digesto econômico nº 455

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Setembro e Outubro de 2009

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Page 1: Digesto Econômico nº 455
Page 2: Digesto Econômico nº 455

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3SETEMBRO/OUTUBRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

Alencar BurtiPresidente da Associação Comercial de São Paulo e da

Federação das Associações Comerciais do Estado de São Paulo

O combateàs drogasA tualmente, as drogas estão entre os maiores problemas da sociedade

moderna e a preocupação número 1 dos pais, qualquer que seja a classesocial. Os entorpecentes estão diretamente relacionados com o aumento

da violência e da criminalidade, cuja grande vítima é a juventude. Quantosjovens tiveram seus sonhos interrompidos e quantos pais já choraram a perdade seus filhos para as drogas? Não podemos mais aceitar esta situação. Otráfico é um crime hediondo e deve ser punido com o máximo rigor da lei.

Nesta edição, estamos trazendo o tema das drogas para discussão. Todossão unânimes em afirmar que o problema já se tornou uma epidemia mundiale que o assunto deve ser tratado como uma questão de saúde pública. Váriaspropostas estão surgindo, inclusive a da descriminalização da maconha, umtema polêmico, defendido pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Precisamos ampliar adiscussão, mobilizar a sociedade, pressionar as autoridades e principalmente implementar comurgência medidas mais eficazes para combater o tráfico de drogas e também de armas. É inadmissívelque bandidos continuem a comandar o tráfico de dentro das penitenciárias, que são sustentadas portodos nós, contribuintes.

Convém esclarecer que o próximo número da revista Digesto Econômico será uma edição duplareferente aos meses de novembro/dezembro e janeiro/fevereiro de 2010. Esta é, portanto, a última ediçãode 2009, um ano turbulento, marcado pela primeira grande crise econômica global do milênio.

O mundo todo se mobilizou para conter o desastre, os governos gastaram trilhões de dólares parasalvar suas economias, houve demissões nas empresas, a produção e o consumo caíram. Foi um anoduro, de muito trabalho, mas que felizmente passou rápido (quem não se surpreende ao perceber que jáestamos no fim do ano).

A crise mostrou que o País está mais bem preparado para superar as turbulências do mercado, nossosfundamentos econômicos estão mais sólidos. Diversos organismos internacionais concordam com isso – oBanco Mundial prevê que o Brasil poderá ser a quinta economia do mundo em 2016. Há um clima deotimismo no ar: com certeza teremos um Natal melhor do que o do ano passado, a renda do trabalhadorcresceu, fomos escolhidos para ser sede da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas em 2016. Tudo issonão veio de graça, foi fruto de muito trabalho.

Por outro lado, essa maior evidência nos traz maiores responsabilidades. Teremos eleições nopróximo ano e por conta disso o governo vem aumentando seus gastos pensando nos resultados dasurnas. Isso pode resultar em pressões inflacionárias no próximo ano, o que levaria o Banco Central aaumentar os juros, reduzindo as perspectivas de crescimento. Devemos deixar de lado disputasmesquinhas e agir com responsabilidade e ética, para finalmente construirmos uma grande nação.

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4 DIGESTO ECONÔMICO SETEMBRO/OUTUBRO 2009

ÍNDICE

Rua Boa Vista, 51 - PABX: 3244-3030CEP 01014-911 - São Paulo - SP

home page: http://www.acsp.com.bre-mail: [email protected]

Pre s i d e nteAlencar Burti

Superintendente institucionalMarcel Domingos Solimeo

ISSN 0101-4218

Diretor-Resp onsávelJoão de Scantimburgo

Diretor de RedaçãoMoisés Rabinovici

Ed i to r - Ch e feJosé Guilherme Rodrigues Ferreira

Ed i to re sCarlos Ossamu e Domingos Zamagna

Chefia de ReportagemJosé Maria dos Santos

Editor de FotografiaAlex Ribeiro

Pesquisa de ImagemMirian Pimentel

Editor de ArteJosé Coelho

Projeto Gráfico e DiagramaçãoEvana Clicia Lisbôa Sutilo

Ilustrações e InfográficosAlfer e Jair Soares

Gerente ComercialArthur Gebara Jr. ([email protected]) 3244-3122

Gerente Executiva de PublicidadeSonia Oliveira ([email protected]) 3244-3029

Gerente de OperaçõesJosé Gonçalves de Faria Filho ([email protected])

I m p re s s ã oLene Gráfica

REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PUBLICIDADERua Boa Vista, 51, 6º andar CEP 01014-911

PABX (011) 3244-3030 REDAÇÃO (011) 3244-3055FAX (011) 3244-3046

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6A economia mundial édependente das drogas

14DROGAS e DEMOCRACIA:

Rumo a uma mudançade paradigma

30ONU tem posiçãocontrária à legalizaçãoAntonio Maria Costa

CAPAIlustração: Paulo Zilberman

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36As Guerras do Ópio, sua

história, livros e filmeRenato Pompeu Re

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5SETEMBRO/OUTUBRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

40Combate às drogas no ambiente de trabalhoRomina Miranda Cerchiaro

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44Os descaminhos da política externa brasileira

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58Política ExternaAfonso Arinos de Melo Franco Re

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68A crise acabou?Roberto Fendt

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72O mundo ainda

corre perígoCíntia Shimokomaki

76A revolução globalista

Olavo de Carvalho

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78Federação brasileira

Alexandre de MoraesC

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Page 6: Digesto Econômico nº 455

A economiamundial

é dependentedas drogas

Aos 62 anos o desembargador WalterMaierovitch se alinha entre as pessoasque mais conhecem os bastidores dotráfico de drogas no País. Foi natural,

portanto, que ocupasse pioneiramente o cargo desecretário da Secretaria Nacional Antidrogas,

nomeado pelo então Presidente Fernando HenriqueCardoso, que criara o órgão no primeiro mandato.

O profundo conhecimento do assunto levouMaierovitch para o patamar dos especialistas em

crime organizado, já que os dois temas sãointimamente ligados. Nessa condição ele é hoje

consultor da União Europeia a respeito, dividindo seutempo entre Roma, onde está assentada sua base na

Europa, e São Paulo, onde mora. A propósito, suavasta experiência está resumida no livro "Na linha defrente pela cidadania", lançado pela Editora Michaelem 2008. Além das atribuições referidas, Maierovitch

preside o Instituto de Pesquisas CriminológicasGiovanni Falconi e mantém uma coluna semanal na

revista "Carta Capital".Nesta entrevista, o desembargador propicia um

impressionante roteiro pelos meandros das máfiasinternacionais, mostra que muitos países são

dependentes da economia gerada pelo narcotráfico ecritica a posição do ex-presidente Fernando HenriqueCardoso de descriminalização da maconha (veja napág. 14). Na sua opinião, enquanto no passado o

argumento principal para a legalização dessa drogaera a liberdade individual, hoje se fala em salvar

economias com a cobrança de impostos.

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8 DIGESTO ECONÔMICO SETEMBRO/OUTUBRO 2009

Digesto Econômico - Asociedade vem perdendoa batalha contra as drogas.Qual a sua opiniãosobre isso?

Walter Maierovitch -Pouca gente consegue en-tender a geopolítica e ageoestratégia das drogas.Se pensarmos em termosde geoeconomia, se numapessoa a droga gera de-pendência, na economiaocorre fato semelhante. Te-mos países dependentesda economia movimenta-da pelas drogas, que temparticipação importanteno PIB. Se pegarmos, porexemplo, o Vale do Bekaa(Líbano) há mais de 400mil pessoas envolvidas no plantio da erva caná-bica e na produção de derivados, como o haxixee o óleo. A economia do Marrocos é dependentedessas atividades. Pouca gente se preocupacom este tipo de problema.

DE - Há maiores dados sobre isso? No Marrocos,que o senhor comentou, sabe-se qual aparticipação das drogas no PIB desse país?

WM - Evidentemente, os dados não são ofi-ciais. O único número mais concreto que setem até agora é o da Bolívia, estimado na épocado falecido presidente Hugo Banzer, quandoele foi eleito (em 1997). A Bolívia é dividida emduas áreas, uma de plantio legal de coca e ou-tra ilegal, que é o Chapare. Os americanos, jun-to com a ONU, fizeram uma primeira tentativade cultivo substitutivo à coca. Eram progra-mas em que o plantador de coca recebia a ga-rantia de que, se ele plantasse milho ou outracoisa legal, ele teria seus produtos colocadosno mercado. Pelo acordo, esse mercado seria aArgentina. Acho a proposta muito interessan-te e o mundo deveria insistir nisso. Não deucerto porque foi na época em que a Argentinaquebrou. Os agricultores ficaram com a safrana mão. Para o programa de cultivo substitu-tivo é preciso ter garantias de que o produto se-rá vendido e de preço mínimo.

Quando se fez este plano, que se chamouPlan Dignidad, o presidente Hugo Banzerconcordou, mas com uma condição: os norte-americanos tiveram de cobrir o equivalente a30% do PIB. Isso significava o quanto o negó-cio da coca movimentava. Ele precisou ter essagarantia, pois senão quebrava o país. Há tam-

bém uma estimativa com dados do BancoMundial e do FMI de que o mercado das dro-gas movimentaria de US$ 200 bilhões a US$400 bilhões dentro do sistema financeiro inter-nacional. Imagine a crise se tirarem este mon-tante do sistema financeiro.

Outro dado econômico: o governador daCalifórnia, Arnold Schwarzenegger, apoia umprocesso de legalização da maconha. Para quê?Ele governa um Estado quebrado; ele quer ga-rantir renda por meio de tributos. O ex-presi-dente George W. Bush bateu na porta da Supre-ma Corte para conseguir uma decisão de queera inconstitucional um Estado federado legis-lar sobre drogas, uma vez que a competêncialegislativa para assuntos de drogas é federal.Ele fez isso porque vários Estados legislaram,admitindo o uso terapêutico da maconha, con-dicionado a uma receita médica. Começou pe-la Califórnia. Houve um caso de uma senhoracom um tumor na cabeça, com dores horríveis,que só era inibida quando ela fumava maco-nha. Hoje, nos EUA, já são oito Estados federa-dos com essa legislação. O objetivo de Bush eraquebrar essa legislação. Como a Suprema Cor-te foi chamada para decidir sobre a constitucio-nalidade, ela decidiu que a competência era fe-deral, mas não disse que as legislações dos Es-tados eram inconstitucionais. O Bush ganhou,mas não levou. E o que fez o presidente BarackObama há alguns meses? Ele determinou aoFBI para que não prendesse pessoas que fizes-sem uso terapêutico da maconha, pois o Bushhavia determinado que essas pessoas fossempresas. Essa permissão de uso para fins tera-pêuticos do Obama está sendo vista como umprimeiro passo para a liberação para uso lúdi-co. É o que se espera dele. Há 40 anos se discutea liberalização do uso da maconha, embora o(ex-presidente) Fernando Henrique tenha co-meçado agora e ache que é iniciativa dele. Essadiscussão foi retomada por Barack Obama eagora todo mundo fala disso.

O grande ponto que vejo aí, e com preocu-pação, é que não se está levantando aquela ve-lha discussão de liberdade individual, do di-reito de autolesão – ninguém é condenado portentar o suicídio ou por se automutilar, issonão é crime. O uso de droga é uma autolesão,não há dúvidas. E por que seria crime o uso dedroga? Mas não é essa a discussão agora. O quese quer hoje é salvar as economias.

DE - Na sua opinião, o mundo pode prescindir domercado de drogas?

WM - Se a movimentação chega a US$ 400bilhões e há países dependentes, além de Es-

WalterMaierovitch:estima-se que

o mercadodas drogas

movimente deUS$ 200 bilhões

a US$ 400bilhões.

Divulgação

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9SETEMBRO/OUTUBRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

tados que estão buscandofonte de renda na droga ...Há 40 anos, o discurso erao da l iberdade indivi-dual, hoje fala-se em sal-vação da economia. Isso éapresentado com a tese delegalização de drogas le-ves, no caso a maconha.Como se faz isso? O Esta-do teria o monopólio e es-tabeleceria o porcentualpermitido de tetrahidro-canabinol (THC).

Veja o que aconteceu nopós-guerra, com econo-mias quebradas. Em al-guns países europeus, co-mo a Itália, o que o Estadoguardou para si? O mono-pólio do tabaco. Na Itália,nos lugares que vendemcigarros tem um "T", de ta-bacachaio, na parede. De-pois do tabaco entrou o sal e os selos. Notemcomo as coisas estão voltando.

No Brasil, se discute o problema da drogacomo na porta de um bar, sem enxergar o con-texto mundial. Muitas vezes a droga é usadacomo arma na geoestratégia. Todo ano o pre-sidente dos EUA manda aquele relatório obri-gatório para o Congresso – este ano entrou aBolívia e a Venezuela, mas com a recomenda-ção de não haver retaliação econômica, pois alegislação fala em retaliação. As empresas pri-vadas ficam proibidas de investir em paísesque não colaboram com a luta antidrogas. Mashá quantos anos não entra a Birmânia (Myan-mar), que é um narcoestado? A ditadura mili-tar da Birmânia sempre protegeu o maior tra-ficante de ópio e metanfetamina para a Ásia,que morreu no ano passado. Na África, a Gui-né Equatorial é um narcoestado, que é diferen-te de Estado dependente.

Na Birmânia acontecem coisas absurdas. ANobel da Paz (Aung Suu Kyi), filha de AungSan (heroi da independência birmanesa, as-sassinado em 1947), continua presa, agora emcasa. Suu Kyi foi dada como violadora de obri-gação de quem se encontra em prisão domici-liar, ou seja, permitiu a presença de um estra-nho em sua residência. Na verdade, tratava-sede um intruso, com problemas mentais, e queinvadira a casa: William Yettaw – um ameri-cano de 53 anos de idade, ex-combatente naGuerra do Vietnã e que está aposentado porproblemas mentais – resolveu atravessar o La-

go Inya a nado e invadir a casa de Suu Kyi. Enão se toma providência no mundo. A ONUameaçou e nada. Qual é a força desse narcoes-tado? Deve ter uma força geopolítica extraor-dinária. Como se sustenta uma ditadura da-quelas? É evidente que tem apoio. Quando oTribunal Penal Internacional decretou a pri-são do presidente do Zimbábue, a China e aRússia apoiaram o presidente por interessescomerciais. Com a droga ocorre a mesma coi-sa. Na Nigéria, o ditador Sani Abacha era tra-ficante de drogas, morreu de overdose de he-roína. A droga esconde interesses geopolíti-cos, geoestratégicos e geoeconômicos. Então,discutir o problema da droga em cima da cri-minalização do usuário, que é um problemade saúde pública e não criminal – problemacriminal é o traficante –, é uma hipocrisia, é su-perficial, beira conversa de tolos.

O que legitimou, por exemplo, (Felipe) Cal-derón, no México, após uma eleição fraudada?No dia seguinte à sua posse ele entrou na guer-ra contra as drogas, com todo apoio da popu-lação. Levou dinheiro do Plan Merida, deBush. Hoje, a guerra contra as drogas mata ci-vis, que são as grandes vítimas, e não trafican-tes. Sob a presidência de (Ernesto) Zedillo,aliado de Fernando Henrique e (César) Gavi-ria nessa tentativa de descriminalização damaconha, o México quebrou. Qual era a únicaindústria próspera do México quando ele que-brou? A indústria das drogas. O que sustentaos grandes cartéis de fronteira, onde entra dro-

Há 40 anos sediscute a

liberalização douso da maconha,

embora oFernando

Henrique tenhacomeçado agora

e ache que éiniciativa dele.

Robert Galbraith/ Reuters

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10 DIGESTO ECONÔMICO SETEMBRO/OUTUBRO 2009

ga e sai arma e vice-versa? Um grande interes-se, que passa pelo crime organizado, às vezesdando sustentação a ditaduras, influenciandona política partidária, injetando dinheiro. Éum quadro que não pode ser examinado à luzdo usuário, que é uma peça menor. Dizer quenão existiria o problema da droga se não exis-tisse o usuário é estúpido. Se não existissem in-sumos químicos também não existiriam asdrogas sintéticas. Por isso vamos acabar com aindústria químico-farmacêutica?

DE - Diante desse quadro tão terrível, emque há tantos interesses poderosos quesustentam a indústria das drogas, o senhorenxerga alguma solução?

WM - É lógico que há soluções. Essa tenta-tiva de cultivo substitutivo é uma solução. Porque não vingou? Porque ninguém bancou?Quem é que hoje entra num programa dessesse for colocado de novo no Chapare? O pessoalmorreu com a safra na mão, pois a Argentinaquebrou. Mas soluções existem!

Há diversas questões em jogo, inclusive cul-turais. O historiador Heródoto (484 antes deCristo) conta a história de várias tribos que fa-ziam uso de drogas, inclusive em cerimôniasfúnebres. Homero (século 9 antes de Cristo) fa-lava de uma droga para tirar dores dos nave-gantes. O primeiro estava falando da maconhae o segundo da heroína, do ópio.

Não se pode encontrar soluções sem tirar al-gumas armadilhas. O que são esses US$ 400 bi-lhões, vamos deixar por US$ 200 bilhões, den-tro do sistema financeiro? Lavagem de dinhei-ro? Por que se lava dinheiro? Somente para dei-xá-lo limpo? Não, para que seja reinvestido ematividades formalmente lícitas. Foi isso queconstruiu Aruba (Caribe), seus hotéis, turis-mo, jogos. Então, o problema das drogas é ex-tremamente complexo. Não é levantando abandeira de liberar a droga que vamos acabarcom o tráfico. Se é um problema de saúde pú-blica, para liberar é preciso ter limites. O quefaz o Canadá, que permite o uso terapêutico damaconha? O Canadá planta maconha e ofere-ce. O que fez a Holanda para quebrar essa liga-ção traficante-usuário de droga leve? Abriu,em 1968, o Café Sarasani, que foi o primeiro avender maconha a seus clientes para uso pró-prio dentro do estabelecimento. Qual foi a con-sequência disso? Iniciou-se um turismo contrao qual hoje provoca uma reação, principalmen-te em regiões de fronteira, às pessoas que vão lácomprar drogas. Há uma proposta do atual go-verno de acabar com o turismo da droga. E por-que não acaba? O que garante o PIB do país? O

que acontece se tirar esse turismo? Quem me-xer perde a próxima eleição. São questões com-plexas, que exigem que sejam dados passos.

Vamos imaginar que aqui no Brasil o gover-no fique com o monopólio e estabeleça o por-centual de 18% de THC. Quem garante quenão vão vender maconha com 20%, 40%?Quem vai fiscalizar? Em 1919, um filósofo ho-landês escreveu que o grande problema do jo-go é quando aparece o banqueiro, o terceiroque vai explorar o jogo, que vai jogar com vocêcom um porcentual maior. Qual o grande pro-blema do jogo? Quem controla a aferição dasmáquinas? No monopólio de drogas, quemvai fiscalizar se tem tantos porcentos de THC?No tabaco, por exemplo, as indústrias já carre-garam na nicotina e em outras substâncias.

DE - O tabaco movimenta mais dinheirodo que a droga?

WM - Não. No mundo inteiro houve redu-ção no consumo de tabaco por causa das cam-panhas. Existe alguma campanha do governofederal sobre droga? Não tem nada, tem apoio,mas o governo não faz campanha. Este gover-no e o anterior têm posições semelhantes. Elesacham que se fizer campanha, isso vai desper-tar a curiosidade.

Em 1998, houve uma Assembleia Geral dasNações Unidas para discutir a questão da dro-ga, mais especificamente sobre a responsabili-dade compartilhada entre os Estados. Os paí-ses de consumo diziam que o problema eramos países de produção, os países de produçãodiziam que se não houvesse consumo, não ha-veria produção. Estabeleceu-se nessa assem-bleia o princípio da responsabilidade compar-tilhada. O que ocorreu após 1998? Houve ummovimento fora das Nações Unidas, em quevárias pessoas, intelectuais, prepararam umdocumento contrário à política da ONU sobredrogas, e que não deveria mais haver a crimi-nalização do usuário. Sabe quem assinou? OLula, que era candidato à presidência da Repú-blica. A lei que ele fez é pela descriminaliza-ção? Não, é para não ter pena de prisão, a des-penalização, mas continua sendo crime. Eu es-tava lá, tenho esse documento, tem a assinatu-ra do Lula. Isso mostra que às vezes há um jogopolítico, de interesses....

DE - O senhor tem dados sobre a situação doBrasil no contexto das drogas? O que se consomemais e o que vem crescendo?

WM - Deixei na Secretaria Antidroga umprojeto de observatório. Isso começou agora enão tem dados concretos. Em regiões mais po-

Por que selava dinheiro?Somente paradeixá-lolimpo? Não,para que sejareinvestidoem atividadesformalmentelícitas. Foi issoque construiuAruba,seus hotéis,turismo, jogos.

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11SETEMBRO/OUTUBRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

bres, como no Norte, tem consumo até damerla (derivado da cocaína de baixo custo).Nas regiões mais ricas há o consumo de dro-gas sintéticas. A cocaína colombiana passapelo Brasil, mas o que fica é a cocaína bolivia-na. A coca é um produto andino – os maioresprodutores são Peru, Colômbia e Bolívia. Tra-ta-se de uma folha, de mascagem tradicional,necessária para o povo andino por causa daaltitude. Mas a transformação da folha de co-ca em cloridrato de cocaína implica no uso deprodutos químicos, como éter e acetona. AColômbia, Peru e Bolívia têm indústrias quí-micas? Não. Eles só têm folha de coca. E comoeles refinam? Ninguém fala sobre o tráfico deinsumos químicos. Em qual país fica a maiorindústria química da América Latina? NoBrasil, no eixo Rio-São Paulo. Quem é o maiorvendedor (de insumos químicos) para a Co-lômbia? Há três anos era Trinidad e Tobago,sendo que lá não tem nenhuma indústria quí-mica. A comercialização é feita por grandesindústrias multinacionais, com capital daHolanda, Estados Unidos etc., que entregamos insumos a Trinidad e Tobago.

DE - Neste caso, há uma falta de fiscalização doEstado. Não dá para dizer que a indústria químicatem um relacionamento direto com o tráfico.

WM - A indústria vende para quem tem re-gistro. Mas vá na Junta Comercial, verifiqueuma empresa química, pegue o endereço, onome dos sócios e veja se acha um endereço aliregistrado. Veja as altera-ções de contrato social .Quando se localiza um dossócios, geralmente há umaalteração de contrato e elealega que está fora disso hámuitos anos. Não há fiscali-zação alguma. Quando ogovernador do Rio de Janei-ro faz aquelas megaopera-ções contra o tráfico, isso étudo pirotecnia. Alguémcontrola insumos quími-cos? Não é mais fácil contro-lar os insumos químicos doque combater com força ar-mada? O México está fazen-do isso e dando com os "bur-ros n’água".

A ONU, que teria de re-gular tudo isso, de quando éa convenção em vigor sobredrogas? De 1966, que é aConvenção de Nova York.

Será que ela ainda tem atualidade? E por queela não muda? Porque há necessidade de una-nimidade. Pega um país islâmico e veja se elequer mudar alguma coisa dessa convenção; énela que eles encontram legitimação para im-por a pena de morte a traficante.

DE - É verdade o que se conta de que no início ostraficantes do Rio de Janeiro não deixavam entraro crack no Estado por ser uma droga que matarapidamente o usuário, que é o seu cliente?

WM - Isso é estória, está provado que é es-tória – de que os traficantes queriam preservaro mercado porque o crack mata. O crack demo-rou para chegar lá por condições de mercado.

Ninguém falasobre o tráfico

de insumosquímicos,

essencial paraa produçãodas drogas.

Acima, plantaçãode coca naColômbia;

abaixo, cultivoda papoula noAfeganistão,

flor de onde seextrai o ópio.

Jose Miguel Gomez/Reuters

AhmadMasood/Reuters

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12 DIGESTO ECONÔMICO SETEMBRO/OUTUBRO 2009

O mercado consumidor do Rio começa na clas-se A e nos turistas. Quem é que vai entregaruma pedra de crack para um turista? Ele quercocaína. Quando se populariza a cocaína, vema pedra de crack, que é mais barata. Isso quefalam é lenda. Desde quando um criminosotem princípios éticos? A ideologia do crime or-ganizado é o do lucro. Por que o crime organi-zado fornece bombas para o Bin Laden, forne-ce armas para terroristas? O negócio é lucro.

DE - O senhor disse que não há fiscalização. Porque isso ocorre?

WM - O Brasil não conhece o fenômenodas drogas.

DE - Isso em todos os níveis? O CongressoNacional, Polícia Federal, Ministério Público,Presidência da República...

WM - Respondo essa pergunta citando umrelatório de um ministro canadense. O Canadátem um observatório, em que a polícia se ga-bou de ter feito apreensões recordes. Pergun-taram para o ministro da Justiça desse país oque ele achava disso. Ele respondeu que essasapreensões têm a seguinte imagem: o governoresolve combater a vinda de álcool em deter-minado bar, faz a apreensão nesse bar, só quehá centenas de outros bares em outros locais.

A imprensa deu recentemente que no Para-ná a Polícia Federal fez a apreensão de uma to-nelada de maconha do Paraguai, que há váriosmeses eles estavam apreendendo mensal-mente um caminhão. Perguntaram para o de-legado se ele sabia quem fornecia essas dro-gas, ele disse que não. É o caso do bar que fechae há centenas de outros abertos. Uma toneladanão significa nada, pois continuam plantandoe fornecendo, e com uma sofisticação – no Pa-raguai, a maconha é transgênica, como tem acoca transgênica, não se depende mais de cli-ma. Quem vê na televisão acha uma toneladamuita coisa, mas faltou maconha na praça? Es-sa estratégia é conhecida. A Cosa Nostra, a má-fia americana, estabelecia algumas apreen-sões para a polícia fazer, uma polícia corrom-pida, para gerar estatísticas.

DE - A fronteira do Brasil é uma peneira, todavazada. Haveria locais mais vulneráveispor onde a droga entra no País? Fala-se muitode Foz do Iguaçu

WM - Esse argumento de que o Brasil temuma fronteira enorme e, portanto, de difícilcontrole, é outra estupidez. O governo fala is-so e a imprensa repercute. O crime organizadonão sai do nada para atravessar a fronteira e

entrar no mato. Ele precisa de estrada, de ban-co e de transporte. Basta ver os pontos de fron-teira onde têm cidades, verificar a movimen-tação dos bancos nesses locais e se são compa-tíveis com a cidade. O Banco Central poderiafazer esse controle, mas não faz.

O crime organizado também precisa de es-trada, de aeroporto, transporte. Na TrípliceFronteira – Brasil, Peru e Colômbia –, ninguémsai da selva e entra na selva de novo. Ele pre-cisa de cidade, de estrada, precisa distribuir is-so. Então, não precisa controlar toda a frontei-ra, mas pontos que tenham esses recursos. Umoutro exemplo: Tabatinga-Letícia, Colômbia-Brasil, uma cidade grudada na outra. Temcontrole? Ali é uma fronteira de porta aberta.O Pablo Escobar operava lá com Evaristo Por-ras Ardila. Ali não tem controle nenhum. Dolado brasileiro não tem posto de gasolina,quem abrir vai à falência, pois basta atravessara fronteira, que a gasolina é muito mais barata.O mesmo com a droga. O tráfico precisa de ci-dades, de bancos, ninguém carrega mala dedinheiro. Mas existe controle de movimenta-ção de dinheiro?

Um outro problema é a falta de comunicação.A Polícia Federal da Amazônia se comunicacom a Polícia Estadual de São Paulo? Ou as po-lícias estaduais dos dois Estados se comuni-cam? Se fizerem exames químicos e toxicológi-cos das apreensões de drogas, é possível saberos insumos utilizados, concluindo se é o mesmotraficante que está atuando em São Paulo e noRio Grande do Norte, por exemplo. Mas issonão é feito. Hoje, o que se faz é uma planilha in-formando ao juiz que a mercadoria apreendidatem princípio ativo, então é droga, a prova damaterialidade. O juiz precisa disso para conde-nar. Hoje, os laudos químicos toxicológicosatendem apenas uma necessidade processual.

DE - Com isso, seria possível fazer uma espécie demapeamento da droga.

WM - Acho que deveria ter um trato profis-sional, científico. As pessoas se impressiona-ram com a apreensão de uma tonelada de ma-conha mostrada na televisão. Mas, perguntapara o delegado quem é que vendeu paraquem estava transportando a droga. Onde eleestava se abastecendo no Paraguai? Ele não sa-be. Existe cooperação internacional? Não.

Na Colômbia, antes eram grandes cartéis –Medelin, Cali, do Vale Norte, que pertencia aoAbadia –, hoje são cartelitos, mas a oferta con-tinua exatamente igual. As áreas de plantio decoca também são iguais, segundo fotos de sa-télites, não no mesmo lugar, mas na mesma re-

Esseargumento deque o Brasiltem umafronteiraenorme e,portanto, dedifícil controle,é outraestupidez.O governofala issoe a imprensarepercute.

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13SETEMBRO/OUTUBRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

tragados para esse submundo?WM - Existe a prevenção ao uso, que começa

na escola. Não há dúvidas de que a droga fazmal à saúde, como não há dúvidas quanto apossibilidade de se recuperar um usuário dedrogas. E existe a prevenção ao tráfico. São coi-sas completamente diferentes. O primeiro sig-nifica educação, programas educativos nas es-colas, a criação de uma cultura antidroga. Aprevenção contra o tráfico implica na verifica-ção de riquezas sem causas, as observações nasesquinas. A repressão é a apreensão. Quem tem

gião. A Colômbia hoje responde por 80% dacocaína do mundo. Como eles conseguem co-locar cocaína em qualquer parte do mundo?

DE - Para deixar clara a sua opinião, o senhor achaque não há interesse em fazer um combate sériocontra as drogas, ou não se faz por ignorância?

WM - Quando falo em geoestratégia e geo-política, falo da droga sendo utilizada paraencobrir interesses. Se discutiu agora sobre asbases americanas para combate de drogas naColômbia. Pense no Canal do Panamá, quan-do foi devolvido. Estamos falan-do de um período em que o dita-dor do Panamá, (Manuel) Norie-ga, estava preso. Quem foi ele?Um ex-agente da CIA que contro-lava o Panamá, defendia o inte-resse norte-americano, que man-tinha nesse país um sistema ban-cário para lavagem de dinheiro,em que se abria conta correntecom nome de Pateta, MickeyMouse. O Noriega lavava dinhei-ro do Pablo Escobar, por exem-plo. Quando os Estados Unidosestavam prestes a devolver o Ca-nal do Panamá, o Noriega é preso.São construídas em Aruba e Cu-raçao bases americanas para con-trole do narcotráfico. Depois emIquitos, no Peru, e Manta, noEquador. Qual é a contribuiçãodessas bases em Aruba, Curaçaoe Iquitos no combate às drogas einsumos químicos? Nenhuma. Equal será a contribuição dessas bases na Co-lômbia? Existe algum interesse geopolítico,geoestratégico em que a droga é usada.

DE - Pena de morte, como na China, trouxealgum resultado?

W M - A China, como o Irã, são governostotalitários, antidemocráticos, que de algu-ma forma querem ter total controle social.Qual é a forma mais intimidatória para com-bater o tráfico? Agora, quem eles estão ma-tando: os verdadeiros narcotraficantes ou osvendedores de rua?

DE - Qual droga se consome na China?WM - Metanfetaminas, que vem de Myan-

mar, ex-Birmânia, eles até mudaram o nomedo país. São drogas sintéticas.

DE - O que os pais, as escolas, ONGs, igrejas etc.,poderiam fazer para que os jovens não sejam

Falta no Brasiluma políticaantidroga

adequada, se terum conhecimentodo fenômeno dasdrogas, ter umaseparação bemnítida, em que aquestão criminalé do traficante e

do usuário ésócio-sanitária.

de fazer a prevenção ao uso são os professores,os pais. Mas quem faz isso no Brasil? A PolíciaMilitar, que tem um programa para isso. Mas apolícia tem de fazer prevenção ao tráfico, olharporta de escola, movimentação de festa, boate,balada. Falta no Brasil uma política antidrogaadequada, com real conhecimento do fenôme-no das drogas; e uma separação bem nítida, emque a questão criminal é do traficante, ao passoque a do usuário é sócio-sanitária.

DE - Há algum estudo sobre o custo socialda droga?

WM - Sim, há uma estimativa feita pelo Ca-nadá, um estudo muito sério com 50 indicado-res, por exemplo, redução de capacidade ela-borativa, morte por overdose, corrupção poli-cial, dinheiro da droga na política partidáriaetc. Quanto custa para a sociedade o problemada droga? Segundo o estudo canadense, omontante variou de 4% a 6% do PIB.

Fábio Motta/AE

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14 DIGESTO ECONÔMICO SETEMBRO/OUTUBRO 2009

Dirceu Portugal/AE

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Rogério Uchôa/Diário do Pará

DROGAS e DEMOCRACIA:Rumo a uma mudança

de paradigma

A América Latina é omaior exportadormundial de cocaínae maconha,converteu-se emcrescente produtorade ópio e heroína ese inicia na produçãode drogas sintéticas.

