digesto econômico nº 443

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Maio e Junho de 2007

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Page 1: Digesto Econômico nº 443
Page 2: Digesto Econômico nº 443
Page 3: Digesto Econômico nº 443

3MAIO/JUNHO 2007 DIGESTO ECONÔMICO

O que foi 32?Paulo Bomfim

Foi a soma dos sonhos e do sacrifício de um povo,a confraternização de raças e condições sociais no batismo

das trincheiras; o esforço das indústrias, o despreendimentodo comércio, a grandeza de uma causa, a generosidade

dos moços, a participação dos cabelos brancos, o entusiasmodas crianças, a força que vem da mulher-terra paulista,

o verbo dos poetas e dos tribunos, dos jornalistas edos sacerdotes; a sacralidade da lei, o fuzil ao lado do livro, a

trincheira continuação da escola, a caserna dependência do lar,o campo de batalha, sementeira da justiça!

O que foi 32?

Foi bandeira que voltou do passado, passado que setransformou em bandeira, bênção de Anchieta e de Frei Galvão,vigília de João Ramalho, grito de guerra de Tibiriçá, inspiraçãode Bartira, presença dos que partiram, convocação do amanhã,

cocar-capacete de aço, gibão que virou farda cáqui, canoamonçoeira transformada em trem blindado, mortos e vivosmarchando, igreja, escola, oficina em batalhões rezando amesma oração, prece de amor e esperança, holocausto e

clarinada, asa de glória gravando no sangue das gerações:Enquanto houver injustiça,

Enquanto houver sofrimento,Enquanto a terra chorar,

Enquanto houver pensamento,Enquanto a história falar,Enquanto existir beleza,Enquanto florir paixão,

Enquanto o sonho for sonho,Enquanto o sangue for sangue,

Enquanto existir saudade,Enquanto houver esperança,Enquanto os mortos velarem,

É sempre 9 de julho! O poeta Paulo Bomfim émembro da Academia

Paulista de Letras

Page 4: Digesto Econômico nº 443

4 DIGESTO ECONÔMICO MAIO/JUNHO 2007

ISSN 0101-4218

Diretor-Resp onsávelJoão de Scantimburgo

Diretor de RedaçãoMoisés Rabinovici

Ed i to r - Ch e feJosé Guilherme Rodrigues Ferreira

Ed i to re sDomingos Zamagna e Carlos Ossamu

Editor de FotografiaAlex Ribeiro

Editor de ArteJosé Coelho

Projeto Gráfico e DiagramaçãoEvana Clicia Lisbôa Sutilo

Ca p aFoto: Paulo Pampolin/Hype

Arte: Roberto Alvarenga

Gerente ComercialArthur Gebara Jr.

([email protected]) 3244-3122

Gerente de OperaçõesJosé Gonçalves de Faria Filho

( j f i l h o @ a c s p. co m . b r )

I m p re s s ã oLab orgraf

REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PUBLICIDADERua Boa Vista, 51, 6º andar CEP 01014-911

PABX (011) 3244-3030 REDAÇÃO (011) 3244-3055FAX (011) 3244-3046

w w w. d co m e rc i o. co m . b r

Rua Boa Vista, 51 - PABX: 3244-3030CEP 01014-911 - São Paulo - SP

home page: http://www.acsp.com.bre-mail: [email protected]

Pre s i d e nteAlencar Burti

Superintendente InstitucionalMarcel Domingos Solimeo

CARTA AO LEITOR

Desde o início do segundo mandato do presidente Lula, quando foianunciado o PAC - Programa de Aceleração do Crescimento, oempresariado e especialistas estão alertando sobre o risco de falta de energia.Recentemente, o presidente da Companhia Vale do Rio Doce, Roger Agnelli,afirmou que não há como a mineradora programar novos investimento após2012, por conta da falta de horizontes na área de geração de energia elétrica.Outros setores estão prevendo um apagão mais cedo, entre 2009 e 2010.

Na reportagem de capa, o professor José Goldemberg, um dos maioresespecialistas em energia do País, diz acreditar em um apagão ainda nogoverno Lula, mas afirma que São Paulo será salvo pela biomassa, com aprodução de energia térmica proveniente da queima de bagaço da cana-de-açúcar. Em relação ao anúncio do governo em apostar na energia nuclear,com a construção de Angra 3, o professor Goldemberg alerta que a iniciativadeverá sofrer muita resistência, dentro e fora do governo, com açõesimpetradas na Justiça e manifestações populares. Na sua opinião, o Brasiltem uma vocação para hidrelétricas e outras energias renováveis, como oetanol - o País já é chamado de "Arábia Saudita verde".

Os 75 anos da Revolução Constitucionalista é outro destaque destaedição. No dia 9 de julho de 1932, São Paulo pegou em armas paradefender a democracia. Em 1930, o presidente Washington Luís foideposto, assumiu o poder uma junta governativa, liderada por GetúlioVargas, que nomeou interventores em todos os Estados. Desde o início de1932, manifestações em São Paulo exigiam a autonomia do Estado e aconvocação de uma Assembléia Nacional Constituinte. A AssociaçãoComercial de São Paulo teve papel fundamental no movimento. Aentidade foi responsável pelo controle de receitas e despesas da revolução,forneceu apoio material e logístico.

Já o ex-ministro do Planejamento Antonio Delfim Netto faz uma análisesobre o crescimento econômico e o setor público. Na sua opinião, o Brasilvive hoje o verdadeiro milagre econômico, não por apresentar umextraordinário crescimento, mas por estar crescendo sem motivos concretos.Trazendo análises comparativas de indicadores internacionais, Delfim Nettomostra que a posição brasileira não é confortável: temos a maior cargatributária para países com renda per capita semelhante, o Índice deDesenvolvimento Humamo (IDH) é muito baixo, tem havido uma violaçãocrescente à propriedade física e intelectual e em construção de infra-estrutura, a nossa posição é a 79ª, entre 125 países.

O economista Ulisses Ruiz Gamboa, do Instituto Gastão Vidigal, da ACSP,mostra em seu artigo como foi realizado a reforma previdenciária no Chile,que teve início no governo do ditador Augusto Pinochet. Por essa razão,muitos setores da sociedade rejeitam a aplicação do modelo chileno pormotivos puramente ideológicos, sem conhecê-lo profundamente.

Alencar BurtiPresidente da Associação Comercial de São Paulo e da

Federação das Associações Comerciais do Estado de São Paulo

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5MAIO/JUNHO 2007 DIGESTO ECONÔMICO

6O Brasil será aArábia Saudita verde?Entrevista

14Energia e meio ambienteno BrasilJosé Goldemberg eOswaldo Lucon

24Crescimento econômico esetor públicoAntonio Delfim Netto

32Reforma previdenciáriachilena: Impactosmacroeconômicos elições para o casobrasileiroUlisses Ruiz de Gamboa

42Revolução de 32 e ademocracia em perigoIves Gandra da Silva Martins

6 e 14

ÍNDICE

42

46O legado doconstitucionalismo, noJubileu de DiamanteRenato Pompeu

529 de julho de 1932: o diaem que São Paulo lutoupela democracia

52

Repr

oduç

ão

60Um herói que saiu dasfileiras da ACSP

66Tesouro históricosoterradoCássio Schubsky

66

Agl

iber

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DC

72Bento XVI no Brasil detodos os santosDomingos Zamagna

72

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78Para derrotar Hitler, EUAocuparam o IraqueRodrigo Garcia

78

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Page 6: Digesto Econômico nº 443

6 DIGESTO ECONÔMICO MAIO/JUNHO 2007

O Brasil será aArábia Saudita

verde?

O professor José Goldemberg é um dos maiores especialistas em energia no Brasil. Foi se-cretário de Ciências e Tecnologia e ministro da Educação no governo Collor e secretário doMeio Ambiente do Estado de São Paulo no governo de Geraldo Alckmin. Atualmente, elecoordena a Comissão Especial de Bioenergia na Secretaria de Desenvolvimento do gover-

no paulista. O professor Goldemberg visitou a Associação Comercial de São Paulo e concedeu uma en-trevista exclusiva para a revista Digesto Econômico. Na sua opinião, se nada for feito agora, ainda nogoverno Lula teremos um novo apagão, agora de energia, como em 2001. Em relação à energia nuclear, oprofessor prevê muitas dificuldades na construção de Angra 3, por conta dos protestos e das ações quedevem ser impetradas na Justiça.

Digesto Econômico - Temos assistido a um crescimentoda economia, não tanto quanto nos outros países emdesenvolvimento, mas um crescimento. Haverá energiapara sustentar isso?

José Goldemberg - Para sustentar o crescimen-to, seria preciso que a produção de energia cresces-se de 3 a 4 milhões de kilowatts por ano. O sistema

brasileiro atual é 100 milhões de kilowatts, preci-saria crescer de 3% a 4 % ao ano. E do jeito que ascoisas vão, existe um grande ceticismo do que vaiocorrer, porque têm os problemas ambientais tra-vando parte das discussões, mas não são só eles. Euacho até que os problemas ambientais têm sidousados como desculpa para não fazer certas coisas.

Epitácio Pessoa/AE

O Brasil planta 3 milhões de hectares decana-de-açúcar, a maioria no Estado de São Paulo.

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7MAIO/JUNHO 2007 DIGESTO ECONÔMICO

Paulo Pampolin/Hype

Eu achoque vai terapagão sim.Não no Estadode São Paulo,pois o bagaçode cana vainos salvar."JoséGoldemberg

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8 DIGESTO ECONÔMICO MAIO/JUNHO 2007

O que há é que a incerteza regulatória é grande e osinvestidores se perdem.

DE - O senhor avalia que o País vai ter um novo apagão,como o de 2001?

JG - Eu acho que vai ter apagão sim. Não no Es-tado de São Paulo, pois o bagaço de cana vai nossalvar. Mas no resto do Brasil, acho que vai ter pro-blemas em três, talvez quatro anos. O governo Lulavai tentar empurrar para frente. Mas para isso, al-guma coisa tem de ser feita rapidamente. O gover-no precisa destravar estas coisas que estão segu-rando os investimentos na área de energia.

DE - O País já virou exportador de usinas de etanol. ADedini, de Piracicaba, tem vendido tecnologia para omundo todo e não consegue dar conta dos pedidos.Criou-se até o "turismo da cana", em que investidoresvisitam usinas e ficam sabendo que 80% da produção jáestá vendida. Eles chamam o Brasil de Arábia Sauditaverde. Qual a sua opinião sobre isso?

JG - Há um componente de exagero nesta ima-gem que fazem do Brasil. A produção brasileira deetanol é aproximadamente igual ao dos EstadosUnidos, só que lá eles usam o etanol de milho, quenão é tão bom quanto o etanol da cana-de-açúcar.Somando as duas produções, o etanol hoje substi-tui apenas 3% da gasolina no mundo. Mas aqui noBrasil é diferente, o etanol substitui 40% da gasoli-na, com a vantagem da baixa emissão de gás poluen-te, combatendo o efeito estufa. Estamos servindo deexemplo, tanto pelo combate ao aquecimento glo-bal, quanto pelo modelo eficiente que criamos, compreços baixos. A grande pergunta que se faz é a se-guinte: esses 3% podem subir para quanto? E aí te-mos de olhar os números. A produção de cana-de-açúcar voltada para a etanol no Brasil é de aproxi-madamente 3 milhões de hectares, a maioria em SãoPaulo. Para que o Brasil se torne uma Arábia Sau-dita do etanol, precisaria aumentar muito essa área;e dá para aumentar, mas temos limitações. Aqui emSão Paulo já se está usando um bocado de terra paraa cana-de-açúcar. Outros Estados poderiam tam-bém produzir, mas alguns têm limitações. Eu acre-dito que o máximo que se poderá conseguir no Bra-sil é aumentar a produção para um fator 10, ou seja,aumentar em dez vezes a produção.

DE - Atualmente, usamos 80% do etanol produzido.Com um fator 10 significa que sobraria para aexpor tação?

JG - Sobraria. Ao invés de usar 3 milhões de hec-tares para a produção do etanol, o máximo que euvejo aqui no Brasil é aumentar isso para 20 a 30 mi-lhões. Isso não é nenhuma Arábia Saudita. O quevai acontecer com isso é que a gente vai substituirtalvez 10% a 20% da gasolina no mundo. Este é um

cenário que poderia ocorrer em 10 anos.

DE – Além de São Paulo, as terras viáveis seriam deonde?

JG - Já estão ocorrendo licitações para Minas,Goiás e Mato Grosso. São Paulo se tornou o grandecentro produtor, pois aqui temos condições privile-giadas, já que a cana-de-açúcar cresce sem irrigação.Quando se começa a colocar irrigação, como ocorreno Nordeste, os custos passam a ficar mais altos.

DE - E a qualidade da cana do Nordeste é a mesma?JG - A qualidade é a mesma, mas o rendimento

por hectare é menor, a produtividade é mais baixa.Então, essa imagem de Arábia Saudita verde temsuas limitações. A gasolina representa 1/3 do pe-tróleo produzido mundialmente. O mundo conso-me 80 milhões de barris para a gasolina, outro 1/3vai para o óleo diesel e 1/3 para outros derivados. Aexpansão previsível e otimista do álcool é substi-tuir 10% da gasolina, e não 10% do petróleo.

DE - O Proinfa, programa do governo federal para o usode fontes alternativas de energia, criado em 2002,ainda não decolou. O Ministério das Minas e Energiaadmite que os projetos estão bastante atrasados. Quala sua opinião em relação ao Proinfa?

JG - O Proinfa é uma boa iniciativa. Ele é basea-do em experiências bem-sucedidas de outros paí-ses, sobretudo da Alemanha. A idéia do programaé a seguinte: o governo decide que um determina-do tipo de energia alternativa é boa, então ele secompromete a comprar tudo o que for produzido.Na Alemanha, eles chamam isso de "Feed Law".Lá, se alguém decidir instalar máquinas para pro-dução de energia alternativa, o governo banca. NoBrasil não existe desta forma, aqui o governo com-pra até 1 milhão de kilowatts. Os projetos estãoatrasados, pois o governo brasileiro tem a maniade regulamentar detalhes. Os burocratas lá do mi-nistério fazem alguns cálculos e dizem que com-pram uma determinada quantidade de energia eestipulam o preço, só que o empreendedor não temessa mesma visão. O governo diz então que a ini-ciativa privada está esperando a situação se agra-var para começar a investir... o que o governo querque o setor privado faça?

DE - O governo ameaça trocar parte da matriz porenergia nuclear, como o senhor vê isso?

JG - Essa é uma ameaça do tipo que a gente fazcom crianças, para colocar medo. Mesmo que o go-verno decida abraçar a opção nuclear em grandeescala, por exemplo consolidando a construção deAngra-3 amanhã, levaria de 7 a 8 anos para ficarpronta, isso se a promotoria pública não entrarcom uma ação contra essa iniciativa, que é uma tra-

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9MAIO/JUNHO 2007 DIGESTO ECONÔMICO

dição no mundo todo, não só do Brasil. Em todo omundo, a construção de usinas nucleares tem sidoatrasada por ações populares.

DE - Mas nós temos condições para construirhidrelétricas em número suficiente?

JG - Foi usado no Brasil apenas 30% do poten-cial de hidrelétricas. Naturalmente, os melhoreslugares já foram ocupados. Em São Paulo não hámais nenhum grande aproveitamento. Então, asopções agora são as seguintes: em primeiro lugar,uma maior quantidade de usinas pequenas e mé-dias. As pequenas a gente chama de PCH (Peque-nas Centrais Hidrelétricas), cada uma delas nãofornece muita energia, e aí é preciso muitas. Masdo ponto de vista do empresário isso até que ébom, porque o empreendedor pode fazer umaPCH sem grandes investimentos. O maior pro-blema está nas obras médias, que não estão an-dando por motivos que não são somente ambien-tais, mas pela falta de confiança dos investidoresno marco regulatório. Os grandes consumidores,que são empresas como a Votorantim e outras, es-tes resolveram a vida deles. Você acredita que30% da energia é comprada diretamente da fonte,não vai para o mercado, não vai para leilão, sãocontratos cativos e são baratos? O que vai para osleilões é energia para o público e aí eles ficam in-seguros acerca do preço, por mais que o governotenha se esforçado.

DE - Como o senhor avalia a política energética do atualg ove rn o ?

JG - Eu acho que esse modelo que o governo Lulatentou implementar, ele não vai muito bem, mas fi-ca claro o seguinte: o governo Fernando Henriquenão conseguiu completar o processo de privatiza-ção, então acabou ficando uma coisa híbrida. Oque foi privatizado no governo Fernando Henri-que foi a distribuição, todas as estatais permane-ceram. Há um claro movimento de mudança esta-tizante no atual governo e o setor privado então fi-ca inseguro. O próprio presidente Lula declarouque gostaria que a Eletrobrás fosse como a Petro-bras. Com isso, o setor privado fica mais arredio eeu acredito que no começo do governo, o presiden-te Lula pensou seriamente em desfazer algumasprivatizações, mas optou por focar na segurançageral de todos os contratos firmados. Mas na prá-tica eu gostaria, e acho que muitos concordam, deuma grande presença estatal nessa área, como é nopetróleo, só que não há dinheiro para isso. Passa-ram a querer controlar o setor, enfraquecendo asagências reguladoras para tentar ter mais poder deintervenção. E isso acaba resultando na descon-fiança do empresário.

DE - Além da desconfiança, também há problemasambientais. Como o senhor vê esta questão?

JG - Os problemas ambientais existem, mas a ex-periência que eu ganhei na Secretaria de Meio Am-

Usineiro faz queimadas para limpar a terra,poluindo o ar. Muitos também queimam o bagaço,

ao invés de usá-lo na geração de energia.Dida Sampaio/AE

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10 DIGESTO ECONÔMICO MAIO/JUNHO 2007

biente daqui de São Paulo mostra que não se deveter posições "xiitas". O caso do Rodoanel, por exem-plo. Do ponto de vista ambiental é um trecho com-plicado, porque tem uma população enorme mo-rando lá perto, a energia está lá, é perto dos manan-ciais e tem aldeias indígenas. Por tudo isso, a obravai ficar 20% mais cara, mas é o custo a ser pago pelasociedade. O setor privado resiste muito aos au-mentos de custos das exigências ambientais. É pre-ciso ser claro: ou paga ou não sai. No governo federalainda há um outro problema. Muitos ambientalis-tas, que foram encorajados a vida toda a serem docontra, agora fazem parte do governo e estão noexercício da atividade de licenciamento, e natural-mente não sabem lidar com essas situações.

DE - Há recursos próprios para fazer as hidrelétricas ouserá necessário recorrer ao Banco Mundial, que temuma política muito rigorosa em relação ao meioa m b i e nte ?

JG - Eu acho que é inevitável recorrer ao BID e aoBanco Mundial, pois são investimentos muito gran-des e que demoram para terem um retorno. Não há ohábito aqui no Brasil de investimentos que retor-nam em 10 ou 20 anos. Agora, com a situação econô-mica melhorando, já há empréstimos mais atraen-tes. Antigamente, não se conseguia empréstimos.Em relação ao Banco Mundial, eles não são "xiitas"na consideração ambiental, mas são rigorosos, vi

muitos projetos serem devolvidos. O que acontece éque dentro das organizações não-governamentaistêm grupos muitos radicais. Essas brincadeiras quefazem acerca dos bagres, do problema dos peixes, is-so tem em tudo quanto é hidrelétrica do mundo. Aspessoas aprenderam a fazer hidrelétrica.

DE - Quais são outros problemas que atrapalham ocrescimento energético do País?

JG - Existem 10 milhões de kilowatts em cons-trução espalhados pelo Brasil. O governo precisa-ria de uma "Swat" para destravar esses projetos. Osobstáculos para esses 10 milhões de kilowatts nãosão apenas de natureza ambiental, há outros pro-blemas burocráticos. Às vezes é o empreendedorque está interessado, às vezes ele não está interes-sado ou então ele não tinha cacife para conduziruma obra daquele tamanho, e ele vai diminuir oritmo. Isso inclui muitas obras do Proinfra, que sãosubsidiadas pelo governo. Porque existe uma fi-gura nesses setores de energia no Brasil que é a dodespachante. Ele pega uma autorização para umausina, mas ele não tem dinheiro e depois ele vendeaquela autorização para alguém. Isso ocorreu comusinas de álcool. Eu me lembro de um cidadão queapareceu lá e colocou, sem licenciar, um pedido deuma usina de álcool para construir. E há uma exi-gência burocrática, que diz que no momento queentra um pedido, ele é obrigado a publicar em três

O Brasil tem vocação para hidrelétricas, umaenergia limpa e renovável. Na foto, Itaipu.

André Dusek/AE

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11MAIO/JUNHO 2007 DIGESTO ECONÔMICO

jornais importantes. São uns 50 milreais e ele estava reclamando que nãotinha dinheiro para pagar. Eu falei:"Escuta, qual é o problema? Essa usinavai custar, no mínimo, 100 milhões dereais e o senhor não tem 50 mil para pu-blicação em jornais?" Ele falou: "Não.Eu queria a licença para vender".

DE - Como o senhor avalia a questão dogás natural?

JG - Eu me lembro que, quando euestava na Comgás, há muitos anos, a Pe-trobras naquela época não dava impor-tância para gás, não quiseram autorizara construção de um gasoduto para tra-zer gás encanado para São Paulo. Para aComgás de São Paulo foi uma luta e a ra-zão é muito simples: eles achavam queo gás não era importante. Para a Petro-bras, a prioridade era o petróleo... equeimavam gás, são os flares. Agora di-minuiu um pouco, mas continuamqueimando. Com esse problema com aBolívia, ficou uma situação difícil e asolução disso é naturalmente cara. Pen-sa-se em importar o gás, há navios espe-ciais que transportam gás liqüefeito,mas é preciso baixar a temperatura eusar pressão, é um processo complica-do. Esta é uma opção, mas há outra queeu acho que inclusive vai salvar SãoPaulo da crise energética, que é a produ-ção da eletricidade a partir do bagaço dacana. Como o programa do etanol estáse expandindo muito, há um excedentede bagaço, que está lá na usina e temcusto zero. O usineiro usa o bagaço paragerar energia. Muitos estão fazendo. Éclaro que no começo não deu muito cer-to, por um motivo cultural. Aqui no Brasil, as usinaseram empresas familiares, mas agora elas estão fi-cando mais profissionalizadas, estão colocando ge-rentes profissionais, e esse pessoal percebeu logoesta oportunidade.

