-feira, 29 de outubro de 1929,nas proximidades da Wall Street, a rua em quefica até hoje a Bolsa de Nova York. Mais de dezmil pessoas se amontoam nas vizinhanças, de-pois de vários dias de queda na cotação dasações em geral, em especial das ações das em-presas mais importantes, como a General Mo-tors, RCA, US Steel. A partir das 10 horas,quando começa o pregão, as ações continuamdespencando, e são vendidas a qualquer pre-ço. "Entre 11h15 e 12h15, ninguém compra na-da, seja qual for o preço. O ticker, a barulhentamaquininha que permite aos investidoresacompanharem de seus próprios escritórios ascotações, está 48 minutos atrasado. Assim,muita gente vende suas ações por muito me-nos do que imagina e só no dia seguinte teráidéia de quanto perdeu.

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"Fim da tarde. O desespero tornou-se ago-nia. Cerca de 15 bilhões de dólares em papéistinham virado fumaça. Junto ao prédio da Bol-sa, a multidão está atônita. Dezenas de poli-ciais a cavalo estão a postos para evitar qual-quer quebra-quebra".

É ou não é uma boa introdução? Na imagi-nação popular, a última semana de outubro de1929 ficou marcada como uma semana de sui-cídios em massa, com executivos saltando dejanelas dos arranha-céus mais altos das proxi-midades da Wall Street. Mas Brener adverte:"Os suicídios, na verdade, não foram tantos. Eo método mais usado não era o salto no vazio,e sim a asfixia por gás".

A crise ocorria ao fim de mais de uma déca-da de prosperidade crescente sem precedentesnos Estados Unidos, ou na história do planeta.De maior devedor do mundo antes da Primei-ra Guerra Mundial (1914-1918), o país tinha aofinal do conflito passado a ser o maior credor. Apenas cerca detrês décadas após o nascimento da indústria automobilística,havia nas ruas e estradas americanas em 1929 um automóvelpara cada seis habitantes; na Europa, a proporção era de umcarro para cada 84 habitantes. Prossegue Brener: "Entre 1899 e1927, a produção de derivados crescera 780% no país; a indús-tria de máquinas, 562%. A gigantesca siderúrgica US Steel ope-rava a 100% de capacidade; a Standard Oil (Esso, no Brasil) fes-tejou, em 1928, lucros três vezes superiores aos do ano anterior.Um operário metalúrgico ganhava em média US$ 3,28 por dia.Na Grã-Bretanha, o salário médio no setor era de US$ 1,62 pordia e na Alemanha, de US$ 1,50".

"Os Estados Unidos não tardarão a ver o fim da pobreza",havia dito, pouco antes da deflagração da crise, o presidenteamericano, Herbert Hoover. Mas assinala Brener: "Apenastrinta dias após a ‘terça-feira negra’ de 29 de outubro, asações da Bolsa de Nova York haviam perdido 40% de seu va-lor. Milhares de especuladores estavam na miséria. Mas erasó o começo. Em 1932, um em cada quatro americanos nãoteria trabalho e as fábricas de automóveis de Detroit – que em1929 não davam conta dos pedidos – estariam operando commenos de 20% de sua capacidade. Nas siderúrgicas, a pro-dução cairia 88%".

Em 1933, o desemprego nos EUA atingia 13,5 milhões depessoas, das quais 1 milhão só na área urbana de Nova York. Osque continuavam empregados nas indústrias ganhavam emmédia metade dos seus salários de outubro de 1929. Relata Bre-ner: "Um milhão de pessoas vagavam de cidade em cidade, embusca de qualquer tarefa, um bico, às vezes em troca de umsimples prato de comida. O gângster Al Capone, aliás, finan-ciava um ‘sopão’ gratuito em Chicago, que forneceu 120 milrefeições apenas nas seis primeiras semanas de funcionamen-to. Em 1932, no auge da crise, uma média de quarenta bancosfaliam por dia em todo o país. A cada Natal, a polícia nova-ior-quina prendia dezenas de pessoas, que arrebentavam vidra-ças das delegacias em busca de uma cama quentinha no xa-drez". Cumpre notar que, na época, vigorava a Lei Seca nos

EUA; isto é, eram proibidas a produção, vendae consumação de bebidas alcoólicas.

A crise logo teve efeito global: "Em crise pro-funda, os norte-americanos perderam grandeparte da sua capacidade de importar produtos(café brasileiro, por exemplo). Os outros paí-ses, de sua parte, deixaram de receber dólares,moeda forte que permitiria a importação, prin-cipalmente, dos Estados Unidos. (...) Um casograve foi o da Grã-Bretanha, tradicional par-ceiro econômico dos Estados Unidos. Antes dacrise, havia dois milhões de desempregadosno país. Nos anos 30, a recessão e a resposta dogoverno inglês – que tentou enfrentar a falta derecursos cortando pela raiz os gastos comobras públicas, empresas estatais, educação,saúde e aposentadorias – elevaram a seis mi-lhões o número dos sem-trabalho". Na Alema-nha, "no começo dos anos 30, quatro em cadadez trabalhadores alemães estavam sem em-

prego". Adolf Hitler, até então "um obscuro político de extremadireita", estaria no poder em 1933.

E o nosso país? "A queda da Bolsa de Nova York bloqueoupor um bom tempo o maior mercado do café brasileiro, os Es-tados Unidos. Uma das conseqüências foi o enfraquecimentoda oligarquia cafeeira, que abriu espaço para a Revolução de1930, liderada pelo gaúcho Getúlio Vargas. O novo governo or-denaria a destruição de 14,4 milhões de sacas de café entremaio de 1931 e fevereiro de 1933, para reduzir a oferta e assimelevar os preços no exterior".

Não foi por falta de aviso que a crise eclodiu. Um documen-to do Fed, o banco central americano, avisa no início de 1929:"Durante o último ano, o sistema Fed enfrentou problemas porconta do excessivo volume de crédito do país que vem sendoabsorvido por empréstimos especulativos". Na mesma época,a Associação Nacional dos Industriais dos EUA anotava: "Le-vando em conta praticamente todos os bens que a América po-de fabricar, ela está produzindo entre 15% e 30% a mais do quesua capacidade de consumo, aliada aos mercados disponíveisno exterior. É razoável dizer que, em geral, uns 40% de todas asfábricas estão operando com prejuízo".

Conclui Brener: "Os norte-americanos perceberam, após ocrash, que a febre do dinheiro fácil não tinha bases sólidas, jáque a economia de verdade – as fábricas, as fazendas – come-çava a patinar. Assim, a quebra das Bolsas funcionou comoum gigantesco acelerador para a recessão que já vinha sea p ro x i m a n d o " .

É então que, em 1932, é eleito presidente da República "oaristocrata dos trabalhadores", Franklin Delano Roosevelt,democrata, ex-governador de Nova York. Conta Brener queesse descendente das primeiras famílias que colonizaramNova York no século 17, de origem holandesa, "teve forçaspara executar o trabalho de construção de um capitalismomais ‘popular’. Deu início ao mais importante programa deobras públicas da história dos Estados Unidos, reaqueceu amáquina da economia e acertou um golpe mortal nos dog-mas do ultraliberalismo". Observa Brener que "o economista

Um milhão depessoas vagavam decidade em cidade, embusca de qualquertarefa, um bico, às vezesem troca de um simplesprato de comida.O gângster Al Capone,aliás, financiava um‘sopão’ gratuito emChicago, que forneceu120 mil refeiçõesapenas nas seisprimeiras semanas.

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britânico John Maynard Keynes (1883-1946) – que, apesar de anticomunista, eraum crítico áspero do ultraliberalismo –forneceu a base teórica para o New Deal("Novo Acordo") de Roosevelt e termi-nou dando origem a uma importantecorrente de análise econômica: o key-nesianismo. Assessor do governo bri-tânico nos anos 30, ele defendia ma-ciços investimentos estatais para ti-rar o país da crise pós-1929".

Roosevelt, logo após ter tomadoposse em março de 1933, ressusci-tou uma lei dos tempos de guerraque lhe dava "autoridade absolutasobre os bancos privados" e criou aAdministração Nacional de Re-cuperação, que fomentou até1941 oito milhões de novos em-pregos, com os trabalhadoresnesse período construindo oureformando "2.500 hospitais,5.900 escolas, 13 mil locais delazer, mil aeroportos e uma in-finidade de pontes e barragens".Já a Administração Nacional para o AjusteAgrícola "dava estímulos em dinheiro aosfazendeiros que reduzissem sua produ-ção", para aumentar os preços que haviamsofrido queda brusca. "Só em 1933 foramdestruídos quatro milhões de fardos dealgodão e 20% da colheita de trigo e aba-tidos seis milhões de porcos, entreguesem seguida às famílias pobre". Pela no-va Lei de Reconstrução Industrial, foiliberada a associação das grandes em-presas para partilhar o mercado, oque antes era considerado anátema:"As empresas estabeleceram cotasde produção, reduzindo assim a sel-vageria da concorrência. Isso dete-ve o tombo dos preços de produtosindustrializados e também a que-da dos salários".

Por tudo isso, e pelo estímuloque deu à sindicalização de tra-balhadores – um de seus esteiospolíticos (nos quatro anos de seuprimeiro governo o número desindicalizados passou de trêsmilhões para sete milhões) – Ro-osevelt foi acusado de "socialista" pelos liberais.Mas em todo o mundo a resposta à crise e à depressão foi o in-tervencionismo estatal, nem sempre democrático como nosEUA. Para não falar na Alemanha Nazista, na América Latinaocorreu "uma temporada de rebeliões e golpes militares emquase todos os países. Os novos chefes de Estado adotaram um

estilo autoritário e amplia-ram a participação do Es-tado na economia, suprin-do as lacunas deixadas pelacrise das exportações e dosinvestimentos externos. Foiassim com Getúlio Vargas noBrasil, Victor Haya de La Tor-re no Peru, Germán Busch naBolívia, López Contreras naVenezuela e, nos anos 40, JuanDomingo Perón, na Argentina.Esses governantes constituírampoderosas estruturas econômi-cas estatais, criando ainda leis so-ciais modernizantes (como o salá-rio mínimo e a reforma agrária), àsquais as velhas oligarquias agroex-portadoras se opunham".

Brener fala em "outras saídas paraa crise": na Itália, o regime fascista setornou ainda mais autoritário e inten-sificou seu estatismo militarista; naGrã-Bretanha houve uma hesitaçãoentre os cortes nos gastos públicos e um

modelo de New Deal, mas semanteve a democracia; naAlemanha, os nazistas to-maram o poder e adotaramsuas próprias soluções esta-tistas para a crise, que asse-guraram uma recuperaçãopara a combalida economiaalemã, tanto por um progra-ma ambicioso de obras públi-cas, como as famosas auto-es-tradas do país, como por umprograma não menos ambiciosode rearmamento. Como desenla-ce, conclui Brener, tivemos a Se-gunda Guerra Mundial.

Já o livreto de Wagner PinheiroPereira, "24 de Outubro de 1929",conta a mesma história de um pon-to de vista mais teórico. Diz Perei-ra: "Em 1929 irrompeu nos EstadosUnidos mais uma das crises periódi-cas que vinham ocorrendo nos paí-ses industrializados desde o século19. Como as anteriores, a crise inicia-da em 1929 foi marcada pela superpro-dução e pelo subconsumo, propagan-do-se dos países centrais para a perife-

ria do mundo capitalista". E, mais adiante:"As causas das crises periódicas do capitalismo têm sido

objeto de estudo de várias escolas de ciência econômica. Umadas explicações mais correntes destaca que as crises teriam

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origem no fato de a taxa de lucros ser inver-samente proporcional à taxa de salários. Àmedida que a taxa de lucros aumenta de for-ma contínua, cria-se a seguinte situação: osempresários detentores dos capitais abremnovas fábricas, utilizam novas técnicas, pro-duzem mais e lançam novos produtos nomercado. Contudo, o crescimento do merca-do consumidor não acompanha, nem no mes-mo ritmo, nem na mesma proporção, o cres-cimento da oferta, visto que a apropriação delucro pelo capitalista se dá, precisamente, emdetrimento do trabalhador assalariado. Essacontradição básica do capitalismo manifesta-se, imediatamente, na forma de crise de su-perprodução. É preciso destacar, todavia, quesuperprodução não significa produção debens de consumo além da capacidade de con-sumo de uma determinada sociedade. Aocontrário, tem um sentido bem especial no ca-pitalismo: trata-se do momento em que o capitalista não con-segue vender o seu produto com o mesmo lucro. Superpro-dução significa, pois, o declínio da taxa de lucro do capitalis-ta, que então é obrigado a reduzir o investimento e dispensarmão-de-obra, quebrando-se assim o ciclo da auto-reprodu-ção do sistema, o que, fatalmente, desorganiza o mercado".

Essa explicação é, no mínimo, controvertida. Em todo caso,Pereira prossegue ilustrando a primeira fase do ciclo, a de ex-pansão, detendo-se na figura de Henry Ford em particular e naindústria automobilística americana em geral:

"Indubitavelmente, o maior símbolo de prosperidade dadécada de 1920 foi o automóvel. O empresário norte-america-no Henry Ford, de Detroit, tomara consciência, no início do sé-culo 20, da importância ilimitada que teria o automóvel numpaís tão extenso como os Estados Unidos. A sua idéia era sim-ples: produzir veículos em série, potentes e baratos, para osnorte-americanos. Assim apareceu no mercado seu modelo T– o Tin Lizzy –, inspirado no princípio, cada vez mais difun-dido entre a população, de que time is money ("tempo é dinhei-ro"), isto é, que tudo devia marchar a grande velocidade, a fimde se obterem os maiores lucros.

"Ford adaptou à indústria automobilística o sistema utiliza-do nos matadouros de Chicago, tendo construído a primeiralinha de montagem e produzido uma quantidade apreciávelde carros populares. Afinal, o novo modelo T havia sido cal-culado de maneira a poder ser adquirido, a preço acessível, pe-lo maior número possível de compradores. A fabricação em sé-rie diminuía o custo do automóvel e, além disso, utilizando to-do o seu talento para os negócios, Ford despertou o interessede uma nova e poderosa categoria de clientes, constituída poroperários e empregados, através de medidas revolucionárias,como elevar a remuneração horária de seus operários de 2,5para 5 dólares. Em 1909, já produzia 10 mil carros por ano, a 950dólares cada um; em 1920, a produção anual era de 2 milhõesde carros, a 295 dólares por unidade".

Esse boom se repetiu com outros produtos lançados na épo-ca: "geladeiras, fogões, máquinas de lavar, torradeiras elétri-

cas, aspiradores de pó e rádios". Anota Pereira:"Os rádios, praticamente inexistentes em 1920,atingiram 13 milhões de unidades em 1929". Ocinema também se desenvolveu rapidamente,os filmes "estabeleciam a moda dos trajes, dosmóveis da casa, dos jogos e até mesmo da vidaconjugal e familiar, e a natureza humana pas-sou cada vez mais a adaptar-se à arte comer-cial". Mais particularmente, a Bolsa de NovaYork, "transformada em cassino e coquelucheda época, vivia dias de euforia".

Nesse cenário tão luminoso, havia, porém,sombras, assinala Pereira. A agricultura, quecrescera rapidamente com a mecanização, a ir-rigação intensiva, e o uso de defensivos, já co-meçou a enfrentar problemas em 1925, com aqueda nos preços e a concorrência de paísesmenos desenvolvidos, como a Argentina,Uruguai, Austrália, Nova Zelândia. Os fazen-deiros americanos passaram a estocar grãos

em silos, passando a depender do setor financeiro, o que gerouespeculação. Fazendeiros ficaram endividados com os bancos,hipotecaram suas propriedades; com os preços de seus produ-tos continuando a cair, muitos ficaram arruinados.

Paralelamente, o empresariado americano, que havia in-vestido maciçamente na reconstrução da Europa, afetadapela Primeira Guerra Mundial, passou a se assustar com ocrescimento dos movimentos de esquerda e de direita em di-ferentes países europeus, e passou a repatriar seus capitaispara os Estados Unidos. Com isso, a Europa passou a com-prar menos dos EUA. Diz Pereira: "Os industriais compre-enderam, então, a necessidade de reduzir a produção. Ao fa-zê-la, ampliaram o desemprego, restringindo ainda mais oconsumo. Entrava-se num círculo vicioso e não se encontra-vam alternativas reais, pois a crise, no fundo, era estrutural".Pereira distingue a crise estrutural da crise financeira, queeclodiu em outubro de 1929:

"A crise de Wall Street, embora estimule mais as imagina-ções devido aos relatos de banqueiros suicidas, constituiapenas um episódio: tocou um número relatividade limita-do de pessoas e acabou um mês depois de começar, ou seja,em novembro do mesmo ano. A crise econômica e produtivaempobreceu e fez sofrer dezenas de milhões de pessoas, pro-longou-se por mais de um decênio e resolveu-se somentegraças à ofensiva sobre a produção, possibilitada por um re-médio pior que a doença: a guerra". (Aqui, Pereira se refere àSegunda Guerra Mundial.)

Pereira se detém sobre a especulação financeira, ao ponto deentrar em detalhes técnicos. Em todo caso, assinala que, desde1924, "em quatro anos, portanto, as ações aumentaram seu va-lor em mais de 300%". E pondera que, em meio à febre espe-culativa que, segundo o escritor F. Scott Fitzgerald, atingia atégarçons, "poucos pararam para pensar que a produção indus-trial norte-americana não crescera proporcionalmente e que asações, portanto, estavam tendo um aumento artificial; que, emsubstância, alguma coisa deixará de funcionar e Wall Streetsoltara os pés da terra".

Os industriaiscompreenderam anecessidade dereduzir a produção,ampliaram odesemprego,restringindo aindamais o consumo.Entrava-se numcírculo vicioso e nãose encontravamalternativas reais,pois a crise, nofundo, era estrutural

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Houve várias advertências de que ascoisas não iriam continuar como esta-vam, mas o jornal The New York Timesfoi "o único jornal que se manifestava ha-via vários meses com advertências so-bre a banalização do mercado financei-ro. No dia anterior à quebra da bolsa devalores fez a seguinte constatação: ‘Jo-gar no mercado de ações se tornou omaior passatempo norte-america-no’". Continua Pereira:

"Um caso curioso ilustra a banali-zação do mercado financeiro. Conta-se que, uma semana antes da ‘quin-ta-feira negra’, o milionário John D.Rockefeller ouviu uma dica ‘quen-te’ sobre o sobe-e-desce das açõesde ninguém menos que seu engra-xate. No mesmo dia, Rockefellerordenou a venda de boa parte deseus papéis, dizendo que ‘se ogaroto que lustra seus sapatosestá sabendo tudo sobre o mer-cado, então há algo muito erra-do acontecendo’".

No dia 21 de outubro, uma segunda-fei-ra, "foram vendidos 6 milhões de ações,uma cifra muito elevada, mas, em si, nãodramática. Só que as vendas aconteceramem baixa contínua" e "ao término das ope-rações, os valores estavam todos em bai-xa". No dia seguinte, terça-feira, os pre-ços não subiram e, "na quarta-feira, a si-tuação não se corrigiu: fizeram-se mi-lhões de vendas, a preços sempredeclinantes". Até que veio a "quinta-feira negra", 24 de outubro de 1929:"Wall Street estava tomada pela lou-cura. A multidão fazia fila no setorreservado ao público e densos aglo-merados se reuniam do lado de forado edifício". Uma massa de títulos"passavam freneticamente de mãoem mão". Foi a derrocada:

"Ao meio-dia veio a ordem desuspender os contratos. Naquelahora, os homens mais poderososdas finanças norte-americanas(presidentes de bancos, diri-gentes de bolsa, financistas egrandes acionistas) reuniram-seem caráter de emergência nos escritórios de J.P.Morgan & Co. A reunião durou aproximadamente duas horas.No final, decidiu-se assentar 30 milhões de dólares para um‘sustento organizado’. Dissolvida a reunião, Richard Whitney,vice-presidente da bolsa, entrou na sala de transações de WallStreet e, lentamente, para que todos o notassem, aproximou-se

da banca onde se viam os tí-tulos metalúrgicos. Pediu10 mil ações da Steel Corpo-ration (a maior indústrianorte-americana do aço),que abrira a 205,5 dólares demanhã e estava, naquele mo-mento a 193,5, e ofereceu 255dólares por ação. Continuou,depois o seu giro, adquirindovistosamente grandes quanti-dade de uma quinzena de ações-chave. Os resultados foram posi-tivos: entre o público espalhou-sea convicção de que ‘os banqueirossalvam a bolsa’ e isso trouxe umpouco de confiança. No fechamen-to, os valores haviam, no geral, subi-do até os mínimos, embora houves-sem perdido, em média, 12 pontos noíndice industrial. Entre sexta-feira esábado houve pequenas quedas. Nodomingo, apareceram artigos tranqüi-lizadores nos jornais e severos sermõesforam proferidos nas igrejas: o crash da

bolsa era a ‘punição divina’ para osque haviam perdido de vis-ta os valores espirituais".

Assinala Pereira: "Na se-gunda-feira, 28 de outubro,à abertura da bolsa, os agen-tes foram obrigados a lançarno mercado quantidades nãohabituais de ações postas àvenda, (...) com perdas aindamais graves". No dia seguinte,a "terça-feira negra", 29 de outu-bro, "desabaram também asações de negócios estáveis. A ex-plicação para esse fato aparente-mente anômalo é fácil, emboraum pouco complexa. Tentemos es-clarecê-la. No mercado, em subs-tância, estão ações que continuamcorrespondendo a alguma coisa deconcreto – ou seja, a uma fração da in-dústria, casas ou terrenos. Essasações continuam tendo um valor, em-bora diminuído. Mas há tambémações que não correspondem pratica-mente a nada. O caso mais típico é cons-tituído pelas sociedades administrado-ras de capitais (investments trusts), que

entraram em moda entre 1928 e 1929. As ações desses trustescorrespondiam a particulares de uma sociedade, cuja finalida-de era administrar, presumivelmente no interesse dos clientes,ações de terceiros. Tudo seria claro e honesto se cada um dos

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membros desses trustes tivesse ações de valorproporcional ao dos títulos em seu próprio no-me. Na realidade, porém, a quantidade deações que levavam seu nome era muitas e mui-tas vezes superior à reserva que os trustes real-mente possuíam".