Um documento divulgado em fevereiro pela ONG Comissão Latino-Americana sobreDrogas e Democracia, encabeçada pelos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso,César Gaviria (Colômbia) e Ernesto Zedillo (México), propõe uma revisão das políticasde repressão às drogas na América Latina e de quebra sugere a descriminalizaçãoda maconha para uso pessoal. Procurada pela reportagem, a assessoria de imprensado ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse que ele não aguenta maistantos pedidos da imprensa sobre esse assunto, que não deseja falar sobre o temaa toda hora para não dar a impressão de que isso "virou a sua ocupação diária".Esse interesse é natural, pois se trata de um tema polêmico, que vem sendo malcompreendido, mal interpretado e, talvez por isso, muito criticado. Leia a seguir osprincipais trechos desse documento, que pode ser encontrado, na íntegra, noendereço eletrônico www.drogasedemocracia.org/DocumentosComissao.asp.

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Paulo de Sousa/Luz

O modelo atual depolítica de repressãoàs drogas estáfirmemente arraigadoem preconceitos,temores e visõesideológicas.

Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia

César Gaviria / Colômbia / co-presidenteErnesto Zedillo / México / co-presidenteFernando Henrique Cardoso / Brasil / co-presidenteAna Maria Romero de Campero / BolíviaAntanas Mockus / ColômbiaDiego García Sayán / PeruEnrique Krauze / MéxicoEnrique Santos Calderón / ColômbiaGeneral Alberto Cardoso / Brasil

João Roberto Marinho / BrasilMario Vargas Llosa / PeruMoisés Naím / VenezuelaPatricia Marcela Llerena / ArgentinaPaulo Coelho / BrasilSergio Ramírez / NicaráguaSonia Picado / Costa RicaTomás Eloy Martínez / Argentina

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17SETEMBRO/OUTUBRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

DECLARAÇÃO: Uma guerra perdida

Jose Gomez/Reuters

Os níveis deconsumo

continuam seexpandindo naAmérica Latina.

A violência e o crime organizado associados ao trá-fico de drogas ilícitas constituem um dos proble-mas mais graves da América Latina. Frente a umasituação que se deteriora a cada dia, com altíssimos

custos humanos e sociais, é imperativo retificar a estratégia de"guerra às drogas" aplicada nos últimos trinta anos na região.

As políticas proibicionistas baseadas na repressão à produ-ção e de interdição do tráfico e da distribuição, bem como a cri-minalização do consumo, não produziram os resultados espe-rados. Estamos mais distantes que nunca do objetivo procla-mado de erradicação das drogas.

Uma avaliação realista indica que:- A América Latina continua sendo o maior exportador

mundial de cocaína e maconha, converteu-se em crescenteprodutora de ópio e heroína e se inicia na produção de drogassintéticas;

- Os níveis de consumo continuam se expandindo na Amé-rica Latina, enquanto tendem a se estabilizar na América doNorte e Europa;

- Na América Latina, a revisão em profundidade das polí-ticas atuais é ainda mais urgente à luz de seu elevadíssimo cus-to humano e das ameaças às instituições democráticas.

Assistimos, nas últimas décadas a:

- Um aumento do crime organizado, tanto pelo tráfico inter-nacional como pelo controle dos mercados domésticos e de ter-ritórios por parte dos grupos criminosos;

- Um crescimento da violência a níveis inaceitáveis, afetandoo conjunto da sociedade e, em particular, os pobres e jovens;

A criminalização da política e a politização do crime, bem co-mo a proliferação de vínculos entre ambos, que se reflete na in-filtração do crime organizado nas instituições democráticas;

- A corrupção dos funcionários públicos, do sistema judiciá-rio, dos governos, do sistema político e, particularmente, dasforças policiais encarregadas de manter a lei e a ordem.

Romper o silêncio, abrir o debate

O modelo atual de política de repressão às drogas está firme-mente arraigado em preconceitos, temores e visões ideológicas.O tema se transformou em um tabu que inibe o debate públicopor sua identificação com o crime, bloqueia a informação e con-fina os consumidores de drogas em círculos fechados, onde setornam ainda mais vulneráveis à ação do crime organizado.

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Por isso, romper o tabu, reconhecer os fracassos das políti-cas vigentes e suas consequências é uma precondição para adiscussão de um novo paradigma de políticas mais seguras,eficientes e humanas.

Isso não significa condenar em bloco as políticas que custa-ram enormes recursos econômicos e o sacrifício de incontáveisvidas humanas na luta contra o tráfico de drogas. Tampouco im-plica desconhecer a necessidade de combater os cartéis e trafi-cantes. Significa, isso sim, que devemos reconhecer a insuficiên-cia dos resultados e, sem desqualificar em bloco os

esforços feitos, abrir o debate sobre estratégias alternativas,com a participação de setores da sociedade que se mantiveramà margem do problema por considerar que sua solução cabe àsautoridades.

A questão que se coloca é reduzir drasticamente o dano queas drogas fazem às pessoas, sociedades e instituições. Para is-so, é essencial diferenciar as substâncias ilegais de acordo como prejuízo que provocam para a saúde e a sociedade.

Políticas seguras, eficientes e fundadas nos direitos huma-nos implicam reconhecer a diversidade de situações nacio-nais, bem como priorizar a prevenção e o tratamento. Essas po-líticas não devem negar a importância das ações repressivaspara enfrentar os desafios impostos pelo crime organizado –inclusive com a participação das forças armadas, em situaçõeslimite, de acordo com a decisão de cada país.

Limites e efeitos indesejáveisdas estratégias repressivas

É imperativo examinar criticamente as deficiências da es-tratégia proibicionista seguida pelos Estados Unidos e as van-tagens e os limites da estratégia de redução de danos seguidapela União Europeia, bem como a pouca prioridade dada aoproblema das drogas, por alguns países, tanto industrializa-dos como em desenvolvimento.

A Colômbia é um exemplo claro das limitações da política re-pressiva promovida globalmente pelos Estados Unidos. Duran-te décadas, o país adotou todas as medidas de combate imagi-náveis, em um esforço descomunal, cujos benefícios não corres-pondem aos enormes gastos e custos humanos. Apesar dos sig-nificativos êxitos da Colômbia em sua luta contra os cartéis dadroga e a redução dos índices de violência e de delitos, voltarama crescer as áreas de plantação de culturas ilícitas, bem como ofluxo de drogas a partir da Colômbia e da área andina.

O México se converteu, de maneira acelerada, em outro epi-centro da atividade violenta dos grupos criminosos do narco-tráfico. Isto impõe desafios enormes ao governo mexicano emsua luta contra os cartéis de drogas, que substituíram os tra-ficantes colombianos como introdutores da maior quantidadede narcóticos no mercado dos Estados Unidos. O México temdireito de reivindicar do Governo e das instituições da socie-dade norte-americana um debate sobre as políticas que lá seaplicam e também de pedir à União Europeia um esforçomaior para a redução do consumo. A traumática experiênciacolombiana, sem dúvida, é uma referência para que se evite oerro de seguir as políticas proibicionistas dos Estados Unidos eque se encontrem alternativas inovadoras.

A política europeia de focalizar a redução de danos cau-sados pelas drogas como um assunto de saúde pública, pormeio do tratamento dos usuários, se mostra mais humana eeficiente. Porém, ao não priorizar a redução do consumo,sob o argumento de que as estratégias de redução de danosminimizam a dimensão social do problema, a política dospaíses da União Europeia mantém intacta a demanda dedrogas ilícitas que estimula sua produção e exportação deoutras partes do mundo.

A solução de longo prazo para o problema das drogas ilícitaspassa pela redução da demanda nos principais países consumi-dores. Não se trata de buscar países culpados por tal ou qualação ou omissão, mas sim de afirmar que os Estados Unidos e aUnião Europeia são corresponsáveis pelos problemas que en-frentamos na região, pois seus mercados são os maiores consu-midores das drogas produzidas na América Latina.

É desejável, por isso, que apliquem políticas que efetiva-mente diminuam o nível de consumo e que reduzam signifi-cativamente o tamanho deste negócio criminoso.

A visão da América Latina:rumo a um novo paradigma

Considerando a experiência da América Latina na luta con-tra o tráfico de drogas e a gravidade do problema na região, aComissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia se di-rige à opinião pública e aos governos da América Latina, àsNações Unidas e à comunidade internacional, propondo umnovo paradigma sustentado em três grandes diretrizes:

- Tratar o consumo de drogas como uma questão de saúdepública;

- Reduzir o consumo por meio de ações de informação e pre-venção;

- Focalizar a repressão sobre o crime organizado.Nosso enfoque não é de tolerância com as drogas. Reconhe-

cemos que as drogas provocam danos às pessoas e à sociedade.Tratar o consumo de drogas como uma questão de saúde pú-blica e promover a redução de seu uso são precondições parafocalizar a ação repressiva em seus pontos críticos: a diminui-ção da produção e o desmantelamento das redes de traficantes.Para concretizar esta mudança de paradigma, propomos que aAmérica Latina tome as seguintes iniciativas no marco de umprocesso global de transformação das políticas de combate aouso de drogas ilícitas:

1. Converter os dependentes e compradores de drogas nomercado ilegal em pacientes do sistema de saúde.

A enorme capacidade de violência e corrupção do narcotráficosó poderá ser combatida efetivamente se suas fontes de renda fo-rem substancialmente debilitadas. Com este objetivo, o Estadodeve criar as leis, instituições e regulações que permitam que aspessoas que tenham caído na dependência de drogas deixem deser compradores no mercado ilegal para se transformar em pa-cientes do sistema de saúde. Isto, em conjunto com campanhaseducativas e de informação, levaria a uma redução da demandade drogas ilegais e à derrocada dos preços das mesmas, minando-se desta maneira as bases econômicas deste negócio criminoso.

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2. Avaliar, com um enfoque de saúde pública e fazendo usoda ciência médica mais avançada, a conveniência de descrimi-nalizar o porte de maconha para consumo pessoal.

A maconha é, de longe, a droga mais difundida na AméricaLatina. Seu consumo tem um impacto negativo sobre a saúde,inclusive a saúde mental. Entretanto, a evidência empírica dis-ponível indica que os danos causados por esta droga são simi-lares aos causados pelo álcool e o tabaco. Mais importante ain-da, grande parte dos danos associados à maconha – da prisão eencarceramento indiscriminado de consumidores à violênciae corrupção que afetam toda a sociedade – são o resultado daspolíticas proibicionistas vigentes. A simples descriminaliza-

Andrei Bonamin/Luz

Cabe às campanhas decomunicação alertar

constantemente apopulação em geral eos consumidores em

particular sobre aresponsabilidade de

cada um diante doproblema, os perigosque o "dinheiro fácil"

gera e os custos deviolência e corrupçãoassociados ao tráfico

de drogas.

ção do consumo, se não for acompanhada de políticas de in-formação e prevenção, pode ter como consequência o aprofun-damento dos problemas de dependência.

Os Estados Unidos são provavelmente o país industria-lizado que dedica mais recursos à luta contra o tráfico dedrogas ilícitas. O problema está na eficácia e consequênciade suas ações. Sua política de encarcerar os usuários de dro-gas, questionável do ponto de vista do respeito aos direitoshumanos e de sua eficácia, é inaplicável na América Latina,considerando a superpopulação carcerária e as condiçõesdo sistema penitenciário. Inclusive esta política repressivapropicia a extorsão dos consumidores e a corrupção da po-lícia. Nesse país também é descomunal a magnitude dos re-cursos que se usam para a interdição do tráfico e para sus-tentar o sistema carcerário, em comparação ao que se des-tina para a saúde e a prevenção, tratamento ou reabilitaçãodos consumidores.

3. Reduzir o consumo através de campanhas inovadorasde informação e prevenção que possam ser compreendidase aceitas, em particular pela juventude, que é o maior con-tingente de usuários.

As drogas afetam o poder de decisão dos indivíduos. O tes-temunho de ex-dependentes sobre estes riscos pode ter maiorpoder de convencimento que a ameaça de repressão ou a exor-tação virtuosa a não consumir. As mudanças na sociedade e nacultura que levaram a reduções impressionantes no consumo detabaco demonstram a eficiência de campanhas de informação eprevenção baseadas em uma linguagem clara e argumentos con-sistentes com a experiência das pessoas a que se destinam.

Cabe às campanhas de comunicação alertar constante-mente a população em geral e os consumidores em particu-lar sobre a responsabilidade de cada um diante do proble-ma, os perigos que o "dinheiro fácil" gera e os custos de vio-lência e corrupção associados ao tráfico de drogas. A maiorparte das campanhas de prevenção que hoje se desenvol-vem no mundo é bastante ineficiente. Há muito que apren-der com as experiências de países europeus como, por exem-plo, o Reino Unido, a Holanda e a Suíça, e é preciso explorarexperiências de outras regiões.

4. Focalizar as estratégias repressivas na luta implacávelcontra o crime organizado.

As políticas públicas deverão priorizar a luta contra osefeitos mais nocivos do crime organizado para a sociedade,como a violência, a corrupção das instituições, a lavagem dedinheiro, o tráfico de armas, o controle de territórios e po-

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pulações. Nesta questão é importante o desenvolvimentode estratégias regionais e globais.

5. Reorientar as estratégias de repressão ao cultivo de dro-gas ilícitas.

Os esforços de erradicação devem ser combinados com aadoção de programas de desenvolvimento alternativo, seria-mente financiados e que contemplem as realidades locais emtermos de produtos viáveis e com acesso aos mercados em con-dições competitivas. Deve-se falar não somente de cultivos al-ternativos, como também de desenvolvimento social de fontesde trabalho alternativo, de educação democrática e de buscade soluções em um contexto participativo. Simultaneamente,é preciso considerar os usos lícitos de plantas como a coca, nospaíses onde existe longa tradição sobre seu uso ancestral an-terior ao fenômeno de sua utilização como insumo para a fa-bricação de droga, promovendo medidas para que a produçãose ajuste estritamente a esse tipo de consumo.

A participação da sociedade civile da opinião pública

Um novo paradigma para enfrentar o problema das drogasdeverá estar menos centrado nas ações penais e ser mais inclu-sivo no plano da sociedade e da cultura. As novas políticas de-vem se basear em estudos científicos e não em princípios ideo-lógicos. Neste esforço, é preciso envolver não somente os go-vernos, mas o conjunto da sociedade.

A percepção do problema pela sociedade, bem como a le-gislação sobre drogas ilícitas encontram-se em processo ace-lerado de transformação na América Latina. Um número cres-cente de líderes políticos, civis e culturais expressou a neces-sidade de uma mudança drástica de orientação.

O aprofundamento do debate em relação às políticas so-bre consumo de drogas deve se apoiar em avaliações rigo-rosas do impacto das diversas propostas e medidas alterna-tivas à estratégia proibicionista, que já estão sendo experi-mentadas em diversos países, buscando a redução dos da-nos individuais e sociais.

Esta construção de alternativas é um processo que requer aparticipação de múltiplos atores sociais: instituições de justiçae segurança, educadores, profissionais da saúde, líderes espi-rituais, as famílias, formadores de opinião e comunicadores.Cada país deve enfrentar o desafio de abrir um amplo debatepúblico sobre a gravidade do problema e a busca das políticasmais adequadas a sua história e sua cultura.

No âmbito continental, a América Latina deve estabelecer umdiálogo com o governo, congressistas e a sociedade civil dos Es-tados Unidos para desenvolver de forma conjunta alternativas àpolítica de "guerra às drogas". A inauguração da administraçãode Barack Obama representa uma oportunidade propícia para arevisão em profundidade de uma estratégia que fracassou e abusca em comum de políticas mais eficientes e mais humanas.

Simultaneamente, no nível global, devemos avançar na ar-ticulação de uma voz e visão da América Latina capaz de in-fluir no debate internacional sobre drogas ilícitas, sobretudono marco das Nações Unidas e da Comissão Interamericana

para o Controle do Abuso de Drogas. Esta participação ativada América Latina no debate global marcaria a transição de re-gião-problema para região pioneira na implementação de so-luções inovadoras para a questão das drogas.

(...)

Resultados e consequências da "guerra às drogas"

Atualmente, 208 milhões de pessoas no mundo usam algumtipo de drogas ilícitas pelo menos uma vez por ano. Deste total,calcula-se que 15% sofrem de problemas crônicos de depen-dência. A maconha é a droga mais consumida (160 milhões).Drogas sintéticas, à base de anfetaminas e o ecstasy, já supe-ram, em número de usuários, a cocaína e a heroína (1). O negó-cio das drogas ilícitas controlado pelo crime organizado é es-timado em centenas de bilhões de dólares.

O último Relatório Mundial sobre Drogas (2) , da UNODC(Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime), reco-nhece que a aplicação das Convenções das Nações Unidas so-bre drogas ilícitas produziu várias consequências negativasinesperadas:

- A criação de um mercado negro controlado pelo crime.- A luta contra o crime, consorciado com o comércio de dro-

gas, exige recursos crescentes, muitas vezes em detrimento doinvestimento em saúde pública, que era a razão de ser da po-lítica proibicionista.

- A repressão à produção em um local levou a que esta fossetransferida para outras regiões, mantendo a oferta global es-tável. O deslocamento do tipo de drogas usadas, em função demudanças nos preços relativos produzidos pela repressão.

- Finalmente, a política proibicionista tem gerado a estigma-tização de pessoas dependentes de drogas, que são margina-lizadas socialmente, sofrendo dificuldades para obterem tra-tamento adequado.

O objetivo fixado se revelou irrealizável e os próprios orga-nismos das Nações Unidas reconhecem que se passou do ob-jetivo inicial de eliminação das drogas para uma política decontenção dos níveis de produção e comercialização.

Os custos para manter a proibição se mostraram enormes. Orelatório da UNODC subestima o que denomina de conse-quências inesperadas. O narcotráfico produziu incrementosenormes nos níveis de violência. Ele corrompe as instituições ea democracia. Transforma milhões de pessoas que moram embairros pobres em reféns do crime organizado. Empurra os de-pendentes de drogas a utilizarem seringas transmissoras deHIV e outras doenças contagiosas. As Convenções internacio-nais desconhecem formas ancestrais de utilização da coca, cri-minalizando culturas e povos. Em muitos países, as penalida-des são desproporcionais, causando o encarceramento massi-vo e, em alguns países, execuções.

As políticas de erradicação na América Latina

Três países latino-americanos (Colômbia, Peru e Bolívia) pro-duzem a to ta l idade da o fer ta mundia l de coca ína(www.unodc.org/brazil/pt/pressrelease_20080619. html).Nas últimas décadas, com o apoio do governo dos Estados Uni-

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(1) UNOC, World Drug Report 2008, http://www.unodc.org/documents/wdr/WDR_2008/WDR_2008_eng_web.pdf(2) UNODC, World Drug Report 2008, http://www.unodc.org/documents/wdr/WDR_2008/WDR_2008_eng_web.pdf

dos, estes países iniciaram políticas de erradicação de plantios,apreensão e repressão ao tráfico. O programa mais importantefoi o Plano Colômbia, que se propunha acabar com o conflito ar-mado nesse país, elaborar uma estratégia de enfrentamento como narcotráfico, erradicar a produção de coca, revitalizar a econo-mia do país e oferecer alternativas aos produtores rurais.

As principais metas do Plano Colômbia e dos outros progra-mas de erradicação não foram alcançadas. A produção, embo-ra tenha chegado a sofrer flutuações, continua sendo suficien-te para suprir o mercado mundial: (Gráfico 1)

Apesar de os níveis de apreensão terem apresentado au-mentos consideráveis, tanto nos países exportadores comonos importadores, eles não afetaram a oferta final e nem mes-mo o preço ao consumidor. Pelo contrário, o preço da cocaínaapresenta uma tendência dominante de queda, enquanto oproduto aumenta o seu grau médio de pureza. (Gráfico 2)

Em suma, a política proibicionista se mostrou ineficaz. Nãosomente a oferta foi mantida em níveis estáveis, como os pre-ços caíram, apesar dos enormes gastos realizados pelos Esta-dos Unidos na repressão ao comércio exportador dos paísesprodutores: (Gráfico 3)

Esta situação é o resultado, em primeiro o lugar, da diferen-ça entre o preço da matéria-prima e o preço pago pelo consu-

midor final. A proibição produz um mercado que oferece lu-cros exorbitantes: (Tabela 1)

Em segundo lugar, os programas de erradicação não conse-guiram diminuir de forma relevante a produção, que se des-locou para outros lugares. O resultado efetivo da repressão foiuma mudança constante da localização da produção e dosprincipais centros de comercialização. Até meados da décadade 1990, a folha da coca era cultivada principalmente no Peru ena Bolívia, dois países que detinham 80% das plantações mun-diais da coca e que processavam as folhas em pasta. A pasta eratransportada em pequenos aviões para a Floresta Amazônicaem território colombiano, onde, então, era misturada a subs-tâncias químicas e se convertia, finalmente, em cocaína. Em se-guida, a droga era enviada para os Estados Unidos, país queconsumia mais da metade da cocaína no mundo.

A primeira mudança substancial na localização da produ-ção ocorreu com a redução das áreas de cultivo no Peru e naBolívia, compensada pelo crescimento da produção na Co-lômbia, que se tornou o maior produtor mundial. Na Colôm-bia, parte das áreas cultivadas estava localizada em territóriosob o controle das FARC — Forças Armadas Revolucionáriasda Colômbia –, que passaram a organizar os produtores e in-termediar as vendas da produção. A coca transformou-se em

Gráfico 1

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Gráfico 3

Gráfico 2

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um componente importante da receita do grupo guerrilheirocolombiano. Por sua vez, os grupos paramilitares autodeno-minados Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), tambémpassaram a participar do negócio da coca (3).

Os cartéis formados por traficantes colombianos controla-ram boa parte da exportação de coca para os Estados Unidos atéos anos 1990, quando as principais organizações ficaram enfra-quecidas. A morte e as prisões de narcotraficantes colombianoslevaram ao desmantelamento dos Cartéis de Medellín e de Cali.Isto produziu uma fragmentação do narcotráfico e o desloca-mento do controle de parte do sistema de comercialização nosEstados Unidos para o crime organizado mexicano.

Os traficantes mexicanos expandiram seu domínio sobre adistribuição de cocaína nos Estados Unidos ingressando tam-bém no mercado europeu. Isto tem levado a um aumento enor-me da criminalidade e violência associadas ao tráfico no Mé-xico, com importantes ramificações nas instituições públicas.

(...)(Tabela 2: Taxa de Homicídio Juvenil)(...)O proibicionismo ajudou a converter os Estados Unidos no

país com a maior população carcerária do mundo. O custo totalpara sustentar um traficante na cadeia nos Estados Unidos podechegar a 450 mil dólares: os custos de prisão e julgamento estãocalculados em 150 mil dólares; os custos de prover uma vagaadicional no sistema prisional é de aproximadamente 50 mil a150 mil dólares, dependendo da jurisdição; os custos de manu-tenção de um preso é de cerca de 30 mil dólares por ano — comuma condenação média de cinco anos, são 150 mil dólares. Comesta mesma quantia de 450 mil dólares, pode-se conceder tra-tamento ou educação para aproximadamente 200 pessoas.

(...)

Redução de danos, despenalizaçãoe descriminalização

Nas últimas décadas, vários países desenvolveram políticasinovadoras para enfrentar o problema do uso de drogas ilíci-tas, tendo como pilares a despenalização e/ou a descrimina-lização do usuário e a política de redução de danos.

As políticas de redução de danos consistem numa estratégiaque trata o consumo de drogas como uma questão de saúde pú-blica, na qual o dependente é visto como pessoa que precisa serauxiliada ao invés de criminoso que deve ser castigado. O ob-jetivo inicial dos países que desenvolveram a política de redu-ção de danos foi regulamentar a distribuição de seringas, agu-lhas e cachimbos aos usuários de drogas, com a finalidade de re-duzir o número de casos de doenças como AIDS e hepatite, cujorisco de contaminação é alto quando há o compartilhamento deseringas. Posteriormente esta política passou a incluir progra-mas de apoio e tratamento de pessoas dependentes.

A despenalização é definida por Cervini (4) como "o ato dediminuir a pena de um ilícito sem descriminalizá-lo, quer dizersem tirar do fato o caráter de ilícito penal". Ou seja, a proibiçãolegal do uso e porte de entorpecentes continua vigente no di-reito penal, mas o ilícito deixa de ser sancionado com a priva-ção de liberdade.

O problema colocado pela despenalização do consumo,mantendo sua criminalização, é que ela ainda outorga à auto-ridade policial um alto poder discricionário. Em países onde acorrupção da força policial é endêmica, a criminalização podeser utilizada para chantagear o usuário de drogas, prática co-mum em países da América Latina.

A alternativa à despenalização é a descriminalização, apli-cada somente ao consumidor:

Tabela 1

(3) Pecaut, Daniel. Guerra contra la sociedad, Bogotá, Editorial Espasa, 2001(4) CERVINI, Raul. Os processos de descriminalização 2ª. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p.75, em Boiteux,p.82-83.

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A descriminalização retira o status de lei criminal daque-les atos aos quais se aplica. Isso significa que certos atos dei-xam de ser considerados crimes. Em relação às drogas, geral-mente se refere à demanda; atos de aquisição, posse e consu-mo. De acordo com a descriminalização, ainda é ilegal usar,possuir, adquirir ou, em alguns casos, importar drogas, masesses atos deixam de ser crime. Entretanto, ainda podem seraplicadas sanções administrativas; essas podem ser umamulta, suspensão da licença de dirigir ou doporte de armas, ou apenas uma advertência.Ao contrário, a legalização é o processo detrazer para o controle da lei uma atividade es-pecífica que foi previamente ilegal e proibidaou estritamente regulada (5).

A política de combate às drogas, adotadaoficialmente por diversos países, associa adespenalização ou a descriminalização doconsumo a políticas de redução de danos. Estaperspectiva está provando ser um modelomais eficaz e humano, em contraste com o en-foque proibicionista.

Na maioria dos países europeus (com exce-ção de Suécia e Grécia), Canadá e Austrália, aposse de quantidades pequenas de maconhanão leva à criminalização dos usuários. Tantona prática legal como na repressão ao comér-cio, observa-se uma distinção entre drogas fra-cas e fortes. Na maioria dos países, os trafican-tes, em particular de drogas pesadas, podemser tratados com penas severas.

Apesar de apresentarem muitos aspectosem comum, as políticas nacionais mostramvariações:

- Em Portugal, Espanha e Itália, a posse dedrogas para uso pessoal foi descriminalizada.As pessoas podem estar sujeitas apenas a san-ções administrativas, como multas (que em al-guns casos podem ser retiradas se o usuárioconcordar em se submeter a um tratamento).Na Espanha, é permitido plantar maconha pa-ra uso pessoal.

- A política suíça se funda em "quatro pila-res": prevenção, terapia, redução dos riscos erepressão. Na Suíça, a posse de qualquer dro-ga para uso pessoal é tratada como uma con-travenção (submetida a sanções administrativas). Em 2001, oSenado aprovou uma lei para legalizar a posse, o cultivo e o usode maconha (para maiores de 18 anos). A medida, no entanto,foi derrotada por poucos votos na Câmara dos Deputados enum referendo recente. Apesar disso, a maconha é tolerada pe-la polícia e pode ser adquirida praticamente de forma aberta. ASuíça tem um programa pioneiro de prescrição de heroína, quefoi aprovado por um referendo nacional.

- Na Holanda, a posse de pequenas quantidades de maco-nha e seu plantio em pequena escala para uso pessoal foramdespenalizados, e sua venda e uso nos chamados coffeeshops– com licença oficial para uso e venda de maconha em peque-nas quantidades – foram descriminalizados. O objetivo ori-ginal era permitir o acesso à maconha para consumo indivi-dual, desassociando-a de drogas mais pesadas. A heroína es-tá disponível sob prescrição médica, e as salas para injeção se-

gura são disponibilizadas a dependentes. Aoferta legal de maconha não tem produzidotaxas de consumidores mais altas que em vá-rios países europeus onde o comércio perma-nece ilegal. Os coffeeshops funcionam regu-larmente desde 1976, embora sua continuida-de esteja sendo questionada pelo incômodocausado pelos turistas que visitam a Holandaexclusivamente para comprar maconha e pe-la presença de pequenos traficantes em buscade turistas para vendas de drogas pesadas.

- Em abril de 2001, Luxemburgo descrimi-nalizou o uso e porte de maconha. Problemasrelacionados ao uso, aquisição e plantio de ma-conha são tratados com sanções administrati-vas em vez de penalidades criminais.

-Na Bélgica, desde 2002, o uso de maconhafoi descriminalizado. Processos penais só sedesenvolvem e prisões só acontecem em ca-sos de grave perturbação social e da ordempública. Lei semelhante está sendo adotadano Reino Unido e já vigora há poucos anosna Irlanda.

- Na Alemanha, a posse de pequenas quan-tidades de qualquer tipo de droga foi despena-lizada (a tolerância com relação ao peso é de-terminada pelos governos regionais). Desde1994, foram abertos mais de 50 centros para in-jeção segura de heroína, com supervisão médi-ca. Desde 2002, um programa sofisticado dedisponibilização de heroína a usuários alta-mente dependentes vem funcionando emgrandes cidades.

-Na Dinamarca, a posse de pequenas quan-tidades de maconha é tratada com simples ad-vertência policial, enquanto que pequenasquantidades de cocaína ou heroína são trata-

das pela lei com advertência e apreensão. Multas são impos-tas para os reincidentes. Em certos casos de drogas pesadas,os usuários com posse de uma única dose, para uso próprio,por vezes, recebem permissão de permanecerem com a dro-ga. O motivo dado pela polícia é o de que o efeito desse tipo deapreensão seria mínimo e os custos podem ser altos já que ousuário poderá cometer um crime ou delito para obter di-nheiro para outra dose.

(5) "Decriminalisation in Europe? Recent developments in legal approaches to drug use" EMCDDA, ELDD Comparative Analysis,November 2001; European Legal Database on Drugs. Published at: http://eldd . e m c d d a . o rg / d a t a b a s e s / e l d d _ c o m p a r a t i v e _ a n a l y s e s . c f m

A política decombate às drogas,adotada oficialmentepor diversos países,associa adespenalização oua descriminalizaçãodo consumo a políticasde redução de danos.Esta perspectiva estáprovando ser um modelomais eficaz e humano,em contraste com oenfoque proibicionista.

Na Holanda, aposse de pequenasquantidades demaconha e seuplantio em pequenaescala para usopessoal foramdespenalizados,assim como a suavenda e uso emcoffeeshops.

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Tabela 2

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- Na França, embora o uso de entorpecentes não tenha sidodespenalizado, a fiscalização decide, caso a caso, se dá uma ad-vertência por uma primeira infração, aplica as penalidades cri-minais ou encaminha o usuário para tratamento. Uma diretriz,de 1999, do Ministério da Justiça, recomenda não processar oscasos de uso individual de drogas ilegais, quando não existi-rem outras infrações agravantes. Também determina que aprisão deva ser usada apenas como um "último recurso".

Em maio de 2004, a Rússia apresentou uma nova lei quesubstitui a prisão de usuários por multas administrativas paraa posse de "até duas doses" de qualquer drogapara uso pessoal. No entanto, estrangeiros po-dem ser expulsos ou ter negadas futuras entra-das no país caso se envolvam em casos de in-frações por posse de drogas.

Na América do Norte, as políticas igual-mente estão mudando. No Canadá, o debatesobre a política de combate às drogas vem evo-luindo rapidamente nos últimos anos. Umacomissão do Senado canadense propôs a lega-lização da maconha, bem como a realização dereformas importantes na legislação de preven-ção e repressão às drogas.

Até mesmo nos Estados Unidos, várias le-gislações estaduais e municipais garantemtratamento diferenciado aos usuários dedrogas leves. Há mais de 35 anos, em outu-bro de 1973, o estado de Oregon reduziu a in-fração de posse inferior a 30 gramas de ma-conha para uma "violação civil", com penamáxima de uma multa de 100 dólares. Dezoutros Estados americanos (incluindo oAlasca, que chegou a descriminalizar a pos-se para uso pessoal) promulgaram leis quereduziram para apenas uma multa a penamáxima por posse de maconha. No estadoda Califórnia, a maconha não só tem sua pro-dução permitida para "uso médico", comotambém já é taxada.

O uso de maconha para fins medicinais eterapêuticos foi descriminalizado no iníciode dezembro de 2008 no Estado do Michi-gan. Michigan tornou-se, assim, o 13º Estadodo país a legalizar a maconha para uso clíni-co e terapêutico, apesar das leis não seremclaras com relação aos meios de obtenção daerva. A lei, aprovada em referendo por elei-tores, permite que pacientes com câncer, AIDS, glaucoma ealgumas outras doenças utilizem a maconha, sob recomen-dação médica, como forma de amenizar os sintomas tantodas doenças como dos respectivos tratamentos. As pessoashabilitadas podem se registrar oficialmente na burocraciado estado para receber carteiras especiais de identificação.As pessoas com posse dessa carteira "poderão adquirir, pos-suir, portar e cultivar uma quantidade limitada – não ultra-passando o peso de 2,5 onças (cerca de 30 gramas) e 12 plan-tas – de maconha. Os contemplados com esse direito de pos-

se, cultivo e consumo, podem ainda nomear uma outra pes-soa – de quem sejam dependentes ou recebam cuidados –para ganhar a "carteira da maconha".