DE - Uma produção significativa de energia elétrica apartir do bagaço da cana seria uma alternativa viávelainda no governo Lula?

JG - OgovernoLulaaindanãoacordouparaisso,quem acordou foi o governo do Estado de São Pau-lo e a iniciativa está nas mãos do setor privado deenergia. Toda a produção do etanol também estánas mãos do setor privado. Como vocês sabem, soucoordenador de uma comissão de bioenergia do Es-tado de São Paulo, cuja função é propor medidasque o governador adote para resolver os proble-

mas. Um deles é o bagaço da cana e ele está sensívelao fato de que 70% da cana hoje é queimada e istoestá criando problemas para as cidades vizinhas àsusinas. Então, o governador José Serra está prepa-rado medidas governamentais, decretos ou leis pa-ra encorajar as usinas a produzirem energia térmi-ca. As questões técnicas são simples de se resolver.Atualmente, queima-se o bagaço para produzir va-por na preparação do etanol. Se queimar em caldei-ras de alta pressão, tem suficiente vapor para tocarum navio ou uma locomotiva, é uma tecnologiaque já existe. Alguns usineiros me procuraram edisseram primeiro que queriam financiamento. Is-so não é problema, pois o BNDES financia bem es-te tipo de projeto. Mas na realidade, o que eles que-riam era uma redução na alíquota do ICMS e aí sur-giu um problema regulatório. Então, o diabo está

A energia eólica, que se utiliza da força dos ventos, aindaé pouco usada no País. Muitos projetos estão no Proinfa,

programa do governo que ainda não decolou.

Cel

so ju

nior

/AE

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12 DIGESTO ECONÔMICO MAIO/JUNHO 2007

nas entrelinhas. Um outro problema surgiu com acompanhia de eletricidade. O usineiro coloca umacaldeira para produzir eletricidade, que é transmi-tida por cabo até a porta da propriedade - é comonas casas, dentro é sua responsabilidade, do reló-gio para fora é da companhia de eletricidade. Masesta não quer construir uma linha para carregar aeletricidade da porta da usina até os troncos, pois asusinas estão cada uma num canto. Este é um pro-blema antigo e para resolvê-lo, alguém vai ter depagar a conta e pode ser a população, com os custosembutidos nas tarifas.

DE - Qual a sua opinião sobre os relatórios que estãosendo divulgados sobre aquecimento global?

JG - O efeito é real, eu acho que o período de dú-vidas já passou. Estes estudos estão sendo feitosdesde 1988 e a probabilidade de que eles estejamerrados é nula. O efeito existe, o que podemos ago-ra é discutir a gravidade do cenário. Eu particular-mente fiquei aborrecido com o nosso presidente,porque ele perdeu uma boa oportunidade de aju-dar na discussão, na reunião do G8 na Alemanha.

Eu acho que a situação dos Estados Unidos estáevoluindo, vários Estados já se dissociaram da po-lítica federal. Lá, os Estados podem fazer mais coi-sas do que aqui. Por exemplo, o Estado da Califór-nia decidiu que ele vai reduzir as emissões e pontofinal. Eu perguntei isso aqui para pessoa da áreajurídica, se o Estado de São Paulo tinha autoridadesemelhante. A resposta foi não, que isso não temvalor internacional algum, ninguém vai compraros créditos daqui de São Paulo.

DE - Até que ponto essa pressão por medidas queminimizem os efeitos do aquecimento global iráprejudicar os países em desenvolvimento?

JG - A China é o segundo emissor mundial degases que causam o efeito estufa, a emissão da Chi-na é bem maior que a do Brasil. Os Estados Unidosemitem 23% e a China emite 17%, mas ela está cres-cendo rapidamente e dentro de cinco anos ela vaiultrapassar os Estados Unidos.

A situação real é que estamos no mesmo barco etodo barco está afundando, e temos de trabalharjuntos. Mas o senado americano diz: nós não va-mos tomar medidas sérias enquanto os países emdesenvolvimento, como a China, não tomaremuma atitude. A China usa exatamente o mesmo ar-gumento e o Lula é o advogado. Eles estão poluin-do há mais tempo, mas o entendimento científicode que essas emissões causam danos é recente. Issosó se confirmou nos últimos 20 anos. Não era pos-sível, em 1950, os Estados Unidos ou a Inglaterranão terem utilizado o carvão, com a preocupaçãoambiental. Então não adianta o argumento que oLula usou — "vocês poluíram no passado, agora

nós temos o direito de poluir". Nosso argumentodevia ser outro, nós devemos ser compensados dealguma forma pelo estrago no planeta.

Nós temos bons argumentos, pois estamos nosdesenvolvendo de uma maneira muita mais limpado que eles, nós utilizamos hidroelétrica, álcool ebagaço de cana. O nível do programa de etanol bra-sileiro é muito melhor do que qualquer outro queestá sendo feito em outros países. Ou seja, nós já da-mos uma contribuição positiva. E essa idéia de quevocê só se desenvolve usando as tecnologias po-luentes, que foram usadas no desenvolvimento nosEstados Unidos, Inglaterra e Alemanha cem anosatrás, é incorreta; você pode se desenvolver mesmoporque a tecnologia evoluiu extraordinariamente.O presidente Lula deveria dizer: "Nós vamos con-servar a floresta Amazônica, que é importante paratodos, mas vocês terão de pagar por isso.

DE - A presidência não possui uma assessoria científicapara alertar o presidente sobre esses fatos, de formaque ele não perca essas oportunidades nos fórunsi nte rn a c i o n a i s ?

JG - Eu e meus colegas nos perguntamos issoconstantemente, eu acho que tem alguns compo-nentes, como o Itamaraty com o Samuel PinheiroGuimarães, que tem uma visão ideológica anti-ame-ricana notória e portanto, há sempre um jogo de nóscontra eles. Então, o Brasil se associa automatica-mente com os países em desenvolvimento. Há tam-bém outro componente ideológico, como a de FidelCastro, de que a utilização do etanol vai provocar fo-me no mundo. Não é verdade. A razão pela qualexiste fome no mundo é a distribuição inadequadade alimentos. Não é problema de suprimento, há ex-cesso de alimento no mundo. Nós estamos usando 3milhões de hectares, podemos chegar a 60 milhões, enão é isso que irá provocar fome no mundo.

Eu acho que nós estamos vivendo uma situa-ção difícil, porque o Brasil de fato poderia exer-cer um papel de liderança, mas esta posição que oPaís está tomando legitima o que a China está fa-zendo. Os chineses estão esgotando os recursosnaturais numa velocidade muito grande e emi-tindo poluentes que não prejudicam somenteeles, mas todo o planeta.

DE - Os Estados Unidos estão procurando outras fontesde energia por razões além do meio ambiente, elessabem que quando compram o petróleo do OrienteMédio, principalmente da Arábia Saudita, o dinheiroacaba nas escolas islâmicas que formam os terroristas.A maior aposta é no etanol de milho.

JG - Os Estados Unidos colocaram uma sobre-taxa para proteger os produtores de etanol de mi-lho. Mas esta situação não vai perdurar muito tem-po, porque a produção de milho é limitada, o mi-

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13MAIO/JUNHO 2007 DIGESTO ECONÔMICO

lho é usado para alimentação e outros produtos. Euacho que os Estados Unidos vão ter necessidade demais etanol e essa taxa deve cair e vai haver entãoincentivo, um bom incentivo, uma pressão muitoforte para aumentar a produção aqui. Há colegasmeus que fizeram estimativas se seria possível ex-pandir a produção de cana para um fator muitogrande, um fator 30, por exemplo. O número queeu citei anteriormente é um número mais conser-vador, porque eu acho que aumentar mais de 10 ve-zes a produção vai acabar se chocando com proble-mas ambientais e até com outras prioridades.Além de que a terra não é tão boa quanto a de SãoPaulo. São Paulo não exige irrigação.

Então eu acho que o esforço que nós devemos fa-zer aqui em São Paulo é o de aumentar a produtivi-dade da cana nas áreas em que elas já se encontram,isso é possível fazer, e naturalmente a grande expec-tativa é uma tecnologia de segunda geração, que nãousaria a cana, usaria qualquer coisa, como celulose.

DE - Se o Lula souber que pode fazer álcool comcelulose, acaba com os nossos jornais...

JG - Nos EUA também estão dando uma grandeênfase a pesquisas nesta área. Estão sendo feitaspesquisas aqui em São Paulo também. A Fapesptem um programa para produzir álcool de celulo-se. Os Estados Unidos estão muito otimistas deque vá funcionar rapidamente, mas eu não acredi-to. Essa tecnologia de etanol a partir da celulose éconhecida, há experiências de laboratório com

plantas pilotos, mas a gente não consegue ter umaidéia de custo real com planta piloto.

DE - As outras alternativas de energia são irrevelantes?JG - Elas vão contribuir nas bases. A União Eu-

ropéia entendeu claramente a mensagem, ela de-cidiu que no ano de 2020, 20% da energia que elesconsomem serão renováveis, englobando etanol,aquecimento solar e todas outras tecnologias quejá estão aí no mercado. Existem dois problemasneste ponto, pois algumas dessas tecnologias sãomuito caras e as outras têm problemas de distri-buição. Na Alemanha, o governo cria um mecanis-mo que encoraja o setor privado a entrar e aos pou-cos o governo vai saindo. Isso eles estão fazendocom várias tecnologias. O aquecimento de águacom energia solar é uma ótima idéia, na China estápegando, mas aqui no Brasil, que é um país enso-larado, pouca gente faz. Em Israel, não se consegueo habite-se se não tiver o coletor solar. E o Kassabestá introduzindo uma Lei na Câmara Municipalpara incentivar este tipo de energia.

Uma coisa que está pegando no Japão são as cé-lulas fotovoltaicas. Eles cobrem o telhado com es-tas células, durante o dia a casa exporta eletricida-de para a rede e de noite ela compra. Existem 20 a 30mil casas no Japão que não pagam pela eletricida-de. À medida que estas energias vão entrando, opreço vai caindo. Agora, nós ainda vamos precisardos combustíveis fósseis por um bocado de tem-po, mas a quantidade vai diminuir.

Placas fotovoltaicas para captura de energia solar:tecnologia vem sendo usada no Japão, onde

milhares de casas não pagam energia elétrica.

Biblelife.org

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14 DIGESTO ECONÔMICO MAIO/JUNHO 2007

Lulu

di/L

UZ

ENERGIA EMEIO AMBIENTENO BRASIL

ENERGIA EMEIO AMBIENTENO BRASIL

EI– Introdução: Energias renováveis e sustentabilidade

Energia, ar e água são ingredientes essenciais à vida humana; nas so-ciedades primitivas seu custo era praticamente zero. A energia eraobtida da lenha das florestas, para aquecimento e atividades do-mésticas, como cozinhar. Aos poucos, porém, o consumo de ener-

gia foi crescendo tanto que outras fontes se tornaram necessárias. Durantea Idade Média, a energia de cursos d’água e a dos ventos foi utilizada, masem quantidades insuficientes para suprir as necessidades de populaçõescrescentes, sobretudo em cidades. Após a Revolução Industrial, foi precisousar mais carvão, petróleo e gás, que tem um custo elevado para a produçãoe transporte até os centros consumidores.

O consumo de água também aumentou consideravelmente, tanto que setornou necessário cobrar pelo seu uso para pagar os custos para sua puri-ficação e transporte até os usuários. Se, e quando, uma colônia terrestre forinstalada na Lua (que não tem atmosfera) será preciso pagar – e muito – peloar consumido pelos seres humanos, que terá de ser transportado até lá.

No ano 2003, quando a população mundial era de 6,27 bilhões de ha-bitantes, o consumo médio total de energia era de 1,69 toneladas equiva-lentes de petróleo (tep) "per capita". Uma tonelada de petróleo equivale a10 milhões de quilocalorias (kcal) e o consumo diário médio de energia é46.300 kcal por pessoa. Como comparação, vale a pena mencionar que2.000 kcal é a energia que obtemos dos alimentos e que permite nos man-termos vivos e funcionando plenamente. O restante é usado em transpor-

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15MAIO/JUNHO 2007 DIGESTO ECONÔMICO

Paulo Pampolin/Hype

JoséGoldembergCoordenador daComissão Especialde Bioenergia deSão Paulo

Helvio Romero/AE

Oswaldo LuconAssessor técnicoda Secretaria deMeio Ambiente deSão Paulo

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16 DIGESTO ECONÔMICO MAIO/JUNHO 2007

te, gastos residenciais e industriais e perdas nos processos detransformação energética.

Os padrões atuais de produção e consumo de energia sãobaseados nas fontes fósseis, o que gera emissões de poluenteslocais, gases de efeito estufa e põem em risco o suprimento delongo prazo no planeta. É preciso mudar esses padrões, esti-mulando as energias renováveis e, nesse sentido, o Brasil apre-senta uma condição bastante favorável em relação ao resto domundo. A Tabela 1 mostra qual a contribuição percentualdas diversas fontes de energia e a energia total consumida noBrasil e no mundo em 2003.

Energias renováveis representavam 41,3% do consumo to-tal no Brasil, ao passo que no mundo eram apenas 14,4%. Oconsumo médio de energia no Brasil é de 1,09 tep por habitantepor dia, um pouco abaixo da média mundial. O consumo mé-dio não representa adequadamente o que ocorre no mundo:em Bangladesh ele é 11 vezes menor e nos Estados Unidos 5vezes maior. O consumo total de energia no Brasil em 2004 foide cerca de 216 milhões de tep (Mtep), ou 2% do consumo mun-dial, que foi de 11.223 Mtep.

O Brasil possui uma forte base hidráulica em sua matriz elé-trica (Box 1). Contudo, o estímulo a outras fontes "modernas"de energias renováveis é ainda bastante incipiente, compara-do à média mundial, apesar dos esforços feitos pelo governofederal através do Proinfa - Programa de Incentivo a Fontes Al-ternativas de Eletricidade.

Além disso, o País é um paradigma mundial pelo seu vigo-roso programa de biomassa moderna no setor de transportesbaseado no etanol (Box 2). O consumo de lenha, biomassa tra-dicional, ainda é elevado.

Entretanto, a posição relativamente confortável que o Paíspossui em sua matriz energética pode ser colocada em risco,uma vez que há diferentes posicionamentos sobre os rumosque o País deve seguir nessa área.

II – Retrospectiva da produção e consumo de energiano Brasil e no mundo

Após a época do "milagre econômico", ocorreu no Brasiluma forte desaceleração nos crescimentos do Produto InternoBruto (PIB), da produção de energia primária e do consumo deeletricidade. Nos últimos 30 anos, o aumento da produção deenergia primária no Brasil tem acompanhado de perto o cres-cimento do PIB, mas o consumo de eletricidade tem aumen-tado mais rapidamente, devido à eletrificação crescente doPaís e à instalação de indústrias eletro-intensivas, como as dealumínio e outros tipos de metais.

ATabela 2 permite estabelecer comparações entre o Brasil,o mundo e os blocos dos países industrializados e aqueles emdesenvolvimento.

O modelo tradicional estabelecido de 1940 a 1960 colocounas mãos do governo federal e governos estaduais, empresasestatais responsáveis pela grande parte da produção e distri-buição de eletricidade, petróleo e gás. Petrobras, Eletrobrás einúmeras empresas estaduais foram criadas para tal fim, inclu-sive o planejamento energético.

Este modelo funcionou bem até meados da década de 80,mantendo baixos os custos da energia e promovendo com issoo desenvolvimento econômico, mas criou também sérios pro-blemas, tais como:

Tabela 1

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ELETRICIDADEA geração de eletricidade no Brasil cresceu a uma taxa média anual

de 4,2% entre 1980 e 2002. Sempre a energia hidráulica foi domi-nante, uma vez que o Brasil é um dos países mais ricos do mundo emrecursos hídricos. Por outro lado, é modesta a contribuição do carvão, jáque o País dispõe de poucas reservas e elas são de baixa qualidade. Acapacidade instalada de hidroeletricidade é de cerca de 70.000 me-gawatts (MW, milhões de watts) e existem 433 usinas hidrelétricas emoperação. Destas, 23 têm capacidade maior do que 1000 MW e repre-sentam mais de 70% da capacidade total instalada. Existe ainda um po-tencial considerável - cerca de 190.000 MW ainda não utilizadas, prin-cipalmente na região da Amazônia e, portanto distante dos grandescentros consumidores do Sudeste.

O custo de produção de 1 kW em uma usina hidroelétrica é de apro-ximadamente US$ 1.000. O potencial para reforma e melhoria das gran-des usinas construídas há mais de 20 anos (com capacidades instaladasespecialmente entre 1000 e 8000 MW) é de 32.000 MW. Isso pode serobtido a um custo de US$100-300 por kW instalado, sendo portantosignific ativo.

Entre as outras tecnologias geradoras de eletricidade utilizadas noPaís estão a termonuclear, as termelétricas a gás natural e a óleo diesel,mas nenhuma delas contribui com uma porcentagem maior do que 7%do total. A introdução da biomassa, energia nuclear e gás natural re-duziu a porcentagem da hidroeletricidade de 92% em 1995 para 83%em 2002. A geração de eletricidade com biomassa (resíduos vegetais ebagaço de cana) em 2002 provinha de 159 usinas, com uma capacidadeinstalada de 992 MW, ou 8% da energia elétrica de origem térmica doPaís. A grande maioria dessas usinas (com cerca de 952 MW) está lo-calizada no Estado de São Paulo e usa bagaço de cana, um subprodutoda produção de açúcar e álcool.

O Proinfa, Programa de Incentivo a Fontes Alternativas de Eletri-cidade, foi instituído pela Lei nº 10.438/2002 no sentido de estimulara geração de eletricidade por fontes eólica, de biomassa (como ba-gaço de cana e gás de aterro) e pequenas centrais hidrelétricas(PCHs). A primeira fase do Proinfa estabelecia a geração de 3.300 MWmor meio dessas fontes. A segunda fase do programa estabeleciauma meta de 10% dessas mesmas fontes em toda a matriz elétrica doPaís em 20 anos, mas foi abandonada. A Lei 10.762/2003 revisou oProinfa e não menciona a Fase 2.

BIOMASSAUma característica particular do Brasil é o desenvolvi-

mento industrial em grande escala e a aplicação dastecnologias de energia de biomassa. Bons exemplos dissosão: a produção do etanol a partir da cana-de-açúcar, o car-vão vegetal oriundo de plantações de eucaliptos, a co-ge-ração de eletricidade do bagaço de cana e o uso da biomas-sa em indústrias de papel e celulose (cascas e resíduos deárvores, serragem, licor negro etc.).

A utilização de biomassa no Brasil é resultado de uma com-binação de fatores, incluindo a disponibilidade de recursos,mão-de-obra barata, rápida industrialização e urbanização e aexperiência histórica com aplicações industriais dessa fonte deenergia em grande escala. Cerca de 75% do álcool produzido éproveniente do caldo de cana (com rendimento próximo de 85litros por tonelada de cana). Os restantes 25% têm origem nomelaço resultante da produção de açúcar (rendimento próxi-mo de 335 litros por tonelada de melaço).

Em 2004, a produção total de bagaço ficou próxima de110 milhões de toneladas, gerando um excedente de 8,2 mi-lhões de toneladas para usos não energéticos. Os produtosenergéticos resultantes da cana contribuíram com 13,5% damatriz energética brasileira de 2004.

A utilização da lenha no Brasil é ainda significativa, princi-palmente nas carvoarias para produzir carvão vegetal e na coc-ção de alimentos nas residências. Em 2004, o setor residencialconsumiu cerca de 26 milhões de toneladas de lenha, equiva-lentes a 29% da produção. O consumo tem crescido nos últi-mos anos devido ao aumento dos custos do seu substituto di-reto, o gás liquefeito de petróleo (GLP), vendido em botijões.

Na produção de carvão vegetal foram consumidas cercade 40 milhões de toneladas (44% da produção), em razãoprincipalmente do forte crescimento da produção de ferro-gusa e substituição do carvão mineral. Os restantes 17% re-presentam consumos na agropecuária e demais setores daindústria. A lenha e carvão vegetal representaram 13,2% damatriz de 2004, resultado 0,3% acima de 2003.

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Hidrelétrica Itaipu Binacional: a maior usina do mundo.

Bagaço de cana na Usina Santa Cruz (RJ).

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BOX 1

BOX 2

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18 DIGESTO ECONÔMICO MAIO/JUNHO 2007

1. Tarifas artificialmente baixas para eletricidade, como aliásfoi feito com quase todas as tarifas de serviços públicos pelo go-verno federal, num esforço vão de controlar a inflação;

2.O uso político das empresas de produção e distribuição degás e eletricidade, envolvendo gerenciamento incompetente ea construção de inúmeras usinas hidrelétricas para obter be-nefícios políticos, sem os recursos necessários para completá-los, o que garantiria um mínimo de retorno econômico.

Para enfrentar tais distorções, em meados da década de 90foi promovida a desestatização parcial do sistema, seguindo oprocedimento adotado anteriormente pelos países da EuropaOcidental.

a) Desverticalização da produção/geração, transmissão edistribuição de energia;

b) A introdução de competição na produção/geração,transmissão e distribuição de energia, bem como o livre acessoà rede;

c) Adoção de agências reguladoras independentes e priva-tização das empresas públicas.

Tradicionalmente, as projeções do governo tratam o setordo petróleo de forma independente do setor de eletricidade,mas esta tradição está sendo rompida devido ao fato de que ogás produzido ou importado pela Petrobras é um insumo im-portante, não só para usos residenciais, industriais e veicula-res (onde combustíveis líquidos são dominantes), mas tam-bém para a produção de eletricidade.

O sistema regulatório brasileiro, com a ANP (Agência Na-cional de Petróleo) e a Aneel (Agência Nacional de Energia Elé-trica) se tornou pouco realista e a rigor as duas agências deve-riam ser substituídas por um órgão regulador único da área deenergia como um todo.

III. A auto-suficiência em petróleo e a questão do gásnatural para o Brasil

No setor de petróleo, o controle continua basicamente nasmãos da Petrobras (apesar da presença de empresas multina-cionais no setor) e os esforços se concentraram na busca da au-to-suficiência na produção, explorando os recursos nas pro-fundidades da plataforma continental brasileira (Box 3).