Prossegue Pereira: "Entre essas ações esta-vam aquelas que, logicamente, perderiammais; às vezes até 99% do valor. Bancos e gran-des financeiras, que precisavam recuperar o lí-quido, não podiam, portanto, revender as açõesdas sociedades administradoras de capitais re-duzidas a zero; e foram obrigadas a liquidar dopróprio bolso as únicas ações que ainda ‘resis-tiam’", de empresas sólidas, como a GeneralElectric, Steel Corporation, Westinghouse – as-sim, os "títulos sérios", em meio à "grande ofertae pouca procura", também despencaram. Re-sultado: "só em 1937, o volume material da pro-dução voltou às quantidades de 1929, e o valordessa produção, em dólares, permaneceu inferior ao de 1929 até1941", ano em que os Estados Unidos entraram na guerra.

Em seguida, por páginas e mais páginas, Pereira retraça,com detalhes mais vívidos, a trajetória da Grande Depressão edo New Deal, esboçada acima a partir do relato mais sucinto deBrener, e analisa diferentes explicações, sem tornar nenhumacomo definitiva. Ao final, diz: "Cabe concluir, portanto, que acrise deixou uma lição significativa: economias que se fasci-nam a um ponto extremado com a possibilidade de obter lu-cros trocando papéis vivem numa quimera perigosa. Os mer-cados financeiros, certamente, são instituições úteis, fazemparte da própria estrutura do capitalismo e desempenhamfunções indispensáveis na canalização de recursos para ativi-dades produtivas. Tornam-se uma bomba-relógio, porém,quando pessoas, empresas e governos se esquecem da verda-deira razão de ser das bolsas de valores e passam a ver nelasuma impossível máquina de fazer dinheiro o tempo todo ouum instrumento destinado prioritariamente à especulação".

Os outros livros disponíveis nas livrarias que se referem à cri-se de 1929 se diferenciam dos livretos de Brener e de Pereira porserem muito maiores, por não se referirem especificamente à cri-se de 1929 e à Grande Depressão, mas as mencionarem de pas-sagem, e por serem de leitura muito mais exigente, já que sãoobras muito mais teóricas do que factuais. Deles, o mais encor-pado e talvez o mais informativo é "Capitalismo Global – His-tória Econômica e Política do Século XX", do economista da Uni-versidade de Harvard Jeffry A. Frieden, publicado no Brasil pelaZahar – Jorge Zahar Editor. Basicamente, Frieden analisa o pro-cesso de globalização do capitalismo, iniciado em fins do século19, até chegar aos dias atuais. Ele mostra como a chamada Era deOuro do capitalismo, em especial de 1896 a 1914, merece o nomepor duas razões: de um lado, "o capitalismo global triunfante",de outro, o "fortalecimento do padrão ouro". Então houve umafase de grande e rápido desenvolvimento econômico, segundoos padrões do liberalismo clássico: o livre comércio e a livre con-corrência em termos internacionais, com o Estado praticamentesó intervindo como guardião do ouro e da moeda.

Essa era de ouro entrou em colapso a partir daPrimeira Guerra Mundial, mas o pior ainda es-tava por vir. A Grande Guerra, como era chama-da, foi considerada "a guerra para acabar com to-das as guerras" e havia outras esperanças no ar:novas indústrias e novas corporações se trans-formaram em novas empresas multinacionais.Nos Estados Unidos, por exemplo, as grandesmontadoras de automóveis deixaram de serapenas montadoras de peças fornecidas por ou-tras empresas menores; passaram a comprar osfornecedores e a reuni-los em gigantescos con-glomerados (por exemplo, a GM comprou a fá-brica de baterias Delco), controlando todo o pro-cesso produtivo e mesmo comercial, desde a mi-neração e o cultivo de seringueiras para borrachaaté as vendas a varejo. Além disso, seus grandesacionistas passaram também a deter grande par-te das ações de outros ramos, em outros países.

Esse boom terminou em 1929, que signifi-cou também o abandono do padrão ouro, a começar de seussustentáculos, a Grã-Bretanha e os Estados Unidos; o capi-talismo global também entrou em colapso, pois os diferentespaíses passaram, para se proteger da crise, a rumar "em di-reção à autarquia". Nos capítulos "Schacht e os nazistas re-constroem a Alemanha", "As políticas econômicas autárqui-cas" e "A Europa se volta para a direita", Frieden, depois deassinalar que a crise foi atribuída largamente ao que se jul-gava um descontrole provocado pelas práticas liberais clás-sicas, mostra que a solução encontrada, na Europa Central,Mediterrânea e Leste, foram regimes autoritários de direita,ou mesmo plenamente fascistas e nazistas, com a interven-ção do Estado ocorrendo sem a manutenção das instituiçõesdemocráticas. Na Alemanha, o grande introdutor dessescontroles estatais foi o grande empresário e grande econo-mista Hjalmar Schacht, que se aliou a Hitler

E Frieden demonstra como, ao contrário, em outros países im-portantes, em particular na Suécia e nos Estados Unidos, triun-fou a social-democracia inspirada no economista inglês Keynes,nos governos de Roosevelt nos EUA e do Partido Social-Demo-crata na Suécia. Ou seja, enquanto nos regimes de direita as so-luções de intervenção estatal para garantir encomendas deobras públicas e de armamentos de guerra, para garantir empre-gos, salários e preços, implicaram na restrição das liberdadespúblicas, com tanto os setores empresariais quanto os trabalha-dores sob rígido controle estatal, na Suécia e nos Estados Unidosas intervenções estatais nas mesmas esferas, com menor ênfasenas encomendas bélicas, se deram com a manutenção e amplia-ção das liberdades democráticas. (Na União Soviética, se con-cretizava uma terceira versão do estatismo, mais radical, compraticamente a eliminação da iniciativa privada na economia).No horizonte, já se vislumbrava a Segunda Guerra Mundial.

Outro livro que aborda a crise de 1929 num contexto mais am-plo é "História dos Estados Unidos – das Origens ao Século XXI",dos autores brasileiros Leandro Karnal, Luiz Estevam Fernandes,Marcus Vinícius de Morais, e do canadense Sean Purdy, radicadono Brasil, todos historiadores de universidades do País, publica-

Economias que sefascinam a um pontoextremado com apossibilidade de obterlucros trocando papéisvivem numa quimeraperigosa. Se tornam umabomba-relógio quandose esquece a verdadeirarazão das bolsas devalores e passam a vernelas uma impossívelmáquina de fazerdinheiro o tempo todo.

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25SET/OUT E NOV/DEZ 2008 DIGESTO ECONÔMICO

do pela Editora Contexto. Purdy é que trata da"crise econômica" e dos "tempos duros"; descre-ve o New Deal e dá ênfase à chamada "respostade baixo", ou seja, à cultura de protesto dos anos1930, numa fase em que escritores e artistas emgeral eram muito influenciados pelo Partido Co-munista dos Estados Unidos.

Do historiador americano John Lukacs é o li-vro "Uma Nova República – História dos Esta-dos Unidos no século XX", também publicadopor Jorge Zahar Editor. Lukacs classifica o século20 como "o século do automóvel", o grande sím-bolo do desenvolvimento material dos EstadosUnidos. Sobre a crise de 1929, sua principal cons-tatação é de que "a Depressão, em seu pior mo-mento, significou uma crise de confiança nas ins-tituições financeiras da nação. Não significouum crise de confianças nas instituições políticasda República", apesar da "tensão sobre o tecidosocial do povo norte-americano".

Finalmente, o tema da crise de 1929 é abor-dado de passagem numa obra clássica, origi-nalmente publicada em 1939 e que deu origemà disciplina de Relações Internacionais nas

universidades de todo o mundo – "Vinte anosde crise – 1919-1939", do historiador inglêsE.H. Carr, lançada pela Editora Universidadede Brasília-Instituto de Pesquisas Internacio-nais. Carr compara a realidade factual do con-flito entre os interesses dos vários governos edos vários Estados com a doutrina vigente nadiplomacia e na teoria econômica sobre a "har-monia de interesses", mais exatamente a dou-trina de que, como na teoria do livre mercado,na arena internacional podem ser criados me-canismos que fomentem ao mesmo tempo osinteresses de cada Estado e o interesse geral detodos eles, por meio de ajustes automáticos, domesmo modo que ocorreria no mercado. Jul-gava-se que a guerra ocorria por falta de infor-mação e de consciência ocasionada pela au-sência de livre curso das idéias, que levara àPrimeira Guerra Mundial por causa de uma vi-são estreita. A doutrina da "harmonia de inte-resses" dizia que, findo esse conflito, a paz se-ria assegurada pelo livre fluxo de bens e idéias.O livro de Carr e a história mostraram que nãoera bem assim.

Os norte-americanosnão tardaram

a perceber, apóso crash, que a

febre do dinheirofácil não tinhabase sólida, já

que a economiade verdade

começava a patinar.

Reprodução

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26 DIGESTO ECONÔMICO SET/OUT E NOV/DEZ 2008

1929

O Crash, aquebra da Bolsade Nova Yorkem outubrode 1929, tevereflexo nomundo todo.O desempregonos EUA atingiu13,5 milhões detrabalhadores.A crise ocorria aofim de mais deuma década deprosperidadecrescente semprecedentes nosEUA ou mesmono mundo.

Manhã de 29 de outubro de 1929, queficou conhecida como terça-feira negra:

uma multidão se aglomera nasproximidades de Wall Street para

acompanhar as cotações degrandes empresas, que despencam.

Era a fase mais aguda da crise.

No fim da tarde daterça-feira negra, o

desespero chegou aoápice: mais de 15

bilhões de dólares empapéis tinham virado

fumaça em questãode horas. A polícia

toma conta da cidadepara evitar a ação de

depredadores.

AFP

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AFP

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28 DIGESTO ECONÔMICO SET/OUT E NOV/DEZ 2008

A produção industrialnorte-americana não cresceu

proporcionalmente ao valor dasações, infladas artificialmente.

AFP

Apenas 30 dias após a terça-feira negra, asações da Bolsa de Nova York haviam perdido40% de seu valor. Milhares de especuladoresestavam na miséria, mas isso era apenas o

começo da crise, que durou décadas. Jogar no mercado de ações setornou o maior passatempo dos

norte-americanos. Até engraxatesaconselhavam clientes.

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29SET/OUT E NOV/DEZ 2008 DIGESTO ECONÔMICO

Reprodução

AFP

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30 DIGESTO ECONÔMICO SET/OUT E NOV/DEZ 2008

AFP

Bolsa de Valores de Nova York em outubrode 1929: Wall Street enfrentou sua primeira

grande crise. Investidores faziam fila nosetor reservado e do lado de fora, milhares

de pessoas se aglomeravam.

Bolsa de Valores de Nova York,outubro de 1987: registrada a maior

queda do índice Dow Jones em apenasum dia, impressionantes 22,6%.

Bolsa de Valores de Nova York,outubro de 2008: ninguém sabe a

extensão da crise atual, mas hásemelhanças com as crises anteriores.

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31SET/OUT E NOV/DEZ 2008 DIGESTO ECONÔMICO

Fotos: AFP

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32 DIGESTO ECONÔMICO SET/OUT E NOV/DEZ 2008

Karl Marx eJohn MaynardKeynes mandamlembranças...

Lee Jae-Won/Reuters

HenriqueRattner

Professor titular(aposentado) da

FEA/USP e daEAESP/FGV, foi

fundador daABDL e diretordo Programa

LEAD no Brasil.Atualmente éconsultor naDivisão de

Economia eEngenharia de

Sistemas do IPT -Instituto dePesquisas

Tecnológicas.

Crisefinanceira

oudo

sistema?

Crisefinanceira

dosistema?

ou

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33SET/OUT E NOV/DEZ 2008 DIGESTO ECONÔMICO

O pânico que tomou conta domercado financeiro norte-ame-ricano contagiou em todos ospaíses do mundo, causando an-

gústia e desespero a centenas de milhões depessoas, que observam atônitos o derretimen-to de suas economias e, nos Estados Unidos, aperda de seus lares.

O sistema financeiro mundial está destroça-do e leva a economia "real", produtiva, a umadepressão comparável apenas à da década dosanos vinte. Dos Estados Unidos, a crise atra-vessou o Atlântico, atingindo os países daUnião Européia, a Rússia e prossegue em suaonda avassaladora até a Índia e os países doExtremo Oriente. Assusta não somente a ex-tensão geográfica do desastre, mas sobretudoseus profundos impactos no sistema econômi-co. Devido a suas raízes nos mercados finan-ceiros, a crise penetra e perverte os negócios,as empresas e o precário equilíbrio entre a ofer-ta e a demanda de bens e serviços.

A perda de liquidez de vários bancos ame-ricanos, da maior seguradora do mundo e deduas grandes empresas imobiliárias – Fan-nie Mae e Freddie Mac – obrigou o Tesouronorte americano a tentar estancar a crise dosistema, injetando um "pacote" de 700 bi-lhões de dólares para acalmar a população erestaurar a credibilidade dos bancos. Ade-mais, o Banco Central e os governos dos paí-ses europeus baixaram as taxas de juros eabriram seus cofres para socorrer as institui-ções financeiras falidas. Em vão, pois a crisecontinua a se alastrar como um "tsunami",deixando em seu rastro os destroços do atéentão orgulhoso "livre mercado", de joelhos,implorando pela ajuda do Estado. Caiu porterra a doutrina do neoliberalismo e os arau-tos do "Fim da História" logo após o desmo-ronamento da ex-União Soviética, emudece-ram, perplexos e confusos diante da exten-são dos estragos.

A falta de crédito impacta as atividades pro-dutivas, causando desemprego e queda deconsumo, o que, num círculo vicioso retroali-mentador, diminui ainda mais as atividadesprodutivas, apesar da queda vertiginosa dospreços de petróleo e das commodities.

Inevitavelmente e apesar das declaraçõespatéticas do presidente e do ministro da Fa-zenda do Brasil sobre a imunidade do Paísfrente à tormenta que assola o mundo, a criseafeta os planos de crescimento do Brasil, quevenderá menos a seus parceiros comerciais ereceberá menos pelos produtos exportados, jáque o real perde valor em relação ao dólar, afe-

tando a balança comercial e, em seguida, o ba-lanço de pagamentos, o que reduzirá rapida-mente as reservas em moeda forte do País.Acrescentando a diminuição drástica do crédi-to às empresas, o nível de atividades econômi-cas tende a cair e assim, também, o nível de em-prego e de renda dos trabalhadores.

O "Keynesianismo" tardio, ou seja, a expec-tativa generalizada para que o Estado venha asocorrer o sistema financeiro em frangalhos,embora possa resultar em um alívio passagei-ro dos efeitos da crise, não parece mais em con-dições de assumir esse papel de "deus ex machi-na", de salvador, como foi o "New Deal" de Ro-osevelt, nos anos trinta do século passado.

Após trezentos anos, durante os quais o Es-tado decidia, regulava, mandava e desman-dava nos destinos dos povos, ele perdeu suaforça frente ao capital transnacional, concen-

A perda deliquidez de vários

bancos deduas grandes

empresasimobiliárias –Fannie Mae eFreddie Mac –

obrigou o Tesouroamericano a

injetar um pacotede 700 bilhões

de dólares.

Fotos: Jason Reed/Reuters

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34 DIGESTO ECONÔMICO SET/OUT E NOV/DEZ 2008

trado nas mãos de algumas centenas de con-glomerados industriais e financeiros, quemanipulam os mercados, especulam e reali-zam suas operações via redes eletrônicas esatélites, muito mais ágeis e eficientes do quea lenta burocracia das administrações públi-cas. A doutrina neoliberal exigiu o "encolhi-mento" do Estado, a privatização de suas em-presas e a liberdade ilimitada para a iniciati-va privada, incluindo a especulação com ocâmbio e os "novos produtos", os derivativose fundos de investimento, que não tinhamlastro real para cobrir a expansão vertiginosado sistema financeiro.

O resultado dessa "liberdade" que permi-tiu aos executivos das instituições financeirasfalidas o recebimento de prêmios no valor decentenas de milhões de dólares pela eficiên-cia com que souberam burlar a confiança dapopulação e apropriar-se de verdadeiras for-tunas bancadas, em última análise, pelo con-tribuinte, está a exigir um procedimento jurí-dico que sancione adequadamente esses atosde delinqüência.

Enganam-se aqueles que procuram mini-

mizar os efeitos da crise financeira que varreo mundo. A tão aclamada globalização daeconomia tem derrubado as fronteiras geo-gráficas e políticas para que o capital possarealizar suas operações financeiras em esca-la global, por meio de tecnologias modernas,multiplicando seus lucros de forma inéditana história. O total do PMB – Produto Mun-dial Bruto é estimado em 45 trilhões de dó-lares. Mas, a ciranda financeira, alavancadapela especulação, por derivativos e outrosprodutos de criar "passivos" financeirosatualmente circulando pelos mercados, ul-trapassa 450 trilhões de US dólares. Bastavao estouro da "bolha" do mercado imobiliárionorte americano para detonar uma reaçãoem cadeia de quebras , falências e inadim-plências, que arrastaram em seu séquito to-do o sistema financeiro no mundo.

É ilusória a hipótese de que os estragos fica-rão restritos somente ao sistema bancário. Ine-vitavelmente, a economia real, a produção e oemprego, o comércio exterior e as taxas cam-biais já estão sendo atingidos pela avalancheque pôs fim a uma era delirante de desenvol-vimento e "progresso" ilimitados.

A crise revela a face cruel do sistema, quecausa a perda de empregos, casas, poupan-ças e esperanças de um futuro melhor para amaioria da humanidade. Enquanto a ondade especulação contribui para concentrarainda mais riquezas nas mãos de uma mino-ria ínfima, a metade da população mundialvive na pobreza e um quinto subsiste commenos de US$ 1 por dia. As organizações in-ternacionais – FMI, BM., BIRD, OMC – se re-velam inoperantes e impotentes para estan-car as perdas de centenas de bilhões de dó-lares das diferentes economias nacionais. Osgovernos não se atrevem a apontar os res-ponsáveis pela calamidade e, permanecen-do passivos, perdem a credibilidade perantesuas populações. Em vão, os chefes de Esta-do lançam apelos à união e adoção de medi-das de socorro ao sistema financeiro, pelomenos nos espaços integrados como a UniãoEuropéia, a NAFTA, o Mercosul e outros – acrise é sistêmica e afeta a todos com impactoredobrado. Nem o dólar, nem o euro, nem oyen e as demais moedas das economias con-sideradas mais fortes têm dado sinais demaior solidez. Bancos e instituições finan-ceiras faliram e foram adquiridos pelo Esta-do, para evitar uma corrida generalizada dapopulação para retirar suas poupanças, pe-los governos da Grã Bretanha e dos EstadosUnidos, pondo fim ao mito de "livre empre-

José Cruz/ABr

Os governos nãose atrevem aapontar osresponsáveis pelacalamidade;permanecendopassivos, perdema credibilidadeperante suaspopulações.

Kevin Lamarque/Reuters

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35SET/OUT E NOV/DEZ 2008 DIGESTO ECONÔMICO

sa", do empresário inovador e da superiori-dade dos mercados, premidos pela neces-sidade de intervenção salvadora doEstado, com profundas implica-ções para as estruturas políticas esociais nos anos vindouros.

A problemática, contudo,transcende as dimensões eco-nômicas e financeiras e coloca aquestão fundamental sobre anatureza da sociedade e os pa-drões éticos que devem reger oconvívio social.

O fracasso do socialismo "real",que foi a primeira experiência históricade construir um sistema político e econômicoalternativo ao capitalismo selvagem, nãoredime este de suas mazelas, ou seja, adesigualdade gritante e a misériade centenas de milhões de pes-soas, exploradas e alienadas, ví-timas de crises econômicas re-correntes e das duas hecatom-bes das guerras mundiais, noséculo passado.

Por outro lado, o socialismodemocrático não pode ser aobra de uma minoria – o partido"revolucionário" que se transformaem oligarquia autoritária, excluindoas massas da participação nas decisões queafetem seu destino. As lições extraídas da ex-periência fracassada da ex-URSS, de seuspaíses satélites e das tentativas tardias de re-petir o exemplo nos países do ExtremoOriente – Coréia do Norte, Camboja, Vietnã,e mesmo a China, ensinam que um regimesocialista não pode ser construído com basena pobreza e escassez generalizada de bens eserviços, cuja distribuição exigirá a forma-ção de filas, as quais, para manter a ordem eos privilégios dos governantes, apela-rão ao aparelho de segurança doEstado e de suas burocracias,opressores e autoritários.

A inadequação da de-mocracia formal e repre-sentativa, incapaz deatender aos anseios eexpectativas da popu-l a ç ã o , s o b re t u d o d amassa de carentes e mar-ginalizados, leva à formu-lação de propostas e expe-riências de organização da pro-dução e distribuição de bens e servi-ços mais compatíveis com a integração

social e participação comunitária, no exercí-cio pleno da cidadania.

Foi a partir da organização crescente dasociedade civil que o Fórum Social

Mundial lançou o desafio que rever-berou por todos os continentes –"Um outro mundo é possível".