A lei é aplicada de forma muito diferente segundo o estadoe município. Na cidade de São Francisco, por exemplo, proli-feram pequenos estabelecimentos – quase sempre cafés ou lan-chonetes – que têm à disposição para venda cigarros, chás e li-mitadas quantidades de maconha. Apesar de ilegal, a políciararamente intervém nesse tipo de comércio.

(...)

Novas dinâmicas na América Latina

Na América Latina, vários países imple-mentaram – ou estão em vias de implementar– políticas para despenalizar a posse para usopessoal de drogas ilícitas. Estão entre eles Ve-nezuela, Argentina, Colômbia e Brasil. Alémdisso, cresce, nos países da região andina comtradições ancestrais de uso da coca, a exigên-cia de respeito a culturas locais e a procura deusos alternativos. Pequenos cultivos de folhade coca na Bolívia são diferenciados dos celei-ros do tráfico, e o lema do presidente Evo Mo-rales é "cocaína zero, mas não coca zero" – umobjetivo ainda a ser atingido, pois a Bolíviacontinua sendo um importante produtor decoca para usos ilícitos. Desde 1988, a Bolíviapermite, por lei, o cultivo da coca, para mas-car ou fazer infusões, em até 12 mil hectares. Aparcela foi ampliada em 2004. O que ultrapas-sa a área deve ser erradicado. Embora des-contente e pressionando por limites menoresde cultivo, a Casa Branca cedeu ao formato econtinuou enviando ajuda ao governo pararealizar ações antidrogas. A cooperação, po-rém, foi suspensa com o veto de La Paz às er-radicações forçadas.

No Brasil, a primeira política nacional decontrole de drogas foi formulada pelo gover-no do presidente Fernando Henrique Cardo-so, através da criação do Secretariado Nacio-nal das Drogas, que deveria desenvolveruma orientação para conciliar métodos derepressão, planos de prevenção e redução dedemanda. Em 2006, sob o governo do presi-dente Luis Inácio Lula da Silva, a política de

drogas foi realinhada com a Lei nº. 11.343, fortalecendoações de prevenção e garantindo medidas educativas, emlugar de penas para usuários, e espaço para cultivo de plan-tas para uso comprovadamente pessoal.

No México, em março de 2003, o ex-presidente mexicanoVicente Fox fez o seguinte comentário: "Minha opinião é deque, no México, não é delito possuir ou portar no bolso umaquantidade pequena de droga. […] a Humanidade um diaverá a legalização das drogas como a alternativa mais sen-sata". Já em outubro passado, o presidente mexicano Felipe

No Estado daCalifórnia, amaconha não sótem sua produçãopermitida para"uso médico", comotambém já é taxada.O uso de maconhapara fins medicinaise terapêuticos foidescriminalizado noinício de dezembrode 2008 no Estadode Michigan.

No Brasil, aprimeira políticanacional de controle dedrogas foi formuladapelo governo dopresidente FernandoHenrique Cardoso,através da criação doSecretariado Nacionaldas Drogas.

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Calderón enviou um projeto de lei que descriminaliza a pos-se de pequenas quantidades de drogas com o objetivo demanter viva sua cruzada contra o narcotráfico e acalmar aviolência das ruas. A iniciativa de Calderón propõe que nãosejam punidos usuários com quem acharem até dois gramasde maconha, 50 miligramas de heroína, 500 miligramas decocaína e 40 miligramas de metanfetamina.

A medida pretende diferenciar, de formalegal, o consumidor, o fornecedor e o vende-dor de drogas. "O que se busca é tratar o de-pendente não como um delinquente, massim como um enfermo e dar-lhe tratamentopsicológico ou médico", comentou o senadorAlejandro González, presidente da Comis-são de Justiça do Senado mexicano.

(...)

Encarando o futuro

O incremento da violência na América Lati-na, em boa medida associada ao tráfico de dro-gas, tem se transformado nos últimos anosnum dos principais problemas para os cida-dãos e as instituições democráticas da região. Aorientação de combater as drogas pela proibi-ção, repressão, sanção e punição não só não re-solve o problema, como gera outros novos emais graves. A experiência com drogas legais,como o tabagismo e o alcoolismo, indica quepodem ser obtidos resultados altamente posi-tivos utilizando campanhas de informação,educação e conscientização e, quando necessá-rio, apoio terapêutico.

Mesmo com forte repressão policial-militar,erradicação de plantações, danos causados àsestruturas físicas do narcotráfico e com as cons-tantes apreensões de vultosos carregamentosde drogas, as margens de lucro do crime orga-nizado superam, amplamente, seus prejuízos.A oferta de coca foi suficiente para suprir osmercados e inclusive baixar os preços.

Como já foi dito, os conflitos envolvendo aprodução ilegal para a exportação e para oconsumo interno levaram a região a ter osmaiores índices de homicídios do planeta. Olucro das drogas é o principal financiador docomércio ilegal de armas e milhares de jo-vens são mortos em lutas internas pelo con-

trole do comércio ou em combates com a polícia ou com mi-litares, que também são vítimas fatais desta guerra singular.Parte das forças responsáveis pela manutenção da ordem edas estruturas de poder foi cooptada pelo crime organizado,e o poder corruptor do dinheiro associado ao tráfico de dro-gas penetra em todos os níveis dos poderes públicos e corróios próprios fundamentos da democracia.

Como enfrentar este problema? A estratégia centrada fun-damentalmente na repressão fracassou na América Latina. O

Mesmo com forte repressãopolicial-militar, erradicação deplantações, danos causados àsestruturas físicas do narcotráficoe com as constantes apreensõesde vultosos carregamentos dedrogas, as margens de lucro docrime organizado superam,amplamente, seus prejuízos.

Paulo Pampolin/Hype

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28 DIGESTO ECONÔMICO SETEMBRO/OUTUBRO 2009

desejo de um mundo sem drogas não constitui um horizonterealista e, portanto, não pode ser o fundamento de políticaspúblicas, cujos objetivos devem ter como prioridade a preven-ção, o tratamento e a redução de danos para o conjunto da so-ciedade, os indivíduos, as famílias e as instituições.

Apesar da importância e da gravidade que o tema apre-senta para os cidadãos da região, ele é tratado marginal-mente nas campanhas eleitorais, na mídia e no debate pú-blico em geral. Os avanços na região – e muitos deles impor-tantes – feitos por diversos países na legislação ou nas for-

cundários extremamente maléficos (como utilização de serin-gas contaminadas que veiculam doenças contagiosas, como oHIV), têm-se mostrado um modelo mais eficaz e humano.

Na América Latina, diversos países implementaram (ouestão em vias de adotar) políticas de despenalização de pos-se de drogas para uso pessoal, entre eles o Uruguai, a Vene-zuela, a Colômbia, a Argentina e o Brasil. Além disso, cres-cem na região novas formas de pensar e agir na luta contra asdrogas com foco nos direitos humanos, no respeito às cul-turas ancestrais e na busca de novos tipos de cultivos e de

usos alternativos.Parte da legislação e das políticas públicas,

nos diferentes países da região, se mostra in-suficiente e/ou ineficaz para conter o uso e acomercialização das drogas. Mudanças na le-gislação, campanhas de educação, tratamen-to dos consumidores, informação e conscien-tização são elementos centrais para lidar comos problemas citados. As declarações claras afavor da despenalização, ou mesmo da des-criminalização, da regulação e do tratamentodo problema da droga como questão de saú-de pública, partem hoje de figuras dos diver-sos países da região e diferentes matizes ideo-lógicos e partidários.

As campanhas de conscientização dos ma-lefícios das drogas, das quais devem participaros meios de comunicação, os formadores deopinião pública, o sistema educacional e as or-ganizações da sociedade civil, deverão utilizarmensagens eficazes e realistas, que atinjamefetivamente o público receptor. A mobiliza-ção de ex-viciados que transmitam o drama vi-vido, certamente, impacta muito mais que pe-tições de princípios.

Os sistemas de saúde pública devem ser ca-pacitados e dotados de recursos para apoiar osdependentes, assim como é preciso apoiar or-ganizações da sociedade civil dedicadas aotratamento de dependentes.

As forças de segurança pública deveriamfocalizar seus esforços e recursos na luta con-tra o crime organizado e o tráfico de armas aele associado, procurando desmantelar as

grandes redes de comércio de drogas e de armas e de lava-gem de dinheiro. Esforços desmedidos na repressão dousuário representam um desperdício de recursos limitadose abre as portas de formadesnecessária à corrupção das for-ças policiais e militares.

A política de segurança deverá se orientar por um sólido sis-tema de inteligência. Sem ele, a repressão é ineficaz e seus efei-tos sociais podem ser até contraproducentes. As novas políti-cas deverão utilizar perícias sobre a qualidade das drogas ilí-citas utilizadas e estudos sobre seus impactos na saúde. O co-nhecimento produzido em nível nacional deve sercompartilhado entre os países da região, o que permitirá inclu-sive identificar origem e rotas das drogas.

Juan Carlos Ramirez Abadia é um dos maiores traficantes de drogas daColômbia. Ele foi preso em 2007 em Aldeia da Serra, Grande São Paulo.

Márcio Fernandes/AE

mas práticas de tratar a questão, assim como as declaraçõespúblicas realizadas por líderes políticos, embora represen-tem passos importantes, ainda são insuficientes. Os gover-nos e as sociedades da América Latina devem aprofundar odebate sobre o fenômeno das drogas. Com a ausência deuma discussão ampla e bem informada, os problemas rela-tivos à violência, à corrupção e à erosão do poder públicotendem não somente a se agravar, como se tornam cada vezmais difíceis de serem resolvidos.

As políticas de combate às drogas, adotadas oficialmentepor diversos países, em particular na Europa, com enfoque nadespenalização ou na descriminalização do consumo, no tra-tamento das pessoas dependentes, na prevenção de efeitos se-

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Novas políticas e campanhas educativas devem estar acom-panhadas de pesquisa sistemática que apoie a tomada de de-cisões para agir de forma eficaz na prevenção, informação,educação e tratamento. Observatórios de pesquisa devem es-tudar regularmente os padrões e mudanças no uso de drogasilícitas, de acordo com tipos, faixas etárias e estratos sociais dosusuários. Isto exige um acompanhamento constante sobre oque está acontecendo com os consumidores, incluindo conse-quências indiretas, como transmissão de HIV (seja por via se-xual sob efeitos de drogas, seja por via sanguínea no compar-tilhamento de seringas).

A procura de alternativas de desenvolvimento rural quecrie infraestrutura e mercados viáveis para os atuais produ-tores de drogas ilícitas não deve excluir a priori a possibi-lidade do aproveitamento lícito das mesmas. Novas pesqui-sas científicas podem valorizar o uso da maconha e da cocacomo ingredientes para aplicações medicinais, uso culiná-rio, goma de mascar, produção de fibras extremamente re-sistentes para uso têxtil e cordas, produtos de higiene, bio-combustíveis e plásticos vegetais.

A construção do bem comum exige soluções corajosasque só podem ser desenvolvidas por um debate aberto quefortaleça a disposição a experimentar novas soluções. Trata-

se de um tema complexo que exige a mobilização das maisdiversas áreas de conhecimento e da ação coordenada dasvárias instituições e de políticas públicas. Nele, deverãoparticipar parlamentos, governos, poder judiciário, órgãosde segurança pública, especialistas do setor de saúde e or-ganizações da sociedade civil, para um diálogo aberto e in-formado, que transcenda os interesses corporativos. Umproblema complexo exige a mobilização dos mais diversossaberes e instituições, que tratem o problema através de po-líticas integradas.

O problema das drogas deve ser debatido frontalmente –através de discussões, debates, estudos, pesquisas – por cadapaís e pelo conjunto da região. Ele não apenas afeta as respec-tivas sociedades, como cria espaços de criminalidade que des-conhecem limites nacionais. O tema exige, portanto, novos fó-runs de debate em cada país e em nível regional, que possibi-litem a livre e intensa discussão, o intercâmbio de experiênciaslocais e a busca de soluções conjuntas para uma problemáticaregional. Região que mais tem sofrido com as consequênciasnegativas da política de "guerra às drogas", a América Latinapode contribuir efetivamente para a busca de novos paradig-mas no enfrentamento dos problemas postos pelo comércio e oconsumo das drogas ilícitas.

Mariana Bazo/Reuters

A construção do bem comum exige soluções corajosas que só podem ser desenvolvidas por um debate aberto (...)

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Divulgação

Antonio MariaCostaDiretor Executivo doEscritório das NaçõesUnidas sobre Drogase Crime (UNODC)

ONU tem

Prefácio do Sumário Executivo do relatório World Drug Report 2009 - disponível em: http://www.unodc.org/pdf/brazil/WDR2009/ WDR_2009_Sumario_ Executivo_em_portugues.pdf

à legalizaçãoposição contrária

O fim do primeiro século de en-frentamento às drogas (que teveinício em Xangai, no ano de1909) coincidiu com o término

da década UNGASS (Sessão Especial da As-sembleia Geral sobre Drogas, lançada em1998). Esses marcos estimularam a reflexãoacerca da efetividade, e também das limita-ções, da política sobre drogas. Essa reflexão re-sultou na reafirmação de que as drogas conti-nuam a exercer perigo à saúde da humanida-de. Por esta razão são, e devem continuar sen-do, combatidas. A partir dessa premissa, osEstados-Membros reiteraram total apoio àsConvenções que a ONU estabeleceu no siste-ma mundial de enfrentamento às drogas.

Simultaneamente, o UNODC ressaltou al-guns efeitos negativos, e obviamente indese-jados, do controle das drogas, realizando umnecessário debate acerca dos modos e meiospara lidar com esses efeitos. Recentemente,tem-se ouvido algumas poucas vozes, porémem número crescente, entre os políticos, a im-prensa e até na opinião pública, dizendo: o en-frentamento às drogas não está funcionando.E a frequência na disseminação dessa mensa-gem está em ascensão.

Grande parte desse debate público é carac-terizada por amplas generalizações e soluçõessimplistas. Porém, a essência da discussão su-

blinha a necessidade de se avaliar a eficácia daatual abordagem. Após um estudo do proble-ma, com base em nossos dados, o UNODCconcluiu que, considerando que mudançassão necessárias, elas deveriam focar em dife-rentes meios para proteger a sociedade dasdrogas, ao invés de perseguir uma meta dife-rente de abandonar essa proteção.

A. O que é o debate sobre a fim docontrole às drogas?

Diversos argumentos têm surgido em fa-vor do fim do controle às drogas, baseadosnas áreas (I) econômica, de (II) saúde e de(III) segurança, além de combinações entreas três áreas.

I. O argumento econômico para a legaliza-ção diz: legalize as drogas e gere mais impos-tos. Esse argumento está ganhando espaço àmedida que as administrações nacionais bus-cam novas fontes de receita durante a crise eco-nômica atual. Esse argumento "legalize e taxe"é antiético e antieconômico. Ele propõe umataxa perversa, de geração sobre geração, em ci-ma de grupos marginalizados (entregues aovício), a fim de estimular a recuperação econô-mica. Serão os partidários dessa causa tam-bém favoráveis à legalização e à taxação sobre

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O crescimento desenfreadoobservado no passadoperdeu força. O Relatório2009 traz evidências deque o cultivo de drogas(ópio e coca) está estávelou em declínio.

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outros crimes abomináveis, como o tráfico depessoas? Os escravos modernos (que são mi-lhares) certamente gerariam boas receitas emimpostos para recuperar bancos falidos. O ar-gumento econômico também está baseado emuma lógica fiscal frágil: qualquer redução nocusto do controle das drogas (devido a gastosmais baixos com a fiscalização) será compen-sada por um gasto com a saúde pública muitomaior (devido ao aumento no consumo dedrogas). Moral da história: não transformetransações perversas em legais só porque elassão difíceis de fiscalizar.

II. Outros defendem que, com a legaliza-ção, uma ameaça à saúde (na forma de umaepidemia de drogas) poderia ser evitada apartir de regulação por parte do Estado aomercado de drogas. Novamente isso é ingê-nuo e míope. Primeiramente, quanto maisleve é a fiscalização (em tudo), maior será emais rapidamente emergirá um mercado pa-ralelo (do crime) – invalidando, desta forma,o conceito. Em segundo lugar, apenas pou-cos países (os ricos) poderiam financiarmeios de controle tão elaborados. E o restoda humanidade (que é a maioria)? Por quedeflagrar uma epidemia de drogas nos paí-ses em desenvolvimento em nome de umdiscurso de liberalização, ostentado por umlobby de quem se dá ao luxo de ter acesso atratamento contra as drogas? As drogas nãosão prejudiciais porque são ilegais – elas sãoilegais porque são prejudiciais. E causamprejuízos tanto aos viciados ricos e bonitos,quanto aos pobres e marginalizados.

As estatísticas sobre drogas continuam fa-lando em alto e bom som. O crescimento de-senfreado observado no passado perdeuforça e a crise dos anos 90 parece estar sobcontrole. O Relatório 2009 (World Drug Re-port 2009) traz evidências de que o cultivo dedrogas (ópio e coca) está estável ou em declí-nio. E mais importante: os maiores mercadosde ópio (Europa e o Sudeste Asiático), de co-caína (América do Norte), e de maconha(América do Norte, Oceania e Europa) estãodiminuindo. O aumento no consumo de es-timulantes sintéticos, principalmente noLeste Asiático e no Oriente Médio, é motivode preocupação, ainda que o uso dessassubstâncias esteja diminuindo nos paísesdesenvolvidos.

III. As preocupações mais sérias estão rela-cionadas ao crime organizado. Mas todas asatividades de mercado fiscalizadas pelas au-

toridades geram transações paralelas e ilegais,como dito anteriormente. O controle das dro-gas inevitavelmente gerou um mercado crimi-noso de dimensões macroeconômicas, que seutiliza da violência e da corrupção para inter-mediar a demanda e o fornecimento. Com a le-galização das drogas, o crime organizado per-deria sua linha de atividade mais lucrativa,afirmam os críticos.

Pois não é bem assim. O UNODC está cien-te da ameaça que representam as máfias in-ternacionais de drogas. Nossas estimativassobre o valor do mercado de narcóticos (em2005) foram inovadoras. O Escritório tam-bém foi responsável pelo primeiro alerta so-bre a ameaça do tráfico de drogas em paísesdo Leste e do Oeste da África, do Caribe, daAmérica Central e dos Bálcãs. Com isso, res-saltamos a ameaça que o crime organizadorepresenta à segurança, um problema quehoje é periodicamente abordado pelo Conse-lho de Segurança da ONU.

Tendo iniciado esse debate sobre dro-gas/crime, e após longa ponderação, con-cluímos que esses argumentos sobre o crimeorganizado relacionado às drogas são váli-dos. Eles devem ser considerados. Peço ur-gência aos governos que rearranjem a com-binação de suas políticas, sem perdermosmais tempo, aumentando o enfrentamentoao crime, sem diminuir o enfrentamento àsdrogas. Em outras palavras, enquanto o dis-curso sobre a criminalidade das drogas estácerto, as conclusões alcançadas por seus pro-positores são imperfeitas.

Por que? Pois nós não estamos aqui contan-do feijão, estamos contando vidas. A políticaeconômica é a arte de se contar feijão (dinhei-ro) e de se administrar os dilemas: inflação ver-sus emprego, consumo versus poupança, ba-lança comercial interna versus externa. Comvidas é diferente. Se começarmos a comercia-lizá-las, terminaremos violando os direitoshumanos de alguém. Não pode haver trocas,nem compensações quando a saúde e a segu-rança estão em risco: a sociedade moderna de-ve, e pode, proteger ambos os problemas comabsoluta determinação.

Faço um apelo aos heróicos partidários dacausa dos direitos humanos em todo o mundoque auxiliem o UNODC a promover o direito àsaúde dos viciados em drogas: eles precisamser assistidos e reintegrados à sociedade. O ví-cio é uma questão de saúde e aqueles que estãoafetados por ele não devem ser presos, feridosou, como sugerido pelos proponentes desseargumento, comercializados, a fim de reduzir

Por quedeflagrar umaepidemia de drogasnos países emdesenvolvimento emnome de um discursode liberalização,ostentado por umlobby de quem se dáao luxo de ter acessoa tratamento contraas drogas?

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a ameaça à segurança por parte das máfias in-ternacionais. De fato, esse último argumentodeve ser abordado, e abaixo seguem nossas su-gestões para isso.

B. Um conjunto de medidasmais bem equilibrado

A relação entre drogas e crime foi o assuntode um relatório intitulado O Crime Organizadoe sua Ameaça à Segurança: atacando uma con-sequência perturbadora do controle das drogas(1)que apresentei à Comissão sobre Narcóticos eà Comissão sobre o Crime em 2009. Devido àimportância desse tema, direcionamos o capí-tulo temático do Relatório deste ano para umaanálise mais aprofundada do problema e desuas implicações políticas. E aqui estão algunsdos pontos principais.

Primeiramente, o foco de penalização de-ve mudar do usuário de drogas para o trafi-cante. O vício das drogas é uma questão desaúde: as pessoas que usam drogas precisamde ajuda médica, e não de sanção criminal. Aatenção deve ser dada aos usuários que fa-zem uso intenso de drogas. São eles que con-somem a maior parte das drogas, causam umenorme dano a si mesmos e à sociedade – e ge-ram a maior renda para as máfias de drogas.O acompanhamento e a assistência médicatendem a construir sociedades mais saudá-veis e seguras do que o encarceramento. Peçoaos Países-Membros que busquem a meta deacesso universal ao tratamento de usuáriosde drogas como compromisso de salvar vidase de reduzir a demanda de drogas: a queda nofornecimento e das receitas relacionadas àsdrogas serão consequência disso. Vamosavançar em direção a essa meta nos próximosanos e então avaliar seu impacto benéfico napróxima reunião dos Estados-Membros, afim de revisar a eficácia da política de enfren-tamento às drogas (2015).

Em segundo lugar, devemos por fim à tra-gédia que são as cidades sem o controle dasautoridades. As vendas de drogas, assim co-mo outros crimes, ocorrem mais frequente-mente em áreas urbanas controladas por gru-pos criminosos. E esse problema será aindamais grave nas megalópoles do futuro, casoas autoridades não acompanhem a urbaniza-ção. Até porque prender indivíduos e apre-ender drogas para uso pessoal é como limpar

ervas daninhas – deve ser feito novamente nodia seguinte. O problema somente pode sersolucionado com o enfrentamento ao proble-ma das favelas e do abandono das nossas ci-dades, por meio de recuperação da infraes-trutura e de investimento nas pessoas – espe-cialmente na assistência aos jovens, que sãovulneráveis às drogas e ao crime, com educa-ção, trabalhos e esporte. Os guetos não criamviciados e desempregados: frequentementeocorre o inverso. E é nesse processo que os cri-minosos prosperam.

Em terceiro lugar, e este é o ponto mais im-portante, os governos devem se utilizar, in-dividual e coletivamente, dos acordos inter-nacionais contra os transgressores. Isto sig-nifica ratificar e aplicar a Convenção daONU contra o Crime Organizado (TOC) econtra a Corrupção (CAC), e os protocolosrelacionados ao tráfico de pessoas, armas emigrantes. Até agora, a comunidade inter-nacional não tem levado a sério esses com-prometimentos internacionais. Enquanto osmoradores das favelas sofrem, a África vivesob ataque, os cartéis do narcotráfico amea-çam a América Latina e criminosos se apro-priam de instituições financeiras falidas, ne-gociadores inexperientes discutem nas Con-ferências e Convenções sobre questões buro-cráticas e noções obscuras de inclusão,propriedade, alcance e não-ranqueamento.Há inúmeras lacunas na implementação dasConvenções de Palermo e de Mérida, anosapós a entrada delas em vigor, a ponto quevários países enfrentam problemas com ocrime, amplamente causados por suas pró-prias escolhas. E isso já é ruim o bastante.Pior ainda é o fato de que, com frequência, vi-zinhos vulneráveis pagam um preço aindamais alto por isso.

Há muito ainda a ser feito por nossos países,a fim de enfrentar a força brutal do crime orga-nizado: o contexto interno no qual os crimino-sos operam também deve ser abordado.

•A Lavagem de dinheiro ocorre em grandeescala e praticamente sem oposição, em umperíodo em que os empréstimos interbancá-rios secaram. As recomendações concebidaspara prevenir o uso de instituições financei-ras para a lavagem de dinheiro de origem ilí-cita hoje estão sendo violadas. Em tempos degrandes falências dos bancos, os banqueiros

(1) E/CN.15/2009/CRP.4 - E/CN.7/2009/CRP.4;h t t p : / / w w w. u n o d c . o rg / u n o d c / e n / c o m m i s s i o n s / C C P C J / s e s s i o n / 1 8 . h t m l

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parecem acreditar que o dinheiro não temcheiro. Cidadãos honestos, que estão lutandoem tempos de dificuldades econômicas, que-rem saber porquê os crimes – transformadosem imóveis, carros, barcos e aviões ostento-sos – continuam não sendo apreendidos.

• Outro contexto que merece atenção é rela-cionado a um dos maiores bens da humanidade,a internet. Ela mudou nossas vidas, especial-mente a forma com que conduzimos os negó-cios, a comunicação, a pesquisa e o entreteni-mento. Porém a internet também se transfor-mou em uma arma de destruição em massa pe-los criminosos (e terroristas). De formasurpreendente, e apesar da atual onda de crimes,chamados por novas formas de ação contra a la-vagem de dinheiro e os crimes cibernéticos con-tinuam sem resposta. Nesse processo, a políticasobre drogas leva a culpa e é subvertida.

C. Um duplo "NÃO"

Para concluir, o crime organizado transna-cional jamais será eliminado pela legalizaçãodas drogas. Os cofres das máfias são igual-

mente nutridos pelo tráfico de armas, de pes-soas e seus órgãos, pela falsificação, pelo con-trabando, pela extorsão e pela agiotagem,além de sequestro, pirataria e agressões aomeio ambiente (desmatamento ilegal, despejode lixo tóxico etc.). O argumento sobre a rela-ção drogas/crime, como discutido acima, nãopassa de uma antiga campanha de legalizaçãodas drogas, defendida insistentemente pelolobby pró-drogas (note-se que os partidáriosdessa ideia não ampliariam o conceito para asarmas, cujo controle – segundo eles – deveriaser realizado amplamente: literalmente, nãoàs armas, sim às drogas).

Até agora a campanha pela legalização dasdrogas vem, felizmente, sofrendo oposição porparte da maior parte da sociedade. As políticasde enfrentamento ao crime devem, sim, mudar.Não basta mais dizer não às drogas. Temos queafirmar com a mesma veemência: não ao crime.

Não há alternativa senão a melhoria tantoda segurança, quanto da saúde. O fim da res-trição às drogas é um erro épico. E igualmen-te catastrófica é a atual negligência diante daameaça à segurança representada pelo crimeo rg a n i z a d o .

Até agora acampanha pelalegalização das

drogas vem,felizmente,

sofrendooposição por

parte da maiorparte da

sociedade.

Ramzi Haidar/AFP

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As Guerras do Ópio,A papoula é umaplanta que dáflores de pétalasvermelhas, oubrancas, origináriada Ásia Menor.O ópio contémalcaloides como amorfina, codeína,papaverina. As duas únicas guerras – bem entendi-

do, entre nações, fora as guerras nasruas promovidas pelo tráfico e suarepressão – provocadas por drogas

giraram em torno do ópio, e foram do Ocidentecontra a China, em meados do século 19, paraobrigar o governo chinês a aceitar a entrada legaldessa droga, extraída da papoula.. Essas guerrasocorreram entre 1839 e 1842, quando a Grã-Bre-tanha atacou a China, e entre 1856 e 1860, quandotropas britânicas foram ajudadas por tropasfrancesas ao atacarem de novo o território chi-nês. O ópio foi assim um presente de grego doOcidente para a China. Se a memória dessesacontecimentos está um tanto apagada entre osocidentais, ela está bem viva entre os chineses,que não esquecem as humilhações que seu paíspassou e que juram que nunca mais vai passar.

Goran Tomasevic/Reuters

Ópio é uma palavra grega que significa"suquinho". Trata-se de uma substância mar-rom amarelada, bastante amarga; é o suco de-sidratado da vagem da papoula, semelhanteà vagem das ervilhas, suco leitoso extraídoquando a vagem da papoula ainda está ver-de, logo antes de amadurecer. A papoula éuma planta que dá flores de pétalas verme-lhas, ou brancas, originária da Ásia Menor. Oópio contém alcalóides como a morfina, co-deína, papaverina, narcotina, narceína e nos-capina, e constitui uma droga que logo esta-belece dependência. A morfina e a codeínaagem sobre o sistema nervoso, com os mes-mos efeitos das endorfinas naturais do orga-nismo, hormônios que reduzem a dor e ge-ram sensações e emoções prazerosas, comosonhos, mas a morfina e a codeína intensifi-

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cam artificialmente esses efeitos naturais.Medicamente, a morfina e a codeína são usa-das como potentes analgésicos, mas são nar-cóticas e facilmente geram dependência. Já apapaverina e a noscapina aliviam os espas-mos dos músculos lisos e não são narcóticas,nem geram dependência.

O dependente de ópio, droga que é comidaou fumada, sofre deterioração física e mental epode morrer prematuramente de crise respi-ratória por overdose. As indicações são de quea deterioração física e mental não é causada or-ganicamente de modo direto pela droga, quesomente parece afetar em algum grau o siste-ma imunológico. Ocorre que o dependente,além do efeito analgésico, sofre a narcose, umestado de estupor. Isso o incapacita para traba-lhar e também para se alimentar direito e para

se cuidar higienicamente, o que gera a deterio-ração física e mental. Sem contar a deteriora-ção moral originada pelos expedientes escu-sos, e até violentos, para obter a droga.

Por refino do ópio, se extrai a morfina, drogamais potente; por refino da morfina, se extrai aheroína, droga de efeitos muito mais potentes.A tintura de ópio (isto é, mistura com álcool) sechama láudano; o elixir paregórico é uma mis-tura de ópio, álcool e cânfora. Até o século 19 oláudano era usado como remédio (sonífero eanalgésico), mas foi abandonado por causardependência; célebres dependentes de láuda-no foram o escritor americano Edgar Allan Poee o músico russo Mussorgski. O elixir paregó-rico ainda é usado contra diarréia, mas nãomais como antitussígeno.

O ópio já era usado pelos sumérios 4 mil

sua história, livros e filmeRenato Pompeu

O comércio britânico com a China era altamente deficitário, por causa da grande importação de chá, que tinha de ser pagaem dinheiro vivo, especificamente com prata, porque os chineses praticamente não importavam produtos ocidentais.

Fotos: Reprodução

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anos antes de Cristo e logo em seguida se espalhou pela Gréciae Europa, mas só com a expansão do islamismo é que foi in-troduzido na Índia e, posteriormente, na China. Entre os chi-neses, no entanto, até a passagem do século 18 para o século 19,o ópio era pouco difundido, até que passou a ser maciçamenteintroduzido na China, no começo do século 19 por comercian-tes britânicos estabelecidos na Índia re-cém colonizada pela Grã-Bretanha.

Ocorre que o comércio britânicocom a China era altamente deficitário,por causa da grande importação dechá, que tinha de ser paga em dinheirovivo, especificamente com prata, por-que os chineses praticamente não im-portavam produtos ocidentais. Os co-merciantes britânicos passaram a difundir o ópio na China,para pagar com cargas de ópio as cargas de chá e assim nãoter de pagar o chá com dinheiro vivo.

Cumpre notar que, ciente dos malefícios provocados peloópio, o governo chinês havia proibido seu consumo e seu comér-cio dentro de seu território. Na Grã-Bretanha, no entanto, na épo-ca o consumo de ópio era livre e legal, como mostra o famoso li-

vro "Confissões de um Comedor Inglês de Ópio", publicado apartir de 1821 pelo escritor inglês Thomas DeQuincey, em que elenarra sua própria experiência de dependente do ópio e sonhosfantásticos e hipercoloridos que costumava ter com o uso do nar-cótico. E como mostra também a famosa frase do teórico comu-nista alemão Karl Marx, segundo a qual a religião é "o ópio do

povo", referência a que o ópio em si era de livreconsumo na Londres em que Marx escrevia,só que era muito caro, reservado aos ricos.

Em 1839, irritado com a desenvoltura doscontrabandistas britânicos de ópio, o governochinês apreendeu um grande carregamento dadroga no porto de Guangzhou (em português,Cantão). A Marinha Real britânica enviou então,naquele mesmo ano, canhoneiras para bombar-

dear grande número de cidades litorâneas da China. As forçaschinesas não puderam resistir aos armamentos muito mais mo-dernos dos britânicos e capitularam em 1842, quando foi firma-do entre as duas partes o Tratado de Nanquim; no ano seguinteGrã-Bretanha e China assinaram um tratado suplementar.