Mais recentemente, a estatal passou também a valorizar ogás natural, antes um subproduto da exploração do petróleoque era lançado para a atmosfera em queimadores (flares).

Em relação ao petróleo, o que se pode dizer é que a buscapela auto-suficiência é uma política tradicional do setor ener-gético brasileiro, baseada na necessidade de reduzir gastosfinanceiros com importação. Entretanto, à medida que o pro-blema da importação perdeu importância graças à grandeprodução interna de petróleo, é apropriado considerar ou-tros fatos. O investimento em petróleo consome boa parte darenda disponível no País e uma redução nesse investimentopoderia liberar recursos para outros fins economicamentemais produtivos e que poderiam gerar produtos e serviçospara exportação.

Além disso, a auto-suficiência não é garantida no longo pra-

Tabela 2

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19MAIO/JUNHO 2007 DIGESTO ECONÔMICO

PETRÓLEOE GÁS NATURAL

As reservas provadas de petróleo no Brasil de 11.243 mi-lhões de barris, equivalentes a cerca de 20 anos da atual

produção, asseguram uma situação confortável para o País nocurto e médio prazos. Para os países da OCDE as reservas equi-valem a cerca de 10 anos da produção, enquanto que a médiamundial é de 40 anos. As reservas provadas de gás natural, de326,1 bilhões de m³ são 33% superiores às de 2003 e equiva-lem a 19 anos da atual produção. Para os países da OCDE asreservas equivalem a cerca 14 anos da produção, enquanto amédia mundial é de 60 anos.

O País atingiu a autosuficiência na produção de petróleo em2006. Entre janeiro e setembro desse ano, a Petrobras produ-ziu 1,763 milhão de barris por dia, volume 5% superior ao doano anterior. A meta de produção é de 1,88 milhão de bar-ris/dia. Contudo, as vendas internas de combustíveis só cres-ceram 2%. O País exporta 450 mil barris/dia de petróleo. Se-gundo a Agência Internacional de Energia, o consumo mun-dial de petróleo deve crescer 1,1% em 2006.

A produção de gás natural foi de 46,5 milhões metros cú-bicos por dia (Mm³/d) em 2004, montante 7,5% superior ao de2003. As importações da Bolívia somaram 22,2 Mm³/d, mon-tante 60% superior ao de 2003. Em 2004, o principal uso do gásnatural continuou sendo no setor industrial, com 20,7 Mm³/d ecrescimento substancial de 13,7%. O crescimento do uso nacogeração de energia elétrica foi também significativo, já re-

Presidente Lula molha as mãos no petróleo extraído daplataforma P50, da Petrobras. Ao lado, obras do gasodutoUrucu-Manaus, com 662 km.

presentando um terço do uso na geração. O uso de gás naturalno transporte veicular tem também crescido muito.

O gás natural contribuiu com 9,4% da matriz energéticabrasileira de 2005, contra 3,3% em 1995. Em 2003 o governoadotou uma política de incentivo ao consumo de gás natural,visando ocupar a capacidade do gasoduto Bolívia-Brasil e es-coar o gás da Bacia de Campos. O energético era bastante atra-tivo por sua eficiência, menores emissões e preços atrativos.Contudo, em 2006 a Bolívia decidiu nacionalizar (isto é, esta-tizar) o setor de gás, revendo sua política de preços e causandoinstabilidades no mercado brasileiro. O preço atual do gás na-tural corresponde a 56% do preço do óleo combustível, masessa relação deve passar para 80% (um aumento de 42%), se-gundo a Empresa de Pesquisa Energética. A Petrobras buscauma saída na Bacia de Santos, onde deverá investir US$18 bi-lhões em dez anos.

Ricardo Stuckert/PR

Euzivaldo Queiroz/AE

BOX 3

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20 DIGESTO ECONÔMICO MAIO/JUNHO 2007

zo: a relação entre as reservas provadas e a produção atual é daordem de 20 anos. Mesmo com novas descobertas, os investi-mentos são crescentes. A substituição da gasolina pelo álcoolcontribuiu significativamente para atingir a auto-suficiênciaem petróleo, objetivo perseguido há décadas. Vale dizer tam-bém que a auto-suficiência é física, não econômica: o nosso pe-tróleo não é de boa qualidade e são necessárias ainda impor-tações. A conta-petróleo do País apresentou até agosto de 2006um déficit comercial de US$ 3,2 bilhões (só de óleo bruto, o dé-ficit atingiu US$ 2,22 bilhões). O movimento reflete, principal-mente o forte aumento dos preços do petróleo no mercado in-ternacional, que têm anulado os efeitos do aumento da produ-ção interna. Enquanto o Brasil pagou cerca de US$ 77,62 porbarril que comprou no exterior em agosto, o barril exportadosaiu pelo equivalente a US$ 57,44, o que dá uma diferença deUS$ 20,18 por cada barril. A Petrobras, que controla 98% do pe-tróleo refinado no Brasil, tem de importar óleo leve (mais caro)para processar nas suas refinarias.

A auto-suficiência não se aplica ao gás natural, apesar deterem sido identificadas nos últimos anos grandes reservasde gás natural no Sudeste. Para viabilizar seu uso, grandesinvestimentos precisam ser feitos nos sistemas de transpor-tes do produto (como gasodutos e compressores). Existe apossibilidade de usar e até mesmo ampliar o fornecimento degás da Bolívia, onde a Petrobras já fez investimentos consi-deráveis, mas há dúvidas sobre a estratégia de importarmosgás desse país, considerando os recentes problemas políticoslá ocorridos. Além de maior volume, tem havido aumentonos preços da matéria-prima importada do país vizinho. Ascompras de gás natural da Bolívia atingiram US$ 986 milhõesnos oito primeiros meses de 2006, com aumento de 63% sobreigual período de 2005.

A definição do interesse na importação não é determina-da apenas pelo risco de suprimento. Ela tem que ser tomadaconsiderando aspectos econômicos ligados à energia e aodesenvolvimento dos dois países. No caso da Bolívia, é ne-cessário considerar as opções econômicas do país e decidirse há possibilidade desta nação mesmo renunciar à sua ex-portação para o Brasil. A redução nas exportações de gás daBolívia reduzirá a capacidade de seu desenvolvimento, am-pliando tensões sociais e reduzindo sua disposição de im-portar produtos brasileiros. Alternativas como importar

gás natural liquefeito da Argélia, Trinidad-Tobago e outrospaíses seriam uma opção a analisar, mas que também têmcustos consideráveis.

O Brasil depende e dependerá por muito tempo de petróleo egás e precisa buscar alternativas que reduzam seu consumo.

IV. A reestruturação do setor elétrico nacionale seus equívocos

A desestatização do setor elétrico foi apenas parcialmenterealizada: ocorreu em cerca 70% da capacidade de distribui-ção, mas em apenas 30% da geração. Isso levou a um colapsoparcial do planejamento e à crise do "apagão" de 2001, uma vezque os investidores privados, preocupados com incertezas re-gulatórias, se mantiveram arredios a novos investimentos. Apartir de 2000, um novo modelo foi adotado pelo governo fe-deral a fim de tentar reduzir o risco dos investidores. Isto foifeito dividindo o mercado gerador de eletricidade em dois seg-mentos, um composto de consumidores livre e outro de con-sumidores cativos. Os consumidores livres poderiam escolherseus supridores entre produtores independentes, através decontratos bilaterais. Os cativos seriam atendidos pelas empre-sas que formariam uma câmara de transações.

Este modelo foi modificado em 2002, com a criação de EPE(Empresa de Planejamento Energético, vinculada ao Ministé-rio de Minas e Energia), que coloca em leilão os empreendi-mentos que considera necessários para atender a demandanos próximos cinco anos, baseando-se em projeções futuras dademanda. Contudo, as projeções da EPE para o consumo deeletricidade até o ano 2015 não passam de um exercício de ma-croeconomia, em que são feitas hipóteses simplistas sobre ocrescimento do mercado, baseadas em expectativas de cresci-mento do Produto Interno Bruto (PIB) e a elasticidade na de-manda. Nestes estudos se assumem para o período entre 2005e 2015 taxas de crescimento do PIB entre 4,2% (cenário de tra-jetória alta) e 5,8% (trajetória baixa) ao ano, tendo 5,2% ao anocomo cenário de referência, isto é, mais provável para o cres-cimento. Todos estes cenários são extremamente otimistas,considerando que o PIB brasileiro está crescendo a uma taxa demenos de 3 % ao ano, como mostra a Tabela 2 .

O novo modelo do setor elétrico é baseado em simulaçõesde computador que partem de premissas equivocadas, oque claramente não está funcionando como mostram os úl-timos "leilões de energia" amplamente discutidos na im-prensa. Um dos resultados perversos desses leilões foi o deque a maioria da energia comercializada é de usinas térmi-cas, o que não só deve encarecer a energia, como vai agravarproblemas ambientais.

Em outras palavras, o "novo modelo" do setor elétrico estálevando o País a abandonar sua vocação natural, que é o uso deseu abundante potencial hídrico, uma energia mais limpa e re-novável. Dessa forma, é claro o contraste entre a sustentabili-dade ambiental e as alternativas que o "novo modelo" privi-legiou em nome da urgência. Como exemplo, a Tabela 3 a p re -senta o resultado do último leilão da EPE.

Construir usinas a carvão, uma fonte altamente poluente,tornou-se um bom negócio no País. Além das unidades já con-

Tabela 3

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21MAIO/JUNHO 2007 DIGESTO ECONÔMICO

CARVÃOCarbonífera Belluno, em Siderópolis (SC).

O carvão mineral em uso no Brasil tem duas origens: ocarvão vapor (energético), que é nacional e tem cer-

ca 90% do seu uso na geração elétrica e o carvão meta-lúrgico, importado para produzir o coque, especialmenteusado na indústria siderúrgica. O carvão nacional é debaixa qualidade com impurezas de óxidos de enxofre quepodem atingir até 7%. O carvão mineral manteve em2004 a participação de 6,7% na matriz energética brasi-leira, sendo um quarto desse total de origem nacional.

tratadas, a EPE habilitou 43 usinas a diesel e a óleo combustívelpara o próximo leilão, que ocorreu em outubro. Isto representa4.070 MW, ou 20% da capacidade instalada total oferecida nes-te leilão. Duas térmicas a carvão devem entrar no leilão com1.192 MW, mesmo sendo problemática a qualidade do carvãonacional (Box 4).

Parece claro, portanto, que o Brasil está na contramão da his-tória, já que o resto do mundo vem procurando alternativaspara diminuir a participação de fontes poluentes na matrizenergética. Além da sua contribuição ao "efeito estufa", as im-purezas de carvão provocam um fenômeno conhecido há maisde um século nas grandes cidades, o "smog" – camada de né-voa escura altamente tóxica que provoca problemas respira-tórios. O óleo combustível também tem os mesmos problemas,ainda que em menor proporção.

A vocação do País está nas hidrelétricas e há grandes poten-ciais ainda não explorados. É o caso do complexo de usinas noRio Madeira (6.450 MW, R $20 bilhões em investimentos) e dausina de Belo Monte (11.000 MW, R$ 7,5 bilhões), pontos degrande conflito entre o Ministério de Minas e Energia com de-terminados setores da sociedade, principalmente as organiza-

ções não-governamentais. Há um mo-tivo evidente para esse conflito: osgrandes impactos ambientais que pro-jetos como Tucuruí e Balbina apresen-taram no passado.

Na ânsia de aprovar os projetos, con-siderados urgentes pelos modelos daEPE, freqüentemente os órgãos de li-cenciamento ambiental são apontadoscomo os obstáculos ao desenvolvimen-to, impedindo a construção de usinashidrelétricas e levando os leilões deenergia a privilegiarem outras fontes.Essa é uma visão distorcida da realida-de, por uma série de razões:

- Muitos empreendedores (e até se-tores governamentais) têm a visão deque o licenciamento ambiental é umamera formalidade, esquecendo-sedos preceitos constitucionais e das

leis em vigor no País;- Freqüentemente se iniciam as obras antes de se iniciar o li-

cenciamento ambiental nos órgãos competentes;- Muitos dos estudos de impacto ambiental são incomple-

tos, que o próprio interessado demora em concluir;- Há aspectos macroeconômicos, como as altas taxas de ju-

ros, que levam o empreendedor a privilegiar projetos de cons-trução mais rápida;

- Certos empreendedores procuram agilizar o licenciamen-to de um projeto sem querer realizá-lo, apenas para vender um"pacote pronto".

O que se impõe é que os órgãos ambientais encontrem saídaspara o complicado processo de licenciamento das usinas hi-drelétricas – a vocação natural do País.

A solução passa por compensações ambientais, pelas quaiso empreendedor deve alocar pelo menos 0,5% do valor total daimplantação de seu projeto na criação de novas unidades deconservação ou na manutenção das existentes. Além disso, ou-tras medidas são indispensáveis, como o reassentamento ade-quado das populações atingidas pela construção das usinas.

Economizar nessas medidas é o que mais contribui paraatrasar a expansão do setor hidrelétrico. É preciso procurar umequilíbrio entre os interesses contrariados dos que são atingi-dos pelos empreendimentos e os interesses de populaçõesmuito maiores dos que se beneficiam deles a grandes distân-cias do local onde o empreendimento é implantado.

V. A conservação de energia no Brasil

Toda a área de racionalização do uso de energia não tem re-cebido prioridade. Nos países da OCDE o consumo de energiaseria 49 % maior do que é atualmente se não fossem as sériasmedidas de racionalização e eficiência energética adotadasapós as crises do petróleo da década de 1970 (Figura 1).

Num país em desenvolvimento como o Brasil, o consumo deenergia "per capita" ainda é pequeno e não se poderia esperar

Ulisses Job/Diário Catarinense

BOX 4

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22 DIGESTO ECONÔMICO MAIO/JUNHO 2007

que medidas de eficiência energética tivessem tanto impactocomo na OCDE, já que é indispensável que o consumo de ener-gia cresça para promover o desenvolvimento (Figura 2). Noentanto, nada impede que o uso de tecnologias modernas e efi-cientes sejam introduzidas logo no início do processo de de-senvolvimento, acelerando com isso o uso de tecnologias efi-cientes. Esse é o chamado efeito l e a p f ro g g i n g , que se contrapõeao pensamento de que para haver desenvolvimento é precisoque ocorram impactos ambientais.

Isso pode ser concretizado por meio de políticas e ações re-lativamente simples e muitas vezes economicamente atrati-vas. Novas tecnologias, mais eficientes em refrigeradores,aparelhos de ar-condicionado, motores e lâmpadas já sãoproduzidas e/ou comercializadas no País. A conservação deeletricidade reduz o consumo e posterga a necessidade porinvestimentos em expansão da capacidade instalada, semcomprometer a qualidade dos serviços prestados aos usuá-rios finais. A eficiência energética é, sem dúvida, a maneiramais efetiva de ao mesmo tempo reduzir os custos e os im-pactos ambientais locais e globais. Além disso, a conservaçãodiminui a necessidade de subsídios governamentais para aprodução de energia.

Estimativas recentes feitas por um grupo da Universidadede Campinas (Unicamp) indicam que na área de eletricidadeseria viável obter uma redução de 38% no consumo de eletri-cidade a ser atingido em 2020. Contudo, é preciso tomar certoscuidados com "modelos", tanto os da EPE quanto os da Uni-camp. Da mesma forma que projeções otimistas do crescimen-to do PIB levam a conclusões superestimadas sobre a expansão

da geração de eletricidade, cenários prospectivos com resul-tados exagerados de conservação de energia em relação às po-líticas em vigor acabam sendo rotulados de "manifestações dedesejos". Quando essas diferentes visões se encontram, em ge-ral há conflitos entre os "wishful thinkings" desenvolvimentis-tas e conservacionistas.

A forma de se resolver essa questão está nas políticas quefomentam as melhores formas de conservação e geração deenergia. O planejamento energético não pode ser um debateentre cenários.

O Brasil possui hoje dois programas específicos para a pro-moção da conservação da energia e racionalização do seu uso,que são essencialmente voltadas para a disseminação de infor-mações e a conscientização da população para a importânciado uso mais eficiente de energia:

- O Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica(PROCEL), coordenado pela Eletrobrás e que promove açõesde educação, etiquetagem, gestão energética municipal, ilu-minação pública, gestão de eletricidade na indústria e em edi-ficações e saneamento ambiental; e

- O Programa Nacional de Racionalização do Uso dos De-rivados do Petróleo e do Gás Natural (CONPET), coordenadopela Petrobras e que promove ações de etiquetagem de produ-tos e em transporte.

Há porém dois poderosos instrumentos legais pouco utili-zados atualmente que poderiam ser ativados para promovertecnologias mais eficientes:

- A Lei nº 9.991 de 24/7/2000 estabelece que as concessio-

Figura 1

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nárias e permissionárias de serviços públicos de distribui-ção de energia elétrica ficam obrigadas a aplicar, anualmen-te, o montante de, no mínimo, 0,75% de sua receita opera-cional líquida em pesquisa e desenvolvimento do setor elé-trico e, no mínimo, 0,25% em programas de eficiênciaenergética no uso final.

- A Lei nº 10.295 de 17/10/2001 determina que o Poder Exe-cutivo estabelecerá níveis máximos de consumo específico deenergia, ou mínimos de eficiência energética, de máquinas eaparelhos consumidores de energia fabricados ou comerciali-zados no País, com base em indicadores técnicos pertinentes.

IV – Conclusão

Projeções do consumo futuro de energia dependem critica-mente do tipo de desenvolvimento e crescimento econômicoque o País terá. Por essa razão, os diversos exercícios que temsido feitos, tanto por órgãos do governo, como por grupos uni-versitários, refletem visões diferentes do futuro e dão portantoresultados diferentes.

As decisões de um país na área de energia não podem sercalcadas em meros modelos. A matriz energética brasileira de-pende dos rumos que o desenvolvimento econômico do Paísvai seguir. A necessidade de uma política energética, que re-conheça este fato fundamental é crescente, visto que parte dosistema energético foi privatizado e depende portanto de in-vestimentos não-governamentais, que não ocorrerão a não serque regras claras sejam estabelecidas.

Em todos os casos, o licenciamento ambiental de empre-

endimentos deve ser obedecido. É possível mitigar muitosdos impactos e, com políticas corretas e prévio e transparenteestudo de impacto ambiental, proceder a compensações am-bientais justas.

Há muito espaço para ampliar a gestão governamental nosetor de energia, visto que ainda são modestos os resultadosdas ações pela maior eficiência no uso final de energia. Alémdisso, não se podem deixar de lado aspectos de segurança nofornecimento, criação de empregos e de sustentabilidade am-biental. Por exemplo, a utilização de biomassa, além de sercompetitiva comercialmente com o petróleo, é mais limpa, re-novável e permite gerar muito mais empregos. A reativação da"Fase 2" do Proinfa, que estabelece uma meta tangível nas no-vas fontes renováveis de geração de eletricidade, é um pode-roso estímulo aos agentes de mercado.

Programas de eficiência energética, baseados na adoção depadrões mandatórios, estimulam o setor de serviços, redu-zem a poluição e prolongam a vida das reservas de petróleo egás. Este fato, apesar de ser politicamente relevante e reco-nhecido, não é considerado explicitamente nos programas deexpansão energética.

Além disso, a definição do perfil industrial brasileiro temgrande impacto na quantidade e tipo de energia final que te-remos que produzir. Historicamente, o País é um grande pro-dutor de produtos intensivos no uso de energia, como papel ecelulose, ferro e aço e alumínio. A mudança desse perfil paraprodutos menos energo-intensivos pode alterar, no longo pra-zo, a demanda de energia no País e adicionar valor à nossa pro-dução e exportações.

Figura 2

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Desde o final da Segunda Guerra até a crise do petróleo em 1979, o crescimentoeconômico brasileiro foi muito elevado, um dos mais pujantes do mundo. Apartir dessa data praticamente estagnou. A tabela abaixo indica a evolução doPIB real e do PIB per capita:

Visto de outroângulo, o PIB percapita brasileiro, emPPP, ocupava em1980 o 40º posto,numa amostra de 93países, enquanto queem 2005, no mesmoconceito, havia caídopara 46º * Nestageração, o Brasilpatinou enquantooutros países, 64 dos93, apresentaram

crescimento superior ao nosso (2005 relativo à média dos anos 1980/82).No Gráfico 1 são mostradas as diferenças percentuais de crescimento do PIB per

capita de cada país em relação ao Brasil. Fomos muito mal. Na América Latina, oChile teve o melhor desempenho: 158% de crescimento do PIB per capita (96% maiordo que o desempenho brasileiro). No período, o crescimento do PIB per capita doBrasil foi de 31%, enquanto os da Costa Rica, Colômbia e Uruguai foram,respectivamente, de 55%, 54% e 37%.

Não há dúvida de que fatores como hiperinflação, valorização cambial e políticamonetária superconservadora contribuíram para este desempenho modesto. Sãocausas que podem ser corrigidas por medidas macroeconômicas, num temporelativamente curto. Há um outro fator, porém, de natureza política, que nos últimos20 anos tem dificultado o nosso crescimento: o comportamento do setor público. Aexperiência mostra que no processo do crescimento econômico, o Estado desempenhaum papel fundamental na prestação de bens públicos e na correção de eventuaisimperfeições do mercado.

* Em 2005, num total de 125 países, o PIB per capita do Brasil aparece em 58% (PPP). Nacomparação acima foi necessário reduzir o número de países para 93, em virtude da disponibilidadede informações estatísticas.

José Paulo Lacerda/Ag.Pixel

Antonio DelfimNetto

Economista,ex-ministro daFazenda, da

Agricultura e doPlanejamento

Cor

bis

Crescimento econômico

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e setor público

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2) Garantir a propriedade privada;3) Proporcionar um razoável grau de

justiça;4) Construir uma adequada

infra-estrutura e5) Manter um comportamento amigável

com relação ao setor privado e aosmercados, mas que estimule duramentea competição.