Em lugar do Estado, ou me-lhor, dentro do Estado, surgeum poder alternativo – as mi-

lhões de organizações não go-vernamentais, por enquanto di-

fusas, atomizadas e não conecta-das, que representam um novo ator

social, a sociedade civil que, desde ofim do século 20, começou a despontar no ce-

nário histórico como poder alternativo.Seus membros recusam o papel de

meros objetos passivos do apare-lho burocrático e autoritário,

controlado pelas elites econô-micas e políticas. Aspiram aparticipar nas decisões emum regime democrático, hojed o m i n a d o , u s u r p a d o e mmãos de oligarquias incrusta-

das no aparelho do Estado. Aproposta alternativa almeja uma

democracia participativa, um regi-me de "accountability", de responsabi-

lização daqueles que detêm um mandatopúblico e que pode ser revogado quando osrepresentantes eleitos se mostram indignosdo mandato popular.

Os padrões políticos e culturais impostos edisseminados pelas elites dominantes, tanto noregime neoliberal quanto no socialismo "real",recusam os direitos de cidadania efetiva aos po-bres e discriminam os subalternos, aos quais évedado o acesso à representação pública.

Para superar o impasse em que se encontra asociedade neste limiar de século, postu-

lamos a primazia da cooperaçãoem lugar da competição como

valor fundamental do con-vívio social. Na constru-

ção de uma nova ordemsocial mundial, caberáao Estado a função deorientar e coordenar asatividades econômicas,

enquanto a populaçãoprocurará conquistar sua

autonomia e emancipação,até chegar à autogestão, com o

pleno desenvolvimento de suas po-tencialidades criativas.

A falta de crédito impactaas atividades produtivas,causando desemprego e

queda de consumo, oque, num círculo vicioso,diminui ainda mais as

atividades produtivas. Acrise alcançou até mesmo

a poderosa China.

Newton Santos/Hype

Byun Yeong-Wook/AFP

Lourenço Furtado/ Futura Press

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36 DIGESTO ECONÔMICO SET/OUT E NOV/DEZ 2008

O Japão precisapassar de

fornecedor deprodutos de altatecnologia para

indutor docrescimento dos

países emdesenvolvimento.

Kim Kyung-Hoom/Reuters

AlcidesDominguesLeite JúniorProfessor deEconomia daTrevisan Escolade Negó[email protected]

Japão: esgonecessidade

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37SET/OUT E NOV/DEZ 2008 DIGESTO ECONÔMICO

O Japão foi o país que mais cresceu no mundo, emtermos econômicos, nas décadas de 1960 a 1980.Tal crescimento, conhecido como milagre eco-nômico japonês, ocorreu, sobretudo, graças à si-

nergia entre o setor privado e o setor público. Os melhores alu-nos das universidades japonesas eram recrutados para traba-lhar nos principais órgãos públicos do país, com destaque parao Ministério da Indústria e Comércio. Após a aposentadoria,os funcionários públicos mais destacados passavam a traba-lhar nas grandes corporações privadas. Além disso, as pesqui-sas desenvolvidas pelos órgãos públicos eram compartilha-das com o setor privado.

Como indutor da inovação do setor industrial, o Estado ja-ponês financiava parte das pesquisas realizadas pelas indús-trias, sobretudo no desenvolvimento de novos produtos naárea de ciência e tecnologia. O país também protegia o mer-cado interno da entrada de produtos estrangeiros que pu-dessem concorrer com a produção nacional. De uma formageral, o Japão realizou, no período pós-guerra, uma políticaindustrial afirmativa, com objetivo de desenvolver um par-q u e i n d u s t r i a lc o m p e t i t i v o n oâmbito mundial.

Fruto da políticaindustrial japonesae do desenvolvi-mento de moder-nas técnicas de ad-ministração da pro-dução, a indústriaautomobilística e aeletroeletrônica ja-ponesa se tornaramas mais importan-tes do mundo. Tudoisto alavancou ocrescimento econô-mico do país, a pon-to de fazer do Japãoa segunda maior

economia do planeta, atrás apenas dos Estados Unidos.Nos anos de 1990, a economia japonesa começou a dar si-

nais de esgotamento. A supervalorização dos ativos, prin-cipalmente dos imóveis, e o excesso de alavancagem do se-tor financeiro, geraram uma crise no setor financeiro. Parasanear o sistema financeiro e equacionar o valor dos ativos,o governo do Japão aplicou medidas que colocaram a eco-nomia do país em situação de semi-estagnação durante todaa década de 1990. Neste período o Produto Interno Bruto(PIB) japonês praticamente parou de crescer. Mesmo com ju-ros reais negativos, as famílias japonesas não se dispunhama aumentar seu nível de consumo. O Estado, por sua vez, nãopossui folga fiscal para impulsionar a economia.

A recuperação da economia mundial, fruto do estímuloao consumo nos Estados Unidos e Europa e do crescimentodos países emergentes, ajudou o Japão a recobrar sua ativi-dade econômica. Entre 2000 e 2007, o PIB japonês se expan-diu em ritmo não observado desde a primeira metade dosanos 1980. No entanto, a alegria durou pouco. A crise de cré-dito nos Estados Unidos e sua conseqüência para a econo-

mia mundial trou-xe de volta o gostoamargo da reces-s ã o . E m 2 0 0 8 , aeconomia japone-sa expandirá me-nos de 1% e , em2009, o crescimen-to deverá ser nega-tivo, ou seja, deve-rá ocorrer uma re-tração do PIB.

A recuperaçãoda economia japo-nesa já não depen-de apenas da açãodo governo local.Praticamente to-dos os instrumen-tos de política mo-

tamento de modelo ede mudanças estratégicas

Toshifumi Kitamura/AFP

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38 DIGESTO ECONÔMICO SET/OUT E NOV/DEZ 2008

se considerar o mercadoexterno como alvo paraa venda de produtos ja-poneses e a estratégia deinvasão desses merca-dos via qualidade e pre-ços dos produtos oferta-dos, deve ser substituí-da pela visão de integra-ç ã o e c o o p e r a ç ã o n odesenvolvimento de no-vos negócios, com com-partilhamento dos in-vestimentos em pesqui-sa e tecnologia com ou-t ro s p a í s e s . O J a p ã oprecisa passar de forne-cedor de produtos de al-ta tecnologia para indu-tor do crescimento dospaíses em desenvolvi-mento. É necessár ia ,portanto, uma política

externa mais ativa por parte do governo japonês.A fase de industrialização e crescimento econômico interno foi

realizada com êxito pelo povo japonês. A fase de integração in-ternacional ainda não foi conduzida com a intensidade necessá-ria para um país que tem a segunda maior economia do mundo. OJapão não depende mais de melhorar o que já vinha sendo feito esim de mudar o rumo estratégico de sua política econômica.

netária e fiscal já foramu t i l i z a d o s . S o m e n t euma mudança no cená-rio internacional podereanimar o mercado ja-ponês no curto prazo.

A eleição de BarackObama, por outro lado,pode trazer esperançaspara o Japão. É possívelque o novo presidenteamericano aponte parauma política econômicam a i s i n t e g r a d a , c o mparticipação ativa dospaíses europeus, asiáti-cos e latino-americanos.A expansão dos limitesdecisórios para além dossete países mais ricos(Estados Unidos, Japão,Alemanha, Inglaterra,França, Itália e Canadá),com inclusão de China, Índia, Rússia e Brasil, os BRIC, podeabrir novos horizontes para a economia japonesa.

Uma maior integração entre o Japão e os países em desen-volvimento pode ser uma saída para o estado de estagnaçãoem que se encontra a economia nipônica. Para tanto, há ne-cessidade de mudanças estratégicas na condução dos as-suntos políticos pelo governo do país. A visão histórica de

Em 2008, a economia japonesa expandirá menos de 1% e, em 2009,o crescimento deverá ser negativo, com uma retração do PIB.

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Chang-Ran Kim/Reuters

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39SET/OUT E NOV/DEZ 2008 DIGESTO ECONÔMICO

IMÓVEL

Divulgação

Fábio Rossi FilhoDiretor da Itaplan e

da Diretoria deLançamentos do

Secovi-SP

Nos dois últimos anos, o mercado imobiliário bra-sileiro apresentou resultados muito animado-res. No ano passado, pesquisa realizada pelo Se-covi-SP mostrou que em 2007 foram negociados

em São Paulo 36.615 imóveis novos, representando um au-mento de 29,27% sobre 2006, que foi de 28.324 unidades. Emrelação aos números deste ano, de janeiro a agosto, as vendas,também de imóveis novos, atingiram 25.920 moradias, um in-cremento de 33,2% sobre os oito primeiros meses de 2007. Coma grave crise financeira global, o imóvel se mostrou um ótimoinvestimento. Algumas empresas do setor estão revendo seusplanejamentos e a tendência para 2009 é de um mercado dife-rente, ninguém sabe ao certo como ele deverá se comportar, aúnica certeza é que, mesmo assim, haverá crescimento. Nummomento de incertezas, a busca de investimentos seguros estáaumentando e a compra de imóvel, seja residencial ou comer-cial, sempre se mostrou um investimento seguro

Levados pelos bons ventos da economia, entre 2006 e 2007,21 construtoras e incorporadoras abriram capital na Bovespa,com o objetivo de captar recursos e investir em novos empre-endimentos. Outras já estavam na Bolsa, totalizando 32 com-panhias de capital aberto, dentro de um setor com mais de 3 milconstrutoras no Brasil.

O setor está bem, há dinheiro em caixa para a conclusão dosempreendimentos atuais e não haverá obras atrasadas ou pa-ralisadas. O montante de R$ 3 bilhões anunciado pelo ministroGuido Mantega para o segmento da construção civil irá garan-tir que não falte crédito para futuros empreendimentos.

É importante dizer que, para o consumidor, financiamentos

até R$ 350 mil continuarão a existir, pois eles utilizam recursosda caderneta de poupança e do FGTS (Fundo de Garantia porTempo de Serviço). Neste caso, os juros não irão subir, pois se-guem regras bem definidas. Acima desse valor deverá havermudança na taxa de juros em 2009, pela escassez de crédito.

Com a situação complexa, a recomendação é sempre buscaro auxílio de uma imobiliária tradicional, com vários anos demercado, para melhor aconselhar o comprador. Ela estará ve-rificando a situação atual e futura do comprador, o uso que sedará ao imóvel e dessa forma indicar a melhor opção. Saberquem é imobiliária e quem são os envolvidos no negócio se tor-nou fundamental neste cenário.

O setor passou por várias crises do mercado, por diversos pla-nos e pacotes econômicos, mas sempre conseguimos encontrarformas de continuar trabalhando. Houve época que trabalhamoscom crédito zero. Mas quem é bom e profissional sempre conti-nuará no mercado. Após uma crise, o setor saiu mais fortalecido edesta vez não será diferente. Entra crise, sai crise, o imóvel con-tinua sendo um bom investimento, seguro e rentável.

Um investimento seguro

Newton Santos/Hype

IMÓVEL

Um investimento seguro

Page 40: Digesto Econômico nº 450

Kai P

faffe

nbac

h/A

FP

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41SET/OUT E NOV/DEZ 2008 DIGESTO ECONÔMICO

2009

No começo do ano haviauma certa preocupaçãocom o setor imobiliárionorte-americano, que

após um boom nos últimosanos, sofreu com a

alta da inadimplência.Mas ninguém esperava

que grandes bancoscomeçassem a quebrar,

como foi o caso daLehman Brothers emsetembro. O ano de

2008 ficará marcadopela crise financeira e

provavelmente 2009 seráo ano em que o mundo

experimentará a primeirarecessão do século 21

Operador da Bolsade Valores deFrankfurt fala aotelefone atrás deum painel imitandouma nota de umdólar, com a figurado presidenteGeorge Washingtonexpressandodesespero. A criseafetou a Europa.

2008Boneco de um touro com o pescoço quebrado,

tendo como fundo um painel com o gráfico dedesempenho da Bolsa de Frankfurt no dia

16 de setembro, um dia após a quebra da LehmanBrothers, quarto maior banco de investimentos

dos Estados Unidos, que pediu concordata.

Ale

x G

rimm

/Reu

ters

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42 DIGESTO ECONÔMICO SET/OUT E NOV/DEZ 2008

Kai Pfaffenbach/Reuters

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43SET/OUT E NOV/DEZ 2008 DIGESTO ECONÔMICO

AFP

A crise financeira começa a se alastrar como um gigantesco tsunami,derrubando as bolsas no mundo todo. Expressões de desespero dos

operadores de Kuala Lumpur (acima) e Alemanha (abaixo).

Alex Grimm/Reuters

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44 DIGESTO ECONÔMICO SET/OUT E NOV/DEZ 2008

Paulo Whitaker/Reuters

Brendan McDermid/Reuters

O mercado financeiro nomundo todo oscilou muito

durante o mês deoutubro, comportando-se

como um 'louco', naopinião de muitosanalistas, um dia

entrando em profundadepressão, com quedasfantásticas, e logo após

entrar em extremaeuforia. Acima, operadorda BM&F, em São Paulo, eda Bolsa de Nova York,

na foto ao lado.

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45SET/OUT E NOV/DEZ 2008 DIGESTO ECONÔMICO

Spencer Platt/AFP

Stan Honda/AFP

Do lado de fora da Bolsade Valores de Nova York,

em Wall Street,manifestantes satirizam

a crise financeira ecriticam o governo pelaajuda bilionária para

salvar bancos eseguradoras. Do lado dedentro, o ambiente é de

tensão em dias quenotícias ruins, vindas de

diferentes lugares domundo ou de balanços

de empresas, fazendo ospreços da ações caírem

ainda mais.

Page 46: Digesto Econômico nº 450

46 DIGESTO ECONÔMICO SET/OUT E NOV/DEZ 2008

Spencer Platt/AFP

Manifestantesprotestam ao lado

do touro, símbolo deWall Street, contra

o pacote de 700bilhões de dólares

aprovado peloCongresso norte-americano, na

tentativa de evitarque mais empresas

quebrem e que acrise chegue àeconomia real.

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47SET/OUT E NOV/DEZ 2008 DIGESTO ECONÔMICO

Pichi Chuang/Reuters

Yoshikazu Tsuno/AFP

A Ásia tem sidoduramente atingidapela crise financeira.Prejudicado por uma

forte redução doinvestimento

empresarial, o PIBjaponês vem

recuando durante oano e tecnicamente

o país já está emrecessão. Na fotoacima, Bolsa de

Valores de Taipei; aolado, Bolsa de Tóquio.

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48 DIGESTO ECONÔMICO SET/OUT E NOV/DEZ 2008

Em 2009, o futurodo mundo em xeque

Por Heci Regina Candiani

Opior que pode acontecer em2009, ano em que o mundo intei-ro terá de lidar com as conse-qüências da crise econômica que

no segundo semestre de 2008 aterrorizou os Es-tados Unidos e balançou o mercado financeiroem todo mundo, é que os governos ocidentaisoptem pelos caminhos errados e adotem polí-ticas econômicas cada vez mais intervencionis-tas. Esta frase resume, de modo simplificado, asidéias do cientista político e escritor francêsGuy Sorman, que ao longo de toda a vida tem sededicado, em textos acadêmicos, artigos emjornais e conferências, a esclarecer os preceitosdo liberalismo e como este pode ajudar na cons-tituição de um mundo com menos pobreza,menor desigualdade e mais liberdade.

Nos últimos 30 anos, Sorman tem pesquisa-do exaustivamente as relações entre política eeconomia em países tão diferentes como Esta-dos Unidos e China, Brasil e Índia, França e Ja-pão e o resultado de tanto tempo de dedicaçãoele apresenta em uma obra lançada em outu-bro no Brasil: A Economia não Mente (É Rea-lizações, R$ 45). Na obra, Sorman analisa comoa competição entre os dois modelos econômi-cos existentes no mundo até o início da décadade 1990 – o socialismo de estado e o capitalis-mo de mercado – culminou na hegemonia ca-pitalista global e da economia liberal e defendeque esta é a melhor saída para todos os paísesdispostos a combater a instabilidade econômi-ca e a pobreza e, principalmente, interessadosem promover o desenvolvimento humano.

Em entrevista exclusiva à revista D ig e st oE c o n ôm i c o , Guy Sorman esclareceu algunspontos de suas convicções. Sempre em tommoderado e equilibrado, buscando uma res-posta racional a questões polêmicas, analisoua economia brasileira e o governo do presiden-te Luiz Inácio Lula da Silva e apresentou suasperspectivas para 2009. Acompanhe abaixotrechos da entrevista de Guy Sorman:.

Divulgação

Guy Sorman:escritor e

cientista político.

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50 DIGESTO ECONÔMICO SET/OUT E NOV/DEZ 2008

Digesto Econômico – Ainda existe uma grandeconfusão sobre o que é o liberalismo efreqüentemente o desafio intelectual decompreendê-lo se dissolve nessa confusão.Como o senhor explicaria o conceito deliberalismo para os brasileiros, inclusive paraque eles possam compreender os referenciais deseus livros e artigos?

Guy Sorman - Apalavraliberalismotemdi-ferentes significados em diferentes países. Sig-nifica, simultaneamente, três coisas: economiade mercado livre, baseada no empreendedoris-mo privado, comércio livre e regulação natural;também significa democracia política na qualas minorias têm direitos contra a maioria – algo

O liberalismo éum caminho

empírico pararesolver os

maiores dramashumanos ehistóricos.

também conhecido como "estado de direito"; e,por último, liberalismo é uma filosofia segundoa qual a liberdade individual é considerada mo-ralmente superior e socialmente mais justa doque as regras impostas pelo Estado ou outrasinstituições organizadas, como religião, parti-dos políticos, nações, tribos etc.

Por razões históricas, políticas ou culturais,o liberalismo em vários países enfatiza um ououtro desses três componentes. Se o socialismoeconômico e a pobreza são as maiores preocu-pações de uma nação, os liberais colocarão omercado livre como prioridade, a fim de liber-tar as pessoas de uma pobreza abjeta. A demo-cracia e a liberdade individual ficariam em se-gundo plano. Este tem sido o caso da Américado Sul. Além disso, o liberalismo não é como osocialismo: não é um sistema teórico impostoàs pessoas, mas um caminho empírico para re-solver os maiores dramas humanos e históri-cos. Não existe um liberalismo verdadeiro emcontraposição a um falso liberalismo. Nãoexiste um livro que explique o liberalismo.Não existe nenhum partido liberal que o en-carne completamente. Em poucas palavras,existe um modo liberal de se comportar, de go-vernar, de administrar, de olhar para as socie-dades e a história: o liberalismo é o que os li-berais fazem. Por fim, o liberalismo – em con-traposição ao socialismo ou ao fascismo – deveser julgado por seus resultados, não por suasintenções. Quando o liberalismo não atingeseus objetivos, deve ser reavaliado.

DE – Em seu novo livro, A Economia não Mente, osenhor defende que a economia é uma ciência eque seu objetivo é diferenciar as boas e as máspolíticas governamentais. Como uma pessoacomum – um trabalhador, um empresário, umestudante –, que tem sua vida freqüentementetransformada, às vezes para pior, pelas decisõeseconômicas de um governo, pode fazer adiferença entre o "bom" e o "ruim"? Ou apenasespecialistas podem interpretar corretamente aspolíticas econômicas?

GS – A economia é uma ciência no sentidode que é baseada na observação de fatos. O quefunciona e o que não funciona pode ser medi-do por critérios quantitativos, como cresci-mento econômico e distribuição de renda. Acomplexidade e os equívocos são gerados pe-las abordagens globais dos economistas. Po-de-se dizer que uma política econômica é bemsucedida quando um grupo, como uma naçãoou região, enriquece em termos de renda e dedistribuição de renda. Mas isto pode ser falsopara um indivíduo sozinho. Tente explicar pa-

Masao Goto/e-SIM

Radu Sigheti/Reuters

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51SET/OUT E NOV/DEZ 2008 DIGESTO ECONÔMICO

ra um trabalhador industrial que ele perderáseu emprego porque atua em um setor indus-trial obsoleto. A "destruição criativa" de seuposto de trabalho poderá incrementar a taxaglobal de crescimento, mas não seu própriocrescimento. Portanto, a economia é uma ciên-cia coletiva para resolver problemas coletivos:o destino dos indivíduos dentro deste quadrodepende dos próprios indivíduos, do Estadode bem-estar social ou de organizações semfins lucrativos. Para tornar as coisas aindamais difíceis de serem apreendidas indivi-dualmente, a economia é um processo dinâmi-co: um bom exemplo é a inflação. A alta de pre-ços pode ser percebida, durante um curto pe-ríodo de tempo, como rentável para um lojista,mas no longo prazo, a inflação matará os in-vestimentos e tornará todos mais pobres.

Isto não significa que apenas especialistas sãocapazes de diferenciar se uma política econômi-ca é boa ou ruim. Qualquer pessoa pode fazer is-so com um conhecimento básico de economia.Mas, em geral, a economia não é ensinada, é in-suficientemente explicada ou negada comociência. Alguns marxistas e ideólogos que nãogostam de sociedades livres – porque não sãoeles que as governam – também negam a legiti-midade científica da economia. Entretanto, a es-querda, em todas as partes, tende a aceitar cadavez mais que as boas políticas econômicas ge-ram desenvolvimento humano.

DE – Muitas pessoas criticam as decisões depolítica econômica do presidente Lula. Algumasdizem que ele faz escolhas socialistas, outros, queele é um político socialista que se rendeu àspolíticas do liberalismo. Como o senhor avalia apolítica econômica do governo Lula, tendo emmente que ele ainda tem dois anos de mandatodurante os quais terá de enfrentar asconseqüências da atual crise econômica mundial?

GS - Lula é um bom exemplo de um políticode esquerda consciente da realidade. Desde adécada de 1930, todas as experiências econô-micas foram tentadas no Brasil. O País foi umlaboratório para os especialistas, que fizeramas pessoas de cobaias. Já não é mais o caso. Apartir do governo de Fernando Henrique Car-doso um consenso foi construído lentamente:todos acreditam que a estabilidade de preços,o comércio livre e o empreendedorismo são osmotores do desenvolvimento humano. Semesta base consensual não há crescimento e odesenvolvimento será um processo lento. Osempresários precisam de tempo para tomar asdecisões que só trarão retorno no longo prazo.Portanto, uma política econômica que não sejade longo prazo é inútil: o tempo é o elemento-chave para alcançar o desenvolvimento. Mascomo combinar a necessidade de continuida-de econômica e o desejo político de mudançade uma democracia? A resposta é o Estado deDireito: fundamentos que não podem ser mu-

Uma políticaeconômica quenão seja de longoprazo é inútil:o tempo é oelemento-chavepara alcançar odesenvolvimento.