Os tratados eram leoninos. Por eles, a China abria ao comérciodo ópio e de quaisquer outros produtos britânicos os seus cinco

O ópio já era usado pelos sumérios 4 mil anos antes de Cristo e logo em seguida se espalhou pela Grécia e Europa.

Goran Tomasevic/Reuters

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principais portos, entre eles Guangzhou e Shanghai (Xangai); es-ses portos eram declarados "zonas de residência" para cidadãosbritânicos, que ficariam sob a jurisdição das leis britânicas e se-riam isentados de cumprir as leis chinesas. Além disso, a Chinacedia Hong Kong à Grã-Bretanha (assim, ironicamente, as ins-tituições de hoje em Hong Kong, mais democráticas do que norestante da China, são uma herança... do ópio!) Com o tempo, ogoverno chinês foi abrindo esses portos e essas "zonas de resi-dência" a nacionais de outros países ocidentais.

De qualquer modo, o governo chinês só havia legalizado aimportação de ópio nesses seus cinco principais portos, e nãoem todo o país. Assim, em 1856 autoridades chinesas apreen-deram o carregamento de ópio de um navio britânico, o "Ar-row", ao largo de Guangzhou, mas fora de seu porto. A Grã-Bretanha alegou ilegalidade nessa apreensão e, com o auxíliode tropas francesas, atacou de novo a China. Novamente der-rotado, o governo chinês assinou em 1858 o Tratado de Tianjin,que abria outros onze portos para a Grã-Bretanha, França, Es-tados Unidos e Rússia, estabelecendo "zonas de residência"para os nacionais desses países na própria Beijing (Pequim),liberando a ação de missionários cristãos em território chinês –e legalizando o comércio de ópio em todo o país.

Entretanto, em 1859 o governo imperial chinês criou obstá-culos para as legações estrangeiras em Pequim, o que levou tro-pas britânicas e francesas não só a ocuparem Pequim, mas tam-bém a destruírem o Palácio Imperial de Verão. A partir de 1860,o governo chinês voltou a respeitar os direitos especiais de ci-dadãos britânicos, franceses, americanos e russos, só abolidosem 1917 para estes últimos, por decisão das autoridades sovié-ticas, e em 1949, com a vitória dos comunistas na China, para osdemais, por decisão do novo governo chinês.

Na China, esses acordos ficaram conhecidos como os Tra-tados Desiguais, e provocaram revoltas entre o povo chinês,mais exatamente a Rebelião dos Taiping (1850-1864), a Rebe-l ião dos Boxers( 1 8 9 9 - 1 9 0 1 ) e aqueda da dinastiam a n c h u Q i n g ,com a proclama-ção da Repúblicaem 1912. Essas re-voltas foram o pre-lúdio da RevoluçãoComunista e assim oópio está na raiz dam o d e r n i z a ç ã o d aChina, hoje o país que mais cresce no mundo.

O ópio continuou sendo um problema grave de saúde pú-blica na China até a tomada do poder pelos comunistas, em-bora tivesse sido de novo declarado ilegal com a proclamaçãoda República. A gravidade do problema está registrada no ro-mance "A Condição Humana", do francês André Malraux, emque a ação se passa na China nos anos 1920-1930.

Não existem nas livrarias de São Paulo livros em portuguêssobre as Guerras do Ópio, mas podem ser importados livrosem inglês, como "Britain’s China Policy and the Opium Crisis",por Glenn Melacon (282 reais); "The Chinese Opium Wars", de

Jack Beeching (58,52 reais); "The India-China Opium Trade inthe Nineteenth", Hunt Janin (123,05 reais); "The Inner OpiumWar", James M. Polachek (88,67 reais).

Um filme famoso sobre as Guerras do Ópio foi o recente épi-co chinês "A Guerra do ópio", de 1997, dirigido pelo veteranoXie Jin. Ao custo de 15 milhões de dólares, largamente banca-dos pelo governo comunista, foi o filme de maior orçamento dahistória do cinema chinês, lançado para comemorar a devolu-ção de Hong Kong à China, no mesmo ano. Há um outro filmerecente com esse nome, americano, de 2008, mas se refere aoAfeganistão contemporâneo.

Em 1856 autoridades chinesas apreenderam ocarregamento de ópio de um navio britânico, o "Arrow",

ao largo de Guangzhou, mas fora de seu porto.

Fotos: Reprodução

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Combate às drogas no

ALFER

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ambiente de trabalhoRomina Miranda Cerchiaro

A maior parte do dia estamos lá. Nossos amigos, colegas, sonhose aspirações fazem parte deste ambiente. E, como em qualqueroutro lugar, lá existem pessoas que têm problemas com o álcoole com outras drogas. De resultados positivos para empregado e

empregador, os programas de atenção às drogas já fazem parte das açõesdas empresas brasileiras. Dr. Laco, com mais de 20 anos de experiência noassunto, fala sobre drogas no ambiente de trabalho.

Dr. Luiz Alberto Chaves de Oliveira é presidente do COMUDA –Conselho Municipal de Políticas Públicas de Drogas e Álcool deSão Paulo e coordenador da CDR – Coordenadoria de Atenção às Drogasda cidade de São Paulo, primeiro órgão executivo no Estado de São Paulopara cuidar do assunto das drogas de maneira integrada e direta,recentemente criado pelo prefeito Gilberto Kassab.

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F ormado em medicina em 1972, com especializa-ção em pediatria, Luiz Alberto Chaves de Olivei-ra, o Dr. Laco, como é conhecido e carinhosamen-te chamado, tem uma vasta experiência na área de

dependência química. Em 1985 começou um trabalhovoltado à questão das drogas e seus usuários quando eradiretor do IMESC – Instituto de Medicina Social e de Cri-minologia de São Paulo. Neste momento, iniciou-se umnovo trabalho e uma nova especialização. Ocupou tam-bém a Chefia do Gabinete da Superintendência do IAMS-PE – Instituto de Assistência Médica ao Servidor PúblicoEstadual de São Paulo. Foi Assessor Especial do Secretá-rio de Estado da Saúde, inclusive na área de alcoolismo eoutras drogas e Diretor Técnico do Departamento doHospital Psiquiátrico de Água Funda, onde estimulou odesenvolvimento da atenção aos dependentes de álcool eoutras drogas. Foi responsável pela abertura do primeirohospital-dia, específico para dependentes no âmbito doserviço público, em nível nacional.

Dr. Laco também foi convidado pelo Secretário WalterFeldman a acompanhá-lo na Prefeitura de São Paulo, nagestão de José Serra, para trabalhos diversos nas subpre-feituras, visando melhorar a qualidade de vida dos fun-cionários da prefeitura e da população.

Na CPTM – Companhia Paulista de Trens Metropoli-tanos implantou e coordenou o Programa de Qualidadede Vida, em 1995, com ênfase inicial no Programa de Pre-venção e Tratamento ao Abuso de Dependência de Álcoole outras Drogas, continuidade do programa que haviainiciado na FEPASA em 1988.

E, sobre o tema, Dr. Laco escreveu este ano o livro "Dro-gas no ambiente de trabalho" que foi lançado pela Prefei-tura da Cidade de São Paulo, por meio do COMUDA,CDR e Secretaria de Participação e Parceria.

Em entrevista à revista Anônimos, que reproduzimosa seguir, Dr. Laco fala sobre o tema de seu livro, sobre aexperiência da CPTM e revela, sobretudo, o lado positivodeste tipo de programa organizacional: a possibilidadede ajudar o empregado a sair do mundo das drogas.

Como surgiu a ideia de escrever o livro?Quando era jovem, com oito ou nove anos de idade, al-

guém me disse que a pessoa, para se realizar, tinha de fa-zer três coisas: ter um filho, plantar uma árvore e escreverum livro. Eu levei isso muito a sério. Eu já plantei dezenas,centenas de árvores, indiretamente milhares. Tenho trêsfilhos, o Luiz Renato, a Ana Luiza e o Lucas. E já escrevimuito para revistas, programas de televisão, de rádio, fuio executor de um filme – "O alcoolismo - como sair dessa".Participei do roteiro, orientei a gravação, fui o artista, masainda ficava aquela ideia dos oito ou nove anos de idadesobre deixar alguma coisa no papel, escrever um livro.Tudo aquilo era no sentido figurado, a gente tem de dei-xar a nossa marca na vida, mas a ideia de ter um livro meseduzia. Eu escrevi um livro aqui na coordenadoria, como José Florentino, intitulado "Drogas - onde obter ajuda eorientação". Ele é uma coletânea de endereços. Mas eu ti-

nha um material mais ou menos pronto, feito para as au-las que ministro em MBA sobre qualidade de vida. Haviaentão, aqui no COMUDA, a oportunidade de lançar o li-vro, pois era interessante para o nosso trabalho de polí-ticas públicas, já que o assunto é extremamente importan-te. Reuni o material pronto, os meus artigos já publicados,os textos sobre o processo da implantação do programadentro da CPTM e atualizei tudo. Assim surgiu o livro"Drogas no ambiente de trabalho".

Quais os assuntos abordados no livro?No livro mostramos como implantar o programa em

uma empresa, apontamos as dificuldades, sugerimos ca-minhos, etapas a seguir e discutimos a questão polêmicados testes de drogas.

E como funciona a questão dos testes?Isto hoje é feito na CPTM com aplausos dos próprios

sindicatos. Por que? Porque houve todo um cuidado de seimplantar o programa antes de se fazer os testes. Eles nãosão a maneira pela qual se implanta o programa, mas umaferramenta a mais que se coloca dentro de um programa jáem andamento, um programa já respeitado, já entendidopelos empregados como uma forma de ajuda, e não depunição. Desta forma, tudo o que você faz dentro do pro-grama é bem vindo. Normalmente, os testes são feitos demaneira aleatória, por sorteio e, às vezes, por indicação dechefia, que comunica que tem empregado com proble-mas. É uma etapa diagnóstica para saber se isso pode es-tar envolvido com o problema daquele empregado na-quele momento. Há total confidencialidade por parte daequipe médica. Se o exame der positivo, o empregado échamado para um exame rotineiro e, nessa hora, o médicoconversa com ele, dizendo que está ali para ajudá-lo. Estemomento pode resultar num pedido de ajuda do próprioempregado, que é então encaminhado para um programade orientação e tratamento. Para isso, é necessário umtreinamento sério desses profissionais. Este trabalho nãoé uma aventura e deve ser muito bem feito porque, muitasvezes, é um momento único. Se houver uma má aborda-gem, o indivíduo pode rejeitar a ajuda e talvez nunca maispossa ter outra oportunidade de recuperação.

Por que é tão importante a atenção às drogasno ambiente de trabalho?

Mais de 70% dos usuários de drogas estão emprega-dos, diferentemente do que muita gente julga, imaginan-do que estão nas sarjetas ou na cadeia. Eles estão traba-lhando e a duras penas mantendo horários e compromis-sos. O ambiente de trabalho é onde passamos pelo menosum terço de nossa vida produtiva adulta e, quando a gen-te gosta do que faz, é quase o dia inteiro. É um ambientefavorável para trabalhar a questão, em primeiro lugarporque a gente fica muito tempo nesse ambiente, em se-gundo porque temos vínculos com amigos, companhei-ros, e em terceiro porque através dele o empregador e osprofissionais de gestão de Recursos Humanos têm con-

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tato direto com a família. Oprograma não tem vantagenssó para o trabalhador, mas pa-ra a própria empresa. Preve-nir custa sete vezes menos doque tratar. Custa muito me-nos para a empresa tratar oempregado do que substituí-lo. Há empresas no mundo in-teiro que fazem esse progra-ma e ele oferece uma vanta-gem de três a quatro vezes oque é invest ido nele . NaCPTM , por exemplo, um ma-quinista demora seis mesespara ser treinado, depois dis-so ele fica mais seis mesesacompanhado de um maqui-nista mais experiente. Em umano de treinamento, a empre-sa investe dinheiro, atençãopara formar um profissional.Vamos imaginar que seis me-ses depois, este profissionalcomece a apresentar proble-mas com drogas. Você vaimandá-lo embora e perder to-do o investimento? Por isso, é melhor investir primeiroem prevenção, promoção de saúde, qualidade de vida.

E quais são os resultados positivoscolhidos com este tipo de programa?

Na CPTM, por exemplo, já tratamos mais de 400 pa-cientes da empresa e com índice de sucesso de 72%. Naempresa temos a vantagem de trabalhar com a família,com os amigos, com a chefia. Todas as relações sociaismais significativas são abordadas de forma conjunta.Além dessas vantagens econômicas, sociais e organiza-cionais, há a melhora do relacionamento no ambiente detrabalho, a diminuição dos acidentes e a empresa se be-neficia também mostrando uma ação de responsabili-dade social. Algumas empresas são, inclusive, obriga-das a fazer isso.

Que tipos de empresas têm de adotarprograma dessa natureza, de forma obrigatória?

Por exemplo, a Embraer. No transporte aéreo não hácomo correr o risco de um parafuso ser colocado de formaerrada. As empresas de transportes, de uma forma geral,também devem adotá-lo, pois os motoristas não estão jo-gando somente com as próprias vidas. Um usuário podematar um monte de gente e produzir muitas perdas.

E como a empresa pode iniciar a implantação do programa?Em primeiro lugar, para o programa emplacar, é pre-

ciso convencer a alta direção da empresa. Nas grandesempresas, um amplo comitê deve contar com a partici-

pação do departamento derecursos humanos, dos psi-cólogos, dos médicos, dasentidades de classes. Na pe-quena empresa, três pessoasjá podem formar o comitê.Depois disso, é necessárioiniciar uma ampla divulga-ção, mostrando que o pro-grama é de promoção de saú-de e não de demissão com-pulsória. É para ajudar e nãopara punir. O teste não deveser colocado num primeiromomento, porque vai mexercom muitos mitos e precon-ceitos que cercam a questão.Ele é uma ferramenta impor-tante, mas que deve ser colo-cada no momento certo.

Após a detecção do problema,como a empresa deve agir?

O programa é, acima de tu-do, de prevenção e neste tra-balho de promoção de saúdesão detectados os casos pro-

blemáticos, com abuso ou dependência. A empresa preci-sa ter um sistema de atenção para esses casos. Dentro daempresa deve ter a orientação, o encaminhamento e acom-panhamento dos casos e , se possível, grupos de mútua aju-da que não precisam ser AA (Alcoólicos Anônimos) ou NA(Narcóticos Anônimos), mas devem ser conduzidos porum profissional da empresa que vá beber sua água na fontedessas irmandades. A empresa deve ter, neste caso fora de-la, um local adequado para encaminhamento do paciente,ou para tratamento ambulatorial, para internações ou ain-da para psicoterapia familiar.

E os custos deste programa? Como funcionam?O programa como um todo é custeado pela empresa. Já

os custos dos tratamentos que ocorrem fora dela variamentre as diversas políticas. Mesmo custeando o tratamen-to inteiro, ainda assim a empresa ganha. Nós recomenda-mos que o primeiro tratamento seja pago pela empresa.Havendo uma recaída, que é uma coisa que pode perfei-tamente acontecer nas melhores circunstâncias de trata-mento, um segundo (tratamento) seria custeado meio ameio, parte pela empresa, parte pelo empregado. E, umterceiro tratamento teria 1/3 financiado pela empresa outotalmente pelo empregado, porque ele tem de sentir queé o responsável pela sua saúde. Caso contrário, a empresase torna uma facilitadora.

Mas, cada empresa tem uma política diferente, algunsmandam o empregado embora na recaída. Mas a minhapostura é dar mais de uma chance, porque a gente sabeque a recaída faz parte da doença.

Reprodução

Matéria publicada na edição nº 8da revista Anônimos

www.revistaanonimos.com.br

Page 44: Digesto Econômico nº 455

Os descaminhos da

A imagem do Brasil no exterior nunca esteve tão boa, mas isso se deve muitomais ao carisma do presidente Lula do que a uma estratégia clara de suapolítica externa. Não há dúvidas de que a diplomacia brasileira poderia sermais atuante, principalmente em relação aos países vizinhos, com o País

assumindo um papel de liderança na região, mas isso está longe de ocorrer.A atual política externa brasileira e suas perspectivas foram debatidas em

profundidade no fim de agosto, em São Paulo, pelos embaixadores Rubens Ricupero,Luiz Felipe Lampreia, Sergio Amaral, Marcos Azambuja e Sebastião do Rego Barros,além do jornalista Antônio Carlos Pereira, editor do jornal O Estado de São Paulo.O evento foi realizado pela Associação Comercial de São Paulo, Fundação Liberdadee Cidadania, Instituto Teotônio Vilela e Fundação Astrojildo Pereira.

O tema ganha especial relevância pelos recentes acontecimentos em Honduras,quando o presidente deposto Manuel Zelaya pediu abrigo na embaixada brasileira,criando um conflito diplomático entre os dois países. Veja a seguir os principaistrechos do evento.

Reprodução

Page 45: Digesto Econômico nº 455

política externa brasileiraDivulgação

Divulgação

Acima, reunião doConselho de Segurança

da ONU, órgão em que oBrasil almeja uma

cadeira permanente; aolado, o presidente Lula

com o secretário-geral daONU, o sul-coreano BanKi-Moon. Na página aolado, manifestação da

popularidade de Lula noencontro do G20 em abril.

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46 DIGESTO ECONÔMICO SETEMBRO/OUTUBRO 2009

C omo nos encon-tramos a poucosmeses de comple-tar 25 anos da No-

va República, resolvi tomarcomo ponto de partida umdiscurso do presidente Tan-credo Neves em fins de 1984,no qual ele afirmava: "Se háum ponto na política brasilei-ra que encontrou um consensode todas as correntes de pen-samento, este ponto é real-mente a política externa leva-da a efeito pelo Itamaraty."

O relativo consenso citadopor Tancredo já não existe mais. Isso não ématéria de opinião, mas constatação factual,como se pode ver das dificuldades de seaprovar no Congresso o ingresso da Vene-zuela no Mercosul, os editoriais em jornais erevistas, as acusações de fraqueza e conces-sões excessivas diante de ações de algunspaíses e outros episódios.

Convém verificar quais as alterações deconteúdo na política externa que explicariamessa mudança. Embora a diplomacia do presi-dente Lula desperte considerável controvér-sia, não chega a ser uma mudança radical deparadigma, como ocorreu quando a políticaexterna independente de Jânio Quadros, San-tiago Dantas e Araújo Castro substituiu de for-ma duradoura o paradigma anterior de RioBranco, Nabuco e Oswaldo Aranha. Retoma-do e consolidado no período do presidenteGeisel e do ministro Azeredo da Silveira, o no-vo paradigma foi mantido pela Nova Repúbli-ca, não se registrando desde então nenhumaruptura significativa. Contra este fundo dequadro, a política externa do governo Lulavem se desdobrando em três eixos principais:primeiro, a conquista de um posto permanen-te no Conselho de Segurança da ONU; segun-do, a conclusão da Rodada de Doha, da OMC,com ganhos para a agricultura; e terceiro, aconstrução na América do Sul de um espaço depreponderância brasileira.

(...)O balanço provisório dos resultados mostra

que, dependendo do tema, os avanços variam,da mesma forma que varia a distância entre aspretensões brasileiras e a realidade. A frustra-ção dos objetivos não atingidos plenamente emnenhum caso, não se deve necessariamente aculpas ou deficiências de nossa parte. Escreviuma vez que nos dois primeiros eixos o governobrasileiro quer, mas não pode; no terceiro pode,

mas não quer. Trocando em miúdos: na OMC ena ONU, ainda que o Brasil faça tudo certo, suacapacidade de influenciar não é suficiente pararesolver o impasse da maneira que desejamos.Por mais que nos esforcemos, não se logrou atéagora produzir consenso para reformar o Con-selho de Segurança ou para concluir a Rodada,quanto mais para fazê-lo de acordo com os nos-sos interesses. Quer dizer, é mais um problemade falta de poder que de falta de uma política.Não quer isso dizer que não se haja feito nada, aocontrário, em ambos os fóruns a atuação emanos recentes nos posicionou de uma forma fa-vorável a tirar bom partido de eventual retornode condições propícias. Em termos do Conselhode Segurança, a política do atual governo clara-mente se destaca da anterior, cuja tendência erade não valorizar tanto a questão ou de concedereventual candidatura brasileira numa espéciede condomínio com a Argentina, a fim de nãoprejudicar o relacionamento com o vizinho. Éinegável que o Brasil conquistou este momentouma situação diferenciada em relação a outrosaspirantes latinoamericanos, como o México e aArgentina, distanciando-se como favorito aocupar uma cadeira, caso esta seja destinada àAmérica Latina. Reflexo, em parte, do própriocrescimento econômico e da estabilidade brasi-leira, essa percepção também deve ser creditadaao ativismo da atual política externa.

No caso da OMC, eu creio que houve muitomais continuidade do que ruptura e mesmo a di-ferença de ênfase é por causa da fase nobre da Ro-

RubensRicuperoEmbaixadore ex-ministroda Fazenda

Paulo Pampolin/Hype

Jorge Araujo/Folha Imagem

O relativoconsenso citadopor Tancredo já

não existe mais.Isso não é

matéria deopinião, mas

constatação (...)

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47SETEMBRO/OUTUBRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

dada. Na América do Sul o Brasil não podetudo, mas pode alto. Em tese, a diplomaciabrasileira teria tido condições de agir mais,por exemplo, entre o Uruguai e a Argenti-na, para ajudar, como facilitador, a superaro conflito em torno das chamadas papelei -ras; ou poderia ter atuado de forma diferen-te no episódio feito por Kirchner com a Ve-nezuela para aderir ao Mercosul. Na oca-sião, sem antagonizar a Venezuela, nós po-deríamos ter ponderado que adesões aacordos complexos como uniões aduanei-ras demandam um longo processo préviode negociação técnica. Poderia ter feito,mas preferiu não fazer. A questão não seriatanto de falta de poder, mas de falta da po-lítica mais adequada. Essa é a área do mun-do em que a influência sempre se fez sentirde maneira mais direta. Não é à toa que amaioria das divergências sobre a políticaexterior se refira a assuntos sulamericanos.Não custaria esforço enumerar nesse do-mínio uma série de políticas e decisões dis-cutíveis, que forme em conjunto um pa-drão de erros de concepção ou de execução.Eles vão da reação equivocada e insatisfatória,como a violação pela Bolívia de tratados e con-tratos no caso do gás, até a imprudente ingerên-cia nas eleições bolivianas e paraguaias em favorde candidatos hostis a interesses brasileiros.

Partindo do esforço de consolidação do Mer-cosul, a diplomacia do governo atual procurouedificar no espaço político e econômico, utili-zando não o conceito de América Latina e sim ode um projeto que abarcasse toda a América doSul, deixando de fora a proposta norte-america-na da Alca, o México, os centroamericanos e ca-ribenhos, já integrados na área econômica daAmérica do Norte. Nesse sentido, ela não é di-ferente em substância da IRSA, do governo Fer-nando Henrique, de escopo mais modesto eprogressivo, enfocado na integração física, mastalvez por isso mesmo mais exequível.

(...)Os dirigentes atuais, a começar pelo próprio

presidente, não souberam resistir à tentação dese atribuírem o crédito total pelos eventuaisacertos. Buscaram fazer crer que era novo e semprecedente tudo o que empreendiam. De ma-neira geral, eles tiveram a possibilidade de ad-mitir e valorizar nos assuntos que apresenta-ram a parte que herdaram de governos anterio-res. Mas preferiram se apropriar de todo o mé-rito em nome do governo atual e de seu partido.Naturalmente, é um opção sem surpresa, masseguramente não será a melhor em termos deconstrução de consenso. Há nesta matéria uma

espécie de trade-off – não é possível monopoli-zar a glória para um governo e seu partido e es-perar ao mesmo tempo que o universo dos in-justamente excluídos se sintam partes integran-tes dessa política. São casos indiscutíveis da fa-se atual da política brasileira o abuso doprotagonismo e o excesso da glorificação perso-nalista do presidente. Neste ponto, pode-se di-zer que a diplomacia brasileira sofre com os de-feitos de suas qualidades, isto é, tudo repousacada vez mais na biografia pessoal e nas quali-dades de desempenho do líder supremo. Nissoaliás, a política externa não constitui exceção nopanorama geral de um governo cujos ministrossão quase anônimos, da maioria deles se ignoraaté o nome, quanto mais o que fazem ou deixamde fazer. Nenhum desses defeitos costuma fa-cilitar o consenso interno ou externo, basta pen-sar no exemplo do presidente Truman, que pre-feriu dar ao plano famoso o nome de seu Secre-tário de Estado Marshall e não o seu próprio; ouo caso do Rio Branco, que depois de ganhar aquestão de Palmas contra a Argentina – convo-cado a vir ao Brasil, queriam que ele fosse can-didato a presidência, ele mandou um telegramapara não ferir as suscetibilidades argentinas, re-gressou à Europa, escrevendo no seu diário estafase de Hoffmann, que aparentemente hoje emdia se ignora: "A inveja é a sombra da glória".

(...)O discurso de Tancredo deixava claro, não

sendo uma política externa qualquer a que me-

Nomes ilustresda políticaexterna

brasileira:no alto,

da esquerdapara a direita,

o ex-presidenteJânio

Quadros e osembaixadores

Santiago Dantase Araújo Castro;acima, o Barãode Rio Branco,

Joaquim Nabucoe OsvaldoAranha.

Fotos: reprodução

AE

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48 DIGESTO ECONÔMICO SETEMBRO/OUTUBRO 2009

O t e m aque mec a b en e s t e

seminário é sobre asquestões econômicase comerciais, as nego-ciações que o Brasilempreende na OMC enos acordos regio-nais. Hoje é um diaparticularmente inte-ressante para falar deOMC, porque houveuma decisão, prelimi-n a r a i n d a , s o b re o

montante da retaliação que o Brasil será au-torizado a praticar em relação aos EUA, em-bora eles tenham perdido em primeira ins-tância a avaliação de que os subsídios que sefornecem aos produtores de algodão, parti-cularmente no sul dos EUA, não é compatí-vel com as regras da OMC e praticamenteconsideraram que era impossível politica-mente pela sensibilidade do tema mexer nis-so, de maneira que conformaram-se com aideia de sofrer um punição, conforme evi-dentemente os acordos que a OMC autori-zam plenamente.

Eu gostaria de fazer uma reflexão sobre es-te assunto, porque ele traz à baila duas ou trêscoisas importantes. Em primeiro lugar, umfato inédito, que é um país como o Brasil, queem termos comerciais é uma potência média,já que mal passa de 1% do total do comérciomundial, poder disputar com um país comoos EUA, que são a maior economia do mundoe maior potência comercial, com mais de 20%de participação, e ganhar. E assim sendo, serautorizado a retaliar um país mais forte. Éuma situação inédita, que seria impossívelhá tempos atrás.

Tradicionalmente, desde a década de 50,os EUA tinham o temível Trade Act, a sua Se-ção 301, que depois foi acrescentada, que au-torizava o executivo a, unilateralmente, im-por condições contra países que estivem pra-ticando atos que, a juízo da administraçãoamericanas, fossem contrários aos interessesdos EUA. O próprio Brasil foi vítima de umprocesso como esse no ano de 1988, quando oprincipal negociador americano chegou àconclusão de que nós violávamos as leis. Issosem qualquer possibilidade de contestação –havia uma possibilidade teórica e o Itamara-ty tentou fazê-la, mas era um combate abso-lutamente desigual. E o GATT (Acordo Geral

receria consenso, mas apenas a levada a efeitopelo Itamaraty. Não se tratava da política dosmilitares no poder, de um determinado gover-no ou facção, mas uma política de Estado, aci-ma das disputas internas e a serviço da nação.Convém recordar que a etimologia da palavrapartido vem de fragmentado, rompido, que-brado, parte de um todo que é a nação. Quemfaz diplomacia de partido mostra indiferençapelo esforço de converter tais ações em causasautenticamente nacionais. É incompatívelcom esse objetivo a existência de uma diplo-macia paralela do Partido dos Trabalhadores,junto a governos ou movimentos ideologica-mente afins, exercida por contatos fora dos ca-nais diplomáticos e emissários como assesso-res de política externa da presidência, o qualdá impressão de predominar em certas áreas,enquanto o chanceler ficaria com algumas ou-tras. Tal divisão de esfera de influência conver-teu-se em complicações como nós sabemos.Não há evidências que essa afinidade ou sim-patia ideológica tenha demonstrado eficáciaou utilidade perceptível para encaminhar so-luções satisfatórias quando surgem questõesespinhosas como as que opuseram o Brasilcom a Bolívia, ao Paraguai, ao Equador. A di-plomacia paralela do PT parece servir mais pa-ra contaminar desnecessariamente a políticaexterior com suspeitas ideológicas do que pa-ra qualquer propósito prático.

(...)

Paulo Pampolin/Hype

Há neste governouma diplomaciaparalela doPartido dosTrabalhadores.

Luiz FelipeLampreiaEmbaixadore ex-ministrodas RelaçõesExteriores

fabio Rodriguez Pozzebom/ABr

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49SETEMBRO/OUTUBRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

sobre Tarifas e Comércio) , que era o organis-mo internacional, que mal ou bem detinha opoder de fiscalização das regras do comérciointernacional, era completamente prejudica-do pelo fato de o seu mecanismo de soluçãode controvérsia podia ser interrompido poruma potência que não estivesse de acordocom o rumo que estivesse tomando as inves-tigações. Os EUA usaram várias vezes essaprerrogativa e a única salvação era a famosa"queixa ao bispo".

A OMC representou – e o (Rubens) Ricu-pero e eu tivemos o privilégio de ser os ne-gociadores-chefes do Brasil na Rodada doUruguai – uma virada de paradigma, umamodificação fundamental, porque criou umsistema que é praticamente judiciário de dis-cussão das querelas e das controvérsias emcomércio, e um sistema de atribuição de cul-pas e de poderes para recuperar direitos fe-ridos. Esse sistema tem permitido ao Brasil –que embora tenha crescido o seu volume decomércio, mas ainda é um país que possui afatia de 1% ou 1,2% do comércio mundial –acionar por diversas vezes e contra as maio-res potências do mundo o sistema de soluçãode controvérsias. Isso foi iniciado durante ogoverno Fernando Henrique e continuadono atual governo, fazendo com que o Brasildisputasse o regime de subsídio a exporta-ção de açúcar na União Europeia – um ver-dadeiro escândalo internacional, pois é amaneira de subsidiar a exportação de umproduto que não seria produzido se não ti-vesse, antes de mais nada, subsídio para serproduzido dentro da própria União Euro-peia, através da beterraba, ou o subsídio pa-ra os clientes europeus, as ex-colônias euro-peias – e ganhou. Acionou o EUA na questãodo algodão e ganhou, e vários outros casostambém, o Brasil hoje é o segundo maior uti-lizador depois dos EUA.

A OMC significa uma conquista extraor-dinária, que é esse direito democrático, inter-nacional, de justiça entre nações. Mas, poroutro lado, a OMC tem sofrido desgastes su-cessivos, desde 1994, quando foram assina-dos da Rodada do Uruguai em Marrakesh, aOMC iniciou pouco depois, em 1996, a ideiade aprofundar os seus acordos através dachamada Rodada do Milênio, que depois em2001 transformou-se na Rodada Doha – no-me da cidade onde foi realizada uma reuniãoministerial, pouco depois dos ataques às Tor-res Gêmeas, então operando no conceito deque a pobreza e o subdesenvolvimento eramfermento do terrorismo, se resolveu lançar

uma rodada para o desenvolvimento.Houve fracassos sucessivos. O mais recen-

te foi em julho de 2008 e muita gente começa aquestionar se seria possível completar umarodada nesses moldes. A rodada em si já éuma proposta muito ambiciosa, porque elaquer dizer que são negociados simultanea-mente muitos assuntos, muitos temas, e to-dos eles estão embrulhados em um únicocompromissos – nada está acordado enquan-to tudo não estiver acordado, tudo tem quefazer parte de um acordo único, debaixo deum único envelope.

Esse regime de rodadas, de nossa parte,tem evidentes prioridades de buscar negocia-ção agrícola. Por que isso? Porque a agricul-

A OMC significauma conquista

extraordinária,que é esse direito

democrático,internacional,

de justiça entrenações. Mas,

ela tem sofridodesgastes

desde 1994.

Evelson de Freitas/AE

Paulo Libert/AE

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50 DIGESTO ECONÔMICO SETEMBRO/OUTUBRO 2009

tura é a prima pobre do sistema. A agricultu-ra, em todos os países do primeiro mundo,sem exceção, é fortemente subsidiada aindaque apenas uma parcela muito pequena daforça de trabalho e do eleitorado viva da agri-cultura, não mais do que 2% ou 3% de todosos países ricos do mundo. E, no entanto, to-dos eles praticam, ou o regime de autoprote-cionismo, de barreiras, de altas tarifas, cotas etodas as restrições de acesso, ou então de sub-sídios fortes aos seus produtores nacionais,como é o caso do algodão dos EUA.