Quando isso se realiza, o crescimentoeconômico acontece quase por gravidade: seráo resultado da ação dos empresários em buscado lucro e do comportamento dosconsumidores na busca de melhor e maiorsatisfação de suas necessidades. Elas seharmonizam pela liberdade de escolha de cadaum, através do sistema de preços dos fatores deprodução e dos bens de consumo estabelecidopelo mercado. O velho Smith estava,entretanto, longe de ter — como alguns aindapensam — uma crença ingênua nas virtudes doregime de concorrência pura e na amoralidadeda atividade econômica. Este desvio foiresultado do trabalho de alguns economistasentre 1850 e 1950 quando, mimetizando osmodelos da física clássica e inventando uma

Adam Smithestava longe de teruma crençaingênua nasvirtudes do regimede concorrênciapura e naamoralidade daatividadeeconômica.

Há quase dois séculos e meio, Adam Smithobservou historicamente e teorizou,adequadamente, que o desenvolvimentoeconômico, ou melhor, a "riqueza dasnações", depende de umas poucas coisas:

Um Estado que tribute levemente seussúditos e utilize eficientemente taisrecursos para:

1) Assegurar a paz interna pelo monopólioda força;

Reprodução

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psicologia conveniente, construíram uma"ciência econômica" que repudiava os juízos devalor. 1883 foi o anno humanae salutis doseconomistas. Ele viu morrer um (Marx) e viunascer dois (Schumpeter e Keynes) dosmaiores contestadores desse científismoinconseqüente, que ainda infesta alguns dosnossos brilhantes "neoliberais".

Talvez seja um exercício útil, masassustador, como o passeio por um "túnel dehorror" de alguns parques de diversão,comparar a simplicidade do processodescrito por Adam Smith e a confusão que searmou na sociedade brasileira nos últimos 20anos. Vamos lá.

1) Tributação leve e eficiência no seu uso:o Gráfico 2 fala por si. Temos a maior cargatributária para países com a nossa renda percapita e um medíocre crescimento, reveladopelos números dentro dos pequenos círculosdo Gráfico 2. Quanto à eficiência dos gastospúblicos, o Brasil é 119º classificado em 125países examinados pelo World EconomicForum de 2006, como se vê no Gráfico 3.

O índice de desenvolvimento humano(IDH) do Brasil também está muito abaixo

dos países que tem tributação semelhante. Éuma outra indicação que sugere a baixaeficiência das despesas públicas. Estamosgastando mal, em lugares errados eprestando serviços de baixa qualidade àpopulação, particularmente educação esaúde, como se vê no Gráfico 4.

2) Paz interna: já faz muito tempo que ainsensatez de governos locais transacionou omonopólio da força com o jogo, a droga e abandidagem no Rio de Janeiro. Hoje, pelomenos lá, em São Paulo e em Pernambuco, hádois "Estados": um legal e outro marginal. Sóagora parece nascer a vontade políticaapoiada, infelizmente, em recursos ainda "adefinir", de eliminar o "Estado-Marginal" quecontrola a periferia dos grandes centrosurbanos. O Gráfico 5 mostra uma situaçãomuito ruim em relação ao crime organizado,uma das manifestações mais sérias contra atranqüilidade.

3) Garantia da propriedade privada: temhavido violação crescente e cada vez maisfreqüente à propriedade física e temosrespeitado pouco a propriedade intelectual.

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Mesmo assim, a classificação do Brasil (62ºentre 125 países), como mostra o Gráfico 6,é animadora, quando comparada com osoutros indicadores.

4) Razoável grau de justiça: o Gráfico 7revela que, lamentavelmente, somos o 92ºpaís entre 125 com relação à independênciado Judiciário, segundo a avaliação do WorldEconomic Forum de 2006.

5) Construção de infra-estrutura: nossaposição no mundo ocupa o 79º lugar entre os125 países analisados pelo World EconomicForum de 2006, o que mostra a necessidadeimperiosa da rápida execução do PAC nosetor de energia, transportes etc. O Brasilé um país com uma fronteira agrícolaque se expandiu de forma fantástica. Acompetitividade no mercado externo destaatividade depende fortemente do transporterodoviário e dos custos portuários. Aqualidade deles é fundamental.Infelizmente, ela deixa muito a desejar pelobaixo investimento público dos últimos 20anos. Os Gráficos 8 e 9 mostram nossoranking em relação ao mundo.

6) Comportamento amigável com o setorprivado: aqui temos um desastre. O Brasil é o124º colocado entre os 125 países analisadospelo Fórum com relação ao "Peso daRegulação Governamental". E o 119º colocadoentre 155 países analisados no Doing Business2005 do Banco Mundial com relação à"Facilidade de Produzir". A burocracia temampliado o seu espaço e criado as própriasregras. Haja visto as dificuldades recentes comos projetos de energia e da utilização de novasvariedades de sementes na agricultura,geneticamente modificadas, e que apresentammaior produtividade e menor custo.

Mesmo esquecendo a maior taxa de juroreal e a moeda mais valorizada do mundo, osfatos acima sugerem que o Brasil está"bombando" sem causa... Parece que, agorasim, estamos vivendo um verdadeiromilagre. Todos sabemos que o crescimentoeconômico é um "estado de espírito" apoiadoem condições objetivas. O primeiro existepela soma de um aumento virtuoso docrédito e uma ação divina, que eliminou avulnerabilidade externa; o segundo não! Adúvida é até quando ele durará se nãoatendermos às lições de Adam Smith...

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Guy Christian/hemis.fr

Refor maprevidenciária

chilena

Refor maprevidenciária

chilenaImpactos macroeconômicos e

lições para o caso brasileiro

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1. Introdução

Durante as décadas de setenta e oi-tenta, o Chile realizou uma série dereformas estruturais, que diminuí-ram o tamanho do Estado na eco-

nomia, transformando o setor privado, princi-palmente o setor exportador, no motor do cres-cimento econômico. Dentre as principais re-formas estruturais realizadas pelo governo dogeneral Augusto Pinochet, estão a abertura daeconomia, a reforma fiscal, a autonomia doBanco Central, a liberalização financeira inter-na e externa, a privatização e a reforma da pre-vidência. De fato, a partir do momento em quevárias dessas reformas passaram a surtir efei-to, a taxa de crescimento do PIB chileno se ele-vou, alcançando uma média de 4,9% durante operíodo 1981-2005 1.

No caso brasileiro, embora o Plano Real te-nha realizado um importante ajuste fiscal e te-nha aprofundado a abertura financeira e co-mercial e o processo de privatização, o que as-segurou uma melhora substancial dos funda-mentos da economia, ainda não existeconsenso sobre como reduzir o déficit da pre-vidência. Em 2006, esse déficit alcançou a cifrade R$ 42,1 bilhões, representando um aumen-to de 11,9% em relação a 2005. Em breve, se ini-ciará um Fórum para discutir alternativas deredução desse desequilíbrio financeiro, semque, no entanto, exista nenhuma proposta oumodelo formal de reforma. Por outro lado,muitos setores da sociedade rejeitam a aplica-ção do sistema previdenciário chileno por mo-tivos puramente ideológicos, sem que se co-nheça devidamente todos seus alcances.

Por esse motivo, seria importante analisar aexperiência da reforma previdenciária reali-zada no Chile a partir de 1981, cujo êxito con-verteu seu sistema em um novo paradigmapara o resto do mundo. Assim, além de iden-tificar os principais efeitos macroeconômicosda reforma, o presente artigo também preten-de examinar o funcionamento do sistema pre-videnciário chileno, mostrando sua situaçãoatual e suas perspectivas futuras.

2. A reforma previdenciária chilena

O antigo sistema previdenciário chileno as-semelhava-se ao "clássico" sistema de reparti-ção, onde os trabalhadores ativos financiam aspensões dos inativos, sem que haja relação es-treita entre as contribuições realizadas e os be-nefícios previdenciários. O sistema era caótico,conformado por um conjunto de mais de cemregimes de previdência diferentes ("Cajas dePrevisión"), cujas regras variavam caso a caso,resultando em diferentes níveis de contribui-ção e de benefícios. O sistema era intrinseca-mente injusto, com trabalhadores que podiamaposentar-se após completar 40 anos, enquan-to outros deviam manter-se ativos até depoisdos 60 anos, para assegurar seu direito a umapensão mínima 2. Além disso, o nível de pen-sões pagas era baixo, sendo quase 70% pensõesmínimas em 1979, e seu valor real era extrema-mente flutuante, como demonstra Wagner(1991). Outro problema era o elevado nível dascontribuições, que alcançavam 26% dos salá-rios brutos, o que as transformava num impos-to implícito ao trabalho, desalentando a parti-cipação no setor formal e o cumprimento dasobrigações previdenciárias. A administraçãoineficiente do sistema e sua estrutura caóticaresultaram em déficits crescentes. Assim, no fi-nal da década de setenta, o sistema acumuloudéficits de quase 3% do PIB, estimando-se queseu crescimento, em ausência de qualquer mu-dança, teria sido explosivo, alcançando um ní-vel superior a 20% do PIB em 2000 3.

A partir de maio de 1981, o governo chilenorealizou uma reforma radical do sistema previ-denciário, transformando o sistema estatal derepartição anterior num sistema privado de ca-pitalização individual. Para os trabalhadoresque a partir de então ingressassem no mercadode trabalho existia a obrigatoriedade de vincu-lar-se ao sistema novo, enquanto que os traba-lhadores ativos, que já contribuíam no sistemaantigo, podiam decidir se permaneciam nele ouse migravam para o novo. No caso dos inativos,estes permaneceram no sistema de repartição.A perda de contribuições para o financiamentodas pensões do sistema antigo de previdência,

Paulo Pampolin/Hype

Ulisses Ruizde Gamboa *Economista doInstituto GastãoVidigal, AssociaçãoComercial de SãoPaulo. Professor daFEA/USP e daFaculdade deEconomia daFundação ArmandoÁlvares Penteado.

* O autor agradece os valiosos comentários e sugestões de Alfonso Serrano, um doseconomistas diretamente responsáveis pela reforma previdenciária chilena.

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mais o montante de contribuições realizadasnesse sistema pelos trabalhadores que migra-ram para o sistema privado, geraram passivospara o Estado, chamados de "títulos de reco-nhecimento", provocando um elevado "déficitde transição", que alcançou a 7% do PIB nos pri-meiros cinco anos após a reforma.

A existência de um "déficit de transição" co-mo conseqüência de mudar o sistema de re-partição para um de capitalização é um temabastante discutido no caso brasileiro. Uma dasprincipais lições do caso chileno foi justamen-te utilizar o ajuste fiscal como forma de mini-mizar o impacto desse déficit, promovendocortes de despesas, aumentos de impostos eprivatizações, que contribuíram para gerarum superávit fiscal primário de 3,5% a 4% doPIB durante toda a década de oitenta. De qual-quer forma, a política fiscal austera praticadapermitiu obter uma importante redução do"déficit de transição".

3. Como funciona o sistema deprevidência chileno?

Os trabalhadores chilenos devem contribuircompulsoriamente com aproximadamente12,5% do seu salário para um fundo que cobre

pensão, invalidez e falecimento, existindo tam-bém a possibilidade de poupança voluntária,que tem adquirido importância crescente nosúltimos anos. Ao redor de 80% desse total vaipara um fundo de capitalização individual, depropriedade do trabalhador, que é administra-do por empresas privadas, as chamadas AFP -Administradoras de Fundos de Pensão, cujocapital próprio está totalmente separado dosfundos de capitalização, mesmo em caso dequebra 4. Dos 20% restantes da contribuição,7% é destinado a seguros por invalidez e por fa-lecimento, enquanto os 13% restantes corres-ponde ao pagamento de gastos administrati-vos e comissões cobradas pelas AFP.

O trabalhador pode escolher livremente aempresa que administrará suas contribuições,com alternativas de aplicação restritas a cincofundos de investimento, cuja escolha depende-rá da idade do contribuinte, ficando os mais jo-vens com aplicações em fundos de perfil mais"agressivo" que os de maior idade. O funciona-mento das AFP é supervisionado por umaagência reguladora, a chamada Superinten-dência das AFP, que está subordinada ao Minis-tério do Trabalho e Previdência Social. O Estadotambém participa, de forma subsidiária, garan-tindo uma pensão mínima para os contribuin-

Guilherme Werneck/Folha Imagem

No alto, palácio deLa Moneda, sede do

governo chileno;acima, o general

Augusto Pinochet,que entre as

mudançasestruturais do Chile,

promoveu umabem-sucedida

reformaprevidenciária.

Reuters

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tes das AFP, desde que tenham contribuído du-rante pelo menos 240 meses e, logicamente, ga-rantindo pensões assistenciais aos inativos, cu-ja renda não tenha sido suficiente para seuingresso ao sistema de capitalização.

Os trabalhadores somente podem ter acessoaos fundos de pensão no momento em que al-cançam a idade de aposentadoria (65 anos paraos homens e 60 para as mulheres). Outra alter-nativa é a aposentadoria antecipada, a partir de55 anos, que é concedida se os fundos acumu-lados são suficientes para gerar uma renda queseja superior à metade da média das rendas ob-tidas nos últimos dez anos ou maior a 110% daspensões assistenciais concedidas pelo Estado.Uma vez que os trabalhadores tenham acessoàs suas contas de capitalização, podem conti-nuar trabalhando, sem necessidade de realizarnovas contribuições ao sistema previdenciá-rio. Também existe a opção de escolher a formade pagamento dos benefícios previdenciários:retiradas programadas das contas, anuidadesou uma combinação de ambos. Entretanto, sejaqual for a modalidade de pagamento escolhi-da, os benefícios são reajustados de acordo coma evolução do Índice de Preços ao Consumidore incluem provisões para cobertura em caso defalecimento do contribuinte.

4. Efeitos macroeconômicos dareforma previdenciária

Os efeitos macroeconômicos da reforma daprevidência realizada no Chile não se restrin-gem ao mero impacto fiscal e suas conseqüên-cias sobre a poupança interna. De fato, de acor-

do com Corbo e Schmidt-Hebbel (2003), os efei-tos macroeconômicos da reforma da previdên-cia chilena podem ser apreciados a partir de trêscanais fundamentais: os efeitos sobre a pou-pança interna e o investimento produtivo; osefeitos sobre o mercado de trabalho (níveis deemprego e de produtividade da mão-de-obra);os efeitos sobre o mercado de capitais (desen-volvimento do mercado de capitais, profundi-dade financeira e produtividade total dos fato-res). Evidentemente, a reforma da previdênciano Chile foi realizada em forma conjunta comoutras mudanças estruturais, tal como foi men-cionado, e existe um consenso em que há umaimportante relação de complementaridade en-tre as diferentes reformas efetuadas. De qual-quer forma, os referidos autores levaram emconsideração a existência dessas outras refor-mas, "limpando" (controlando) os resultadosobtidos de seus possíveis efeitos.

A poupança interna de um país pode ser afe-tada pela reforma da previdência a partir dequatro canais: I) a mudança na poupança públi-ca total, considerando o "déficit de transição",mencionado anteriormente, e a resposta fiscal aesse déficit; II) a resposta da poupança privada àmudança na poupança pública; III) a nova pou-pança obrigatória das famílias nas AFP; e IV) aresposta da poupança voluntária das famílias ànova poupança previdenciária obrigatória.

Os resultados de Corbo e Schimdt-Hebbel(200 3)5 apontam, em média, para uma quedada poupança pública total de 1,3% do PIB du-rante 1981-2001, decorrente do "déficit de tran-sição", financiada com emissão de títulos. Comrelação à resposta do setor privado, os resulta-dos parecem indicar que o maior endivida-mento público foi compensado, pelo menos emparte, pela maior poupança privada, que au-mentou, em média, em 0,6% do PIB no mesmoperíodo. Em termos de poupança obrigatória,as estimativas apontam para um aumento mé-dio de 4,6% do PIB durante 1981-2001. O au-mento da poupança obrigatória provoca, emgeral, uma diminuição da poupança voluntá-ria das famílias, que, no extremo, poderia atéanular esse aumento, deixando inalterada suapoupança total.

No caso chileno, no entanto, e à semelhançade países como o Brasil, muitas famílias nãodispõem de capacidade de poupança, ou se-quer de acesso ao crédito, o que minimiza aqueda da poupança voluntária, estimada, emmédia, em 1,4% do PIB durante 1981-2001, nãoanulando, portanto, o aumento da poupançaobrigatória. O efeito total da reforma previ-denciária sobre a poupança interna é, final-

Andres Gomez/AFP

Os trabalhadoressó têm acesso aosfundos de pensãona idade deaposentadoria,65 anos parahomens e 60 paraas mulheres.Na foto, Porto deValparaiso.

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mente, a soma dos efeitos anteriores. Assim, de acordo com es-sas estimativas, a poupança interna teria aumentado, em de-corrência da reforma previdenciária realizada, em 2,5% do PIBao longo do mesmo período considerado. De fato, tal como po-de ser apreciado no Gráfico 1, a taxa de poupança da econo-mia chilena apresentou tendência crescente a partir de 1981,com elevação permanente a partir de 1988.

Esse aumento da poupança interna redundou, como era deesperar-se, numa maior oferta de recursos financeiros, geran-do um aumento da taxa de investimento, que segundo os mes-mos autores, alcançou, em média, a 1,3% do PIB durante o pe-ríodo 1981-2001. Além disso, a existência de uma maior pou-pança interna também reduziu a vulnerabilidade externa doChile, ao diminuir a dependência em relação aos capitais fi-nanceiros externos, o que praticamente "isolou" sua economiados efeitos das crises financeiras internacionais ocorridas nasegunda metade da década de noventa.

A redução da alíquota de contribuição, ocorrida a partir damudança do sistema previdenciário, reduziu o imposto implí-cito ao trabalho, o que provocou vários efeitos positivos: umaumento do emprego formal e a conseqüente diminuição doemprego informal; um aumento da oferta de trabalho total aoaumentar os salários dos setores formal e informal 6; um au-mento do emprego total; uma diminuição do desemprego es-trutural e um aumento da produtividade média do trabalho,devido ao aumento do emprego no setor formal, que é masprodutivo que o emprego informal. Além disso, a reforma pre-videnciária diminuiu os incentivos da aposentadoria precoce,pois o valor futuro dos benefícios está diretamente relaciona-do com o montante acumulado nas contas de capitalização,que aumenta com a quantidade de anos trabalhados. Os refe-ridos autores estimam que durante 1981-2001, em média, hou-

ve uma expansão do emprego formal de 2,4%, enquanto que oemprego informal apresentou redução de 1,2%, com aumentosdo emprego total, salário do setor formal e salário do setor in-formal de 2,4%, 0,6% e 3,6%, respectivamente, e diminuição nataxa de desemprego de 1,3%. A reforma previdenciária tam-bém provocou uma expansão da produtividade média do tra-balho equivalente a 0,2% do PIB de 2001, enquanto que 0,49%do emprego total de 2001 poderia dever-se à maior participa-ção de trabalhadores de maior idade.

Por outra parte, um dos efeitos da reforma previdenciáriachilena menos discutidos no Brasil, mas paradoxalmente umdos mais importantes, foi sua influência sobre o desenvolvi-mento do mercado de capitais local. O Gráfico 2 mostra a evo-lução da participação dos fundos das AFP em relação ao PIB du-rante o período 1981-2005, podendo-se apreciar sua tendênciamarcadamente ascendente, passando de 0,8% em 1981 a 59,3%em 2005. As evidências sugerem que a acumulação de umagrande quantidade de fundos nas AFP e companhias de seguro7 a partir da reforma parece ter sido acompanhada de aumentosda qualidade da regulação e de uma maior transparência nomercado financeiro, além de melhoras na governança corpora-tiva das empresas de capital aberto 8. Esse maior volume de ati-vos administrados também parece ter incrementado a eficiên-cia na tomada de decisões de investimento, incentivando, aomesmo tempo, o contínuo surgimento de novos instrumentosfinanceiros. Um exemplo disso foi o surgimento dos fundos dedesenvolvimento de empresas, que permitem reduzir os custosde capital de empresas de médio porte, que não têm acesso atransacionar seus títulos na Bolsa de Valores. Outro efeito atri-buível em grande medida ao surgimento das AFP é o notávelcrescimento do mercado de capitais chileno durante a décadade oitenta. Acuña e Iglesias (2000) sugerem que o maior impac-

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to do novo sistema previdenciário tenha se manifestado a par-tir do aumento da oferta de fundos de longo prazo, do desen-volvimento do mercado de créditos hipotecários e do maioraprofundamento do mercado de ações. De fato, Corbo eSchimdt-Hebbel (2003) concluem que durante 1980-2001 a par-ticipação do fluxo de poupança previdenciária sobre o desen-volvimento financeiro chileno oscilaria entre 31% e 46%.

Por sua vez, o desenvolvimento do mercado de capitais ocor-rido em decorrência da reforma previdenciária possibilitou umamelhor utilização dos recursos na economia, permitindo que elesfossem empregados nos setores de maior rentabilidade, o queelevou a produtividade total dos fatores, em média, em 0,27% du-rante o período 1980-2001, segundo os referidos autores.

Finalmente, o maior investimento produtivo, aliado aos au-mentos do emprego total, da produtividade média do traba-lho e da produtividade total dos fatores, que ocorreram devidoà reforma da previdência, resultaram numa significativa con-tribuição ao crescimento econômico do Chile. Corbo eSchimdt-Hebbel (2003) estimam que todos esses efeitos con-siderados permitiram aumentar a taxa de crescimento econô-mico, em média, em 0,5% durante 1981-2001, o que correspon-deria, também em média, a 5,4% do PIB de 2001.

5. Problemas atuais e perspectivas futuras

No período anterior às últimas eleições presidenciais doChile, a candidata eleita, Michelle Bachelet, afirmou que "omodelo previdenciário chileno está em crise". No entanto, essaafirmação, utilizada repetidamente durante a campanha elei-toral, carece absolutamente de fundamento, e após completarseu jubileu, o sistema previdenciário chileno está muito longede enfrentar algum tipo de crise, entregando, em média, 10,3%

de retorno real pelas contribuições realizadas durante o perío-do 1981-2005 9. Essa foi exatamente a conclusão do ConselhoAssessor Presidencial para a Reforma Previdenciária, convo-cado no ano passado pela própria presidente:

"O regime de capitalização individual criado pela reforma de1981 não está em crise. Este funciona de acordo com o previsível: as

contribuições dos trabalhadores dependentes são efetuadas comregularidade; as AFP cumprem com suas obrigações legais; os

participantes têm seus fundos assegurados; somente em dois anosos investimentos produziram rentabilidades negativas, e em 25anos de funcionamento do sistema não se tem notícia de fraudes

nem falência de nenhuma AFP" 10.