Newston Santos/Hype

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52 DIGESTO ECONÔMICO SET/OUT E NOV/DEZ 2008

dados, seja qual for sua inclinação política. OBrasil atingiu este patamar, no qual um novopresidente não pode mudar, do dia para a noi-te, as regras do jogo. Isso leva os presidentes atrabalharem pela distribuição de renda. Lulafez muito nesse sentido, sem deixar que a dis-tribuição destrua o empreendedorismo. NoBrasil, como em muitas democracias liberais, odireito favorecerá o empreendedorismo e umcrescimento maior. Isso explica por que o cres-cimento no Brasil – e mais além, na AméricaLatina – é mais lento do que na Ásia. Na Ásia,os Estados não estão preocupados com justiçasocial – como o caso da China – ou a conside-ram um problema familiar – como no Japão.

Mas no Brasil a questão social ou o medo deuma revolução leva a um equilíbrio entre jus-tiça social e crescimento econômico. Por isso, ocrescimento é mais lento.

Sobre o futuro, o debate em torno da escolhado novo presidente terá de lidar com questõescomo a definição sobre quais são os melhores in-vestimentos para o País. Escolas, serviços de saú-de, Bolsa-Família: estes são investimentos pro-dutivos ou improdutivos? Na China, onde a de-mocracia não existe, o Partido investe em obrasde infra-estrutura para acelerar a taxa de cresci-mento imediato. Mas os custos humanos destapolítica são muito elevados. No Brasil, que é de-mocrático e equilibrado, os candidatos terão deencontrar a sintonia fina entre investimentoseconômicos e investimentos sociais; os investi-mentos sociais são úteis, mas implicam uma taxamais lenta de crescimento. Pelo menos, a esquer-da e a direita tendem a falar a mesma língua: che-gou a hora de se entenderem. O populismo noBrasil declinou principalmente porque a conti-nuidade entre FHC e Lula mostrou que o libera-lismo, em seus três sentidos, funciona bem.

DE – Em seu livro, o senhor afirma que os governosque melhor garantem a economia de mercado, nosdias atuais, são os de esquerda e, como exemplo, osenhor cita o presidente Lula e sua políticaeconômica. Onde a esquerda acerta e a direita erra?

GS – Quando eu digo que, algumas vezes, amelhor combinação para um País é um líder deesquerda aplicando a política do mercado li-vre, não quero dizer que isso é bom, mas que éum fato: no Reino Unido, na Alemanha ou noBrasil. Os líderes de esquerda que aceitam aeconomia liberal dão a ela grande legitimida-de, ampliam sua posição científica e removemseu estigma social.

DE – Em A Economia não Mente, o senhor dedicagrande parte da argumentação ao tema dasconseqüências da globalização para o meioambiente. Esta é uma questão muito relevantepara os brasileiros, porque atualmente o Paísenfrenta o desafio de crescer economicamente epreservar a Floresta Amazônica. O governo temadotado algumas medidas, como punir quemdestrói a floresta e criar um fundo para receberinvestimentos estrangeiros em projetos depreservação da Amazônia. Na sua opinião, estassão boas escolhas para evitar a destruiçãoambiental e garantir o crescimento?

GS– A ecologia tem dois lados, ou duas agen-das. Por um lado, coloca uma questão legítimasobre a sustentabilidade de alguns recursos na-turais. Por outro lado, é apenas uma ideologia

No Brasil, há maisequilíbrio entrejustiça social ecrescimento

econômico, por issoo crescimento é

mais lento.

Leon

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Rod

rigue

s/e-

SIM

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53SET/OUT E NOV/DEZ 2008 DIGESTO ECONÔMICO

antiliberal. Muitos ex-marxistas desapontadoscom o fracasso das utopias revolucionárias setransformaram em ecologistas, na esperança dedesorganizar a sociedade livre em nome de um"Deus Verde" superior. Esta ideologia, aliás, é an-ticristã no sentido de colocar a Natureza acimado Homem. Com esses verdes ideológicos o de-bate é praticamente impossível: não se enfrentauma teologia com argumentos racionais. Mas,voltando à questão do desenvolvimento susten-tável, eu observo que quanto mais uma econo-mia cresce, menos ela polui, porque usa melhor aenergia. Com os elevados preços da energia, omercado transforma a preservação ambientalem uma mercadoria valiosa. No caso da FlorestaAmazônica, muitas empresas sabem como ex-plorar a floresta, selecionando árvores mais ve-lhas, dando o tempo necessário para ela se re-constituir novamente. A exploração sustentáveldas florestas tropicais é econômica e tecnica-mente factível.

DE – Tomando a experiência norte-americanacomo exemplo, o senhor analisa no livro a relaçãoentre crime e economia. O Brasil enfrenta estaquestão cotidianamente. Em cidades como Rio deJaneiro, São Paulo e Recife, o crime cresce

rapidamente e as políticas adotadas são, emgeral, desastrosas e violentas. Para a maioria dosbrasileiros, o crime é resultado da desigualdade,da falta de escolas e do desemprego. O senhorconcorda com esta interpretação? Pensando emtermos de crescimento econômico, como lidarcom a questão?

GS– O crime está parcialmente relacionado àpobreza, mas a pobreza não é sua única causa.Há a questão da destruição dos valores familia-res e a migração. Mas o crime está relacionadoprincipalmente com a deficiência do Estado deDireito. Nos Estados Unidos, uma polícia maisbem treinada e menos corrupta conseguiu redu-zir os índices de violência. A chamada "teoria dajanela quebrada" também se mostrou efetiva: emoutras palavras, não tolerar nenhum crime, mes-mo que seja uma janela quebrada, incute o sen-tido da lei nas mentes mais jovens e corta os cri-mes mais graves pela raiz. Mas é claro que não sepode deixar de mencionar o tráfico de drogas: aproibição do tráfico nos Estados Unidos, sejaqual for a razão disso, transformou o tráfico dedrogas em um dos negócios mais lucrativos daface da Terra. Sozinho, o Brasil não pode evitarque os jovens sejam atraídos por esta máquina defazer dinheiro, sem discutir a questão com os Es-

Reuters

Na Ásia, porexemplo a China,

onde não hádemocracia, o

Estado não estápreocupado com

justiça social.

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54 DIGESTO ECONÔMICO SET/OUT E NOV/DEZ 2008

tados Unidos, até porque os EstadosUnidos são os maiores consumidoresde drogas do primeiro mundo.

DE – Há uma afirmaçãomuito interessanteem seu livro: "OBrasil é umacivilizaçãosingular emque asm a i o re sdesigualdadessociais são ocultadas por umagrande cordialidade". Éinteressante porque revela quea desigualdade no País não éapenas uma questão econômica.O que há escondido por trás denossa cordialidade?

GS – A desigualdade brasileiraestá enraizada em seu passado co-lonial e em sua história de escravi-dão. Entretanto, a cordialidade é umasituação única, que tornou a relação se-nhor-escravo mais tolerável do que nascolônias espanholas e, ao mesmo tempo, maisfácil de negar. Fernando Henrique Cardoso setornou uma exceção ao admitir que o Brasiltem preconceito contra os negros, como nosEstados Unidos. Por trás desse preconceito,como qualquer europeu, eu posso ver as desi-gualdades raciais do Brasil: veja os embaixa-dores brasileiros. Eles certamente não repre-sentam a "diversidade" da nação brasileira. Assoluções para o problema não são fáceis de de-finir; em um longo prazo, o desenvolvimentoeconômico poderá elevar o status de todos. Nocurto prazo, as chamadas políticas de açãoafirmativa, de estilo norte-americano, são im-possíveis de serem definidas, porque a diver-sidade brasileira é muito grande. O conceitode diversidade se aplica ao Brasil: como con-seguir que o serviço civil, as universidades, asforças armadas sejam tão diversificadas comoo povo brasileiro? Este deveria se tornar um tó-pico de debate mais amplo.

DE – Cerca de um terço da população mundialainda vive na miséria e o senhor analisa estaquestão no primeiro capítulo de seu livro. Esta écertamente uma preocupação de cada um de nós,independentemente de termos ideologias dedireita ou de esquerda. Do ponto de vista doliberalismo, como enfrentar este problema?

GS – A miséria tem sido reduzida em quasetodas as nações, exceto nos casos de guerras.

Isto nunca aconteceu antes. E acon-tece como uma conseqüên-

c ia de uma melhorcompreensão da

economia: abrasuas frontei-ras, respeite ap ro p r ie d ad ep r i v a d a ,mantenha ae st ab il id ad eda moeda. A

ajuda interna-cional não tem si-

d o u m f a t o r d ecombate massivo àpobreza, veja os ca-

sos da China e da Ín-dia. Mas a ajuda inter-

nacional precisa existir sequisermos combater pragas in-

ternacionais sem fronteiras, comoa malária e a aids.

DE - 2009 é um ano muitoimportante para o mundo: teremos

de enfrentar as conseqüências da crise econômicaglobal, um novo presidente irá assumir o governonorte-americano e as eleições para o ParlamentoEuropeu irão mobilizar a Europa. Quais são asexpectativas para 2009?

GS– Entraremos em 2009 em um período decrescimento econômico mais lento, mas nãoem uma depressão. A depressão só aconteceráse for provocada por equívocos administrati-vos dos governos, como enxugar a oferta decrédito ou fechar as fronteiras a produtos es-trangeiros, o que foi feito nos anos 1930. Atual-mente, os maiores motores do crescimento ain-da estão em condições de operar adequada-mente: a globalização, que distribui a oferta deempregos entre todas as nações, e uma inova-ção técnica sem precedentes. O atual tumultofinanceiro não deve ser exagerado: tem apenasdois motivos. Primeiro, a bolha especulativano setor imobiliário, não apenas nos EstadosUnidos. E bolhas sempre estouram. Tudo ter-minará assim que os preços do setor imobiliá-rio retornarem ao patamar de mercado. Um se-gundo motivo do tumulto, que o agrava, vemde governos que não conseguem tomar deci-sões. Um dia, sentem-se tentados a deixar queo próprio mercado se organize. No outro dia,decidem intervir para salvar bancos falidos.Esta incapacidade de escolha, inaugurada pe-lo plano Paulson (o plano de recuperação idea-lizado pelo secretário do tesouro dos EUA,

Muitos ex-marxistasdesapontados

com os fracassosrevolucionários

se transformaramem ecologistas.

Susa

na V

era/

Reut

ers

Page 55: Digesto Econômico nº 450

55SET/OUT E NOV/DEZ 2008 DIGESTO ECONÔMICO

Henry Paulson, para injetar US$ 700 milhõespara comprar ativos desvalorizados de com-panhias em risco no sistema financeiro) tor-nam as crises mais longas do que o necessário.A escolha é entre uma recessão curta ou uma es-tagnação longa: e parece que os governos oci-dentais optaram pela estagnação longa, o que époliticamente mais palatável. O próximo presi-dente dos Estados Unidos terá de se confrontarcom este dilema. Entretanto, ainda não se deve

enterrar o capitalismo norte-americano. Os mo-tores do crescimento de longo prazo ainda sãoos Estados Unidos. Não podemos esquecer queo militarismo norte-americano é incontestável eo principal papel desse militarismo, para alémdo Iraque e do Afeganistão, é manter os canaisde comércio abertos. Sem o militarismo norte-americano, seria o fim da globalização. Alguns,no Brasil, adorariam que isso acontecesse, mas ataxa de crescimento estagnaria.

Saiba maissobre o autor:

Guy Sorman nasceuna França em 1944,é professoruniversitário, colunistados jornais Le Figaro,de Paris, da revistaCity Journal, editadaem Nova York, e doDiário do Comércio,além de manter umblog em francês(http://gsorman.typepad.com/). Ele éautor de 20 livros, amaioria deles sobreo capitalismocontemporâneo. Suasidéias expressam,além de umaaproximação com aspropostas doliberalismo clássico,a preocupaçãocom temas como apreservaçãoambiental, a defesados direitos humanosna China, o apoioao alargamento dademocracia, emparticular em paísescomo Turquia, Egito eIrã. Sorman tambémassumiu diversasfunções públicas.Na França, foiprefeito-adjunto deBoulogne-Billancourte conselheiro doprimeiro-ministrofrancês Alain Juppéentre 1995 e 1997. Émembro da ComissãoNacional Francesade Direitos Humanos.Atualmente, éconselheiro dopresidente da Coréiado Sul, Lee Myuong-bak, que assumiu ocargo em 2008.

�L'Économie ne ment pas (2008)(publicado agora no Brasil, A Economianão Mente)�L'Année du Coq (2006) (publicado noBrasil em 2007, O Ano do Galo)�L'empire des mensonges (2006)�Made in USA, regards sur la civilisationaméricaine (2004)�Les enfants de Rifaa, musulmans etmodernes (2003)�Le Progrès et ses ennemis (2001)�Le Génie de l'Inde (2000)�La Nouvelle solution libérale (1998)�Une belle journée en France (1998)

�Le Monde est ma tribu (1997)�Le Bonheur français (1995) (publicado noBrasil em 1997, Felicidade Francesa)�Capital, suites et fin (1993)�En attendant les barbares (1992)�Sortir du socialisme (1990)�Les Vrais Penseurs de notre temps (1989)�La Nouvelle Richesse des nations (1987)�L'Amérique dans les têtes, fascinationset aversions (1986)�L'État minimum (1985)�La Solution libérale (1984)�La Révolution conservativeaméricaine (1983)

Livros de Guy Sorman

A crise terminará assim que os preços imobiliários retornarem ao patamar de mercado.

Fred Prouser/Reuters

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A economia

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57SET/OUT E NOV/DEZ 2008 DIGESTO ECONÔMICO

Onovo livro de Guy Sorman, "AEconomia não Mente"apresenta uma visãoabrangente sobre "as causas da

riqueza das nações ", analisando a evoluçãoda economia de inúmeros países,comparando as políticas adotadas em cadaum, os fatores determinantes do crescimentode uns, ou do desempenho insatisfatório deoutros. Não se preocupa apenas comcomparações estatísticas ou com os aspectosquantitativos do desenvolvimento, mas,sobretudo, com as condições políticas eculturais que propiciaram a expansão daseconomias ou que impediram seucrescimento. Busca identificar fatorescomuns do progresso das nações, queexplicam porque diferentes povos, comdiferentes contextos históricos e culturaisconseguiram arrancar para odesenvolvimento, contrariando as idéias dopassado de que a dotação de recursosnaturais, ou determinadas característicasassociadas à cultura ou religião, eramresponsáveis pelo crescimento dos países.

Para realizar essa análise, Sorman faz umamplo passeio pela teoria econômica, acomeçar pela discussão sobre se a economia éuma ciência, o que para ele é inegável, nãocomo uma " ciência exata, mas como uma

não mente

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58 DIGESTO ECONÔMICO SET/OUT E NOV/DEZ 2008

MarcelDomingosSolimeoEconomista, diretor doInstituto de EconomiaGastão Vidigal, daAssociação Comercialde São Paulo

ciência humana" , cujo objetivo é distinguirentre boas e más políticas. Considera que opapel do economista é propor soluções tãoconfiáveis quanto possíveis, de " boaspolíticas econômicas". Aponta que até 1990coexistiam dois modelos de economia: osocialismo de estado e o capitalismo demercado, mas que, desde então, apenasrestou o capitalismo de mercado, oueconomia liberal. A queda da UniãoSoviética, veio a demonstrar aquilo quealguns economistas (especialmente VonMises) diziam há muito tempo, que o sistemade economia planificada, não era viável.

O liberalismo econômico, baseado noempreendedor e na ordem "espontânea",com um Estado garantidor das regras,cuja eficácia era demonstrada no mundoanglo saxão, se impôs em todas as regiões apartir dos anos 80, atingindo países comoÍndia, Rússia, Brasil ou China, queapresenta algumas característicasespecíficas. Isso não significa que aeconomia liberal esteja isenta de críticas,sendo frequentemente acusada por suasimperfeições, as quais, no entanto,decorrem, segundo o autor, da naturezahumana, que também não é perfeita.

Descreve a nova economia, resultante da"desnacionalização, desestatização edesmaterialização", na qual as fronteirasdeixam de ser referência para osempresários e os consumidores, limita opoder dos governos de determinar asescolhas ou o ritmo, pois "progredimostodos juntos, ou estagnamos juntos".Defende que a globalização propiciou ocrescimento da economia de muitos paísese permitiu que um grande contingente depessoas superasse a pobreza, embora possaapresentar efeitos colaterais sobre algunssegmentos. Destaca que para que as naçõespossam se aproveitar da nova economia,contudo, é preciso que existam, ou se criem,instituições estáveis e previsíveis quefavoreçam o crescimento, como uma moedaconfiável, liberdade de comércio, respeito acontratos e garantia ao direito depropriedade. Do ponto de vista político,afirma que, embora não se possa dizer queo capitalismo depende da democracia,parece inegável que a democracia não podeexistir sem a economia de mercado e queela se mostra mais adequada para vencercrises, porque reduz as incertezas.

Aponta que, além de instituições

O livro buscaidentificarfatores comunsdo progressodas nações, queexplicam porquediferentes povos,com diferentescontextos,conseguiramarrancar para odesenvolvimento.

Repr

oduç

ão

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59SET/OUT E NOV/DEZ 2008 DIGESTO ECONÔMICO

favoráveis, outros fatores são importantes.O desenvolvimento resulta da combinaçãodo capital, do trabalho e da produtividade,sendo que quando não aumenta, ocrescimento depende de mais trabalho. ParaSorman, é a inovação, fruto da "destruiçãocriativa" de Schumpeter, que permite saltosno crescimento dos países, mas osretardatários se beneficiam das tecnologiasexistentes para conseguir crescer a taxas maiselevadas nas fases iniciais de seudesenvolvimento.

A vitória contra a inflação, que Sormancredita às idéias de Milton Friedman e deseus seguidores, foi fundamental para odesenvolvimento em todos os lugares,embora Kenneth Rogoff, um dos discípulosde Friedman, argumente que ela nãonecessite ser exatamente zero, comopregava seu mestre, e sugere umaabordagem pragmática enquanto uma levealta dos preços não afete odesenvolvimento real.

Guy Sorman aborda muitos outros temasao longo do livro, baseando-se emdepoimentos ou entrevistas com economistasde diversas partes do mundo, todos degrande projeção, cujas posições, mesmo

quando divergentes em relação aosprincipais fatores do crescimento de algunspaíses, não negam a validade dospressupostos básicos, necessários aodesenvolvimento das nações: economia demercado e instituições favoráveis aoempreendedorismo e à inovação.

Sorman não se limita à análise das causasdo desenvolvimento de um grande número denações tão distintas como China e Índia,Rússia e Turquia, Brasil e Coréia, entre outras,mas aborda também a questão crucial do meioambiente, apresentando opiniões que variamda previsão da catástrofe ambiental, à negaçãodos riscos, bem como propostas divergentessobre o que fazer.

Mais do que resenhar o livro "A Economianão Mente", é importante destacar nãoapenas a abrangência dos temas, a riquezadas informações e opiniões de diversaspersonalidades do mundo econômico, aabordagem clara e agradável dos assuntostratados e, sobretudo, as posições de GuySorman, à guisa de conclusão, quandosintetiza em um "conjunto de elementosestabelecidos pouco contestáveis em dezproposições – um consenso que deveriafundamentar qualquer política racional".

Para Sorman, aglobalização

propiciou ocrescimento da

economia demuitos países e

permitiu queum grande

contingente depessoas

superasse apobreza.

Bay Ismoyo/AFP

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A superação da pobreza para 200 milhões de chi-neses através da inclusão no mercado de trabalho ur-bano e o crescimento da produção ao ritmo de doisdígitos ao ano é uma empresa que impressiona pelosnúmeros absolutos. Todavia, quando olhada de per-to, a revolução industrial chinesa e seu exército de re-serva de mão-de-obra semi-escrava instrumentaliza-do por um Estado autoritário – assim com seu similaringlês do século 17 – é desigual, parcial, incompleta eespecialmente adversa para os mais pobres, para asmulheres e para as minorias étnicas.

Já se escreveu, mas cabe lembrar novamente: cres-cimento não é desenvolvimento. Se o modelo chinês éum arranjo excelente para cumprimento da tarefa daacumulação e da formação bruta de capital, o mesmonão se pode dizer sobre sua eficiência para a transfor-mação do capital em renda e sua utilidade para umadistribuição equitativa dos ganhos.

A tarefa da acumulação primitiva consiste na arre-gimentação inicial de poupança. Na ausência de dis-ponibilidades domésticas faz-se necessário capturá-las além mar. O câmbio super-desvalorizado chinêsturbina a acumulação, capturando poupanças exter-nas pela via do comércio internacional. A estratégia éclara: como indica a teoria, quando a vantagem com-

Fábulas chinesase lições para o Brasil

SilvérioZebralDiretor doPrograma deEstudosInteramericanos(associado aoCEPPAC/Unb).

Acabo de terminar a leitura do excelente li-vro "The Empire of Lies" (creio que aindanão traduzido para português), do cien-tista político e jornalista libertário francês

Guy Sorman. Ao modo dos melhores relatos de via-jantes ocidentais que singraram terras e mares doOriente em meados do século 19, o volume é resul-tado de dois anos de trabalho em ambiente muito di-verso do formigueiro humano entremeado de arra-nha-céus que marca a paisagem urbana de metrópo-les como Pequim e Xangai.

Sorman buscou desvendar a China profunda:mergulhou no cotidiano interiorano, visitou líderescomunitários e religiosos, ouviu camponeses e todotipo de gente comum. Descobriu uma história de ex-clusão social, inércia econômica, corrupção sistêmi-ca, violência política e endemias mortais. Tudo mar-cado pela obediência que resulta do medo que os re-gimes totalitários são capazes de produzir.