(...)Por outro lado, os acordos regionais de co-

mércio também não estão mais tão em vogacomo já estiveram. Um certo momento, paí-ses importantes como o México, como a Co-reia, se lançaram numa aposta quase que fre-nética de fazer acordos comerciais, regional,bilaterais, para com isso abrir caminho paraas suas exportações. Mas, em primeiro lu-gar, o próprio México, depois de fazer 30 ou40 acordos deste gênero continua tendo umadependência de mais de 80% dos EUA. Emsegundo lugar, porque houve uma perda deapetite: eu não tenho dúvidas de que osEUA, quando a Alca foi declarada morta –em grande parte por causa da ação do gover-no brasileiro, que considerava que a Alca se-ria uma forma de anexação, a meu ver um ra-ciocínio um pouco simplista, mas evidente-mente com algum fundamento –, eles deci-diram fazer acordos bilaterais com todomundo, isolando o Mercosul, que ficouolhando do lado de fora, sem as preferên-cias, nem dos EUA, nem desses países comos quais eles estão fazendo acordos.

(...)A conclusão é que, pelo menos no mo-

mento, nenhum desses grande esquemas,grandes negociações, tem muito futuro. Po-de ser que o quadro mude, espero que hajauma grande retomada da atividade econô-mica pós-crise, mas no momento o comérciointernacional recuou nos últimos 12 mesesem torno de 10% a 14%, conforme o estudo,da OMC ou da OCDE. Não há clima políticonenhum para fazer grandes rasgos de libe-ralismo em matéria comercial. Com isso, eucreio que não é um momento muito heróiconessa área. É momento de procurar consoli-dar a OMC, defender o organismo quantofor possível, continua sendo a nossa melhoraposta, mas não devemos achar que vão sur-gir fórmulas salvadores que vão, de repente,abrir as portas do paraíso para as exporta-ções do Brasil.

SérgioAmaralEmbaixador eex-ministro daIndústria,Comércio eDesenvolvimento

Todos vocês sa-bem que o Bra-sil foi desco-berto em 1500,

mas talvez não saibamque o Brasil só desco-briu que o mundo exis-tia faz muito poucotempo, entre 10 e 15anos. Hoje, vejo estaanálise mudando subs-tancialmente pelo inte-resse crescente das rela-ções internacionais nasuniversidades, na im-

prensa e nos meios políticos. Foi-se o tempo emque política externa era um privilégio quase ex-clusivo do Itamaraty. Em fins de julho, o Merco-sul reuniu o seu conselho e o chanceler do Para-guai escolheu esse momento para brindar ospresentes com um comentário surpreendentepara um encontro político desse nível. Ele disse:o Mercosul se encontra em estado terminal.

Essa declaração, ainda que chocante, é de cer-to modo compartilhado por muitos, sobretudoos empresários brasileiros cansados de ver o au-mento da proteção tarifária nas suas exporta-ções para a Argentina. Pouco depois das elei-ções, a Argentina surpreendeu, quando todosesperavam que o governo retirasse as medidasde proteção crescente que vinham tomando. Aministra do comércio disse que a Argentina nãoretiraria as licenças não-automáticas ou, umadas quais, tomaria de quatro a seis meses paraser retirada ou aprovada. E, embalado por estesbons exemplos, o Uruguai, mais recentemente,chegou a anunciar que deverá também tomarmedidas de restrições a exportações brasileiras,

CelsoAmorim,

ministro dasRelações

Exteriores,em encontrodo Mercosul.

Eduardo Martins/Ag. A Tarde/AE

Paulo Pampolin/Hype

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51SETEMBRO/OUTUBRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

certo de que contará, assim como o Paraguai, aArgentina e também a Bolívia, com a benevo-lência da diplomacia brasileira.

Eu acho que a declaração do chanceler pa-raguaio é um exagero retórico, mas é inegávelque, se não estamos assistindo a agonia doMercosul, porque ele tem um fundamento po-lítico sólido e tem a sua razão de ser, estamosassistindo a uma das crises mais profundas,pois não se trata apenas das questões de co-mércio, nós estamos vendo uma crise institu-cional e de identidade, porque os seus sóciosnão sabem muito bem o que querem do Mer-cosul, e o que eles sabem são conflitantes.

(...)Por que esta situação? Nós temos que ana-

lisar um pouco o relacionamento Brasil-Ar-gentina, que é o eixo fundamental do Merco-sul. A meu ver, duas questões estão nas basesdos problemas do Mercosul, das dificuldadesdele avançar, assim como das dificuldades pa-ra a integração da América do Sul avançar. Oprimeiro é um descompasso claro entre o mo-mento da economia argentina e o momento daeconomia brasileira. O Brasil vive, há cerca de15 anos, um período de prosperidade, com es-tabilidade da moeda e as reformas econômi-cas. A Argentina, ao contrário, passou em 2001por uma de suas crises econômicas mais pro-fundas. O Brasil, nos últimos 20 anos imple-mentou uma verdadeira revolução na suaagricultura. Na Argentina, os sucessivos pro-blemas do governo com o campo levaram auma redução da área plantada e, o que é umparadoxo, a migração de vários produtores ru-rais da Argentina para o Uruguai para planta-rem lá, onde têm mais tranquilidade e previ-sibilidade para poderem produzir e exportar.

O Brasil, por força das reformas que fez e dasprivatizações, tornou-se um centro importantede investimentos estrangeiros. A Argentina,em vez de estimular esses investimento, temcriado uma série de dificuldades, como o con-gelamento de preços. O Brasil promoveu umaabertura no comércio internacional e é um dosdefensores do acordo de liberação do comérciode Doha, enquanto que a Argentina, ao invés deabrir, marcha em direção ao protecionismo e se-rá um problema para a conclusão de qualqueracordo por parte do Mercosul, seja em Doha, se-ja com a União Europeia, seja eventualmentecom acordos bilaterais. O Brasil desregulamen-tou a sua economia e reduziu o papel do Estado,a Argentina está praticando uma reindustriali-zação nos moldes dos anos 70 e está aumentan-do a ingerência do Estado. O Brasil tem 214 bi-lhões de dólares de reserva, a Argentina come-

ça a enfrentar problemas crescentes em relaçãoa sua base de divisas e volta a conversar com oFundo Monetário Internacional para obter osrecursos de que necessita. Em resumo, o Brasilcaminha em uma direção, a Argentina caminhaem direção contrária.

(...)Diante desta situação de tão grande descom-

passo, qual resposta poderia ter o Brasil? A res-

Kevin Lamarque/Reuters

And

res S

tapf

f/Re

uter

s

Há umdescompasso

entre aseconomiasargentina e

brasileira. Nossovizinho, ao invésde estimular osinvestimentos

internos eexternos, tem

criado uma sériede dificuldades.

Page 52: Digesto Econômico nº 455

52 DIGESTO ECONÔMICO SETEMBRO/OUTUBRO 2009

posta que o Brasil tem tido para esta situação, ameu ver, tem sido uma parte do problema. A pri-meira parte do problema é a diferença nas rea-lidades objetivas. O segundo, é uma políticaequivocada que temos praticado. Equivocadaporque ela parte de dois pressupostos equivoca-dos. O primeiro é o pressuposto de que não épossível fazer comércio onde existe uma sime-tria entre as economias. Foi esta tese que nós cria-mos para rejeitar a Alca, ainda que nós tenhamosboas razões para ter dificuldade com ela, masnão é verdade que a simetria impede o comércio,senão a América Central e o Caribe não teriamlutado tanto para entrar no Nafta, nem o LesteEuropeu para ser aceito na União Europeia. Noentanto, esta tese da simetria, que nós inventa-mos, tem sido muito bem aceita pelos nossos vi-zinhos, que a cada momento nos cobram pelopecado de termos um saldo comercial com eles.Esta mesmo cobrança, de uma tese que nós in-ventamos, que nos leva a ter responsabilidadepor manter com a Argentina um comércio equi-librado – a Argentina chegou a propor coisa deum para um. Em outras palavras, o que nós es-tamos buscando é recriar no âmbito do Mercosulaquilo que foi o comércio com o Leste Europeuno passado, um comércio administrado, vocêexporta cem se você também importar cem.

(...)Não se deve buscar mais uma resposta ou

caminho na relação com os EUA, mas é precisoque nós mesmos assumamos as nossas res-ponsabilidades e encontremos esse caminho.O Brasil precisa, se quiser mudar este panora-ma, que é preocupante, colocar as verdadeirasquestões sobre a mesa. Nós queremos ser ummodelo de decmocracia? Se quisermos, é pre-

ciso assumirmos com mais convicção este pa-pel. Queremos ter uma posição comum sobretemas novos? Talvez fosse importante emmeio ambiente e direitos humanos. Queremoster um acordo de livre comércio? É hora de re-tirar as restrições. Queremos ter uma uniãoaduaneira? É hora de completá-la e só depoisexigir a negociação conjunta, que neste mo-mento nós certamente não temos condições defazê-la, porque as disparidades com a Argen-tina farão com que nós não consigamos con-cluir qualquer acordo de comércio, se é que ha-verá esta possibilidade. Queremos ampliar oMercosul? É hora de discutir algumas ques-tões centrais: as regras claras de adesão, quenão foram discutidas, e sobretudo, que nós co-mecemos a considerar a ponderação de votos,porque nas decisões essenciais nós não pode-mos ter o mesmo peso do que países que têm1% do nossa população e do nosso PIB.

O Brasil hoje tem a oportunidade de assu-mir uma posição relevante no cenário inter-nacional. Presença nós temos, mas essa pre-sença não tem resultado em ganhos concretospara o País. Mas se nós quisermos, nós temosantes que equacionar as relações com os nos-sos vizinhos. Não faz sentido o Brasil se can-didatar ao Conselho de Segurança e fazeruma das maiores campanhas diplomáticasque o País já fez sem antes acertar os ponteiroscom o seu parceiro estratégico, a Argentina.Não faz sentido nós continuarmos a viver arestrição que vivemos para concluir acordosde comércio. Não é razoável não buscar umaconvergência sobre temas da agenda interna-cional como mencionei, e não é razoável assis-tirmos a ocupação de uma planta da Petro-bras na Bolívia, ameaças de suspensão de pa-gamento no Equador ou a proliferação de me-didas protecionistas na Argentina e termoscomo única resposta iniciativas casuísticas econcessões. É preciso ter uma visão de médioprazo que busque construir as convergências,promover a prosperidade compartilhada ereduzir as simetrias. Não nos interessa seruma ilha de prosperidade, numa região decrescentes desigualdades. Não podemos as-sumir o risco de substituir os EUA no imagi-nário anti-imperialista do nosso continente.Usamos e abusamos de uma retórica em favorda integração, mas em vez de integração, nósestamos caminhando para uma fragmenta-ção, com potencial de atritos crescentes em re-lação ao Brasil. As relações com o Mercosul ecom a América do Sul tal como se encontramhoje serão certamente o pior legado da diplo-macia do governo Lula.

Soldados doexército bolivianoocuparam arefinaria daPetrobras, apóso presidenteEvo Moralesnacionalizar aindústria de gás.

Carlos Hugo Vaca/Reuters

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53SETEMBRO/OUTUBRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

O e m b a i x a d o rRubens Ricú-p e ro d e f i n i ucom precisão

os três eixos da política exter-na brasileira: um lugar noConselho de Segurança, ne-g o c i a ç õ e s c o m e rc i a i s d eDoha e a integração ou maiorarticulação na América doSul. Em qualquer circunstân-cia, estes três objetivos se-riam altamente elogiáveis.Ocorre, no entanto, que a ma-neira como esses objetivos fo-

ram perseguidos se deu da única maneiraque o atual governo conhece, que é a da per-sonalização e da partidarização. A esses doisvícios de origem se acrescentam outros dois:o excesso de voluntarismo e a falta de infor-mação do ambiente externo. Quero dizercom isso que uma vez determinado um ob-jetivo e a maneira de alcançá-lo, esse gover-no e sua política externa se lança como aque-les 12 cavaleiros do poema de Ascêncio Fer-reira – "Lançam-se em louca disparada. Paraquê? Para nada."

Para nada, por quê? Porque não tiveram amínima preocupação em fazer o trabalho decasa, conhecer o ambiente em que teriam deoperar. Alguns exemplo: em relação ao Conse-lho de Segurança, o governo brasileiro se lançanuma campanha de conquista e aliciamentode votos para obter a maioria que lhe desse as-

sento no corpo permanente com absoluta vo-racidade e inclusive com alguma falta de es-crúpulo. Faz de tudo um pouco, sem se preo-cupar em saber duas coisas: as possibilidadesobjetivas de o projeto de reforma da ONU iradiante e portanto, chegar ao ponto em que elaseria uma consequência natural; e em segun-do, até onde iriam os seus aliados e seusapoios, e mais importante, quem seriam os ad-versários fundamentais para que a aventuranão fosse concretizada?

Não se fez a lição de casa. Tivesse feito aprimeira, veriam que mesmo se duplicar onúmero de embaixadas na África, isso nãoaltera determinados conceitos que orientamo grupo africano. Há coisas mais importan-tes do que receber uma embaixada do Brasil.Superestimou-se o papel do País. Segundo:você pode armar toda a argumentação teóri-ca, programática para justificar a filiação doBrasil ao Conselho de Segurança, mas nadadisso será levado em consideração quando oproblema chegar nas chancelarias do Méxi-co, da Colômbia e da Argentina. Basta estestrês lugares para destruir toda aquele arca-bouço, que dizia que o Brasil aceitaria ser oporta-voz no Conselho de Segurança de seuspaíses vizinhos.

(...)Na reunião de cúpula do atual governo,

também se abriram várias oportunidades edelas nunca mais se ouviu falar. Este tipo depolítica provoca fenômenos curiosos. Emqualquer condição normal, o Mercosul deve-

AntonioCarlosPereiraJornalista, editordo jornal O Estadode S. Paulo

Fabrio Rodriguez Pozzebom/ABr

O presidente Lulaposa para a fotooficial da Cúpulados Presidentesdo Mercosul emMontevidéu em

dezembro de2007. O Brasil

busca uma maiorarticulação na

América do Sul edeseja ser líder

da região.

Paulo Pampolin/Hype

Page 54: Digesto Econômico nº 455

54 DIGESTO ECONÔMICO SETEMBRO/OUTUBRO 2009

ria ser a preocupação central da política ex-terna brasileira. No entanto, ele foi relegado aterceiro ou quarto plano. Ele deixou de serum instrumento para integração regional pa-ra se tornar uma reunião de amigos "ma nontroppo", aqueles amigos que se olham des-confiados, que ficam procurando se alguémestá com uma carta na manga, se está com umpunhal na cintura, pois no fundo não há con-fiança. Perdeu-se um tempo enorme sem quese construíssem regras gerais, de convivên-cia, sem que se estabelecessem objetivos co-muns e claros. No lugar disso, estabeleceu-seno Itamaraty uma política de "quebração degalhos". A Argentina está com problemas debalança de pagamento? Chama o pessoal, va-mos discutir isso no Mercosul e a gente põe

uma sobretaxa, faz um swap de moedas. Pesopor real? Não, peso por dólar. Mas o Brasilnão tem dólar. Mas o Brasil pode comprar dó-lar e repassar para a Argentina.

(...)Unasul é outro mostrengo criado por este

tipo de política externa cozido num caldei-rão partidário. O Brasil foi incapaz de coor-denar um bloco de quatro participantes, elepróprio mais três, e de repente se acha capazde ordenar um bloco de 12 participantes, osquatro que ele não coordena mais oito. E vo-cê vai buscar os interesses comuns, as metasrecíprocas e não encontra. Você encontra umobjetivo, que é o objetivo claro do presidenteLula de se tornar o líder regional inconteste.Ele já tentou ser o líder dos pobres, chegou

até numa determinada ocasião propor umasolução mágica para o fim da fome, ao longodo tempo foi abandonando essa ideia. Pas-sou-lhe pela cabeça liderar o processo decombate à devastação ambiental, percebeuque não era fácil e ao longo do tempo aban-donou e hoje não consegue mais controlar oprocesso devastação do Brasil – o seu gover-no é atormentado por dissidências internasnesta área, que é justamente uma área queem matéria de política externa seria mais im-portante o Brasil ter uma posição séria, coe-rente com os interesses nacionais, que não étransformar reservas ou a Amazônia nummuseu vivo. O interesse também não é de-vastar tudo na suposta ideia de que devas-tando tudo cresceremos mais rapidamente,isso não é verdade. O interesse nacional épreservarmos produtivamente a nossa he-rança e nós temos condições políticas de fa-zer isso, no entanto hoje o Brasil é absoluta-mente irrelevante na discussão ambiental.Estamos verificando se será possível obteruns trocados em troca da limitação dos gasesde efeito estufa.

(...)

Wilton Junior/AE

Marlene Bergamo/Folha Imagem

Lula já tentou serlíder dos pobres,propondo umasolução mágicapara o fim da

fome. Passou-lhepela cabeça

liderar o processode combate àdevastação

ambiental, masdesistiu.

Page 55: Digesto Econômico nº 455

55SETEMBRO/OUTUBRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

O tema que mepediram parafalar me leva auma inevitável

fragmentação – diretório depoder, Conselho de Segurançada ONU –, que decorre cen-tralmente do fato de que nun-ca foi possível reformar a Car-ta das Nações Unidas. Nós vi-vemos ainda com toda aquelaestrutura que veio de 1945,com a arquitetura do fim daSegunda Guerra Mundial edesde então aconteceram coi-

sas extraordinárias com a ONU, com o mundoe com o Brasil. Então, temos esta defasagementre a estrutura desta entidade e a realidade.Por isso, foram-se criando sistemas paralelos,linhas acessórias, informalidades, grupos fo-ram sendo criados. Na medida que a ONU nãoé reformável, não há condições de se rever oConselho de Segurança. Não há condiçõesporque, como é um tratado encouraçado, émuito difícil mexer em qualquer dessas partessem gerar uma resistência muito grande.

De certa maneira, toda organização interna-cional busca duas coisas: a universalidade,que é a base da sua legitimidade, e a seletivi-dade, que é a busca de unidades pequenas dealta capacidade de ação. Em toda organizaçãointernacional há essas duas coisas – as grandesassembleias plenárias, em que todos têm voto,e os circunrrestritos, que são esses diretóriosde poder, onde se conduz o negócio com a ve-locidade e coesão de que é preciso.

A reforma do Conselho de Segurança é umaimpossibilidade, entre outras razões porque,como o conselho tem conceito de presença re-gional, cada candidato regional tem na sua re-gião dois ou três países cuja posição não é as-pirar ao assento, é impedir que o outro cheguea ele. A candidatura alemã na Europa encontraa resistência da Espanha, da Itália e da Suécia.A candidatura brasileira encontra obstáculodo México, Colômbia e da Argentina. Umacandidatura japonesa ou indiana encontra, naÁsia, a oposição da Indonésia e do Paquistão. Eo jogo empata, pois é ingênuo achar que algumpaís vai se fazer representar por outro num fo-ro desta importância. O Conselho de Seguran-ça foi objeto de um dos nossos esforços, é com-preensível, mas foi um pouco ingênuo. Sobre-tudo, a ideia de que o aumento de votos nos le-varia ao objetivo, pois não é uma decisão que sefaça por critérios puramente numérico.

Foram se criando outras entidades, outrospolos, em que se joga hoje o jogo do poder in-ternacional. O mais recente é o Bric, que tam-bém é o mais tênue, o mais promissor e ao mes-mo tempo o mais impossível. É onde está oBrasil. Eu costumo dizer que, como (Luigi) Pi-randello escreveu "Seis personagens a procurade um autor", o Bric são quatro grandes paísesa procura de uma agenda. São grandes países,a dificuldade é saber o que eles podem fazerjuntos. Esforços nossos na OMC fracassaramporque a política brasileira não é, a rigor, pa-recida com a da China ou da Índia, embora estecaminho também não seja descartável – souuma dessas pessoas que não costumam jogar acriança junto com a água do banho. O próprio

MarcosAzambujaEmbaixador eex-secretáriogeral dasRelaçõesExteriores

Paulo Pampolin/Hype

Dmitry Kostyukov/AFP

O Bric (Brasil,Rússia, Índia

e China)são quatro

grandes paísesà procura de

uma agenda.A dificuldadeé saber o que

eles podemfazer juntos.

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56 DIGESTO ECONÔMICO SETEMBRO/OUTUBRO 2009

Mercosul merece ser preservado. Eu sou umconservador de estruturas, atualizando namedida em que ela é necessária.

O mundo viveu um engessamento durante40 anos da Guerra Fria, de 1949 a 1989 , que im-pediu que o mundo se mexesse, porque haviaum bloqueio ideológico e militar das superpo-tências. Quando surgiu a possibilidade de revi-são e reformulação do mundo multilateral, osEUA não optaram pelo multilateralismo reno-vável, o que era desejável, e nem pelo caminhodo bilateralismo, mas inventou o chamado uni-lateralismo, que não leva a lugar nenhum. Por-tanto, temos agora que relançar o multilatera-lismo a luz de novas circunstância. E com a glo-balização, uma série de temas que se fazem ca-da vez mais necessariamente parte de uma açãomultilateral – meio ambiente, direitos huma-nos, saúde. Não se pode mais pensar o mundocompartimentalizado na soma de ações bilate-rais. Mas não se pode negar que o bilateralismoé o arroz com feijão das relações internacionais,é a mais espontânea e a mais natural.

O Brasil é um candidato natural a qualquerampliação de qualquer diretório de poder. Nãovai haver qualquer ampliação se o Brasil não es-tiver dentro desse processo. Não precisamosser candidato militante, o Brasil não precisa ca-var essa posição, ela virá pelo reconhecimentode seu poder, não é uma questão de busca de vo-to. O que vai nos fazer sócios naturais dos dire-tórios de poder é a nossa indispensabilidade aopróprio jogo. O Brasil se colocou agora em umaposição muito interessante. O Brasil é um paísque está no limite da admissão de tudo: ou eleentra ou não haverá ampliação dos diretórios,pois estes não terão representatividade.

Sebastiãodo RegoBarrosEmbaixador eex-secretáriogeral dasRelaçõesExteriores

C om rela-ção à inte-g r a ç ã oen ergé ti-

ca regional, os anos 80,que foram muito ruinspara a América Latina,ela acabou sendo atépositiva, porque houveos regimes militares,principalmente no Bra-sil e na Argentina; aGuerra das Malvinas,que "latinoamericani-zou" a região; e a pró-

pria crise das dívidas, que obrigou os países a fa-zerem um esforço pela abertura comercial. Ecom isso, tivemos no ano de 1988 o acordo bila-teral entre Brasil e Argentina – durante os gover-no de Sarney e Alfonsin, que conseguiram mu-dar de forma extraordinária o relacionamentoentre os dois países. Até então, havia aquelas teo-rias de que um país iria invadir o outro e cada umolhava desconfiado para o seu vizinho.

Os dois países, através desse acordo de1988, começaram um mercado comum em se-tores onde não havia comércio. Parecia absur-do, mas de certa maneira houve progresso.Houve também o acordo entre os dois paísesna área nuclear, que se tornou exemplo para omundo. Estes dois fatos tornaram possível umacordo mais amplo, com a criação do Mercosulem 1991. Em 1988, os negociadores brasileirosna Argentina tinham tido cuidado – esse acor-do não poderia ter a adesão de outros paísesantes de cinco anos. Isso porque o Uruguaiqueria fazer parte desse acordo de 88. Nós tí-nhamos consciência de que o Uruguai não de-veria entrar, por que ele significa meio porcen-to do PIB do Brasil e da Argentina.

Depois, houve a redemocratização do Para-guai, começou o governo Collor e Menen, noBrasil e na Argentina. Criou-se o Mercosul porpressão do presidente uruguaio (Julio Maria)Sanguinetti, muito talentoso e inteligente.Acho o Mercosul uma ideia política inteligen-te, com resultados muito bons, mas do pontode vista econômico e comercial foi uma lásti-ma. Essa integração Brasil-Argentina poderiater progredido muito mais. Nós tínhamos nes-sa época a ideia do Mercado Comum Europeu,que tinha inicialmente 6 países - Alemanha,França, Itália, Bélgica, Holanda e Luxembur-go. Mas, na realidade, eram quatro entidadeseconômicas, pois Belgica, Holanda e Luxem-burgo formavam o Benelux, era uma potênciacomercial. Tanto que o Mercado Comum Eu-

Lula discursa na Assembleia Geral da ONU

Dida Sampaio/AE

Paulo Pampolin/Hype

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57SETEMBRO/OUTUBRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

são, o modelo de partilha é usado em paísesonde esse índice é mais alto.

Um dos pontos que é levantado por aquelesque defendem a mudança é que o nível de par-ticipação governamental do mundo aumentoumuito antes e depois de 2007 – ano que os preçossubiram muito. É verdade que aumentou a par-ticipação governamental em quase todo o mun-do. Até nos EUA a participação do governo mu-dou, mas no Brasil não. Não mudou porque aPetrobras produz 99,8% do petróleo, se aumen-tar faria a Petrobras pagar mais imposto. Nãoaconteceu por causa disso.

(...)

ropeu iniciou com quatro parceiros mais oumenos do mesmo porte. Houve muito maistrabalho para que o projeto desse certo porcausa de rivalidades históricas. Por mais quehaja alguma rivalidade entre Brasil e Argenti-na, isso não se compara com o que houve entrea França e a Alemanha. O ímpeto e a pressãopolítica aqui era menor. Os problemas do Mer-cosul advém dos problemas da Argentina, queentrou em um processo de desorganização.

Esse crescimento no comércio no início doMercosul, houve uma ideia do governo brasi-leiro de se fazer um projeto, chamado AvançaBrasil, de integração energética e de telecomu-nicações na América do Sul. O presidente FHCconvocou uma reunião dos presidentes da re-gião e criou-se a IIRSA - Iniciativa para a Inte-gração da Infraestrutura Regional Sul-Ameri-cana, com a base em infraestrutura e integra-ção energética. Havia nessa época motivos pa-ra otimismo na integração energética naAmérica do Sul, porque nós tínhamos umaboa experiência com o Paraguai (Itaipu), tí-nhamos construído o gasoduto Bolívia-Brasil.Nessa época a Argentina era supridora de gásdo Chile, havia projetos importantes no Peru ena Venezuela, que têm muito gás. O gás davauma base de integração extraordinária.

De lá para cá, a situação mudou muito. Nãodá pra dizer que é culpa do nosso atual gover-no, que poderia ter administrado melhor essadegradação política que houve na América doSul. A IIRSA virou por um momento Casa (Co-munidade Sul-Americana de Nações) e final-mente se transformou em Unasul, que tomouum caráter diferente, que eu não creio que válevar a alguma coisa.

Isso que foi uma ideia forte no governo pas-sado (FHC), esse projeto de integração regio-nal Sul-Americana, por razões reais e tambémpolíticas, esse projeto enfraqueceu muito – nãodigo que está condenado, mas será necessáriomuito tempo para que se tenha iniciativasmais concretas e objetivas que levem a uma in-tegração regional.

Em relação ao petróleo, a Petrobras teve umêxito e ficou patente a necessidade de aportede outras empresas da área. A Petrobras teve omonopólio do petróleo de 1953 a 1997. Ela foipara o mar, descobriu vários campos e agorahá o Pré-sal, com três campos em obra – Cario-ca, Tupi e Paraty. A Petrobras tinha o monopó-lio e hoje há mais de 70 empresas nacionais eestrangeiras, algumas estatais.

Em relação ao modelo de exploração, umfato curioso é que os países com menor índi-ce de corrupção usam o modelo de conces-

Robson Fernandjes/AE

Acima, hidrelétricabinacional de

Itaipu, construídaquando se tentava

uma integraçãoenergética na

América Latina. Aolado, o presidente

da Petrobras,Sérgio Gabrielli,apresentando o

Pré-sal.

Celso Junior/AE

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58 DIGESTO ECONÔMICO SETEMBRO/OUTUBRO 2009

Repr

oduç

ão

Agradecimentos ao Núcleo deBiblioteca e Memória da Associação

Comercial de São Paulo

Política Externa

Digesto Econômico nº 180Novembro/Dezembro de 1964,

págs. 17 a 29

Afonso Arinosde Melo Franco

(1905-1990)Senador, chanceler e

membro da AcademiaBrasileira de Letras

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59SETEMBRO/OUTUBRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

Ao saudar a mais recente turma de diplomandos doInstituto Rio Branco, o Presidente da República(Castelo Branco - N. da R.) formulou conceitos, in-terpretou posições e traçou rumos relativamente à

política externa do País. Não foi uma fala convencional ouevasiva, mas, ao contrário, refletida e substanciosa, que de-notou, no seu autor, segurança de informação e hábito de es-tudo e de meditação sobre a matéria. Coisa, aliás, presumidapor quem conhece os estudos da Escola Superior de Guerra.A firmeza de certos princípios orientadores aparece ali ma-tizada pela noção da relatividade conjuntural das suas apli-cações, o que é, exatamente, a característica de qualquer açãopolítica, tanto no plano interno (a conhecida definição da po-lítica como a arte do possível) quanto, e muito especialmen-te, no plano internacional, porque, se internamente o Estadosoberano faz política por via de decisão, externamente o en-contro com outras soberanias o leva a só poder agir politica-mente por via da composição. É claro que a vida internacio-nal conhece também, e até demais, o espetáculo da imposi-ção, mas aí a ação impositiva de um Estado sobre outro deixade ser fundada no Direito e elimina, pelo menos no episódio

em causa, a soberania do Estado que se deixa impor. Voltan-do ao discurso inicial eu diria que, tanto quanto me recorde,é a primeira vez que um Chefe de Estado, no Brasil, se ma-nifesta com força e clareza sobre alguns aspectos básicos dapolítica externa, desde o artigo escrito pelo ex-Presidente Jâ-nio Quadros para a revista americana Foreign Affairs.

É, portanto, com prazer, que atendo ao convite de comentaros pontos principais do discurso presidencial.

Esta oportunidade, aliás, vem ao encontro de uma inten-ção que eu desde algum tempo abrigava, mas que adiavasempre para um momento que me parecesse mais adequado:a de trazer um testemunho que, ao mesmo tempo, desfizesseas falsidades e os equívocos acumulados, por ignorância, oumá-fé, a respeito da política externa brasileira, a partir do go-verno Jânio Quadros. A este propósito cumpre reconhecerque nada há de mais fácil – quase se poderia dizer de mais na-tural – do que incorrer em julgamentos equivocados sobre de-terminada linha de política externa, desde que correntes in-teressadas se disponham a levantar falsidades sobre ela. A ra-zão disto é que, atualmente, a política internacional passou ainteressar a todo mundo, devido à aproximação forçada que a

Fotos: Mario Miranda/LUZ

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60 DIGESTO ECONÔMICO SETEMBRO/OUTUBRO 2009

que os condiciona: a existência da paz mundial. A consistên-cia entre todos os objetivos nacionais só pode ocorrer se hou-ver autodeterminação... A sua legitimidade se origina nospronunciamentos eleitorais do povo e no votos dos seus re-presentantes". Estas ideias básicas, às vezes com palavrassemelhantes, senão as mesmas, constituíam o cerne daorientação do Itamaraty, no entanto tão criticada por moti-vos de ordem partidária ou pessoal. Política externa visan-do ao desenvolvimento do País, paz (com ênfase ao desar-mamento) e autodeterminação democrática era também oque sempre propomos. Aos afoitos, ou incientes, que qui-sessem objetar agora com a questão de Cuba, poderemosdar cabal explicação. Vou fazê-lo, pela primeira vez, porqueagora não me curvo às ameaças de ninguém. Como toda aAmérica (inclusive os Estados Unidos), o Brasil consideroua revolução cubana como uma das grandes páginas da His-tória continental. Foi um movimento lidimamente popular,sem o habitual caráter militarista das revoluções dos outrospaíses latinos, e, ao mesmo tempo, nacional, porque visavalibertar a Ilha da incontestável dominação política e econô-mica dos Estados Unidos, vinda desde a guerra da indepen-dência, em fins do século passado. Por motivos que nãocompete investigar aqui, mas nos quais aparecem culpasdos dois lados, Cuba começou a se desprender dos laçoscontinentais para se deixar enlear por outros; a princípiospolíticos; mais tarde claramente ideológicos, com o mundocomunista. Os primeiros sintomas desta evolução já eramsensíveis em 1960, quando, em companhia do então candi-dato Jânio Quadros, estivemos emHavana, sendo ali Embaixador oatual Chanceler Leitão da Cu-nha. Depois de um jantar ofe-recido pelo Presidente Os-valdo Dorticós, em reuniãoreservada na qual, do ladocubano estavam o Presiden-te e o Chanceler Roa, e, do la-do brasileiro, Jânio, Leitãoda Cunha e eu, fui incumbi-do de responder ao Presi-dente sobre a sugestão, noprimeiro ano do GovernoQuadros, apoiasse uma reu-nião de governos neutralis-tas em Cuba, compreenden-do todos os Estados afro-asiáticos. Declarei entãoque o Brasil não concordariacom tal reunião, porque a li-derança e até a personalida-de de qualquer país latino-americano se veriam submergi-das em uma conferência na qual onosso Continente seria minoritário, emface dos numerosos Estados da Ásia e da África,cujo recentíssimo processo de independênciamuito divergia do nosso, e havia determinado a

técnica moderna impõe aos mais distantes Estados e ao fatode que os conflitos da era nuclear ameaçam por igual a todosos povos, o que tornam as multidões sensíveis às mais lon-gínquas possibilidades de guerra. Sem esquecer, finalmente,que divisões ideológicas, radicalizando imensas massas hu-manas, trouxeram novo contingente à carga emotiva hoje in-separável da observação da vida internacional. Mas, se, pelasrazões apontadas, o interesse direto de todos os habitantes doglobo leva-os acompanhar o desenvolvimento da políticamundial, também a verdade sobre os fatos, as intenções e ocurso dos entendimentos da vida diplomática ficam muitoacima do alcance da opinião média, não só pela natural reser-va que os cerca, como pela sua habitual complexidade. Ins-tala-se, em virtude desses fatores antagônicos, uma contra-dição cujos resultados são frequentemente graves: a opiniãopública se apaixona por assuntos que desconhece, e torna-sepresa fácil de interpretações errôneas sobre a ação dos gover-nos, interpretações forjadas sobre falsidades partidas de se-tores nacionais ou estrangeiros, contrariados nos seus inte-resses. Fatos inverídicos, intenções deturpadas, condutasdesfiguradas, ideologias conflitantes, conscientemente arti-culam-se e compõem-se na formação de uma imagem total-mente infiel da realidade. Às vezes – a História o demonstra –constroem uma realidade diferente. Sentimento de insegu-rança das elites, paixão jacobina das massas, conforme o caso,são sabiamente despertados e levados à exaltação por ummecanismo de propaganda a serviço de interesses ocultos,sob a capa de pressões democráticas ou nacionalistas, umas eoutras tentando impor linhas de ação externa não coinciden-tes com os interesses nacionais. Só quem já viveu o problemasabe até que ponto estes métodos (aliás copiosamente estu-dados e conhecidos pelos especialistas) podem ser eficazes.Foi exatamente por ter vivido o problema que nunca dei im-portância às deturpações voluntárias, feitas em torno da cha-mada política externa independente. Recusei-me até agora,depois da revolução, a qualquer explicação sobre suas dire-trizes e métodos, por duas razões: primeiro porque não en-contrava nenhuma autoridade nos que a atacavam e conhe-cia as razões, muitas vezes pessoais, dos ataques; segundoporque mais recentemente, servindo o assunto de ameaçascontra o meu mandato (embora partidas de elementos secun-dários, e, até, desclassificados), um sentimento elementar dedignidade me impedia dar explicações que poderiam pare-cer justificativas feitas sob coação.