A presidente Michelle Bachelet afirmou queo modelo previdenciário estava em crise.

Pabl

o Po

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a/A

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Também carece de fundamento a afirmação de que o aindaexistente "déficit de transição" represente um problema para asolvência do Estado chileno, que de acordo com Soto (2005) al-cançaria a 3% do PIB em 2007, e, segundo projeções realizadaspor Valdés (2005), desapareceria a partir de 2030. Em um tra-balho mais recente, Valdés (2006) também demonstra que osgastos públicos associados à concessão de pensão mínima nãoconstituem uma ameaça ao equilíbrio orçamentário fiscal.

Entretanto, o sistema de previdência chileno apresenta algunsproblemas, que devem ser enfrentados, o que exige seu aperfei-çoamento. Em primeiro lugar, apesar da tendência crescente ob-servada na participação, como pode ser visualizado no Gráfico3, o sistema de capitalização não foi capaz de prover coberturauniversal, garantindo participação a 62% da força de trabalho e68% dos trabalhadores empregados 11 . Esses resultados contras-tam com o sistema norte-americano, cuja taxa de cobertura alcan-ça a 96%, mas são bem superiores ao caso brasileiro, onde se es-tima que pelo menos 50% dos trabalhadores se encontrem na in-formalidade, sem qualquer cobertura. Contudo, essa não univer-salidade do sistema não necessariamente reflete falhas em seudesenho, estando bastante associada à dinâmica própria do mer-cado de trabalho chileno. Com efeito, no sistema atual, a parti-cipação dos trabalhadores por conta própria, geralmente de baixarenda e informais, é voluntária, levando a que mais de 93% delesnão contribuam nos fundos de pensão. Estima-se que no caso chi-leno esse tipo de trabalhadores corresponda a 30% do empregototal. Além disso, cerca de 40% dos trabalhadores não contribuemregularmente no sistema por conta de desemprego temporárioou mesmo por não cumprimento com a lei, o que reduz a pos-sibilidade de acumular um mínimo de 240 meses de contribuição,condição necessária para ter acesso à pensão mínima estatal. Ou-tro fator que explica a baixa cobertura é o aumento da participa-

ção da mulher no mercado de trabalho (que aumentou de 28,7%em 1986 para 37,2% em 2005 12), num contexto em que a gravideze condicionantes sócio-culturais chilenos fazem com que a regu-laridade e o montante de suas contribuições sejam inferiores aocaso dos homens, sendo sua expectativa de vida maior.

Outro problema diagnosticado é a existência de um relativopoder monopólico por parte das AFP que, após um longo pro-cesso de fusões e aquisições, somam somente seis empresas, sen-do que três delas concentram a maior parte do capital acumulado.Essa situação decorre das barreiras à entrada geradas pelas eco-nomias de escala presentes no setor e pela própria regulação im-plementada. Esse poder monopólico se traduz em comissões e ta-rifas bastante elevadas cobradas pelas AFP, que, inclusive, pra-ticam discriminação de preços entre seus contribuintes. Soto(2005) estima que ao redor de 50% da acumulação potencial foidiluída por comissões e tarifas administrativas cobradas 13.

Por outra parte, como foi mencionado, uma das caracterís-ticas mais importantes do sistema previdenciário chileno, doponto de vista social, é a existência de uma garantia de pensõesmínima e assistencial para aqueles que não sejam capazes definanciar sua aposentadoria com contribuições ao sistema decapitalização. Evidentemente, essa política de bem-estar re-presenta um encargo adicional para o Fisco. Hoje em dia, es-tima-se que 11% dos contribuintes aposentados tenham pen-são mínima garantida pelo Estado, com um custo de 0,1% doPIB. Calcula-se que o envelhecimento da população, decorren-te da menor taxa de natalidade e do aumento da expectativa devida, eleve durante os próximos 20 anos a proporção de con-tribuintes que recebem pensão mínima e assistencial a aproxi-madamente 50%, o que equivaleria a 1,5% do PIB 14.

Devido a esses problemas, e em caráter absolutamente pró-ati-vo e não reativo, como habitualmente ocorre em nosso país, a Pre-

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sidenta Bachelet formou o citado Conselho As-sessor Presidencial para a Reforma Previdenciá-ria, cujos trabalhos foram realizados durante oano passado. Assim, após congregar 15 especia-listas na área, independentemente de sua filia-ção política, e realizar um amplo diagnóstico dasituação atual e futura do sistema previdenciá-rio, o conselho elaborou 70 propostas de refor-ma, que visam solucionar os problemas anterio-res. As reformas são de caráter microeconômico,ampliando a concorrência entre as AFP e au-mentando a cobertura geral, efetuando uma"sintonia fina" do sistema 15 . Em nenhum mo-mento se pretende voltar ao sistema antigo derepartição, cujos resultados para o país e para apopulação seriam com grande probabilidademuito inferiores. De fato, Cerda (2006) realiza oexercício contrário a Corbo e Schimdt-Hebbel(2003), estimando os efeitos macroeconômicosde haver seguido com o sistema de repartição noChile durante o período 1981-2004, com e semaumento da idade mínima de aposentadoria. Osresultados obtidos apontam para um déficit pre-videnciário equivalente a 20% do PIB, uma re-dução do estoque de capital de 11% e diminui-ções dos salários reais, do emprego e do PIB percapita em 2,4%,10% e 10%, respectivamente.

6. Conclusões e lições para o casobrasileiro

Que lições podem extrair-se para o caso bra-sileiro, a partir da experiência acumulada noChile durante mais de 25 anos de existência do

novo sistema previdenciário?Em primeiro lugar, a realização de uma refor-

ma previdenciária efetiva, que combinasse emalgum grau a participação estatal com um siste-ma de capitalização, ao redundar na geração deum "déficit de transição", requer a geração de su-perávits fiscais primários, que viabilizem a tran-sição para o novo sistema sem comprometer asolvência do Tesouro. No caso brasileiro, a rea-lização de uma política fiscal cada vez mais ex-pansionista por parte do atual governo, con-substanciada na redução do superávit primárioque acompanhará a implementação do Plano deAceleração do Crescimento (PAC) reduziriaprogressivamente a viabilidade dessa reforma.

Em segundo lugar, uma reforma da previdên-cia que introduz um sistema de capitalizaçãotende a produzir no médio prazo efeitos macroe-conômicos positivos não só na redução do défi-cit previdenciário, mas também em termos deaumentar a poupança, o investimento produti-vo, o emprego formal, a produtividade do traba-lho, os salários e a taxa de crescimento do PIB.Além disso, a maior disponibilidade de poupan-ça interna permite desenvolver o mercado de ca-pitais, o que possibilita reduzir o custo de capitaldas empresas e famílias, melhorar o uso dos re-cursos da economia, aumentando sua produti-vidade e reduzir a vulnerabilidade externa daeconomia. No caso do Brasil, é muito provávelque uma reforma previdenciária nos moldeschilenos também produza os efeitos anteriores,o que permitiria reduzir a carga tributária e con-tar, ao mesmo tempo, com uma taxa de juros realmais baixa, única via para produzir um impor-tante aumento da taxa de crescimento do PIB.

Em terceiro lugar, a experiência chilena mos-tra que uma reforma previdenciária baseada ex-clusivamente em aumentos da idade mínima deaposentadoria, como a que se esboça no Brasil,embora tendam a reduzir o déficit previdenciá-rio, são de caráter paliativo, tornando o financia-mento do sistema previdenciário insustentávelfrente aos efeitos da transição demográfica queocorre naturalmente nos países. Além disso, aomanter um sistema de repartição, o País perde aoportunidade de beneficiar-se a partir dos efei-tos macroeconômicos anteriores.

Por último, qualquer sistema previdenciáriodeve ser aperfeiçoado através do tempo, paraaumentar sua margem de cobertura frente ao en-velhecimento da população e à maior participa-ção da mulher no mercado de trabalho, fenôme-nos de caráter global nos dias de hoje. De qual-quer forma, na comparação com o sistema pre-videnciário chileno, a despesa com nossosistema de repartição equivale a 12,2% do PIB,

O Brasil poderia sebeneficiar com aexperiência chilenade reformaprevidenciária, quecarece de umasintonia fina, mas ogoverno nãopretende voltar aosistema antigo.Na foto, vista deSantiago do Chile.

Divulgação

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enquanto que no caso do primeiro, inclusive levando-se em con-sideração os cenários mais pessimistas, que mantém a situaçãoatual sem nenhuma modificação, as despesas previdenciárias al-cançariam a 4,5% do PIB (soma das projeções do "déficit de tran-sição" e das despesas com pensões mínima e assistencial). Alémdisso, num sistema previdenciário de capitalização, as econo-mias de escala presentes e a própria regulação realizada podemgerar importantes barreiras à entrada, o que reforça a necessida-de de assegurar as condições competitivas desse mercado, em be-nefício dos contribuintes do sistema e da sociedade em geral.

1 Banco Central do Chile.2 Piñera (1991) menciona que o sistema previdenciário chilenoantigo era regido pelo impressionante número de 11.395 leis, dasquais 10.532 foram ditadas para atender às necessidades de gruposde interesse específicos.3 Ver Wagner (1983), Acuña e Iglesias (2001) e Cerda (2006).4 Até o presente momento não se registrou nenhum caso de quebraou fraude no sistema previdenciário chileno.5 Os autores construíram vários cenários alternativos, quevariaram de acordo com os diferentes coeficientes de resposta dasvariáveis consideradas à reforma previdenciária. Os resultadosapresentados no presente artigo tomaram a média aritmética dosresultados contidos nos diversos cenários considerados.6 Os salários do setor informal aumentaram em decorrência damaior formalização do mercado de trabalho chileno, ocorrida apartir da reforma previdenciária, que reduziu a quantidade detrabalhadores disponíveis nesse setor, elevando seus rendimentos.7 O mercado de seguros chileno conheceu uma apreciável expansãoa partir da reforma previdenciária, pois como foi mencionadoanteriormente, as contribuições também contemplam aportes paraassegurar situações de invalidez ou falecimento do trabalhador.8 Para mais detalhes, ver Cifuentes, Desormeaux e Gonzáles (2002)e Walker e Lefort (2002).9 Soto (2005).10 Ministerio del Trabajo y Previsión Social (2006), p.5. A traduçãoé nossa.11 Soto (2005). A taxa de exclusão do sistema de previdência chilenoequivalente a 50% assinalada em entrevista recente ao Estado deSão Paulo pelo Ministro da Previdência Social, Nelson Machado,não corresponde à situação atual do sistema, e, sim, a uma projeçãopara 2026 realizada pelo citado Conselho Assessor Presidencialpara a Reforma do Sistema Previdenciário.12 Ministerio del Trabajo y Previsión Social (2006), p.6.13 Contudo, o mesmo autor reconhece que esses encargos têmapresentado tendência decrescente, que deverá seguir devido àmaturidade do sistema e aos ganhos de escala presentes.14 Ministerio del Trabajo y Previsión Social (2006),p.7 e Soto (2005).15 Para mais detalhes, ver "Ministerio del Trabajo y PrevisiónSocial (2006), p. 17-31.

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Cifuentes, Rodrigo; Desormeaux, Jorge eGonzález, Claudio (2002): "Capital Markets inChile: From Financial Repression to FinancialDeepening", Documentos de Política Económicanº 4, Banco Central de Chile, Santiago do Chile.

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Piñera, José (1991): DEL CASCABEL AL GATO:LA BATALLA POR LA REFORMA PREVISIONAL,Ed. Zigzag, Santiago do Chile.

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Valdés, Salvador (2005): "A Chilean Economist’sComment on Larry Rohter´s Reporting on ChileanPensions Appeared in The New York Times January27, 2005", Santiago do Chile. Texto não publicado.

Valdés, Salavador (2006): "Política Fiscal y Gastoen Pensiones Mínimas y Asistenciales", Seminariode Política Fiscal y Gasto en Pensiones Mínimas yAsistenciales, Centro de Estudios Públicos,Santiago do Chile, junho.

Wagner, Gert (1983): "Estudio de la ReformaPrevisional, Efectos en la Industria y en el País",Instituto de Economia, Pontifícia UniversidadCatólica de Chile, Santiago do Chile.

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Bibliografia

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O sistema presidencial brasileiro — como deresto em toda a América Latina — não vaibem. Não representando, o presidente da Re-pública eleito em 2º turno, senão a maioria cir-

cunstancial da população do País e não tendo aprendido, opovo brasileiro, a valorizar o Congresso Nacional, elegendorepresentantes que, em grande parte, não estão em condi-ções de corresponder às necessidades e ideais da sociedade.Dessa forma, o Brasil convive com um misto de demagogiaeleitoreira, denuncismo paralisador e hipocrisia governa-mental, em que os alicerces da democracia, embora aindasólidos, começam a ser minados.

Os sucessivos elogios de Lula e de seu partido a doisaprendizes de ditador, que são Hugo Chávez e Evo Morales,sinalizam que, se o País não tivesse os anticorpos democrá-ticos que ainda possui, possivelmente poderiam estar em an-damento ações monopolistas do poder semelhantes àquelasque são vistas na Venezuela e Bolívia, com censura à impren-sa, não renovação de concessões de serviços de radiodifusãosonora e de som e imagens aos que ousassem fazer críticas aogoverno, proibições de manifestações estudantis — cujas

A Revolução de 32 e a

A Revolução Paulistade 9 de julho de 1932quis impor umaautênticademocracia no País,com os governantesservindo o povo,e não como nosdias atuais, em quea Constituição épermanentementeviolada.

Reprodução

Paulo Pampolin/Digna Imagem

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passeatas terminam por ser impedidas, sob o fraco argumen-to de que as autorizações não foram requeridas a tempo.

O desrespeito a contratos, de que é exemplo a "gatunagemmoraliana" das instalações da Petrobras, a que o Brasil foi obri-gado a se submeter, entregando por preço pífio duas refinarias,assim como a costumeira convicção marxista de que o inimigonão tem que ser vencido apenas, mas eliminado, contaminamo continente ao ponto de Sua Santidade, Bento XVI, alertar pa-ra esta nova forma de autoritarismo, que avança, neste lado doOcidente. É o avanço do retrocesso, em que a manipulação dasmassas é a única moeda capaz de amortecer as reações do povodesejoso da democracia.

No Brasil, inclusive, a insegurança jurídica domina a socie-dade e é denunciada por professores de Direito, nas diversasáreas. A ameaça de "grampeagem" de todos os cidadãos, pon-do em xeque a privacidade das comunicações, e o pouco res-peito ao direito à imagem, cláusulas pétreas da Constituição,têm levado magistrados, que também são professores de Di-reito, a temer conversar ao telefone com seus alunos orientan-dos de cursos de pós-graduação, diante do risco de se tornaremsuspeitos de atuação irregular. Temem, também, conceder li-

Gervásio Baptista/ABr

Ives Gandra da SilvaMartinsProfessor Emérito das UniversidadesMackenzie, UNIFMU, UNIFIEO,UNIP e das Escolas deComando e Estado Maior doExército-ECEME e Superior deGuerra-ESG, presidente doConselho Superior de Direito daFecomercio e do Centro deExtensão Universitária - CEU

democracia em perigo

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minares, em ações cautelares, mandados de segurança ou "ha-beas corpus", mesmo em face do Direito líquido e certo do ci-dadão, que busca a prestação jurisdicional.

Uma conversa considerada suspeita pode gerar uma prisãotemporária para averiguações, com busca e apreensão de to-dos os arquivos e bens dos cidadãos, que podem revelar segre-dos pessoais — de nenhum interesse para a polícia — desven-trando a intimidade da pessoa, que a Constituição proíbe.

A carga tributária indecente leva, muitas vezes, o contri-buinte a não poder pagar o que deve, tornando-se um crimi-noso, enquanto nenhuma providência é tomada para conter osnotórios e inúteis desperdícios do governo na acomodação dealiados, mediante a criação de ministérios, secretarias, cargos efunções, criticados pela imprensa local e mundial, como umdos grandes entraves para o crescimento maior do Brasil.Quem muito trabalha e não pode pagar a confiscatória cargatributária é um criminoso. Quem pouco trabalha e desperdiçarecursos públicos com mordomias, viagens, secretos cartõesde crédito e multiplicação de exigências burocráticas sobre opovo, é considerado herói entre seus pares.

O Judiciário acuado; o Legislativo mais interessado nos seuspróprios benefícios; o Executivo desperdiçando o elevado ní-vel de tributos (o dobro da média mundial dos países emergen-tes) que arranca do cidadão brasileiro, a custa de ameaças deprisão e blitz; o Ministério Público dedicado a ajudar a exigirque o cidadão suporte um iníquo nível de imposição tributá-ria; e as Polícias Federal, Estadual e Municipal, mais voltadasem atingir a denominada "elite" empresarial, do que em com-bater o crime organizado e o narcotráfico, que dominam a na-ção; são o retrato de um país que, com os sinais trocados, perdea batalha do progresso para os principais concorrentes, entreos países em desenvolvimento.

Estou convencido de que, na nação, quem tem poder, inte-ressa-se mais por mantê-lo a qualquer custo, anestesiando opovo com operações cinematográficas para desviar a atençãode seus principais problemas: "excesso de governo e escassezde cidadania". O governante, de tudo se beneficia, e o cidadão,que deve sustentá-lo, vive em constante incerteza, pois é cha-mado apenas a pagar tributos e obedecer.

Por esta razão, há nuvens sobre a democracia latino-america-na, que começam a ser deslocadas para o território brasileiro.

Neste contexto, são ainda atuais as lições da Revolução de1932, em que o povo bandeirante lutou para que se elaborasse

Os ideais daRevolução de 1932ainda são atuais,quando o povobandeirante lutou poruma constituiçãodemocrática, emoposição ao golpegetuliano de Estado,obrigando Vargasa promulgar aConstituição de 1934.

Reprodução

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uma constituição democrática e cidadã, objetivando contra-por-se ao golpe getuliano de Estado. Seu gesto simbólico de re-sistir durante três meses, sem meios, sem armas, nem aviões(eram 6 aviões paulistas contra 44 do governo federal), e suarendição obrigaram Getúlio a promulgar a Constituição de1934. Infelizmente, no novo golpe de Estado, de 10/11/37, foiela revogada pela Lei Suprema de 1937, outorgada pelo mes-mo Getúlio e escrita por Francisco Campos, a quem os juristasda época chamavam de "Chico Ciência" e do qual diziam:"Quando as luzes de sua inteligência acendem, provocam cur-to-circuito em todos os fusíveis da democracia".

A Revolução Paulista de 9 de julho de 1932 objetivou, de ri-gor, impor uma autêntica democracia no País, com os gover-nantes servindo o povo, o verdadeiro destinatário das açõesdo Estado. E, não, como nos dias atuais, em que a Constituiçãoé permanentemente violentada, para gáudio dos governantes,no que diz respeito a direitos fundamentais, sem que o acuadoPoder Judiciário sinta-se com a coragem e a independência ne-cessárias para resguardá-los. Em matéria tributária, são cons-tantes as violações da lei suprema pelos governos que, inca-pacitados de conter as suas enormes despesas por inchaço damáquina adaptada à recepção dos aliados de ocasião, exigem"tributos" legais e ilegais, sob o beneplácito da Justiça, em que

se nota nítido receio dos magistrados de se tornarem "suspei-tos" de "beneficiar" contribuintes, quando apenas os protegemcontra tais excessos.

Pela primeira vez, uma constituição brasileira falou em am-pla defesa administrativa e judicial (art. 5º, inc. LV) e que qual-quer pessoa só pode ser considerada culpada mediante o trân-sito em julgado de decisão condenatória (art. 5º, inc. LVII). Noentanto, nunca a defesa foi tão restrita, inclusive com a aplica-ção de sanções políticas, desfigurando a imagem de pessoasexpostas pelas autoridades administrativas e policiais, comrespaldo do Judiciário, como agora.

São Paulo, em 1932, lutou para que o Brasil tivesse uma cons-tituição democrática, a preservar o domínio do povo sobre osgovernos. Os governados, na Constituição de 1934, eram osque dominavam e não os detentores do poder. Hoje, que acon-tece o oposto, tais ideais têm de ser resgatados, para que nós,cidadãos, possamos viver num real Estado democrático de Di-reito e não apenas num "Estado democrático de aparência",que na sua essência é autoritário, policialesco e norteado, ape-nas, pela desmedida ambição dos governantes, orientados pe-la máxima "o poder pelo poder".

Que falta faz, em 2007, a voz patriótica e vibrante de IbrahimNobre, o arauto da Revolução de 1932!!!

Em um gesto simbólico, São Pauloresistiu, durante três meses, sem

meios e sem armas.

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O legado doconstitucionalismo, no

jubileu de diamante

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A Liga Pró-Constituinte, daqual a ACSP fazia parte,

convocou a população parao comício dia 24 de

fevereiro na Praça da Sé.

A té que ponto estão vivas, 75 anosdepois, as idéias formuladas pe-los que levaram adiante a Revolu-ção de 1932? A mais importante, o

constitucionalismo, hoje não é negada porpraticamente ninguém no Brasil, a não seruns poucos extremistas isolados. A idéia, en-fim, de que a sociedade e seu governo devemreger-se pelo império da lei e da ordem, res-paldado por uma Carta aceita por todos eque proporcione garantias a cada cidadãofrente aos poderes do governo, que não podeser discricionário e nem arbitrário, mas temde seguir o que está previsto em uma cons-tituição e em leis aprovadas por congressos,assembléias e câmaras eleitos por sufrágiouniversal, está ple-namente vitoriosa.

É inconcebívelh o j e q u e v o l t e aocorrer a situaçãoprevalente em SãoPaulo nos primei-ros meses de 1932,em que os soldadosdo governo federalprovisório instituí-do após a Revolu-ção de 1930 e quegovernava atravésde decretos, "mar-c h a v a m p o r S ã oPaulo dando tirospara o alto em de-monstração de po-der e se serviam delojas e restaurantes,saindo sem pagar asdespesas", segundoartigo de Lúcia He-lena de Camargo noEspecial 9 de Julhodo Diário do Comércio, em 2004, além doque investiram violentamente diversas ve-zes contra manifestantes pacíficos, inclusivecom mortes.