Não é surpresa: tomado como paradigma empí-rico para a formulação teórica de políticas "alterna-tivas" de desenvolvimento no cemitério das idéiaslatino-americano, o modelo chinês é, na melhor dashipóteses, um grande engano.

Ant

ônio

Mile

na

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61SET/OUT E NOV/DEZ 2008 DIGESTO ECONÔMICO

petitiva dá-se em torno do preço final e está fortemente baseadaem custos, o alvo principal do esforço produtivo deve ser a ob-tenção continuada de ganhos de escala. A "escala" é o que há desobra. Todavia, quando tal vantagem é contestada por outrocompetidor, impõe-se a obtenção de ganhos de escala adicio-nais, sempre decrescentes. Inicia-se uma corrida de custos parabaixo ("race to the bottom") que resulta na redução acentuadados salários dos empregados e do salário de reserva dos excluí-dos em segmentos cuja produção é intensiva em trabalho. Pre-serva-se a vantagem útil a acumulação ao custo da compressãoda renda proveniente do trabalho.

Poupanças arregimentadas, é preciso canalizá-las para quefinanciem a tarefa do crescimento, através do investimento –que tem no retorno esperado seu indicador decisório crítico.As taxas de juros domésticas artificialmente baixas incenti-vam a busca de retornos mais atrativos pelos detentores de re-cursos disponíveis, direcionando-os preferencialmente para osetor produtivo em detrimento dos ganhos "rentistas"; evitan-do o empoçamento da poupança. Interferindo nos preços re-lativos e nas regras de um mercado ainda incipiente, o Polit-buro vermelho conduz o processo de alocação cumprindo a ta-refa: converte poupança em formação bruta de capital fixo.

Todavia, o assombroso crescimento do estoque de capital naChina globalizada não vem viabilizando o escalar contínuo dosdegraus da produtividade. Era da se esperar:poupanças alocadas pela via da decisão dis-cricionária estatal ou por um mecanismo depreços relativos artificial alcançam investi-mentos de baixa produtividade e não maxi-mizam a geração de renda. Ademais, quandoo retorno é alto, mas a produtividade é baixa, oinvestimento (im)produtivo não se traduz emoferta ampliada (preços mais baixos e quan-tidades mais altas), não havendo transferên-cia de excedentes para o consumidor. A au-sência do mercado livre produz perda de efi-ciência e bem-estar.

Se o colosso chinês não alcança os primei-ros degraus da escada da produtividade detão pesado, seu destino com relação à distri-buição é mesmo o fundo do poço.

No papel de mecanismos distributivos alternativos, merca-do e Estado funcionam de maneiras distintas. Em tese, en-quanto o mercado assigna rendas de acordo com as capacida-des produtivas ofertadas pelos indivíduos ativos (em geral,oferecendo prêmios elevados por anos adicionais de escolari-dade), o Estado assigna recursos de modo a assegurar neces-sidades básicas dos inativos, assistir prioridades dos excluí-dos e equalizar condições iniciais entre os retardatários, alémde prover bens públicos e meritórios de utilidade geral.

Na prática – como revelou-nos Mancur Olson em sua análiseda lógica da ação coletiva – a discricionariedade estatal é refémde uma escolha pública pretensamente coletiva capturada pelaagenda de interesses específicos de minorias sociais que ven-cem o jogo político (utilizando-se do poder de barganha paraconverter-se em maiorias políticas no âmbito do processo de-cisório dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário).

O Estado autoritário chinês capturado pela oligarquia políticae social formada pelos membros do partido comunista é o modeloacabado deste seqüestro. Ademais, ainda que um dia reste liberto,a miopia estatal – seja chinesa ou de qualquer nacionalidade –nunca poderá dar conta a contento de uma tarefa cujo fator críticoé a focalização dos recursos e que opera-se através de um pactofederativo fundado no princípio da subsidiariedade.

Enfim, um Estado repressor e oligárquico, manipulador deum simulacro de mercado alocador ineficiente de poupanças epatrocinador de uma estratégia de crescimento baseado na se-mi-escravização dos incluídos e no abandono dos excluídosnão pode servir de desenvolvimento para nenhuma nação quepretenda ser tratada como tal.

Na China não há lições para o Brasil; exceto a de como pro-duzir a maior desigualdade social do planeta. Mas para estatarefa, não necessitamos de professor.

Na China não hálições para oBrasil; excetoa de comoproduzir a maiordesigualdadesocial do planeta.Acima, Congressodo PartidoComunista Chinês;ao lado, linha deprodução deguarda-chuvas.A

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Almir Pazzianotto PintoAlmir Pazzianotto Pintofoi Ministro do Trabalhoe presidente do TribunalSuperior do Trabalho.Ic

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Não há necessidade de ser profeta, as-trólogo ou vidente para antever a si-tuação deste Estado, e do País, no anoque se aproxima. Os fatos são conhe-

cidos, e amplo material informativo encontra-se àdisposição dos interessados em pesquisá-lo.

São Paulo continuará tendo à frente o cautelosogovernador José Serra, do PSDB. A capital, por suavez, permanecerá sob a gerência do reeleito GilbertoKassab, que trará a tiracolo uma Câmara Municipalfragmentada em várias legendas, das quais deveráextrair a base de apoio.

As alterações de chefia do poder executivo dar-se-ão em janeiro, nos municípios cujos alcaides nãoforam reeleitos.

No plano federal, o presidente Luiz Inácio ingres-sará na última metade do segundo mandato. Sus-tentam analistas bem informados que o PT lutarápara lhe assegurar o terceiro, ainda que ao elevadopreço de mais uma ferida no texto mutilado daConstituição. Para outros, o partido lançará a can-didatura de integrante do ministério, embora os lí-deres saibam que não existe outro nome à altura doantigo metalúrgico no requisito popularidade. Ha-bituado a tirar proveito das habilidades desenvol-vidas pelo ex-líder sindical, na arte de manipulaçãodas massas, o PT teme a derrota e, com isso, perderacesso ao tesouro, e a prerrogativa das nomeações,sem concurso, para cargos federais, estaduais, mu-nicipais, autárquicos e diretorias bem remuneradasde estatais, fórmula que adotou para recompensar oapoio dos companheiros militantes.

A oposição, concentrada na sonhada coligaçãoPSDB-DEM-PMDB-PV, unir-se-ia em torno de umúnico e bom candidato, sem o que estará fadada à der-rota, que manterá a CUT no poder ao longo de maisquatro anos, com direito a disputa de reeleição.

É sabido que as condições reais da economia deter-minam os rumos das atividades políticas. Quando,

no tempo de "vacas gordas" (Gênesis, 41.9), a econo-mia apresenta dados positivos, a cabine de comandoda aeronave do Estado tende a ser deixada em mãosirresponsáveis na direção da Fazenda Nacional. Re-cursos são dilapidados em obras faraônicas, viagens,comitivas, especulações, empresas temerárias. Infla-cionam-se nomeações para cargos públicos, multipli-cam-se ministérios, secretarias, diretorias, e todo oPaís é levado a acreditar na vida farta sem cuidados elimites. Como sempre acontece, faltam verbas parasaúde, educação, transporte, segurança, pesquisa,reaparelhamento de portos, ferrovias e aeroportos,reequipamento das Forças Armadas.

São os anos dourados das futricas palacianas,interceptações telefônicas, compra e venda de vo-tos, marqueteiros e campanhas publicitárias, infi-delidades partidárias, denúncias anônimas, tudocom o propósito obscuro de ganhar prestígio e di-nheiro no governo.

Ao se avizinharem, porém, notícias sobre iminen-te desastre econômico, e a chegada de anos de "vacasmagras" (Gênesis, 41.17), o governo se agita e pro-cura fazer acreditar que os problemas encontram-secontrolados. Remexe o baú das idéias desacredita-das, baixa medidas provisórias, atribui a culpa a ini-migos externos e adversários internos, e empenha-se em tentar transmitir a idéia de que a crise é frutode imaginação doentia.

No caso de a economia estancar, a classemédia ficará pobre e a classe pobre miserável. Masao Goto Filho/e-SIMTe

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ras

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Como estará a economia em2009 e 2010? Esta interrogaçãomartela o cérebro de empresá-rios, investidores, consumido-res, trabalhadores e donas de ca-sa. Em cada qual acumulam-sepreocupações nunca "vistas an-tes neste País", não se encon-trando pessoa sensata que duvi-de da possibilidade de encarar-mos período amargo e imprevi-sível de recessão. Há algumassemanas, todavia, ninguémacreditava em dificuldades. Arevista Veja, por exemplo, naedição 2.070, de 23 de julho docorrente ano, escrevia sobre o

"Show dos Bilhões – As Vitórias do Brasil na Globalização". Des-crevia os "oito motores do desenvolvimento sustentável que es-tão revolucionando o Brasil longe dos grandes centros".

Passados 90 dias, porém a revista Época indagava, na ma-téria de capa, se "O Brasil agüenta a crise?". A Exame, por suavez, exclamava: "A crise já está entre nós". E a mesma Veja,em reportagem sobre o presidente do Banco Central, Fran-cisco Meirelles, informava que S. Exa. "ganha mais poderpara tentar impedir que a crise mundial devore a economiabrasileira". Oscilação e quedas nas bolsas de valores, mu-danças de patamar do dólar, especulações sobre recessão,refletem a delicada situação da economia mundial, com for-tes reflexos no Brasil e na América do Sul. Resta tentar des-cobrir a linha de ação do governo federal, e imaginar os ins-trumentos de que dispõe para nos proteger.

A má notícia é que a taxa média de desemprego estacionouem 14%. A péssima é que a alta porcentagem fatalmente vol-tará a crescer.

A "Constituição Cidadã", promulgada há 20 anos, ao invés doque se esperava, não chegou como solução. Pelo contrário. Semembargo das conquistas democráticas, infundiu no povo es-peranças não concretizadas e suscitou problemas de re-gulamentação, por lei complementar ou ordinária, quepermanecem à espera de quem consiga decifrá-los.Note-se o art. 7º, I, que trata da garantia do empregocontra demissões imotivadas, o 37, VI, que exige adisciplina do direito de greve do servidor público, e ainconclusa reforma do Poder Judiciário.

Apesar das 62 emendas constitucionais eda banalização das medidas pro-visórias, as reformas tributária etrabalhista, cobradas pela ne-cessidade de desenvolvi-mento sustentável, conti-nuam abandonadas.

A Lei Orgânica da Na-ção, como a denomina-va Ruy Barbosa, é mul-ticolorida colcha deretalhos, produto de

prolixidade vazia, pois os constituintes ignoravam como traba-lhar com textos límpidos, claros e objetivos.

Nesta fase de "vacas magras", três enormes perigos já ro-deiam as classes trabalhadoras: a aceleração da taxa de desem-prego, o retorno da inflação, a alta de preços.

Sobre os próximos anos, entretanto, de algo estamos certos: apopulação continuará em crescimento descontrolado, para feli-cidade da Igreja e tristeza daqueles que avaliam os riscos do pro-fuso aumento da população entre as camadas pobres e carentes.

Na passagem do século, o Brasil possuía 169,7 milhões dehabitantes. Hoje, segundo estimativas do IBGE, somos 190,1milhões de brasileiros. A economia, após a explosão da bolhade crescimento, encontra-se em fase de retração. Isto significaqueda no Produto Interno Bruto, com maior rebaixamento dorecalcado mercado de trabalho.

Ao invés de 20 milhões de novos postos de trabalho, preen-chidos por pessoas saudáveis, profissionalmente qualificadas ebem remuneradas, recebemos quantidade semelhante de novasalmas. Ocorre, contudo, que as almas têm cérebro, corpo, boca,estômagos, sentem fome, frio e calor, e necessidades outras queo desenvolvimento tardio e insustentável não oferece condiçõesde prover. No caso de a economia estancar, o que significa re-cessão, a classe média ficará pobre e a classe pobre miserável.

O futuro presidente governará algo em torno de 200 mi-lhões, embora o PIB nacional líquido e o PIB per capita corramrisco de permanecerem imobilizados, se debitado, a cada ano,o avanço populacional.

Registre-se que a cautelosa Organização Internacional doTrabalho (OIT) emite, desde a década de 1980, sinais de alertaacerca do desemprego e anuncia, agora, que podemos esperarpela multiplicação dos trabalhadores na ociosidade.

Creio que as eleições de 2010 virão a ocorrer com o mundo eo Brasil em crise. Como reagirão os eleitores, se até lá o mare-moto não houver amainado? Oferecerão nova carta de créditoà CUT-PT, ou buscarão saídas adequadas à crise?

Essas as perguntas que deixo no ar, à espera dos especialis-tas em economia, política e futurologia.

Parceria entreGilberto Kassab

e José Serrapode gerarfrutos para

2010.

Leon

ardo

Rod

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s/e-

SIM

Delúbio Soares, ex-tesoureiro do PT, pivô doescândalo do Mensalão.

Dida Sampaio/AE

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64 DIGESTO ECONÔMICO SET/OUT E NOV/DEZ 2008

OS ÍNDIOS E

Ives Gandrada Silva MartinsProfessor Emérito dasUniversidadesMackenzie, UNIFMU,UNIFIEO, UNIP, doCIEE/O Estadode São Paulo, dasEscolas de Comandoe Estado Maiordo Exércio-ECEMEe Superior deGuerra-ESG e Presidente do ConselhoSuperior de Direito da Fecomercio-SP edo Centro de Extensão Universitária-CEU.

A polêmica, cada vez mais acentuada, sobre o direitoou não de 380 mil índios possuírem 13% do territó-rio nacional (em torno de 100 milhões de hectares,ou seja, 4 Estados de São Paulo) levou-me a tecer,

neste número do Digesto Econômico dedicado às perspec-tivas de 2009, perfunctórios comentários ao capítulo "Dos Ín-dios" inserto na Constituição, que, a meu ver, está sendo des-figurado pela FUNAI, na sua interpretação alargada.

O artigo 231 consolida o tratamento da lei maior à etnia in-dígena.

Está assim redigido:"São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre asterras que tradicionalmente ocupam, competindo à União de-marcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens".

Divulgação

A CONSTITUIÇÃO.

Ed Ferreira/AE

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65SET/OUT E NOV/DEZ 2008 DIGESTO ECONÔMICO

O Capítulo VIII do Título 8 oferta quase 15%do território nacional, aproximadamente, a380 mil brasileiros, deixando os outros 85% pa-ra os demais 185 milhões de cidadãos e resi-dentes no País.

O artigo 231 reconhece aos índios o direitode manter suas organizações sociais, costu-mes, línguas, crenças e tradições, além dos di-reitos originários sobre as terras que tradicio-nalmente ocupam (presente do indicativo).Não ocuparam, como o governo tem interpre-tado para demarcação de suas terras.

Os indianistas lutam para que os índios con-tinuem sendo primitivos, peças de museus, de-vendo ser preservados, em seu atraso civiliza-cional, para gáudio dos povos civilizados quepoderão dizer que no passado pré-histórico oshomens viviam como os índios brasileiros.

Por outro lado, as organizações internacio-nais – e a matéria já tem sido denunciada – pro-curam tratar o território como indígena, mais

do que brasileiro, razão pela qual em eventualinternacionalização da Amazônia para impo-sição da política externa, os verdadeiros titu-lares da terra seriam os indígenas e não os bra-sileiros. E o Brasil assinou declaração na ONUneste sentido!!! Outros países, como Nova Ze-lândia, Austrália e Estados Unidos, não a assi-naram, porque têm índios.

Dissociando os índios do povo brasileiro esuas terras do Estado, pretendem, tais organi-zações, tornar o problema indígena do Brasilem problema de preservação dos costumesprimitivos, que é dever da humanidade. À evi-dência, desta forma, torna-se mais fácil a ex-ploração de 13% do território nacional, reser-vado aos 380 mil remanescentes da populaçãoindígena, que terminam por firmar acordosconvenientes a tais grupos mais do que a inte-resses do País.

E apesar de o inciso XV do art. 5º dizer quequalquer pessoa pode andar pelo território na-

Dissociando osíndios do povo

brasileiro e suasterras do Estado,pretendem, taisorganizações,

tornar o problemaindígena do Brasilem problema depreservação dos

costumes primitivos,que é dever dahumanidade.

Sérgio Lima/Folha Imagem

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66 DIGESTO ECONÔMICO SET/OUT E NOV/DEZ 2008

cional, livremente, sem autorização da FU-NAI, nenhum brasileiro pode ingressar emterritório indígena e se entrar será por horas.Um funcionário da FUNAI concede o direitode entrar em tais territórios por horas apenas.

É impressionante o "lobby" que os indianis-tas brasileiros – e principalmente os estrangei-ros – fizeram para que o capítulo VIII fosseplasmado na Constituição!

Faz ainda o dispositivo menção que caberáà União demarcar as terras indígenas (13% doterritório nacional) e nela preservá-las, prote-gendo e fazendo respeitar seus costumes pri-mitivos, de preferência desestimulando-os dese civilizarem, como as outras raças que com-põem o perfil étnico brasileiro, como é o casoda raça negra.

O § 1º está assim redigido:"São terras tradicionalmente ocupadas pelosíndios as por eles habitadas em caráter perma-nente, as utilizadas para suas atividades produ-tivas, as imprescindíveis à preservação dos re-cursos ambientais necessários a seu bem-estar eas necessárias a sua reprodução física e cultural,segundo seus usos, costumes e tradições".

O § 1º do artigo 231 é dedicado a aproxi-madamente 13% do território nacional, quedeve ser transformado em museu do primi-tivo índio vivo.

Todas as terras tradicionalmente ocupadaspelos índios lhes pertencem e a mais ninguém,desde que os índios lá estejam em caráter per-manente. À evidência, como os índios primiti-vos não saíram de seus lugares de nascimento,por não terem descoberto nenhum dos meiosde transporte modernos e ainda vivem – é des-tes índios que o constituinte fala – no seu estadoprimitivo, todas as terras por eles habitadas ho-je servem-lhes de habitação permanente. Ameu ver, apenas aquelas que habitavam na datada promulgação da lei suprema (05/10/88).

Além destas, devem ser preservadas aquelasterras utilizadas para suas atividades produti-vas – entenda-se atividades agrícolas de sobre-vivência, que sempre existiram entre os povospré-históricos, os índios brasileiros, alguns po-vos da Malásia no início do século etc. – aquelasimprescindíveis à preservação dos recursosambientais necessários a seu bem estar – enten-da-se as florestas e a natureza não cultivada –assim como às necessárias à sua reprodução fí-sica e cultural, segundo suas crenças, costumese tradições. À nitidez, apenas aquelas terras li-mítrofes a aldeia e não terras já habitadas poroutros brasileiros há dezenas de anos.

Em outras palavras, o constituinte brasilei-

ro garantiu ao índio 15% do território nacionalpara que ele não evolua, visto que para manteruma "Disneyworld" primitiva, preservará to-do seu ambiente pré-histórico, a fim de quesuas crenças, costumes e tradições continuemos mesmos, proibidos de evoluir para os cos-tumes civilizados do século 20/21, visto que oobjetivo constituinte foi preservar no tempo, oatraso cultural do indígena.

O § 2º está assim redigido:"As terras tradicionalmente ocupadas pelosíndios destinam-se a sua posse permanente, ca-bendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezasdo solo, dos rios e dos lagos nelas existentes".

Na linha de conservação de um Museu Pri-mitivo e Vivo do Índio com 13% do territórionacional, continua o constituinte a entenderque as terras tradicionalmente ocupadas pe-los índios – leia-se as que ocupavam naquelemomento – destinam-se à sua posse perma-nente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo dasriquezas do solo, dos rios e dos lagos, nelasexistentes. Não cuida do subsolo, pois este éde exploração da União quanto a seus recur-sos minerais e sua exploração só pode ser au-torizada ou concedida.

O discurso, embora tautológico, cria indiscu-tível privilégio em relação a todos os demaiscento e oitenta e pouco milhões de brasileiros.

O próprio argumento de que a terra lhespertencia antes da descoberta e que lhes garan-tirá agora a posse em torno de 13% do que ti-nham no passado, não é senão reconhecer queforam expropriados em 87%, argumento pou-co convincente.

A população, hoje, é residual. Os índios ci-vilizados agem nas suas próprias atividades,quase sempre longe das terras de seus antepas-sados. Aqueles índios que permanecem nasterras, principalmente na Floresta Amazônica,

Aqueles índiosque permanecem

nas terras,principalmente na

Floresta Amazônica,são os índios de

civilizaçãopré-histórica

proibidos de evoluirpara se tornarempeças vivas de ummundo selvagempara gáudio dos

ecologistas eantropólogos.

Jonne Roriz/AE

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67SET/OUT E NOV/DEZ 2008 DIGESTO ECONÔMICO

são os índios de civilização pré-histórica proibidos de evoluirpara se tornarem peças vivas de um mundo selvagem paragáudio dos ecologistas e antropólogos.

O constituinte faz menção à sua posse permanente, não po-dendo, a meu ver, atingir sua propriedade, daqueles que eramproprietários destas terras antes da Constituição de 88. Por istoentendo ser a Reserva Raposa Terra do Sol com extensão de ter-ra contínua de manifesta inconstitucionalidade, por atingirterras de brasileiros que lá estavam há muito tempo. Estes co-mentários são escritos antes do pronunciamento do STF sobrea matéria. Por outro lado, o usufruto de todas as riquezas dosolo é exclusivamente das populações de índios primitivos,devendo-se entender que as propriedades antes exploradaspor brasileiros não pré-históricos, com títulos de propriedadeou posse, estão preservadas, a meu ver.

Agricultura, pecuária, pastoreio, agroindústria, transpor-tes ferroviários etc. são atividades que passam a ser nestas ter-ras de exclusiva exploração pelos indígenas, pois faz questão,o legislador supremo de referir-se ao "exclusivo usufruto" detais riquezas pelas populações indígenas a serem preservadosnos seus costumes pré-históricos.