Agora, porém, a situação é diversa. Em primeiro lugar nãose trata de ataque a uma orientação que (sem nunca esquecer arelatividade conjuntural) é a única que atende à soberania doBrasil e serve aos interesses do seu povo, mas, ao contrário, naexposição do Presidente, patenteia-se uma concepção da po-lítica externa que em nada de substancial se afasta da que ten-tamos praticar.

Iniciando a parte substancial do seu discurso afirma oPresidente: "A formulação de nossa política externa, nortea-da pelos objetivos nacionais, busca também o robusteci-mento do poder nacional e, em particular, o dos instrumen-tos que nos permitam alcançar o pleno desenvolvimentoeconômico e social. Além desses objetivos visamos a outro

Os primeirossintomas desta

evolução já eramsensíveis em 1960,

quando, emcompanhia do

então candidatoJânio Quadros,estivemos em

Havana, sendoali Embaixador

o Chanceler Leitãoda Cunha.

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61SETEMBRO/OUTUBRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

adoção de uma filosofia política diferente. Lembro-me bemde que Dorticós declarou reconhecer a procedência da ob-jeção, e também me recordo com nitidez de que, ao sairmos,Jânio deu caloroso assentimento ao que eu dissera.

Quando ocupei o Itamaraty nossa posição não diferiu. Se-guindo instruções do Presidente Quadros preparei, para queele assinasse, uma carta a Fidel Castro, de que devia ser por-tador o Embaixador Leitão da Cunha, que viera ocupar, a meuconvite, o posto de Secretário Geral. Possuo o rascunho ma-nuscrito desta carta e a cópia datilografada que entreguei aopresidente com notas marginais deste. A carta era uma espé-cie de advertência amistosa em relação ao desvio totalitárioda Revolução Cubana. Porque, com efeito, na sua primeira fa-se, ela procurou nitidamente tender para a democracia sociale a independência nacional, sendo aí, extremamente gravesos erros da política norte-americana, francamente influencia-da pelos interesses econômicos que dominavam a Ilha e quese julgaram feridos pelos esforços de recuperação nacional doGoverno Revolucionário. Chegado havia pouco ao poder,

que conquistara por estreita margem de votos, o grande Pre-sidente Kennedy cometeu o erro de se deixar envolver pelaaventura da agressão à Ilha, contra a qual, diga-se de passa-gem, o Presidente Quadros e o seu Ministro haviam advertidodiplomatas americanos que dela nos haviam prevenido. So-bre o impacto da agressão repelida, o Governo idealista come-teu por sua vez o grande erro de se deixar envolver pelo jogoda Guerra Fria, aprofundando as suas ligações com a UniãoSoviética, sem perceber que trocava uma dominação, de quese estava libertando, pelo isolacionismo e outra dominaçãode que seria muito mais difícil libertar-se. Ainda na 15ª As-sembleia da ONU, o chanceler Roa fizera um discurso, em ses-são plenária, condenando em bloco, em nome da filosofia deseu Governo, tanto o comunismo escravisador, quanto o ca-pitalismo predatório. Quem consultar este discurso verá queRoa apresentava a linha de seu Governo no sentido de que elechamava humanismo ou humanismo social, designação queprocurou definir teoricamente. A agressão da Baia de Cochi-nos ajudou a tirar a Revolução Cubana para a órbita soviética.

Foi no sentido de prevenir isto que preparei otexto acima referido. Nele, o Presidente diriaque a Revolução Cubana, expressão autênticae avançada do processo histórico latino-ame-ricano estava-se desfigurando, porque seaproximava visivelmente de uma linha rígi-da, política e doutrinariamente; linha esta cor-respondente a uma ideologia fechada e a con-dições específicas de um imenso país comple-tamente diferente dos nossos. A consequên-cia fatal seria o isolamento de Cuba e adescaracterização da sua Revolução, comgrande perda para o nosso Continente. Eis,em resumo, o que continha o texto proposto.

O Presidente brasileiro disse-me que con-cordava plenamente com a colocação daquestão, mas que preferia não mais enviar acarta, porque não estava seguro do bom aco-lhimento dela, e receava que o destinatário autilizasse contra o nosso Governo, acusando-o de intervencionista e submisso a interessesdo capitalismo internacional. De minha parteconcordei com essas reflexões e, então, o Pre-sidente determinou que o Embaixador Leitãoda Cunha, de volta de uma viagem à Jamaica,

fosse a Havana e transmitisse ver-balmente ao Governo local

nossas apreensões. O Em-baixador cumpriu a suam i s s ã o . M a i s t a r d e ,quando passou pe loBrasil, o Sr. Carlos Oliva-res, subsecretário dasRelações Exteriores deCuba e, depois, Embai-

xador em Moscou, naconversa que t ivemos,

sempre na presença do Em-

Reprodução/AE

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62 DIGESTO ECONÔMICO SETEMBRO/OUTUBRO 2009

va a exclusão de Cuba das Nações Unidas, e as Nações Unidas,regidas pela Carta de São Francisco, não impõe aos seus mem-bros uma forma determinada de governo, senão que existeprecisamente para garantir a paz e a segurança internacionaisentre todos os povos e Estados, quaisquer que sejam os regi-mes internos sob os quais vivam;

baixador Leitão da Cunha, reiterei, em nome do Governo,minhas advertências e apreensões. Lembro-me de que, aindanaquele momento (meados de 1961), Olivares contestou for-malmente que o seu Governo tendesse a tornar-se comunis-ta. Eis porque, quando de meu longo depoimento perante aComissão de Relações Exteriores da Câmara, sem citar asfontes de informação, eu disse que não era seguro que Cubaviesse a ser comunista, mas que, se tal se desse, seria levada aromper com os Estados do Continente. A exposição está pu-blicada no Diário do Congresso.

Depois da lamentável renúncia do Presidente Quadros, es-tava eu chefiando a delegação do Brasil na 16ª Assembleia daONU quando, em novembro (creio) de 1961 Fidel proferiu oseu sensacional discurso, afirmando que o seu governo se in-tegrava na linha do marxismo-leninismo. Deve constar dos ar-quivos do Itamaraty o longo despacho que então enviei, fazen-do reparos e sugestões sobre a nova situação criada.

No ano seguinte, durante a 17ª Assembleia, na qual tambémrepresentei o Brasil, tive oportunidade de marcar tão nitida-mente quanto me foi possível a posição da nossa política comreferência ao problema. No discurso que proferi, na PrimeiraComissão, enunciei os seguintes pontos de vista:

1) a Carta de Bogotá, que é o texto constitucionalda Organização dos Estados Americanos, de-termina expressamente que a democracia re-presentativa é o sistema de governo dos Es-tados do Continente;

2) o marxismo-leninismo, fundado emconcepções amplamente conhecidas deMarx e Lenin, é um sistema que não ape-nas diverge, mas decididamente seopõem aos princípios e métodos da de-mocracia representativa;

3) por conseguinte, o Estado que adotaoficialmente esta forma de Governo, afasta-se ipso facto, da organização que se assenta naprática da democracia representativa;

4) à provável alegação do representante deCuba (que era o Embaixador Lechugar) de quevários outros países do Continente não prati-cavam, tampouco, o sistema estabelecido pelaCarta de Bogotá, mas viviam sob ditaduras, eurespondia antecipadamente que a situaçãodesses países era diferente da de Cuba, poiseles não condenavam deliberadamente a ado-ção da democracia representativa, sistema queprocuravam sempre estabelecer, senão quenão se encontravam em condições históricasou sociológicas que tornasse possível a aplica-ção do tipo preferido de governo;

5) que, em consequência, Cuba se excluíra asi mesmo do sistema Continental.

Esta, em resumo, a primeira parte do meus discurso. De lámarchei para as necessárias conclusões, cuja síntese passo aexpor:

1) o fato de Cuba se haver excluído da OEA, por condenar aadesão a princípios nela considerados básicos, não determina-

Fotos: AFP

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63SETEMBRO/OUTUBRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

2) portanto, o deverdas Nações Unidas, nasituação criada, era degarantir a paz e a segu-rança na América, e istosó se poderia conseguirpor meio dos métodosinerentes às NaçõesUnidas, ou seja, pormeio de fórmulas jurí-dicas e negociações po-líticas que resolvessem

a questão sem apelo àguerra e sem sacrifício dos

princípios de autodetermi-nação e não intervenção;

3) não se podia aplicar sanções aum país porque ele não havia adotado determinada forma degoverno, a não ser que ele próprio vulnerasse, em outros paí-ses, os princípios da Carta de São Francisco, que defendem a

soberania de todos. O discurso está publicadonos trabalhos da Primeira Comissão. A Secre-taria da Delegação Brasileira fez um relatórioespecial de que possuo cópia das dezenas devezes em que a nossa maneira de colocar aquestão foi objeto de referência por parte deoutros delegados, de países democráticos ounão, no prosseguimento do debate.

Em entrevista pessoal com o PresidenteDorticós, então em Nova York, realizada napresença do Ministro Geraldo Silos, da delega-ção do Brasil, reafirmei ao presidente que oBrasil defendia o sistema democrático repre-sentativo da Carta de Bogotá e se esforçaria pe-la sua consolidação no Continente.

Creio que a posição então assumida era amais correta. A existência de um país insularcomunista no Ocidente democrático é um fa-to da vida internacional, como a existênciade países insulares anticomunistas, como Ja-pão e Formosa, no Oriente comunizado. Aproximidade geográfica não é aspecto essen-

cial, nem representa risco invencível, nu-ma época em que os foguetes providos

de ogivas nucleares podem atingir,em minutos, com precisão, os alvosassinalados além dos mares. In-ternamente os países democráti-cos devem combater o comunis-mo praticando a democracia, oque implica em realizar as refor-mas necessárias ao bem-estar dos

povos, no caso de países do tipo doBrasil, e não comprometendo a de-

mocracia com a manutenção de es-truturas econômicas e sociais que só po-

dem aprofundar os perigos de luta de clas-ses. Externamente a luta pela democracia é inseparável daluta pela paz. Nada demonstrou isto do que a ação ao mesmotempo enérgica e prudente do presidente Kennedy no trá-gico episódio da instalação dos foguetes soviéticos em ou-tubro de 1962. A atuação do Brasil naquele momento, tantoem Nova York, na ONU, quanto em Washington, na reuniãode chanceleres à que tive de comparecer à pedido do Gover-no, foi clara: apoio às medidas de solidariedade Continentalcontra as mesmas caracterizadas de agressão, defesa da li-berdade, de decisão de cada país e porfiado esforço de co-operação por uma solução que evitasse a violência capaz denos levar ao cataclismo nuclear. Tenho comigo a carta que oilustre Embaixador Adlai Stevenson, com quem sempre en-tretive, nas Nações Unidas, às melhores relações de amizademe enviou, agradecendo em nome de seu governo à atuaçãodo Brasil no seio da ONU. A ideia de que se pode eliminar ocomunismo na América mediante um ataque armado con-tra Cuba é igual a de que se pode liquidar a democracia naÁsia por meio de uma agressão comunista à Formosa. Os Es-tados Unidos sempre recusaram tal solução, desde o episó-

(...) estava euchefiando a

delegação do Brasilna 16ª Assembleiada ONU, quando,

em novembro(creio) de 1961

Fidel proferiu o seusensacional

discurso,afirmando que oseu governo se

integrava na linhado marxismo-

leninismo.

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64 DIGESTO ECONÔMICO SETEMBRO/OUTUBRO 2009

dio de Cochinos. Hoje a liberdade interna depende da pazexterna e esta do fortalecimento da ONU. Não conheço asrazões mais recentes que terão determinado o nosso rompi-mento com Cuba. Do ponto de vista formal, a decisão toma-da em Washington ajusta-se aos termos do Tratado do Rio deJaneiro; por isso mesmo parece-me que seria mais própriopara o nosso País adotar a decisão da reunião de Washing-ton, em face dos elementos de fato e de direito apresentados.A decisão antecipada ficou parecendo uma imposição dealas internas radicais, pois não foram tornados públicos osatos praticados diretamente contra nós que justificassem adecisão unilateral, que no entanto, poderia ser tomada co-letivamente, mediante as provas de ataques ou infiltraçãosubversiva em outros países, segundo os princí-pios da segurança coletiva, estabelecidos noTratado do Rio. De qualquer forma, o Brasildeve manter sempre firme seu poder dedecisão e atuar na sua linha tradicional(esta sim, realmente tradicional) de defe-sa da paz e da solução pacífica dos dissí-dios. Não devemos estimular agressõesque arrisquem a catástrofe nuclear, nemmuito menos participar dela. Aliás, a par-ticipação do Brasil em movimento destanatureza está condicionada, não só pelostermos da lei internacional, como pelosda lei interna. Com efeito, o Tratado doRio deixa ao arbítrio de cada Estado o usoda Força Armada nos casos em que elepossa ser necessário. Além disto, uma leido Congresso (aliás, de minha autoria)submete à aprovação do Legislativoqualquer decisão de remessa de forçasbrasileiras para o exterior, nos cumpri-mentos do Tratado do Rio, isto é, nos ca-sos em que, sem estarmos diretamente en-gajados, se trate aplicar o princípio da so-lidariedade coletiva, ou se cuide de manter asegurança internacional. Foi nos termos destalei que mandamos o nosso contingente a Suez

II

Seguindo a ordem de assuntos adotada no discurso do Pre-sidente da República, prosseguiremos na análise dos concei-tos nele contidos.

Política de independência

Apresenta o Presidente o princípio da autodeterminaçãonacional dentro da comunidade internacional como subme-tida, na prática, à alternativa seguinte: "Uma política de in-dependência ou uma posição neutralista". Partindo destapremissa e da consideração de que o princípio da solidarie-dade coletiva se impõe especialmente nos dias atuais, o Pre-sidente chega à conclusão de que a política independente "éum objetivo e não um método", conclusão enfatizada, em se-

guida, neste trecho: "A independência é, portanto, um valorterminal. Instrumentalmente é necessário reconher-se umcerto grau de interdependência". Deixa também claro que ainterdependência decorre da aplicação do princípio da soli-dariedade coletiva.

Nas duas vezes em que chefiei o Itamaraty e nas missõesque exerci no exterior, nunca desvinculei a política de inde-pendência do reconhecimento da necessidade de interde-pendência de posições. De resto, a aceitação da interdepen-dência se confunde com a própria existência de uma políticainternacional, mesmo antes da formulação do princípio jurí-dico da solidariedade coletiva. Desde a fundação dos Estadosnacionais, na época do Renascimento, ficou patente que nem

sempre um Estado poderia defender sozinho a suaexistência soberana, dada a possibilidade de ser

esta posta em risco por forças isoladas ou co-ligadas, muito mais poderosas. Surgiu, na-turalmente, então, a instituição da aliançadefensiva entre governos, aliança que, nostempos das monarquias hereditárias, tor-nava tão importante o casamento de her-deiros das cortes reinantes. O Império Na-poleônico fez com que no início do séculopassado essas políticas procurassem se es-trutura juridicamente. Foi este o papel doTratado da Santa Aliança, que organizou oequilíbrio de poderes na Europa, até a faserevolucionário de 1848. Em meados do sé-culo 19 esta expressão "equilíbrio de pode-res" (às vezes se dizia "balança de pode-res") se confundiu, mesmo, com a própriapolítica internacional europeia (e fora daEuropa, naquele tempo, não havia uma au-têntica política internacional), mas o certoé que, tanto as fases das alianças, como dabalança de poderes, não eram senão o reco-

nhecimento da solidariedade coletiva, ouseja, da interdependência de interesses e ob-

jetivos, embora o princípio não houvesse sidoainda estruturado juridicamente, nem na doutrina

nem nos tratados ou convenções.Essa expressão "solidariedade coletiva" se vulgarizou de-

pois da Primeira Grande Guerra, e, gradativamente, foi so-frendo uma construção jurídica cada vez mais aprimorada, vi-sível na série de tratados, em todo mundo, que hoje lhe servemde instrumentos. Hoje se reconhece que a interdependência é opropósito final, tanto político quanto jurídico, da comunidadeinternacional. Não se pode, com efeito, conceber um mundolivre e pacífico na era nuclear sem ser composto de Estadosque, embora soberanos, reconheçam a inevitabilidade da coe-xistência. Assim eu colocaria a questão com o seguinte desen-volvimento: na base, a política de independência, que decorreda soberania do Estado; em seguida a prática da solidariedadecoletiva, que deriva da interdependência de interesses e obje-tivos; e, enfim, a paz e a segurança internacionais garantidaspela coexistência de todos. Como se vê, no meu modo de pen-sar, não é a interdependência (coexistência) um instrumento

Não se pode,com efeito,

conceber ummundo livre epacífico na eranuclear sem ser

composto deEstados que,

emborasoberanos,

reconheçam ainevitabilidade da

coexistência.

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65SETEMBRO/OUTUBRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

para se atingir a independência, mas sim ocontrário, isto é, no mundo nuclear a indepen-dência é que se torna um método para melhorse atingir a coexistência, sem a qual a humani-dade marcharia para a servidão ou a destrui-ção. Portanto, o Brasil deve praticar a políticaindependente como meio de assegurar a sualiberdade de movimento no quadro móvel dapolítica mundial, e também tornar possível asua contribuição positiva na manutenção dapaz e da segurança internacionais. Não deve-mos esquecer os princípios da solidariedadecoletiva que nos leva a defender certas posi-ções ideológicas que consideramos afinadas ànossa maneira de ser; nem certas posições geo-gráficas ou econômicas, que se identificamcom a nossa formação. Mas só nos moveremoscom autenticidade, dentro do quadro da soli-dariedade coletiva, na media em que o fizer-mos com independência sem subserviêncianem aceitação de imposições, porque ofato de um Estado ser o mais fortenão significa nem que os seus in-teresses se coadunem inevita-velmente com os nossos, nemque a sua maneira de concebera solução de certos problemasgerais não seja errada. A polí-tica independente é exatamen-te aquela que, dentro da solida-riedade, assegura o direito de de-fender interesses básicos nacionaise opinar com franqueza sobre solu-ções internacionais.

Neutralismo

A outra alternativa lembrada peloPresidente para a nossa política, alémda independência, seria o neutralismo,que ele considera, com razão, comouma política não condizente com a op-ção brasileira. Neste ponto estamos depleno acordo. Para bem dimensionar-mos o chamado neutralismo de hoje,devemos ter presente que ele é um con-ceito fortemente marcado de conteúdopolítico, e, portanto, bastante diferenteda ideia de neutralidade, que era, ainda é,predominantemente jurídica. O caso clássicode neutralidade, que é o da Suíça, foi de fato uma so-lução senão imposta, pelo menos apresentada à Confedera-ção Helvética, precisamente quando se constituiu, em 1815,com a Santa Aliança, o sistema da balança de poderes da Eu-ropa. Depois é que os princípios gerais da neutralidade ju-rídica foram sendo melhor elaborados, tanto na própria Suí-ça, quanto em outros países como na Bélgica, também de-

clarada neutra, quando de sua independên-cia da Holanda, em 1831. Só depois daPrimeira Guerra Mundial se reconheceu odesaparecimento jurídico de neutralidadebelga. Mais modernamente, o direito deneutralidade vem sendo matizado comuma série de noções intermediárias, como,por exemplo, a de não beligerância, outra fi-gura jurídica, forma especial de neutralida-de simpatizante com um dos lados em con-flito. Foi na base da não beligerância que opresidente Roosevelt pode prestar tão gran-

de auxílio a Churchill, mesmo antes de osEUA entrarem na guerra. Diversamente da

neutralidade, o neutralismo não tem nenhumaconceituação jurídica válida. É, de fato, uma forma

de oportunismo político que reúne certos Estados con-temporâneos no propósito de tirar vantagens dos dois cam-pos da Guerra Fria. Por isto mesmo, o neutralismo não é umaposição política realmente independente e nem se confundejuridicamente com neutralidade. Corresponde mais ao que,há alguns anos se convencionou chamar "terceira posição".Além disso, neutralismo não possui vinculações nem com-

AFP

Chegadohavia pouco ao

poder, queconquistara porestreita margem

de votos, o grandepresidente

Kennedy (foto)cometeu o erro dese deixar envolverpela aventura da

agressão à Ilha (...)

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66 DIGESTO ECONÔMICO SETEMBRO/OUTUBRO 2009

promissos militares; o que de forma nenhuma repugna a po-lítica independente. Quando se verificou, em 1961, a reu-nião neutralista de Belgrado, o governo brasileiro foi ins-tantemente solicitado a comparecer. No Itamaraty sempreexpliquei ao Embaixador da Iugoslávia que não o podería-mos fazer porque, partidários de uma política realmente in-dependente, não nos poderíamos comprometer com tesesou interesses que poderiam não ser nossos. Consultei a res-peito o Presidente Quadros, que concordou. Foi por isto quenos fizemos representar por um observador diplomático enão por um delegado. Penso que esta tem sido e deve con-tinuar a ser a nossa atitude, porque, em certos casos, a ver-dadeira independência só é mantida pela solidariedadecontra o opressor, e não pelo neutralismo indiscriminado.

Colonialismo

Também para termos uma ideia clara do problema colo-nial, focalizado pelo Presidente, não podemos deixar de fa-zer um pequeno retrospecto dos pontos mais marcantes dasua evolução. O colonialismo, hoje em agonia, foi o resulta-do fatal da fase da expansão capitalista conhecida sob nomede imperialismo, ou seja, a criação de novos impérios, no sé-culo 19: Lenin, em estudo ainda válido sobre as causas doimperialismo, embora completamente superado quando àsprevisões que fazia a respeito, mostrou que a expansão co-lonial imperialista resultou da supersaturação do mercadode capitais e da produção industrial nos países mais avan-çados, principalmente a Inglaterra, a França e a Alemanha.O Congresso de Berlim, em 1885, foi o reconhecimento ofi-cial da expansão colonialista, que tentou organizar, emborao tenha feito imperfeitamente, de tal forma que hoje, naÁfrica, as divisões territoriais decorrentes daquele Con-gresso ainda provocam lutas, por não se ajustarem às rea-lidades populacionais. De qualquer maneira, entre 1870,que marca o auge da Revolução Industrial, e a PrimeiraGuerra Mundial, a Inglaterra se apoderou de 4,5 milhões demilhas quadradas de territórios no além-mar; a França demais de 3 milhões e a Alemanha, de quase 2 milhões de mi-lhas quadradas. Hoje a Inglaterra deu independência a no-ve décimos do seu Império. De 600 milhões de pessoas, queem 1939 eram governadas desde Londres, fora da Europa,restam hoje menos de 50 milhões. A França não entendeuquanto era acertada a política de liberação inglesa. Preferiulutar pela manutenção de seu Império. E sofreu derrotas ter-ríveis desde a Indochina até a Argélia. Foi precisamente umdos maiores soldados da história francesa, o General DeGaulle, que sentiu a necessidade de mudança, liberando aArgélia. Não se pode saber até que ponto os erros do tardiodesengajamento francês na Indochina terão contribuído pa-ra a dramática situação atual do Vietnã, guerra fluida que ospróprios Estados Unidos da América não sabem como vaiterminar. O mesmo ocorreu no Congo, adquirido pela Bél-gica, comensal retardado do banquete colonial, em virtudedo Congresso de Berlim. Até que ponto a negativa belga deseguir oportunamente o exemplo inglês terá ajudado a criara situação que lá está, não e pode dizer.

Originariamente a situaçãode Portugal é distinta, pois elese encontra em África desdeo século 16. Seu império co-lonial não foi contemporâ-neo da expansão imperialis-ta, nem Portugal, pelas suascondições internas, poderiaser um país imperialista.Mas o fato é que, se a situa-ção originária do impérioportuguês é peculiar, o qua-dro atual das suas colôniasnão difere do resto do pro-blema colonial. Nunca des-conheci nossas relações es-peciais com Portugal. O Em-baixador Negrão de Limapoderá testemunhar sobre otom das conversas que tive,como Ministro, com meu cole-ga português, e, também, comSalazar, que me sensibilizou comum convite para uma conversa com ele aqual durou hora e meia. Não tive a impressão de ter dei-xado mal interpretados, pelo velho experiente estadista, ospontos de vista do Brasil. O fato de termos ligações afetivasindestrutíveis com o povo português não pode obrigar o Bra-sil a seguir a linha da política africana portuguesa nas Na-ções Unidas; da mesma maneira que o fato de considerarmosSalazar uma marcante figura da História do século 20 nãonos obriga a estar de acordo com as suas ideias sobre o Estadoe os regimes de governo. Sempre recusei, nas Nações Unidas,aceitar sanções ou avalizar injúrias contra Portugal. Meusdiscurso, feito em plenário, sobre o problema colonial por-tuguês, ressaltava nossas afinidades, mas era, ao mesmotempo, um esforço de cooperação para levar Portugal aocumprimento dos deveres que assumiu ao entrar nas NaçõesUnidas. A liquidação do colonialismo é um fato inevitável.Os expedientes do salazarismo para conservá-lo terão a du-ração que tiver o regime português, o que vem a dizer quecorresponde talvez à duração de uma vida humana. O exem-plo dos demais países da Europa mostra o erro grosseiro daprofecia de Lenin, segundo a qual o fim do colonialismo seriao fim do capitalismo, pelo colapso econômico das metrópo-les. Ao contrário, nunca a Europa esteve mais rica e maispróspera quando depois que abandonou as colônias. Ingla-terra, França, Holanda, Alemanha, Bélgica e a própria Espa-nha aí estão como provas irretorquíveis de que o sonho co-lonial junta a injustiça às dificuldades internas. O exemplodisto é, precisamente, Portugal. Não é só por amor ao povoportuguês que o Brasil deve cumprir o seu dever de membroda ONU, apoiando o fim do colonialismo. É também pelassuas responsabilidades de país novo, e pelo respeito que asua posição independente e a correção de suas atitudes in-fundia nos povos africanos e asiáticos. Nossa amizade comPortugal não deve interferir com nossos interesses e respon-

A foto tirada emMadri em 24 dejunho de 1960

mostra o ditadorespanhol FranciscoFranco (à dir.) com oditador portuguêsAntonio de OliveiraSalazar (à esq.). A

ditadura Salazaristateve início em 1932 eterminou em 1974,com a Revolução

dos Cravos.

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67SETEMBRO/OUTUBRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

sabilidades. A comunidade atlântica, de que falou o Presi-dente, só pode ser erguida tendo como objetivo a democraciae a liberdade para todos os povos dela participante. Só podeser voltada para o futuro e nunca para o passado, por maisbelo que seja este. Leiamos Camões, mas pratiquemos An-tônio Vieira, que escreveu uma História do Futuro.

Paz e desarmamento

Nem sempre a luta pela paz se identifica ao que se chamapacifismo, assim como a independência não se confunde comneutralismo. O pacifismo é uma aparência tópica de neutra-lismo. Por exemplo, a abstenção neutralista ou pacifista no ca-so dos foguetes ofensivos soviéticos colocados em Cuba, nãoconduzia nem a independência e nem a paz.

Mas, se as responsabilidades do Brasil não lhe apontam ocaminho do neutralismo pacifista, no tocante aos deveres deconsolidar a paz e a segurança internacionais, não há dúvi-da de que tais responsabilidades só poderão ser desempe-nhadas através de uma posição independente (sempre nosentido aqui atribuído a esta expressão) no Conselho de Se-gurança das Nações Unidas e na Conferência de Desarma-mento de Genebra. A prova do prestígio mundial brasileirona prática da sua política independente, pode ser apresen-tada exatamente pela sua eleição, em 1962, para o Conselho,com o maior número de votos do pleito e pela sua escolhapara integrar o grupo de potências incumbidas de discutir odesarmamento em Genebra. A ingente tarefa cometida a es-ta conferência não permite progressos rápidos nas negocia-ções, mas o fato de ela não se ter dissolvido, apesar de tantasdificuldades, mostra que sua existência é uma garantia.

Ora, o aspecto novo trazido pelaConferência, em comparação com oórgão anterior das Nações Unidasque se ocupava com o desarmamen-to, é exatamente a presença, no seuseio, de países capazes de seguir,quando necessário, uma linha inde-pendente. Existem oito, escolhidospelos dois lados (Ocidente e BlocoSoviético) para tal fim e, entre eles,estava o Brasil. No ano de 1961 e

1962, em que chefiei a delegaçãobrasileira, pude avaliar a im-

portância que impregnanosso papel naquela reu-nião. Pode-se, mesmo,assegurar que o princi-pal progresso da Confe-rência, situado no pro-blema da cessação dosensaios nucleares, não

seria atingido se não fos-se a participação enérgica

e hábil dos oito países: Bra-sil, Birmânia, Egito, Etiópia,

Índia, México, Nigéria e Suécia. E,dentro da ação deste grupo; o trabalho brasileiro pode seracompanhado com setação objetiva dos arquivos do Itama-raty. Também nos estudos referentes ao tratado geral do de-sarmamento, que é a segunda tarefa cometida à Conferência(parte mais difícil e de negociação mais demorada) a açãobrasileira se fez sentir em várias das decisões já adotadas.

O que importa assinalar é que a posição independente dosoito países escolhidos exatamente para este comportamento,se impõe, em benefício dos dois lados e de todo o mundo. Osproblemas do desarmamento, tão enormes e complicados, quenão é raro a verificação de que as duas superpotências tendema se aproximar, para evitar soluções que facilitariam a tarefa daConferência. Nestes momentos é que a colaboração livre dospaíses não comprometidos, através de entendimentos com osdois lados e sugestões hábeis, se faz sentir e se torna mais útildo que qualquer outra forma de ação. A imprensa mundial, pe-los seus representante em Genebra, várias vezes reconheceu is-so e quem compulsar as atas dos trabalhos da Conferência nãotardará a se convencer do mesmo.

Ao longo desta exposição, portanto, podemos verificarque a independência da nossa política externa nos termosafirmados pelo Presidente não difere em nada de substan-cial daquela que procuramos praticar. Os pontos de diver-gência situam-se, antes, na técnica de aplicação, a qual, naminha opinião, deve ser revista pelo Governo, nos pontosassinalados. Tal política é uma imposição inexorável dascondições atuais do Brasil, e o será cada vez mais, para o fu-turo a não ser que prefiramos atender a imposições de gru-pos a serviços de interesses antinacionais ou assaltados pelofuror ditatorial e soldemos nós mesmos as grilhetas da nossaservidão, sem nenhum proveito para o mundo.