Desse modo, hoje, os corpos armados, ne-cessários para garantir a lei e a ordem, têm emprincípio de auto-restringir-se às suas fun-ções específicas, segundo regras que prote-gem os direitos individuais e a incolumidadedos cidadãos, além do que as atividades dasociedade civil, como o comércio — funda-mental para a vida das pessoas —, precisamter a sua vigência e sua segurança garantidos.Quem obtém artigos em lojas, ou toma refei-ções em restaurantes, tem de pagar por isso,

sob pena de incorrer em punições previstasem leis e códigos de leis — um dos objetivosda Revolução de 1932, que hoje está aceito co-mo a situação que deve prevalecer. As mani-festações ordeiras, segundo a lei, não podemser reprimidas, muito menos com violência.Parece até difícil de crer que essa situação denormalidade tenha sido alguma vez contes-tada no passado. Mas que o regime constitu-cional nem sempre foi unanimidade é mos-trado pela carta de 17 de fevereiro de 1931, devárias entidades, tendo à frente a AssociaçãoComercial de São Paulo, em que se exige dochefe do governo federal provisório, GetúlioVargas, "a volta do nosso País, no mais breveprazo, ao regime constitucional".

Outra idéia daRevolução de 1932que está plenamen-te consagrada é a daunidade nacionalbrasileira; ou seja,segundo a palavrade seus líderes, en-fatizada no encerra-mento do manifestodo governo paulistaque reconheceu aderrota militar, re-digido pelo profes-sor de Direito Val-d e m a r F e r r e i r a :"Deu São Paulo tudoquanto podia dar aoBrasil! Tudo por SãoPaulo! Tudo pelo Bra-sil!" —, nunca se de-fendeu o separatis-mo, apesar da pro-paganda em contrá-r i o d o g o v e r n ofederal provisório.

É verdade que havia uma ínfima minoria deseparatistas em São Paulo, mas eles não ade-riram à Revolução Constitucionalista, que foina verdade um movimento para isolar os se-paratistas e para consagrar a unidade nacio-nal brasileira, pois a constituição almejadaera para todos os brasileiros, respeitadas asautonomias estaduais, não só de São Paulo,como de todos os Estados da Federação.

Afinal, a própria bandeira paulista, em no-me da qual os constitucionalistas lutavam,traz em seu quartel principal o mapa íntegrodo País. A unidade nacional brasileira hojenão é posta em xeque por praticamente nin-guém. Que o movimento de 1932 não era se-

Newton Santos/Hype

Reprodução/AE

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Paulo Pampolin/Digna ImagemQue o movimento de 1932 nãoera separatista está escrito no

próprio discurso em que odesembargador Ibrahim

Nobre (ao lado) fez em 25 dejaneiro na Praça da Sé

(abaixo). Em 20 de julho, emplena Revolução

Constitucionalista, a ACSPredigiu um texto negando a

acusação de separatismo. Umoutro grande comício foi

realizado na Praça da Sé no dia24 de fevereiro, organizado

pela Liga Pró-Constituinte.

RenatoPompeué jornalista eescritor, autor doromance-ensaio'O mundo comoobra de artecriada peloBrasil', EditoraCasa Amarela

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50 DIGESTO ECONÔMICO MAIO/JUNHO 2007

paratista está dito no próprio discurso emque o desembargador Ibrahim Nobre o inau-gurou, a 25 de janeiro, na Praça da Sé, ao lem-brar a saga dos bandeirantes: "Fogos da minhaTerra! Lume da Lareira Paulista! Em torno de ti,ao lucilar das tuas fagulhas, ao anseio ascendenteda tua flama, na terra estreme, sob a telha vã,quanta hora fluiu plácida e mansa, quanta hora delímpida esperança, quanta dor de mulher, de mãe,de esposa, chorando à espera de alguém que sealongara adentro pelo Sertão e que em busca dafortuna ia encontrar a Morte, e ao encalço da sortefundia uma Nação!"

Outro trecho de Ibrahim Nobre que cele-bra a unidade nacional brasileira: "Da tuacarne massapé e honesta, do teu ventre deMãe, fecundo e são, veio a alma que realizoua nacionalidade, imprimindo-lhe o sentidod a I n d e p e n d ê n c i a " .Mais um: "Tu deste geo-grafia ao Brasil. Essa terratoda, que aí se estende, e seesparrama e se perde por es-se mundo grande de Deus,tudo isso tem os seus limi-tes demarcados, não ape-nas pelos rios que se vadea-ram, pelas grimpas trans-postas, pelas florestas ven-cidas! Mas sobretudo pelassepulturas dos teus filhos,minha Terra".

Como se vê, ao contrá-rio de separatista, o pau-listismo da Revoluçãode 1932, aos olhos deseus mentores, era enca-rado como uma garantiae uma reafirmação, comraízes no passado remo-to, da unidade nacionalbrasileira; afinal, Nobrese refere à "América Bra-sileira", em grande partecriada pelos esforços se-culares dos bandeiran-tes em particular e dos paulistas em geral, e à"Brasilidade, a que deste, numa permanente re-núncia, as mãos, o ouro, o sangue!" E ele bra-dou: "Foste para o Brasil, em todas as suas Ho-ras, O Clarim! A Clareira! O Clarão!" Onde sepode enxergar separatismo nisso? Hoje pra-ticamente ninguém discute a unidade nacio-nal brasileira, e esse legado é em parte do mo-vimento de 1932, que paradoxalmente foiacusado de separatismo, a ponto de que a 20de julho, em plena Revolução Constitucio-

Fotos: Reprodução

Um legado importanteda Revolução de 1932

é que foi uma dasprimeiras vezes na

história do Brasil emque as mulheres, os

negros e os índiostiveram participação

relevante.A Legião Negra era

composta de negros etambém índios.

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nalista, numa reunião na Associação Co-mercial de São Paulo, foi redigido um textonegando essa acusação, de que o movimentopregava o separatismo, num Manifesto àNação, ou seja, ao Brasil, assinado por deze-nas de entidades.

Mas a idéia de unidade nacional brasileiradefendida pela Revolução de 1932 tinha ou-tro aspecto que permaneceu como herança eque hoje também ninguém discute: o da au-tonomia da população de cada Estado da Fe-deração para escolher seus governantes e le-gisladores regionais. Na época, os Estadoseram governados por interventores nomea-dos pelo governo federal provisório, muitasvezes nem mesmo residentes no Estado queadministravam. Isso hoje é inconcebível, masa autonomia dos Estados da Federação hojevigente e indiscutível é em parte mais um le-

g a d o d o m o v i m e n t oconstitucionalista.

Outro legado impor-tante da Revolução de1932, vigente ainda ho-je, é que ela foi uma dasprimeiras vezes na his-tória do Brasil em que asmulheres, os negros e osíndios tiveram partici-pação relevante. Pois,além de costurarem far-das e produzirem raçõese de atuarem como en-fermeiras, mulheres co-mo a cozinheira negraMaria José, conhecidacomo Maria Soldado,também participaramdos combates, em espe-cial na Legião Negra,composta também deíndios. Afinal, foi a prin-cipal conquista do mo-v i m e n t o d e 1 9 3 2 , aConstituinte de 1934,

que garantiu pela primeira vez às mulheresno Brasil o direito ao voto. Por isso mesmoduas mulheres, Maria Soldado e Nicota Pin-to Alves, estão sepultadas no Mausoléu doSoldado Constitucionalista, a lembrarem àsmulheres de hoje que sua maior e crescenteparticipação na sociedade está, em parte, li-gada ao movimento de 1932.

Assim, o maior legado da Revolução Cons-titucionalista é a unanimidade em torno da vi-gência de uma constituição democrática, paraassegurar, afinal, uma vida civilizada.

As mulheres tiveramparticipação ativa nomovimento. Elaseram responsáveispor costurarem asfardas, produziremas rações e atuavamcomo enfermeiras.O reconhecimentoveio na Constituiçãode 1934, com odireito ao voto.

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Reprodução

o dia em9 de julho de 1932:9 de julho de 1932:

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que São Paulo lutou pela democracia

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Fotos: Arquivo pessoal

A quebra da Bolsa de Valores deNova York, em outubro de 1929,trouxe conseqüências nefastaspara a economia mundial,

inclusive a brasileira — diversas fábricasfecharam e a cotação do café, principalproduto de exportação, despencou nomercado internacional. O resultado foi umaprofunda crise econômica, com altos índicesde desemprego e miséria da população. Foieste cenário que serviu como pano de fundopara a eleição presidencial de 1º de março de1930, que tinha como candidatos JúlioPrestes, apoiado pelo presidente WashingtonLuís, e Getúlio Vargas, líder da AliançaLiberal, formada por Minas Gerais, RioGrande do Sul e Paraíba. Era a época dapolítica café-com-leite, em que São Paulo eMinas Gerais se alternavam no poder.Washington Luís era o representante daoligarquia paulista, o que significava que ocandidato apoiado por Minas Gerais deveriaser o próximo presidente.

Mas em meio a denúncias de fraudes emvários níveis, venceu Júlio Prestes, queganhou, mas não levou. O assassinato dogovernador da Paraíba, João Pessoa, em 26

de julho de 1930, foi o estopim de umainsurreição armada no início de outubro domesmo ano, articulada pelos Estados do RioGrande do Sul, Minas Gerais e Paraíba. Nodia 24 de outubro cai o presidenteWashington Luís e Júlio Prestes é exilado.Assume o poder uma junta governativa,composta pelos generais Tasso Fragoso eMenna Barreto e pelo almirante Isaías deNoronha. Em 3 de novembro, Getúlio Vargasassume a chefia do governo provisório epromete uma nova constituição para o País.

Em São Paulo, duas forças dominavam ocenário político, o Partido RepublicanoPaulista (PRP), que representava aoligarquia local, e o partido Democrático(PD). Getúlio Vargas afastou os antigoslíderes do PRP do governo estadual e ossubstituiu por políticos do PD. Mas ainsatisfação era geral, já que o Paísatravessava uma grave crise econômica. Asituação se agravou quando Vargasnomeou João Alberto Lins de Barros, ummilitar pernambucano, interventor em SãoPaulo. Os democratas não aceitaram eexigiram a nomeação de um novointerventor, que fosse paulista e civil.

Em 16 de junho de1932, a ACSPorganiza recepçãoao interventor Pedrode Toledo e aoseu secretariado,com a participaçãode membrosda Frente ÚnicaPaulista.

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Descontentes, em fevereiro de 1932,membros do PD se uniram ao PRP eformaram a Frente Única Paulista (FUP),em oposição ao governo provisório, cujosprincipais lemas eram aconstitucionalização do País e a autonomiade São Paulo.

Diante da pressão popular, Vargas vaicedendo (ele teria dito: "Vamos dar um bifeao tigre, para que ele não tente devorar odomador") e em 2 março nomeia o ex-embaixador Pedro de Toledo novointerventor de São Paulo. Com 73 anos deidade e já cansado, Getúlio Vargas esperavaque Toledo fosse ponderado, pacífico emanobrável. Em maio de 1932, Vargastambém chegou a marcar nova eleição parao próximo ano, mas naquele momento amedida não surtiu efeito para conter osânimos, que já se exaltavam. No dia 23 demaio, uma multidão ocupou ruas, praças ejanelas de edifícios, alimentados pordiscursos inflamados de oradores como opromotor público Ibraim Nobre, JoséLefevre, Gomes Martins, Dario RibeiroFilho, Pereira Lima e outros. O povo lotou aPraça do Patriarca, seguiu pelo Viaduto do

Chá, Conselheiro Crispiniano e chegou aoPalácio dos Campos Elíseos. A ACSPconclamava o comércio a fechar suas portase a se juntar à multidão.

Na noite do mesmo dia, manifestantesreunidos na Praça da República resolveraminvadir a sede da Legião Revolucionária,entidade tenentista transformada noPartido Popular Progressista, dirigido pelogeneral Miguel Costa. Tiros foramdisparados para dispersar a multidão. Nofinal trágico, sobre a calçada, ficaram oscorpos de quatro jovens estudantes —Martins, Miragaia, Draúzio e Camargo, queficaram conhecidos pela sigla MMDC.

No dia 9 de julho, o movimento ganhouas ruas da capital e do interior de São Paulo,e no dia 10, Pedro de Toledo, ex-interventor, é aclamado pela massa,concentrada diante do Palácio dos CamposElíseos, governador de São Paulo. Asrádios conclamaram voluntários paradefender o Estado. Foi a maior mobilizaçãomilitar do País no século 20, envolvendo nototal mais de 135 mil homens, dos quaisapenas 35 mil eram paulistas As tropasfederais bloquearam as fronteiras e

No dia 10 de julho,Pedro de Toledo é

aclamadogovernador deSão Paulo pela

massa, diante doPalácio dos

Campos Elíseos.

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atacaram o interior. A violência doscombates foram cruéis: cidades eramabandonadas pelos moradores, saques eincêndios se alastravam pelas fazendas,comércios e indústrias. Bombardeios aéreosocorreram em cidades como Campinas,provocando pânico e protestos.

Conta-se que, ao saber que aviões estavamsendo usados para bombardear cidades,Santos Dumont, o "pai da aviação", caiu emprofunda depressão e, aos 59 anos, no dia 23de julho, cometeu suicídio, se enforcandocom uma gravata no Grande Hotel de LaPlage, no Guarujá, litoral paulista.

Com a guerra civil em marcha, aAssociação Comercial de São Pauloarticula-se rapidamente com as demaisentidades de classes e com o governopaulista, buscando desenvolver umprograma de ação para garantir anormalidade da população, a eficiência dosserviços de assistência civil e do alistamentoao Exército Constitucionalista. O presidente

Fotos: Reprodução

Manifestantes reunidos na Praça da Repúblicatentaram invadir a sede da LegiãoRevolucionária e são recebidos a tiros. Morremos jovens Martins, Miragaia, Dráuzio e Camargo,que ficaram imortalizados pela sigla MMDC.Abaixo, aviões foram usados nas batalhas.

Paulo Pampolin/Digna Imagem

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da ACSP, Carlos de Souza Nazareth, e demais membrosda diretoria assumiram diversas tarefas em prol domovimento. A entidade foi responsável pelo controle dereceitas e despesas da revolução, forneceu apoio materiale logístico para as tropas e desenvolveu campanhasimportantes, como "Capacetes de Aço para os SoldadosConstitucionalistas" e a "Campanha do Ouro para o Bemde São Paulo" (veja matéria pág. 67).

A inferioridade bélica dos paulista era muito grande edesde logo a situação se mostrou insustentável. Osgovernos do Rio Grande do Sul e Minas Gerais, emborafossem favoráveis à campanha pelaconstitucionalização, decidiram apoiar a força militar dogoverno federal. Isolados, os paulistas não tiveramcondições de manter por muito tempo o movimento. Em1º de outubro de 1932 assinaram a rendição. O saldo foitrágico: o confronto deixou 830 mortos, dos quais 630paulistas e 200 soldados das tropas federais. Por outrolado, os ideais que iluminaram o MovimentoConstitucionalista não se apagaram. Dois anos depois dofim do conflito, Getúlio Vargas convocou a AssembléiaConstituinte defendida por São Paulo.

A ACSP se articulacom outrasentidades e com ogoverno paulista,buscandodesenvolver umprograma de açãopara garantir anormalidade dapopulação, aeficiência dosserviços deassistência civile do alistamentoao ExércitoConstitucionalista.

Bandeira queficou hasteada

no LargoSão Francisco

durante aRevolução de 32

e que hoje estána sede do

jornal O Estadode S. Paulo.

Marcelo Min/AFGFotos: Reprodução

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58 DIGESTO ECONÔMICO MAIO/JUNHO 2007

O mapa ilustraas batalhastravadas entreo ExércitoConstitucionalistae as tropasfederais. Foi amaiormobilizaçãomilitar do Paísno século 20,envolvendo nototal 135 milhomens. Desdeo início ficouevidente adesvantagemde São Paulo.O confrontodeixou830 mortos,dos quais 630paulistas.

Repr

oduç

ão

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Paulo Pampolin/Digna Imagem

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Um herói quesaiu das fileirasda ACSP

Reprodução

Carlos de Souza Nazareth (esq.), na épocapresidente da ACSP, foi um líder destacadoda Revolução de 1932. Acima, comício naPraça da Sé, no dia 24 de fevereiro, quereuniu mais de 100 mil manifestantes.

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A Associação Comercial de SãoPaulo (ACSP) teve um papelrelevante no MovimentoConstitucionalista, em particular

pela corajosa atuação de seu presidente naépoca, Carlos de Souza Nazareth, queassumiu o comando da entidade em 11 defevereiro de 1932. O Brasil passava por umaprofunda crise econômica e política, com oPaís sendo dirigido por um governoprovisório, chefiado por Getúlio Vargas,que adiava o processo dereconstitucionalização do País para semanter no poder.

A ACSP articulou um amplomovimento, chamado Liga Paulista Pró-Constituinte, que serviu de apoio à FrenteÚnica Paulista (FUP), fruto da união entremembros do Partido Republicano Paulista(PRP) e Partido Democrático (PD), quetinha como principais reivindicações aautonomia de São Paulo, a nomeaçãoimediata de um interventor no Estado quefosse paulista e civil (no que foi atendido)e a convocação de uma AssembléiaNacional Constituinte. A Liga congregavadezenas de entidades representativas doEstado, que assinaram um manifesto emque se comprometeram a não pagarimpostos federais e estaduais até que asreivindicações fossem atendidas. Elatambém organizou um gigantesco comíciona Praça da Sé, no dia 24 de fevereiro domesmo ano, que reuniu mais de 100 milmanifestantes.

As atas das reuniões da ACSP mostram apreocupação do seu presidente com asituação do Estado. Foram várias ascorrespondências trocadas na época comGetúlio Vargas:

19 de maio de 1932

- "Sua Excelência Senhor Dr. GetúlioVargas, Chefe do Governo Provisório. AsAssociações representativas do comércio,indústria e da lavoura do Estado de São Paulotêm a honra de vir à presença de VossaExcelência, a fim de pedir a sua esclarecidaatenção para a grave situação deste Estado,que está com sua vida em suspenso diante dacrise, já excessivamente prolongada de suaadministração (...) Traduzindo as apreensõesgerais, as corporações das classesconservadoras apelam para V. Excelência nosentido do interventor Pedro de Toledo (...) serautorizado a dar à presente crise a solução

urgente que ela reclama, organizando semdemora o seu Secretariado definitivo. Carlosde Souza Nazareth."

20 de maio de 1932

- "Senhor Carlos de Souza Nazareth,Presidente da ACSP. Acuso recebimento vossotelegrama, que tomei na melhor consideração,informando-vos que o assunto nele tratado seráresolvido ainda esta semana e para facilitar-lhea solução pedirei ao interventor ouvir seussignatários, representantes do comércio,indústria e lavoura de São Paulo, os quais nãolhe negarão certamente a sua colaboração.Cordiais saudações. Getúlio Vargas."

É indiscutível a relevância da atuaçãoda ACSP junto ao governo provisório até aintervenção do embaixador Pedro deToledo, que embora há muito tempoafastado do Estado, mereceu o apoio daFUP e acabou aderindo ao movimentoconstitucionalista. No dia 22 de maio,Getúlio Vargas envia o seu ministro daFazenda, Oswaldo Aranha, para se reunircom o interventor Pedro de Toledo.Temia-se que a intenção era pressionar aformação de um secretariado tenentista,alinhado com a ditadura de Vargas.Várias manifestações ocorreram na cidade.No dia 23 de maio o movimento ganhouproporções gigantescas. A ACSPconclamou o comércio a fechar suasportas e a se juntar à multidão.

O povo ocupou ruas, praças e janelasde edifícios, ouvindo discursosinflamados de oradores, como opromotor público Ibraim Nobre, JoséLefevre, Gomes Martins, Dario RibeiroFilho, Pereira Lima e outros. A multidãolotou a Praça do Patriarca, dirigiu-se aoViaduto do Chá, ConselheiroCrispiniano, até chegar ao Palácio dosCampos Elíseos. Nesta mesma noite,manifestantes reunidos na Praça daRepública tentam invadir a sede daLegião Revolucionária, uma entidadepró-Vargas. Foram recebidos a tiros.Morreram os jovens Martins, Miragaia,Dráuzio e Camargo, imortalizados pelasigla MMDC.

Pedro de Toledo se alinhou com ospaulistas e formou seu secretariado combase em nomes sugeridos pelo promotorIbraim Nobre. No dia 16 de junho, a ACSPorganiza uma recepção ao interventor

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Reprodução/AE

Os principais líderes da Revolução de 1932 foram presose levados pra a Casa de Correção do Rio de Janeiro.

Na primeira foto da página, Carlos de Souza Nazareth estáem pé na segunda fileira, é o primeiro da direita para a

esquerda. Juntamente com outras lideranças domovimento, Nazareth foi deportado para Portugal a

bordo do navio Pedro I. Ele está de pé, na primeira fileira,é o primeiro da esquerda para a direita.

Arquivo pessoal

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federal e ao seu secretariado, com aparticipação de membros da Frente ÚnicaPaulista. Em seu discurso, publicado nojornal O Estado de S. Paulo, o presidenteCarlos de Souza Nazareth disse:

"(...) em torno do nosso governo, que não é hojesomente uma expressão da sociedadepoliticamente organizada, mas também umsímbolo da dignidade paulista, congregam-setodos os que aqui nasceram e que aqui vivem,todos os que pensam, trabalham e produzemanimados pelos mesmos ideais. Já agora não soissomente o delegado do governo provisório, soistambém o mandatário do povo, que vos outorgou,de modo inequívoco, os poderes que só a elepertencem nas democracias fundadas no direito ena sociedade (...)"

Dois dias depois, 18 de junho, o presidenteda ACSP é homenageado no Clube Comercial,solenidade que reuniu cerca de 300 pessoas,entre representantes do governo, da Liga Pró-Constituinte, associações de classe, centros egrêmios acadêmicos. Em seu discurso,Nazareth enfatizou:

"(...) De São Paulo, meus senhores, deve partiro grande gesto de paz, a palavra de transigência ede concórdia, para a maior grandeza do Brasil.Cabe à nossa terra a grandiosa missão deserenidade. Se os paulistas demonstraram o seuvalor cívico sabendo ser soldado quando foipreciso, também sabe persuadir quando é mistercongraçar e justo quando deve julgar.

Meus amigos, São Paulo exige que todos osseus filhos estejam unidos. São Paulo unido seráforte, forte será livre e livre será feliz. Que a nossasociedade anatematize aqueles que pretendemromper essa união."