O § 3º do art. 231 está veiculado da forma que se segue:"O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciaisenergéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terrasindígenas só podem ser efetivados com autorização do CongressoNacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes asse-gurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei".

O § 3º do art. 231 continua na linha de proteção ao indígena.Determinados empreendimentos exigem muito capital, so-

bre ser o subsolo propriedade da União, como, de resto, os riosinterestaduais e de fronteiras. Nada mais lógico que não sepermita que povos primitivos sejam detentores dos meios deexploração de tais recursos, que, de rigor, não lhes pertence.

A proteção, todavia, consiste em dar-lhes direitos que ou-tros brasileiros não têm sobre

os bens que pertencem aoPoder Público.

O primeiro destes direitos é o de que exploração dos recur-sos mencionados só pode ser autorizado pelo Congresso Na-cional, o que vale dizer, as duas casas do Parlamento devem semanifestar a respeito.

O segundo aspecto é o de que as comunidades indígenas de-vem ser ouvidas, pois a exploração poderá afetá-las.

Preferiu, o constituinte, utilizar-se do verbo "ouvir", o quevale dizer, a oitiva de tais comunidades objetiva apenas per-mitir o Congresso o conhecimento de seus argumentos, em ca-so de oposição ao projeto pretendido.

Não têm, as comunidades indígenas, todavia, o poder de ve-to. Se forem contrárias à exploração, mas o Congresso favorá-vel, há de prevalecer a autorização do Congresso sobre a opi-nião das comunidades.

Por fim, assegura a Constituição a participação, nos bene-fícios e nos resultados da exploração, das comunidades em cu-jas terras a exploração se der.

A seguir, determina o § 4º que:"As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indispo-níveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis".

As terras de posse das populações indígenas são inaliená-veis e indisponíveis, o que vale dizer, perpetuou, o constituin-te, a manutenção em mãos dos índios daquelas terras demar-cadas nos termos impostos pela lei suprema.

Sobre serem inalienáveis e indisponíveis, são tais direitosimprescritíveis, o que representa que mesmo que as terras nãovenham a ser utilizadas, não haverá prescrição dos direitos deseus possuidores, o que vale dizer, utilizando-se ou não dasterras, que podem inclusive ser ocupadas, elas continuamsuas, em termos de posse.

Não há, pois, usucapião possível de tais terras.A seguir o § 5º determina que:"É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, sal-vo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de ca-tástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou nointeresse da soberania do país após deliberação do CongressoNacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediatologo que cesse o risco".

Satiro Sodré/AGF

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68 DIGESTO ECONÔMICO SET/OUT E NOV/DEZ 2008

O § 5º engessa ainda mais a atuação do governo brasileiroperante os indígenas na proteção de suas terras e costumesprimitivos.

Os grupos indígenas não podem ser removidos de suas ter-ras, vale dizer, salvo nas expressas autorizações constitucio-nais, os grupos indígenas devem nelas permanecer.

As hipóteses de remoção são poucas. A primeira delas vin-cula-se à ocorrência de catástrofe, que pode ser provocada pelohomem ou ação da natureza. A segunda hipótese refere-se àsepidemias que ponham em risco sua população.

O indígena não tem o contato permanente com o homem bran-co, por isto não criou anticorpos capazes de neutralizar "vírus" e"bactérias" de epidemias. É, pois, alvo mais fácil de todas as mo-léstias, que, muitas vezes, podem se espalhar, pela pouca resis-tência do silvícola, por todo o território por ele habitado.

Nesta hipótese, é fundamental queas autoridades tomem conta das po-pulações e se houver necessidade de-vem retirá-las de seu "habitat" para le-var para lugares, onde seja mais segu-ro o tratamento e a não infecção.

A remoção, nas demais circunstân-cias, pode ser determinada "ad refe-rendum" do Congresso Nacional.

Uma vez cessadas as causas quelevam à retirada, devem as popula-ções retornarem às suas terras. Oconstituinte fez questão de enfati-zar que o retorno terá que ser ime-diato, a fim de que os índios nãopensem que sempre que o Estado osretirar, nunca mais voltarão, sendoas terras destinadas a outros. Pru-dentemente, o constituinte, impôs o retorno imediato.

O § 6º resta assim redigido:"São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atosque tenham por objeção a ocupação, o domínio e a posse das ter-ras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas na-turais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvadorelevante interesse público da União, segundo o que dispuser leicomplementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a in-denização ou ações contra a União, salvo, na forma da lei, quan-to às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé".

Não há direito adquirido contra a Constituição. O artigo men-cionado é de confisco doentio. Tudo o que o direito regula até 5 deoutubro de 1988, garantindo relações obrigacionais e as restriçõesjurídicas utilizadas caem por terra, com confisco do governo detoda a propriedade, posse e direitos antes detidos por terceirosnão índios. Não cuida o dispositivo da propriedade.

O constituinte declara que são nulos, com conseguinte ex-teriorização, todos os atos jurídicos vinculados a ocupação,domínio ou posse das terras a que se refere este artigo. À evi-dência, os atos a que se referiu eram atos jurídicos e acabados,de outra forma não precisaria o constituinte se referir a elespois sua nulidade, ou anulabilidade, seria imediata.

O mesmo se diga em relação à exploração das riquezas na-

turais do solo, rios e dos lagos nela existentes. O tratamento érigorosamente o mesmo. Retira-se do titular do direito todosseus direitos legítimos, para depois transferi-los ao "Museu doÍndio Vivo" e para que se torne ele beneficiário da dádiva go-vernamental espoliatória.

Há a ressalva ao relevante interesse público da União, nostermos da lei complementar, que a retira da aplicação do re-ferido dispositivo.

De qualquer forma, o confisco de terras é feito sem indeni-zação. Retira o governo de quem tem legitimidade, sem inde-nizá-lo, e entrega a quem recebe graciosamente tais direitos,sem quaisquer ônus. Entre os direitos, afasta-se, inclusive,aquele referente a eventuais ações para preservação transita-das em julgado, à luz da Constituição anterior.

As benfeitorias, feitas de boa-fé, todavia, são indenizáveis.Mesmo estas benfeitorias devem corresponder a ocupação deboa-fé para gerar a indenização.

Em última análise, objetivando ofertar 13% do território na-cional aos índios, feriu, o constituinte, duramente direitos deposse e domínio, as relações jurídicas correntes e as garantiasconstitucionais.

Na minha interpretação, todavia, por entender que se tra-ta das terras que ocupavam no momento da promulgação dalei suprema, tal extensão territorial deveria ser restringida a

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69SET/OUT E NOV/DEZ 2008 DIGESTO ECONÔMICO

menos de 1% do território nacional.Reza o § 7º que:"Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174,§§ 3º e 4º".

O artigo 231 § 7º objetiva retirar a exploração das riquezasminerais, inclusive garimpagem do Título 7, isto é, do regimejurídico do planejamento econômico estatal.

O artigo 174 é aquele que determina no campo do direito eco-nômico o papel do Estado no planejamento econômico, que deveser determinante para o setor público e apenas indicativo para osetor privado, nada obstante a realidade dos planos econômicossempre apontarem em caminho inverso. O Estado controla asempresas privadas e ninguém controla as empresas estatais.

O § 3º, todavia, no contexto regulatório, suprimiu da in-tervenção estatal a atuação dos garimpeiros e os seus prin-cípios são simples, a saber:

a) favorecer a criação de cooperativas de garimpeiros (co-operativas de produção);

b) proteger o meio-ambiente;c) promover o trabalhador dos garimpos social e economi-

camente.Sendo das mais antigas atividades econômicas e sempre

com pessoas que preferem viver a vida com um certo grau deaventura, em que o planejamento e a solidez dos negócios pa-ra o futuro não representam a maior preocupação – quasesempre os garimpeiros vivem do dia-a-dia – o dispositivo ob-jetiva nitidamente auxiliar a atividade garimpeira, permitirmaior proteção desses trabalhadores em relação àqueles queos exploram e prepará-los para uma vida melhor e mais dignapela própria evolução da atividade, adoção de técnicas maismodernas e provisão para o futuro em caso de doenças, ve-lhice ou incapacidade de trabalhar.

Tal dispositivo não se aplica, todavia, aos índios que, deven-do conservar-se de acordo com suas tradições primitivas, nãodeverão ter o estímulo do "homem branco" para se tornarem"homens brancos".

Em suas terras, farão a exploração que quiserem, nos termosdos parágrafos anteriores, não devendo a União interferir, anão ser naquelas hipóteses.

O § 4º do artigo 174, por outro lado, restringe as concessõesàs cooperativas de garimpeiros, em primeiro lugar, não lhesdando prioridade na autorização ou concessão para pesquisa elavra dos recursos e jazidas de minérios garimpáveis, nas áreasde sua atuação, e depois também naquelas áreas fixadas deacordo com o artigo 21, XXV da Constituição Federal, cuja dic-ção é a seguinte:

"Art. 21 Compete à União: ... XXV. estabelecer as áreas e as con-dições para o exercício da atividade de garimpagem, em forma as-sociativa"

Ora, tanto o disposto no § 3º quanto no § 4º não se aplicam,visto que em suas áreas tem o indígena primitivo, enquantopreservador de suas tradições e culturas – esta é a única in-terpretação possível para garantir-lhes 13% do território na-cional –, liberdade de agir absoluta, havendo de prevalecertal maneira de ser sem influência, benefícios e, evidente-mente, problemas que, na luta pela vida, o resto da nação de-ve enfrentar.

Por fim, determina o artigo 232 que:"Os índios, suas comunidades e organizações são partes legí-timas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e in-teresses, intervindo o Ministério Público em todos os atos dop ro c e s s o " .

O artigo 232 contém inequívoca contradição. Consideracompetentes todos os índios e suas comunidades para ingres-sar em juízo para a defesa de seus direitos e interesses, mas osconsidera "hiposuficientes", na linguagem de Cesarino Jr., detal maneira que o Ministério Público intervirá em todos os atosde todos os processos em sua defesa.

Dá-lhes plena capacidade processual e legitimidade ativa,mas limitada autonomia processual, visto que o Ministério Pú-blico ao intervir não fará como defensor da lei, mas como au-têntico advogado auxiliar dos patronos dos indígenas.

Faz menção, o constituinte, a três pontos, os índios, isolada-mente, suas comunidades e as organizações que os congregam.

Distingue, portanto, as comunidades das organizações, de-vendo-se entender que as comunidades são as organizaçõessem personalidade jurídica e as organizações são feitas das co-munidades, mas com personalidade jurídica.

A presença do Ministério Público como advogado tem sen-tido. Como todo o Capítulo VIII objetiva manter um "MuseuVivo do Índio Primitivo", com vasta extensão territorial ofer-tada a tais comunidades (parte da Amazônia é-lhes assegura-da), sua cultura deverá ser mantida com o primitivismo pró-prio dos tempos de Caramuru ou João Ramalho, razão pelaqual estão menos preparados para defender seus interesses edireitos, até mesmo na contratação de advogados, que assimnão poderão, na visão do constituinte, "iludí-los"

Por esta razão, houve por bem, o constituinte, exigir a pre-sença de quem tem a função de defesa da lei no País, para pa-trocinar as questões indígenas e de suas comunidades e orga-nizações em eventuais processos, evitando que sejam mal con-duzidos ou mal direcionados. Protegê-los contra terceiros econtra sua própria presumida ignorância.

Por este prisma, o dispositivo tem sua razão.

Marcello Casal Jr/ABr

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Gabriel Bouys/AFP

Divulgação

Olavo de CarvalhoJornalista, escritor eprofessor de Filosofia

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72 DIGESTO ECONÔMICO SET/OUT E NOV/DEZ 2008

"Q ue se pode esperar dogoverno Obama?" é apergunta do momento.Para respondê-la,

analistas acadêmicos e jornalísticos usaminvariavelmente de um método que já seconsagrou pela sua capacidade de errar:examinam a tônica geral dos discursos decampanha e confrontam-na com osproblemas objetivos – econômicos,militares, diplomáticos – que o novogovernante terá de enfrentar. Esse métodofalha por duas razões:

P r i m e i ra : raciocina com base nopressuposto de que o quadro institucionalpermanecerá inalterado e de que, portanto,o novo presidente desempenhará, a seumodo, substantivamente as mesmasfunções do seu antecessor. Não concebeque dentro de uma estratégiarevolucionária, uma das funçõesprimordiais do governante é precisamentea de redefinir essas mesmas funções.Obama aprendeu isso desde a juventudecom seu guru Saul Alinsky: "Mudança édesorganizar o que está organizado e criarem cima uma nova organização."

Segunda: raciocina sempre com opressuposto de que o governante representao interesse nacional e há de defendê-lo, comtoda a sinceridade, conforme o acordo quelogre encontrar entre as exigências damilitância que o elegeu, as reivindicaçõesdos aliados de ocasião e as pressões dasituação objetiva. Essa premissa já não faz omínimo sentido numa época que secaracteriza, acima de tudo, como a daemergência e implantação do governomundial. Hoje em dia, o interesse nacionalde todos os países está subordinado a planosde envergadura global impostos por umaelite econômica, burocrática e intelectual,cujo poder transcende o de qualquer naçãoem particular, inclusive o dos EUA. Muitospresidentes e primeiros-ministros sãocolocados em seus postos com a ajuda e soba orientação dessa elite, não para defender ointeresse nacional, mas para contrariá-lo emfunção de objetivos de escala imensamentemaior que, embora já descritos há mais demeio século por autores do porte de umArnold Toynbee e de um Carroll Quigley,quase nunca são levados em conta poraqueles analistas, e não o são por um motivo

Hoje em dia, ointeresse nacionalde todos os paísesestá subordinado

a planos deenvergadura globalimpostos por umaelite econômica,

burocrática eintelectual (...)

Adnan Abidi/Reuters

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73SET/OUT E NOV/DEZ 2008 DIGESTO ECONÔMICO

muito simples: como o admitiupublicamente David Rockefeller, um doslíderes máximos do globalismo, a luta pelaimplantação do governo mundialfracassaria se fosse divulgadaprematuramente, sendo portanto adiscrição, a desconversa e a desinformaçãoalgumas das funções essenciais da grandemídia no período intermediário. Entre os"meios antidemocráticos" que Toynbeeconsiderava indispensáveis à implantaçãodo governo mundial, está, com toda aevidência, o controle do fluxo deinformações fornecido ao público. Auniformidade crescente do jornalismomundial, da qual a campanha contra ossupostos agentes humanos do aquecimentoglobal, a gritaria universal anti-Bush ou asondas de entusiasmo em torno de Lula, deObama, ou do Fórum Social Mundial dãoamostras eloqüentes, explica-se facilmentepela concentração cada vez maior dapropriedade dos órgãos de mídia nas mãos,precisamente, dos grupos econômicos maisinteressados no governo mundial. Que umaparte dos agentes menores do processoreclame contra essa concentração, alegando

ver nela o efeito espontâneo da puramecânica do capitalismo, deve-se em parte aum automatismo ideológico residual, emparte ao desejo astuto que esses grupos epessoas têm de camuflar suas próprias açõessob o manto de pretensas tendências ou leishistóricas anônimas, atribuindo a culpa dasmudanças mais desagradáveis à situaçãoanterior que as transformações em cursovisam precisamente a suprimir.

Como, por outro lado, a mídia tambémtem por função condensar o "senso comum"(no sentido sociológico e gramsciano dotermo), fornecendo à população umsentimento de orientação e certeza quanto aoque está acontecendo, o leitor culto serálevado, mais dia menos dia, a ter de escolherentre acompanhar a opinião geral ou buscaruma compreensão mais realista e científicado estado de coisas. No primeiro caso,ganhará aquela reconfortante sensação desegurança que advém de se enganar a sipróprio junto com a maioria. No segundo,alcançará a certeza razoável que lhe permitiráfazer previsões acertadas, à custa de parecerestranho ou maluco aos olhos de muitos.Como a minha escolha já foi feita faz tempo, o

Num tempo demudança acelerada,forçada desde cima

por grupos cujalinha de ação

permanece discreta,é praticamente

impossível prever ocurso geral das açõesde um novo governo.

Oliver Laban-Mattei/AFP

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74 DIGESTO ECONÔMICO SET/OUT E NOV/DEZ 2008

método que emprego para responder aperguntas como aquela que abre este artigonão se baseia nas convenções acadêmicas ejornalísticas usuais, mas em precauçõescientíficas elementares, o que tem mepermitido alcançar algum sucesso naprevisão do curso das coisas, sucesso cujopreço é, naturalmente, o ódio daqueles quenão o alcançaram.

Uma dessas precauções é a seguinte: numtempo de mudança acelerada, forçada desdecima por grupos cuja linha de açãopermanece discreta, é praticamenteimpossível prever o curso geral das ações deum novo governo. Tudo o que podemos edevemos fazer é abdicar das previsõesgerais e ater-nos àqueles pontosparticulares, poucos, mas significativos, jádeterminados pelo curso da ação anterior,de tal modo que o novo governo tenha delhes dar continuidade necessariamente. Emvez de deduzir do quadro geral as açõesparticulares que o governante deveráhipoteticamente empreender para enfrentá-lo, é preciso partir das ações particulares jáexistentes ou praticamente inevitáveis, edaí, se possível, ir laboriosamente subindo

até o quadro geral. Digo "se possível"precisamente porque na maior parte doscasos só podemos alcançar uma certezarazoável quanto às linhas de açãoparticulares, ficando o sentido geral dascoisas tão fora do nosso alcance intelectualquanto do controle do próprio governante.Mesmo os poderes mais formidáveis só sãocapazes de determinar uma fração mínimados resultados de suas ações. Daí que todoprognóstico sério quanto aos rumos de umnovo governo deva se ater às ações que eletenha de empreender tão somente paramanter e ampliar o poder de que foiinvestido, especialmente aquelas quederivem de compromissos imediatos jáassumidos com as forças políticas eeconômicas que o geraram.

A esse preceito acrescenta-se umsegundo, de igual obviedade: quaisquerque sejam os seus objetivos proclamados,um esquema de poder zelará sempre, acimade tudo, pela sua própria continuidade eexpansão. Para agir é preciso ser, dizia Sto.Tomás de Aquino. A existência econtinuidade do esquema são a condiçãoprévia para que o esquema faça o que quer

Thomas Mukoya/Reuters

Ethan Miller/AFPToda a carreirade Obama

e suaascensãoao poder

foramsubsidiadasinteiramente

por forçasanti-americanas.

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75SET/OUT E NOV/DEZ 2008 DIGESTO ECONÔMICO

que seja. Portanto, o que se deve averiguarantes de tudo é o que um governante teráde fazer necessariamente, não paraalcançar tais ou quais metas, nem paraenfrentar as dificuldades objetivas queacossam a nação ou uma parte dela, massimplesmente para conservar – e, no casode um governante revolucionário, ampliar– o poder de ação que já tem. Não sei,portanto, o que Obama vai fazer em linhasgerais. Não sei e ninguém sabe. Mas sei oque ele já está fazendo e vai ter decontinuar a fazer, não para alcançar certosfins, mas simplesmente para conservar eampliar o domínio dos meios.

Observo, de passagem, que foi por essemétodo que anunciei, logo após a primeiraeleição de Lula, que ele nada faria deefetivo contra o narcotráfico, pela simplesrazão de que fora colocado no poder – epoderia ser apeado dele – pelo esquemainternacional do Foro de São Paulo, cujosinteresses se identificavam visceralmentecom os das Farc, então e ainda hoje a maior

A eficáciada ação

diplomática é,por definição,

proporcional aopoder militar

que lhe dárespaldo.

fornecedora de cocaína ao mercadonacional. Excetuando-se a hipótese de queseja louco, um governante pode fazermuitas coisas, mas não destruir os meios defazer qualquer coisa.

Toda a carreira de Obama e sua ascensãoao poder foram subsidiadas inteiramentepor forças notoriamente anti-americanas.Alegar que são apenas anti-Bush e não anti-EUA é apenas um giro retórico de ocasião,indigno de exame. A função essencial que onovo presidente desempenhará no cargonão é muito diferente daquela que StrobeTalbott recomendava a Bill Clinton:"Vender o multilateralismo como se fosseum meio de preservar e ampliar a liderançaamericana no mundo." Trata-se, emresumo, de debilitar e submeter a instânciassupranacionais o poder nacional que sefinge incrementar. Nos seus discursos decampanha, bem como em declarações deseus assessores, Obama prometeu diminuiro orçamento militar americano em até 25%,desacelerar as pesquisas nucleares e,

Mario Tama/AFP

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Em toda ação política – e esta é a terceiraprecaução metodológica que recomendo –, épreciso distinguir entre as metas finaisanunciadas e a substantividade dos atosempreendidos para alcançá-las. Estes sãouma realidade, aquelas apenas uma hipótese,quando não um pretexto. Logo, o sentido daação revela-se antes na natureza dos meiosusados do que nos fins nominaisproclamados. Debilitar militarmente umanação é... debilitá-la militarmente. Que issopossa fortalecê-la diplomaticamente é umahipótese de longo prazo, rebuscada demais econtrária a toda experiência histórica. Aconexão que aí se pretende ver entre os finsalegados e os meios escolhidos baseia-se,ademais, numa premissa que é,uniformemente, a do discurso anti-americano geral: os EUA são odiados porcausa de sua força militar; se aceitaremtornar-se mais fracos, serão amadosperdidamente pela humanidade.

Note-se que, no caso, aquilo que ocandidato enfatizou no discurso decampanha não foi a materialidade dosmeios e sim a suposta beleza dos fins, sobaplausos frenéticos de multidões deestudantes para os quais mesmo a completadestruição dos EUA não deixaria de ser

pasmem, "desmilitarizar o espaço". Isso,alegadamente, tornaria os EUA maissimpáticos aos olhos da humanidade e lhesdaria uma tremenda liderança diplomáticano mundo. Só mocinhas de cabeça oca – quenão por coincidência constituíram a parcelamais decisiva do eleitorado de Obama –podem acreditar numa coisa dessas. Aeficácia da ação diplomática é, pordefinição, proporcional ao poder militarque lhe dá respaldo.