AFP

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68 DIGESTO ECONÔMICO SETEMBRO/OUTUBRO 2009

A crise acabou?

Roberto FendtEconomista ecolaboradorregular do jornalDiário do Comércio

Mauricio Lima/AFP

Divulgação

Jung Yeon-Je/AFP

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69SETEMBRO/OUTUBRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

Kirill Iordansky/Reuters

Austrália elevou a taxa de jurosem 0,25% ponto percentual,

para 3,25% ao ano. No mundodesenvolvido em recessão,

a notícia causou furor,sendo recebida como mais um

prenúncio do fim da crise.

No início deste mês de outubro, oReserve Bank (Banco Central)da Austrália elevou a taxa de ju-ros em 0,25% ponto percentual,

para 3,25% ao ano. No mundo desenvolvidoem recessão, a notícia causou furor, sendo re-cebida como mais um prenúncio do início dofim da crise que atormenta igualmente paísesdesenvolvidos, emergentes e em desenvolvi-mento. Em decorrência da notícia ocorreu umanova rodada de elevação dos preços das açõesnas principais bolsas de valores mundiais – in-clusive na nossa Bovespa.

O evento, evidentemente, deveria ter causa-do um impacto pequeno nos mercados de va-lores mundiais. Primeiro, porque na distanteAustrália ocorreu um aumento pouco expres-sivo na sua taxa básica de juros, significativoapenas como indicador de uma reversão depolítica em um país que supostamente estavasaindo da recessão para o combate às pressõesinflacionárias. Segundo, porque a Austrália

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70 DIGESTO ECONÔMICO SETEMBRO/OUTUBRO 2009

não estava em recessão, sendo um desses casosraros de países desenvolvidos que não haviamsido contagiados pela recessão que se iniciounos EUA e se estendeu à maioria dos países.Portanto, em um mercado bem informado,não haveria como causar furor, e servir de in-dicador de recuperação, a alta da taxa austra-liana. Finalmente, elevações de taxas de jurosgeralmente são ruins para as bolsas de valores,já que aumentam a atratividade da renda fixavis-à-vis as ações.

Essa história exemplar mostra a disposiçãode todos em acreditar que a recuperação estána volta da esquina. E acreditar nisso, ajuda.

Não que não haja evidências robustas da re-cuperação em diversos mercados. A exemploda Austrália, outros países desenvolvidos es-caparam dos piores rigores da recessão, comoa Noruega e a França. Outros, como os EUA e amaioria dos países da União Europeia, conse-guiram evitar que a queda na produção e noemprego assumisse contornos semelhantes aoda Grande Depressão, como muitos temiam.

Recorde-se que, a exemplo da Depressão, acrise iniciou-se no mercado financeiro. Após ad éb âc le do banco de investimentos LehmanBrothers, bancos centrais e Tesouros dos paí-ses desenvolvidos tomaram medidas concre-tas para prover apoio aos bancos e instituiçõesfinanceiras de seus países.

As medidas postas em prática incluíram tan-to ações voltadas para apoiar a liquidez de ins-tituições individuais, como medidas de carátersistêmico. Entre as principais ações destacam-se o fortalecimento da base de capital dos ban-cos, evitando o aprofundamento do processode desalavancagem dessas instituições, parti-cularmente após o 15 de setembro do ano pas-sado; a concessão de garantias dos passivos dosistema bancário, de forma a assegurar a con-tinuidade do acesso dos bancos às fontes tradi-cionais de financiamento; e a compra ou garan-tia de ativos ilíquidos ou non performing d osbancos, de forma a reduzir a exposição dessasinstituições a perdas significativas (que, de res-to, começam a aparecer na safra de balanços empublicação). O que estava em risco, na ocasião,era um processo cumulativo de quebras no sis-tema bancário, o que teria consequências desas-trosas para a liquidez e solvência do sistema, ocrédito e a atividade econômica.

Os resultados dessas intervenções são conhe-cidos o suficiente para merecer aprofundadoscomentários aqui. Basta apontar aqui os comen-tários do Diretor Executivo do Fundo MonetárioInternacional, Dominique Strauss-Kahn, na reu-nião anual do FMI em Istambul, que "a coopera-

ção global salvou o mundo de uma crise muitopior (que a Grande Depressão)" e que chegou ahora dos líderes mundiais tomarem a iniciativade conformar um mundo pós-crise.

Essa cooperação, como não poderia deixarde ser, deu-se sob o desenrolar da crise e tevecaráter informal, tendo em vista os interessesdos países envolvidos de enfrentar os desafioscomuns com soluções partilhadas, visandorestabelecer o funcionamento sistêmico domercado financeiro – do que resultaram paco-tes de apoio financeiro aos mercados da ordemde 2% do PIB mundial.

Sempre em busca de nova identidade, per-dida com o longo período de expansão susten-tada da economia mundial, o FMI busca agoraconsolidar seu papel na recuperação apostan-do em quatro áreas distintas: a revisão do man-dato do Fundo; seu papel financeiro; a novasupervisão internacional do sistema financei-ro; e a sua própria governança.

Em paralelo a esse esforço, reguladores nosEUA e na União Europeia trabalham no novoformato das instituições nacionais sob suas su-pervisões, em paralelo ao que pretende fazer oFMI. Dessa nova regulamentação poderão re-sultar menos riscos ao sistema sem tolher exa-geradamente a criatividade das instituições, oupoderá produzir uma camisa de força que, em-bora restabelecendo a confiança dos investido-res, impeça a rápida criação de novos produtos,adequados à dinâmica da economia mundial.

Qualquer que seja o novo formato regulató-rio e o papel das instituições multilaterais, apercepção hoje é de que a recuperação no mun-do desenvolvido será lenta, conforme mostra oWorld Economic Outlook de outubro do FMI.Nesse quadro, ressalta-se a contribuição positi-va dos países asiáticos para a retomada da ati-vidade econômica global, que retomaram ocrescimento, juntamente com a estabilização daatividade econômica ou um modesto cresci-mento em algumas economias. Muitos paísesemergentes estão a caminho de sair mais rapi-damente da recessão que as economias avança-das, em parte ajudadas pelo aumento dos pre-ços das commodities que comandam os valoresde suas exportações, e calcadas nas retomadasdos seus mercados internos. Contrariamente, acrise atingiu mais fortemente países endivida-dos em moeda estrangeira, como alguns loca-lizados no Leste Europeu, cuja retomada possi-velmente ficará para o fim da fila.

Os desafios à recuperação da economiamundial persistem. Os principais se referemao restabelecimento da saúde do sistema fi-nanceiro e à continuidade das medidas ma-

Stephen Jaffe/AFP

Dominique Strauss-Kahn: a cooperação

global salvou o mundode uma crise muito pior.

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71SETEMBRO/OUTUBRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

croeconômicas de apoio à atividade econômi-ca. Em algumas das economias avançadas es-ses desafios foram enfrentados com mais su-cesso que em outras, mas de forma geral, paratodo o mundo desenvolvido o desafio deverápermanecer além de 2010.

Nesse contexto, do ponto de vista monetário,a questão centra-se no momento adequado paraencerrar o afrouxamento das políticas monetá-rias e retirada gradual e progressiva das fortesinjeções de recursos praticadas pela maioria dosbancos centrais. Há uma percepção de que os de-safios da reversão da política monetária são dis-tintos nos casos dos países desenvolvidos eemergentes, em razão das diferentes pressões in-flacionárias que as políticas expansionistas po-dem provocar nos dois grupos de países.

Nos países desenvolvidos essas pressõessão menores, permitindo que as políticas pos-tas em prática para acomodar a liquidez po-dem ter uma sobrevida maior que as mesmaspolíticas implementadas nos países emergen-tes. Em síntese, a diferença essencial entre de-senvolvidos e emergentes é o tamanho do hia-to dos PIBs potenciais dos dois grupos de paí-ses. Há uma percepção de que os emergentesestão mais rapidamente recuperando a capa-cidade ociosa que ocorreu após o início da cri-se, por oposição aos países desenvolvidos.

Se assim é, provavelmente políticas monetá-rias menos expansionistas farão mais sentidodaqui para frente nos países emergentes. Alémdisso, em muitos desses países está chegando ahora de encerrar os estímulos de natureza fiscalque contribuíram para apressar a fase recessivado ciclo na maioria dos emergentes.

Entre nós, os sinais do fim da crise são aindamais claros. Estudos com indicadores antece-dentes mostram que tivemos dois trimestres decontração na atividade econômica, seguidos deestabilização e início da retomada. Esta prova-velmente já se iniciou, tornando talvez positiva– embora muito próxima de zero – a taxa decrescimento do PIB brasileiro em 2009.

Outros indicadores corroboram esses exercí-cios estatísticos. No segundo trimestre, o PIB ex-perimentou crescimento de 1,9%, depois de que-da de 3,4% no quarto trimestre de 2008 e de 1%no primeiro trimestre deste ano. A recuperaçãobrasileira no segundo trimestre acompanha a re-tomada de outros países, como Japão (0,6%),Alemanha (0,3%) e França (0,3%). A despeitodesses desenvolvimentos, no primeiro semestreainda amargamos queda no PIB de 1,5% e naprodução industrial, de 13,4%. Na China a reces-são passou ao largo, já que em agosto as vendasno varejo cresceram 15,4% em relação a agosto

de 2008 e a produção industrial, 12,3%.Parece prematuro afirmar que a crise acabou

tout court. Se a recuperação parece estar se con-solidando em muitos países emergentes, mes-mo nesse grupo de nações o fenômeno não é ge-neralizado. O México, por exemplo, amargouqueda de 1,1% no PIB no segundo trimestre.

Entre as economias avançadas, contraíram-se no segundo trimestre, entre outros, os PIBsdos EUA (-0,3%), Espanha (-0,5%), Reino Uni-do (-0,7%) e Itália (-0,5%).

Estamos a caminho de um ano eleitoral e comforte expansão fiscal. A capacidade ociosa está sereduzindo e há riscos de pressões inflacionáriasno futuro, embora em 2010 sejamos auxiliadospelos baixos reajustes dos preços sujeitos a cor-reção pelo IGPM, como alguns serviços públicose a maioria dos contratos de aluguel.

O desafio brasileiro será sustentar a retoma-da em curso sem criar pressões inflacionáriasdesestabilizadoras no futuro.

Na China a recessãopassou ao largo, já

que em agosto asvendas no varejocresceram 15,4%

em relação a agostode 2008. Parece

prematuro afirmarque a crise acabou

tout court. Se arecuperação

parece estar seconsolidando em

muitos paísesemergentes, mesmo

nesse grupo denações o fenômenonão é generalizado.

Shannon Stapleton/Reuters

Frantzesco Kangaris/AFP

Arquivo/AFP

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72 DIGESTO ECONÔMICO SETEMBRO/OUTUBRO 2009

O

Divulgação

MUNDOAINDACORRE

PERIGO

Carl Weinberg: osistema financeiromal foi consertado,os bancos aindanão estãooperando comobancos e osmercadosimobiliários nosEstados Unidos eEuropa ainda nãose recuperaram.

Cíntia Shimokomaki

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73SETEMBRO/OUTUBRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

Um ano após a crise financeira que abalou omundo, os mercados e as empresas retomam ootimismo, os países voltam a apresentar sinais derecuperação, mas ainda é cedo para dizer que o

mundo saiu da crise. Até mesmo países que teriam sentidomenos o impacto da recessão econômica, como Brasil, nãoestão ilesos e podem ser prejudicados pelos efeitos doestouro de uma nova bolha, a do mercado de commodities.O alerta foi feito pelo economista-chefe do High FrequencyEconomics (HFE), Carl Weinberg.

Para o economista norte-americano, ainda não é hora deafirmar que a crise foi superada. "O sistema financeiro mal

foi consertado, os bancos ainda não estão operando comobancos e os mercados imobiliários nos Estados Unidos eEuropa ainda não se recuperaram", exemplificou oeconomista, cuja instituição ganhou reconhecimento porprever em 2005 – um ano antes das demais – o colapso domercado imobiliário norte-americano.

Com a recessão, os Estados Unidos tiveram grandestransformações, principalmente entre a população. "Houveuma profunda mudança nos consumidores", analisouWeinberg. Um dos motivos, apontou, é a contração doscréditos domésticos nos EUA. No relatório semanal do HFEde 27 de outubro, o economista revela que a recuperação virá

Bay

Ismoy

o/A

FP

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74 DIGESTO ECONÔMICO SETEMBRO/OUTUBRO 2009

com pouco ou nenhum crédito aos norte-americanos."Enquanto os lares se ajustam aos níveis mais elevados decrédito e reduzem seu padrão de vida, o crescimento dogasto do consumidor será limitado pelo ritmo docrescimento de renda real", disse Weinberg.

Os norte-americanos passaram de devedores parapoupadores, ainda que por uma pequena margem. "Os laresnorte-americanos estão pagando suas dívidas", afirmou.

Segundo o economista, a taxa de poupança é uma dascausas da atual recessão, mas isto não significa que ela seja

negativa, já que parte dos recursos será destinada ainvestimentos em setores como tecnologia e produtividade.

Retomada lenta

Para Weinberg, a recuperação no resto do mundo tambémserá gradativa. A Europa terá uma retomada de crescimentomais lenta do que nos EUA, mesmo com os pacotes de ajudados governos. "A reação às políticas foi menor e houve umaretração maior na atividade econômica", justificou.

Wan

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FP

Enquanto os lares seajustam aos níveis decrédito e reduzem opadrão de vida, o gastodo consumidor serálimitado pelo ritmo docrescimento de renda.

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75SETEMBRO/OUTUBRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

As economias emergentes, que estavam entre as primeirasa superarem a crise, também devem se manter alertas. Oespecialista acredita que as commodities amorteceram osefeitos da crise nos países em desenvolvimento. O risco,aponta, ainda existe. "A pergunta que devemos fazer é: porque eles se recuperaram? Houve uma queda na produção e,consequentemente, nos insumos. Portanto, os preçosdeveriam cair, mas houve uma corrida especulativa dospreços das commodities", ponderou Weinberg,acrescentando que atualmente existe uma "falsa esperança"."A bolha das commodities deve se deteriorar", declarou.

Futuro

As perspectivas para 2010 ainda são de ajustes naeconomia. Weinberg não segue as previsões de analistas que

adotam os gráficos em forma de "L" (leve inclinação paracima) ou "W" (recuperação, queda e nova recuperação),mas garante que ainda haverá uma queda no ano que vem."O ano de 2010 ainda será um ano devagar para os EUA",afirmou, acrescentando que o país crescerá inicialmente emdecorrência do estímulo fiscal, mas que o nível dedesemprego continuará aumentando.

O mercado de trabalho, aliás, é uma fonte de preocupaçãonão só para a maior economia do mundo, como para outrospaíses. "O desemprego crescente é um risco para distúrbiospolíticos e sociais ao redor do mundo", alertou.

De acordo com Weinberg, a recuperação virá somenteno início de 2011, depois que as taxas de poupança seestabilizarem e a população retomar seus hábitos deconsumo. "Esta foi a primeira crise liderada pelosconsumidores, mas ela não vai durar para sempre."

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O ano de 2010 será umperíodo de ajustes naeconomia. Os EUAcrescerão em decorrênciado estímulo fiscal, mas odesemprego continuaráaumentando.

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A revoluçãoglobalista

Olavo deCarvalhoJornalista, escritor eprofessor de Filosofia

Para quem quer que deseje se orientar na política de hoje– ou simplesmente compreender algo da história dosséculos passados –, nada é mais urgente do que obteralguma clareza quanto ao conceito de “revolução”.

Tanto entre a opinião pública quanto na esfera dos estudos aca-dêmicos reina a maior confusão a respeito, pelo simples fato deque a ideia geral de revolução é formada quase sempre na basedas analogias fortuitas e do empirismo cego, em vez de buscaros fatores estruturais profundos e permanentes que definem omovimento revolucionário como uma realidade contínua eavassaladora ao longo de pelo menos três séculos.

Só para dar um exemplo ilustre, o historiador Crane Brinton,em seu clássico The Anatomy of Revolution, busca extrair um con-ceito geral de revolução da comparação entre quatro grandes fa-tos históricos tidos nominalmente como revolucionários: as re-voluções inglesa, americana, francesa e russa. O que há de co-mum entre esses quatro processos é que foram momentos degrande fermentação ideológica, resultando em mudanças subs-tantivas do regime político. Bastaria isso para classificá-los uni-formemente como “revoluções”? Só no sentido popular e im-pressionista da palavra. Embora não podendo, nas dimensõesdeste escrito, justificar todas as precauções conceptuais e meto-dológicas que me levaram a esta conclusão, o que tenho a ob-servar é que as diferenças estruturais entre os dois primeiros e osdois últimos fenômenos estudados por Brinton são tão profun-das que, apesar das suas aparências igualmente espetaculares esangrentas, não cabe classificá-los sob o mesmo rótulo.

Só se pode falar legitimamente de “revolução” quando umaproposta de mutação integral da sociedade vem acompanhadada exigência da concentração do poder nas mãos de um grupodirigente como meio de realizar essa mutação. Nesse sentido,jamais houve revoluções no mundo anglo-saxônico, exceto a deCromwell, que fracassou, e a Reforma Anglicana, um caso mui-to particular que não cabe comentar aqui. Na Inglaterra, tanto arevolta dos nobres contra o rei em 1215 quanto a Revolução Glo-

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riosa de 1688 buscaram antes a limitação do poder central doque a sua concentração. O mesmo aconteceu na América em1786. E em nenhum desses três casos o grupo revolucionáriotentou mudar a estrutura da sociedade ou os costumes estabe-lecidos, antes forçando o governo a conformar-se às tradiçõespopulares e ao direito consuetudinário. Que pode haver de co-mum entre esses processos, mais restauradores e corretivos doque revolucionários, e os casos da França e da Rússia, onde umgrupo de iluminados, imbuídos do projeto de uma sociedadetotalmente inédita em radical oposição com a anterior, toma opoder firmemente resolvido a transformar não somente o sis-tema de governo, mas a moral e a cultura, os usos e costumes, amentalidade da população e até a natureza humana em geral?

Não, não houve revoluções no mundo anglo-saxônico e bas-taria esse fato para explicar a preponderância mundial da Ingla-

No alto, pintura de Léon Cognet (1794-1880) sobre aRevolução Francesa; acima, foto da Revolução Russa.

Fotos: Reprodução

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terra e dos EUA nos últimos séculos. Se, além dos fatores estru-turais que as definem – o projeto de mudança radical da socie-dade e a concentração do poder como meio de realizá-lo –, algohá de comum entre todas as revoluções, é que elas enfraqueceme destroem as nações onde ocorrem, deixando atrás de si nadamais que um rastro de sangue e a nostalgia psicótica das ambi-ções impossíveis. A França, antes de 1789, era o país mais rico ea potência dominante da Europa. A revolução inaugura o seulongo declínio, que hoje, com a invasão islâmica, alcança dimen-sões patéticas. A Rússia, após um arremedo de crescimento im-perial artificialmente possibilitado pela ajuda americana, des-mantelou-se numa terra-de-ninguém dominada por bandidose pela corrupção irrefreável da sociedade. A China, após reali-zar o prodígio de matar de fome trinta milhões de pessoas numasó década, só se salvou ao renegar os princípios revolucionáriosque orientavam a sua economia e entregar-se, gostosamente, àsabomináveis delícias do livre mercado. De Cuba, de Angola, doVietnã e da Coreia do Norte, nem digo nada: são teatros de GrandGuignol, onde a violência estatal crônica não basta para escon-der a miséria indescritível.

Todos os equívocos em torno da ideia de “revolução” vêmdo prestígio associado a essa palavra como sinônimo de reno-vação e progresso, mas esse prestígio lhe advém precisamentedo sucesso alcançado pelas “revoluções” inglesa e americanaque, no sentido estrito e técnico com que emprego essa pala-vra, não foram revoluções de maneira alguma. Essa mesmailusão semântica impede o observador ingênuo – e incluo nis-so boa parte da classe acadêmica especializada – de enxergar arevolução onde ela acontece sob a camuflagem de transmuta-ções lentas e aparentemente pacíficas, como, por exemplo, aimplantação do governo mundial que hoje se desenrola ante osolhos cegos das massas atônitas.

O critério distintivo suficiente para eliminar todas as hesita-ções e equívocos é sempre o mesmo: com ou sem transmutaçõessúbitas e espetaculares, com ou sem violência insurrecional ougovernamental, com ou sem discursos de acusação histéricos ematança geral dos adversários, uma revolução está presentesempre que esteja em ascensão ou em curso de implantação umprojeto de transformação profunda da sociedade, se não da hu-manidade inteira, por meio da concentração de poder.

É por não compreenderem isso que muitas vezes as correntesliberais e conservadoras, opondo-se aos aspectos mais vistosos erepugnantes de algum processo revolucionário, acabam por fo-mentá-lo inconscientemente sob algum outro de seus aspectos,cuja periculosidade lhes escape no momento. No Brasil de hoje,a concentração exclusiva nos males do petismo, do MST e simi-lares pode levar liberais e conservadores a cortejar certos “mo-vimentos sociais”, na ilusão de poder explorá-los eleitoralmen-te. O que aí escapa à visão desses falsos espertos é que tais mo-vimentos, ao menos a longo prazo, desempenham na implan-tação da nova ordem mundial socialista um papel ainda maisdecisivo que o da esquerda nominalmente radical.

Outra ilusão perigosa é a de crer que o advento da adminis-tração planetária é uma fatalidade histórica inevitável. A faci-lidade com que a pequena Honduras quebrou as pernas do gi-gante mundialista mostra que, ao menos por enquanto, o po-der desse monstrengo se constitui apenas de um blefe publi-citário monumental. É da natureza de todo blefe extrair suasubstância vital da crença fictícia que consegue inocular emsuas vítimas. Com grande frequência vejo liberais e conserva-dores repetindo os slogans mais estúpidos do globalismo, co-mo por exemplo o de que certos problemas – narcotráfico, pe-dofilia etc. – não podem ser enfrentados em escala local, reque-rendo antes a intervenção de uma autoridade global. O contra-senso dessa afirmativa é tão patente que só um estado geral desonsice hipnótica pode explicar que ela desfrute de algumacredibilidade. Aristóteles, Descartes e Leibniz ensinavam que,quando você tem um problema grande, a melhor maneira deresolvê-lo é subdividi-lo em unidades menores. A retórica glo-balista nada pode contra essa regra de método. Ampliar a es-cala de um problema jamais pode ser um bom meio de enfren-tá-lo. A experiência de certas cidades americanas, que pratica-mente eliminaram a criminalidade de seus territórios usandoapenas seus recursos locais, é a melhor prova de que, em vez deampliar, é preciso diminuir a escala, subdividir o poder, e en-frentar os males na dimensão do contato direto e local em vezde deixar-se embriagar pela grandeza das ambições globais.

Que o globalismo é um processo revolucionário, não há comonegar. E é o processo mais vasto e ambicioso de todos. Ele abran-ge a mutação radical não só das estruturas de poder, mas da so-ciedade, da educação, da moral, e até das reações mais íntimasda alma humana. É um projeto civilizacional completo e sua de-manda de poder é a mais alta e voraz que já se viu. Tantos são osaspectos que o compõem, tal a multiplicidade de movimentosque ele abrange, que sua própria unidade escapa ao horizontede visão de muitos liberais e conservadores, levando-os a tomardecisões desastradas e suicidas no momento mesmo em que seesforçam para deter o avanço da "esquerda". A ideia do livre co-mércio, por exemplo, que é tão cara ao conservadorismo tradi-cional (e até a mim mesmo), tem sido usada como instrumentopara destruir as soberanias nacionais e construir sobre suas ruí-nas um onipotente Leviatã universal. Um princípio certo sem-pre pode ser usado da maneira errada. Se nos apegamos à letrado princípio, sem reparar nas ambiguidades estratégicas e geo-políticas envolvidas na sua aplicação, contribuímos para que aideia criada para ser instrumento da liberdade se torne uma fer-ramenta para a construção da tirania.

MST: movimento quer uma nova ordem mundial socialista.

Lauro Alves/Diário de Santa Maria/Ag. O Globo

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Congresso Nacional,em Brasília, é o órgãoconstitucional queexerce, no âmbitofederal, as funçõeslegislativa efiscalizatória.

Necessidadede Fortalecimentodas Competênciasdos Estados-Membros

Patrícia Cruz/Luz

Alexandre de MoraesProfessor doutor e livre-docente na Faculdade deDireito da Universidade deSão Paulo e professor titularda Faculdade PresbiterianaMackenzie. Desde 2007exerce o cargo de SecretárioMunicipal de Transportes eas presidências da CET(Companhia de Engenhariade Tráfego) e SPTrans.Atualmente, acumula adireção da SecretariaMunicipal de Serviços

Introdução

Amanutenção do equilíbrio democrático dependedo bom entendimento, definição, fixação de fun-ções, deveres e responsabilidades entre os trêsPoderes, bem como a fiel observância da distri-

buição de competências, caracterizado do pacto federati-vo, consagrado constitucionalmente no Brasil desde a nossaprimeira Constituição Republicana, em 1891.

A luta pela concretização democrática na América Latinae, especialmente no Brasil, que seguiu os modelos federa-lista e presidencialista norte-americanos, tem gerado gran-des debates sobre as difíceis escolhas sobre os modelos ins-titucionais a serem implantados, os poderes e funções pre-sidenciais, os controles e a fiscalização; bem como a divisãode competências entre União, Estados e Municípios.

No processo dinâmico da História, o Estado Federal epresidencialista apresentam mudanças, inicialmente ca-racterizadas por um modelo idealizado fraco (Rei sem Co-roa), que nunca chegou a existir ou ser aplicado na prática,logo se tornando, por um processo político autoritário ecentralizador, em torno da figura da União e do presidente;e mais modernamente, em uma tentativa de ampliaçãodos poderes de controles parlamentares e judiciais em re-lação ao Executivo e à divisão constitucional de compe-

Federação brasileira

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tências, para garantia de maior estabilidade democrática eforça aos Estados membros.

Para tanto, é necessária a plasticidade indispensável aomecanismo governamental que acabou por gerar, em todasas organizações políticas modernas, regras de centralizaçãode competências na União e que tornaram forte o Presidenteda República e o Congresso Nacional, ao mesmo tempo quese tentou prever controles que não o fizessem absorvente,mas uma força motriz do Estado que não degenerasse parauma verdadeira tirania, resguardando-se, dessa forma, oideal democrático, a separação de poderes e a a ut o n om i ados Estados-membros (MARCH, James G. OLSEN, Johan P.O novo institucionalismo: fatores organizacionais na vidapolítica. Revisão de Ciência política Americana nº 78. Set. 1984 -p. 738; RAE, Douglas. A consequência política de leis eleitorais.New Heaven: Imprensa da Universidade de Yale, 1967. p. 30ss: SHUGART. Mathew Soberg. CAREY, John. Presidentes eAssembleias. Cambridge: Imprensa da Universidade deCambridge, 1992, p. 11 ss; MCCUBBIN, Mathews; SULLI-VAN, Terry. Congresso: estrutura política. Cambridge: Im-prensa da Universidade de Cambridge, 1987. p. 13 ss).

Histórico e desenvolvimento do federalismo

A história do federalismo inicia-se com a Constituiçãonorte-americana de 1787; a análise de suas características,bem como do desenvolvimento de seus institutos vem sen-do realizada desde os escritos de Jay, Madison e Hamilton,nos artigos federalistas, publicados sob o codinome Publius,durante os anos de 1787 - 1788, até os dias de hoje, e mostraque se trata de um sistema baseado principalmente na ma-nutenção de autonomia dos Estados-membros, com a con-sagração de divisão constitucional de competências ( C O-OLEY, Thomas McIntyre, The general principles of constitutio-

nal in the United States of America. 3 ed. Boston: Little, Brownand Company, 1898. P. 52; ROBISON, Donald L. To the bestof my ability: the presidency the constitution. New York: W.W. Norton & Company, 1987. p. 18-19).

Em 1887, em seu centenário, o estadista inglês WilliamGladstone afirmou que a Constituição dos Estados Unidos"era a mais maravilhosa obra jamais concebida num momentodado pelo cérebro e o propósito do Homem".

É importante salientar, dentro dessa perspectiva da "maismaravilhosa obra jamais concebida", que as questões do federalis-mo e do regime presidencialista foram duas das mais discuti-das durante a Convenção norte-americana.

A Constituição dos Estados Unidos da América foi apro-vada por estreita margem de convencionais. Nas conven-ções de ratificação nos Estados, poucos votos separaram asforças pró-Constituição (os federalistas, como eram chama-dos) e os opositores derrotados da Constituição (conhecidosacomo antifederalistas).

Luca Levi lembra que, "a federação constitui, portanto, arealização mais alta dos princípios do constitucionalismo.Com efeito, a ideia do Estado de direito, o Estado que submetetodos os poderes à lei constitucional, parece que pode encon-trar sua plena realização somente quando, na fase de uma dis-tribuição substancial das competências, o executivo e o judi-ciário assumem as características e as funções que têm no Es-tado Federal" (BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola, PAS-QUINO, Gianfranco (Coord.) Dicionário de política. v.1, p. 482.Conferir ainda: DUVERGER, Maurice. Droit constitutionnel etinstitutions politiques. Paris: Presses Universitaires de France,1995. p. 265).

A Federação americana, portanto, nasceu adotando a neces-sidade de um poder central com competências suficientes paramanter a união e coesão das antigas colônias, garantindo-lhes,como afirmado por Hamilton, a oportunidade máxima para a

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A história dofederalismo inicia-secom a Constituiçãonorte-americana de1787. Trata-se de umsistema baseadoprincipalmente namanutenção deautonomia dosEstados-membros,com a consagraçãode divisãoconstitucional decompetências.

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consecução da paz e liberdade contra o facciosismo e a insur-reição (The Federalist papers, nº IX) e permitindo à União rea-lizar seu papel aglutinador dos diversos Estados-membros ede equilíbrio no exercício das diversas funções constitucio-nais delegadas aos três poderes de Estado.

Como bem descreve Malbin, "a intenção dos elaboradores daCarta Constitucional Americana foi justamente estimular e in-centivar a diversidade, transcendendo as facções e trabalhandopelo bem comum" (MALBIN, J. Michel. A ordem constitucionalamericana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987. p. 144).

A Carta norte-americana consagrou, ainda, a pluralidadede centros locais de poder, com autonomia de autogoverno eauto-administração, coordenado pelo poder central, cujascompetências seriam indicadas expressamente pela Consti-tuição Federal. A ideia de preservação da liberdade na elabo-ração do federalismo não deixou de ser salientada por Alexisde Tocqueville, ao comentar a formação da nação americana(TOCQUEVILLE, Alexis de. Democracia na América: leis e cos-tumes. São Paulo: Martins Fontes, 1988. p. 37 ss).

O regime presidencialista e o federalismo dualista nasce-ram em um mesmo momento, sob o prisma da necessidade de,ao mesmo tempo, garantir as autonomias locais e preservar aunião e a coesão de todas as antigas colônias.

Carl Friedrich salienta com enorme clareza a ligação doEstado Federal com o presidencialismo, ao colocar como umdos três elementos básicos do federalismo aexistência de um órgão execu-tivo que possa aplicar asleis aprovadas pelo Le-gislativo (FRIEDRICH,Carl J. Gobierno constitu-cional y democracia. Madri:Instituto de Estudios Polí-ticos, 1975. p. 405).

Note-se, porém, que aevolução do federalismodual, para um modelo de fe-deralismo centrípeto e coope-rativo, possibilitou maior cen-tralização de poderes na União,seja no Presidente da República,seja no Congresso Nacional.

A característica básica do fe-deralismo dualista, presentenos Estados Unidos nos séculos18, 19 e início do 20, era a existência de duas esferas de po-deres estanques, em que a divisão de poder entre a União eos governos estaduais era prevista diretamente no textoconstitucional, baseava-se na ideia de dois campos de po-der mutualmente exclusivo e reciprocamente limitadores,pelo qual os Estados e a União teriam suas áreas exclusivasde autoridade (SCHWARTZ, Bernard. O federalismo norte-americano. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1984. p. 26-27. Conferir ainda: FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves.Curso... Op. cit. p. 52).

Após esse primeiro momento do federalismo, as condições daconjuntura política e econômica, principalmente depois da Crise

da Bolsa americana e a partir das medidasadotadas no New Deal, trouxeram grandesalterações ao federalismo norte-americano eacabaram por gerar um novo modelo fede-ral americano (conferir, nesse sentido, di-versas decisões da Corte Suprema Norte-Americana: Shechter, Sunshine v. Adkins,Junta Nacional de Relações trabalhistas v.Jones & Lauglin Steel Corp., ambas de1940, Kirschbaum v. Walling (1946),Martino v. Michigan Window Cleaning

Co. (1946), Mabee v. White Plains Pub. Co.(1946), entre outros), mais centrípeto e cooperativo, e ca-

racterizado, principalmente, como salientado por Karl Loewes-tein, pelo aumento do poder político do Presidente da República,aumetnando sua característica centralizadora e de personifica-ção dos interesses do país (LOEWESTEIN, Karl. Teoria de la cons-titución. Barcelona: Ariel, 1962. p. 362).