Em 9 de julho de 1932 estoura a RevoluçãoConstitucionalista. Carlos de Souza Nazarethe os membros da diretoria da ACSP

O Obelisco doIbirapuera é ummonumento em

homenagem aosheróis da Revolução

de 1932. No seuinterior há um

mausoléu, onde seencontram os restosmortais de Carlos de

Souza Nazareth.

Alex Ribeiro/DC

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assumiram inúmeras tarefas para auxiliar omovimento. Foram responsáveis pelocontrole de receita e despesa, além de seremum importante elo de comunicação entregoverno e entidades de classe, comércio,indústria e agricultores. A ACSP foi aresponsável pelas campanhas de produçãode capacetes e de doação de ouro (Ouro parao Bem de São Paulo).

Nazareth chefiou pessoalmente oDepartamento de Abastecimento e dirigiuoutros serviços, que tinham o objetivo depromover a assistência à frente de combatee retaguarda, incluindo o auxílio àsfamílias dos voluntários. O presidente daACSP chegou a fazer um apelo pela RádioEducadora Paulista aoscomerciantes e às indústriaspara que não aumentassemos preços dos produtos eque garantissem oemprego e os saláriosdos empregados quedesejassem alistar-se ao movimento.Tudo isso paraevitar que apopulação fossepenalizada aindamais com asituação.

Em discursotransmitido pela RádioSociedade Record,Carlos de Souza Nazarethafirmou: "Não foi senão pararestituir ao País a tranqüilidadede que o fizera órfão a ditadura queSão Paulo deixou a alavanca - utensílio dapaz - e apanhou o fuzil - utensílio da guerra. Sehavia de mandar emissários ao Rio, para insistirnaquele jogo inútil de conferências, que a nenhumresultado prático chegavam, preferiu enviar seusfilhos para as trincheiras, com autoridade paranegociar ao som dos canhões da liberdade, o únicoacordo possível: o acordo da vitória!"

Entre agosto e setembro os combatesforam ferozes e a desvantagem dospaulistas frente às forças federais eraevidente. Soldados de Minas Geraisatravessaram a fronteira e ameaçavam ascidades de Cruzeiro e Campinas; tropasfederais tomam Itapira (próximo a MogiMirim), Pinheiros, Lavrinhas e outrascidades do Vale do Paraíba. A últimabatalha foi em torno de Campinas, que foibombardeada. Em 1º de outubro é assinado

o armistício, com o fim da guerra.Após a rendição dos paulistas, Carlos de

Souza Nazareth, juntamente com outroslíderes do movimento, foi preso, enviado àCasa de Correção do Rio de Janeiro e depoisexilado em Portugal, onde ficou por doisanos até o País restabelecer o regimedemocrático. Da prisão, após saber queseria deportado, Nazareth enviou umamensagem por telégrafo para a diretoria daACSP, concluída com a célebre frase, quetornou-se o seu lema: "Não esmorecer paranão desmerecer".

Ao regressar ao Brasil, Carlos de SouzaNazareth assumiu a presidência daCompanhia de Armazéns Gerais e mais tarde

foi eleito deputado na assembléiaEstadual Constituinte até 1937.

Deixou a política e sededicou às atividades

relacionadas com ocomércio e a indústria.

Foi presidente daBolsa de Mercadoriasde São Paulo(BMSP, que emmaio de 1991foi incorporadaà BM&F).

Carlos de SouzaNazareth faleceu no

dia 28 de março de1951 por problemas

cardíacos. Seis anosdepois, seus restos

mortais foramtransferidos para o

mausoléu no Obelisco doIbirapuera da Revolução de 1932.

Em 19 de agosto de 2003, o governadorGeraldo Alckmin, por meio do DecretoNº 48.033 oficializou a criação do ColarCarlos de Souza Nazareth, instituídopela Associação Comercial de São Paulo,que tem por objetivo homenagearpersonalidades brasileiras ou estrangeiras,que por seus méritos pessoais e relevantesserviços prestados a tudo quanto dizrespeito à cidadania, tenham-se tornadodignas de reconhecimento público.Trata-se de uma cruz de Malta esmaltadade amarelo e perfilada de ouro, com 75 mmde extremo a extremo de seus ramos,com a efígie de Carlos de Souza Nazareth,de perfil oitavado e no reverso umdisco trazendo o emblema da AssociaçãoComercial de São Paulo.

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A fachada do prédioOuro para o Bem deSão Paulo, reproduza bandeira paulistatremulando. Acima,placa fixada no hall.

Ale

x Ri

beiro

/DC

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SOTERRADO

TESOURO HISTÓRICOTESOURO HISTÓRICO

SOTERRADOAlex Ribeiro/DC

Alex Ribeiro/DC

Cássio SchubskyDiretor Editorial da EditoraLettera.doc, bacharel em

Direito pela USP e emHistória pela PUC/SP,autor de Advocacia – a

trajetória da Associaçãodos Advogados de São

Paulo e co-autor de Aheróica pancada – CentroAcadêmico XI de Agosto:

cem anos de lutas [email protected]

ACampanha "Doe Ouro para o Bem deSão Paulo" é um episódio relevanteda História do Brasil. Mas ficou sem-pre relegada a segundo plano pela

historiografia, a notas de rodapé, ao limbo.Há, sem exagero, várias centenas de livros

escritos sobre a Revolução Constitucionalistade 1932. Sobretudo relatos do f ron t , dos cha-mados heróis de guerra. Já sobre a Campanhado Ouro, nada, ou quase nada. É, no mínimo,intrigante... Afinal, trata-se de uma mobiliza-ção cívica que, durante várias semanas, envol-veu dezenas de milhares de participantes, comorganização extremamente sofisticada e comexpressivos resultados numéricos (seja emquantidade de doadores, ou em volume de re-cursos arrecadados). Há emoção nisso tudo.Lances pitorescos de sobra. Crime, inclusive –como se verá adiante. Um verdadeiro tesourohistórico. Soterrado pelo esquecimento.

Bem, comecemos nossa história pelo princí-pio. Quando resolvi mudar a Editora Lette-ra.doc para o centro da cidade, em fins de 2005,encantou-me, desde logo, o prédio Ouro parao Bem de São Paulo, localizado no Largo daMisericórdia, a duas quadras do Páteo do Co-légio. A placa fixada no hall de entrada chamaa atenção pelos dizeres: "Irmandade da Santa

Casa de Misericórdia de São Paulo – este edi-fício foi construído com o ouro angariado parao bem de São Paulo em 1932". Engenhada peloescritório de arquitetura Severo e Villares, su-cessor de Ramos de Azevedo, a fachada doprédio, com suas formas recurvadas, repro-duz a bandeira paulista tremulando.

Farejei: "aí tem história". E, já com a EditoraLettera.doc instalada no prédio, pus-me a pes-quisar. Eu já ouvira falar na Campanha do Ou-ro de 32 e sabia da confusão que reinava entreela e sua congênere, a campanha "Doe Ouropara o Bem do Brasil", organizada por AssisChateubriand e seus Diários Associados emprol do golpe civil-militar de 1º de abril de1964. Era tudo que eu sabia.

Clica em sites de busca na internet daqui;consulta bibliotecas e livrarias dali; enfim,concluí, depois de algumas semanas de pes-quisa, que o assunto era muito maltratado pelahistoriografia.

Já estava desistindo de encontrar qualquerlivro específico, quando, por obra do destino,deparei, em um sebo, exemplar, em dois gros-sos volumes, com detalhadas informações so-bre a Campanha do Ouro de 1932. Quis o livrei-ro vultosa quantia. Negociante, ele já se acos-tumara com minha presença de curioso, pois

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A campanha do ouro foi iniciada apartir de uma reunião na ACSP, em 8de agosto de 1932. Já em 12 de agosto,começam os trabalhos de arrecadaçãode recursos, que se alongam atésetembro. Cerca de 450 kg de ouroforam destinados ao Tesouro doEstado de São Paulo para a comprade artefatos militares e à lutarevolucionária. Percebendo asupremacia das tropas federais, em23 de setembro o excedente é doadoà Santa Casa de Misericórdia.Temia-se perder o dinheiro arrecadado.

Fotos: Reprodução

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69MAIO/JUNHO 2007 DIGESTO ECONÔMICO

eu vivia a importuná-lo, de tempos em tem-pos, em busca do ouro perdido... Ele ameaçou:"Compre logo, ou ficará sem. Chegou hoje.Trata-se de uma raridade, vou vender rápido".Agradeci, "comovido", e resolvi dar uma bus-ca extra em bibliotecas. Acabei por encontrarum exemplar da raridade na Mário de Andra-de, que, como mostram os registros de consul-ta, mofava esquecido há décadas.

Larguei, sem pestanejar, qualquer preocu-pação comezinha de editor e empresário, de-dicando-me a ler, ávido, o achado, dias segui-dos, com ganas de historiador. E os olhos fo-ram se arregalando a cada descoberta.

A edição deste Relatório das Comissões deDireção e Executiva da Campanha do Ouro e daComissão da Campanha do Ouro da Santa Ca-sa de Misericórdia de São Paulo data de 1940 efoi publicada em livro pela Editora Revista dosTribunais. (Curiosamente, nas minhas primei-ras consultas, há cerca de um ano, a obra estavaalocada na seção geral da biblioteca; em recentebusca pelo livro, para checar informações paraa redação do presente artigo, fui encontrá-lo,depois de um bom périplo na Mário de Andra-de, na seção de livros raros).

Em outubro de 1934,a Santa Casa de

Misericórdia repassapara a ACSP barras

de ouro e pratafundidas com os

objetos arrecadadosna campanha. Essas

peças fazem parte doacervo da entidade.

Assina o relatório Synesio Rangel Pestana,um dos três representantes nomeados pela As-sociação Comercial de São Paulo para integrara Comissão Executiva da Campanha do Ouroe produzir o inventário dos episódios relativosa ela. Os outros dois membros eram João Mau-rício de Sampaio Vianna (que faleceu no de-correr dos trabalhos) e José Carlos de MacedoSoares (que se ausentou de suas tarefas).

Chama a atenção, desde logo, que se passa-ram cerca de oito anos entre o fim da Campa-nha do Ouro e a publicação do relatório. O pró-prio autor, Rangel Pestana, esclarece as difi-culdades encontradas para relatar, a contento,as atividades da Campanha. De todo modo, orelatório é um mapa da mina, que oferece pis-tas valiosas sobre a história do movimento dearrecadação de recursos para a Revolução de1932 e seus desdobramentos.

Na introdução, fica explicado que a Campa-nha do Ouro foi iniciada a partir de reuniãorealizada na sede da Associação Comercial deSão Paulo, em 8 de agosto de 1932. Já em 12 deagosto, começam os trabalhos de arrecadaçãode recursos, que se alongam até setembro. Cer-ca de 450 Kg de ouro foram destinados ao Te-

Agliberto Lima/DC

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70 DIGESTO ECONÔMICO MAIO/JUNHO 2007

souro do Estado de São Paulo para a comprade artefatos militares e suporte à luta revolu-cionária. Percebendo a supremacia das tropasfederais no circo das operações de guerra, con-suma-se, em 23 de setembro, a doação do mon-tante excedente arrecadado para entidades fi-lantrópicas, com destaque para a Santa Casade Misericórdia de São Paulo. Temia-se que,além da guerra, os paulistas também perdes-sem o ouro e o dinheiro arrecadados.

Com justeza, alerta o autor que, antes de aAssociação Comercial de São Paulo, a suacongênere de Santos tivera a idéia de iniciaruma campanha de arrecadação de recursos.Centralizada a Campanha do Ouro na capi-tal paulista, foram organizadas duas comis-sões: a Diretiva (comandada por José MariaWhitaker) e a Executiva (presidida por An-tonio Prado Jr.). Esta, por sua vez, organizoudois departamentos: Direção Artística e Di-reção de Publicidade.

A Direção Artística – capitaneada pelo artis-ta J. Watsch – cuidou de projetar cartazes depropaganda e modelos de diplomas, meda-lhas e anéis comemorativos. A Direção de Pu-blicidade – a cargo do jornalista Francisco Pati– elaborava releases diários para a imprensasobre novidades da Campanha do Ouro.

Um concurso organizado pela Direção Ar-tística estimulou a produção de cartazes come-morativos e de propaganda, e os três primeiroscolocados receberam prêmios em dinheiro.Houve exposição dos cartazes concorrentes,na Rua Libero Badaró – "visitadíssima", se-gundo o relatório.

Foi montada uma sofisticada estrutura lo-gística para arrecadação, avaliação e fundi-ção do ouro, envolvendo uma rede espalha-da pelo Estado inteiro. Jóias e objetos de arte,além de dinheiro, também foram fartamentedoados. No total, foram realizadas cerca de70 mil doações, incluindo – número assom-broso! – exatas 56.283 alianças de casamento,que foram trocadas por anéis de latão com ainscrição "doei ouro para o bem de São Pau-lo". O valor total arrecadado com a Campa-nha, segundo dados da Santa Casa, foi de

Acima, anéisentregues pelapopulação para acampanha 'DoeOuro para o Bemde São Paulo'.Foram mais de 56mil anéis doados.

Paul

o Pa

mpo

lim/D

igna

Imag

em

Agliberto Lima/DC

Os anéis e outrosobjetos eram

depositados emuma salva de prata

(ao lado). Foramcontabilizadosmais de 70 mil

doações.

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71MAIO/JUNHO 2007 DIGESTO ECONÔMICO

6.648:499$010 (seis mil e seiscentos e quaren-ta e oito contos, quatrocentos e noventa e no-ve mil e dez réis). A relação completa de doa-dores, com as cifras doadas por cada um, in-tegra uma boa parte do primeiro volume(doadores da capital paulista) e o segundovolume inteiro do relatório (comos donativos do interior doEstado de São Paulo e deoutros estados da Fe-deração).

Depois que osrecursos foramrepassados pelaAssociação Co-mercial para aSanta Casa deMisericórdia deSão Paulo, assi-nala Synesio Ran-gel Pestana, sobre-vém um fato insólito.Transcrevo o trecho intei-ro (página 9 do relatório):

"A Campanha do Ouro para oBem de São Paulo, tão bri-lhantemente iniciada pe-las comissões da As-sociação Comer-cial de São Pauloe levada a termopor elas comtanta felicida-de, foi conti-nuada pela co-missão da San-ta Casa com omesmo êxito atéquase o final. Infeliz-mente, já no fim de sua ta-refa, uma lamentável ocor-rência veio empanar o brilhode sua gestão.

Um funcionário deso-nesto, iludindo a confiançados membros da Comissãodo Ouro, que nele confiaramporque lhes foi apresentadopor honrado cavalheiro,porque vinha servindo à Comissão Executiva daAssociação Comercial desde o início da Campa-nha e porque o nome tradicional de sua família,que ele tão mal usou, era para nós um penhor deprobidade, apropriou-se, indebitamente, de umaparcela da quantia obtida, correspondente maisou menos a um décimo da cifra apurada na segun-da fase da Campanha.

A Irmandade da Santa Casa de Misericórdia deSão Paulo, como era do seu dever, propôs ação civil ecriminal contra o criminoso, tendo obtido senten-ças favoráveis, com a condenação do réu, que cum-priu a pena imposta, não ressarcindo porém o pre-juízo material causado, apesar de compelido por

sentença passada em julgado, porquenão teve recursos para restituir

a quantia desviada".Rangel Pestana nãodeclina o nome do

larápio e nenhumdetalhe adicionalsobre o delito e oc um pr im en toda pena de re-clusão. Seja co-mo for, com o di-

nheiro restanteda Campanha, er-

gueu-se o edifícioOuro para o Bem de

São Paulo, ainda hoje pa-trimônio da Santa Casa de São

Paulo, e beneficiaram-se dezenasde outras entidades bene-

ficentes paulistas.Enfim, há mui-to história para

se contar so-bre a Cam-p a n h a d oOuro para oBem de SãoP a u l o . É

j u s t am e n t eisso o que pre-

tendemos fa-zer, como resulta-

do da pesquisa quedeverá ser publicada pela

Editora Lettera.doc, naforma de um livro rechea-do com documentos, ilus-trações e fotos. O tesourohistórico merece ser reve-lado. E relembrado.

Nota do autor: A SantaCasa de Misericórdia de São Paulo mantém,em sua sede, um museu com objetos, livros edocumentos sobre a Revolução de 1932 e aCampanha do Ouro; a Associação Comercialde São Paulo possui ampla biblioteca, com mi-lhares de volumes. Em nenhum dos dois lo-cais, encontrei exemplar do relatório de Syne-sio Rangel Pestana.

Quem fazia uma doação,recebia em troca uma

medalha ou anel de latão,com uma inscrição

atestando que haviaparticipado da campanha.

Agliberto Lima/DC

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72 DIGESTO ECONÔMICO MAIO/JUNHO 2007

Ale

x Ri

beiro

/DC

DomingosZamagnaJornalista eprofessor deFilosofia

Bento XVI no Brasilde todos os santosBento XVI no Brasilde todos os santos

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73MAIO/JUNHO 2007 DIGESTO ECONÔMICO

O s fatos religiosos são extensosdemais, no espaço e no tempo,para serem desprezados ou ig-norados. Deixar de acompa-

nhá-los é privar-se de importante fonte de co-nhecimento da nossa realidade, mormentenos países latino-americanos, africanos easiáticos. Engana-se quem pensa que possainterpretar corretamente os povos dessas na-ções sem levar em conta o fator religioso. Porisso, a visita do papa Bento XVI ao Brasil, en-tre 9 e 14 de maio, mereceu destaque na im-prensa e despertou os estudiosos para as aná-lises acerca do catolicismo brasileiro, seu pas-sado e seu porvir.

Sabidamente, o Brasil é o país com o maiornúmero de católicos no mundo, estimados em127 milhões, equivalentes a 74% da popula-ção. Na América Latina ele é seguido pelo Mé-xico (91 milhões, 90,31%), Colômbia (38 mi-lhões, 90%), Argentina (33 milhões, 92,22%),Peru (23 milhões, 89%) e Venezuela (21 mi-lhões, 88, 6%). Os 38 países da América Latina,cujas populações perfazem 526 milhões de ha-bitantes, abrigam 431 milhões de católicos.

O que chama a atenção dos observadores éque esse imenso rebanho católico vem decres-cendo no Brasil, numa proporção tal que, per-sistindo as condições atuais, dentro de mais al-gumas décadas, o catolicismo poderá vir a seruma confissão religiosa minoritária, sobretudoem relação às chamadas "seitas evangélicas".Mas o catolicismo não está sozinho nessa vicis-situde, pois fenômeno análogo sucede com ou-tras igrejas cristãs históricas, tais como o lutera-nismo, o anglicanismo, o metodismo etc.

Para dirigir os católicos brasileiros, a Igrejadispõe de 429 bispos, 16.800 sacerdotes, 1.250diáconos, 35 mil religiosas e meio milhão de ca-tequistas, numa extensa capilaridade de insti-tuições que abrange dioceses, paróquias, cape-las, missões, movimentos, pastorais, creches,colégios, universidades, hospitais, editoras,jornais, revistas, rádios, televisões etc.

Sempre houve quem dissesse que a dimi-nuição dos fiéis é devida à escassez do clero.Costuma-se dizer que o número de agenteseclesiais é insuficiente para as necessidadesda Igreja brasileira. Se a comparação for feitacom a Itália, o Canadá, a Polônia, a Espanha...

Missa no Campode Marte, em São

Paulo: o imensorebanho católico

vem decrescendo,perdendo fiéis

para seitasevangélicas.

Agliberto Lima/DC

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74 DIGESTO ECONÔMICO MAIO/JUNHO 2007

Alex Ribeiro/DC

o número de sacerdotes e religiosos é realmen-te pequeno. Pequeno e extremamente mal dis-tribuído pelo território nacional. Mas a Igrejabrasileira ainda é muito reticente ao trabalhodos leigos, que se sentem marginalizados. Apromoção dos leigos é vista por certas lideran-ças católicas como perigosa e competitivacom o clero. Clero nem sempre bem prepara-do intelectualmente, tantas vezes aquém dasexigências que o mundo moderno requer daslideranças, inclusive as religiosas. Ora, dado osistema centralizador que caracteriza a prag-mática do catolicismo, é impossível qualquerrenovação eclesial sem uma renovação dopróprio clero. Parece ser insuficiente o au-

mento de sacerdotes para a repetição de prá-ticas e estruturas que demonstram fadiga pas-toral. Alguma providência deverá ser tomadase a Igreja desejar reverter a situação de cres-cente perda de fiéis.

A vinda do papa Bento XVI ao Brasil se in-seriu neste contexto: uma tentativa de robuste-cimento do catolicismo. Para isso, os estrategis-tas eclesiásticos tomaram algumas iniciativas.

A CANONIZAÇÃO DE FREI GALVÃO

O papa dispõe de um arsenal de símbolos,que muitas vezes exerceram grande poder deconvencimento na história do cristianismo.Um deles é a canonização dos santos. A cano-nização é a proclamação de que o Evangelho,do qual a Igreja se considera guardiã, não éuma utopia; ele pode ser vivido por homens emulheres no cotidiano. Não existe uma reser-va de mercado para a santidade: escravos, sol-dados, crianças, casais, religiosos, bispos e pa-pas, jovens, doentes, grandes pecadores, ope-rários, prisioneiros... todos podem ser santos esantas. Depois de 500 anos de cristianismo, jáera hora de o Brasil também produzir os seussantos. Frei Galvão é o primeiro de uma lista deespera que já passa de trinta. Não deixa de serum estímulo, os brasileiros também poderãoreceber as honras dos altares. Mas vai depen-der deles, isto é, se viverem o Evangelho, comoé pregado pela Igreja.

O ENCONTRO COM OS JOVENS

O nosso país é constituído por uma popula-ção jovem e pobre. O papa quis encontrá-los emduas ocasiões: no estádio do Pacaembu e na Fa-zenda da Esperança. No primeiro encontro, opapa falou sobre os valores, pregando um cris-tianismo vigoroso, sem concessões ao hedonis-mo, às licenciosidades. Repetiu a doutrina clás-sica da Igreja: relações sexuais reservadas aoâmbito do casamento; condenação aos contra-ceptivos, ao aborto, aos homossexualismos;proteção da infância, valorização da família eda educação religiosa dos filhos. Um encontro,contudo, reservado a convidados, portanto ajovens católicos já motivados e de certo modoem sintonia com o que o papa lhes dizia.