Na cidadejaponesa de

Obama,donas de

casa dançamapós o

anúncio davitória.

fotos: Toru Yamanaka/AFP

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77SET/OUT E NOV/DEZ 2008 DIGESTO ECONÔMICO

uma idéia investida de algum sex appeal.Idêntico poder de atração tem essa idéiasobre todos aqueles que financiaram acarreira de Obama desde sua adolescência:milionários árabes, agitadores pró-terroristas, corporações globalistas e, lastnot least, George Soros. Se uma coisa écerta, é que o objetivo de debilitarmilitarmente os EUA, já perseguido comnotável tenacidade pelo governo Clinton,será seguido à risca por Barack Obama pelosimples fato de que realizá-lo é uma dasrazões fundamentais da sua existênciacomo político. É algo que ele simplesmentenão pode deixar de fazer, tal como, mutatismutandis, Lula não pôde deixar desacrificar os interesses e a soberania danação aos objetivos maiores do Forode São Paulo e do esquema globalistaque o sustenta, como se viu no caso daspressões bolivianas contra a Petrobras,e mais claramente ainda na questãoRaposa Serra do Sol.

Não deixa de ser curioso – e deprimente –observar que, numa época em que assoberanias nacionais são contestadasabertamente nas altas esferas da política

Obamajá está

formalmentecomprometidocom o projeto

de anistiatotal para osilegais (...)

Gabriel Bouys/AFP

mundial, e sua limitação ou eliminaçãoprogressiva é mesmo proclamada como umacondição básica para a sobrevivência daespécie humana, analistas com pretensõescientíficas continuam tomando comopremissa, ao menos implícita, de suasprevisões a suposição de que os governantesagem sempre em função do interessenacional, como se fossem príncipes daRenascença empenhados em quebrar aunidade do império e instaurar novasunidades soberanas.

Hoje em dia, um governante podecontrariar na base os mais vitais interesses dasua nação e receber, por isso mesmo, tantoapoio da opinião internacional que a própriapopulação do seu país, julgando as coisas pelaaparência mais visível e não pelasubstancialidade das ações envolvidas, acabevendo nele uma espécie de herói nacional.

A fórmula de Talbott foi seguida à riscapor Bill Clinton, por isso mesmo um dospresidentes americanos mais aplaudidospela mídia mundial. Ele diminuiu o arsenalamericano de armas atômicas sabendo quea China aumentava consideravelmente odela; fomentou o quanto pôde os

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78 DIGESTO ECONÔMICO SET/OUT E NOV/DEZ 2008

investimentos americanos na China, aomesmo tempo que estrangulava comimpostos e legislações restritivas aindústria americana; bloqueou asinvestigações sobre a espionagem chinesano laboratório nuclear de Los Alamos e,nos últimos dias do seu governo, quando oprincipal agente chinês envolvido naoperação já estava preso, deu-lhe indultosem qualquer motivo razoável. Não épreciso explicar que em tudo isso ele agiucontra o interesse nacional americano epraticou o mais estrito "multilateralismo",fomentando a transformação da Chinanuma potência econômica e militar compretensões a tornar-se o centro dominantenas próximas décadas. Também não épreciso dizer que os aplausos daídecorrentes na mídia internacional deramuma tremenda impressão de prestígioamericano crescente, fazendo com que odeclínio aparecesse como ascensão aosolhos do povo. Ainda maisentusiasticamente foi aplaudido oex-presidente americano pela suaintervenção "humanitária" em Kosovo,a qual, sob o pretexto de punir umgenocídio que hoje sabemos ter sidoperfeitamente inexistente, só teve comoresultado efetivo fazer de uma região queera cristã uma praça-forte islâmica, e istoao preço do genocídio verdadeiro aíempreendido pelas tropas muçulmanastreinadas e subsidiadas pelo próprioBin Laden. Aí, novamente, a simpatia damídia internacional foi vendida àpopulação americana como prova degrande sucesso da ação anti-americanaordenada pelo presidente.

Quando Obama promete melhorar a"imagem" internacional dos EUA em trocada redução do poderio militar americano,ele está aplicando de novo a fórmula deTalbott: trocar a realidade por uma imageme em seguida vender a imagem comorealidade. Que ele vai realmente fazer isso éalgo de que não se pode duvidarseriamente, pois essa proposta é a razãofundamental ou quase única do apoio querecebeu de toda parte no mundo, apoio quesó um perfeito idiota imaginaria nascer daspreferências espontâneas da população enão de um esforço coordenado da eliteglobalista que domina as organizações demídia em todos os quadrantes da Terra. Seele voltar atrás nesse compromisso, suacarreira política não durará mais um dia.

Mas Obama não foi eleito só para fazer denovo o que Clinton já fez. À debilitação dopoderio americano no quadro internacionalele associará um aumento prodigioso dopoder de controle do Estado americanosobre as vidas dos cidadãos e sobre aformação da opinião pública.

Não digo que ele "pode" fazer isso ouque "tende a" fazer isso. Digo que o faránecessariamente, se não for impedido,porque fazê-lo é preciso para consolidar opoder das forças que o elegeram e bloqueardesde já um possível retorno dosrepublicanos ao domínio das duas casas doCongresso em 2010. Conservar e aumentaro seu poder é a condição mais básica daexistência das forças políticas, e taiscondições se tornam tanto mais necessáriase urgentes quando se trata de uma forçapolítica empenhada em fazer mudançasprofundas na sociedade. Qualquer que sejao teor dessas mudanças, a primeira delas ée tem de ser a consolidação do poder deação necessário para empreendê-las. Foialiás por ter descuidado disso que GeorgeW. Bush fracassou por completo. Em vezde consolidar a hegemonia republicana,debilitando o adversário, ele preferiuimprovisar uma aliança suicida com esteúltimo, forjando um simulacro de uniãonacional contra um inimigo externo. Essaunião, ao esboroar-se com velocidade maisque previsível (exceto aos olhos dos gêniosdo Departamento de Estado), levou juntoconsigo o prestígio da presidência e ocontrole republicano das duas casas doCongresso. Os democratas não costumamcair tão facilmente nesse equívoco. Já antesmesmo da posse de Obama estãopreparando o retorno da legislaçãorestritiva, ironicamente denominadaFairness Doctrine ("Doutrina daEqüidade"), que visa a destruir o pouco deequilíbrio que ainda resta entre os meios decomunicação americanos, transferindo aosdemocratas metade do tempo de que osrepublicanos desfrutam no rádio, semconceder a estes nem uma fração sequer dahegemonia democrata nos jornais e na TV.

Alguns comentaristas republicanos, e nãodos piores, raciocinando erroneamentesegundo a premissa de que as regras do jogopermanecerão inalteradas, chegam aimaginar que a vitória de Obama foi boapara o seu partido, pois lançará sobre o novopresidente a responsabilidade de enfrentar acrise econômica e previsivelmente fracassar,

Obama não foieleito só para fazer denovo o que Clinton jáfez. À debilitação dopoderio americano noquadro internacional eleassociará um aumentoprodigioso do poder decontrole do Estadoamericano sobre asvidas dos cidadãos esobre a formação daopinião pública.

Qualquer queseja o teor dessasmudanças, aprimeira delas é etem de ser aconsolidação dopoder de açãonecessário paraempreendê-las. Foipor ter descuidadodisso que George W.Bush fracassou.

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preparando assim um retorno triunfal dosrepublicanos nas eleições legislativas de2010. É um dos erros de método a que mereferi. Em 2010, as regras do jogo estarão tãoradicalmente alteradas que os republicanosem geral, e os conservadores em especial,mal terão como fazer-se ouvir pela opiniãopública. A "mudança" aí prometida porObama pode começar já antes da sua possena presidência: encorajados pela vitória nopleito presidencial, os senadores edeputados democratas não vêem a hora deaprovar o retorno da catastrófica e anti-democrática Fairness Doctrine.

A essa mudança fundamental, que daráao establishment esquerdista o controlequase completo dos meios decomunicação, Obama pretende acrescentarum item mais complicado, mas cujaimplementação é um compromissoexplícito que ele assumiu com a ala enragéeda sua militância, cujo apoio ele terá decontinuar cortejando caso não pretenda

voltar contra si a parcela mais ousada evociferante da nação americana, coisa queele só fará se for louco. Refiro-me ao projetoda "Força Civil de Segurança Nacional".Obama já vem trabalhando nesta idéia hámuitos anos, no quadro da ONG "PublicAllies". Trata-se, muito simplesmente, dearmar a militância radical e fazer dela,segundo as próprias palavras do novopresidente, uma força tão poderosa e tãobem subsidiada quanto o Exército, aMarinha e a Aeronáutica. A verba quedeverá ser alocada para isso já é calculadapelos planejadores obamistas em 500bilhões de dólares anuais. Cada voluntáriorecrutado receberá aproximadamente1.800 dólares por mês, mais a garantia debolsas de estudo, vagas nas melhoresuniversidades e inumeráveis outrasvantagens sociais que, associadas aoarmamento e ao adestramento militar,farão dessas hordas de fanáticos, muitorapidamente, uma classe privilegiada

Senadores edeputados

democratas nãovêem a hora de

aprovar o retornoda catastrófica

Fairness Doctrine.Michael Nagle/AFP

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hispânicos contra negros. Um vastoempreendimento de repressão aos crimesinterraciais poria ainda mais negros nascadeias que eles já superlotam. Seriaum suicídio político formidável, jogandocontra Obama a comunidade cuja corde pele é um dos motivos mais fortes dasua presença no cargo presidencial.(A propósito, convém lembrar que aexplicação usual da proporção maior depresidiários negros como efeito do"racismo" é uma fraude completa, de vezque os Estados onde há proporcionalmentemais negros do que brancos nas prisões nãosão os do Sul e sim os do Norte, e não são osgovernados pelos republicanos e sim pelosdemocratas. )

Igualmente impossível é que a novaforça de segurança se destine a controlar oproblema da imigração ilegal. Obama jáestá formalmente comprometido com oprojeto de anistia total para os ilegais, emuito em breve o conceito mesmo de"imigrante ilegal" terá sido abolido.Excluídas essas três finalidades, que tarefaresta para uma força monstruosa, dotamanho do Exército, da Marinha e daAeronáutica, senão policiar e reprimir osgrupos políticos e religiosos considerados"suspeitos" segundo a perspectivaesquerdista? Isso já estava no programa dosdemocratas desde os tempos de MadelineAlbright, que via uma grande ameaça àsegurança nacional nos grupos formadospor pessoas religiosas, conservadoras e,como metade da população americana,armadas. A gestão Clinton não contava,para a repressão a esses grupos, senão como FBI e as polícias estaduais, ondenaturalmente muitos agentes e homens decomando veriam com horror uma açãoabrangente e drástica contra pessoasinocentes. A jovem militância obâmica jávem previamente vacinada contra essesescrúpulos pela doutrinação maciça.

Debilitar o Estado americano no exteriore fortalecê-lo no interior são os dois pilaresfundamentais da política de Obama. Elenão pode desistir nem de um nem dooutro, não só porque eles secomplementam, mas porque são asprincipais razões de ser da sua existênciacomo político. Toda a carreira de Obamafoi amparada e subsidiada por forças quedesejam ardentemente essas duas coisas.Ao discerni-las como realizaçõesfundamentais nas quais o governo Obama

investida de meios de poder assustadores.Contra quem se voltará esse poder?

Destinar-se-á a "força civil" a substituir comvantagem os militares na repressão econtrole do terrorismo? Impossível. A gestãoBush já reduziu a zero o número deatentados terroristas no território americano.Pretender ir abaixo de zero não faz sentido.

Será então a nova força destinada acombater a criminalidade, a restaurar asegurança pública e assim a promover a pazsocial, a tão ansiada "reconciliação" entre asraças? Igualmente impossível. Se, por umlado, oitenta por cento dos militantes daPublic Allies já se constituem de jovens deraça negra, muito provavelmente a mesmaproporção se manterá na "força civil", poisonde mais, senão nas fileiras da sua própriamilitância, iria o obamismo recrutar osvoluntários para essa tarefa? É certo, deoutro lado que, da totalidade dos crimesinterraciais praticados nos EUA, 85% –quase a mesma proporção dos membros daPublic Allies – são cometidos por negroscontra brancos, com o detalhepoliticamente correto de que as estatísticasoficiais de criminalidade se recusam a trataros hispânicos como um grupo em especial eos incluem entre os "brancos", debitando naconta destes os crimes eventualmentecometidos por imigrantes ilegais

Obama promete melhorar a imagem internacional dosEstados Unidos por meio da redução do poderio militar americano.

Ele prometeu diminuir o orçamento militar em até 25%.

Massoud Hossaini/AFP

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empenhará o melhor dos seus talentos, nãoesbocei nenhum quadro geral dasperspectivas desse governo, apenaschamei a atenção para duas linhas de açãojá em movimento, fortemente arraigadasnas metas constantes dos democratas nopoder, e já previamente articuladas com omais vasto esforço de formação demilitância que já se viu nos EUA (só para ascampanhas de internet, Obama tem a seudispor uma rede de nada menos de quatromilhões de pessoas, formalmentecomprometidas a continuar fazendo pelogoverno o que fizeram pelo candidato).Qualquer que seja o desenho geral que ogoverno Obama venha a mostrar aomundo, essas duas linhas estarão lá eafetarão profundamente o conjunto. Quevários analistas, republicanos, democratasou independentes, anunciem um governo"moderado" ou "centrista", só provêm dofato de que não possuem os instrumentosanalíticos necessários para compreender asituação. "Radical" e "moderado", no maisdas vezes, são termos que se aplicammelhor à descrição de estilos retóricos que

à de ações substantivas. O "radical"esquerdista Hugo Chávez não conseguiudesmantelar a pujante oposiçãovenezuelana, ao passo que o "moderado"Lula foi desmantelando um a um todos osfocos de resistência direitista, ao ponto deque hoje só lhe resta oposição de esquerda.Obama pode muito bem manter um perfil"moderado" nas áreas de atuação maisvisíveis, ao mesmo tempo quediscretamente vai implementando aquelasduas medidas que, por si, bastam noentanto não só para alterarirreversivelmente o quadro políticoamericano, mas para "mudar o mundo".

É claro que Obama pode ser impedido derealizar esses planos, seja por fatoresincontroláveis, seja pela ação organizada deseus adversários. O que é certo é que oesforço de concretizá-los, de maneira maisespetacular ou mais discreta, será uma dasconstantes do seu governo, e qualquersucesso que ele obtenha nesse sentido,mesmo incompleto ou mínimo, deixará umacicatriz na face histórica dos EUA e daespécie humana.

KAL/The Economist - London, England

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Campanha de 2008

Divulgação

Gene HealyVice-presidente do CatoInstitute e autor do livro"O Culto à Presidência:A Perigosa Devoçãoda América ao PoderExecutivo". Seu artigoé uma contribuiçãode OrdemLivre.org

O meu livro chama-se "O Culto àPresidência", mas ultimamentepenso que eu deveria tê-lo cha-mado de "A Futilidade da Espe-

rança". Espero que você não esteja aqui parauma dose de otimismo radiante sobre o estadoda presidência e o futuro da nossa política. Ca-so esteja, você ficará decepcionado.

Vamos pensar naquela frase "a Audácia daEsperança". O que ela significa? Eu ainda não lio livro, mas, ao escutar os discursos em queObama usa a frase, torna-se claro que "a Audá-cia da Esperança" é a crença na promessa de re-denção através da política presidencial. É aidéia segundo a qual o presidente pode nossalvar. Quando houver qualquer coisa que nosaflige – seja desemprego ou furacões, discor-dância ou indisposição espiritual – o presiden-te conhece a cura. Como Obama disse, em dis-curso na Carolina do Sul há alguns meses, com

o tipo certo de liderança podemos "criar umreino aqui mesmo na terra".

Se isto soa partidário, deixe-me ressaltarque muitos conservadores, que hoje criticam oculto a Obama, são as mesmas pessoas que fi-zeram um boneco de ação de George W. Bush.Se este livro for alguma coisa, ele é apartidário:ele é implacavelmente cínico sobre ambos oslados do espectro político convencional.

O fato é que os dois principais candidatosnesta corrida subscrevem à visão messiânicada presidência. John McCain idolatra TeddyRoosevelt, que é talvez a figura mais ridícula eirritante que já ocupou o Salão Oval (este é oponto de vista de uma minoria, garanto). MasMcCain diz que Roosevelt foi um grande pre-sidente, porque ele expandiu os poderes doExecutivo e "nutriu a alma de uma grande na-ção". Se a nutrição de almas é o trabalho do pre-sidente, então acho que é uma coisa boa.

Stan Honda/AFP

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Mas, vamos direto ao assunto: quem eles pen-sam que são? Para qual tipo de trabalho eles pen-sam que estão se candidatando? Poucos ameri-canos sequer pensam em perguntar essas ques-tões. Você ouve os candidatos e obtém uma visãoextraordinária do presidente. Ele é o psicólogo, oassistente social da América, e nosso apresenta-dor nacional de programas de entrevistas. Ele éseu companheiro e conselheiro de vida, e tam-bém o Senhor da Guerra Supremo da Terra.

Mas esta visão da presidência não poderiaestar mais distante da perspectiva dos autoresda Constituição dos EUA. Os autores nuncapensaram no presidente como um homem quepoderia resolver todos os seus problemas,quanto mais salvar a sua alma. Eles conheciammuito bem a natureza humana para sequerpensar em colocar tanto poder e responsabili-dade nas mãos de uma única pessoa.

Refletindo, posso lembrar o momen-to exato em que percebi que havia algoterrivelmente errado no modo como osamericanos enxergam a presidên-cia. Foi em 16 de outubro de 1992.Eu estava na faculdade, assistindoao debate presidencial com unsamigos, após tomar várias cervejas. Es-te debate em particular – com Bill Clinton,George W. Bush e Ross Perot – foi um daquelesdebates horríveis, com a participação da pla-téia, estilo Oprah. Você conhece o formato:eles reúnem uma audiência de americanossupostamente normais, e colocam os can-didatos empoleirados em banquinhos,tentando parecer confortáveis.

E lá da audiência surge um homemque preenche o estereótipo da esquerda –um assistente social com um rabo de cava-lo. Um homem que, mais tarde, descobri-mos que se chama Denton Walthall. E Den-ton faz as perguntas mais estarrecedoras,que citarei com certo detalhe:

O objetivo do meu trabalho como mediador do-méstico é satisfazer as necessidades das criançascom quem trabalho... e não os desejos de seus pais. Epergunto aos três: sendo simbolicamente as criançasdo futuro presidente, como podemos esperar que ostrês satisfaçam nossas necessidades, as necessidadesem relação à moradia, segurança etc...

Relembrando, pensei sobre como os presi-

dentes de outrora teriam respondido ao adultobalbuciando sobre as carências nacionais, ecomparando os americanos a crianças. An-drew Jackson, que lutou dezenas de duelos emsua vida, teria provavelmente segurado Den-ton pelo rabo de cavalo e lhe dado uma surrade pistola em audiência nacional. O silenciosoCal Coolidge, um de nossos grandes presiden-tes, teria tomado uma abordagem diferente.Ele simplesmente ficaria sentado, encarando-o friamente, e o envergonhando com um silên-cio constrangedor e horrível.

Mas o que é realmente estarrecedor é a res-posta que a pergunta de Denton Walthall ob-teve. Nenhum dos candidatos se sentiu con-fortável para sugerir – mesmo educadamente– que, meu amigo, o presidente não é sua ma-mãe ou papai. Em vez disso, todos aceitaramsua premissa. Ross Perot disse que ele juraria e

assumiria o compromisso. BillClinton, sendo Bill Clinton, bus-

cou agradar. E a resposta de Bushpai foi de doer. Ele disse:

... quer dizer, penso, em geral,

e o culto à presidência

Como Obama disse,em discurso na

Carolina do Sul háalguns meses, com

o tipo certo deliderança podemos"criar um reino aquimesmo na terra".

Jom Young/Reuters

Tradução:Cíntia

Shimokomaki

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vamos conversar sobre estas – vamos conversar so-bre estas questões; vamos conversar sobre os pro-gramas, mas a presidência envolve muita coisa. Elaenvolve zelar – isto não é particularmente especí-fico; envolve força – isto não é específico; resistir àagressão, isto não é específico em termos de um pro-grama. Por isso, em princípio, eu aceito sua questãoe acho que deveríamos discutir assistência à crian-ça, ou o que quer que seja.

Claramente, a dificuldade com palavras éum problema de família. Por mais triste que se-ja a análise, o presidente Bush e Denton Wal-thall descreveram precisamente o que seria aidéia dominante do papel do presidente na vi-da moderna americana.

Este papel contém várias facetas: "não espe-cífico"; "força", "zelo", "moradia", "segurança","resistência à agressão", "assistência à criança"– ou, de fato, "qualquer outra coisa". É claro, opresidente não tem praticamente nenhumaresponsabilidade constitucional na área de"segurança", tampouco em relação à moradiaou assistência à criança, e você não encontrará"zelo" na Constituição, o que é uma das gran-des características deste documento. No en-tanto, estas questões são o arroz com feijão detoda campanha presidencial moderna.

Mas, diferentemente de John McCain, osautores da Constituição dos EUA não pensa-vam que o papel do presidente era "nutrir" a al-ma nacional, independentemente do que issoseja. Como Hamilton destacou no The Federa-list ensaio nº 69, o presidente "não tem nenhu-ma porção de jurisdição espiritual".