O federalismo clássico, como concebido inicialmente pelosfundadores norte-americanos, foi muito abalado, principal-mente, pelas questões econômicas, que exigiram do PoderCentral maior unidade decisória e comando; consequente-mente, gerou aumento gradativo de poder político ao Con-gresso Nacional, em detrimento das Assembleias locais ( BA-RACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria geral do federalismo.Rio de Janeiro: Forense. 1986. p. 317).

A Constituição dos Estados Unidosda América foi aprovada porestreita margem de convencionais.

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Dessa forma, à evolução centralizadora do federalismo cor-respondeu um maior fortalecimento do regime presidencialis-ta de governo e do Legislativo Nacional.

A evolução do federalismo e o fortalecimento do presidencia-lismo, portanto, caminharam conjuntamente, como concordaBernard Schwartz, ao analisar o fortalecimento do Governo Na-cional, ensinando ser o atual federalismo americano caracteri-zado pelo predomínio da autoridade federal, para concluir que"o sistema social e econômico americano tem estado sujeito cadavez mais à regulamentação e ao controle por Washington. O po-der do Governo nacional sobre o comércio é interpretado de mo-do a sujeitar até mesmo empreendimentos com somente efeitoremoto sobre a economia nacional a minuciosas normas fede-rais. E, à medida que a autoridade da Nação a este respeito cres-ceu, a dos estados sofreu correspondente decréscimo, pois aação estadual, no sistema americano, é barrada quando évalidamente exercido o poder federal in-compatível com ela " ( SCHWARTZ,Bernard. O federalismo norte-ameri-cano. Rio de Janeiro. Forense Univer-sitária, 1984. p. 74).

Prevaleceu, portanto, no federalis-mo norte-americano, a ideia de fortale-cimento do Congresso Nacional e hiper -trofia na criação do presidencialismo eda figura central do Presidente da Repú-b l i ca , tendo salientado Isaac Kramnic,que "há poucos símbolos mais importan-tes da Revolução de 1787 que o espantosopoder que a Constituição deu ao novo pri-meiro-magistrado, encarnação do ideal de autoridade, governoe poder. O presidente dos Estados Unidos era um legislador quecom um penada estava autorizado a vetar leis congressuais, sópodendo ser vencido nesses casos por dois terços do Congresso.Era um líder militar no comando total das forças armadas. Era osupremo magistrado que podia perdoar crimes contra a nação,podia nomear todos os juízes federais, podia fazer todos os tra-tados, com o conselho e a aprovação do Senado. Se reeleito, podiagovernar sem limites: a exigida rotatividade no cargo seria ape-nas uma das vítimas de 1787. Para Edmund Randolph, isso erademais: ali estava o feto da monarquia. Na grande discussão na-cional que se seguiu, os antifederalistas proclamaravam que oexecutivo delineado no artigo 2 da Constituição era presidente-general, ou, mais propriamente, nosso rei, que tinha poderes queexcediam os dos mais despóticos monarcas de que temos notícianos tempos modernos (comentários de Isaac Kramnic, na apre-sentação da obra. MADISON, James, HAMILTON, Alexander,JAY, John. The Federalist papers 1787 - 1788. Edição integral. Rio deJaneiro: Nova Fronteira, 1999. p. 27

Obviamente, essa evolução gerou reflexos importantís-simos na distribuição de competências administrativas elegislativas entre a União e os Estados-Membros em todosos países que seguiram o modelo norte-americano, inclusi-ve no Brasil.

No Brasil, apesar dos diversos constituintes, desde 1891 até1988, terem criado e mantido o modelo de Estado Federal, comunião indissolúvel dos entes, que possuem auto-organização,

não resta dúvidas de que houve gra-dual redução nas competências legis-lativas dos Estados-membros.

A Constituição Republicana de1891 previu importante sistema de re-

partição de competências, com matérias taxati-vas e não tão abrangentes à União e conferindo aos Estados-mem-bros "em geral, todo e qualquer outro poder ou direito, que lhes não fornegado por cláusula expressa ou implicitamente contido nas cláusulasexpressas da Constituição" (art. 65, §2º). Tal texto bastou para quealguns Estados se declarassem soberanos (Bahia, Goiás, MatoGrosso e Piauí), outros autônomos e soberanos (Paraná) e, ainda,independentes e soberano (Rio de Janeiro).

A ideia de ampla autonomia dos Estados-membros na Fe-deração foi detalhada por João Barbalho, ao afirmar que "issoindica que as Constituições dos Estados não estão obrigadas asegui-la (Constituição Federal) inteiramente à risca, a mode-larem-se completamente por ela, sem divergir em algunspontos, contanto que não sejam fundamentais. E bem o com-preenderem eles no organizarem seus governos apartando-se em alguma cousa do modelo federal" (BARBALHO, João.Constituição Federal Brasileira (1891). Ed. Fac-similar. Brasília:Senado Federal: Conselho Editorial, 2002. p. 267).

Igual ideia de autonomia federativa teve seus reflexos políti-cos no Brasil, com o fortalecimento das estruturas políticas oligár-quicas, que contribuíram para a Reforma Constitucional de 1926,com claro fortalecimento e centralização na União.

A Constituição de 1934 tentou reequilibrar o sistema, trazen-do - pela primeira vez no direito constitucional brasileiro - o mo-delo da Constituição alemão de 1919, das competências concor-rentes. Na Constituição de 1937, houve referência à delegaçãoda União aos Estados-membros da faculdade de legislar.

A ruptura democrática e institucional até 1945, fez comque omodelo federativo da Constituição de 1946 se situasse

Constituinte Medeiros Neto assina aConstituição de 1934. Ao lado, imagemda Constituição com as assinaturas detodos os membros que fizeram parte daAssembleia Constituinte.

Fotos: Reprodução

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como tema central, principalmente a autonomia dos Esta-dos-membros, porém, não houve acentuação da centraliza-ção de competências legislativas na União; o mesmo, ocor-rendo com a Constituição de 1967.

A tradição de centralização das competências legislativasna União corrobora as críticas feitas por Castro Nunes ao ana-lisar as competências legislativas do Estado-membro, caracte-rizando-o como "mutilado em suas atribuições, sem atençãoao regimen de poderes separados que é da essência das ins-tituições democrático-republicanas" ( NUNES, José de Cas-tro. As constituições estaduaes no Brasil. Rio de Janeiro. Edit. Lei-te Ribeiro, 1922, t. 1. p. 68).

3 - Federalismo Brasileiro eDistribuição de Competências

A Constituição de 1988 manteve a tradição republicana,adotando o federalismo, forma de Estado que gravita em tor-no do princípio da autonomia e da participação política epressupõe a consagração de certas regras constitucionais, ten-dentes não somente à sua configuração, mas também à sua ma-nutenção e indissolubilidade.

Como ressaltado por Geraldo Ataliba, "exsurge a Federaçãocomo a associação de Estados (foedus, foederis) para formaçãode novo Estado (o Federal) com repartição rígida de atributosda soberania entre eles. Informa-se seu relacionamento pela‘autonomia rrecíproca da União e dos Estados, sob a égide daConstituição Federal’ (Sampaio Dória), caracterizadora dessaigualdade jurídica (Ruy Barbosa), dado que ambos extraemsuas competências da mesma norma (Kelsen). Daí cada qualser supremo em sua esfera, tal como disposto no Pacto Federal(Victor Nunes)" (ATALIBA, Geraldo. República e constituição.São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, p. 10)

O mínimo necessário para a caracterização da organiza-ção constitucional federalista exige, inicialmente, a decisãodo legislador constituinte, por meio da edição de uma cons-tituição, em criar o Estado Federal e suas partes indissociá-veis, a Federação ou União, e os Estados-membros, pois acriação de um governo geral supõe a renúncia e o abandonode certas porções de competências administrativas, legisla-tivas e tributárias por parte dos governos locais (BADIA,Juan Fernando. El estado unitário: El federal y El estado re-gional. Madri: Tecnos, 1978. p. 77). Essa decisão está con-substanciada nos arts. 1º e 18 da Constituição de 1988 ( c o n-ferir a respeito: FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O Es-tado federal brasileiro na Constituição de 1988, Revista de Di-reito Administrativo, nº 179, p. 1; HORTA, Raul Machado.Tendências atuais da federação brasileira. Cadernos de direitoconstitucional e ciência política, nº 16. p. 17; e do mesmo autor:Estruturação da Federação, Revista de Direito Público nº 81, p.53; VELLOSO, Caio Mário. Estado federal e estados federa-dos na Constituição brasileira de 1988: do equilíbrio federa-ti vo . Revista de Direito Administrativo nº 187, p. 1; MARI-NHO, Josaphat: Rui Barbosa e a federação. Revista de Infor-mação Legislativa, nº 130, p. 40; FAGUNDES, Seabra. Novasperspectivas do federalismo brasileiro. Revista de DireitoAdministrativo, nº 99, p. 1).

Além disso, a Constituição deve estabelecer os seguintesprincípios: os cidadãos dos diversos Estados-membros ade-rentes à Federação devem possuir a nacionalidade única des-sa; repartição constitucional de competências entre aUnião, Estados-membros, Distrito Federal e município; ne-cessidade de que cada ente federativo possua uma esfera decompetência tributária que lhe garanta renda própria; po-der de auto-organização dos Estados-membros, Distrito Fe-deral e municípios, atribuindo-lhes autonomia constitu-ci ona l; possibilidade constitucional excepcional e taxativade intervenção federal, para manutenção do equilíbrio fede-rativo; participação dos Estados no Poder Legislativo Fede-ral, de forma a permitir-se a ingerência de sua vontade na for-mação da legislação federal; possibilidade de criação de novoEstado ou modificação territorial de Estado existente depen-dendo da aquiescência da população do Estado afetado; aexistência de um órgão de cúpula do Poder Judiciário para in-terpretação e proteção da Constituição Federal.

Note-se que, expressamente, o legislador constituinte deter-minou a impossibilidade de qualquer proposta de emendaconstitucional tendente a abolir a Federação (CF. art. 60, §4º, I).

A autonomia dos Estados-membros caracteriza-se pela de-nominada tríplice capacidade de auto-organização e norma-tização própria, autogoverno e auto-administração.

Os Estados-membros se auto-organizam por meio do exer-cício do exercício de seu poder constituinte derivado-decorren-te, consubstanciando-se na edição das respectivas Constitui-ções Estaduais e, posteriormente, através de sua própria legis-lação (CF, art. 25, caput), sempre, porém, respeitando os prin-cípios constitucionais sensíveis, princípios federais extensíveise princípios constitucionais estabelecidos (SILVA, José Afonso.O Estado-membro na Constituição Federal. RDP 16/15).

Como já decidiu o Supremo Tribunal Federal, "se é certoque a nova Carta Política contempla um elenco menos abran-gente de princípios constitucionais sensíveis, a denotar, comisso, a expansão de poderes jurídicos na esfera das coletivi-dades autônomas locais, o mesmo não se pode afirmar quantoaos princípios federais extensíveis e aos princípios constitu-cionais estabelecidos, os quais, embora disseminados pelo tex-to constitucional, posto que não é tópica a sua localização, con-figuram acervo expressivo de limitações dessa autonomia lo-cal, cuja identificação - até mesmo pelos efeitos restritivos quedeles decorrem - impõe-se realizar" (STFm Pleno, ADI 216/PB,Rel. Min. Celso de Mello: RTJ 146/388.

Os princípios constitucionais sensíveis são assim denomi-nados, pois a sua inobservância pelos Estados-membros noexercício de suas competências legislativas, administrativasou tributárias, pode acarretar a sanção politicamente maisgrave existente em um Estado Federal, a intervenção na au-tonomia política. Estão previstos no art. 34, VII, da Constitui-ção Federal: forma republicana, sistema representativo e regi-me democrático; direitos da pessoa humana; autonomia mu-nicipal; prestação de contas da administração pública, direta eindireta; aplicação do mínimo exigido da receita resultante deimpostos estaduais, compreendida a proveniente de transfe-rências, na manutenção e no desenvolvimento do ensino e nasações e serviços públicos de saúde.

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Os princípios federais extensíveis são as normas centraiscomuns à União, Estados, Distrito Federal e municípios, por-tanto, de observância obrigatória no poder de organizaçãodo Estado. Poder-se-iam colocar nessa classificação os chama-dos por Raul Machado Horta de "Princípios desta Constitui-ção" (por exemplo, arts. 1º, I a V; 3º, I a IV; 4º, I a X; 2º; 5º. I, II, III,VI, VIII, IX, XI, XII, XX, XXII, XXIII, XXXVI, LIV e LVII; 6º a 11;93, I a XI; 95, I, II e III. In: MACHADO, Horta. Estudos de direitoconstitucional. p. 391-392).

Por fim, os princípios constitucionais estabelecidos con-sistem em determinadas normas que se encontram espa-lhadas pelo texto da Constituição, e, além de organizarema própria federação, estabelecem preceitos centrais de ob-servância obrigatória aos Estados-membros em sua auto-o rg an iz a çã o. Subdividem-se em normas de competência(por exemplo: arts. 23; 24; 25,27, § 3º; 75; 96, I, a-f; 96, II, a-d,III; 98, I e II; 125, § 4º; 144, § 4º,5º e 6º; 145, I, II e III; 155, I,a ,b ,c , I I . In . MACHADO,Horta. Op. cit. p. 392-393) enormas de preordenação)por exemplo: arts. 27; 28; 37,I a XI. In: MACHADO, Horta.Op. cit. p. 393).

A autonomia estadual tam-bém se caracteriza pelo autogo-verno, uma vez que é o própriopovo do Estado quem escolhediretamente seus representan-tes nos Poderes Legislativo eExecutivo locais, sem que hajaqualquer vínculo de subordi-nação ou tutela por parte daUnião. A Constituição Federalprevê expressamente a existência dos Poderes Legislativo (CF,art. 27), Executivo (CF, art. 28) e Judiciário (CF, art. 125) estaduais(conferir: CLÉVE, Clemerson Merlin. Temas de direito constitu-cional. São Paulo: Acadêmica, 1993. P. 63-63; SILVA, José Afonso.O estado-membro na constituição federal; RDP, 16/15. Na vi-gência da Constituição anterior, Paulo Lopo Saraiva, analisandoa correlação entre autonomia dos Estados-membros e Federa-ção, advertia que "a indicação dos governadores dos Estados, anomeação de um Senador - CF, art. 41, §2º, alterado pelo EC nº 15,de 19-11-1980 - e a designação dos prefeitos das Capitais e de ou-tras cidades brasileiras atestam a falência do nosso Federalismoe a ascensão de um Unitarismo, despido de qualquer formula-ção jurídica", in Federalismo regional. Op. cit. p. 55).

A própria Constituição Federal (art. 27) estabelece regras nacomposição do Poder Legislativo Estadual, determinando suaunicameralidade, sua denominação - Assembleia Legislativa -, a duração do mandato dos deputados (quatro anos - STF, Ple-no, ADI 3825, Rel. Min. Carmen Lúcia) as regras sobre sistemaeleitoral, inviolabilidade, imunidades (STF, Pleno, RE456679/DF, Rel. Min. Sepúlvida Pertence), remuneração e pre-visão sobre iniciativa popular de lei; bem como duas regras pa-ra fixação do número de deputados estaduais.

Em relação ao Poder Executivo estadual, o art. 28 da Cons-tituição Federal com a nova redação dada pela Emenda Cons-titucional nº 16, de 4-6-1997, estabelece que a eleição do Gover-nador e do vice-Governador de Estado, para mandato de qua-tro anos, permitindo-se a reeleição para um único período sub-sequente, realizar-se-á no primeiro domingo de outubro, emprimeiro turno, e no último domingo de outubro, em segundoturno, se houver, do ano anterior ao do término do mandato deseus antecessores, e a posse ocorrerá em primeiro de janeiro doano subsequente. Além disso, expressamente, determina aaplicação das regras previstas para a eleição e posse do Presi-dente da República (CF, art. 77).

Determina, também, que perderá o mandato o governadorque assumir outro cargo ou função na administração pública di-reta e indireta, ressalvada a posse em virtude de concurso público

e observado odisposto no art.38, I, IV e V da própria Consti-tuição Federal. Além disso, aConstituição Federal prevê queos subsídios do Governador, dovice-Governador e dos Secretá-rios de Estado serão fixados porlei de iniciativa da AssembleiaLegislativa, observando o quedispõem os arts. 37, XI; 39, §4º;150, II. 153, III; e 153, §2º, I..

Por fim, completando a trí-plice capacidade garantidorada autonomia dos entes fede-rados, os Estados-membrosse auto-administram no exer-cício de suas competênciasadministrativas, legislativase tributárias definidas cons-titucionalmente. Saliente-se

que, está implícita, no exercício da competência tributária, aexistência de um mínimo de recursos financeiros, obtidos di-retamente através de sua própria competência tributária.

4 - Repartição de competências e princípio dapredominância do interesse

A autonomia das entidades federativas pressupõe reparti-ção de competências legislativas, administrativas e tributá-rias, sendo, pois, um dos pontos caracterizadores e assegura-dores do convívio no Estado Federal.

A própria Constituição Federal estabelecerá as matériaspróprias de cada um dos entes federativos, União, Estados-membros, Distrito Federal e municípios, e a partir disse poderáacentuar a centralização de poder, ora na própria Federação,ora nos Estados-membros.

O princípio geral que norteia a repartição de competênciaentre as entidades componentes do Estado Federal é o da pre-dominância do interesse.

Assim, pelo princípio da predominância do interesse, à Uniãocaberá aquelas matérias e questões de predominância do inte-resse geral, ao passo que aos Estados referem-se as matérias de

Andre Dusek/AE

O presidente da Câmara dos Deputados, UlissesGuimarães, na última sessão da Assembleia Constituinte.A nova Constituição foi promulgada em outubro de 1988.

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predominante interesse regional e aos municípios concernem osassuntos de interesse local. Em relação ao Distrito Federal, porexpressa disposição constitucional (CF, art,. 32 §1º), acumu-lam-se, em regra, as competências estaduais e municipais, comexceção prevista no art. 22, XVII, da Constituição.

O legislador constituinte, adotando o referido princípio,estabeleceu quatro pontos básicos no regramento consti-tucional para a divisão de competências administrativas elegislativas:

1) Reserva de campos específicos de competência adminis-trativa e legislativa (União - Poderes enumerados, CF, arts 21 e22; Estados - Poderes remanescentes, CF, art. 25, § 1º - Muni-cípio - Poderes enumerados, CF, art. 30; Distrito Federal - Es-tados + Municípios, CF, art. 32, § 1º);

2) Possibilidade de delegação ( CF, art. 22, parágrafo único;Lei complementar federal poderá autorizar os Estados a legis-lar sobre questões específicas das matérias de competênciaprivativa da União);

3) Áreas comuns de atuação administrativa paralela ( C F,art. 23);

4) Áreas de atuação legislativa concorrente (CF, art. 24)À União, a Constituição Federal enumerou competências

administrativas e legislativas.Aos Estados-membros são reservadas as competências

administrativas que não lhes sejam vedadas pela Constitui-ção, ou seja, cabem na área administrativa privativamente aoEstado todas as competências que não forem da União (CF,art. 21), dos municípios (CF, art. 30) e comuns (CF, art. 23).

É a chamada competência remanescente dos Estados-mem-bros, técnica clássica adotada originalmente pela Constituiçãonorte-americana e por todas as Constituições brasileiras, des-de a República, e que presumia o benefício e a preservação deautonomia destes em relação à União, uma vez que a regra é ogoverno dos Estados, a exceção o Governo Federal, pois o po-der reservado ao governo local é mais extenso, por ser inde-finido e decorrer da soberania do povo, enquanto o poder ge-ral é limitado e se compõe de certo modo de exceções taxativas.Em seu art. 30, o texto constitucional determina competir aosmunicípios os assuntos de interesse local.

Não poucas vezes, a aplicação do princípio da predomi-nância do interesse é esquecida no Brasil, em detrimento dosEstados-membros e, em benefício da centralização na União

5 - problemas no exercício da distribuiçãoconstitucional de competênciasda Constituição Brasileira

Se teoricamente a Constituição republicana de 1988 adotoua clássica repartição de competências federativas, preservan-do um rol taxativo de competências legislativas para a União e,dessa forma, mantendo os poderes remanescentes dos Esta-dos-membros; na prática não se verifica tal equilíbrio, exata-mente, pelas matérias descritas no artigo 22 do texto consti-tucional e pela interpretação política e jurídica que, tradicio-nalmente, se dá ao seu artigo 24.

Ao verificarmos as matérias do extenso rol de 29 incisos eum parágrafo do artigo 22 da CF/88, é facilmente percep-

tível o desequilíbrio federativo no tocante à competência le-gislativa entre União e Estados-membros, uma vez que, há aprevisão de quase a totalidade das matérias legislativas demaior importância para a União (direito civil, comercial,penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáuti-co, espacial e do trabalho, desapropriação, águas, energia,informática, telecomunicações, radiodifusão, serviçopostal, comércio exterior e interestadual, diretrizes da po-lítica nacional de transportes, regime de portos, navega-ção lacustre, fluvial, marítima, aérea e aeroespacial, trân-sito e transporte, diretrizes e bases da educação nacional,registros públicos etc.)

Além disso, a tradicional interpretação política e jurídicaque vem sendo dada ao artigo 24 do texto constitucional, nosentido de que nas diversas matérias de competência concor-rente entre União e Estados, a União pode discipliná-las qua-se integralmente, temos o resultado da diminuta competêncialegislativa dos Estados-membro; gerando a excessiva centra-lização aos poderes legislativos na União, o que caracterizaum grave desequilíbrio federativo.

O reequilíbrio na distribuição das competências fede-rativas pode ser realizado em cinco campos: (1) Alteraçõesconstitucionais; (2) Real exercício das competências dele-gadas (parágrafo único do art. 22 da CF); (3) Efetivo exer-cício das competências concorrentes (artigo 24 da CF) en-tre União e Estados-membros; (4) Maior atuação perante oSupremo Tribunal Federal no sentido de evolução juris-prudencial que valorize os poderes remanescentes dos Es-tados-membros e reequilibre os entes-federativos; e (5)Adoção do princípio da subsidiariedade, em prática naUnião Europeia.

No tocante as (1) Alterações Constitucionais, há a possibi-lidade, dentro de um grande acordo político que preserve a au-tonomia dos entres federativos, da edição de emenda consti-tucional com a migração de algumas competências definidasatualmente como privativas da União para o rol de competên-cias remanescentes dos Estados-membros e outras para ascompetências concorrentes ente a União e Estados-membros,para que nesses assuntos, as peculiariedades regionais sejamconsideradas. Essa alteração constitucional não estaria a ferir acláusula pétrea prevista no inciso 1, do artigo 60, do texto mag-no ("Não será objeto de deliberação a proposta de emenda ten-dente a abolir a forma federativa do Estado"), uma vez que essaproposta estaria plenamente de acordo com os objetivos fun-damentais da República, entre eles, o de reduzir as desigual-dades sociais e regionais (CF, art. 3º, III)

Sem qualquer necessidade de alteração constitucional, o (2)Real Exercício das Competências Delegadas (parágrafo úni-co do art. 22 da CF) poderia encontrar um ponto de equilíbriofederativo entre União e Estados.

Em seu parágrafo único, o artigo 22 do texto constitucio-nal prevê que lei complementar poderá autorizar os Estadosa legislar sobre questões específicas das matérias relaciona-das neste artigo.

Dessa forma, todas as importantes matérias de competênciada União descritas no artigo 22 do texto constitucional podemser delegadas aos Estados-membros, desde que: (a) seja apro-

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vada lei complementar pelo Congresso Nacional; (b) sejam in-dicados os pontos delegados; © a delegação não gere discrimi-nação entre os Estados-membros.

Esse instrumento seria importantíssimo, por exemplo, paraque cada Estado-membro, atento às suas peculiaridades, pudes-se disciplinar pontos específicos das diversas matérias (conferira respeito: ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes. Competências naConstituição de 1988. São Paulo: Atlas, 1991), como por exemplo,relações comerciais, ou ainda, do direito agráriocuja realidade édiferente no Estado do Amazonas e em São Paulo , no direito tra-balhista, igualmente de realidades diversas; e, mesmo, no tocan-te ao direito processual civil e penal.

Como exemplo do exercício dessa delegação específica, oEstado de São Paulo editou as leis ordinárias nºs 12.640/07 e12.967/08 (instituição de pisos salariais para os trabalhadoresque especificou), nos termos da delegação contida na lei com-plementar nº 103, de 14 de julho de 2000.

Apesar do tímido exercício desse mecanismo, tramitam noCongresso Nacional projetos de lei complementar visando aconcessão de delegações (PLP nº 272/90, PLP 33/03, PLP47/03, PLP 136/07 – na Câmara dos Deputados, que autori-zam os Estados a legislar sobre a mobilidade urbana, a partirdas diretrizes nacional que estabelece; e PLS nº 21/2003, PLS52/2007 – no Senado Federal, que autorizam Estados a legislarsobre direito penal em questões específicas que define).

O (3) efetivo exercício das competências concorrentes (ar-tigo 24 da CF) entre União e Estados-membros a carretar iasubstancial recuperação de parcela legislativa dos Estados-membros em importantes matérias.

O art. 24 da Constituição Federal prevê as regras de compe-tência concorrente entre União, Estados e Distrito Federal, es-tabelecendo quais as matérias que deverão ser regulamenta-das de forma geral por aquela e específica por esses.

No âmbito da legislação concorrente, a Constituição brasi-leira estabeleceu a legislação concorrente não cumulativa, ouseja, a chamada repartição vertical, pois, dentro de um mesmocampo material (concorrência material de competência), re-serva-se um nível superior ao ente federativo União, que devesomente fixar os princípios e normas gerais, deixando-se aoEstado-membro a complementação, com a edição de regrascomplementares e específicas.

Como apontou Raul Machado Horta, "a legislação federal éreveladora das linhas essenciais, enquanto a legislação localbuscará preencher o claro que lhe ficou, afeiçoando a matériarevelada na legislação de normas gerais às peculiaridades e àsexigências estaduais. A Lei Fundamental ou de princípios ser-virá de molde à legislação local. É a Rahmengesetz, dos ale-mães; a Legge-cornice dos italianos; a Loi de cadre, dos fran-ceses; são as normas gerais do Direito Constitucional Brasilei-ro (MACHADO HORTA, Raul. Estudos de direito constitucional.Belo Horizonte. Del Rey, 1995, p. 366).

Assim, ao adotar a competência concorrente não cumu-lativa ou vertical de forma que a competência da União estáadstrita ao estabelecimento de normas gerais, devendo osEstados e o Distrito Federal especificá-las, através de suasrespectivas leis, o texto constitucional seguiu orientação daConstituição de Weimar (art. 10), consiste em permitir ao go-verno federal a fixação das normas gerais, sem descer a por-menores, cabendo aos Estados-membros a adequação da le-gislação às peculiaridades locais.

Para exemplificar a importância desse mecanismo, é impor-tante lembrar que o Supremo Tribunal Federal entendeu no to-cante à acessibilidade de pessoas portadoras de necessidadesespeciais no transporte coletivo intermunicipal, existir compe-tência concorrente, cabendo aos Estados-membros a c o m p e-tência legislativa plena para normas específicas, como por

O art. 24 daConstituição Federalprevê as regras decompetênciaconcorrente entreUnião, Estados eDistrito Federal,estabelecendo quaisas matérias quedeverão serregulamentadas deforma geral poraquela e específicapor esses.

Divulgação

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exemplo, exigência de adaptação de veículos (STF, pleno,ADI 903/6, Rel. Min. Celso de Mello).

Ocorre, entretanto, que os Estados-membros são extrema-mente tímidos na edição da legislação complementar, aceitan-do sem qualquer contestação a legislação federal que – em ma-téria concorrente – acaba por disciplinar tanto os princípios eregras gerais, quanto as normas específicas.

Medida de reflexos imediatos, a (4) MAIOR ATUAÇÃOPERANTE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO SEN-TIDO DE EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL QUE VALO-RIZE OS PODERES REMANESCENTES DOS ESTADOS-MEMBROS poderia, em pouco tem-po, garantir um maior equilíbrio en-tre os entes-federativos.

A doutrina aponta a tendência doSupremo Tribunal Federal, principal-mente na esfera das competências con-correntes, em dirimir eventuais dúvi-das a favor da União (conferir a respei-to: FERREIRA FILHO, Manoel Gon-çalves. Temas de Direito ConstitucionalEstadual e questões sobre o pacto federati-vo. São Paulo. Assembleia Legislativade São Paulo, 2004, p. 166), porém éperceptível que a atual composiçãodo Supremo Tribunal Federal vem re-pensando esse modelo centralizadorfixado pré-constituição de 1988, o quedemonstra a necessidade de um traba-lho de conscientização dos Ministrosda Corte Suprema nos julgamentosmais importantes.

A título de exemplo, demonstran-do a flexibilização de posicionamento até então arraigado noSTF, sobre a necessidade dos Estados-membros observaremrigorosamente princípios estruturais institucionais da União,decidiu a Corte, em relação à investidura ao cargo de Procu-rador-Geral do Estado de São Paulo, a possibilidade de a Cons-tituição Estadual prever a obrigatoriedade da escolha ser rea-lizada entre integrantes da carreira, mesmo sendo diferente domodelo federal de escolha do Advogado-Geral da União (STF,Pleno, ADI 2581/SP, Rel. Min. Maurício Correa).

Por fim, o texto constitucional oferece mecanismos paraque, com a edição de leis complementares em importantes ma-térias, passe a ser adotado no Brasil, com as devidas adapta-ções, o princípio da subsidiariedade, já em prática na UniãoEuropeia, por meio de protocolo datado de outubro de 1992.

Nessa data, o Conselho Europeu de Birmingham reafir-mou que as decisões da União Europeia deveriam ser toma-das o mais próximo possível do cidadão. Sob essa ótica, oConselho Europeu de Edimburgo, em dezembro de 1992,definiu uma abordagem global para a aplicação do princí-pio da subsidiariedade, prevendo princípios fundamen-tais, diretrizes e procedimentos; sempre com a finalidade deprestigiar as comunidades regionais.

Dessa forma, as propostas legislativas da União Europeiadevem analisar se os objetivos da ação proposta podem ser su-

ficientemente realizados pelos Estados-membros, bem comoquais serão seu reflexos e efeitos.

A ideia aplicada à federação brasileira – principalmente noexercício das competências legislativas concorrentes e nascompetências administrativas comuns – é prestigiar a atuaçãopreponderante do ente federativo em sua esfera de poder naproporção de sua maior capacidade para solucionar a matériade interesse do cidadão.

Exemplificativamente, há no Congresso Nacional o PLP388/07, de iniciativa presidencial (MSC 37/2007), que prevê aedição de lei complementar que fixará nos termos do parágra-

fo único do artigo 23 da CF, normas pa-ra a cooperação entre União, Estados-membros e Municípios nas ações ad-ministrativas decorrentes do exercícioda competência comum.

6 - Conclusões

O texto pretendeu demonstrar a ine-xistência de dúvidas sobre a intensa li-gação entre separação de poderes, au-tonomias, liberdades e federalismo,principalmente, levando-se em contaque a maior autonomia local para le-gislar, em importantes matérias, sig-nifica um maior controle sobre o cen-tralismo e arbítrio estatal (em relaçãoa esse tema, consultar importante arti-go que analisa detalhadamente a posi-ção dos Juízes da Suprema Corte norte-americana O’Connor e Scalia, em defe-sa da maior autonomia local – GEL-

FAND, M. David, WERHAN, Keith. Federalism and separation ofpower on a ‘conservation’ Court: currents and cross-currentsfrom judices O’Connor and Scalla. Tulane Law Review. Neworleans, ano 2, v. 64, jun. 1990. P. 1443).

Um dos principais pilares de sustentação do Estado Federal é oexercício autônomo, pelos entes federativos, das competências le-gislativas e administrativas constitucionalmente distribuídas.

Para atingir essa finalidade, imprescindível a recuperação doexercício de competências legislativas pelos Estados-membrosem matérias importantes e adequadas às peculiaridades locais.

Logicamente, muitos mecanismos políticos, sociais e jurídi-cos podem ser apontados para a obtenção desses resultados:porém, no breve espaço desse estudo, foram destacadas as se-guintes possibilidades:

1) Alterações constitucionais;2) Real exercício das competências delegadas (parágrafo

único do art. 22 da CF);3) Efetivo exercício das competências concorrentes (artigo

24 da CF);4) Maior atuação perante o Supremo Tribunal Federal no

sentido de evolução jurisprudencial que valorize os poderesremanescentes dos Estados-membros e reequilibre os entes-federativos;

5) utilização do princípio da subsidiariedade.

Bruno Stuckert/Folha Imagem

O Supremo Tribunal Federal vemrepensando o modelo centralizador

fixado pré-constituição de 1988.

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