O segundo encontro foi com os assistidospela pastoral especializada na recuperação dedependentes de drogas. Mais importante quetudo foi o papa ter ido até lá, dando visibilida-de a uma obra de grande sucesso, com méto-dos terapêuticos alternativos, com especialênfase para o trabalho, os esportes, a solidarie-

Já era hora de oBrasil tambémproduzir osseus santos.Frei Galvão éo primeirode uma lista deespera, que jápassa de trinta.

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75MAIO/JUNHO 2007 DIGESTO ECONÔMICO

dade e a oração. O papa deixou uma mensa-gem forte (para quem conhece a linguagem re-ligiosa) de condenação ao narcotráfico, essaforma de criminalidade covarde, que envene-na os adolescentes e jovens, destrói famílias einstitucionaliza a violência numa extensa ca-deia, desde a produção até a distribuição e oconsumo dos tóxicos, deixando um saldo decorrupção, doença e morte. É sabido que asIgrejas todas podem dar uma grande contri-buição, sobretudo na educação e prevençãocontra o uso das drogas.

BENTO XVI E AS AUTORIDADESBRASILEIRAS

Por uma série de eventos de ordem histórica,o sucessor do discípulo de Cristo, o humildepescador Pedro, tornou-se também um chefe deestado; estado minúsculo, mas reconhecido porquase todas as nações do mundo. É sabido que aSanta Sé, através do Estado da Cidade do Vati-cano, desenvolve intensa ação diplomática nomundo. E o Vaticano sempre teve grande rela-cionamento com o Brasil. Embora o papa tenhavindo em missão pastoral, não teria sentido nãoser recebido pelas autoridades da República,nem poderia ele deixar de retribuir-lhes os ges-tos de cortesia em nome da nação brasileira.

Ao presidente da República, o papa solici-tou duas coisas: a possibilidade da introduçãodo ensino religioso nas escolas públicas e umaagilização para os vistos de entrada destina-dos a religiosos estrangeiros que venham tra-balhar com populações pobres e marginaliza-das. Essas práticas já existem em muitas na-ções do primeiro mundo, sem causar qualquertipo de atrito. Mas o papa teve de ouvir do pre-sidente da República o que seus assessores cer-tamente lhe sopraram aos ouvidos: o Brasil éuma República laica! Coisa que o papa já sabia,como professor de universidade alemã, antesque o atual presidente da República atingisse ouso da razão. Talvez, se houvesse ensino reli-gioso — católico, judaico, protestante, muçul-mano, budista etc. — nas escolas, obviamentevoluntário e sem onerar os cofres da nação, aRepública não tivesse chegado ao descalabroem que se encontra em matéria de corrupçãodo Executivo, Legislativo e Judiciário.

A ABERTURA DO V CELAM

Bento XVI chegou a se reunir com os bisposbrasileiros na catedral da Sé, num momento deoração. Mas apresentou-lhes um discursoquase burocrático, uma aula de porte médio,

resumindo matéria que até os seminaristas co-nhecem de cor. Assim também aconteceu noencontro com os representantes das religiõesnão-católicas; tão rápido, não houve diálogoalgum. Talvez tenha se poupado para a reu-nião seguinte.

Com efeito, parte importante da visita papalfoi a abertura da V Conferência Episcopal daAmérica Latina e do Caribe. Não somente osolhos da América Latina e do Caribe, mas os domundo inteiro se voltaram para a reunião nosantuário nacional de Aparecida-SP. Desde areunião de Medellín (1968) esses encontros pas-sam em revista a situação do nosso continente,sempre precedidos de amplas consultas e dis-cussões entre as comunidades das diversas na-ções. No discurso de abertura da conferência,enquanto falava Bento XVI, pudemos entrevero antigo teólogo Joseph Ratzinger, perito do

Bento XVI desfila depapamóvel na

Missa campal naBasílica de Nossa

Senhora Aparecida.Acima, encontrocom o presidente

Lula e o governadorJosé Serra.

Alex Ribeiro/DC

Agliberto Lima/DC

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76 DIGESTO ECONÔMICO MAIO/JUNHO 2007

Concílio Vaticano II, com uma teologia arejada,uma visão ampla dos problemas do mundo,agora aplicados ao nosso continente. Apenasum escorregão, e grave, quando minimizou aviolência perpetrada pelos conquistadorescristãos sobre as nações indígenas. A correçãodesse deslize precisou ser imediatamente pro-videnciada na primeira vez que concedeu au-diência pública, após seu retorno a Roma.

O documento final do V Celam, de 121 pági-nas, já foi concluído. Mas para se tornar oficialprecisa ainda ser aprovado por Bento XVI, o quedeve acontecer dentro de mais algumas sema-nas ou meses. Quando isso for feito, poderemosanalisá-lo detalhadamente, confrontando o ori-ginal com as eventuais correções, supressões oucensuras promovidas pela Santa Sé.

O FUTURO DA IGREJA CATÓLICA

Quem esperava de Bento XVI uma forma deenergização para reverter a situação do cato-licismo, deve estar decepcionado. Os católicosbrasileiros gostam do papa, de qualquer papa.Seus contatos com o povo foram breves, po-rém, carinhosos, emotivos, reverenciais. Den-tro de mais alguns meses tudo poderá até seresquecido. Não é a presença física do papa quemuda a realidade. Ele pode estimular, propor,contagiar as comunidades com um espírito, oque certamente ele fez.

Há, porém, algo que causa grande ruído naIgreja católica brasileira. Existe nela uma apa-rente unidade, mas na prática, extensa divi-são. Não se trata daquela divisão que conduz àseparação, à heresia, ao cisma.

Mas de qualquer forma, dispõe os católicosem fileiras distantes umas das outras, causan-do certa corrosão, desgaste, dispersão. A Igre-ja está toda distribuída entre grupos que não seentendem, encastelados e envaidecidos desuas conquistas ou horrorizados de suas der-rotas. Isso se verifica entre os bispos, entre ossacerdotes, entre os leigos. Faz lembrar umafrase do apóstolo Paulo, quando criticava asdivisões na Igreja: "Eu sou de Paulo, eu sou dePedro, eu sou de Apolo..." Os católicos passampelo que Mindy Fullilove chamou de "rootshock" (um choque de raízes). Essa análise sur-giu no contexto da destruição das casas dos ne-

No santuário nacional de Aparecida,missa campal, que reuniu milhares defiéis, e a abertura da V ConferênciaEpiscopal da América Latina e do Caribe.

Alex Ribeiro/DC

Jonne Roriz/AE

Alex Ribeiro/DC

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77MAIO/JUNHO 2007 DIGESTO ECONÔMICO

Valéria Gonçalvez/AE

O papa visitoua Fazenda da

Esperança,projeto social dofrei Hans Stapel,

voltado para arecuperação de

dependentesquímicos.

gros em nome do desenvolvimento urbano:suas comunidades foram dispersas, fragili-zou-se o ecossistema emocional, instauraram-se forças dissipativas. Um dos efeitos do cho-que de raízes é o desejo de só viver com pes-soas que pensam como você próprio, surgindodaí a insuficiência para lidar com as diferençase a desestabilização dos relacionamentos. Ochoque de raízes que os católicos vivem é aperda da casa. Não se sentindo em seu ambien-te, procuram um outro espaço, migram parareligiões diversas, à procura do lar perdido. A

difícil missão do papa é fazer urgentementeque todos se sintam em casa, que não precisemprocurar outras demoras, que a Igreja é um es-paço de diálogo e não de exclusão. Sem a sin-cera e efetiva prática do diálogo fica difícil vis-lumbrar o futuro da Igreja. É o diálogo que de-sata os nós, refaz os liames e promove a comu-nhão (comum-união) das pessoas.

Que a visita de Bento XVI contribua parauma nova etapa da vida da Igreja em vista dodiálogo e que, unida, ao lado das demais reli-giões, seja capaz de melhor servir ao povo.

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78 DIGESTO ECONÔMICO MAIO/JUNHO 2007

Para derrotar

Rodrigo Garcia

Enviar soldados aos Iraque já faz parteda tradição norte-americana. Em me-nos de 60 anos, os Estados Unidos jáocuparam o território iraquiano em

três ocasiões. Esta, iniciada em 2003, é a tercei-ra vez. A segunda foi nos anos 90, na primeiraguerra do Golfo. A primeira, com mais êxitos,ocorreu a partir de 1942 e, como a atual ,tam-bém tinha, segundo a Casa Branca, um objeti-vo nobre: evitar que tropas aliadas a Adolf Hi-tler controlassem o Iraque.

Dessa ocupação, há um livro produzido pe-los Departamentos da Guerra e da Marinhados Estados Unidos, “Um Pequeno Guia parao Iraque”, com informações sobre o país e co-mo os militares americanos deveriam agir. Aolê-lo, percebe-se que, em mais de 65 anos, a re-tórica dos Estados Unidos sobre o Iraque e osiraquianos mudou muito pouco.

Escrito em 1942, o guia tem 40 páginas, comum mapa do Oriente Médio e muitas ilustra-

ções didáticas. Seu principal objetivo era mos-trar como o soldado americano deveria secomportar no país que estava protegendo deum possível ataque das tropas alemãs.

Freqüentemente o texto é igual ao de umguia turístico tradicional destinado a norte-americanos, com informações sobre história,geografia, cultura, clima, moeda e como dizeralgumas frases básicas em árabe. Também hámuitos conselhos práticos. Aliás, existe um ca-pítulo só com dicas: “Alguns Importantes Fa-ça e Não Faça” (veja o box). Esses conselhos po-dem ser resumidos em um só:

“Sobretudo, use o bom senso em todas as ocasiões.E lembre-se de que todo soldado americano é umembaixador não-oficial da boa vontade.”

Logo na introdução, entretanto, Washing-ton lembra a seus soldados que eles não sãosimples turistas:

"Você foi enviado ao Iraque como parte daofensiva mundial para derrotar Hitler."Você vai entrar no Iraque tanto como um soldadoquanto como um indivíduo, porque no nosso ladoum homem pode ser tanto um soldado, quanto umindivíduo. Essa é a nossa força – se formosinteligentes o suficiente para usá-la. Essa pode sera nossa fraqueza, se não formos. Como soldado,suas obrigações lhe serão ditas. E como indivíduo,o que você faz por sua conta é o que importa – eimporta bem mais do que você imagina.O sucesso ou o fracasso americano no Iraque podedepender muito se os iraquianos (como aspessoas são chamadas) vão gostar dosamericanos ou não. Talvez não seja assimtão simples. Mas, novamente, poderá ser.Herr Hitler sabe que estará derrotado se as

EUA ocup

Reprodução

Um Pequeno Guia para oIraque: livro produzidopelo Depto. da Guerra eda Marinha trazconselhos práticos emuitas ilustrações.

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79MAIO/JUNHO 2007 DIGESTO ECONÔMICO

pessoas contra ele se unirem com firmeza. Então émuito óbvio o que ele e sua máquina depropaganda estão tentando fazer. Eles estãotentando espalhar a desunião e a insatisfação entreseus opositores sempre que podem.Então qual a solução? Ela deve ser bastante óbviatambém. Uma de suas grandes missões é evitarque os agentes de Hitler façam o trabalho sujodeles. A melhor maneira que você pode conseguirisso é entender-se com os iraquianos e torná-losseus amigos. E a melhor maneira de dar-se comqualquer povo é entendê-lo bem.Este guia é para isso. Para ajudá-lo a entender aspessoas e o país, a fim de que você possa fazermelhor e mais rápido a missão de mandar Hitlerde volta para de onde ele veio.”

A primeira parte do guia termina de umaforma bem otimista:

“E, em segundo lugar, você como ser humano teráuma experiência que poucos norte-americanostêm sido sortudos o suficiente para ter. Anos vãose passar e você estará contando a seus filhos etalvez netos histórias começando assim: Quandoeu estive em Bagdá...”

O alto comando militar americano fez ques-tão de explicar, de forma bem resumida, a im-portância geopolítica do Iraque:

“O Iraque é uma parte estratégica da grande'ponte de terra' entre a Europa e a Índia – ocaminho que Hitler TEM A ESPERANÇA deusar para unir as mãos com seus aliados queapunhalam pelas costas, os japas. Também o GolfoPérsico é uma importante porta de serviço paranós entregarmos suprimentos a nossos aliadosrussos. E ainda mais, o Iraque tem grandeimportância militar por causa de seus campospetrolíferos, com seus oleodutos para o MarMediterrâneo. Sim, o Iraque é um pontoimportante por vários motivos.”

As habilidades militares dos iraquianostambém foram ressaltadas:

“Aquele homem usando uma bela túnica, que vocêverá em breve, com barba e cabelo longo, é umguerreiro de primeira classe, muito especializadona luta de guerrilha. Poucos guerreiros emqualquer país, de fato, o supera nesse tipo desituação. Se ele for seu amigo, pode ser um aliadoleal e valioso. Se ocorrer de ele ser seu inimigo –cuidado! Lembra-te de Lawrence da Arábia? Bem,foi com homens como esse que ele escreveu ahistória na Primeira Guerra Mundial.”

O guia também chama a atenção para aspossibilidades de a Alemanha usar as divisõesinternas dos iraquianos para vencer a guerra:

“Os iraquianos têm algumas diferenças religiosase tribais entre eles mesmos. Hitler tem tentadousar essas diferenças para seus próprios fins. Sevocê conseguir ganhar a confiança e a amizade detodos os iraquianos que conhecer, você fará maisdo que acha possível para ajudar a trazê-los juntospara nossa causa comum.

O livro trazmapas,

informaçõessobre história,cultura, clima,moeda e comodizer algumas

palavrasem árabe.

Hitler,aram o Iraque

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80 DIGESTO ECONÔMICO MAIO/JUNHO 2007

Desnecessário dizer, Hitler também vai tentar usar asdiferenças entre nós mesmos e os iraquianos para causarproblemas. Mas nós temos uma arma para derrotar esse tipode coisa: um simples e geral bom senso. Vamos usá-lo.O jogo de Hitler é dividir e conquistar. O nosso é unir e vencer!”

Durante todo o texto, há um enorme esforço dos comandan-tes em alertar os soldados americanos sobre as diferenças entreos dois países e, sobretudo, que elas têm de ser respeitadas:

“Diferenças? Claro que há diferenças. Diferenças de costume.Diferenças de alimentação. Diferenças de hábitos e de crençasreligiosas. Diferentes atitudes em relação às mulheres. Diferençasabundam.Mas e daí? Você não está indo ao Iraque para mudar os iraquianos.Justamente o contrário. Nos estamos travando esta guerra parapreservar o princípio de 'viva e deixe viver'. Talvez isso pareça comoum monte de palavras quando você estava em casa. Agora você tem achance de demonstrá-lo para você mesmo e para os outros. Se vocêconseguir, será um mundo melhor para se viver para todos nós.”

As autoridades de Washington expressam enfaticamenteque os soldados devem evitar entrar em qualquer tipo de con-flito com os iraquianos:

“É uma boa idéia, em qualquer país estrangeiro, evitar qualquerdiscussão política ou religiosa. Isso é ainda mais verdadeiro noIraque do que em outros países, porque ocorre que aqui ospróprios muçulmanos estão divididos em duasfacções, algo como nossa divisão entre católicos eprotestantes – então não meta o nariz quandoos iraquianos discutirem sobre religião.Também há diferenças políticas no Iraque,que têm confundido diplomatas e estadistas.Você não vai ajudar de forma nenhuma aoparticipar delas. Além disso, se você discutirpolítica externa com os iraquianos, você pode

ser manobrado para fazer declarações que poderiam serinterpretadas como críticas a nossos aliados.Sua melhor atitude é ficar fora completamente de qualquerdiscussão política ou religiosa. Ao entrar nela, você só vaiajudar aos propagandistas nazistas, que estão tentandocriar problemas entre os iraquianos.”

Em vários trechos, “Um Pequeno Guia para o Iraque”explica quais procedimentos o soldado americano deve terem relação às mesquitas:

“Os iraquianos são muito devotados à sua religião e não gostamque um 'infiel' (para eles, você é um 'infiel') chegue perto desuas mesquitas. Geralmente, você pode reconhecer umamesquita por sua torre alta. Fique longe das mesquitas. Mesmoque você tenha visitado mesquitas na Síria ou no Egito, não sepode entrar nas mesquitas no Iraque. Se tentar entrar em uma,você será expulso, provavelmente com muita violência. Osmuçulmanos iraquianos até se ressentem caso os infiéis cheguemperto das mesquitas. Se você ficar perto demais de umamesquita, afaste-se rapidamente antes que os problemascomecem. A religião muçulmana exige que um homem reze cincovezes por dia. O que é feito na direção da cidade sagrada de Mecae com uma série de prostrações. Não olhe fixamente paraninguém que esteja rezando e, sobretudo, não zombe. Respeite areligião deles e eles respeitarão a sua.”

Já sobre as muçulmanas, o guia chama muito a atenção paracuidados especiais:

“As mulheres muçulmanas não se misturam livremente com oshomens. A maior parte do tempo elas passam em casa, com sua família.Nunca aborde uma mulher ou tente chamar sua atenção nas ruas ouem outro local público. Não fique perto quando elas estiverem fazendocompras. Se ocasionalmente uma mulher deixar cair o véu durante as

compras, não fique olhando para ela nem sorria. Olhe para ooutro lado. Essas regras são extremamente

importantes. Os muçulmanos vão desgostar devocê imediatamente e haverá problemas se você

não tratar as mulheres de acordo com asnormas e costumes deles.Essas regras são aplicadas tanto nascidades, quanto nas vilas e nos desertos. Asmulheres da vila e do deserto saem mais semvéu do que as das cidades e parecem ter mais

liberdade. Mas as regras ainda são restritas.Qualquer abordagem de sua parte vai

significar problemas, muitos problemas. Atéquando estiver falando com um iraquiano, nenhuma

menção deve ser feita às mulheres da família dele. Ospróprios iraquianos seguem esse costume e ficarão ressentidos sealguém, principalmente um estrangeiro, não fizer o mesmo.Repetindo: Não tente paquerar nenhuma mulher muçulmanaou haverá problemas. De qualquer modo, você nãoconseguirá nada com isso. As prostitutas não andam pelasruas, elas vivem em bairros especiais das cidades.”

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81MAIO/JUNHO 2007 DIGESTO ECONÔMICO

Mas, sete páginas depois, no capítulo dedicas de saúde, o alto comando adverte:

“Há muitas doenças venéreas por aí,então não corra o risco.”

O guia também trata do que se pode fo-tografar no país, pois há muitas restriçõespor causa da grande quantidade de ira-quianos que têm medo do 'mau-olhado'.

“Muitos iraquianos acreditam no 'mau-olhado'. Isso está na mente deles, como pôrum 'feitiço' está na mente do povo dealgumas regiões do nosso país. Sevocê olhar fixamente para aspessoas, especialmentecrianças, alguémpode achar que vocêpossui um 'mau-olhado' e que estátentando lançaruma maldição emquem você estáolhando. Algunsiraquianos achamque a lente de umacâmara também é um'mau-olhado' e você faráinimigos ao fazer fotos derosto e possivelmente vai acabar comuma faca nas costas. Paisagens gerais e cenasde ruas não vão causar problemas. Comexceção das mesquitas. Não tente fotografaras mesquitas.”

Em alguns trechos, o guia dá conselhosmuitos pessoais, por exemplo, sobre o quefazer quando precisar ir ao banheiro:

“Banheiros como os dos Estados Unidos sãomuito raros. Você terá de se acostumar a sealiviar ao ar livre em qualquer localconveniente. Certifique-se que está longe dasprincipais ruas e bem distante dasmesquitas. E fora da vista de alguém oquanto for possível. Você terá de carregarseu próprio estoque de papel higiênico.Os muçulmanos não permitem que outraspessoas os vejam despidos. Não urine napresença deles. Eles fazem isso acocorados enão gostam de ver outras pessoasurinando em pé. Essas coisas podemparecer triviais, mas são importantes sevocê quiser entender-se bem com osiraquianos.”

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82 DIGESTO ECONÔMICO MAIO/JUNHO 2007

Atuais soldados parecemque não leram o guia

Goran Tomasevic/Reuters

Com as imagens praticamente diárias dosataques, até a mesquitas, no Iraque e osmaus-tratos que os soldados norte-americanos

impõem aos prisioneiros iraquianos, tem-se a impressãoque os militares dos Estados Unidos não leram“Um Pequeno Guia para o Iraque”. Ou, se leram,não estão seguindo seus conselhos, principalmente osque dizem respeito a não entrar em discussões políticase ser bem-educado.

As tropas norte-americanas, no país desde 2003,também estão realizando projetos para a reconstruçãoe o desenvolvimento do Iraque, como melhorias nainfra-estrutura, programas de educação e outrasquestões, procurando o apoio dos civis iraquianos. Asecretária de Estado norte-americana, Condoleezza Rice,justificou a importância desses projetos: “Acredito queaprendemos uma importante missão durante nossatemporada no Iraque – nós não queremos construir eajudar os iraquianos a construírem uma sociedade

democrática estável só de cima para baixo, mas tambémde baixo para cima”.

Entretanto o que mais chama a atenção do mundo e atédos Estados Unidos são as cenas de tortura e de violênciaentre as várias facções. Pois, ao derrubar SaddamHussein, um sunita, os americanos passaram a ser vistoscomo aliados dos xiitas, descumprindo um dos principaispontos do guia: não se intrometer na política interna.

Após quatro anos de ocupação e mais de 7 mil soldadosamericanos mortos , o projeto do presidente George W.Bush de democratizar e pacificar o Iraque parece distantee, segundo muitos especialistas em geopolítica, as tropasamericanas ainda vão ficar em território iraquiano pormuito tempo. O próprio presidente Bush, que deseja maisverbas para as Forças Armadas, tem declarado: “Rejeitoqualquer prazo artificial para a retirada do Iraque e/ou atentativa de políticos de Washington (referindo-se aoscongressistas) tentarem dizer àqueles que vestem afarda como fazer seu trabalho.”

Os militaresnorte-americanos queocupam o Iraquedesde 2003 nãoleram esse guiapublicado em1942, e se leram,não estãoseguindo os seusconselhos.

Fabrizio Bensch/Reuters

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