É comum hoje em dia, especialmente apósos atentados de 11 de setembro, ouvir as pes-soas chamarem o presidente de "nosso coman-dante-em-chefe" – como se ele fosse o líder detoda a sociedade, em vez de general-chefe doExército dos EUA. Em abril, Hillary Clintonaté declarou que o presidente precisa estar"preparado, a partir do primeiro dia de man-dato, para ser comandante-em-chefe da eco-nomia dos EUA".

Mas George Washington não saía por aíclamando ser o comandante-em-chefe de to-dos; na maioria das vezes, ele se referia aoseu cargo como "magistrado-chefe" – um tí-tulo bem humilde.

E, diferentemente do moderno George W.Bush, Washington não achava que sua autori-dade como comandante-em-chefe lhe davapermissão para violar a lei que quisesse, desdeque ele a fizesse em nome da "segurança nacio-nal". George W. Bush acha que pode começaruma guerra com o Irã sem permissão do Con-gresso. Mas Washington não achava que tinha o

poder de lançar uma ação ofensiva contra tribosindígenas hostis. Como ele declarou em 1793, "aConstituição confere o poder de declarar guer-ra ao Congresso; portanto, nenhuma expediçãoofensiva importante pode ser realizada até queo assunto seja deliberado e autorizado".

Nos últimos seis anos, o movimento conser-vador tem apoiado toda proposta de ampliaçãodo poder executivo feita pela administraçãoBush: o poder para declarar guerras à vontade;grampear telefones e ler e-mails sem mandado;e prender cidadãos americanos em solo ameri-cano e detê-los pela duração da guerra contra oterror – em outras palavras, talvez eternamente– sem ter que responder a um juiz.

Como chegamos aos dias de hoje é uma his-tória fascinante, e eu explico esta história no li-vro. Mas, agora, gostaria de concentrar em co-mo o movimento conservador moderno aban-donou sua herança de ceticismo em relação aopoder presidencial.

Os intelectuais de direita que se uniram aoredor da National Review de William F. Bu-ckley associaram presidentes poderosos aoliberalismo ativista: o "New Deal" (NovoAcordo), "New Frontier" (Nova Fronteira),"Great Society" (Grande Sociedade). Em1964, Barry Goldwater, que representou amaior esperança de sucesso político dos con-servadores, escreveu que:

...parte da idolatria atual a executivos poderososvem daqueles que admiram qualquer tipo de força erealização. Outros aclamam a demonstração de for-ça presidencial... simplesmente porque eles apro-vam o resultado alcançado pelo uso da força. Isso énada menos do que a filosofia totalitária, segundo aqual o fim justifica os meios... Se existe uma filosofiade governo totalmente em guerra com aquela dosPais Fundadores dos EUA, este é um exemplo.

Ronald Reagan fez um famoso discurso natelevisão em favor da candidatura de Goldwa-ter. Ele atacou o senador Fulbright de Arkansas,que algumas semanas antes havia "se referidoao presidente como nosso professor de moral enosso líder, e ele disse que estava amarrado emseu trabalho por causa das restrições de poderimpostas por este documento obsoleto. Ele de-veria ser liberado (disse Fulbright) para que elepossa fazer o que sabe melhor". Reagan consi-derou esta idéia com desprezo total, identifi-cando-o como o tipo de sentimento que, segun-do ele, nos levaria "ao formigueiro do totalita-rismo". Bom, este é o tipo de conversa que leva-ria Rush Limbaugh e Sean Hannity a acusá-lohoje de traição, já que o movimento conserva-dor enxerga as questões do Poder Executivo demodo bem diferente. Depois que os anos 1970 e

É comum hoje emdia, especialmenteapós os atentadosde 11 de setembro,ouvir as pessoaschamarem opresidente de "nossocomandante-em-chefe" – como se elefosse o líder de todaa sociedade, em vezde general-chefe doExército dos EUA.

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1980 trouxeram ao colégioeleitoral a "maioria republi-cana emergente", a direitatornou-se vítima do "cons-titucionalismo situacional"e adotou a visão de presi-dência previamente asso-ciada a FDR, JFK e LBJ.

Nossos problemas coma presidência não desapa-recerão por dois motivos:primeiro, o histórico de ad-ministrações democrataspassadas – incluindo aque-la cujo sobrenome do presi-dente era Clinton – nos dápoucos motivos para acre-ditar que os democratashesitarão em ampliar ospoderes do Executivo. Osdemocratas são tão suscetí-veis ao constitucionalismosituacional como os repu-blicanos. Isto deveria nospreocupar, porque o histó-rico de vigilância irrestritaao longo do século 20, navigência do Ato de Vigilância da InteligênciaEstrangeira (Fisa, na sigla em inglês), nos mos-tra que presidentes de ambos os partidos usa-ram regularmente sua autoridade de gram-pear para espionar seus inimigos políticos.

Em segundo lugar, haverá enorme pressãopara reverter à teoria de Bush de Poder Execu-tivo, se e quando houver ataques terroristasfuturos contra os Estados Unidos. Nenhumpresidente pode deixar o país à prova de ter-rorismo, e isso não deve ser esperado de ne-nhum presidente. Mas se o povo impuser pu-nição política ao fracasso do presidente em fa-zer o impossível, é natural que o presidenteprocure um poder correspondente a esta res-ponsabilidade. Esta dinâmica é ressaltada pe-las visões da presidência apresentadas nacampanha deste ano, na qual o candidato de-mocrata disse acreditar ser capaz de impedir oaumento do nível dos oceanos, e o principalpalestrante republicano, Rudy Giuliani, disseao público que "podemos confiar (em JohnMcCain) para lidar com qualquer coisa que anatureza coloque em nosso caminho, qual-quer coisa que os terroristas façam conosco... eestaremos seguros em suas mãos, e nossascrianças estarão seguras em suas mãos".

Talvez você já tenha visto esta fórmula: o"Partido da Mamãe" contra o "Partido do Pa-pai". Ela resume perfeitamente o triste estado

do debate sobre o poder presidencial. O que vo-cê deseja em um presidente: uma mamãe nacio-nal ou um papai nacional? Você não precisa es-colher. Baseado em experiências anteriores, vo-cê geralmente terá ambos. Você terá um milita-rismo intuitivo, que representa o pior de ambosos mundos. Quando ele passou a tocha para seuex-rival em março, o presidente Bush declarouque John McCain "trará determinação para der-rotar o inimigo e um coração grande o suficientepara amar aqueles que estão feridos".

Mas há uma alternativa para o paradigmaPartido Mamãe/Partido Papai. Ela requeruma visão "adulta" da presidência.

Se precisamos de heróis em nossas vidas,não deveríamos procurá-los entre políticosprofissionais, pelo amor de Deus! Porque, empolítica, toda vez que há uma promessa, tam-bém há uma ameaça velada. Mas quando umcandidato presidencial promete salvar o mun-do e resolver todos os seus problemas, isto virácom um preço.

Uma cultura política mais saudável segui-ria os autores da Constituição dos EUA nãoapenas em seu ceticismo diante do poder, masno sentido de que o governo federal possui res-ponsabilidades e poderes limitados. Até res-taurarmos este sentido de limites, receio queteremos mais do mesmo, independentementede quem se torne presidente.

SCHRANK / Sunday Business Post/ Dublín, Irlanda

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Mau

rício

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FPAmbiente No relatório do

Banco Mundialsobre oambiente denegócios, oBrasil ficou na125ª posição.

João Luiz Mauadmal assombrado

Há por aí uma cambada de caras-de-pau que tem aousadia de chamar esse verdadeiro pandemônioeconômico em que vivemos de "Modelo Neolibe-ral". E pior: há quem acredite nisso. Eu, que me sa-

tisfaço com pouco, ficarei contente no dia que o Brasil alcançaro estágio de país capitalista.

O Banco Mundial ( www.doingbusiness.org) divulgou esteano o sexto relatório sobre o ambiente de negócios no mundo, eo Brasil, para não perder o hábito, ficou perto das últimas co-locações – mais precisamente, na 125ª posição, entre as 181 eco-nomias pesquisadas. Esse levantamento é baseado na análisequantitativa e qualitativa de 10 diferentes aspectos ligados aoambiente institucional de negócios, com destaque para a buro-cracia envolvida na abertura e fechamento de empresas, licen-ciamentos governamentais, contratação de mão-de-obra – prin-cipalmente os encargos relacionados à admissão e demissão depessoal –, registros de propriedade, acesso ao crédito, seguran-ça jurídica dos empreendedores, pagamento de impostos (car-ga tributária e burocracia envolvida), facilidades (dificuldades)de comércio com o exterior e respeito aos contratos.

Muitos membros do governo petista – bem como o presi-dente Lula – têm reclamado dessas análises, alegando que elasnão representam a realidade econômica do País e que se ba-seiam em dados defasados e/ou tendenciosos. Qualquer em-presário que já arriscou abrir um negócio no Brasil, no entanto,sabe que os resultados encontrados pelo Banco Mundial, senão são exatos, estão muito próximos da realidade.

Tocar qualquer empreendimento em Pindorama é algocomparável a um filme de suspense e terror, em que uma mul-tidão de fantasmas e vorazes monstros de toda espécie, co-mandados pelo funesto Leviatã, estão sempre à espreita, an-siosos para abocanhar a maior parte dos lucros e prontos a oporobstáculos de toda ordem no caminho dos intrépidos (talvezmelhor fosse dizer estúpidos) empresários.

Exemplos abundam. Vejam o caso da Aquamare: a empresa,fundada por empreendedores brasileiros, patenteou um proces-so de purificação de água do mar, baseado em nanotecnologia,através do qual se consegue manter o controle dos sais mineraisdurante a dessalinização da água. Isso quer dizer que os cientistasproduziram água mineral – rica em boro, cromo e germânio, ele-mentos abundantes nos oceanos e dos quais o corpo humano ne-cessita em pequenas quantidades – a partir da água do mar.

Para tornar possível a empreitada, foram investidos pelos só-cios, de acordo com o jornal Valor Econômico, a quantia aproxi-mada de US$ 2 milhões na pesquisa e desenvolvimento do pro-duto, apelidado de "H2Ocean". No início, o objetivo era comer-cializá-lo no Brasil, mas, infelizmente, o projeto teve que ser al-terado, já que não foi possível vencer os fantasmas da burocraciatupiniquim e sua aversão a tudo o que diga respeito à inovação.

Em 2006, a empresa solicitou a licença para engarrafar e co-mercializar o produto no território nacional. O registro foi re-cusado sob a alegação de que não havia no País legislação es-pecífica sobre a matéria. Inconformados, os empresários fize-ram uma segunda tentativa, pedindo esclarecimentos sobre o

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que deveria ser feito para resolver o problema.A resposta veio quatro meses depois, indican-do – pasmem! – que a empresa deveria "impor-tar" uma legislação sobre o assunto, ou seja,apresentar, "preferencialmente por intermédiode uma associação de classe, proposta de regu-lamentação para avaliação pela ANVISA". Emresumo, eles deveriam fazer o trabalho da agên-cia, uma vez que, provavelmente, deve faltarpessoal por lá para realizá-lo.

Como tempo é dinheiro, especialmente quan-do se tem um bom produto em mãos, a Aquama-re resolveu alterar sua estratégia, e partiu embusca de novos mercados. A opção foi então osEUA. Perceba, amigo leitor, pelo testemunho deum dos sócios ao jornal, a diferença de tratamen-to, aqui e acolá: "O registro (nos EUA) da empresa saiu em trêshoras e a água foi analisada em 15 dias. Conseguimos re-solver em três meses tudo o que não conseguimos aquiem quatro anos". (E ainda há quem não saiba por queeles são ricos e nós somos pobres).

A comercialização da "H2Ocean" estava previs-ta para começar em agosto último, inicialmenteem três estados norte-americanos – Flórida, NovaJersey e Georgia. A fabricação para exportaçãoainda continua em Bertioga, no litoral sul de SãoPaulo, mas em breve a fábrica deverá ser desativa-da e transferida para os EUA. Evidentemente, elesjá perceberam que é muito mais fácil, barato e, con-seqüentemente, lucrativo fazer tudo por lá.

Mas não pense o leitor que as dificuldades residemsó na abertura de empresas e na obtenção de registros elicenças. Depois de funcionando, os problemas enfrentadoscostumam ser ainda piores, principalmente quando o as-sunto é segurança jurídica.

Vejam, por exemplo, este inusitado processo enfrentado porum restaurante em Blumenau, SC. O estabelecimento foi mul-tado pelo Instituto Nacional de Metrologia, Normatização eQualidade Industrial (Inmetro) pelo sacrilégio de cobrar pelaespuma, também conhecida como "colarinho", contida no cho-pe servido aos clientes. Segundo o fiscal responsável pela au-tuação, "a quantidade de espuma deveria ser desconsidera-da", para efeito de cálculo do preço a pagar. (Eu sei: seria cô-mico se não fosse trágico!)

Pois bem: os donos do restaurante recorreram da multa e,para espanto geral, a Justiça Federal de primeira instânciamanteve a estrovenga. Somente em grau de recurso, depoisque a empresa gastou uma pequena fortuna com advogados ecustas judiciárias, a Terceira Turma do Tribunal Regional Fe-deral da 4ª Região decidiu anular a absurda penalidade. Emsuma, foi preciso que a matéria fosse parar no colo de um de-sembargador com um mínimo de discernimento, para que ajustiça chegasse à conclusão de que "o colarinho integra a pró-pria bebida", sendo parte do próprio produto.

Parece até filme de terror, não é mesmo? Eu juro que prefe-riria enfrentar o Alien, o Jason Voorhees e o Freddy Krueger,juntos, do que a burocracia tupiniquim.

Luiz Dantas, daAquamare:água mineralfeita a partir daágua do marnão pôde serlançada noBrasil por faltade legislação.

Fábio D'Castro/Hype

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88 DIGESTO ECONÔMICO SET/OUT E NOV/DEZ 2008

A importância dacomunicação

MarcosSawaya Jank

Presidente daUnica – União da

Indústria daCana-de-Açúcar.

Ao examinarmos de perto situações eprocessos vitais para o futuro dosbiocombustíveis no Brasil e nomundo, fica claro que na grande

maioria dos casos, debates e polêmicas quemuitas vezes elevam a temperatura ao redorde mesas de negociações são fruto ou da au-sência de informações precisas, ou da dissemi-nação intencional de detalhes enviesados oubaseados em exemplos isolados, que por sí sónão representam pa-drões ou práticas ha-bituais do setor su-croenergético brasi-leiro. A pressa que omundo parece ter pa-ra adquirir algumacompreensão sobre aprodução e o uso dosbiocombustíveis tam-bém abre espaço paraconclusões simplis-tas, que acabam acei-tas por parcelas im-portantes da opiniãopública, principal-mente quando não sãodevidamente e rapidamente confrontadascom explicações baseadas em dados concre-tos, ao invés de "achismos".

Esse cenário ilustra bem o caráter funda-mental da comunicação, como ferramenta quepermeia todos os esforços ligados aos biocom-bustíveis, tanto no plano nacional quanto noglobal. Com os holofotes do mundo aponta-dos para o Brasil desde a ida de George W.Bush ao Congresso americano em 2007, paraanunciar planos ambiciosos de produção e usodo etanol nos Estados Unidos, o aprofunda-mento do trabalho de comunicação da indús-tria brasileira da cana-de-açúcar passou a serinadiável. Exercida em suas várias formascom agilidade e foco, a comunicação permiteque objetivos específicos ligados à competiti-vidade e à sustentabilidade do etanol brasilei-

ro de cana sejam perseguidos com reais chan-ces de transmitir a realidade à opinião pública.É o que se tem observado ao longo dos últimosmeses, na medida em que a atuação do setorvem sendo ajustada e expandida.

O relacionamento com a mídia é um dos as-pectos que sofreu alterações, passando a privi-legiar o atendimento pleno e ágil às inúmerasdemandas que chegam diariamente. O atendi-mento independe da postura prévia do veículo,

pois não tratar com veículos ou jornalis-tas que tenham se mostrado hostis oucríticos no passado significa perder aoportunidade de esclarecer as questõesque geraram matérias negativas e fre-quentemente equivocadas em outrasoportunidades. Na média, o volume dedemandas por veículos de comunica-ção, consultorias que produzem con-teúdo editorial e pesquisadores que sededicam ao etanol em números crescen-tes, já ultrapassa a marca dos 40 contatospor dia na Unica, tendo superado 50 emdias mais movimentados.

Cerca de 30% desses contatos vêm deagências internacionais e grandes veí-culos do exterior, especialmente dos Es-

tados Unidos e da Europa: de outubro de 2007 ajulho de 2008, a Unica recebeu em sua sede emSão Paulo jornalistas de cerca de 50 países, semcontar os inúmeros pedidos que chegam dire-tamente às empresas associadas. É um atendi-mento que consome muito tempo, pois é co-mum a vinda ao Brasil dejornalistas com um nívelde compreensão muitolimitado sobre a indús-tria brasileira da cana.Para evitar que relatosincompletos ou sem em-basamento técnico oucientífico circulem pelamídia internacional, é es-sencial equipar esses jor-nalistas adequadamen-

A pressa com queo mundo deseja

entender osbiocombustíveis

abre espaçopara conclusões

simplistas.

Fábio Pozzebom/ABr

Divulgação

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89SET/OUT E NOV/DEZ 2008 DIGESTO ECONÔMICO

te, garantindo acesso e transparência para quetodos conheçam de perto a realidade do setor.

Complementando o atendimento aos quenos procuram, a Unica assumiu uma posturapró-ativa, efetivamente levando à mídia infor-mações inéditas e construtivas sobre o setor,seus planos e atividades. E quando informa-ções incompletas ou equivocadas sobre o setorsão divulgadas por algum veículo, a Unicatambém toma providências para que haja a de-vida correção. Dependendo da gravidade doerro divulgado, a busca pela correção pode va-riar do simples envio de uma carta ao editor àpublicação de uma errata, chegando a uma di-vulgação ampla da correção para casos maisextremos, em que o veículo se recusa a infor-mar seu público sobre erros que tenha divul-gado. Esse aspecto do trabalho de comunica-ção é inevitável, devido à natureza conectadado mundo em que vivemos. Inúmeros estudosmostram que, se uma informação errada im-pacta a mesma pessoa duas ou três vezes, elapassa a ser considerada fato. Especialistas es-timam que devido ao fluxo rápido da informa-ção, um detalhe prejudicial precisa ser corrigi-da dentro de, no máximo, uma hora para evi-tar danos mais graves.

A produção interna de conteúdo jornalísti-co, que também acaba por impactar o trabalhoda mídia, passou a ser realizada por uma equi-pe própria que hoje acompanha, em temporeal, as principais atividades com participaçãodos executivos e especialistas da Unica. Re-portagens, entrevistas e artigos são dissemi-nados através do site da entidade, que foi to-talmente reformulado, e da newsletter eletrô-nica diária Notícia Unica. Antes um veículocom distribuição restrita a associados, a news-letter agora pode ser recebida por qualquerpessoa interessada, bastando para isso preen-cher um cadastro simples no site da entidade( w w w. u n i c a . c o m . b r ) .

Complementando a exposição gerada pormídia espontânea e por meio da pró-ativida-de, a Unica lançou em 2007 sua primeira cam-panha publicitária, com o objetivo de fixar namente do consumidor brasileiro inúmeros as-pectos importantes e positivos a respeito daprodução e uso do etanol no Brasil – aspectosaté então pouco disseminados ou compreen-didos. Dessa forma, começa a crescer a cons-cientização sobre as contribuições do etanol decana-de-açúcar para a sociedade como um to-do, que vão muito além do preço vantajoso eincluem ganhos ambientais, sociais, tecnoló-gicos e econômicos.

A campanha de 2008, lançada em agosto, foi

Site voltado para oconsumidor americanoexplica as vantagensdos biocombustíveise as tarifas cobradas

pelo governo.

Fotos: Reprodução

Cresce aconscientização

sobre ascontribuiçõesdo etanol de

cana-de-açúcarpara a

sociedade.

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90 DIGESTO ECONÔMICO SET/OUT E NOV/DEZ 2008

além e instituiu uma nova marca para o etanolbrasileiro de cana, facilitando a disseminaçãodos benefícios do combustível limpo, renová-vel e brasileiro. (mais informações no site deapoio da campanha 2008: www.etanolver-de.com.br). Nessa mesma linha, a Unica tam-bém realizou este ano suas primeiras campa-nhas publicitárias fora do Brasil, a primeiradelas nos Estados Unidos, com foco na tarifaimposta pelo governo americano às importa-ções do etanol brasileiro e apoio de um site vol-tado para o consumidor americano (www.su-garcaneethanolfacts.com). A segunda campa-nha no exterior, lançada na Europa e dirigida àclasse política e a formadores de opinião, tevecomo foco o processo de aprovação da chama-da Diretiva Européia, que pode levar a maisimportações de etanol brasileiro pelo Conti-nente Europeu.

A julgar pela temperatura do debate, a de-manda aquecida e ainda crescente pelo etanol

no mercado interno brasileiro e o desejo, que semanifesta em várias partes do mundo, de exa-minar e talvez adotar solução semelhante àbrasileira para diminuir a dependência noscombustíveis fósseis, fica claro que o trabalhode comunicação em nome do setor sucroener-gético nacional vai continuar extremamentedemandado. Qualquer setor que atinja a escalae a penetração de mercado hoje conquistadapela indústria da cana-de-açúcar no Brasil terásempre que enfrentar diversos questionamen-tos, principalmente os ligados à sustentabili-dade. No caso da produção e uso do etanol, acerteza quanto às valiosas contribuições para oPaís é plena e amplamente demonstrável. Sómesmo um grande e permanente esforço decomunicação, que fixe perante o mundo a sus-tentabilidade e a competitividade do produto,pode garantir o futuro fantástico que está anosso alcance, dentro e fora do Brasil, para oetanol brasileiro de cana-de-açúcar.

Vários países estãointeressados nobiocombustível e

talvez adotarsolução semelhante

à brasileira paradiminuir a

dependência noscombustíveis fósseis.

Fotos: Reprodução

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